Você está na página 1de 10

FATORES DE RISCO PARA UM ESGOTAMENTO INDESEJÁVEL E (TALVEZ)

EVITÁVEL DA ACP NO BRASIL

Ao ser convidado para estabelecer uma reflexão crítica da relação entre o texto de
um antigo colaborador de Rogers – John Shlien – sobre a teoria psicanalítica da transferência1,
e a situação da Abordagem Centrada na Pessoa (ACP) no Brasil atualmente, deparei-me com
um primeiro desafio de, mais que propor uma análise minimamente aprofundada e
contextualizada sobre um conceito consagrado (e mesmo considerado “sagrado” por muitas e
muitos), como o autor fez, arriscar-me em direção a uma proposta pessoal cuja inspiração deriva
da sensação que me acompanhou durante todo o processo de imersão em seu texto: “ousada e
sustentável, com uma pitada de originalidade”. Na esperança de ter fôlego suficiente para
conseguir efetivar esse pequeno projeto a bom termo, deparo-me com meu segundo desafio: a
escolha do tema de reflexão. Não pretendo me aventurar em qualquer conceito fora do escopo
da abordagem, por entender que temos – no âmbito de pessoas interessadas, que norteiam suas
práticas profissionais e vidas pessoais a partir da ACP – muito com que nos deter, de forma
crítica e contextualizada, sobre o modo como o legado de Rogers tem circulado em nosso país
(CASTELO BRANCO; CIRINO, 2017).

Desse modo, nasce a proposta efetiva deste texto: elencar e analisar alguns fatores
de risco que podem provocar – se é que já não provocam – um esgotamento da efetividade e
potencialidade da abordagem em sua expressão fática no Brasil. Não me refiro aqui à sua
eficiência localizada, como na prática psicoterápica, por exemplo, mas no modo como sua
circulação entre pessoas identificadas com sua proposta pode se tornar carente de respostas
criativas para as demandas emergentes do início do século XXI. Para isso, apresentarei três
fatores de risco que me parecem muito presentes na atualidade: a padronização, a naturalização
e a repetição. São fatores que, de alguma forma se complementam em seu caráter de
descaracterização do aspecto curioso e aberto à experiência que sempre marcou o percurso de
Rogers.

Em um de seus últimos textos publicados, sobre o desenvolvimento da ACP, Rogers


(2014) ressalta que só há uma maneira para evitar que a abordagem se torne limitada, dogmática
e restrita, e essa maneira é através de estudos

[...] simultaneamente sagazes e sonhadores – que abrem novas perspectivas, trazem


novas compreensões, desafiam-se com novas hipóteses, enriquece nossa teoria,

1
CAIN, David J. Classics in the Person-Centered Approach. Ross-on-Wye: PCCS Books, 2002, p. 415-435.
Publicado pela primeira vez em Person-Centered Review, Volume 2, Número 1, fevereiro de 1987.
expande nosso conhecimento e nos comprometemos mais profundamente em uma
compreensão dos fenômenos da transformação humana (ROGERS, 2014, p. 16,
tradução nossa).

Minha pretensão, com esse texto, é constatar e, por que não, denunciar a presença
de alguns aspectos que podem, sem percebermos, nos afastar da ACP viva e potente sonhada
por Rogers ao final de sua existência.

O risco da padronização

O primeiro capítulo da principal obra de Rogers, Tornar-se Pessoa (On Becoming


Person, 1961), é um relato autobiográfico sobre o processo de constituição do seu modo de
pensamento até então, dividido em duas partes: fatos marcantes e aprendizagens derivadas.
Uma delas, bastante repetida entre pessoas conhecedoras da teoria rogeriana, é apresentada
como uma espécie de máxima bem sintética: “os fatos são amigos” (ROGERS, 2009, p. 29).
Vamos tentar compreender o sentido dado por Rogers a essa passagem?

Importante ressaltar que o autor se refere à sua condição como cientista e


pesquisador, em um contexto experimental de investigação, e não à conotação comumente dada
a essa máxima, como se referisse à atitude fenomenológica de suspensão de juízos por parte do
observador que deve se aproximar de modo disponível para que o fenômeno possa ser descrito
e apreendido em sua própria expressão de sentido. Feita essa distinção de base epistêmica,
continuemos acompanhando Rogers em sua descrição dessa aprendizagem.

O autor relata sua ansiedade, como cientista investigador, diante da possibilidade


de ter suas hipóteses de pesquisa refutadas. Nesse caso, de acordo com sua impressão inicial,
era como se considerasse os fatos (ou os resultados derivados do processo de pesquisa) “[...]
inimigos potenciais, possíveis mensageiros da desgraça” (ROGERS, 2009, p. 30). No entanto,
ele reconsiderou essa impressão, passando a entender que suas opiniões, dentro desse horizonte
científico, precisavam ser comprovadas pelos fatos.

O mínimo esclarecimento que consigamos obter, seja em que domínio for, aproxima-
nos muito mais do que é a verdade. Ora, aproximar-se da verdade nunca é prejudicial,
nem perigoso, nem incômodo. É essa a razão por que, embora deteste ter de rever
minhas opiniões, abandonar minha maneira de compreender ou de conceituar, acabei
no entanto por reconhecer, numa grande medida e num nível mais profundo, que essa
penosa reorganização é o que se chama aprender e que, por mais desagradável que
seja, conduz sempre a uma apreensão mais satisfatória, porque muito mais adequada
da vida (ROGERS, 2009, p. 30, grifos nossos).

Ainda sob a referência epistemológica que nos convoca para a compreensão da


passagem acima, principalmente pelo motivo do autor considerar os resultados de suas
pesquisas científicas como expressões próximas da verdade, Rezende (2000) descreve que as
teorias psicológicas podem ser categorizadas em um dos seguintes tipos de cientificidade:
formais, empírico-formais e humanas. Para compreensão da referência epistemológica presente
na elaboração conceitual de Rogers, vamos nos deter apenas na segunda categoria – empírico-
formal. Também chamadas de naturais, tem como paradigma a física moderna e a pressuposição

[...] de que a natureza também seja racional a seu modo, restando saber exatamente
qual é esse modo. Daí a segunda característica destas ciências empírico-formais, isto
é, a experimentação como condição de verificação – quer dizer, de acesso à verdade,
que então se concebe (e é experimentada) como correspondência ao real (REZENDE,
2000, p. 12).

Podemos identificar nessa perspectiva epistemológica identificada com o


pensamento rogeriano a pressuposição da verdade como expressão do real, universal e
generalizável. Essa concepção comparece de forma explícita quando o autor expõe sua
concepção de natureza humana:

[...] o homem, como o leão, tem uma natureza. Minha experiência é que ele é
basicamente um membro digno de confiança da espécie humana, cujas características
mais intensas tendem ao desenvolvimento, à diferenciação, às relações cooperativas;
cuja vida tende fundamentalmente a sair da dependência para a independência; cujos
impulsos tendem naturalmente para se harmonizar em um padrão complexo e
mutativo de auto-regulação; cujo caráter total é tal que tendem a preservar e melhorar
a si mesmo e sua espécie, e, talvez, para movê-la em direção a sua evolução. Na minha
experiência, descobrir que um indivíduo é verdadeira e profundamente um membro
único da espécie humana não é uma descoberta para inspirar horror. Antes, eu estou
inclinado a acreditar inteiramente que ser humano é entrar num processo complexo de
ser uma das criaturas mais amplamente sensíveis, responsivas, criativas e adaptáveis
do planeta (ROGERS, 2014, p. 139).

Mesmo que o contexto da aplicação de suas ideias tenha mudado significativamente


nas décadas seguintes a esse período – anos 1950 –, o autor não deixou de tomar como
referência teórico-prática sua experiência com o indivíduo dentro de uma relação psicoterápica
(Rogers, 2014; 1978). A ausência da problematização sobre a influência de diferentes contextos
e dinâmicas relacionais na constituição da experiência humana, de modo geral, e do
autoconceito da pessoa, especificamente (BEZERRA, 2018; VIEIRA, 2017), retratam a
preocupação expressa por Wood (2008) quanto à confusão, por exemplo, entre Terapia
Centrada no Cliente e Abordagem Centrada na Pessoa.

A apropriação de uma epistemologia por Rogers não é um problema em si, mas


antes uma necessidade própria das condições concretas de constituição de um conhecimento
válido. De acordo com Santos e Meneses (2010), a questão é que todo conhecimento válido
deriva de uma dada experiência sócio-histórico-cultural, de modo que diferentes formas de
relações sociais dão origem a diferentes epistemologias. Tais relações sempre são contextuais,
em termos de diferenças tanto culturais quanto políticas (relativas aqui à distribuição de poder
dentro de uma sociedade). O risco da padronização ocorre quando não consideramos essa
contextualização e reproduzimos o modelo epistemológico dominante (eurocêntrico, colonial,
homogeneizante e com pretensão de universalidade), utilizado por Rogers, suprimindo as
práticas culturais que nos são próprias. Com isso, abdicamos da diversidade epistemológica do
mundo e da enorme riqueza da capacidade humana em estabelecer modos plurais e legítimos
de inteligibilidade e intencionalidades às experiências sociais (SANTOS; MENESES, 2010).

Dessa feita, o risco da ocorrência de uma padronização que uniformiza todas as


práticas em ACP com um mesmo modelo baseado na confiança de autorrealização do indivíduo
e na suficiência das atitudes facilitadoras, derivadas de um contexto profissional (psicoterapia
individual) e cultural (EUA do período dos anos 1940/1950) específicos e muito diferente de
contextos e demandas atuais e locais, denuncia um segundo fator correlato de risco quanto ao
desgaste e deslegitimação da abordagem como proposta válida e potente diante das diferentes
questões contemporâneas: a sua naturalização.

O risco da naturalização

Ainda que muito semelhante ao risco anterior – a padronização –, penso ser


importante enfatizar o caráter determinista e resignado derivado da naturalização. Voltemos a
Rogers para melhor explorarmos essa ideia. Observo que um dos principais exemplos utilizados
para ilustrar o que venha a ser a tendência atualizante em cursos de formação da abordagem é
a referência aos brotos de batata:

Lembro-me de um episódio da minha meninice, que ilustra essa tendência. A caixa


em que armazenávamos nosso suprimento de batatas para o inverno era guardada no
porão, vários pés abaixo de uma pequena janela. As condições eram desfavoráveis,
mas as batatas começavam a germinar — eram brotos pálidos e brancos, tão diferentes
dos rebentos verdes e sadios que as batatas produziam quando plantadas na terra,
durante a primavera. Mas esses brotos tristes e esguios cresceram dois ou três pés em
busca da luz distante da janela. Em seu crescimento bizarro e vão, esses brotos eram
uma expressão desesperada da tendência direcional de que estou falando. Nunca
seriam plantas, nunca amadureceriam, nunca realizariam seu verdadeiro potencial.
Mas sob as mais adversas circunstâncias, estavam tentando ser uma planta. A vida
não entregaria os pontos, mesmo que não pudesse florescer. Ao lidar com clientes
cujas vidas foram terrivelmente desvirtuadas, ao trabalhar com homens e mulheres
nas salas de fundo dos hospitais do Estado, sempre penso nesses brotos de batatas. As
condições em que se desenvolveram essas pessoas têm sido tão desfavoráveis que
suas vidas quase sempre parecem anormais, distorcidas, pouco humanas. E, no
entanto, pode-se confiar que a tendência realizadora está presente nessas pessoas. A
chave para entender seu comportamento é a luta em que se empenham para crescer e
ser, utilizando-se dos recursos que acreditam ser os disponíveis. Para as pessoas
saudáveis, os resultados podem parecer bizarros e inúteis, mas são uma tentativa
desesperada da vida para existir. Esta tendência construtiva e poderosa é o alicerce da
abordagem centrada na pessoa (ROGERS, 1983, p. 40-41).
A ênfase comumente dada a esse trecho reflete a potência inerente ao indivíduo
quanto à sua capacidade de amadurecer e crescer, apesar das condições em que ele esteja
inserido. Essa perspectiva ensimesmada, ou seja, focada no indivíduo per si e em sua
capacidade própria, reflete a resignação quanto ao fato de que esse indivíduo, independente do
contexto em que se encontra, está desesperadamente (parafraseando Rogers) tentando ser
saudável. De acordo com essa ênfase, pouquíssima atenção e, muito menos, problematização
há com relação ao trecho em que o autor expressa que diante de clientes (termo que explicita o
parâmetro teórico-prático, ainda utilizado por ele e ao final de sua vida, para suas ideais,
derivado das suas experiências em psicoterapia individual, como descrito acima)

[...] cujas vidas foram terrivelmente desvirtuadas, ao trabalhar com homens e


mulheres nas salas de fundo dos hospitais do Estado, sempre penso nesses brotos de
batatas. As condições em que se desenvolveram essas pessoas têm sido tão
desfavoráveis que suas vidas quase sempre parecem anormais, distorcidas, pouco
humanas (ROGERS, 1983, p. 41)

Tal naturalização justifica e adequa-se convenientemente à constituição de um


modelo adoecido de subjetividade neoliberal própria desse início de século XXI (DARDOT;
LAVAL, 2016): sob a alcunha de hipermoderno, impreciso, flexível e fluido, por exemplo, trata-
se do sujeito que se identifica como uma empresa de si mesmo, autônomo, empreendedor,
abandonado de quaisquer vínculos comunitários ou coletivos, uma vez que a convivência social
é estabelecida pela referência da competitividade e cuja sobrevivência reflete a vaga referência
à felicidade almejada. Essa autocracia individualizada estabelece um nível de autovigilância,
em permanente estado de combate e vigor (na forma da exigência contínua de aquisição ad
eternum de novas competências e habilidades) para a obtenção do sempre fugidio sucesso em
um mundo midiatizado imerso num processo vertiginosamente crescente de complexização e,
ao mesmo tempo, superficialização pela falta de tempo para um tratamento mais amadurecido
e aprofundado dos fenômenos emergentes. Nessa lógica, os níveis de incerteza, incompletude
e autocobrança, tomados como naturais e permanentes, expressam-se invisível, silenciosa e
passivamente, sem o direito a qualquer tipo de tematização – em forma de reação ou lamento
públicos, por exemplo, pois podem ser compreendidos como como demonstração de fraqueza
ou derrota. Assim, esse modo de vida atravessado por grande tensionamento e estresse cotidiano
torna-se fonte cada vez maior e mais comum de pandemias vividas solitariamente como a
depressão e o suicídio, por exemplo, apesar de todo esforço midiático e das redes sociais em
desvirtuar a ideia de que esse adoecimento emocional seja global e sistêmico.

Tratamos, dessa maneira, de naturalização ao verificar o risco existente quanto ao


modo como os principais conceitos da abordagem podem adquirir uma expressão acrítica e
atemporal da natureza humana individualizada e ensimesmada. A abordagem torna-se não
apenas cúmplice, mas bastante conivente e conveniente ao estabelecimento de subjetividades
guiadas pela regulação empreendedora do self made man2 baseada em brotos de batata que,
independente das condições socioculturais adversas, necessariamente crescerão. Assim, além
da limitação da ACP como fonte de interlocução com novos, desafiadores e complexos
contextos não vividos por Rogers, muito diferentes de sua base científico-cultural de vida,
advém uma constante necessidade de confirmação de seus pressupostos, uma vez que tratados
de modo dogmático e superficial (“o importante é acreditar em si mesmo, em sua tendência à
atualização”), perdem sua vitalidade, exceto no desejo de seus/suas seguidores/as que precisam
ser identificados/as como continuadores legítimos de Rogers, inclusive contra a vontade
expressa do próprio, o que nos leva ao terceiro fator de risco: a repetição.

O risco da repetição

Considero importante resgatar a opinião de Rogers sobre o impacto e desserviço


causado às suas ideias quando derivadas de pessoas que se consideram “discípulos” seus, de
modo acrítico e repetindo de forma literal e absoluta sua teoria como uma espécie de verdade
inquestionável. Sobre isso, em entrevista a Richard Evans (1979), o psicólogo norte-americano
foi instigado a falar mais sobre a afirmação feita de que tinha pena de quem trabalhava consigo
e que destacava o seu trabalho como sua principal influência:

Acho que isso é, ou pode ser, pouco saudável. Os estudantes que mais me alegraria
ter influenciado são os que se dispuseram a ir além, que não hesitam em discordar de
mim, que são pessoas independentes. Às vezes, encontro gente que me diz: ‘Oh, estar
na sua presença... é formidável, porque li tudo o que o senhor escreveu’. Você pode
ver estampada nelas a adoração pelo herói. Gosto de lembrar às pessoas desse tipo,
um ditado Zen que acho muito adequado: ‘Quando você encontrar o Buda, mate o
Buda’. Em outras palavras, quando se encontra a pessoa que é chave de tudo, ‘a
resposta’, ‘esse é o meu guru’, etc., essa é a hora de afastá-lo dessa posição (EVANS,
1979, p. 118).

O incômodo com os efeitos gerados pela perda de autonomia reflexiva quanto ao


entendimento e aplicabilidade de suas ideias era algo já apontado por Rogers em seu relato
autobiográfico presente em Tornar-se Pessoa (On Becoming Person, 1961), ao tratar das
críticas, “cheias de violência e desprezo” (ROGERS, 2009, p. 17), recebidas pelo seu trabalho:

E talvez as críticas tempestuosas encontrem um paralelo no dano causado por alguns


‘discípulos’, sem sentido crítico e sem espírito inquisitivo, pessoas que adquiriram
para si próprias alguma coisa de um novo ponto de vista e que partiram em guerra
contra toda a gente, utilizando como arma, correta ou incorretamente, o meu trabalho

2
Empreendedor, sujeito capaz de realizar seus sonhos sozinho, independente das condições externas.
e certas teorias minhas. Tive sempre dificuldades em saber quem me tinha feito um
mal maior, se os meus “amigos”, se os meus adversários (ROGERS, 2009, p. 17).

Ressaltando a clareza que o autor possuía sobre o impacto que esse fenômeno da
repetição, como aqui tratado, tinha sobre sua proposta teórica, destaco em trecho abaixo, do
final de sua vida, o significativo desgaste pessoal, inclusive como fator de autorreflexão quanto
à sua possível influência perante essa questão:

Fico zangado quando descubro que estou tentando controlar e moldar sutilmente uma
outra pessoa à minha imagem. Este tem sido um aspecto doloroso de minha
experiência profissional. Odeio ter ‘discípulos’, estudantes que se moldam
meticulosamente ao padrão que supõem que eu desejo. Cabe-lhes alguma
responsabilidade nisso, mas não posso evitar a desconfortável hipótese de que eu, sem
o saber, tenha sutilmente controlado esses indivíduos, transformando-os em carbonos
de mim mesmo, ao invés de permitir que fossem os profissionais independentes de
mim, nos quais têm todo o direito de se transformar (ROGERS, 1983, p.11-12).

De alguma forma, junto ao risco da repetição, os riscos da padronização e da


naturalização se complementam, a partir de diferentes ênfases dadas – quanto à padronização,
o seu caráter epistemológico de busca da verdade (única e absoluta) como representação do real
(descontextualizado); quanto à naturalização, o seu aspecto determinista e resignado sob
inspiração biologicista de uma tendência à autorrealização presente no indivíduo, independente
das condições concretas de existência; e quanto à repetição, a sua postura inquestionável de
reprodução dogmática de seus princípios, sem qualquer criticidade necessária.

Dessa feita, considero que se trata de um mesmo risco ao esgotamento da potência


da ACP na atualidade brasileira, apresentado didaticamente sob três prismas específicos e
complementares. É o risco da ausência de ‘originalência’ (SHLIEN, 1987): termo cunhado para
denunciar o caráter de ‘repetição-compulsão’ presente no pensamento psicológico da teoria da
transferência, em que o autor se refere à possibilidade de novas percepções poderem

[...] se referir a uma experiência anteriormente conhecida ou a um ato anteriormente


realizado, mas novo, apesar de parecer velho [...] para que os fatos possam, mais uma
vez, ser observados com o que os fenomenólogos chamam de ‘ingenuidade
sofisticada’ (SHLIEN, 1987, p. 430, tradução nossa).

Assim, o convite para o enfrentamento dos riscos apresentados é não considerar que
as semelhanças entre experiências interpessoais que requerem pessoalidade e valorização da
dignidade humana devem ser compulsivamente tratadas de modo padronizado, naturalizado e
repetitivo. A potência funcional da ACP encontra-se em sua capacidade de abertura a novas
perspectivas (teóricas, técnicas e vivenciais) para melhor compreensão dos fenômenos da
transformação humana. Para isso, como já desenvolvi em outro texto (BEZERRA, 2018), torna-
se necessário superar a mera reprodução purista das ideias de Rogers para conservar o seu
espírito inquieto e curioso perante a existência.

Considerações Finais

De acordo com Rogers (2014), um ano antes de seu falecimento, ao tratar acerca do
desenvolvimento futuro da ACP, há uma necessidade premente de investigações sólidas sobre
os princípios básicos da abordagem. No mesmo texto, ele identifica um problema: a sub-
representação de linhas de pesquisa nas universidades, o que gera uma compreensão distorcida
e superficial das suas ideias. A explicitação desse limite também surge nas conclusões da
pesquisa desenvolvidas nos anos 1990 por Tassinari e Portela (2002) sobre a história da ACP
no Brasil. De acordo com as autoras, “[...] outro ponto convergente dos depoimentos refere-se
à explicitação de uma certa ‘lacuna teórica’, evidenciada pelas práticas sem o devido
acompanhamento de sua sistematização, bem como ênfase no nível vivencial” (p.255).

De acordo com Cury (2013), o processo de abrasileiramento da abordagem


provocou uma descontextualização da sua proposta, criando uma configuração distanciada do
contexto acadêmico e científico, cuja consequência

[...] rendeu-lhe um considerável prejuízo no tocante à credibilidade científica e, acima


de tudo, produziu uma versão tropical amadorística que, além de distorcer o processo
histórico de desenvolvimento desta abordagem, enfraqueceu o impacto de sua
contribuição teórica e prática. Desta forma, restou eclipsado um dos pilares mais
importantes do trabalho de Carl Rogers e de seus colaboradores mais próximos: o
respeito pelo rigor científico e a adoção de uma postura disciplinada e nada irreverente
na condução de processos psicológicos em diferentes contextos e com diferentes
públicos (CURY, 2013, p. 10).

Ilustrando essa questão, Bezerra e Vieira (2020, no prelo), ao tratarem da


experiência vivida como participantes da Comissão Organizadora do IX Fórum Brasileiro da
ACP, em 2011, lembram os debates relacionados ao distanciamento da abordagem junto ao
meio acadêmico, expressos no incômodo recorrente dos acadêmicos presentes naquele evento
quanto ao fato de não se sentirem considerados positivamente pelos profissionais identificados
com a abordagem que não atuam em faculdades e universidades, criando um distanciamento e
ausência de diálogo entre acadêmicos e não acadêmicos:

Arriscamos dizer que a relação entre acadêmicos e não acadêmicos da ACP ainda
tenha que ser mais trabalhada, para haver de fato um espaço dialógico efetivo e
potente de resultados e inovações. Afinal, conhecimento é produzido a partir da
imprescindível relação entre teoria e prática, entre abstração e experiência, entre
academia e não academia. Mesmo Rogers, tão conhecido pela primazia dada à
experiência, construiu toda a sua carreira numa tensa e necessária relação com a
academia. Toda a repercussão das ideias rogerianas não existiria se Rogers não fosse
um pesquisador renomado e professor de diferentes universidades estadunidenses ao
longo de toda a carreira, além de haver sido presidente da APA logo após o fim da
Segunda Guerra Mundial e ter recebido diversos prêmios por contribuição científica
à Psicologia desta mesma instituição. Essa relação, tensa como é a que existe entre
teoria e prática, conforme já dissemos, não pode ser desconsiderada, sob pena de a
ACP correr sério risco de virar uma seita, um dogma, o culto a uma certeza incapaz
de dialogar com outros âmbitos que não apenas aqueles que a ratificam (BEZERRA;
VIEIRA, 2020, no prelo).

Desta forma, a “originalência”, proposta por Shlien (1987) e aqui adaptada à


discussão sobre os riscos existentes quanto a um esgotamento indesejável da abordagem no
contexto brasileiro, somente ocorrerá se nos permitirmos combater essa fissura dicotômica
entre acadêmico/não-acadêmico ou teórico/vivencial, cuja fragmentação resulta em
empobrecimento e maior vulnerabilidade quanto aos riscos da padronização, naturalização e
repetição. Resgatar a importância do espaço científico-acadêmico não significa deslegitimar
outros espaços de construção teórico-vivencial em ACP; da mesma forma, não se limita apenas
a tratar esse espaço como mais um campo de atuação profissional. O convite é resgatarmos o
espaço científico-acadêmico como uma atitude crítica e curiosa de efetiva abertura ao estudo,
pesquisa e dialogicidade; que nos convoque a não transformar a ACP em mais uma verdade
tratada de modo inquestionável, porém vazia de potencialidade criativa, em tempos
desafiadores de cada vez maior legitimação da diversidade de olhares e experiências.

REFERÊNCIAS

BEZERRA, EDSON N.. Uma compreensão hermenêutico-filosófica da noção de


abordagem centrada na pessoa. Dissertação de Mestrado em Psicologia. Programa de Pós-
Graduação em Psicologia, Universidade Federal do Maranhão, São Luís, 2018, 109 f.

BEZERRA, Edson N.; VIEIRA, Emanuel M.. IX Fórum Brasileiro da Abordagem Centrada na
Pessoa (Ilha Do Marajó, Pará, 2011). No prelo, 2020.

CASTELO BRANCO, Paulo C.; CIRINO, Sérgio D. Recepção e circulação da Psicologia


Humanista de Carl Rogers no Brasil. Revista de Psicologia, Santiago, v. 26, n. 2, p. 1-12, 2017.

CURY, Vera E.. Prefácio. In: WOOD, J. K. Sete versões entre pessoa: diário de bordo sobre
a Abordagem Centrada na Pessoa em grandes grupos. São Paulo: Via Lettera, 2013, p. 9-12.

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade
neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.

EVANS, Richard I. Carl Rogers: o homem e suas ideias. São Paulo: Martins Fontes, 1979.

REZENDE, Antonio M. de. Prefácio. In: FERREIRA, May G.. Concepções de subjetividade
em Psicologia. Campinas: Pontes; São Luís: CEFET-MA, 2000, p. 9-20.
ROGERS, Carl R.. Sobre o Poder Pessoal. São Paulo: Martins Fontes, 1978.

ROGERS, Carl R.. Um jeito de ser. São Paulo: EPU, 1983.

ROGERS, Carl R.. Tornar-se pessoa. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

ROGERS, Carl R.. Uma nota sobre a “natureza do homem”. Phenomenological Studies:
Revista de Abordagem Gestáltica, Goiânia, v. 20, n. 1, p. 137-140, jan./jun. 2014.

ROGERS, Carl R.. Carl Rogers sobre el desarrollo del enfoque centrado em la persona. In:
SEGRERA, Alberto S.; CORNELIUS-WHITE, Jeffrey H. D.; LOMBARDI, Michael B. y S..
Consultorías y psicoterapias centradas em la persona y experienciales: fundamentos,
perspectivas y aplicaciones. Buenos Aires: Gran Aldea Editores, 2014.

SANTOS, Boaventura de S.; MENESES, Maria P.. Introdução. In: SANTOS, Boaventura de
S.; MENESES, Maria P. (org.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010.

SHLIEN, John M.. A countertheory of transference. In: CAIN, David J. Classics in the Person-
Centered Approach. Ross-on-Wye: PCCS Books, 2002, p. 415-435.

TASSINARI, Marcia A.; PORTELA, Yeda R. História da abordagem centrada na pessoa no


Brasil. In: GOBBI, Sérgio L. et al. Vocabulário e noções básicas da abordagem centrada na
pessoa. São Paulo: Vetor, 2005. p. 229-259

VIEIRA, Emanuel M.. Ética e Psicologia: uma investigação sobre os ethois da terapia centrada
na pessoa. Tese de Doutorado em Psicologia. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2017, 394 f.

WOOD, John K.. Prólogo. In: WOOD, John K. et al. Abordagem centrada na pessoa. Vitória:
EDUFES, 2008, p. 13-24.

Você também pode gostar