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São Paulo
2015
FELIPE PUPO PEREIRA PROTTA
São Paulo
2015
FELIPE PUPO PEREIRA PROTTA
BANCA EXAMINADORA
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Profª. Drª. Marlise Vaz Bridi — Orientadora
Universidade Presbiteriana Mackenzie
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Profª. Drª. Maria Lucia Marcondes Carvalho Vasconcelos
Universidade Presbiteriana Mackenzie
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Profª. Drª. Ana Maria Domingues de Oliveira
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho
_______________________________________________________________
Profª. Drª. Alleid Ribeiro Machado
Centro Universitário Sant’Anna
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Profª. Drª. Regina Helena Pires de Brito
Universidade Presbiteriana Mackenzie
À minha mãe, Rozana, e à minha avó Ruth
AGRADECIMENTOS
À minha mãe, Rozana, e minha avó, Ruth — minha mãe ao quadrado —, por
todo amor, carinho, apoio e o suporte em todos os momentos de minha vida.
À minha querida orientadora Marlise Vaz Bridi, sem a qual nada disso seria
possível.
Ao meu amigo e irmão Victor Costa, por toda disposição e pela efetiva ajuda
que me deu para a realização do presente trabalho.
A presente tese se coloca como uma investigação dos aspectos que propiciam a
classificação de Caetano Veloso como um agitador cultural, a partir da análise de
sua trajetória em diferentes setores da arte. Numa reverência ao que há de belo e
forte no passado sem qualquer despreocupação com o futuro, mas, pelo contrário,
buscando partir disso para a criação de algo novo tão interessante quanto, este
artista baiano segue uma trilha de coerência entre a crítica e o elogio, o velho e o
novo, o nacional e o estrangeiro, o choque e o apreço, indo bem ao encontro dos
princípios norteadores da arte como um todo. Caetano Veloso é um artista
multifacetado que compõe o firmamento artístico brasileiro. Apesar de estar ligado
ao contexto da canção popular, sua atuação extrapola os limites desta área,
chegando a muitas outras. Seja por meio de suas canções, suas interpretações,
seus comentários, sua performance e persona tão várias quanto sua própria
atuação, mais do que tudo, Caetano Veloso pode ser considerado um “agitador
cultural”, à medida que transita com propriedade entre os mais diversos tempos,
espaços e estilos em termos de canção, comportamento e visão de mundo. A cultura
brasileira vem sendo enriquecida pelos aspectos estrangeiros que vem sido
somados a esta por um artista que insiste em ousar, mesmo com uma carreira que
beira as cinco décadas de duração, sem, portanto, precisar provar nada, e, no
entanto, fazendo questão de se reinventar, tendo sempre algo novo a acrescentar.
“Como um objeto não identificado”1, por meio da arte, este artista baiano tem
levado gerações a pensarem e repensarem sua posição como cidadãos e como
seres humanos, seja por meio da fruição de sua obra, seja pela simples percepção
da maneira como ele se expressa no geral — em palavras, atitudes e
comportamento.
1
VELOSO, Caetano. Não Identificado (1969)
2 VELOSO, Caetano. É Proibido Proibir (1968)
!12
conforme suas palavras “o que eu herdei de minha gente e nunca posso perder”3,
quanto ao inserir-se no grupo “daqueles que zelam pela alegria do mundo” como um
todo. Assim, este baiano nunca se restringiu a um nacionalismo cerrado, uma
espécie de cabresto, como muitos, mas, pelo contrário, com uma carreira também
firmemente consolidada em outros países, de outras línguas e culturas, ele
introduziu na cultura brasileira elementos de outras povos, de modo a enriquecer e
pluralizar ainda mais a nossa.
Este componente quase que mágico se faz presente nas artes como um todo,
mas, especificamente, tanto na literatura, quanto na música isoladamente, e, desse
modo, não poderia estar ausente na canção. Quem poderá explicar objetivamente
as reações causadas pela leitura de um bom texto, ou por escutar uma bela melodia,
ou mesmo por encontrar estas duas componentes fundidas na canção? A tentativa
de decifrar o que se coloca como indecifrável leva a explicações e teorizações.
Assim, por exemplo, pode-se ressaltar que as letras de Caetano Veloso são
marcadas por uma escrita poética e por todos os recursos característicos desta. A
linguagem empregada em sua canção é marcada por todas as nuances comuns à
poesia de grandes autores.
E, como se não bastasse, gravou um disco cujo projeto foi baseado num
período passado e vergonhoso da história do Brasil. Mais especificamente, nas
palavras do diplomata, poeta e memorialista do contexto do Brasil-império Joaquim
Nabuco: “Noites do Norte” (2001). O disco em questão contém canções que tem por
tema o contexto da abolição da escravatura no Brasil, como 13 de Maio (2000), do
próprio Caetano Veloso, Zumbi (1974), de Jorge Benjor, e a canção que dá nome ao
álbum Noites do Norte (2000), que é na verdade um trecho de um texto de Nabuco
musicado por Caetano Veloso:
Também na época das eleições que levaram ao poder Luis Inácio Lula da
Silva pela primeira vez, em 2002, Caetano defendeu que um homem do povo
assumisse o comando do país — embora, depois, como muitos, tenha também se
arrependido. Caetano Veloso apoiou candidatos como Marina Silva e Fernando
Gabeira, visando a uma renovação do quadro de candidatos e propostas que, via de
regra, quase sempre reduz-se a mais do mesmo.
Grande parte dos imitadores de Caetano Veloso utiliza a expressão “ou não”,
atribuindo-a como costumeira do discurso dele, a qual na verdade é mais uma
síntese desta sua visão de diferentes pontos de vista acerca de um mesmo assunto,
mas, sobretudo, da sua visão pessoal acerca destes. Um exemplo é o humorista
João Cláudio Moreno, que encarnava o personagem “Caretano” — uma caricatura
que escrachava esta possível caretice de Caetano Veloso — num programa de
humor de Chico Anysio, no qual este dava vida a “Zelberto Zel”, uma caricatura de
Gil.
No geral, a fala de Caetano, por sua vez, se dá de uma maneira muito clara,
via de regra sempre alicerçada em argumentos sólidos, frutos de uma visão de
mundo aliada a uma percepção e capacidade de leitura bastante aguçadas.
Por outro lado, toda esta clareza acaba também por gerar polêmicas, já que
suas palavras, por vezes são destacadas fora de seu contexto original. Por exemplo,
quando questionada sua opinião sobre a então candidata a presidente Marina Silva,
Caetano Veloso, para elogiá-la estabeleceu uma comparação desta com o
presidente americano Obama e também com o ex-presidente do Brasil, Luís Inácio
Lula da Silva:
Apesar disso, o modo como este fato foi levantado por Caetano traz consigo
um quê elistista — tendo em vista o grande número de reais analfabetos que
compõem a população brasileira — e, sendo desviado do contexto de comparação
entre a história dos dois presidentes em questão, foi publicado como manchete,
tomado como não apenas como uma crítica, mas como um literal ataque do
cancionista baiano ao ex-presidente brasileiro. Por isso, causou diversas reações
entre o povo, na mídia e entre os políticos, dentre os quais, do próprio ex-presidente
Lula, que declarara, numa réplica: “Tem gente que acha que a inteligência está
ligada à quantidade de anos de escolaridade que você tem. Não tem nada mais
burro do que isso”.
Certamente, a inteligência não depende apenas da escolaridade, mas, não
era a isso que Caetano se referia, mas ao caráter errôneo e equivocado da fala de
Lula — não apenas no que diz respeito à gramática —, evidenciado quando ele se
pronuncia publicamente. Trata-se, mais marcadamente, da menção de um fato de
maneira hiperbólica, a fim de evidenciar um aspecto negativo do presidente
brasileiro em relação ao americano.
Com toda a repercussão de sua declaração vertida em manchete, Caetano
Veloso enviou uma carta à redação do jornal, que foi publicada no mesmo, dias
depois, contendo trechos como:
A canção O Estrangeiro (1989), é outra das que podem ser citadas por conter,
conforme as palavras supracitadas do comentário do próprio Caetano Veloso,
“aspectos diferentes da mesma coisa”.
Este tratamento de “praticamente tudo” citado por Wisnik, dado por meio da
canção em Caetano Veloso pode ser explicado, acima de tudo, pelo fato de se tratar
de um artista que se permite sempre ousar, experimentar as formas de expressão e
de manifestação que sejam mais adequadas em relação ao que há para ser dito.
Devido a isso, Caetano se permite testar as mais “inúmeras refrações” no que diz
respeito à expressividade da canção, testando e ousando extrapolar seus possíveis
limites, seja por meio da forma,, seja por meio da própria linguagem nela
empregada.
Nesse sentido, Faour (2011) afirma mais categoricamente que “só a partir dos
anos 70 a mulher e o gay passaram a ser tratados com maior dignidade por nossos
letristas.” (FAOUR, 2011, p. 16) E, deste grupo mencionado por Faour, Caetano
Veloso é um de seus principais representantes.
Sexo é uma prática inerente à condição humana e, assim como tantas outras
atividades básicas, como as ligadas à higiene ou à alimentação, é algo a ser
aprendido para ser desenvolvido. A prática sexual é também fruto da cultura, à
medida que as pessoas de cada comunidade são orientadas de acordo com
9 Idem
!28
Além das canções em si, vale lembrar que Caetano Veloso, ao lado de Jorge
Mautner, foi um dos primeiros andróginos da canção popular brasileira, ao adotar um
visual, a construção de uma imagem marcada por elementos comuns à esfera da
aparência feminina, como brincos grandes em ambas as orelhas, batom, ruge e
outras modalidades cosméticas atreladas à maquiagem de uma mulher como
também algumas peças de vestimentas deste estilo.
!29
Por fim, “Um Canto por Todos os Cantos: A Voz do Camaleão” se coloca
como um estudo da face de intérprete de Caetano Veloso, a qual, por seu aspecto
vário e multifacetado, diz muito em termos de cultura, por meio dos diálogos
estabelecidos por este artista brasileiro, entre as mais diversas épocas, estilos e
espaços, fator que ajuda a entender a dificuldade de classificação ou rotulação de
Caetano Veloso a um único setor específico em termos de arte musical.
Sim, desde que o público viu pela primeira vez aquele jovem baiano num
festival de música em 1967, até os dias atuais, em que, conforme o verso de sua
canção, é possível notar “os muitos cabelos brancos na fronte do artista”11, um fato
salta aos olhos: “o tempo não para / e no entanto ele nunca envelhece”12. E isto,
porque, apesar das alterações atreladas à inexorável ação do tempo, Caetano
Veloso se mantém como um artista marcado por um espírito inquieto, curioso que
11
VELOSO, Caetano. Força Estranha (1978)
12 Idem
!33
PULSANDO
ressaca destas águas musicais, após a rebentação no final dos anos 50.
Se o primeiro disco de Caetano se coloca como uma homenagem, um tributo
à Bossa-Nova — e, já revela, ainda que timidamente, um pouco do que se poderia
esperar deste cancionista estreante —, exatos quarenta e cinco anos depois, num
de seus mais recentes álbuns, Caetano dedica uma faixa — a canção que abre o
disco — inédita, de sua autoria que, se por um lado, musicalmente, destoa
completamente da estrutura melódica característica da Bossa, por outro, na letra,
retoma o tom laudatório ao estilo musical brasileiro tipo exportação desde o seu
título.
Assim, no período compreendido entre “Domingo” e “Abraçaço”, buscaremos
investigar a relação estabelecida entre Caetano Veloso e a Bossa-Nova, revelada
em suas interpretações, composições e posicionamentos como um raro tom
constante na aquarela deste camaleão.
A interpretação tão singular empreendida por João Gilberto, que soou como
uma coisa louca aos ouvidos dos apreciadores da música brasileira —
caracteristicamente ligada a uma tradição em termos de interpretação — pode ser
explicada, em primeiro lugar, pela própria voz do intérprete. Diferentemente dos
grandes cantores do rádio, ligados ao samba-canção, João Gilberto não tinha uma
grande voz e, portanto, não permeou sua emissão com os inúmeros vibratos
!36
Deste modo, que não fora aceito inicialmente, e até classificado como
desafinação por grande parte do público, desde o início
foi tomado por Caetano como “uma sucessão de delícias”, conforme ele mesmo
afirma:
Mais do que um gênero que criou um novo gosto musical, Caetano Veloso
ressalta o fato de a Bossa-Nova ter promovido uma elevação do “estágio cultural”
dos brasileiros, já que, um estilo mais apurado só pode ser devidamente apreciado
por um público suficientemente sofisticado. E, esta sofisticação resultou justamente
de um processo de revisão do acervo musical brasileiro, pelo próprio público que,
não só refinou o seu gosto como também passou a estar mais receptivo, permitindo
que os artistas trabalhassem numa perspectiva mais ampla e não mais fadados a
apenas seguirem fórmulas prontas para agradar a coletividade.
João Gilberto e sua Bossa-Nova inovadora apresentada no disco “Chega de
Saudade” tornaram-se o marco-zero de toda uma geração de grandes nomes da
música popular — “arranjadores, guitarristas, músicos e cantores”15 —, cuja obra se
constitui como um eco ou resultado desta revolução no campo da música popular,
conforme afirma Chico Buarque:
Mesmo tendo traçado uma rota bastante variada, optando por viajar pelos estilos e
não se emoldurar como um cancionista bossanovista, a Bossa parece se colocar
para Caetano como o lugar de conforto ao qual ele sempre retorna, musicalmente, e
João Gilberto, a “primeira referência” que vem norteando toda a sua produção e,
confessadamente, sua “fruição”, conforme o próprio Caetano:
A declarada “paixão” por João Gilberto e toda uma crítica estética concebida a
partir dela tornou-se, para Caetano, uma espécie de lente, a partir da qual perpassa
o olhar, a fruição e o juízo de valor acerca de qualquer obra de arte. Assim, seja a
literatura brasileira (Guimarães Rosa), ou estrangeira, como a francesa (Stendhal e
Marcel Proust), espanhola (Garcia Lorca), irlandesa (James Joyce); a ciência (Albert
Eisenstein), as artes plásticas (Velásquez, Lygia Clark e Warhol), o cinema (Godard,
Warhol e Hitchcock) e a própria música, tanto em sua vertente clássica (Bach e
Webern), como também a estrangeira contemporânea (de compositores como Bob
Dylan, John Lennon e Mick Jagger, ligados ao contexto do rock), tudo passou (e,
talvez, o que é novo ainda hoje passe) pelo filtro joãogilbertiano para Caetano
chegar à literal construção de uma “perspectiva”, tendo encontrado uma forma
particular de se colocar e expressar musicalmente.
Vale lembrar que Tom Jobim foi mais do que uma referência primordial para
Chico Buarque, que, além de seu discípulo, veio a tornar-se seu amigo e parceiro na
autoria de diversas canções que entraram para a história, configurando-se com
clássicos do cancioneiro popular brasileiro, como: Sabiá (1968), Lígia (1972),
Retrato em Branco e Preto (1968), Anos Dourados (1986) e Eu Te Amo (1980).
16
BUARQUE, Chico. Paratodos (1993)
17 “Para um coração mesquinho / Contra a solidão agreste / Luiz Gonzaga é tiro certo / Pixinguinha é
inconteste / Tome Noel, Cartola, Orestes / Caetano e João Gilberto” (grifo nosso).
!40
Um outro aspecto que poderia ser ressaltado na distinção entre estas duas
canções é o fato de Paratodos, de Chico Buarque ser uma canção que
18 Que nem sequer era brasileira de fato, mas que sem dúvida fez grande sucesso no Brasil.
!41
O termo intertextualidade aponta para o conceito que foi introduzido por Julia
Kristeva no âmbito da literatura. Trata-se de uma relação de diálogo estabelecida
entre diferentes textos e discursos, seja por um trecho em comum, seja por
!42
Um cantinho e um violão
Este amor, uma canção
Pra fazer feliz a quem se ama
A felicidade, a felicidade
Eu, você, depois
Quarta-feira de cinzas no país
E as notas dissonantes se integraram
Ao som dos imbecis
20
Camões
21 Idem
!44
outra canção de Tom Jobim, em parceria com Vinicius de Moraes, cujo título é
constituído por esta mesma expressão, datada de 1959. Aliás, um dos versos desta
canção de Jobim é justamente a afirmação de que “Tristeza não tem fim / Felicidade
sim”, o qual é bastante expressivo em relação à continuidade da letra da canção de
Caetano.
Vem à tona então o que aconteceu “depois” desta fase romântica, marcada
pela sonoridade da Bossa-Nova. Como ao fim do carnaval, chegou a “quarta-feira de
cinzas”, encerrando toda uma fase de alegria e prazer. No entanto, a expressão que
dá conta do fim de uma série de festejos é ligada a um contexto político específico
do que ocorrera “no país” — a saber, o Brasil —: a ditadura militar.
Após toda esta volta ao passado, tendo como fundo musical “João girando na
vitrola sem parar”, o eu lírico afirma ficar “comovido” apenas por se “lembrar”
daquele “tempo”, daquele “som”, e, sintetiza toda a felicidade daquele tempo com a
exclamação: “Ah como era bom”. Esta expressão dá a ideia de um passado
inesquecível, talvez até mais feliz do que o próprio presente, deixando no ar a ideia
comum de que se era feliz sem saber, frente ao que se vive hoje.
I
Gal participa dessa qualidade misteriosa que habita os raros grandes
cantores de samba: a capacidade de inovar, de violentar o gosto
contemporâneo, lançando o samba para o futuro, com a
espontaneidade de quem relembra velhas musiquinhas. Por isso eu
considero necessária a sua presença nesse disco em que se registra
uma fase do meu trabalho em música popular, algumas das canções
que eu fiz até agora. Por isso, e também porque desde a Bahia que
nós cantamos juntos, desde lá ela faz com que meus sambas
existam de verdade. Não há defasagem de tempo entre a
composição e o canto: cada interpretação tem a mesma idade da
canção. Todas as minhas músicas que aparecem aqui foram feitas
junto dela e um pouco por ela também. Ouso considera-la como
parte integrante do meu processo de criação: este é um disco de
“GAL interpretando Caetano” mesmo nas faixas em que ela canta
!48
II
Eu gosto muito de cantar. Mas jamais consegui gostar muito de
cantar as minhas composições. Um velho baião, uma canção antiga,
o último samba de um amigo. Isso é tão bom de cantar: uma música
que eu mesmo tenha inventado me aparece informe pela
proximidade e eu desconfio de tudo que escrevi. Neste disco, estou
enfrentando uma experiência nova: ouço essas coisas que fiz
transformadas em música por Dori, Menescal e Francis e procuro
amá-las despreocupadamente, tento aceita-las como prontas (não há
mais como compô-las): cantar as músicas que eles me devolveram,
não aquilo que eu lhes dei.
III
Acho que cheguei a gostar de cantar essas músicas porque minha
inspiração agora está tendendo para caminhos muito diferentes dos
que segui até aqui. Algumas canções deste disco são recentes (UM
DIA, por exemplo), mas eu já posso vê-las todas de uma distância
que permite simplesmente gostar ou não gostar, como de qualquer
canção. A minha inspiração não quer mais viver apenas da nostalgia
de tempos e lugares, ao contrário, quer incorporar essa saudade
num projeto de futuro. Aqui está — acredito que gravei este disco na
hora certa: minha inquietude de agora me põe mais à vontade diante
do que já fiz e não tenho vergonha de nenhuma palavra, de nenhuma
nota. Quero apenas poder dizer tranquilamente que o risco de beleza
que esse disco possa correr se deve a Gal, Dori, Francis, Edu Lobo,
Menescal, Sidney Miller, Gil, Torquato, Célio, e também, mais longe,
a Duda, a seu Zezinho Veloso, a Hercília, a Chico Mota, às meninas
de Dona Mariana, a Dó, a Nossa Senhora da Purificação e a
Lambreta.
Augusto de Campos (1974), acerca das palavras de Caetano, afirma que “no
panorama ainda difuso e confuso da moderna música popular” que ao grande
público se dividia entre o nacionalismo ferrenho das canções de protesto, o aparente
silêncio de uma postura de alienação, e o Tropicalismo — que também fazia um
protesto, à sua maneira, mas era encarado como antinacionalista por ser uma
expressão brasileira da influência da cultura internacional — “alguns compositores,
dos melhores por sinal, da nova safra musical, parece que estão se apercebendo da
cilada que lhes armavam os xenófobos conservadores” (CAMPOS, 1974, p.62).
Justamente por ser ainda um “coração de criança”, imaturo, que não sabe se
colocar, este órgão vital que, figurativamente é atrelado ao centro das emoções em
que reside a afetividade, se resume, no presente a “um vulto feliz de mulher” — os
destroços de uma possível primeira paixão avassaladora mal sucedida. O foco desta
possível paixão apenas “passou” pela vida do eu lírico, sem ter permanecido a fim
de fazê-lo feliz para sempre, tal qual nos contos de fadas. E. com isso, instaurou
uma profunda tristeza, expressa pelo “chorar sem fim” dos “olhos” da voz poética.
Mas o valor de “Domingo” residia em muito mais do que apenas seu carro-
chefe, e, acerca do álbum como um todo, Augusto de Campos também afirma:
Das doze canções que constituem o disco, em termos de autoria, oito das
canções são assinadas por Caetano Veloso — sendo, destas, uma única parceria
com Torquato Neto: Nenhuma Dor. Há também uma canção de Sidney Miller (Maria
!54
Joana), uma de Edu Lobo (Candeias), e duas de Gilberto Gil: Minha Senhora e
Zabelê — ambas em parceria com Torquato Neto.
Onde Eu Nasci Passa Um Rio é uma canção cuja letra traz uma metáfora do
amadurecimento atrelada às águas de “um rio”. O movimento destas, segundo o eu
lírico, “passa no igual sem fim”, sem ter um início ou um fim bem definidos, mas,
num movimento contínuo, assim como o sentimento por seu lugar de origem, sua
terra, conforme suas palavras, “passava dentro de mim”. Deste modo, assim como
“o rio” cumpre seu objetivo e passa a assim ser chamado “quando chega no mar”, ou
eu lírico afirma, comparando, que “o rio” de sua terra “deságua” não no mar, mas em
seu “coração” — talvez, fazendo deste, assim como o “mar”, um ser completo e
realizado.
A letra de Um Dia (1967) tem como tema principal o hiato entre duas pessoas
que se amam, justificado pelo fato de uma delas ter de ir viver num outro lugar. O eu
lírico afirma à sua amada “vê se para de chorar”, tentando dar força a esta, quando,
na verdade, demonstra apenas depender também desta mesma força — “quero,
careço, preciso / de ver você se alegrar”, dada a sua própria tristeza. Na tentativa de
minimizar a dor desta separação, os versos que constituem o refrão da canção
expressam a tentativa de mudar a forma de enxergar a situação: “eu não estou indo-
me embora / estou só preparando a hora de voltar”, mesmo antes de ter ido.
sofrimento de Rosa, adverte em claro e bom tom: “Rosa, não espera por mim”,
quebrando qualquer expectativa relativa à possibilidade de volta deste.
apenas seguir como os demais rapazes: encantado pelo seu “remelexo”, que
praticamente o hipnotiza, a ponto de ele concluir apenas afirmando: “que valha-me
Deus, Nossa Senhora”, pedindo forças a criaturas do âmbito espiritual, por seu
ânimo não lhe ser mais suficiente.
27
No texto contido no encarte do álbum, adicionado a este numa edição comemorativa.
28 Disponível em: [https://www.youtube.com/watch?v=RQxp0uJvcLs]. Acesso em 09 de janeiro de
2015, às 21:51h. “Eu gostaria de agradecer e cantar uma canção que é para mim o coração, o centro
do significado de toda atitude da música popular brasileira”. (tradução nossa)
!59
ainda ampliado, tendo em vista seu constante tributo à Bossa-Nova num ponto em
que sua carreira já estava devidamente estabelecida.
Esse samba foi composto pelo próprio João Gilberto, no início dos
anos 50. Só existe uma gravação dele, pela Marisa Gata Mansa.
Uma excelente gravação, mas, muito pouco conhecida. Por isso eu
quis cantá-lo aqui, porque eu acho que ele é um pedaço do elo
perdido entre o canto de Orlando Silva e a invenção de João
Gilberto. Mas essa invenção nada seria se não fosse a luz intensa
que se espalhou sobre ela. Uma luz de sol, cujo nome é Antonio
Carlos Brasileiro de Almeida Jobim. 29
Mais do que meramente citar o “elo perdido” entre Orlando Silva e João
Gilberto, Caetano explica com seu comentário, e exemplifica, interpretando em
sequência as canções: Lábios que Beijei (1937), de J. Cascata, que fora sucesso na
voz de Orlando Silva, Você Esteve Com Meu Bem? (1953), de João Gilberto,
conforme disse Caetano, gravada por Marisa Gata Mansa, e Chega de Saudade
(1959), de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, classicamente interpretada por Joao
Gilberto. Caetano Veloso utiliza seu show para demonstrar sua versatilidade como
intérprete — haja vista as canções de diferentes tempos e espaços do repertório
hispânico — e acaba, também, por contar um pouco da história da evolução da
música popular brasileira e até uma possível conexão entre estes dois cancioneiros,
haja vista a canção que abre o show, O Samba e o Tango (1937), de Amado Reis,
que contém os seguintes versos, bastante expressivos em relação à proposta de
Caetano para o disco de estúdio e o show em questão:
Caetano ainda gravaria ao vivo Chega de Saudade mais uma vez, no álbum
“Omaggio a Federico e Giulietta” (1998). O show registrado no disco em questão
não traz o repertório específico de nenhum álbum anterior, mas tratou-se de uma
única apresentação feita sob convite de Maddalena Fellini, irmã do cineasta
Federico Fellini e cunhada da atriz Giulietta Masina. Caetano recebera uma carta de
Maddalena, dando conta de que sua cunhada ficara extremamente emocionada pelo
fato de Caetano, seu fã brasileiro, ter feito uma música em homenagem a ela, e
convidando-o para fazer um show em Rimini.
Eu sou um velho
Mas somos dois meninos
Nossos destinos são mutuamente interessantes
Um instante, alguns instantes
O grande espelho
E aí a minha vida ia fazer mais sentido
E a sua talvez mais que a minha,
Talvez bem mais que a minha
Eu acho engraçado
Quando um certo alguém
Se aproxima de mim
Trazendo exuberância
Que me extasia
Lindeza é uma canção marcada por um arranjo e também por uma temática
desenvolvida em sua letra bastante comuns às canções da Bossa-Nova.
Coisa linda
É mais que uma ideia louca
Ver-te ao alcance da boca
Eu nem posso acreditar
Coisa linda
Minha humanidade cresce
Quando o mundo te oferece
E enfim, te dás, tens lugar
Lyra ainda sugere, de forma irônica, a quem quer que não acredite na ligação
do discurso da Bossa-Nova com o “culto da mulher”, “que leia Vinicius”, ou seja, que
entre em contato com a obra do poeta e letrista notará uma constante no que diz
respeito a esta “paixão pela mulher”, conforme afirmam
Homem e De la Rosa (2013):
A letra, por sua vez, se coloca como uma exaltação à música como um todo,
e mais especificamente, ao samba — e à “tristeza” que lhe é inerente. Acerca do
sentimento em questão, é ressaltado o fato de se tratar de uma palavra feminina, e,
a partir disso, afirma-se que “a tristeza é”, por definição poética, não apenas
perfeitamente representada pela figura de uma mulher, não no sentido de a mulher
ser triste, mas, no de ser a maior causadora do desalento — seja no homem, ou em
quem quer que seja que ame —, a ponto de ser chamada de “senhora”, termo que
dá conta não só de uma mulher casada ou vivenciando sua maturidade, mas,
sobretudo, de quem assume uma posição de superioridade ou domínio de
determinada situação, cabendo perfeitamente ao contexto amoroso.
Nesse sentido, os versos que encerram a canção dão conta de “o samba” ser,
ao mesmo tempo “pai do prazer”, pela alegria que origina, transmite e dispersa, e
também “filho da dor”, por ter sido criado pelos negros, num contexto histórico de
escravidão, como fruto dos ais de um povo cativo. Justamente, por isso, mais do que
um gênero musical, trata-se literalmente d’ “o grande poder transformador” por
excelência.
completamente diferentes entre si, mas unidas por Caetano, como mostra de sua
versatilidade e engenhosidade, num arranjo Bossa-Nova.
O samba Nega Maluca (1950), de autoria de Evaldo Luis e Fernando Lobo, foi
um grande sucesso do carnaval brasileiro de 1950, interpretado não só por “cantoras
do rádio” ligadas ao contexto da época, como, por exemplo Linda Batista e Lana
Bittencourt, mas, posteriormente, até mesmo por Amália Rodrigues, cantora
portuguesa que veio a ser chamada de “A Rainha do Fado”. Este mesmo samba
também serviu de inspiração para a criação de uma fantasia homônima, que veio a
se tornar das fantasias características do carnaval brasileiro.
Eleanor Rigby (1966), é uma canção dos Beatles — cuja autoria é atribuída a
Paul McCartney apesar de constar na clássica parceria Lennon/McCartney, contida
no álbum “Revolver”. A canção tem como título justamente o nome da mulher cuja
história é contada na letra. O verso que inicia a canção vem justamente fechar o
medley de Caetano Veloso, chamando atenção, pedindo para que se olhe para as
“pessoas solitárias”: “Ah, look at all the lonely people”.
A união das três canções numa única peça acaba afastando-as de seus
contextos originais e promovendo a construção não só de uma outra obra, como
também de um outro sentido, em que a “nega maluca” que surge com um filho no
colo, acusando o homem de ser pai deste acaba tendo não só a história desse fato
mais detalhada, como também suas características melhor explicitadas, inclusive no
que diz respeito à sua real identificação, pela letra de “Billie Jean”, que vem, no
mesmo sentido, narrando a história de uma mulher que deseja tratar da paternidade
de seu filho, mas dando mais detalhes inclusive da forma como o casal se
conheceu, a situação em que estavam, o que motivou a relação entre eles e até as
possíveis razões do rompimento.
infelizes, que, devido às suas similaridades, são vertidas por Caetano numa só peça
de Bossa-Nova.
Assim, aquilo que poderia soar controverso: o fato de um artista surgir como
fruto da Bossa-Nova e criar toda uma carreira praticamente na contramão desta via
de regra, optando por viajar pelos mais diferentes estilos e épocas, acaba por
constituir a coerência da atuação deste artista baiano.
Se, por um lado, Caetano se revela como um artista brasileiro que insiste em
dispersar, segundo um verso de uma de suas canções, “o que eu herdei de minha
gente e nunca posso perder”33, por outro lado também pode ser tomado “como um
objeto não identificado”, ao fazer brotar os mais diversos frutos a partir desta
semente comum, miscigenada por elementos de diversas outros tempos, povos e
culturas.
33
VELOSO, Caetano. Não Enche (1997)
34 VELOSO, Caetano. Tropicália (1968)
!75
Falar sobre o Tropicalismo é falar sobre uma das fases mais interessantes de
toda a carreira de Caetano Veloso, e também de um divisor de águas não apenas na
música, mas na cultura brasileira como um todo.
[...] the most important rock & roll album ever made, an unsurpassed
adventure in concept, sound, songwriting, cover art and studio
technology by the greatest rock & roll group of all time.
35
VELOSO, Caetano. O Quereres (1984)
36O mais importante álbum de rock & roll de todos os tempos, uma aventura inigualável em termos
de conceito, som, composição, arte da capa e tecnologia de estúdio da melhor banda de rock & roll
de todos os tempos (versão nossa). Disponível em: [http://www.rollingstone.com/music/lists/500-
greatest-albums-of-all-time-20120531/the-beatles-sgt-peppers-lonely-hearts-club-band-20120531].
Acesso em 12 de fevereiro de 2015, às 22:09h.
!78
primeiro disco concebido para ser ouvido de uma forma contínua, sem qualquer
intervalo entre as faixas. Foi também o primeiro a conter as letras das canções
impressas, capa dupla e até brindes como um cartão, um button de papel, uma
insígnia e um bigode de papelão similar ao dos componentes da banda.
E foi justamente no mesmo ano de 1967 que Caetano Veloso e Gilberto Gil
participaram do III Festival Internacional da Canção, promovido pela Record em 21
de outubro de 1967, defendendo, respectivamente, as canções: Alegria, Alegria e
Domingo no Parque, as quais iam totalmente na contramão da música popular
apreciada na época, ligada ao banquinho e violão da Bossa-Nova, e com letras de
cunho esquerdista, expressando protesto em relação ao regime ditatorial brasileiro
vigente.
como “porta-vozes” do movimento liderado por estes artistas, prestes a surgir. Mas,
historicamente falando, acabaram por se constituir como marco-zero da proposta
tropicalista. De qualquer modo, estas canções já destoavam completamente do
padrão de canção que agradava o público que apreciava a chamada “MMPB”, por
apresentar uma outra forma de “postura política” — diferente das canções de
protesto —, e até mesmo de “lirismo”, em comparação ao das letras de canções da
época.
Alegria, Alegria (1967) foi lançada inicialmente como single, num compacto
que tinha no seu lado B a canção Remelexo (1967), e depois foi incorporada ao
álbum intitulado “Caetano Veloso”, lançado no mesmo ano.
!80
Outro aspecto inovador que, inicialmente chocou a todos foi citar a marca de
refrigerantes “Coca-cola”, personalidades internacionais como as atrizes Claudia
!81
Se você pega “Alegria, Alegria”, que foi uma das músicas que
detonaram, né, o Tropicalismo naquele momento, você tem versos
assim: “Eu tomo uma coca-cola / Ela pensa em casamento / E uma
canção me consola”. Isso era inconcebível dois anos atrás. Dois
anos atrás o que se tinha era “A Banda”, do Chico Buarque, em que
você tem uma narrativa muito clara de uma banda passando pela
cidade e maravilhando todo mundo, né? Esse tipo de verso do
Caetano, já dois anos depois, isso que eu estou chamando de
“justaposição”. Você tem, parece que assuntos diferentes de verso
pra verso. Isso era inconcebível. Hoje você vê uma letra do Djavan,
é, as letras são todas assim. Parece... você nem entende qual é o
assunto que ele tá falando, às vezes. Você sabe, às vezes, que é
amoroso, e tal, mas você não entende a conexão de um verso pro
outro, né? Isso vem do Tropicalismo, que já usou um pouco de
influência literária, aí, não tem dúvida de que houve uma influência
literária, mas, sobretudo, uma liberdade de se fazer letra. (TATIT,
2008)
!82
Os próprios versos citados por Tatit como algo “inconcebível” frente à tradição
musical brasileira até então exemplificam a construção de uma cena, com a
focalização dos diferentes elementos que a constituem. Primeiro, a voz poética,
tomando seu refrigerante. A seguir, a câmera se desloca para sua amada, a mulher
que está a pensar “em casamento”, fazendo planos, e, ao fundo, uma canção —
trilha sonora ao fundo ou rádio ou vitrola sendo focalizado — que “consola” o homem
em questão, fazendo-o, ao ser levado pela melodia, fugir do contexto caótico em que
está inserido — seja mental ou fisicamente.
relação insólita. Isso tem muito a ver com o modo como ouvíamos os
Beatles. (VELOSO: 1997, p.169).
Ah, isso é meio difícil de definir, porque é uma... Pop é uma... Nem
sei se o que a gente tá fazendo é pop, tá entendendo? Isso é um
negócio que eu admito como termo, porque, de alguma forma, a
gente tá tendendo pra um tipo de cultura pop, quer dizer, de assumir
todas as formas da cultura massificada e tudo mais, entende? Por
exemplo, revista em quadrinhos é uma coisa pop, entende? É!
Após este comentário de Caetano, vem então a pergunta que muita gente
gostaria de fazer ao autor de Alegria, Alegria: “Veloso, o que o levou a você fazer
uma música bem moderna, pegando “coca-cola”, “guerrilha”, “Brigitte Bardot”? Como
você teve essa ideia, quando teve a ideia e quando começou a executar a sua
música?”
quando você disse que ia fazer uma música assim, não teve gente que falou assim:
mas, logo, misturar Cardinale e Coca-Cola, alguém não estranhou?”
Então, a repórter que estava junto do homem que fizera as perguntas, afirma:
“Escreveu, né? Pronto e acabou”, como se o caráter insólito atribuído à canção
pudesse ser justificado por um descuidado ou despreparo no processo de
composição. Mas, Caetano, então, replicou, afirmando:
Motta, autor de uma das canções que também concorriam, e que presenciou o
acontecimento, comenta38:
Apesar da acolhida, que passou muito longe de ser afetuosa, Caetano Veloso
permaneceu no palco, e começou a entoar a canção mesmo sob as vaias do
público, permanecendo “paradinho” no palco, e até “sorrindo”, expressando todo o
seu “carisma”, numa dispersão de simpatia que o fez, praticamente sozinho,
equiparar-se, numa posição de igualdade, em relação à intensidade da multidão
furiosa que o vaiava. Este choque — justamente por Caetano não reagir, por
exemplo, como Sérgio Ricardo e colocar-se a discutir com a plateia inflamada e até
quebrar o violão — fez com que, em pouco tempo, o som das vaias se convertesse
em aplausos, de um grande coral que, junto a ele, passou a entoar a canção. Esta,
ao seu término, foi aplaudidíssima, e Caetano, que, inicialmente fora vaiado, acabou
literalmente ovacionado, numa completa mudança de postura por parte do grande
público, que, provavelmente, se identificou com os aspectos dados como
inconcebíveis pelos representantes da tradição.
Isso tudo era apenas o início de todo um choque arquitetado em parceria com
Gilberto Gil, que, a saber, se daria através do movimento nomeado Tropicalismo.
Duarte, que era já naquela época um profundo conhecedor das artes gráficas,
tinha seus trabalhos reconhecidos devido a um caráter de ruptura, marcado pelo
exercício contínuo de transgredir, tendo por objetivo não permitir que a tradição no
âmbito do design gráfico internacionalmente falando — advinda da Suíça,
especificamente — viesse a ditar regras no Brasil, tornando-se um dogma, tendo em
vista que, segundo ele próprio, “quando vira dogma perde a vida”.
Apesar das ilustrações e tudo mais, o padrão das capas é mantido, com a
foto centralizada, o nome do artista acima, e etc. Numa tentativa de interpretação da
ilustração utilizada, à luz das letras das canções, Melo afirma que a moça pode ser
“Iracema”, protagonista do romance nacionalista homônimo de José de Alencar, que
remonta, ficcionalmente, as origens da América — caracterizada como “a virgem dos
lábios de mel” —, ou “Brigitte Bardot”, atriz francesa citada na letra de Alegria,
Alegria. Mas, por se tratar de uma mulher, poderia ser também uma representação
de Clara, ou mesmo de Clarice — as duas únicas canções do álbum, cujos títulos
são constituídos por nomes próprios femininos.
41
Disponível em: [http://www.caetanoveloso.com.br/monta_encarte.php?id_disco=67]. Acesso em 08
de março de 2014.
42 Disponível em: [http://caetanocompleto.blogspot.com.br/search/label/1967] Acesso em 25 de
fevereiro de 2014.
!92
O fato de ter sido produzida uma primeira versão do texto, a qual não fora
encontrada “na hora de sair nem nunca mais”, e uma segunda, às pressas, em que
Caetano conseguiu se lembrar e escrever novamente “o babado” que ele “pensava
ter esquecido”, deixa clara a intencionalidade do autor em relação ao caráter
ambíguo do texto, que foge completamente às regras de composição e estruturação
— quando se tem por objetivo informar algo —, mas, bem aos moldes de um dos
clássicos bordões do apresentador de TV Chacrinha: “Eu vim para confundir, e não
para explicar”.
É de sua autoria a obra “Bólide Caixa 18” que continha a bandeira com a
máxima: “Seja marginal, seja herói”, que se tornou um dos slogans da juventude
brasileira do final dos anos 60. Esta, se colocava como homenagem a vítimas da
opressão social e policial — dados como heróis —, como expressões máximas da
revolta individual inerente à sociedade, a qual passa a ser ocultada e reprimida por
meio do processo civilizatório.
Outro dos grãos culturais dos quais o Tropicalismo e a canção Tropicália são
fruto é justamente o Cinema-Novo. Mais especificamente, o filme “Terra em
Transe” (1967), de Glauber Rocha. A obra fílmica em questão se coloca como uma
espécie de parábola relativa à história do Brasil entre os anos de 1960 e 1966, à
medida que metaforiza as diferentes tendências políticas ligadas a este contexto em
personagens, numa crítica a todo o sistema.
Ainda que marcada por uma visão mais atemporal, mas, nesta mesma
direção, Tropicália se inicia com uma narração do seguinte trecho:
litoral baiano brasileiro, o trecho em questão nada mais é que o fruto de um teste de
som realizado no microfone do estúdio onde Caetano gravava seu disco — aliás, o
“Gauss” citado no trecho era justamente o técnico de gravação, Rogério Gauss. A
narração em questão adianta o tom paródico da interpretação tropicalista do Brasil
— do passado até seu presente.
A voz poética revela uma posição intermediária, entre “os aviões” que passam
“sobre a cabeça” e “os caminhões” que se locomovem “sob” seus “pés”. Esta
disposição sugere o avanço científico e tecnológico atrelado à modernidade no alto,
representado pelos “aviões”, o caráter arcaico, ultrapassado, na posição mais
inferior, “sob os […] pés”, pelos “caminhões”. Ao centro, o “nariz” apontando em
oposição aos “chapadões” — uma síntese das diversas e diferentes realidades
rurais do Brasil — revela uma posição contrária, que pode ser lida como urbana,
mais desenvolvida e mais civilizada, até certo ponto.
que sugere o aspecto rúptil não da capital em questão, mas dos poderes, da política
nela centralizada.
disso, é também o estado de origem de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa e
muitos outros representantes do Tropicalismo.
Estas, por sua vez, são justamente os artistas ligados ao álbum, desde
Caetano Veloso, Gilberto Gil, Torquato Neto e Capinam — compositores e
intérpretes das canções —, Os Mutantes, Nara Leão — intérpretes das canções
escritas pelos cancionistas mencionados —, Rogério Duprat — arranjador que se
tornou o George Martin do Tropicalismo, e até mesmo João Gilberto, influência
primeira dos cancionistas baianos, e que não poderia faltar em seu manifesto.
uma espécie de divindade, que, estando num plano superior, o mero fato de olhar,
prestar atenção — demonstrando interesse e respeito, diferentemente de grande
parte do público, defensor de uma tradição, contrariamente a um dos principais
representantes desta — se coloca como uma espécie de bênção, em termos não só
de aprovação, mas de proteção em meio ao cenário caótico no qual se inseria o
Tropicalismo.
O fato disso tudo ser expresso num texto marcado pela estrutura dramática
pode sugerir a assunção de papéis dos artistas baianos — e até da intérprete
carioca tida como um dos ícones da Bossa-Nova, Nara Leão — no cenário musical e
cultural brasileiro.
Coração Materno (1937) era uma canção antiga já naquela época, de autoria
de Vicente Celestino, que foi também um dos cantores brasileiros de maior
relevância do início do século XX.
!101
O comentário de Rita Lee deixa clara a razão de ela atribuir a Caetano e Gil o
mérito por ela ter tido coragem de entrar para o ramo da música, vindo, futuramente,
a ganhar notoriedade e se configurar como uma das mais notórias artistas
brasileiras femininas — cantora e compositora — ligadas ao rock.
Por sua vez, Nara Leão, cujas conversas conosco revelavam sua
total independência em relação aos preconceitos anti-Tropicália
exibidos por seus ex-companheiros de bossa-protesto e pela plateia
de Pra Ver a Banda Passar (programa que ela comandava ao lado
de Chico Buarque na TV Record), encomendou-nos, a mim e a Gil,
uma música que tivesse como tema ou inspiração um quadro do
pintor Rubens Gerchman, o qual representava, em traços distorcidos
com dolorosa pureza, o que parecia ser a ampliação de um retrato
três-por-quatro de uma moça pobre que — dizia o texto-título — fora
dada como perdida, emoldurada, à maneira kitsch dos retratos de
sala de visitas suburbanas, por vidro espelhado com decoração
floral. Gil fez a música — um bolero entrecortado de iê-iê-iê — e eu
fiz a letra da canção, que manteve o nome “Lindonéia” e a história da
suburbana desaparecida. O quadro de Gerchman, por ser uma
espécie de crônica melancólica da solidão anônima feita em tom pop
e metalinguístico, tinha parentesco direto com o tropicalismo musical,
e a canção, nós supúnhamos, realimentaria sua carga poética.
(VELOSO, 1997, p. 274)
Nara Leão, apesar de ser uma figura ligada a movimentos como a Bossa-
Nova — integrada à literal origem do movimento, com o encontro de alguns de seus
maiores artistas na casa de Nara — e teatro de arena — como a peça “Opinião”,
ligada à tradição musical brasileira —, se mostrava independente, liberta dos
possíveis rótulos que a pudessem pender, deixando-a estática, como porta-voz de
uma única causa e movimento e, sobretudo, olhando com desdém ou preconceito as
propostas da Tropicália.
Parque Industrial é uma canção de autoria de Tom Zé. Apenas o título em si,
que constitui-se como uma referência direta ao livro homônimo de Patrícia Rehder
Galvão, mais conhecida pela alcunha de Pagú — figura de destaque no movimento
modernista, iniciado na paradigmática Semana de Arte Moderna, em 1922 —, que
foi a primeira mulher a ir para a prisão no Brasil por motivos políticos, já antecipa
sobremaneira o tom da canção.
Geleia Geral (1967) é uma canção de autoria de Gilberto Gil e Torquato Neto,
cujo título foi inspirado numa expressão do poeta Décio Pignatari, que surgiu44 num
Geleia Geral (1967), cuja letra foi escrita por Torquato Neto, e musicada por
Gilberto Gil, se coloca justamente como uma expressão desta “imagem mítica”
mencionada por Favaretto, como um agrupamento de diferentes elementos relativos
à cultura nacional, passado pelo filtro do ideal de revolução — em seu âmbito
cultural —, defendida pelos tropicalistas, pela menção de elementos como: o “Jornal
do Brasil”, a casa de espetáculos “Canecão”, as escolas de samba “Mangueira” e
“Portela”, o verso de Oswald de Andrade: “A alegria é a prova dos nove”, a dança
típica do folclore brasileiro “bumba-meu-boi”, a designação anterior à chegada de
Cabral, ligada às regiões que, num futuro próximo, formariam o Brasil, “Pindorama”.
45A sentença que continha a expressão era: "Alguém tem de ser medula e osso na Geléia Geral
brasileira"
!106
Baby (1967), de Caetano Veloso, é uma canção que se coloca como uma
declaração de amor numa linguagem jovem e moderna para a época, a começar
pela expressão em inglês que dá título.
Inspirada no hit de Paul Anka Diana (1956), esta canção de Caetano Veloso
contém uma intertextualidade musical em termos de arranjo. Quem ouvir com
atenção, logo perceberá que os acordes que embalam o refrão de Baby — “Baby,
baby, eu sei que é assim” — são literalmente uma citação do refrão: “Oh, please stay
by me, Diana”.
Desse modo, “por entre fotos e nomes”46 que à primeira vista se ligam apenas
a uma declaração de amor, subjaz a expressão da “dominação” da cultura norte-
americana em relação à brasileira, e a familiaridade como os mais diversos
elementos — até mesmo em termos de vocabulário — já se colocavam como algo
comum, característico do dia-a-dia dos jovens brasileiros.
Un navegante atrevido
Salió de Palos um día
Iba com três carabelas
La Pinta, la Niña y la Santa María
Mais uma vez, citando e apropriando-se do que poderia ser já naquela época
ser negativamente classificado como brega, Três Caravelas evidencia o caráter de
redescobrimento de um Brasil talvez esquecido, e, sobretudo, numa postura como a
de Cabral, demarca um território no campo da música e cultura popular,
estabelecendo um diálogo com as culturas dos demais países sul-americanos,
falantes do espanhol.
!108
Enquanto Seu Lobo Não Vem (1967), de Caetano Veloso, apesar das
referências às fábulas, que, à primeira vista, poderiam apontar para uma temática
mais infantil, se constitui uma das canções de cunho mais politizado escritas por
Caetano no contexto da Tropicália.
Bat Macumba (1968) é uma canção escrita por Caetano Veloso e Gilberto Gil,
seguindo à risca os moldes da poesia concreta.
Batmakumbayêyêbatmakumbaobá
Batmakumbayêyêbatmakumbao
Batmakumbayêyêbatmakumba
Batmakumbayêyêbatmakum
Batmakumbayêyêbatman
Batmakumbayêyêbat
Batmakumbayêyêba
Batmakumbayêyê
Batmakumbayê
Batmakumba
Batmakum
Batman
Bat
Ba
!110
Bat
Batman
Batmakum
Batmakumba
Batmakumbayê
Batmakumbayêyê
Batmakumbayêyêba
Batmakumbayêyêbat
Batmakumbayêyêbatman
Batmakumbayêyêbatmakum
Batmakumbayêyêbatmakumbao
Batmakumbayêyêbatmakumbaobá
O termo “bat” pode apontar tanto para o som da batida dos tambores de um
ritual ligado a religiões afro-brasileiras como o candomblé e a macumba, quanto
para sua tradução do inglês — “morcego”, mas, é curioso perceber que, tanto no
processo de montagem como no de desmontagem do verso, vão se originando —
sonoramente — outros termos, como, por exemplo, o “iê iê” que pode estar atrelado
ao “iêiêiê” característico do gênero musical atrelado ao rock britânico, e totalmente
associado à Jovem Guarda, na época. O termo “Bat” e a primeira sílaba de
“macumba” — “Batman” — quase forma o nome de um herói das revistas em
quadrinhos da Marvel Comics, “Batman” — designado como “o homem-morcego”, e
essa pluralidade de referências que se desvela a partir do único verso que constitui
a letra da canção, vai diretamente ao encontro da proposta tropicalista e do próprio
“antropofagismo oswaldiano”, recuperado no movimento em questão.
A Tropicália — tanto no que diz respeito ao disco que se impôs como obra
coletiva quanto ao movimento em si — deu uma visibilidade maior a Caetano Veloso
também com compositor, tendo em vista que ele escreveu canções que, já naquela
!112
época, se tornaram grandes sucessos nas vozes de outros intérpretes, sem jamais
ter sido gravadas por ele.
Um exemplo específico, que pode ser citado como um caso especial é Divino
Maravilhoso (1968), de Caetano Veloso e Gilberto Gil, genialmente interpretada por
Gal Costa em 14 de novembro de 1968, no IV Festival de Música Popular Brasileira
da TV Record, numa performance por meio da qual se desvelou uma intérprete
completamente diferente da evidenciada em “Domingo”.
Fica clara a sugestão no que diz respeito à rebeldia dos jovens, tendo em
vista que é ressaltada sua coragem e intrepidez, como pessoas que devem agir e
não perder tempo vendo a vida passar e apenas reduzir seu poder de mobilização e
atuação a uma atitude completamente passiva, de massa de manobra que é
controlada e não controla coisa alguma, dedicando seu tempo apenas a “temer a
morte”, sem nada fazer.
É Proibido Proibir, desde seu título, deixa clara a ousadia de Caetano Veloso
por, num contexto marcado pelo regime militar e pelos atos institucionais repletos de
proibições e cerceamento de direitos garantidos na constituição ao povo brasileiro,
participar de um festival da visibilidade e repercussão que tinha o festival promovido
pela TV Record, com uma canção de autoria própria cujo título e refrão se colocam
como um brado de liberdade acerca da proibição de quaisquer proibições possíveis
— e tão presentes naquele contexto. Foi uma ação bastante corajosa, e,
obviamente, gerou as mais variadas e exaltadas reações, desde o que tange público
até as autoridades brasileiras da época.
Se Caetano Veloso já tinha chocado muita gente, sem querer, por conta de
seu caráter displicente no festival de 1967, em que interpretou Alegria, Alegria, com
o arranjo contendo a guitarra elétrica, o grupo de rock argentino acompanhando-o,
mas, também no que diz respeito à sua figura, principalmente pela forma como
estava vestido — não usando smoking, como a maioria dos seus colegas —, no
festival de 68 ele real e intencionalmente se propôs a provocar — e chocar — a
plateia da MPB, conforme ele mesmo relata:
Vocês estão por fora! Vocês não dão pra entender. Mas que
juventude é essa? Que juventude é essa? Vocês jamais conterão
ninguém. Vocês são iguais sabem a quem? São iguais sabem a
quem? Tem som no microfone? Vocês são iguais sabem a quem?
Àqueles que foram na Roda Viva e espancaram os atores! Vocês não
Pálpebras de neblina
Pele d’alma
Lágrima negra tinta
Lua lua lua lua
Giulietta Masina
O clima frio somado a toda uma emoção quase impedira Caetano de cantar.
Mas, algo mais forte, atrelado inclusive ao “sentido” da vida do cancionista baiano foi
mais forte, culminando numa espécie de dedicação a elementos totalmente díspares
entre si, mas completamente coerentes do ponto de vista da formação pessoal de
Caetano:
“Dama das Camélias” para Pina Bausch, “Patricia” para Anita Ekberg,
“Que Não Se Vê” para Marcello Mastroianni, “coração Materno” para
Tonino Guerra, tudo para Fellini e Giulietta, minha Daia, Nossa
Senhora da Purificação e Lambretta.
Fellini; o renomado ator italiano Marcello Mastroianni, que estrelara tanto “A Doce
Vida” quanto “8½” (1963), também de Fellini, e, logicamente, a totalidade para o
casal Fellini e Masina — foco da homenagem inicial.
No entanto, vêm à tona também referências não do contexto das artes, mas,
aquela que fora apelidada de “minha Daia” por Caetano, sua tia, e a santa padroeira
de sua cidade natal e até o veículo marcado por um baixo custo de produção,
manutenção e com um maior grau de proteção que a motocicleta — veículo do qual
a “Lambretta” era uma espécie de versão.
Nesse sentido, justamente num “P.S.” de 1994, Caetano, após uma breve
retomada, confessara:
Reside no texto de Caetano uma crítica feroz aos ditos apreciadores de arte
— no caso, o cinema — que, no entanto, não passam da mais rasa superfície da
obra de arte em termos de leitura e compreensão, mas apenas repetem comentários
chavões, e tão somente preocupam-se com os aspectos menos importantes do
ponto de vista da análise: frivolidades acerca da vida pessoal dos atores, daqueles
dos quais possivelmente se saiba o nome — por estar constantemente na mídia.
!124
Sinto decepcioná-los, mas aqui vai como uma notícia: não é o “ator”
e sim o “diretor”, o importante num filme. O cinema é uma estética,
uma arte. E o diretor está para a obra de arte fílmica assim como o
pintor está para o quadro. Os materiais de que dispõe um realizador
cinematográfico são a câmera, o celuloide, os cenários, as coisas, os
atores etc.; como são materiais à disposição d’um pintor a tela, os
pincéis, as tintas. Pus propositadamente os atores entre os
“materiais” para frisar que dentre os estudiosos de cinema eles são
considerados como simples objeto na mão do realizador. O que é
mais um exagero usado como antídoto do “estrelismo” do que a
realidade mesma. (VELOSO, 1960)
Ao valorizar o realizador por trás de toda uma estética contida nos filmes, uma
vez mais Caetano apela a um nível mais profundo em termos do apreço de obras
fílmicas, e exige de seu possível público leitor o mesmo nível de sofisticação.
Caetano inicia seu texto contextualizando, a seu ver, uma fase atual e mais
frutífera do cinema:
Além do entendimento do artista baiano por filmes, o trecho acima revela todo
um conhecimento — fruto da paixão — pelo cinema, a ponto de analisar períodos de
maior ou menor proveito em termos de produção cinematográfica de qualidade. O
crivo de Caetano se propõe até à avaliação de “novos realizadores geniais” — os
dois franceses: o então estreante e o já reconhecido fundador do movimento
cinematográfico Nouvelle Vague —, como também ao elogio do já consagrado
diretor de teatro, ópera e cinema, e também do grande nome do neorrealismo
italiano.
Caetano também se propôs a fazer uma lista dos melhores filmes exibidos em
Santo Amaro no ano de 1961, no texto “Os Melhores do Ano”, literalmente, conforme
ele mesmo afirmara “teimosamente”, tendo em vista que “não foram os filmes que
mais agradaram ao grande público” e, mais do que isso, compunham a lista títulos
“que a maioria não conhece”.
Caetano abre seu texto afirmando se tratar de “um filme cheio de intenções”,
e, ao tratar destas, acaba por sintetizar os propósitos do Cinema Novo como um
todo:
Para pautar sua análise do filme de Glauber Rocha, Caetano estabelece uma
comparação com o drama “A Grande Feira” (1961), de Roberto Pires, filme que
integra o chamado “Ciclo Baiano de Cinema” ao lado de “Redenção” (1959) e
“Tocaia no Asfalto” (1962), todos do mesmo diretor.
Caetano chega a citar canções Tropicalistas como Enquanto Seu Lobo Não
Vem, cuja letra, além do intertexto dos contos infantis, revela também uma dimensão
cinematográfica, como uma possível história a ser contada por meio de um filme.
Ocorre o mesmo como o super-herói antiamericano e anti-imperialista Superbacana,
e até com a canção-manifesto Tropicália. Marcadas por um traço descritivo, que
permitem ao ouvinte visualizar as personagens, cenários e situações cantados na
narrativa-poética da letra, todas estas, e mais muitas das canções de Caetano
Veloso apresentam um diálogo muito forte com o cinema e as artes visuais. E não só
as relativas ao âmbito nacional, como o Cinema Novo de Glauber Rocha, ou o
Cinema Marginal de diretores como Rogério Sganzerla, Júlio Bressane, João
Silvério Trevisan, mas, também o vanguardista-político de Godard e o neorrealismo
italiano de Fellini.
Uma das canções inéditas contidas neste álbum é Cinema Novo (1993), que,
trinta anos depois, se coloca praticamente como um hino de louvor a uma das
principais influências que motivaram a concepção do Tropicalismo.
Os versos que abrem a canção dão conta do sentido, do que “o filme quis
dizer”. E a resposta a este questionamento implícito é justamente: “Eu sou o samba”.
O fato de um filme — síntese de toda uma coletividade atrelada à produção
cinematográfica brasileira — poder ser definido definir como “samba” já seria
bastante nacionalista, tendo em vista a importância deste ritmo na cultura brasileira.
Mas, o que acentua este caráter é justamente o fato de se tratar exatamente do
verso que abre a canção A Voz do Morro (1955), de Zé Keti.
Acerca dos trabalhos de Caetano Veloso como ator, Ramos (2000), comenta
“Tabu” (1982) foi o primeiro dos filmes de Bressane estrelados por Caetano,
no qual ele interpretou o papel de Lamartine Babo, um dos mais significativos
compositores da canção popular brasileira dos anos 30 e 40.
Esta relação filial não reside apenas na ficção da letra da canção, mas na
intertextualidade estabelecida com a marchinha Chiquita Bacana (1949), de Alberto
Ribeiro e João de Barro.
Júlio Bressane em seu filme, “Tabu” praticamente faz uma colagem de cenas
de um filme ligado ainda ao contexto do cinema mudo, homônimo, de 1931, do
cineasta alemão Friedrich Wilhelm Murnau. O ato de Bressane não deixa de se
constituir como uma devoração cultural, ao colocar a cena com uma trilha sonora tão
caracteristicamente brasileira.
Assim, a obra fílmica em questão, longe dos enredos marcados por narrativas
lineares caracteristicamente hollywoodianos, se comparada à pintura, estaria longe
de um retrato fiel de determinada imagem — como forma anterior à fotografia — mas
poderia ser definida como uma representação altamente abstrata.
Garcia ressalta o fato de não só a cena da dança das nativas ter sido
assimilada no filme de Bressane, mas também a primeira, que continha um índio —
fator que, somado ao título comum dos filmes, reforça o diálogo entre estes.
Esse uso que ele fez [...] daquelas cenas do Murnau e as cenas de
carnaval, essa justaposição, isso repercute fundamente um outro
ponto do Manifesto Antropófago, que é “a conversão permanente do
tabu em totem”. E daí que chama o filme “Tabu”. [...] Esse filme do
Bressane, aliás, como outros filmes do Bressane é exatamente
centrado no tabu. Quer dizer, de como o tabu é dissolvido: no filme
dele é criticado, a sexualidade, a floresta, a música, tudo isso junto
produz um descongelamento da norma e daquilo que estaria
estabelecido como moralmente a norma, a convenção. [...] A
passagem entre os espaços abertos, sempre do Rio de Janeiro e da
floresta. Os espaços fechados, do prostíbulo, do botequim, etc. Esse
jogo de aberto e fechado é uma corrosão dos dois polos, e uma
interconversão numa outra coisa que, alegoricamente, alude sempre
a este outro Brasil, ou, o outro do Brasil, que é alegorização. [...] O
Júlio leva aos extremos a alegorização tropicalista. (FAVARETTO,
2000)
“Onda Nova” (1983) é um filme cujo elenco é composto por nomes como:
Carla Camurati, Vera Zimmermann, Tânia Alves, Regina Casé, e até o próprio
Caetano Veloso. O roteiro e a direção são creditados a José Antônio Garcia e Ícaro
Martins. Uma das temáticas abordadas no filme diz respeito justamente à
diversidade sexual, e está ligada ao dia-a-dia de garotas que fundaram um time de
futebol feminino, chamado “Gayvotas Futebol Clube” que vem a ser patrocinado por
!139
Caetano Veloso, numa das únicas cenas em que aparece — e que, nem por
isso deixa de ser marcante no filme—, entra num táxi acompanhado de uma fã, e
passa a se atracar com ela dentro do carro. Sentados no banco de trás, e aos beijos
e abraços, eles percorrem a cidade de São Paulo, passando por pontos como o
Trianon, o Minhocão e até o bairro da Liberdade. A sequência é quase cômica, pelo
fato de que, a cada parada, eles pedem ao motorista para que que ele continue
rodando, e cada uma dessas paradas é marcada também por uma alteração da
trilha sonora.
!140
Esta tem atributos como “exata”, “que não tem dúvida” — ou seja, decidida,
segura — ressaltados. A seguir, a união do enunciador a esta mulher passa a ser
descrita. Inicialmente como “fogo puro”, fruto de uma paixão avassaladora e uma
atração ímpar, mas, ao mesmo tempo, “amor total”, um sentimento pleno e
verdadeiro permeando esta relação.
O amor entre os dois é dado como algo inédito, “padrão futuro”, definido, ao
mesmo tempo por “carinho” e “paixão”, demonstrações do afeto e da atração que os
unia, e também, “eficácia” e “técnica”, como o cumprimento de uma função
determinada, a prática esperada a partir de uma teoria, elementos que destoam do
!141
Rapte-me camaleoa
Adapte-me a uma cama boa
Capte-me uma mensagem à-toa
De um quasar pulsando loa
Interestelar canoa
Quando foi nessa altura, eu, depois de fazer vários projetos que não
levei adiante, me surgiu a ideia de fazer. Eu vi, no filme do Rogério
Sganzerla, a Aracy de Almeida cantando a música do Noel: Não tem
Tradução, em que ela fala: “o cinema falado é o grande culpado...”.
Quando eu ouvi essa frase, com as imagens, assim, eu logo pensei
na ideia de um filme que fosse assim, em que as pessoas falassem,
como no livro “Três Tristes Tigres”, de Cabrera Infante. Foi uma das
primeiras ideias que me vieram. Eu pensei, podia ser um filme assim.
(VELOSO, 2003)
O samba Não Tem Tradução (1933), de Noel Rosa, e interpretado por Aracy
de Almeida, é colocado pro Sganzerla justamente como trilha sonora do trecho final
da cinebiografia, permeado por imagens de objetos pessoais, cartas e fotos do
sambista carioca. Mas, a influência do samba em questão em relação ao “Cinema
Falado” de Caetano extrapola o contexto específico do filme de Sganzerla e remonta
a obra de Noel Rosa, e mais especificamente, o contexto de produção da canção em
questão.
sua mãe dona Canô e seu irmão Rodrigo Veloso recitam, cantam ou
devaneiam. Thomas Mann, Heidegger, Guimarães Rosa, Godard,
Fellini, Freud, Fidel Castro, Velásquez escorrem da boca dos amigos
e familiares em primeiro plano. (RAMOS, 1997, p.560)
relativos à sétima arte, tendo como trilha sonora a versão em português da canção
principal do filme, cantada por aquela que foi considerada a “rainha do rádio” e que
ganhara popularidade justamente ao interpretar marchinhas de carnaval.
Estes dois casos e tantos mais contidos no filme são expressões artísticas —
literatura, cinema, música — que dão conta da miscigenação do povo brasileiro e
sua respectiva cultura.
De fato, “Cinema Falado” tem muito em comum com muitas das “longas
canções dissertativas” compostas por Caetano Veloso — as quais, ao mesmo
tempo, dão prova de sua erudição e de seu caráter crítico, político, em geral, mas
também, fazem com que Caetano seja alvo de críticas ou até mesmo se torne base
de piadas que o satirizam, tomando-o como um pretenso pseudo-intelectual
verborrágico55 em qualquer manifestação.
55 A esse respeito, Caetano Veloso, ironicamente, apenas rebateu afirmando: “Não é tão mal assim
ser um pseudo-intelectual de miolo mole. Talvez não seja propriamente pior do que ser um verdadeiro
intelectual de miolo duro.” Disponível em: [https://www.youtube.com/watch?v=CBjfFRIieSs — 0;09 —
0:18]. Acesso em 11 de abril de 2015, às 23:31h.
!148
(a)o público — grande ou pequeno — (a) uma reflexão, seja pela identificação, seja
pelo estranhamento — pelo agrado ou pela provocação.
Num dado momento do filme, Caetano fala com Andrade, num tom quase que
de brincadeira, pelo fato de que ele terá de ficar em silêncio a fim de descansar a
voz, após ter feito um show num horário pouco convencional, no meio da tarde. Em
meio a este pedido, Caetano comenta:
[...] Tenho que ficar calado agora. Você vai fazer agora um filme de
Bergman: “O Silêncio”. E outro de Antonioni comigo. Aquele cara
calado, câmera parada. Uma parede e uma cara de uma pessoa.
Antonioni. Eu acho que o Antonioni é divino. Ele tem... Pelo menos
dois filmes são obras-primas: “L’ avventura” e o “Passageiro
Profissão Repórter”. No “Passageiro Profissão Repórter” tem aquele
plano sequência-final que é... ‘Cê já viu esse filme? Porque tem um
plano-sequência que a câmera começa na cara do Jack Nicholson,
ele deitado na cama assim, dormindo, e a câmera então vai andando
pelo quarto, sai pela janela, vira assim, e sai pela janela mesmo.
relação à sua própria vida, ao cobrir uma guerrilha na África resolve assumir a
identidade de um colega seu, logo após a morte deste. Este fato fará com que David
se envolva numa perigosa trama.
57Visão do silêncio / Canto vazio / Página sem palavras / Uma carta escrita acima de um rosto / De
pedra e vapor / Amor / Inútil janela (tradução nossa).
!151
58Eu me sinto muito como mais um irmão de Caetano, como se ele fosse meu irmão mais velho.
(32:01 — 32:05)
!152
O apreço de Caetano Veloso pelo ato de cantar, entoar uma canção, já foi por
ele reiteradamente declarado ao longo dos anos literalmente em prosa e verso e
vem sendo demonstrado pelo próprio exercício de sua função.
E talvez justamente o gosto por cantar ajude a explicar por que Caetano
Veloso manifeste por meio de canções seu caráter plural, explorando ao máximo o
leque de opções desta forma de composição em termos de expressividade. Nesse
sentido, é Wisnik quem afirma:
De fato, ao voltarmos nosso olhar não só para a obra, mas para a atuação de
Caetano no campo da canção, realmente encontramos uma grande dificuldade no
que diz respeito a “lembrar um gênero ou setor da música popular” que não tenha
sido visitado por ele na posição de intérprete. Trata-se de um movimento contínuo
que põe em xeque os limites entre o tradicional e o popular, o velho e o novo, o
aclamado e o brega.
Chartier (2001) pontua que o fator que estabelece os limites entre a liberdade
de criação por parte do autor e as possibilidades para um leitor que estabelece uma
relação com o texto está ligado a contingências sócio históricas, marcadamente
variáveis e diversas entre si. Justamente por isso, este ato prescinde a
transcendência de limites e o estabelecimento de um processo, uma linha tênue ou
corda bamba, entre a restrição e a transgressão.
culminar numa apropriação tão singular que chega a quase por em xeque a
estabilidade da canção e a própria noção de autoria.
Além de gostar de “ser”, dando vida ao assumir uma dicção similar, Caetano
Veloso como intérprete visitou os repertórios e deu voz à canções de todas estas
figuras citadas por Tatit, e também de inúmeras outras.
!157
Grosso modo, os intérpretes citados por Tatit podem ser divididos em três
grandes categorias: os nacionais, os de língua espanhola e os de língua inglesa.
Mas, a amizade entre os dois rendeu duas canções em especial: Debaixo dos
Caracóis do Seus Cabelos (1971) e Força Estranha (1978). A primeira delas,
Roberto Carlos escrevera em homenagem a Caetano, durante os anos do exílio
deste. Na letra da canção, o autor vislumbra o cenário do retorno de seu amigo ao
Brasil, em especial, ao litoral de sua tão amada terra-natal, a Bahia:
E, nesse sentido, a canção de Chico cai como uma luva: o tom de alguém
angustiado a ponto de estar descrente, possivelmente afogando suas mágoas na
bebida, e com isso, passando a falar o que provavelmente não devia ou poderia
enquanto sóbrio. O refrão motivador acerca do fato de que “Deus dará” é
literalmente colocado em xeque. Afinal de contas, as expectativas dos otimistas ou
dos que ainda têm fé se ligam a uma ação divina no sentido de resolução de seus
problemas. No entanto, a voz que entoa a canção, imersa num pessimismo ímpar,
se propõe a pensar não nesta sorte, mas no revés: “E esse Deus não dar?”
Isto ficou tão marcado para os fãs de Caetano que no CD/DVD “Caetano
Veloso: Multishow Ao Vivo: Abraçaço” (2014), no qual Caetano interpreta a mesma
canção, é a plateia quem completa este verso criado junto a Chico. Caetano entoa o
fechamento de sua canção: “E quero que você venha comigo”, ao que, inicialmente
apenas a plateia, e depois também Caetano completa, num coro: “Todo dia”.
estas, podemos destacar Tom Jobim (com quem Chico e Caetano cantaram Águas
de Março — ao que Tom, ao Piano, sozinho, entoara Coração Vagabundo), Paulinho
da Viola, RPM, Ney Matogrosso e até Mercedes Sosa.
Após estes, Tatit passa a citar figuras de outros estilos e épocas, os quais
Caetano revisitou com suas interpretações. A primeira delas é Carmem Miranda, a
intérprete que ficou conhecida pela alcunha de “Pequena Notável”, e que teve
alguns de seus maiores sucessos reinterpretados por Caetano.
Aliás, acerca desta figura notável — que já havia sido mencionada por
Caetano na letra de Tropicália — é o próprio Caetano quem comenta:
então inéditos na canção popular brasileira, mas que ao serem introduzidos, com o
passar do tempo se consolidaram e são hoje característicos da mesma.
Além disso, Caetano em toda sua careira, tem mantido um diálogo muito
aberto e constante com a cultura de países de língua inglesa como os EUA e a
Inglaterra, interpretado canções neste idioma e até composto canções de sua
autoria também na referida língua. Ao fazer isto, Caetano está fazendo nada mais ou
menos que assumir a mesma postura que inicialmente criticava em Carmen
Miranda, e, com isso, provando o possível resultado positivo de uma mudança de
paradigmas, e que Narciso pode não achar feio o que não é espelho64, mas, pelo
contrário, pode encontrar belezas até mais vigorosas.
64 Na contramão de seu verso “´É que Narciso acha feio o que não é espelho”, da canção Sampa,
ligada ao mito do personagem mitológico referido.
!164
65 Aliás, nesse sentido, cabe citar outro hit de Carmen Miranda, intitulado “South American Way”,
ligado a esta temática.
!165
enriquecer ainda mais não só o trabalho de Caetano Veloso, como também sua
postura política de artista, o seu crivo crítico de formador de opinião.
Vatapá, oi
Caruru
Mungunzá
Tem umbu
Pra ioiô
O próximo artista mencionado por Tatit é ninguém menos que um dos maiores
ícones da música brasileira das décadas de 30 e 40, que também passou por este
filtro interpretativo de Caetano Veloso: Vicente Celestino.
É o próprio Caetano quem revela que este fato estava ligado a um “plano [...]
totalmente tropicalista”:
interpretação de Celestino. Mais do que uma mera tentativa de imitação, este fator,
por um lado reforça o caráter ultrapassado da canção, tendo em vista que, com o
advento da Bossa-Nova, o aspecto que passou a marcar a emissão dos cantores foi
justamente a contenção, que culminava em notas lisas e de intensidade bastante
baixa, quase num sussurro, e, por outro, exalta a beleza deste tipo de interpretação
— e das grandes vozes dos intérpretes — já não mais praticada naquele contexto.
para o par romântico que protagoniza o filme: Você Não Me Ensinou A Te Esquecer
(1979), de Fernando Mendes. Este é outro compositor e intérprete ligado a um
passado já naquela época, que fizera um sucesso considerável, mas, tendo entrado
para a categoria classificada como “brega”, tornou-se desconhecido para as
gerações posteriores — dentre as quais, a de jovens que apreciaram a interpretação
de Caetano Veloso a ponto de lhe atribuir também a autoria da canção.
Esta canção fez sucesso interpretada por seu compositor em 1979, e já havia
sido regravada por duplas sertanejas como Chrystian e Ralf, e Bruno e Marrone.
Mas, o sucesso que fizera vinte e cinco anos após o seu lançamento, na voz de
Caetano Veloso, foi algo até então sem precedentes em relação à canção. Inclusive,
esta versão foi indicada ao Grammy Latino como Melhor Canção Brasileira de 2003.
A letra, por sua vez, também traz elementos deste estilo: um canto quase que
percussivo de letras essencialmente onomatopaicas atreladas à percussão, de
maneira a servir de referência à dança e aos demais movimentos do corpo, solto ao
ar livre. Ora, Meia Lua Inteira tem sua letra marcada por elementos assim, conforme
os versos transcritos abaixo, do refrão da canção:
O espaço marcado pela “terra ardendo qual fogueira de São João” devido à
falta de água e o calor extremado, do habitante deste território, que, num desespero
extremado chega a questionar “a Deus do céu” acerca do porquê de “tamanha
judiação”, em que até a ave chamada “asa branca” — que serve de título à canção
— característica da região, “bateu asas e voou” são empregados como uma
metáfora da condição real de Caetano Veloso. Este, imerso num Brasil que sofria as
consequências de um governo ditatorial — assemelhando-se à terra seca e
infrutífera do sertão em termos de liberdade artística e de expressão —, ao bradar
não a qualquer divindade, mas protestar em relação a seus compatriotas, em refrões
de canções como É Proibido Proibir, fora deportado, tendo sido obrigado a partir,
assim como a ave da canção de Gonzaga e Teixeira, para um outro território, em
busca de sobrevivência, não apenas como criatura, mas como ser pensante, artista
que sempre tem algo a dizer e expressar. Assim, a água está para a sobrevivência
da ave em questão da mesa maneira que a liberdade para um artista como Caetano.
Tapinha (2000) tem sua letra permeada pela repetição do verso “Um tapinha
não dói”, expressão que pode tanto estar ligada ao consumo de drogas — ação
popularmente exprimida pela expressão “dar um tapinha” — quanto à sua acepção
mais literal, no sentido de um ato de violência, no caso, de um homem em relação a
uma mulher. Neste âmbito, o ato de violência não seria assim encarado pela vítima,
mas estaria atrelado a um contexto de intimidade sexual, sendo, inclusive,
requisitado por esta.
!173
a possibilidade de “considerar que letras de funk como a desta música podem até
ser de mau gosto, mas não incitam a violência.”67
67
Disponível em: [http://oglobo.globo.com/cultura/funk-um-tapinha-nao-doi-nao-incita-violencia-diz-
justica-8916481]. Acesso em 28 de julho de 2015, às 20:21h.
68 Grifos nossos.
!175
O samba também foi o estilo musical escolhido por Caetano para a adaptação
de poemas em canção. É o caso de Escapulário (1975), do disco “Jóia” (1975) e que
fez parte do set list de “Multishow Ao Vivo: Abraçaço”, não constando no CD, mas
apenas no DVD.
Uma das figuras-chave deste estilo musical que teve alguns de seus
sucessos e composições interpretados por Caetano foi nem mais nem menos que o
próprio Noel Rosa.
Caetano interpretara num dueto com Zeca Pagodinho o samba Com Que
Roupa?, no show registrado em disco e DVD “Casa de Samba II”.
Este samba, desde seu título e em toda sua letra, mantém uma
intertextualidade com o samba “Atrás do Trio Elétrico” (1969), do próprio Caetano,
que contém o verso: “Atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu”.
Caetano e Gil, ô
Com a Tropicália no olhar
Doces Bárbaros ensinando
A brisa a bailar
A meiguice de uma voz
Uma canção
No teatro opinião
Bethânia explode coração
Domingo no parque, amor
Alegria, alegria, eu vou
A flor na festa do interior
Seu nome é Gal
Caetano Veloso também fez suas incursões pelo Rock nacional de artistas e
bandas brasileiras.
!178
Tatit, em seu comentário, inicia a menção aos artistas de língua inglesa por
uma das maiores bandas britânicas de todos os tempos: os Beatles. E, em Caetano
Veloso, quando o assunto é Beatles, a referência primordial é o álbum “Qualquer
Coisa” (1978).
Neste, das doze faixas, três são canções assinadas pela famosíssima
parceria Lennon/McCartney: Eleanor Rigby (1966), For No One (1966) e Lady
Madonna (1968).
Lady Madonna, por sua vez, originalmente também tem a base de sua
melodia ligada ao som do piano, numa batida quase semelhante às trilhas de filmes
faroeste ou mesmo dos filmes mudos que tinham a execução ao piano realizada ao
vivo durante a exibição dos mesmos.
Se nas duas canções anteriores a versão de Caetano foi marcada por uma
mudança ascendente em termos de ritmo, com Lady Madonna ocorre o oposto. A
melodia comum às trilhas de filmes faroeste ao piano é trocada por uma batida mais
lenta ao violão, marcada apenas pelo toque nas cordas, de modo a sonorizar o
acorde, mas sem qualquer elemento que caracterize um ritmo específico ou mais
agitado.
Caetano Veloso se vale deste protesto veiculado pelo rei do pop norte-
americano em relação a um preconceito tão forte por parte de seus semelhantes —
especialmente de seus compatriotas — para também protestar contra o preconceito
racial no Brasil, hemisfério sul, subdesenvolvido, e, de maneira mais sutil, também
contra a posição hegemônica da nação Estados Unidos da América em relação ao
mundo, numa canção de sua autoria intitulada exatamente Americanos (1992).
Seguindo nas referências dadas por Tatit, além dos Beatles, Caetano Veloso
também deu voz a uma canção dos Rolling Stones, e, em algumas fases de sua
carreira, até manteve alguns pontos de semelhança com o vocalista da banda, Mick
Jagger, em termos de performance — até pela semelhança da constituição física
dos dois cantores.
Let It Bleed (1969), de Mick Jagger e Keith Richards foi gravada por Caetano
— numa versão ao vivo —, e consta na coletânea “Pipoca Moderna” (2007). Este hit
da banda britânica Rolling Stones se constitui como uma ironia desta em relação aos
Beatles, em especial à canção de Lennon e McCartney Let It Be.
Aliás Bob Dylan é uma figura do cenário musical internacional com a qual
podemos estabelecer uma comparação com Caetano Veloso devido a algumas
similaridades muito marcantes entre os dois. Surgidos praticamente no mesmo
contexto, entre os anos 60/70, marcados por canções de crítica e protesto, com
letras absurdamente longas e bastante expressivas em termos da cultura de cada
um de seus povos, respectivamente.
Foi durante os anos 90, década em que Caetano já tinha sua carreira
internacional devidamente solidificada, que Bob Hurwitz, presidente da Nonesuch —
gravadora que edita os discos de Caetano nos EUA — praticamente exigira de
Caetano a gravação de um álbum nesse estilo, valendo-se do argumento de que “só
ele poderia gravar Cole Porter e Bob Dylan num mesmo CD” com a mesma
naturalidade.
!185
mesma forma de combate. Aliás, não entre dois homens, mas entre um homem e
Deus.
E quem diria que os grandes hits com letras na língua universal viriam a ser
cantados por um estrangeiro? Aliás, não só cantados. Adaptados de maneira a
permitir a performance genuína e original de um intérprete em potencial, não inglês
ou norte-americano, mas, brasileiro, baiano, santo-amarense, do hemisfério sul,
abaixo, no que tange a posição geográfica — pela perspectiva de leitura que se tem,
geopoliticamente falando —, mas que se equivale, por talento e capacidade.
E, por incrível que possa parecer, Caetano Veloso assume esta postura não
de uma maneira violenta ou combativa. Mas, num grande tributo — sem, por isso,
deixar de se posicionar, conforme suas palavras, também contidas no encarte do
mesmo disco:
realizado por ele. Enquanto muitos se perdem em meio aos planos para encontrar
uma maneira, Caetano Veloso realizou a tão difícil ação — sem deixar, é claro, de
conferir a si mesmo os possíveis louros por tal realização.
Apesar disso, logo depois de “A Foreign Sound” ter sido lançado no Brasil,
Caetano fez um show no Carnegie Hall para um público lotado de americanos —
conforme pode ser conferido no documentário “Coração Vagabundo” (2009), de
Fernando Grostein Andrade.
Nature Boy (1948), de Eden Ahbez, foi gravada também, originalmente, por
Nat King Cole. Mais do que apenas cantar, Caetano fez uma versão em português
da canção, a qual foi gravada por ele mesmo em “Totalmente Demais” (1986), e
também por Maria Bethânia.
Let’s Face The Music And Dance é a canção de Irving Berlim que
Fellini escolheu para “Ginger e Fred”. Pusemos o tema de “La Dolce
Vita” como introdução e frisamos o parentesco dos temas de Rota
com as composições americanas dos anos 20 e 30. Nós a tocamos
como se fôssemos uma banda fuleira que toca na rua por esmolas.
[...] a atmosfera geral (e a dinâmica em particular) faz do número um
momento encantador para mim.
Neste mesmo álbum Caetano gravara não a versão original, mas uma versão
de sua autoria de uma canção de Eliseo Grenet que foi sucesso na voz de Bola de
Nieve: Drume Negrita (1949) — no caso, Drume Negrinha.
Drume negrinha
Que eu te transo uma nova caminha
Que venha ter muito axé
Que tenha gosto d'ocê
Drume pretinha
Que eu te trago de toda Bahia
Tudo que der pra trazer
Com quase todo prazer
!192
A partir desta premissa, o álbum “Fina Estampa” foi lançado em 1994. Este se
coloca como um movimento não “para fora”, visando a ampliação de público, mas,
!193
“Fina Estampa” é constituído por quinze canções, sendo elas: Rumba Azul;
Pecado; Maria Bonita; Contigo Em La Distancia; Recuerdos de Ypacarai; Fina
Estampa; Capullito de Aleli; Un Vestido Y Un Amor; Maria La O; Tonada De Luna
Llena; Mi Cocodrilo Verde; Lamento Borincano e Vete de Mi. Com este álbum,
Caetano, na posição de intérprete, embarca numa viagem que se inicia no México e
percorre, em direção ao sul: Cuba, Porto Rico, Venezuela, Peru, Argentina, Paraguai
e Uruguai, de 1931 a 1992.
Muito bem, foi meu disco que mais vendeu no Brasil. Quase toda a
música que está aí foi escutadíssima no Brasil dos anos cinquenta e
até princípios dos anos sessenta. Então, os mais velhos lembravam
daquilo e os mais jovens, que não conheciam aquela música,
encontraram ali uma série de canções agradáveis, que chegaram já
filtradas pela bossa nova e pelo tropicalismo. O que aconteceu foi
uma soma de públicos. É uma experiência, por mais que soe doce e
Não se dando por satisfeito, Caetano lança três anos depois, em 1997 o disco
“Fina Estampa Ao Vivo”, registro de uma das apresentações da turnê de seu álbum
anterior.
Quis regravar a canção “Fina Estampa” somente por causa dos erros
de letra do disco de estúdio. No show em que o número saiu
tecnicamente bem e musicalmente razoável — e em que corrigi
todos os outros erros — eu insisti em cantar “justes” em vez de
“fustes”. Talvez um dia tenha que gravar essa canção de novo no
estúdio. Por agora, apenas peço perdão. Ampliar o mercado? —
Onde quer que eu vá, levo comigo minha versão pessoal do
desenvolvimento da música popular brasileira (uma tradição de que
devemos mesmo nos orgulhar): a paixão que o canto de Orlando
Silva despertou em João Gilberto, levando-o a criar um estilo de
música popular moderno que influenciou todo o mundo e
revolucionou o Brasil. “Você esteve com meu bem?” pode ser um
!195
Caetano reafirma em seu texto, e com sua atitude na posição de artista, sua
“versão pessoal do desenvolvimento da música popular brasileira”, a qual, passa por
outros tempos, espaços, culturas e estilos.
Deste modo, em meio aos vislumbramentos de tudo isso, a mesma voz que
iniciara a canção com o desejo de ir até lá, encerra a canção com os versos:
“Mamãe eu quero ir a Cuba / E quero voltar”, deixando claro ser um desejo de
!196
Configurou-se como o objetivo central desta tese trazer à tona esta faceta de
agitador cultural exercida por Caetano Veloso ao longo de sua carreira, e em toda
sua atuação ao longo destes quase cinquenta anos.
Há que se ressaltar que esta é apenas uma das muitas e possíveis reflexões
que podem ser realizadas a partir de uma figura e obras tão singulares, no que
tange a construção de sentidos e os diferentes contextos socioculturais em que
ambas estão inseridas.
O constante diálogo com a sétima arte, seja por meio das temáticas de suas
canções, seja por seus esporádicos e pontuais exercícios de efetiva prática neste
segmento, ou até pela tentativa de roteirização e produção de uma peça
cinematográfica sua também trazem à tona o agitador cultural, que navega com
propriedade e até certa tranquilidade pelos mais variados estilos, tempos e espaços
do cinema, de modo a encontrar sua maneira de expressão, seu tom pessoal neste
segmento. Em: “A Cena do Camaleão. Luzes, Câmeras, Canção” a proposta se liga
a investigar o todo o percurso de Caetano Veloso com o cinema. Da crítica
cinematográfica em jornais, ainda na Bahia, durante sua juventude — e, logicamente
sua paixão que norteou suas intenções iniciais em termos de atuação —, à
participação em peças e filmes, como ator, a constante adoção de sua poética
musical como trilha sonora de inúmeros filmes, seriados, peças e novelas ao longo
destes anos, podemos constatar um movimento paralelo à música, marcado por
constantes intersecções entre estas duas áreas da arte, até mesmo em termos de
performance ao palco, em se tratando de todo um jogo cênico que confunde
realidade e ficção, pessoa e personagem em Caetano Veloso.
O ciclo se encerra com “Um Canto por Todos os Cantos: A Voz do Camaleão”,
uma investigação do caráter também múltiplo e multifacetado musicalmente falando
não apenas do compositor, mas do intérprete, que dá voz a todo um universo no
âmbito da canção, de modo a criar ou instaurar um universo seu, particular e
paralelo. As canções e os intérpretes que Caetano Veloso traz em sua voz, partem
do original num exercício de mimese que dá origem, traz à tona outras
!199
a arte, fazendo jus à função do cancionista, contida nos versos de uma canção de
Caetano Veloso.
Vale ressaltar que a canção em questão, Festa Imodesta (1974), nunca foi
gravada oficialmente por Caetano Veloso, mas fora composta por encomenda para
compor o álbum de seu colega de ofício, Chico Buarque de Holanda que tivera todas
as suas canções censuradas, no contexto da ditadura militar brasileira.
Por tudo isso, “salve o compositor popular” e salve o agitador cultural Caetano
Veloso.
!203
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Contracampo: [www.contracampo;.com.br/45].