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INTERVENÇÃOCOMOPROCESSO1

André Lévy

Se as diferenças entre as diversas correntes da Psicossociologia


se afirmaram e se aperfeiçoaram nos últimos anos, como Jean-Claude
ROUCHY2 propõe, permitindo esclarecimentos progressivos, esses
ainda são muito relativos; o agravamento de diferenças doutrinárias
ou ideológicas, devido a fatores circunstanciais e à necessidade de se
criar uma identidade visível ou uma demarcação, mesmo que artifici-
al, freqüentemente ocupa o lugar de uma elucidação das diferenças
teóricas ou dos postulados epistemológicos.
Porém, a experiência adquirida tornou os psicossociólogos mais pru-
dentes. Tomaram consciência da enorme distância que existe entre a com-
plexidade das situações e suas metodologias e teorizações.
Esclarecer sua posição em relação às situações, à maneira de se defi-
nir diante dos conflitos de todo tipo, bem ou mal resolvidos, mostrar seu
itinerário3 sinuoso e, entretanto, sobredeterminado por uma profunda
lógica, pela fidelidade a alguns princípios e valores essenciais – em resu-
mo, “dar conta de sua prática” – é uma tarefa cada vez mais difícil de ser
feita seriamente.
Parafraseando HEGEL, está na moda hoje celebrar a importância do
“trabalho do negativo”. Tal afirmação, porém, quando é apenas verbal, tem
qualquer coisa de suspeita, sobretudo porque permite aos que a enunciam
afirmar sua superioridade sobre os que vivem diretamente essa negativida-
de, através das contradições de suas condutas profissionais.
No que me diz respeito, há muito tempo, renunciei às ilusões da
mudança social planejada ou ao otimismo rogeriano com relação aos
homens e aos grupos, à crença em sua positividade fundamental e, além
disso, descobri como essa mesma crença pode ser suspeita, uma vez sus-
tentada pelas pulsões de morte, pelo desprezo e pelo ódio que ela tenta
conjurar. Porém, tudo isso não me leva a entregar-me ao prazer da renún-
cia doutrinária e da autocondenação.

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Psicossociologia – Análise social e intervenção

O essencial de minha atividade de interventor está centrado em um


trabalho psicológico, feito paulatinamente com grupos relativamente pe-
quenos, nos quais os conflitos e as contradições são trabalhados concre-
tamente por cada um, em relações diretas, face a face. Embora com uma
posição totalmente diversa da de ROGERS, penso que só é possível rea-
lizar um trabalho que valha a pena com grupos e organizações quando
se tem um interesse afetivo verdadeiro pelas pessoas que fazem parte
deles4 ; penso que uma atitude voluntária e falsamente objetiva, desa-
paixonada, científica, pode ser apenas uma máscara para o desprezo
profundo com relação ao outro e representar apenas ações tecnocráticas
a serviço de um desejo de poder mais ou menos oculto.
Toda a minha experiência, longe de chegar a um ceticismo, ou mes-
mo a um nihilismo, leva-me, ao contrário, a reconhecer, cada vez mais
claramente, o significado da análise (no sentido freudiano) em grupos e
sociedades humanas.
As práticas de intervenção, diferentemente das ações de formação
e de pesquisa, dizem respeito, diretamente, aos grupos de pessoas em
seu devir coletivo. As tomadas de consciência, as aquisições de conhe-
cimento ou de compreensão resultantes do trabalho analítico que se
desenvolve nesse contexto têm sentido apenas em função de seus efei-
tos concretos na história do grupo.
Como evocado por Jean DUBOST nas páginas precedentes,5 as pri-
meiras intervenções psicossociológicas conhecidas, na França,6 por esse
rótulo, visavam a compensar os efeitos objetivantes e idealizantes da
pesquisa, instituindo, junto aos grupos envolvidos, um processo de fee-
dback dos resultados e acarretando um trabalho de interpretação e resolu-
ção coletivas dos problemas evidenciados.
Durante muito tempo e, com freqüência, ainda hoje, a intervenção
psicossociológica foi associada a essa metodologia.
Mas tal metodologia ainda depende em excesso do modelo epistemo-
lógico da pesquisa científica, o que lhe dificulta acomodar-se a uma pers-
pectiva com caráter analítico e chegar a resultados diferentes da ativida-
de decisória; ela é, sem dúvida, mais lúcida ou, no mínimo,
diferentemente lúcida, mas ainda assim tem acesso ao real apenas por
intermédio de estruturas hierárquicas de poder.
Ela repousa, fundamentalmente, no postulado de que o conheci-
mento representa um valor ou um bem e que sua conquista é um ele-
mento determinante de uma estratégia de mudança, cuja meta é a trans-
parência cada vez maior da organização; reciprocamente, ela desconhece

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Intervenção como processo

não apenas que o acesso ao saber não é um simples problema técnico,


mas, sobretudo, que a técnica só tem pertinência e eficácia quando é
susceptível de ser mobilizada em situações e relações concretas; caso
contrário, é apenas um simples instrumento ideológico. De toda forma é
surpreendente que, 35 ou 40 anos depois de LEWIN, ainda se tenha que
demonstrar essas ilusões.7
A última intervenção da qual participei, que adotava aproximada-
mente esse modelo, data de 1972.8 Fomos obrigados a efetuar um levanta-
mento de dados como primeira etapa de nossa intervenção, pois a direção
da empresa fazia disso uma condição. Mas tomamos uma série de precau-
ções para garantir que tal pesquisa não bloqueasse o processo de análise
coletiva ao qual pretendíamos chegar, cuidando, de um lado, que nosso
relatório (que seria comunicado a todos) não pudesse ser, de forma alguma,
considerado como um diagnóstico e, de outro lado, criando condições para
que um início de confronto entre os membros da organização fosse feito
durante nossa pesquisa e por ocasião de seu relato.
Porém, tais precauções foram vãs: a metodologia de levantamento
pressupõe, com efeito, implicitamente, que se considere cada entrevista
como um objeto isolado; ela implica na reificação de palavras em “da-
dos” de informação. O fato de escutar cada pessoa isoladamente, uma
única vez, supõe que seu pensamento possa ser “apreendido” e resumi-
do a um objeto – o objeto-entrevista. A reunião desses diferentes objetos
na análise, isto é, a colocação de todas as entrevistas em um mesmo con-
junto, supõe, por sua vez, que, em determinado momento, seja possível
uma leitura vertical da expressão coletiva.
Tal metodologia induz, então, à expectativa de uma objetivação e de
uma organização dos problemas, permitindo seu tratamento e sua capta-
ção ulterior, com vistas a decisões e ações.
Para dar conta das clivagens existentes entre as diferentes manei-
ras de se representar a empresa, fomos conduzidos a distinguir diver-
sos discursos concorrentes, cada um se referindo ao passado da em-
presa para explicar, de uma forma histórica, quase narrativa, os
problemas atuais da empresa.
Cada uma dessas representações era formulada de maneira muito
coerente, apropriada para demonstrar as bases sólidas das soluções
preconizadas: adaptação dos antigos dirigentes a novos mercados e às
novas tecnologias; melhor coordenação administrativa, esclarecimento
das funções; reequilibro do poder em favor da produção e mudança de
atitude do proprietário, visto como ligado demais ao responsável co-
mercial, seu amigo, de quem dependia bastante.

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Psicossociologia – Análise social e intervenção

Entretanto, a coexistência desses diferentes discursos, cada um es-


truturado segundo sua própria racionalidade (econômica ou tecnológi-
ca, ideológico-afetiva, organizacional), traduzia também, e sobretudo, a
esperança de se chegar a reuni-los em um único discurso e de se resolver
assim o que era vivido por todos como uma crise de sentido, uma crise
ideológica – mais aguda ainda por se desdobrar em uma crise de poder;
em outras palavras, a ausência de uma referência única traduzia-se no
sentimento de um poder diluído e inapreensível.
A pesquisa havia fortificado essa esperança, particularmente por
meio de nosso relatório oral, que pressupunha a possibilidade (ao menos
para nós) de escutar e compreender todos os discursos, um de cada vez, e
de passar assim, sem dificuldade, de um a outro, expondo cada um com a
mesma objetividade.
O que era então uma realidade contraditória e clivada foi transfor-
mado em pontos de vista divergentes, no limite, complementares, porém
situados no mesmo plano, repousando sobre pressupostos certamente
divergentes, mas potencialmente articuláveis entre si.
Tais implicações se tornaram muito claras durante a leitura e a
discussão de nosso relatório: a esperança de um discurso único dissol-
veu-se logo, à medida que cada discurso, reconstituído graças a nos-
sos cuidados, surgiu como a expressão totalitária de um lugar de inte-
resses específicos na empresa, impondo uma interpretação única da
realidade na qual uma parte do grupo se reconhecia, enquanto que os
outros tinham o sentimento de serem, então, negados (o que se tradu-
ziu em movimentos diversos durante a leitura, algumas vezes insu-
portável para uma parte do grupo).
A esperança desfeita era também a de uma comunidade no seio da
qual as contradições e as oposições se resolveriam por si mesmas.
A perda da esperança acarretou, inevitavelmente, o término definiti-
vo da intervenção e a renúncia ao trabalho de grupo previsto (malgrado
uma preparação inicial já feita para a constituição de grupos).
Uma outra análise de conteúdo dos dados de pesquisa teria sem
dúvida evitado esse desenlace. Mas teria sido preciso que assumísse-
mos pressupostos contrários à nossa posição: teríamos de nos esforçar
para articularmos o discurso comum, como se esperava de nós, e, sobre-
tudo, teríamos de apresentar cada discurso como se fosse a expressão
parcial de uma mesma realidade objetiva. Em outras palavras, teria sido
preciso fazer de conta que achávamos que era suficiente, para apreen-
der a “realidade”, excluir de cada expressão o que a tornava particular

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Intervenção como processo

(subjetiva demais, excessiva demais) e conservar, em contrapartida,


o que poderia completar e “enriquecer” o discurso comum – e tanto
pior (ou tanto melhor) se certos discursos parecessem mais “objeti-
vos” que outros.
Tal é o contrato implícito do levantamento de dados, cujos pressu-
postos “científicos” kantianos simplesmente traduzem de outra forma
essa crença do senso comum, segundo a qual apreende-se melhor a “rea-
lidade” quando se somam diferentes visões que se pode ter dela, a partir
de diversos “pontos de vista”.
Mas essa crença implica na possibilidade de apreender diretamente,
embora imperfeitamente, o “real”, em discursos que as pessoas expressam,
pois o “real suposto” de cada discurso é concebido como uma parcela.
Essa crença conduz, assim, a um princípio de tolerância de pontos de
vista diferentes, aliada à consciência da relatividade de cada um dos prin-
cípios que, sabemos, estão na base de toda sociedade “harmoniosa”.
Mas se aceitamos, constrangidos, o levantamento de dados, não acei-
tamos seus pressupostos; desejaríamos, ao contrário, que cada discurso
fosse reconhecido como expressão real de um vivido, como uma palavra
destinada a ser perseguida e retomada, por menos que ela fosse levada a
sério e que se tentasse compreendê-la. Gostaríamos também de compreen-
der como essa palavra poderia testemunhar o lugar ocupado pelos que
falavam e o que lhe permite ser mantida, escutada ou recusada.
Essa experiência possibilitou-nos, então, perceber o quanto a prática
da pesquisa, qualquer que seja a maneira como é conduzida, associa-se
necessariamente à busca de um sentido, isto é, de uma explicação geral.
Mesmo quando as contradições são explicitadas e acentuadas, o fato de
serem recuperadas em um discurso único leva a crer na possibilidade de
ultrapassá-las ou, no mínimo, articulá-las; o levantamento inscreve-se
necessariamente no projeto de dar um sentido; é a função das representa-
ções, que não se reconhecem como um discurso, mas se apresentam como
um saber sobre – saber ou sentido cuja função principal é a de fundamentar,
legitimamente, ações ou decisões (saber para).
Longe de favorecer um processo de análise, a pesquisa contribui,
assim, para o recalque: primeiramente, transferindo para o pensamen-
to as clivagens e contradições resultantes das divisões intra-organiza-
cionais (particularmente da divisão do trabalho); em seguida, levando
a acreditar na reunião imaginária dessas representações divergentes,
reduzidas a enunciados fechados, desconectados das condutas e es-
tratégias.

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Psicossociologia – Análise social e intervenção

Então, é grande a tentação de abandonar o modelo heurístico do


levantamento e recorrer ao modelo psicanalítico, a fim de aplicá-lo aos
grupos e organizações.
A não ser que se idealize o processo de análise social, essa só pode,
com efeito, ser feita em uma experiência de comunicação, no sentido pleno
do termo, na qual o imediatismo do risco é sensível, na qual uma resposta
instantânea, sob forma falada ou atuada, pode ocorrer, colocando em jogo
pessoas em sua integridade intelectual, moral ou corpórea.
Os grupos face a face aparecem, então, como lugares privilegiados de
análise: constituem o que forma a espessura do social, a opacidade de
uma palavra que não se reduz a um conteúdo e nunca coincide perfeita-
mente com os discursos construídos, instituídos, reproduzidos em luga-
res separados do lugar e do momento de sua emissão.
Os processos sociais não se reduzem evidentemente ao que pode ser
apreendido nos grupos face a face; mas, reciprocamente, esses processos
não podem ser compreendidos nem podem evoluir, independentemente
das maneiras como se atualizam, se articulam e se transformam.
Só é possível, então, falar de análise social em situações de grupo nas
quais os sujeitos podem inserir, na enunciação, enunciados interpretati-
vos que fazem sentido para eles.

Crítica da Psicanálise aplicada aos grupos


Não me deterei aqui nesse assunto complexo. Porém, se há um resul-
tado do qual estou seguro, tendo acumulado experiência de análise de
grupo por 15 ou 20 anos, este é o seguinte: se um certo trabalho analítico
pode ser feito nos grupos, esse não é o mesmo feito no quadro da cura
individual. O fato de querer transpor as regras e as técnicas da Psicanáli-
se para a análise social, de considerar análogos seus quadros e settings
respectivos, de comparar particularmente as relações de transferência/
contratransferência entre um psicanalista e um analisando com as rela-
ções que se passam entre um ou mais interventores com um grupo ou
organização, só pode ter um resultado: o recalque da palavra, a negação
dos conflitos e das clivagens e o desenvolvimento de uma relação norma-
tiva e pedagógica falsamente denominada de analítica.
O obstáculo mais sério a uma “Psicanálise de grupo” é a impossibi-
lidade para o “analista” de se constituir como um terceiro; embora ele
ocupe incontestavelmente uma posição especial, nem que seja por estar
associado apenas temporariamente ao grupo e por buscar objetivos dife-
rentes, sua posição de exterioridade é apenas relativa.

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Intervenção como processo

Qualquer que seja o discurso que ele mantenha a respeito de sua


independência ou suposta neutralidade, isso é apenas uma petição de
princípios, pois tal afirmativa não se refere a uma diferença irredutível –
física, material ou simbólica.
FREUD9 já havia destacado essa dificuldade, apontando que um
dos limites da análise social era a necessidade de um poder no qual o
lugar do analista pudesse se apoiar – poder cujo exercício é contraditó-
rio com todo trabalho analítico.
O analista não pode estar em uma situação de exterioridade radical
relativa ao grupo ou à organização, pois variáveis da mesma natureza
condicionam seu lugar e o dos outros membros, uma vez que, desde o
início, ele se insere no mesmo sistema de alianças, pressões, estratégias,
das quais necessariamente é parte.
Podem ocorrer aí fenômenos de deslocamento ou de projeção com
relação ao interventor, mas relações de transferência, no sentido preciso
desse termo, não podem ser estabelecidas ou desenvolvidas; essas rela-
ções implicariam particularmente, por parte do analista, o respeito à re-
gra de abstinência, do não agir, e o desenvolvimento de uma relação entre
os dois sujeitos – analista de um lado, grupo do outro.
Se isso é possível nas relações de pessoa a pessoa, corpo a corpo, o
mesmo não se passa nas relações com um grupo cujas identidade e uni-
dade são definidas arbitrariamente, com a participação do analista-inter-
ventor, no próprio ato que o institui como analista, em função de uma
“demanda”, cuja existência ele postula (ou mesmo contribui para estru-
turar). A própria expressão “transferência do grupo” ou “transferência
institucional” parece-me um absurdo ou até mesmo um embuste.
Tudo isso aparece claramente nas situações de formação (grupo de
diagnóstico, por exemplo), cuja existência depende inteiramente do ato
fundador (programa) do analista e do seu reconhecimento pelo “grupo”,
cuja existência postulada como objeto transferencial (desejante) é neces-
sária para instituí-lo como analista.
Não desenvolverei aqui o que já escrevi anteriormente10 e que me
levou a concluir que esses grupos não poderiam ser outra coisa senão
situações de aprendizagem disfarçada, “fenômenos” abstratos de “gru-
po” em geral, isolados de toda historicidade, caracterizados ainda por
serem uma realização do fantasia do animador-genitor.
Nas situações de intervenção, tudo se passaria diferentemente se
fosse possível situar os grupos ou as organizações “naturais” definindo
suas fronteiras e sua história.

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Psicossociologia – Análise social e intervenção

Tentei demonstrar11 que o próprio fato de alguém se definir e se


posicionar como analista leva a postular, no mesmo ato, seu objeto, isto
é, o grupo ou equipe como unidade diferenciada, tendo uma existência
e uma história separadas (pelo emprego, por exemplo, de termos como
o “grupo” ou a “demanda”).
O interventor pode, assim, ser tentado a definir um quadro de tra-
balho análogo ao de uma situação de formação, por meio de regras ex-
plícitas e implícitas, concebidas de maneira a assegurar seu lugar como
analista de fantasias inconscientes, do “aparelho psíquico grupal”,12 e a
legitimar sua interpretação, graças às relações de “transferência” que se
estabelecem e se desenvolvem entre o grupo e ele próprio.
Reconstruindo de forma fictícia tal situação, ele encontra claramente
os limites que evidenciei a respeito do grupo de diagnóstico: a psicologi-
zação do conflito, sua redução a dimensões interpessoais ou a fenômenos
grupais gerais; ele elimina, por antecipação, tudo aquilo que pode fazer a
especificidade dessa situação e que a sobredetermina no plano organiza-
cional e institucional. Essas limitações são ainda agravadas pelo fato de
que ele também omite a consideração dos efeitos que a instauração dessa
situação pode ter tanto para a organização, fora da situação de análise,
quanto para as relações internas.
Mesmo com a ficção do “grupo em análise”, ele continua a atuar
como uma instância organizacional (uma equipe, um serviço), não uni-
ficada, fragmentada, atravessada por clivagens internas e prisioneira
de imposições institucionais e econômicas, tendo que tomar decisões e
executá-las; essas clivagens e divisões são apagadas na representação
segundo a qual todos compartilhariam da mesma demanda de análise
coletiva e se situariam de forma idêntica como participantes ou membros
do mesmo grupo, realizando coletivamente transferências para o mes-
mo analista.
Tal crítica da “Psicanálise aplicada” leva-nos a concluir que o inter-
ventor tem sempre uma posição de exterioridade relativa; não é o único
pólo transferencial em torno do qual se ordenariam e se desenvolveriam
as relações susceptíveis de serem interpretadas.
Um dos objetos de análise pode ser, então, o trabalho sobre as dife-
rentes maneiras pelas quais o interventor tende a ser utilizado em estraté-
gias, preso em diversas alianças (que ele aliás nunca pode recusar total-
mente sob pretexto de uma neutralidade ilusória).
Em uma intervenção efetuada em um hospital-dia,13 mostrei que a
modalidade de pagamento de meus honorários, feito diretamente por
cada membro da equipe e igualitariamente, traduzia o desejo de tirar

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Intervenção como processo

o processo terapêutico do controle institucional da hierarquia, e o grupo


de suas restrições externas. Isso permitia assimilar a intervenção a ativi-
dades de ergoterapia, essas sendo também pagas pelos doentes e não sub-
metidas ao orçamento do hospital; essa modalidade se constituía, assim,
numa colocação em ato do desejo, especialmente do médico-chefe, de tor-
nar a psicoterapia autônoma e de acentuar a diferença entre essas ativida-
des e o trabalho das enfermeiras, que continuaria submetido às regras
administrativas, como, por exemplo, a presença. Um dos resultados, pa-
radoxal, do trabalho de análise, foi então o de evidenciar o caráter ilusório
desse desejo de autonomia da terapia e a maneira como ele contribuía
para reforçar a divisão do trabalho no seio da equipe no hospital.
Nessa perspectiva, o interventor não está ligado a nenhum grupo
em particular, a não ser provisoriamente; à medida em que o trabalho
progride, a composição do grupo pode evoluir, podendo o interventor
trabalhar com outras pessoas e outros grupos, segundo outras modali-
dades que não a análise de reuniões (entrevistas, observações, pesquisa-
ação etc.), mesmo quando essas evoluções se tornam difíceis ou impro-
váveis; as resistências internas na organização tendem, com efeito, a
congelar o trabalho de análise em um lugar determinado, a enquadrá-lo
e a controlá-lo até lhe retirar todo o significado que não coincida com o
de uma pedagogia ativa, de uma terapêutica localizada.
É por isso que, quando o interventor, por razões que ele gostaria
que fossem metodológicas ou de melhor garantia de sua posição, insti-
tui tal quadro, ele entra em conluio com as resistências.

Como avaliar a intervenção psicossociológica


Mesmo sendo possível se defender, nunca se pode ignorar total-
mente a questão da avaliação do ato profissional efetuado na interven-
ção psicossociológica. Não se pode escapar disso dizendo, como o fa-
zem certos psicanalistas, que não se tem de preocupar com os efeitos do
trabalho sobre o devir da organização (“sua cura”) ou com as relações
internas dela, que a emergência dos conflitos latentes, a desmistificação
de certas crenças, o abandono de tabus, o acesso aos processos psíquicos
inconscientes são metas que se justificam por si mesmas.
Se isso é em parte verdadeiro, merece ao menos uma explicação.
Certamente, o próprio fato de se colocar a questão da avaliação situa
o problema em termos que podem ser contraditórios com a significação
de uma experiência, o que vale não só para a análise, mas também para o
gozo sexual ou estético. Como posicionar tais experiências de acordo com

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Psicossociologia – Análise social e intervenção

coordenadas de um esquema pragmático ou utilitarista, de acordo com


eixos orientados, do menos ao mais, do pior ao melhor, do negativo ao
positivo? E como não o fazer?
Assim, a mudança representa para nós, antes de tudo, um aconteci-
mento marcado pelo advento, na vida de um sujeito ou de uma comuni-
dade, de uma ruptura com um ciclo de repetições e, conseqüentemente, o
acesso a uma história, ao desconhecido, ao risco, à incerteza. Em um texto
anterior,14 descrevemos essa experiência como “a descoberta de um vazio
aí onde se acreditava haver plenitude, um possível onde havia certeza,
uma questão onde havia uma afirmação. Graças a esse vazio repentina-
mente desvelado, as peças começam a circular, um jogo mais livre se torna
possível... O novo que aparece não é, então, um novo pleno, para o qual
seria necessário abrir espaço e ajustar ao que já estava lá. Não é uma
soma, uma certeza a mais, mas uma subtração, uma certeza a menos, uma
peça retirada de um edifício em equilíbrio”.
Com efeito, a significação de uma intervenção ou de uma análise não
pode ser concebida independentemente do ato de transgressão envolvido
e da crise ideológica e política que atravessa a organização e que a ques-
tiona. Essa se encontra então em seu ponto de ruptura ou, no mínimo, em
face à eventualidade de uma ruptura, vivida como o fim ou a morte da
organização tal qual era imaginada, ou como o reconhecimento de cliva-
gens internas, irredutíveis, inclusive nas pessoas.
Tal concepção da análise social implica também a necessidade de
rearranjar a idéia que se faz de uma organização, a necessidade de
defini-la com conceitos distintos dos utilizados quando ela é captada
do ponto de vista do ator, isto é, com noções e representações úteis à
ação, orientadas para a resolução de problemas e para metas práticas
subentendidas.
Com efeito, toda teoria organizacional é relativa, dependente da
sua importância para determinadas situações e metas. Nenhuma dá conta
de uma “verdade” geral relacionada à natureza da organização em si;
organização é apenas um conceito relativo que se refere a finalidades
que variam de acordo com o lugar onde ele foi elaborado e onde ele
supostamente é útil. É por isso que se poderiam analisar significações
comparadas: a da teoria das organizações que as vê essencialmente como
sistemas de estratégias e de alianças; a da organização científica do tra-
balho, centrada nos problemas de produção racional; a da burocracia,
centrada no sistema de regras etc. A questão é: a quê e a quem cada
teoria serve?

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Intervenção como processo

A prática de intervenção psicossociológica produz, também ela, uma


elaboração teórica a respeito dos processos organizacionais, tendo sua
própria pertinência.
Assim, explicamos por que15 o fato de assinalar e de interpretar re-
presentações e fantasias não apenas é insuficiente para justificar uma
intervenção, mas ainda a leva a cair na armadilha do levantamento de
dados (para ver ou para saber) ou, o que dá no mesmo, na pedagogia
demonstrativa (para fazer saber ou para convencer – postulando que as
condutas podem ser modificadas por meio de representações).
Pareceu-nos, com efeito, que representações podem ser conside-
radas como algo diferente de um conjunto ou de um sistema de idéias
e de juízos estruturado, ordenado, hierarquizado; essa é bem a forma
sob a qual elas freqüentemente se apresentam, mas ao preço de um
esforço de simplificação e de redução intelectuais. Quando se tenta
apreendê-las sob a forma em que efetivamente atuam, somos levados
a percebê-las como séries de discursos entrecruzados, desenvolvendo-
se segundo atos referenciais múltiplos – cadeias de significados fre-
qüentemente contraditórios, procurando indefinidamente e de manei-
ra nunca acabada a busca de um sentido; são discursos que as pessoas
enunciam nas situações em que se encontram, com a finalidade de cons-
truir referências, dar um sentido ao lugar que elas ocupam e atribuir
um sentido às divisões espaciais, temporais, sociológicas sobre as quais
a organização se baseia; são discursos destinados a legitimar, para os
outros e para si próprios, as ações e as divisões.
Entretanto, permanecem divididos os discursos de representação,
nos quais está subentendida a busca de significações comuns (graças às
quais a organização poderia ser apreendida como UMA); então, forne-
cendo explicações e tornando as divisões e as clivagens organizacionais
mais toleráveis, eles reproduzem essas mesmas divisões e contribuem
para reforçá-las.
Nessa perspectiva, o processo de análise não pode, então, consistir
em assinalar e decodificar as significações existentes, mas em apreendê-
las como discursos incompletos, em remetê-las aos lugares de onde são
enunciadas e às diferentes formas como cada um, de acordo com a posi-
ção que ocupa no sistema de divisão do trabalho, tenta explicar, enfrentar
e ocultar as contradições que vive.
Nesse sentido, a análise não alcança objetivamente um real supos-
to, mas ela própria é uma produção de discursos16 que permite abrir o
caminho do grupo a uma história, que permite às pessoas implicadas se
desligarem da fascinação exercida por seus próprios discursos, desde

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Psicossociologia – Análise social e intervenção

que não proponham outro sistema de interpretação superior que, por


sua vez, reificaria significados.
Para ilustrar o que precede, citarei o caso de uma intervenção muito
breve, de algumas sessões ao longo de quatro ou cinco meses. Ela tomou
a forma de uma consulta junto a um grupo de seis a sete pessoas perten-
centes a uma comunidade religiosa, encarregadas de preparar e conduzir
uma assembléia geral próxima.
Essa Assembléia Geral deveria ocorrer alguns meses mais tarde; ela
pretendia ser, em especial, a ocasião da eleição do próximo Conselho ou
direção da comunidade. A preocupação das pessoas que me procuraram
era evitar que, como ocorrera na assembléia anterior, a fuga dos proble-
mas se traduzisse em voto de moções muito gerais e imprecisas, destina-
das a serem engavetadas. Mas as pessoas sentiam uma grande dificulda-
de, dado o mal-estar existente no interior da comunidade.
Assim, como condição para aceitarem sua missão, colocaram a pos-
sibilidade de contratarem os serviços de um psicossociólogo.
Embora eu tivesse trabalhado no passado, por diversas vezes, com
interesse e prazer, com pessoas pertencentes a esses meios, não tinha
nenhuma afinidade particular com relação a comunidades religiosas;
talvez tivesse mesmo o inverso; mas a demanda, endereçada agora a mim,
pareceu-me simpática, o problema que eles colocavam parecia-me inte-
ressante e eu sentia que poderia trabalhar com eles para resolvê-lo, sem
me sentir comprometido de qualquer forma que fosse com a comunidade
e seus valores. Esclarecemos, aliás muito rapidamente, essa não implica-
ção de minha parte com seus problemas ou sua ideologia; isso não ape-
nas não os inquietou mas, ao contrário, pareceu-lhes uma garantia para
realizarem o que se haviam proposto. Buscavam essencialmente um “téc-
nico”. Depois de uma breve hesitação, aceitei.
Igualmente, chegamos logo a um acordo a respeito do meu papel, que
deveria ser, em sua maior parte, centrado no trabalho do grupo (denomi-
nado Comissão da Assembléia Geral) durante todo o período de prepara-
ção da Assembléia. A questão de minha participação ou presença duran-
te o desenrolar da própria Assembléia foi deixada em aberto; apenas
depois do primeiro dia de trabalho decidi não participar de forma algu-
ma, nem para ajudar na sua animação nem como observador ligado à
Comissão. A razão de minha determinação, tanto quanto pude analisá-
la, era o sentimento de que não poderia, nesse lugar eminentemente po-
lítico que seria a Assembléia Geral, intervir nas orientações futuras da
comunidade e nos problemas que não me diziam respeito.

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Intervenção como processo

Minha participação se limitou então a alguns encontros de um dia


ou de metade de um dia com a Comissão, aproximadamente um encontro
a cada mês (sempre que ela se reunia em Paris) e, em seguida, atendendo
expressamente à sua demanda, dois encontros no local da Assembléia
Geral, à noite, depois dos debates, a fim de ajudá-los a esclarecer o que
havia se passado durante o dia e de preparar o dia seguinte.
Tudo isso permitiu o posicionamento dos respectivos lugares: o
meu, de um lado, em relação à Comissão e, de outro lado, à Comunidade
em seu conjunto e à Assembléia Geral; o lugar deles, em relação à As-
sembléia Geral e à Comunidade; e enfim, a Assembléia Geral em relação
à Comunidade.

A Assembléia Geral e a Comunidade


Essa Assembléia Geral em preparação veio a ser, de fato, uma As-
sembléia Geral extraordinária. Ela havia sido decidida no ano preceden-
te, no final da assembléia anterior que havia deixado as pessoas insatis-
feitas e com o desejo de enfrentar os problemas mais diretamente, em
especial durante a eleição do novo Conselho ou Direção. Para isso, diver-
sas sessões haviam sido previstas.
Tratava-se então de um momento que, por diferentes razões (acentu-
ação da distância entre gerações, oposições cada vez mais marcadas en-
tre as diferentes concepções da Comunidade, vencimento dos prazos para
decisões importantes), era considerado por muitos (ou, pelo menos, pela
Comissão) como um ponto de transição, na história da Comunidade, que
não podia ser perdido.

A comissão em relação à Assembléia Geral


e em relação à Comunidade; eu próprio
em relação à Comissão e à Comunidade
Tendo visto essas diferentes posições respectivas como extremamen-
te articuladas umas às outras, parece-me mais interessante examiná-las
conjuntamente do que separá-las uma a uma.
Como já mostrei, decidi depois do primeiro dia de trabalho não par-
ticipar de forma alguma nem assistir à Assembléia Geral; isso me parecia
necessário para preservar a minha não implicação nos problemas direta-
mente políticos da Comunidade e para esclarecer as posições da Comis-
são e minha em relação à Assembléia Geral.
Como cheguei lá, se nas primeiras trocas não excluíra a priori uma par-
ticipação nos trabalhos da Assembléia Geral, cuja forma seria definida?

197
Psicossociologia – Análise social e intervenção

É importante, então, examinar o que se passou durante esse pri-


meiro dia:
Nesse momento, o grupo havia se empenhado em uma tarefa con-
sistindo em reunir todas as informações de que dispunha sobre os pon-
tos de vista e as proposições das diferentes comunidades regionais, ten-
do em vista a Assembléia Geral; eles haviam visitado pessoalmente cada
uma das comunidades, a fim de levantar suas opiniões. Nessa ocasião,
tomei conhecimento, com a ajuda deles, da organização complexa da
Comunidade: a existência de comunidades descentralizadas na região,
as relações entre elas, o tipo de atividades nas quais estavam empenha-
das e as diferenças existentes entre elas – inclusive no plano econômico
-, a lista dos membros da Comunidade e as diversas posições sociais
entre as quais se distribuíam, os textos definindo seu funcionamento, as
regras às quais se submetiam etc.
Nossas relações começaram igualmente a se tornar mais precisas.
Eu era calorosamente acolhido, com amizade e com confiança, como
um estranho mas não como um intruso. Embora a expectativa com
relação a mim fosse muito grande – eles estavam bastante prontos a
escutar e a levar em conta as minhas observações –, parecia-me que
não havia confusão entre os nossos respectivos papéis. Eles absoluta-
mente não procuravam se apoiar em mim, ou mesmo ser influencia-
dos na decisão que deveriam tomar e em relação às suas responsabili-
dades. O fato de que eu estava lá como um profissional, pertencente a
uma organização evidentemente leiga (a A.R.I.P.), talvez também meu
próprio sobrenome judaico, pareciam garantir a seus olhos (com uma
certa ingenuidade, sem dúvida) que eu não buscava nenhum interesse
pessoal relativo a seus assuntos internos; eu próprio me sentia um es-
tranho, sem implicação com o grupo.
Espantei-me, então, ao ver-me reagir rapidamente e com muita
vivacidade diante da maneira deles se situarem nessa tarefa. Apoian-
do-me no contrato que havíamos feito, que me autorizava a intervir
em tudo o que me parecia ir no sentido de evitar problemas e conflitos,
intervim bastante brutalmente para criticar as tendências deles a se es-
quivarem das dificuldades, a passar sobre elas e a generalizá-las apres-
sadamente demais.
Parecia-me, ao mesmo tempo, que essa mesma brutalidade respon-
dia a uma demanda inconsciente da parte deles, de sair de um estilo de
relações muito corteses, evitando toda aspereza, esquivando-se dos con-
flitos e divergências.

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Intervenção como processo

No nível do conteúdo, observei, com bastante veemência, que eles


estavam errados ao se considerarem como simples emissários ou porta-
vozes das comunidades que cada um havia visitado e ao limitarem seu
trabalho a um simples cotejo ou colocação em ordem das informações
que haviam recolhido. Declarei-lhes que não poderiam recusar o poder
que lhes havia sido confiado de orientar e contribuir para a organização
dos debates da próxima Assembléia Geral, para a escolha dos temas que
seriam então tratados, para a maneira como os problemas seriam colo-
cados etc. O papel que tinham era não apenas técnico, mas também polí-
tico: eles não podiam deixar de influenciar nas orientações que seriam
definidas na Assembléia Geral ou mesmo na eleição. Caçoei da maneira
como alguns deles justificavam, em nome de valores democráticos, seu
papel de porta-vozes puros; demonstrei que, ao contrário, se efetiva-
mente o desenrolar da assembléia geral fosse determinado, em última
análise, pelas vontades expressas pela “base”, essa expressão estaria for-
temente condicionada à maneira como fora buscada e tratada.
Eles aderiram, com relativa facilidade, a meu ponto de vista, sem
deixar de observar, entretanto, que eu lhes recusava o papel de “técnicos”
que atribuía a mim próprio!
Analisando o trabalho deles como se fosse um levantamento de da-
dos e uma pesquisa-ação na Comunidade e em seus problemas e anali-
sando a disposição de tratar esses problemas, declarei-lhes:
1- Que esse trabalho exigiria muito tempo e investimento da parte
deles e, assim, encontros mais numerosos do que os previstos no
começo.
2- Que ele exigiria igualmente que trabalhassem o funcionamento de
seu próprio grupo; não eram apenas procuradores de votos e opi-
niões, mas representavam também, sem dúvida, diferentes ten-
dências existentes no seio da Comunidade, tendências que esta-
vam encarregados de confrontar e esclarecer. A maneira como
confrontariam e analisariam ou não suas divergências tinha toda
a chance de prefigurar o que se passaria na Assembléia Geral;
será que eles pretendiam se limitar a estabelecer um simples ca-
tálogo de dados de informação e de questões a tratar ou se empe-
nhar em um trabalho de análise da situação a partir desses ele-
mentos? Perguntei-lhes em que medida estavam prontos a fazer
esses investimentos.
Pareceu-me, então, que eles deveriam, periodicamente, relatar o
resultado de seus trabalhos e proposições a um Comitê Permanente e

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Psicossociologia – Análise social e intervenção

que todas as decisões concernentes à Assembléia Geral próxima deveri-


am ser submetidas a essa instância.
Eles funcionariam então dentro de limites relativamente estreitos;
isso não excluía em nada minhas conclusões relativas ao papel político
deles mas, ao contrário, tornava-as mais precisas: uma das preocupações
deles era a de preparar seus encontros com o Comitê de maneira a evitar
se atolarem em problemas menores ou técnicos.
Essa discussão permitiu-me esclarecer meu próprio papel: o de um
consultor junto a um grupo empenhado em uma pesquisa-ação na comu-
nidade da qual emanava; esse grupo encontrava problemas que eram ao
mesmo tempo teóricos e técnicos (coleta de informações, análise e inter-
pretação dos dados coletados) e políticos (como apresentar e traduzir
essas análises em ações).
Paradoxalmente, a veemência com que me manifestara no sentido de
que a Comissão não evitasse sua implicação na tarefa e assumisse mais
integralmente sua missão teve como efeito permitir-me tomar a decisão de
recusar uma participação direta na Assembléia Geral (como me havia
sido proposto, com alguma hesitação). Isso pareceu-me indispensável
para diferenciar nossos lugares respectivos de implicação, minha posi-
ção com relação à da Comissão e também a da Comissão com relação à
Assembléia Geral.
Com efeito, isso permitiu que eu me situasse como consultor para a
Comissão e apenas para ela (naturalmente, com o conhecimento e o acor-
do da Comunidade).
O fato de ficar totalmente sem implicação com a Assembléia Geral e
seus problemas políticos e táticos, exceção feita à maneira como eles se apre-
sentavam na Comissão, permitia-me manter meu papel junto à Comissão
e permitia à Comissão manter o seu junto à Assembléia Geral e à Comu-
nidade (e, eventualmente, à Assembléia Geral preencher sua função junto
à Comunidade).
Caso eu participasse da Assembléia Geral, seria necessariamente
confundido com a Comissão, colaborando no objetivo supostamente
comum de favorecer a expressão e a elucidação dos debates, o escla-
recimento dos problemas e o seu tratamento. Isso apenas provocaria
confusão e a ilusão de que esse objetivo era puramente técnico (um
problema de organização e de relações), sem implicar posições táticas
e políticas. No limite, isso poderia contribuir para esvaziar a Assem-
bléia Geral de todo conteúdo político! (Quanto à eventualidade evoca-
da em certo momento, a de que eu participasse da Assembléia Geral

200
Intervenção como processo

como observador, sem direito à palavra, ligado à Comissão, essa era


uma proposta que ia no mesmo sentido, com o agravante de tornar a
situação ainda mais obscura).
Assim, ficou claro que:
a- a Assembléia Geral era o lugar político da Comunidade. Deveria
representar um tempo de análise coletiva, mas também de escolha
de orientação política.
b- a Comissão era o instrumento dessa vontade política da Comuni-
dade e das comunidades regionais; enquanto as comunidades esta-
vam implicadas nesse trabalho, a Comissão constituiria o corpo exe-
cutivo delas (ela foi aliás, formalmente, o Conselho provisório da
Comunidade enquanto durou a Assembléia Geral, até a eleição do
próximo Conselho, isto é, durante um vazio de poder).
c- quanto a mim, eu era o meio que a Comissão tinha para realizar
sua missão e, sobretudo, para ajudar a tomar consciência de sua
responsabilidade (política) e implicação do grupo e de cada um
de seus membros.
Devemos acrescentar que esses diversos esclarecimentos de papéis
foram feitos simultaneamente, uns em relação aos outros, não em trocas
prévias, mas no calor da discussão, durante o primeiro dia de trabalho,
através de minha inesperada implicação afetiva.
Pode-se aqui recolocar e aprofundar a questão evocada anterior-
mente, sobre o caráter relativo de exterioridade do interventor enquan-
to terceiro.
O termo relativo não deve evidentemente ser compreendido como
equivalente ao adjetivo parcial ou imperfeito (relativamente quente, por
exemplo): o interventor não é “um pouco” exterior.17 A análise que pre-
cede sobre nossa posição em relação à Comissão mostra bem o que se
deve entender como qualificando uma relação que só adquire sentido
em relação a outras.
Certamente, nossa posição profissional e inserção institucional, nosso
sobrenome (LÉVY) – e o fato de que não tínhamos nenhum vínculo ins-
titucional com a Comunidade nem com qualquer organização semelhante
– faziam de nós um interlocutor válido para o que se esperava. Mas isso
resultava não de uma diferença de natureza, existente no real, entre nós
e os membros da Comissão, mas do efeito de sentido que as qualificações
(psicossociólogo, membro da A.R.I.P., judeu) tinham para eles, por meio
das quais eles nos davam uma referência simbólica. (Já assinalamos a
ingenuidade que consiste em crer, a partir dessas diferenças em status

201
Psicossociologia – Análise social e intervenção

e posição social, que não visávamos nenhum interesse – ideológico, por


exemplo – em nossa associação com eles e em nossa implicação em seus
problemas).
Esse efeito de sentido, que se traduzia em um contrato implícito re-
gendo nossas respectivas relações e tornando possível, em conseqüên-
cia, o desenvolvimento de um certo trabalho, não se produz, entretanto,
sem que nossa posição social distinta seja associada a outras diferenças
no interior da Comunidade – entre os diferentes status sociais, entre as
comunidades regionais, entre a Comissão e o Conselho, entre outros es-
calões – e, particularmente, entre o que havia sido a última Assembléia
Geral e o que seria a próxima.
Nesse sentido, nossa alteridade, como terceiro, era “relativa”, sem
que isso excluísse – antes pelo contrário – o fato de que estivéssemos
implicados em todo um sistema de relações e sem que isso nos diferen-
ciasse radicalmente de outros membros da Comunidade.
Não queremos fechar esse exemplo de intervenção sem dizer algu-
mas palavras sobre a seqüência do trabalho que pudemos realizar com a
Comissão, a partir desse primeiro dia, e sobre o que pôde ser produzido.
Na sua maior parte, nosso trabalho centrou-se na maneira pela qual
os membros da Comissão liam e escutavam os documentos – cartas, rela-
tórios de reuniões, esquemas de análise de problemas a serem submeti-
dos à Assembléia Geral, estatísticas – que lhes chegavam (alguns dentre
eles haviam mesmo, como membros dessas comunidades regionais, par-
ticipado da redação de uma parte desses textos) e sobre a maneira como
formulavam, por sua vez, a partir desses documentos, suas análises da
situação sob forma de textos preparatórios da Assembléia Geral, destina-
dos a serem comunicados à Comunidade.
Não é necessário lembrar que esse trabalho tinha representações pré-
vias subjacentes: representações de cada membro da Comissão a respeito
do que era a Comunidade e do que ela deveria ser, que se traduziam em
diferentes maneiras de hierarquizar os problemas e de definir as linhas
de clivagem ou de oposição (dependentes, por exemplo, da importância
atribuída às pessoas, às instituições ou às atividades).
Tudo isso, aliado a uma tendência intelectual de globalizar os pro-
blemas, de associá-los a opções teóricas ou ideológicas abstratas, tornava
muito difícil uma escuta atenta do conteúdo dos textos, assim como um
trabalho de elaboração de hipóteses interpretativas.
Foi preciso, assim, lutar para tornar o trabalho mais lento, fazer
com que se ficasse mais tempo examinando detalhadamente os textos,

202
Intervenção como processo

considerando questões particulares, aparentemente menores; ou ainda,


interrogar sobre a importância e extensão de certas caracterizações mui-
to apressadas, ou de análises feitas em termos de escolhas dicotômicas
com base em princípios gerais, ou mesmo, algumas vezes, sobre pala-
vras fetiches, carregadas de subentendidos (por exemplo, o “projeto sa-
cerdotal” ou o “projeto espiritual”).18
Um exemplo: havíamos observado que o grupo tinha tendência a
considerar superficialmente, sem dar muita importância, as cartas que
exprimiam uma opinião muito pessoal ou muito particular e as opiniões
mencionadas nos relatos como sendo de uma única pessoa (“Um padre
disse...”). Fizemos com que se notasse que todas essas expressões ti-
nham em comum serem apresentadas como emanando de uma única
pessoa, que elas estavam marcadas por esse signo: “um padre disse”,
diferenciando-se assim daquelas que se apresentavam como produto
de uma elaboração coletiva; encontrava-se talvez aí o problema do lu-
gar das pessoas e da experiência individual na Comunidade, da expres-
são individual particularizada em relação à experiência geral; talvez
certos conteúdos não pudessem ser expressos senão sob essa rubrica; o
que significava não considerá-los?
O que se elaborava, assim, por meio desse trabalho preparatório e,
em seguida, na Assembléia Geral, era uma representação cada vez mais
complexa e contraditória da Comunidade.
No curso desse processo, a principal dificuldade foi a de situar as
verdadeiras clivagens, não em relação a princípios gerais e mutuamente
exclusivos, segundo os quais as definições da Comunidade, suas regras
de vida e suas instituições seriam colocadas em eixos – seja a crença em
certos valores, seja a coabitação em um mesmo lugar, seja o conjunto de
atividades –, mas em relação às diferentes posições ocupadas pelas pes-
soas e grupos coexistentes na Comunidade – do ponto de vista do di-
nheiro, da segurança, da idade...
Isso implicava o abandono da busca de uma definição geral na qual
alguns termos-fetiche representariam de maneira fictícia a unidade da
Comunidade e, em contrapartida, implicava também o reconhecimento e
aceitação de discursos múltiplos, refletindo situações particulares dife-
rentes, algumas vezes concorrentes e eventualmente incompatíveis.
Essa dificuldade surgiu durante o trabalho com o grupo, antes da
Assembléia Geral e no seu decorrer, sob forma de propostas contraditórias
para se organizar o trabalho da assembléia (por exemplo, a definição da
pauta dos diferentes dias, as questões a serem submetidas a voto etc.).

203
Psicossociologia – Análise social e intervenção

Pôde-se assim, por exemplo: analisar as diferentes funções possí-


veis de um voto, suscitadas por textos formulados de formas diferentes:
fazer brutalmente o contraste entre duas opções mutuamente exclusi-
vas e igualmente absolutas – com o efeito provável de impedir toda es-
colha verdadeira e de criar uma unanimidade factícia sobre um texto
suficientemente abstrato para conciliar as contradições (por exemplo, o
“serviço concreto do Homem”); fazer uma sondagem, facilitando a es-
colha de futuras estratégias; criar uma situação nova, permitindo reve-
lar conflitos latentes e facilitando a continuação da discussão.
Para concluir, assinalarei que minha colaboração na Comissão ter-
minou, de comum acordo, na véspera do dia em que deveria ocorrer a
eleição do próximo conselho, isto é, justamente antes de cessar o vazio de
poder assumido pela Comissão cujo compromisso fora o de conduzir o
trabalho de análise coletiva.

Intervenção e organização
Essa última observação permite-nos introduzir uma questão final:
que relações há entre, de um lado, a intervenção e o processo de análise
que ela instaura e, de outro, o processo organizacional? A análise é anti-
organizacional, opõe ao desenvolvimento da organização? Ou, ao con-
trário, ela constitui uma terapêutica dessa última, permitindo-lhe aumen-
tar sua força, melhorar seu funcionamento, seu rendimento? Ou situa-se
em outro plano, a-organizacional?
Bem entendido, tais questões vão de encontro àquelas que tratamos
sob o ângulo das relações entre o analista e o grupo junto ao qual ele
intervém.
Uma primeira abordagem da questão é fornecida pelo conceito de
pesquisa-ação, quando aplicado a um processo de intervenção, visto en-
tão como desenvolvendo-se em dois planos – empírico e acionador, de
um lado, reflexivo e crítico, de outro.
Nessa perspectiva, a intervenção não se limita a uma prática de mu-
dança cujo único objetivo seria o de favorecer a evolução de uma situação
e sua compreensão por atores nela implicados, mas seria também um
meio de produzir um saber específico a respeito das organizações; além
do sentido que as interpretações e tomadas de consciência podem ter em
relação a situações específicas e a problemas concretos, elas podem con-
tribuir para esclarecer os processos organizacionais em geral.
Mas o conceito de pesquisa-ação (se não o tomamos em um sentido
estritamente lewiniano) não corresponde a uma simples relação de dois

204
Intervenção como processo

processos: a pesquisa ou produção de conhecimentos de um lado, a ação


de outro; ela também não é, como alguns às vezes pretenderam, uma
afirmação da identidade desses dois processos; ela implica, antes, que a
própria relação leve a uma redefinição profunda de cada um deles – ao
mesmo tempo, a outra concepção da ação e a outra concepção de orga-
nização do saber.
Com efeito, a perspectiva lewiniana da pesquisa-ação parece-nos li-
mitada pelo fato de não realizar essa revolução epistemológica, sendo mar-
cada pelas concepções tradicionais do saber e da ação; o fato de relacioná-
las é visto essencialmente como o estabelecimento de uma relação de
aliança, traduzindo-se pela postulação de uma ausência de contradição e
de uma complementaridade entre a lógica da ação e a lógica da pesquisa,
uma colocada a serviço da outra, o que é expresso implicitamente em afir-
mações como: “quanto mais se sabe a respeito disso, melhor se fica”, “quan-
to mais houver saber, mais a ação é eficaz e pertinente”.
Ora, essas afirmações estão longe de serem verificadas; ao contrá-
rio, podemos acentuar o fato de que a ação supõe, necessariamente, uma
dose de desconhecimento, senão de cegueira. Em um trabalho anterior,
tivemos a oportunidade de demonstrar, com precisão, como o fato de
ignorar as contradições no subsistema da pesquisa, isto é, entre o qua-
dro experimental de uma estrutura de intervenção e o conjunto do siste-
ma organizacional no qual essa estrutura se insere, leva a menosprezar
a maneira como os saberes assim produzidos dependem de sua impor-
tância prática, de normas e de valores próprios às situações nas quais
são elaborados e utilizados.
Assim, a concepção segundo a qual as ações-pesquisas estariam a
serviço do conjunto de uma organização pareceu cada vez mais ilusó-
ria, à medida que as experiências evidenciavam que os conhecimentos
que surgiam, longe de terem um valor geral ou intransitivo, eram sem-
pre escolhidos em função de interesses particulares e contingentes; que
a inserção dos interventores-pesquisadores em uma organização tra-
duzia-se em alianças de poder e, conseqüentemente, em uma modifi-
cação das relações de poder, assim como em reforço das representa-
ções da organização como um conjunto sem conflito, susceptível de
evoluir em direção a uma racionalidade crescente e a uma transparên-
cia cada vez maior de seus processos internos (particularmente dos
processos de tomada de decisão).
A análise dos limites e das contradições da pesquisa-ação lewiniana
desemboca assim em uma crítica epistemológica do saber e da ação e de
suas relações recíprocas.

205
Psicossociologia – Análise social e intervenção

Ao se pensar a realidade e a ação, o saber-objeto é necessariamente


considerado dentro de uma perspectiva utilitarista e de controle – ilusão
que é desmentida pela irracionalidade das condutas, pelas restrições
impostas por estruturas sociológicas e psicológicas, pela existência de
conflitos e contradições irredutíveis.
Mas esse saber-objeto (ou conteúdo do saber) representa apenas
a parte mais visível, a mais simbolizável, do plano da experiência e
do trabalho designado pelo termo; é a parte que permite trocas e ma-
nipulações.
Com efeito, os conteúdos do saber se desenvolvem e adquirem sen-
tido na experiência de relação na qual o sujeito está implicado, cujo sig-
nificado é apenas parcialmente simbolizável.
Assim, em um processo de escrita, por exemplo, ocorre muito mais
do que a transmissão de conteúdos prévios: o ato de escrever os faz exis-
tir e, ao mesmo tempo, os transforma.
O saber, como experiência, implica todo um trabalho sobre si, sobre
seu passado, sobre seu presente e sobre suas relações com os outros, com
o mundo, e tem sentido apenas para o trabalho e no trabalho.19
Por isso, tratando dos processos de pesquisa, já assinalamos que
eles não se reduzem a uma coleta (objeto-entrevista mais objeto-entre-
vista) de “material” informativo ou de dados a respeito da situação. Os
efeitos “secundários” dessas entrevistas podem ser bem mais impor-
tantes (em termos de efeitos de sentido) que os resultados informati-
vos – efeitos de decisões tomadas durante a organização das entre-
vistas, discursos produzidos paralelamente ao levantamento, em
instâncias não controladas pelo investigador e fora de sua presença,
efeitos produzidos sobre as pessoas entrevistadas devido à própria
situação de palavra etc.
A pesquisa representa processos de produção de conhecimentos e de
sua elucidação que têm como efeito não apenas modificar, em uma organi-
zação ou em uma sociedade, as linhas de clivagem entre o saber e o não-
saber, entre as zonas de saber assumidas e as que não o são, entre sua
apropriação ou não por alguns em detrimento de outros, mas também mo-
dificar as linhas de clivagem entre o dizível e o indizível, entre os lugares de
palavra e os de não-palavra, entre o que pode ou não ser escutado.
Por essa tendência e não por uma afirmação de princípio é que se
pode apreender o vínculo entre esse processo e o da organização, na
condição de que essa seja considerada não como um agrupamento (uma
empresa, uma escola), mas como um processo, um sistema de ação.

206
Intervenção como processo

Tal concepção de organização, que, ao mesmo tempo, está subja-


cente e resulta de intervenções psicossociológicas, já foi evocada an-
teriormente.
Ela repousa na idéia central de que o desenvolvimento de um pro-
cesso organizacional consiste na instauração de uma perspectiva tem-
poral nas atividades e relações, instalando-as nas coordenadas de tem-
po e espaço. De alguma forma, uma organização funda um campo
temporal – um antes e um depois – e divide o espaço material geográfi-
co: é suficiente, por exemplo, fixar horas e lugares de reuniões para que
nasça um embrião de organização.
O termo requer então as noções de lugar e de tempo, tem subjacen-
tes uma afirmação e uma negação: aqui e não lá. Esse golpe de força, sem o
qual se formariam apenas vínculos episódicos, e sem o qual nenhuma
ação consecutiva seria possível, é a condição de toda vida social, de toda
construção material, espiritual ou mesmo afetiva.
O processo organizacional funda-se, assim, em uma negação do in-
consciente, especialmente do desejo de onipotência. As regras e proibi-
ções que materializam essa negação instauram um funcionamento regi-
do pelo “princípio secundário”; a racionalidade que elas introduzem
permite o desenvolvimento de uma atividade criadora e sua inserção na
história, permite aos homens escapar do ciclo da repetição. Não se trata
então de uma racionalidade mecânica, contabilizável ou informática, que
pretenderia circundar o sentido, mas, ao contrário, de uma racionalidade
criadora, que não exclui nem dúvida nem incerteza.
Se a existência de regras e proibições funda uma organização, essa,
para perdurar, supõe igualmente o desenvolvimento e a circulação de
representações. As regras dividem e separam, enquanto que as represen-
tações visam a dar um sentido unitário e homogêneo a essas divisões,
clivagens e limites; dito de outra forma, visam a introduzir, no nível do
pensamento, o desejo de tudo controlar.
O que faz com que uma organização seja uma atividade viva e criado-
ra, produtora da história e não de um estado de coisas mortífero, é
precisamente a impossibilidade, para essas representações – esses dis-
cursos de representações –, de realizarem sua meta de dar sentido, de
suprimir as contradições que as atravessam (já observamos como elas
reproduzem e contribuem para reforçar as divisões e as clivagens e
são pegas em estratégias e alianças). Daí o hiato persistente entre, de
um lado, o desejo de tudo compreender e, de outro, a necessidade de
dividir, de separar, de limitar.

207
Psicossociologia – Análise social e intervenção

Paralelamente aos discursos escritos – enunciados de significações


fechadas –, uma palavra continua, assim, a se desenvolver; os sujeitos
podem então assumir o desejo e a impossibilidade de dar sentido, perse-
guir o projeto enfrentando seus limites e esclarecer as relações entre as
significações contraditórias que assim se engendram e se encadeiam aos
mitos e às fantasias inconscientes que as ligam a seu passado.
Respondendo a uma demanda de palavra, até então bloqueada ou
proibida, a intervenção psicossociológica contribui então para fazer reco-
nhecer que nem tudo é organizável, que a organização exprime e realiza
apenas uma das dimensões do sujeito; fazendo isso, ela implica uma
reviravolta de perspectiva: se ela é possível apenas como uma resposta ao
que é vivido como crise de sentido, ela se choca assim, em seu primeiro
esforço, com o desejo de reencontrar o sentido perdido e, então, de ignorar
as implicações dessa inversão. Colocar de novo em circulação as signifi-
cações imobilizadas, dar de novo às representações sua posição de dis-
curso e fazer com que sujeitos que falam as assumam, já é um ato que
contribui para deslocar os limites e as linhas de clivagem, ou, ao menos,
as que dizem respeito ao dizível e ao indizível.
Porém, dar a palavra ou contribuir para a sua manifestação não é
suficiente; é importante, sobretudo, acompanhá-la e ajudá-la a se desen-
volver, a despeito dos obstáculos e temores que ela provoca, quando seus
efeitos se fazem sentir na vida cotidiana através de acontecimentos im-
previstos, da emergência de novos atores ou de decisões que rompem com
um certo passado e abrem outras possibilidades.
Dessa forma, a intervenção participa do processo organizacional e
não da reificação de uma “Organização”, na qual os lugares ocupados
por cada um teriam como referência uma lei imanente e onde todos os
desejos seriam considerados e explicados:20 “Organização” totalitária,
que supõe a história acabada e que é o oposto tanto da organização –
processo dinâmico que cria a história –, quanto da análise que a torna
possível, mantendo vivo o passado, ao mesmo tempo em que rompe com
a fascinação que ele exerce.

Notas
1
Traduzido de: DUBOST, Jean e LÉVY, André. L’Analyse social. In: ARDOINO et al.
L’intervention institutionnelle. Paris: Payot, 1980, p. 69-100, por Marília Novais da
Mata Machado.
2
“Vers une psychosociologie psychanalytique”. Connexions, 29, I/1980.

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