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Ao ser convidado para estabelecer uma reflexão crítica da relação entre o texto de
um antigo colaborador de Rogers – John Shlien – sobre a teoria psicanalítica da transferência1,
e a situação da Abordagem Centrada na Pessoa (ACP) no Brasil atualmente, deparei-me com
um primeiro desafio de, mais que propor uma análise minimamente aprofundada e
contextualizada sobre um conceito consagrado (e mesmo considerado “sagrado” por muitas e
muitos), como o autor fez, arriscar-me em direção a uma proposta pessoal cuja inspiração deriva
da sensação que me acompanhou durante todo o processo de imersão em seu texto: “ousada e
sustentável, com uma pitada de originalidade”. Na esperança de ter fôlego suficiente para
conseguir efetivar esse pequeno projeto a bom termo, deparo-me com meu segundo desafio: a
escolha do tema de reflexão. Não pretendo me aventurar em qualquer conceito fora do escopo
da abordagem, por entender que temos – no âmbito de pessoas interessadas, que norteiam suas
práticas profissionais e vidas pessoais a partir da ACP – muito com que nos deter, de forma
crítica e contextualizada, sobre o modo como o legado de Rogers tem circulado em nosso país
(CASTELO BRANCO; CIRINO, 2017).
Desse modo, nasce a proposta efetiva deste texto: elencar e analisar alguns fatores
de risco que podem provocar – se é que já não provocam – um esgotamento da efetividade e
potencialidade da abordagem em sua expressão fática no Brasil. Não me refiro aqui à sua
eficiência localizada, como na prática psicoterápica, por exemplo, mas no modo como sua
circulação entre pessoas identificadas com sua proposta pode se tornar carente de respostas
criativas para as demandas emergentes do início do século XXI. Para isso, apresentarei três
fatores de risco que me parecem muito presentes na atualidade: a padronização, a naturalização
e a repetição. São fatores que, de alguma forma se complementam em seu caráter de
descaracterização do aspecto curioso e aberto à experiência que sempre marcou o percurso de
Rogers.
1
CAIN, David J. Classics in the Person-Centered Approach. Ross-on-Wye: PCCS Books, 2002, p. 415-435.
Publicado pela primeira vez em Person-Centered Review, Volume 2, Número 1, fevereiro de 1987.
expande nosso conhecimento e nos comprometemos mais profundamente em uma
compreensão dos fenômenos da transformação humana (ROGERS, 2014, p. 16,
tradução nossa).
Minha pretensão, com esse texto, é constatar e, por que não, denunciar a presença
de alguns aspectos que podem, sem percebermos, nos afastar da ACP viva e potente sonhada
por Rogers ao final de sua existência.
O risco da padronização
O mínimo esclarecimento que consigamos obter, seja em que domínio for, aproxima-
nos muito mais do que é a verdade. Ora, aproximar-se da verdade nunca é prejudicial,
nem perigoso, nem incômodo. É essa a razão por que, embora deteste ter de rever
minhas opiniões, abandonar minha maneira de compreender ou de conceituar, acabei
no entanto por reconhecer, numa grande medida e num nível mais profundo, que essa
penosa reorganização é o que se chama aprender e que, por mais desagradável que
seja, conduz sempre a uma apreensão mais satisfatória, porque muito mais adequada
da vida (ROGERS, 2009, p. 30, grifos nossos).
[...] de que a natureza também seja racional a seu modo, restando saber exatamente
qual é esse modo. Daí a segunda característica destas ciências empírico-formais, isto
é, a experimentação como condição de verificação – quer dizer, de acesso à verdade,
que então se concebe (e é experimentada) como correspondência ao real (REZENDE,
2000, p. 12).
[...] o homem, como o leão, tem uma natureza. Minha experiência é que ele é
basicamente um membro digno de confiança da espécie humana, cujas características
mais intensas tendem ao desenvolvimento, à diferenciação, às relações cooperativas;
cuja vida tende fundamentalmente a sair da dependência para a independência; cujos
impulsos tendem naturalmente para se harmonizar em um padrão complexo e
mutativo de auto-regulação; cujo caráter total é tal que tendem a preservar e melhorar
a si mesmo e sua espécie, e, talvez, para movê-la em direção a sua evolução. Na minha
experiência, descobrir que um indivíduo é verdadeira e profundamente um membro
único da espécie humana não é uma descoberta para inspirar horror. Antes, eu estou
inclinado a acreditar inteiramente que ser humano é entrar num processo complexo de
ser uma das criaturas mais amplamente sensíveis, responsivas, criativas e adaptáveis
do planeta (ROGERS, 2014, p. 139).
O risco da naturalização
O risco da repetição
Acho que isso é, ou pode ser, pouco saudável. Os estudantes que mais me alegraria
ter influenciado são os que se dispuseram a ir além, que não hesitam em discordar de
mim, que são pessoas independentes. Às vezes, encontro gente que me diz: ‘Oh, estar
na sua presença... é formidável, porque li tudo o que o senhor escreveu’. Você pode
ver estampada nelas a adoração pelo herói. Gosto de lembrar às pessoas desse tipo,
um ditado Zen que acho muito adequado: ‘Quando você encontrar o Buda, mate o
Buda’. Em outras palavras, quando se encontra a pessoa que é chave de tudo, ‘a
resposta’, ‘esse é o meu guru’, etc., essa é a hora de afastá-lo dessa posição (EVANS,
1979, p. 118).
2
Empreendedor, sujeito capaz de realizar seus sonhos sozinho, independente das condições externas.
e certas teorias minhas. Tive sempre dificuldades em saber quem me tinha feito um
mal maior, se os meus “amigos”, se os meus adversários (ROGERS, 2009, p. 17).
Ressaltando a clareza que o autor possuía sobre o impacto que esse fenômeno da
repetição, como aqui tratado, tinha sobre sua proposta teórica, destaco em trecho abaixo, do
final de sua vida, o significativo desgaste pessoal, inclusive como fator de autorreflexão quanto
à sua possível influência perante essa questão:
Fico zangado quando descubro que estou tentando controlar e moldar sutilmente uma
outra pessoa à minha imagem. Este tem sido um aspecto doloroso de minha
experiência profissional. Odeio ter ‘discípulos’, estudantes que se moldam
meticulosamente ao padrão que supõem que eu desejo. Cabe-lhes alguma
responsabilidade nisso, mas não posso evitar a desconfortável hipótese de que eu, sem
o saber, tenha sutilmente controlado esses indivíduos, transformando-os em carbonos
de mim mesmo, ao invés de permitir que fossem os profissionais independentes de
mim, nos quais têm todo o direito de se transformar (ROGERS, 1983, p.11-12).
Assim, o convite para o enfrentamento dos riscos apresentados é não considerar que
as semelhanças entre experiências interpessoais que requerem pessoalidade e valorização da
dignidade humana devem ser compulsivamente tratadas de modo padronizado, naturalizado e
repetitivo. A potência funcional da ACP encontra-se em sua capacidade de abertura a novas
perspectivas (teóricas, técnicas e vivenciais) para melhor compreensão dos fenômenos da
transformação humana. Para isso, como já desenvolvi em outro texto (BEZERRA, 2018), torna-
se necessário superar a mera reprodução purista das ideias de Rogers para conservar o seu
espírito inquieto e curioso perante a existência.
Considerações Finais
De acordo com Rogers (2014), um ano antes de seu falecimento, ao tratar acerca do
desenvolvimento futuro da ACP, há uma necessidade premente de investigações sólidas sobre
os princípios básicos da abordagem. No mesmo texto, ele identifica um problema: a sub-
representação de linhas de pesquisa nas universidades, o que gera uma compreensão distorcida
e superficial das suas ideias. A explicitação desse limite também surge nas conclusões da
pesquisa desenvolvidas nos anos 1990 por Tassinari e Portela (2002) sobre a história da ACP
no Brasil. De acordo com as autoras, “[...] outro ponto convergente dos depoimentos refere-se
à explicitação de uma certa ‘lacuna teórica’, evidenciada pelas práticas sem o devido
acompanhamento de sua sistematização, bem como ênfase no nível vivencial” (p.255).
Arriscamos dizer que a relação entre acadêmicos e não acadêmicos da ACP ainda
tenha que ser mais trabalhada, para haver de fato um espaço dialógico efetivo e
potente de resultados e inovações. Afinal, conhecimento é produzido a partir da
imprescindível relação entre teoria e prática, entre abstração e experiência, entre
academia e não academia. Mesmo Rogers, tão conhecido pela primazia dada à
experiência, construiu toda a sua carreira numa tensa e necessária relação com a
academia. Toda a repercussão das ideias rogerianas não existiria se Rogers não fosse
um pesquisador renomado e professor de diferentes universidades estadunidenses ao
longo de toda a carreira, além de haver sido presidente da APA logo após o fim da
Segunda Guerra Mundial e ter recebido diversos prêmios por contribuição científica
à Psicologia desta mesma instituição. Essa relação, tensa como é a que existe entre
teoria e prática, conforme já dissemos, não pode ser desconsiderada, sob pena de a
ACP correr sério risco de virar uma seita, um dogma, o culto a uma certeza incapaz
de dialogar com outros âmbitos que não apenas aqueles que a ratificam (BEZERRA;
VIEIRA, 2020, no prelo).
REFERÊNCIAS
BEZERRA, Edson N.; VIEIRA, Emanuel M.. IX Fórum Brasileiro da Abordagem Centrada na
Pessoa (Ilha Do Marajó, Pará, 2011). No prelo, 2020.
CURY, Vera E.. Prefácio. In: WOOD, J. K. Sete versões entre pessoa: diário de bordo sobre
a Abordagem Centrada na Pessoa em grandes grupos. São Paulo: Via Lettera, 2013, p. 9-12.
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade
neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.
EVANS, Richard I. Carl Rogers: o homem e suas ideias. São Paulo: Martins Fontes, 1979.
REZENDE, Antonio M. de. Prefácio. In: FERREIRA, May G.. Concepções de subjetividade
em Psicologia. Campinas: Pontes; São Luís: CEFET-MA, 2000, p. 9-20.
ROGERS, Carl R.. Sobre o Poder Pessoal. São Paulo: Martins Fontes, 1978.
ROGERS, Carl R.. Tornar-se pessoa. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
ROGERS, Carl R.. Uma nota sobre a “natureza do homem”. Phenomenological Studies:
Revista de Abordagem Gestáltica, Goiânia, v. 20, n. 1, p. 137-140, jan./jun. 2014.
ROGERS, Carl R.. Carl Rogers sobre el desarrollo del enfoque centrado em la persona. In:
SEGRERA, Alberto S.; CORNELIUS-WHITE, Jeffrey H. D.; LOMBARDI, Michael B. y S..
Consultorías y psicoterapias centradas em la persona y experienciales: fundamentos,
perspectivas y aplicaciones. Buenos Aires: Gran Aldea Editores, 2014.
SANTOS, Boaventura de S.; MENESES, Maria P.. Introdução. In: SANTOS, Boaventura de
S.; MENESES, Maria P. (org.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010.
SHLIEN, John M.. A countertheory of transference. In: CAIN, David J. Classics in the Person-
Centered Approach. Ross-on-Wye: PCCS Books, 2002, p. 415-435.
VIEIRA, Emanuel M.. Ética e Psicologia: uma investigação sobre os ethois da terapia centrada
na pessoa. Tese de Doutorado em Psicologia. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2017, 394 f.
WOOD, John K.. Prólogo. In: WOOD, John K. et al. Abordagem centrada na pessoa. Vitória:
EDUFES, 2008, p. 13-24.