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BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas.

Tradução:
Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999, p. 63-110.
Trecho Página
Depois da Nação-estado, o quê? 63-84
“A economia” — o capital, que
significa dinheiro e outros recursos necessários para fazer as coisas,
para fazer mais dinheiro e mais coisas — move-se rápido; rápido o
bastante para se manter permanentemente um passo adiante de
qualquer Estado (territorial, como sempre) que possa tentar conter e
redirecionar suas viagens.
Num mundo em que o capital não tem domicílio fixo e os fluxos
financeiros estão bem além do controle dos governos nacionais,
muitas das alavancas da política econômica não mais funcionam
[...]a influência crescente das organizações supranacionais —
“planetárias” — “teve por efeito acelerar a exclusão das áreas fracas
e criar novos canais para a alocação de recursos, retirados, pelo
menos em parte, ao controle dos vários Estados nacionais”.
O significado mais profundo transmitido
pela ideia da globalização é o do caráter indeterminado,
indisciplinado e de
autopropulsão dos assuntos mundiais; a ausência de um centro, de
um painel de
controle, de uma comissão diretora, de um gabinete administrativo.
Devido à total e inexorável disseminação das regras de livre mercado
e, sobretudo, ao livre movimento do capital e das finanças, a
“economia” é progressivamente isentada do controle político; com
efeito, o significado
primordial do termo “economia” é o de “área não política”.
A única tarefa econômica permitida ao Estado e que se espera que
ele assuma é
a de garantir um “orçamento equilibrado”, policiando e controlando as
pressões locais por intervenções estatais mais vigorosas na direção
dos negócios e em defesa da população face às consequências mais
sinistras da anarquia de mercado.
Por sua independência de movimento e irrestrita liberdade para
perseguir seus
objetivos, as finanças, comércio e indústria de informação globais
dependem da fragmentação política — do morcellement
[retalhamento] — do cenário mundial. Pode-se dizer que todos têm
interesses adquiridos nos “Estados fracos” — isto é, nos Estados que
são fracos, mas mesmo assim continuam sendo Estados.
Uma das consequências mais fundamentais da nova liberdade global
de movimento é que está cada vez mais difícil, talvez até mesmo
impossível, reunir questões sociais numa efetiva ação coletiva.
Agora é a conduta dos
“mercados” — primordialmente das finanças mundiais — a principal
fonte de
surpresa e incerteza
A integração e a divisão, a globalização e a territorialização, são
processos
mutuamente complementares. Mais precisamente, são duas faces do
mesmo
processo: a redistribuição mundial de soberania, poder e liberdade de
agir
desencadeada (mas de forma alguma determinada) pelo salto radical
na tecnologia da velocidade. A coincidência e entrelaçamento da
síntese e da dispersão, da integração e da decomposição são tudo,
menos acidentais; e menos ainda passíveis de retificação.
É por causa dessa coincidência e desse entrelaçamento das duas
tendências
aparentemente opostas, ambas desencadeadas pelo impacto divisor
da nova liberdade de movimento, que os chamados processos
“globalizantes” redundam na redistribuição de privilégios e carências,
de riqueza e pobreza, de recursos e impotência, de poder e ausência
de poder, de liberdade e restrição. Testemunhamos hoje um
processo de reestratificação mundial, no qual se constrói uma nova
hierarquia sociocultural em escala planetária.
Turistas e vagabundos 85-110
Hoje em dia estamos todos em movimento. Muitos mudam de lugar
— de casa ou viajando entre locais que não são o da residência.
Alguns não precisam sair para viajar: podem se atirar à Web,
percorrê-la, inserindo e mesclando na tela do computador
mensagens provenientes de todos os cantos do globo. Mas a maioria
está em movimento mesmo se fisicamente parada — quando, como
é hábito, estamos grudados na poltrona e passando na tela os canais
de TV via satélite ou a cabo, saltando para dentro e para fora de
espaços estrangeiros com uma velocidade muito superior à dos jatos
supersônicos
e foguetes interplanetários, sem ficar em lugar algum tempo
suficiente para ser
mais do que visitantes, para nos sentirmos em casa.
No mundo que habitamos, a distância não parece importar muito. Às
vezes
parece que só existe para ser anulada, como se o espaço não
passasse de um
convite contínuo a ser desrespeitado, refutado, negado.
E assim, pelo menos espiritualmente, somos todos viajantes.
Não se pode “ficar parado” em areia movediça. Nem nesse nosso
mundo moderno final ou pós-moderno
O consumidor em uma sociedade de consumo é uma criatura
acentuadamente diferente dos consumidores de quaisquer outras
sociedades até aqui. Se os nossos ancestrais filósofos, poetas e
pregadores morais refletiram se o homem trabalha para viver ou vive
para trabalhar, o dilema sobre o qual mais se cogita hoje em dia é se
é necessário consumir para viver ou se o homem vive para poder
consumir.
A necessária redução do tempo é melhor alcançada se os
consumidores não
puderem prestar atenção ou concentrar o desejo por muito tempo em
qualquer
objeto; isto é, se forem impacientes, impetuosos, indóceis e, acima
de tudo,
facilmente instigáveis e também se facilmente perderem o interesse
Como todas as outras sociedades, a sociedade pós-moderna de
consumo é uma sociedade estratificada.
As cidades contemporâneas são locais de um “apartheid ao avesso”:
os que podem ter acesso a isso abandonam a sujeira e
pobreza das regiões onde estão presos aqueles que não têm como
se mudar.
Amplamente notada e cada vez mais
preocupante, a polarização do mundo e de sua população não é uma
interferência
externa, estranha, perturbadora, um entrave ao processo de
globalização — é
efeito dele.
Tanto o turista como o vagabundo são consumidores — e os
consumidores dos
tempos modernos avançados ou pós-modernos são caçadores de
emoções e
colecionadores de experiências
Como lembra Jeremy Seabrook, o segredo da sociedade atual está
“no
desenvolvimento de um senso de insuficiência artificialmente criado e
subjetivo” — uma vez que “nada poderia ser mais ameaçador” para
seus princípios
fundamentais “do que as pessoas se declararem satisfeitas com o
que têm”.
Tanto o turista como o vagabundo foram transformados em
consumidores, mas
o vagabundo é um consumidor frustrado. Os vagabundos não podem
realmente se
permitir as opções sofisticadas em que se espera que sobressaiam
os consumidores; seu potencial de consumo é tão limitado quanto
seus recursos. [...]São inúteis, no único sentido de “utilidade” em que
se pode pensar numa sociedade de consumo ou de turistas. E por
serem inúteis são também indesejáveis.
E assim o vagabundo é o pesadelo do turista, o “demônio interior” do
turista
que precisa ser exorcizado diariamente.
É preciso enfrentar muitas dificuldades em nome da liberdade
turística: a impossibilidade de relaxar, a incerteza envolvendo cada
escolha, os riscos ligados a cada decisão sendo os
maiores, mas não os únicos.

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