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I

COMO ORGANIZAR UMA BIBLIOTECA PUBLICA


1. Os catálogos devem ser divididos ao máximo: deve-se ter muito cuidado em separar o
catálogo dos livros do das revistas, este do catálogo por assuntos e ainda os livros de
aquisição recente dos livros de aquisição mais antiga. De preferência, a ortografia nos
dois catálogos (aquisições antigas e recentes), deve ser diferente: por exemplo, nas
aquisições recentes, farmacologia deve vir com f, e nas antigas com ph; Tcheco-
Eslováquia deve vir com T nas aquisições recentes, e nas antigas sem T: Checo-
Eslováquia.

2. Os temas devem ser decididos pelo bibliotecário. Os livros não devem jamais trazer no
colofão qualquer indicação acerca dos assuntos sob os quais devem ser classificados.

3. As siglas devem ser instrascrevíveis e de preferência muitas, de modo que nunca reste
a quem preencha a ficha espaço suficiente para incluir a última denominação,
considerada irrelevante, e assim o encarregado possa sempre restituir-lhe a referida
ficha para ser preenchida da maneira correta.

4. O tempo entre o pedido e a entrega do livro deve ser sempre muito longo.

5. Não é necessário entregar ao usuário mais de um livro de cada vez.

6. Os livros entregues ao usuário porque foram solicitados por ficha não podem ser
levados para a sala de consultas, isto é, a vida do consulente deve ser dividida em dois
aspectos fundamentais: um dedicado à leitura e outro inteiramente votado à consulta.
A biblioteca deve desencorajar a leitura cruzada de vários livros, porque pode provocar
o estrabismo.

7. Se possível, desaconselha-se totalmente a presença de máquinas fotocopiadoras; no


entanto, se uma delas existir, o acesso a seu uso deve ser muito complexo e cansativo,
o custo de cada cópia deve ser superior às papelarias e os limites reduzidos a duas ou
três páginas copiadas por usuário.

8. O bibliotecário deve sempre encarar o leitor como um inimigo, um vagabundo (senão,


estaria trabalhando), um ladrão em potencial.

9. A sala de consultas deve ser inatingível.

10. Os empréstimos devem ser desencorajados.

11. Os empréstimos entre bibliotecas deve ser impossível, ou pelo menos demandar
muitos meses. O melhor, neste caso talvez seja assegurar a impossibilidade de vir a
conhecer o que existe nas demais bibliotecas.

12. Em consequência disso, os furtos devem ser facílimos.

13. Os horários devem coincidir absolutamente com os horários de trabalho, discutidos


previamente com os sindicatos: fechamento irrevogável aos sábados, aos domingos, às
noites e na hora das refeições. O maior inimigo da biblioteca é o estudante que
trabalha; o maior amigo é qualquer um que tenha uma biblioteca própria, e que
portanto não tenha necessidade de vir à biblioteca e, ao morrer, legue a essa os livros
que possuía.

14. Não deve ser possível descansar no interior da biblioteca de modo algum, e em todo
caso não deve ser possível descansar sequer do lado de fora da biblioteca sem antes
ter devolvido todos os livros que se tinha pedido, de modo a ser obrigado a pedi-los
novamente depois de tomar um café.

15. Nunca deve ser possível reencontrar o mesmo livro no dia seguinte.

16. Nunca deve ser possível saber quem pegou emprestado o livro que está faltando.

17. De preferência, nada de banheiros.

18. Idealmente, o usuário não deveria poder entrar na biblioteca; admitindo-se que entre,
usufruindo obstinada e antipaticamente de um direito que lhe foi concedido com base
nos princípios da Revolução Francesa, mas que ainda não foi assimilado pela
sensibilidade coletiva, não deve e não deverá de modo algum, excetuando as rápidas
travessias da sala de consulta, ter acesso à penetrália das estantes.

Nota reservada: Todo o pessoal lotado nas bibliotecas públicas deve ser portador de defeitos
físicos, porque uma das coisas que se espera de um órgão público é que ofereça possibilidades
de emprego aos cidadãos vítimas de deficiências (está presentemente em estudos a extensão
deste requisito também ao Corpo de Bombeiros). O bibliotecário ideal deve ser, antes de mais
nada, manco, a fim de estender o tempo que transcorre entre o recebimento da ficha
preenchida, a descida aos subterrâneos e a volta com os livros pedidos. Para os servidores
destinados a subir em escadas para atingir as prateleiras de altura superior a oito metros,
recomenda-se que o braço que falta seja substituído por uma prótese em gancho, por
questões de segurança. Os funcionários totalmente desprovidos de membros superiores
devem pegar os livros pedidos com os dentes (disposição que tem como finalidade impedir a
entrega aos leitores de columes maiores que o formato in-oitavo).

Umberto Eco

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