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UMA RELAÇÃO DEMOCRÁTICA ENTRE PESQUISADORES E ACERVOS DE

MANUSCRITOS MUSICAIS NO BRASIL: NECESSIDADE OU UTOPIA?

Paulo CASTAGNA1

Publicado em: CASTAGNA, Paulo. Uma relação democrática entre pesquisadores e acervos
de manuscritos musicais no Brasil: necessidade ou utopia? In: LIMA, Sônia Albano de.
Faculdade de Música Carlos Gomes: retrospectiva acadêmica. São Paulo: Musa Edito-
ra; A Faculdade, 2005. p.64-78. (Biblioteca aula, v.8. Musa música) ISBN: 85-85653-
82-5

Introdução

Até meados da década de 1980 não existia, no Brasil, uma diferenciação no tratamento
dos acervos musicais e não-musicais, tendo sido ambos tratados com metodologia muito pró-
xima, basicamente originária da biblioteconomia. Os estudos musicológicos, até então, esta-
vam quase totalmente focados em autores e obras, sendo raras as iniciativas ligadas aos acer-
vos onde tais obras eram encontradas. Com isso, os acervos musicais, na melhor das hipóte-
ses, acabavam recebendo um tratamento superficial e pouco especializado, mas na maioria
das vezes nem chegavam a essa fase, permanecendo desorganizados e sujeitos ao extravio
total ou parcial.
A partir de 1984 começaram a surgir as primeiras preocupações ligadas a acervos mu-
sicais, com discussões em torno do acervo do Museu da Música de Mariana (MG), que se
abria ao público naquele mesmo ano (I ENCONTRO, 1984), embora os primeiros esforços
empreendidos em sua organização e catalogação tenham sido majoritariamente empíricos.
Também não se pode deixar de perceber a defasagem da preocupação arquivístico-
musical no Brasil em relação aos países desenvolvidos e mesmo aos países hispano-
americanos, considerando-se que essa tendência já existia na Europa desde o século XIX e
que em Lima (Peru), em 1982, surgiam as primeiras propostas de catalogação de manuscritos
musicais latino-americanos, no Primer Grupo Regional de Estudio de la Musicología Históri-
ca en América Latina (NEVES, 1998).
Os primeiros reflexos dessa tendência, no Brasil, surgiram como proposta para um
“Sistema Nacional de Arquivos Musicais”, durante o Encontro de Musicologia do II Festival

1
Instituto de Artes da UNESP.
2

Latino-Americano de Arte e Cultura realizado em Brasília no ano de 1989 (NEVES, 1998),


mas que, além de tardio em relação às próprias iniciativas hispano-americanas, acabou não
resultando diretamente em nenhuma iniciativa concreta. Não se pode negar, contudo, o pio-
neirismo de José Maria Neves, que participou da elaboração desse documento, na defesa do
estudo sistemático dos acervos musicais, em lugar da abordagem meramente extrativista ou
colecionista que vigorou até pelo menos o final da década de 1980 (NEVES, 1993).
Na década de 1990, entretanto, surgiram, no meio acadêmico brasileiro, várias discus-
sões ligadas à postura dos pesquisadores em relação aos acervos de manuscritos musicais.
Algumas perguntas acabaram se tornando o centro dessas discussões:

1. Como é possível realizar pesquisas sistemáticas na área de musicologia his-


tórica, se boa parte dos acervos brasileiros de manuscritos musicais são
privados e nem sempre abertos à consulta?
2. Como é possível realizar pesquisas sistemáticas em acervos brasileiros de
manuscritos musicais, se poucos dispõem de uma organização adequada
e/ou de um catálogo?
3. Quais acervos de manuscritos musicais existem no Brasil e em quais deles a
consulta é permitida?
4. Como respeitar e garantir a integridade dos acervos, evitando-se o extravio e
deterioração de documentos?
5. Quais normas regem a relação entre os pesquisadores e os acervos, ou seja,
quais são os direitos e deveres de um e de outro?
6. Por qual motivo um determinado pesquisador sente-se no direito de dificul-
tar o acesso de outro pesquisador a um acervo com o qual trabalha ou
trabalhou e, além disso, o que faz com que algumas pessoas submetam-se
a esse tipo de procedimento ou se tornem com ele coniventes?

Com base em tais indagações, algumas questões foram expostas em publicações da


área, levadas a encontros de musicologia e discutidas no meio musicológico brasileiro, o que
aproximou, quase naturalmente, um grupo de pesquisadores ligados a projetos que propu-
nham algum tipo de solução para esses problemas.

Uma nova arquivologia musical no Brasil

A partir do trabalho desse grupo, surgiram duas frentes de atuação: a primeira delas,
de cunho teórico, manifestou-se na forma de debates, publicação de artigos, apresentação de
comunicações e organização de eventos científicos ligados às questões levantadas, enquanto a
segunda, de caráter mais pragmático, visava colocar em prática uma série de propostas para os
mesmos problemas. Em relação ao aspecto teórico, um dos primeiros textos a abordar a ques-
3

tão foi a reportagem de Luís Antônio GIRON (1989), que denunciava a prática do protecio-
nismo às fontes musicais, mesmo em acervos públicos:

“Nos últimos 45 anos, os pesquisadores da chamada ‘música barroca


mineira’ mais criaram problemas do que resolveram os que se propuseram a
enfrentar. Em vez de levantar a documentação para passá-la aos músicos e daí
estabelecer uma circulação interpretativa através de edições, mantiveram as
fontes sob seu poder, transformando-as em fonte de lucro pessoal.”

Alguns anos mais tarde (CASTAGNA, 1995), manifestei opinião semelhante, porém
referindo-me também a alguns problemas ligados à formação dos pesquisadores, à organiza-
ção dos acervos, à realização de eventos e à circulação de informações referentes à produção
musicológica:

“[...] Forçoso é dizer que o sentimento de “posse” com relação a as-


suntos culturais, manuscritos e obras musicais ainda é feudal; a formação de
novos musicólogos pouco ultrapassou os limites do auto-didatismo; a maior
parte dos acervos de manuscritos é particular, ou tratada como tal; as biblio-
tecas públicas, com raras exceções, são mal aparatadas e as publicações em
número insignificante, para não se falar nos problemas sociais, políticos e e-
conômicos, que mantiveram o país, por mais de três décadas, alheio ao desen-
volvimento mundial neste setor. O próprio ensino da música erudita é insufici-
ente para a formação de grupos musicais de projeção internacional, capazes
de reverter a aversão do público tradicional com relação à música brasileira
de concerto, via de regra, julgada mais pela execução que pela qualidade e
significado histórico das composições.
As relações entre os musicólogos brasileiros ainda não são satisfató-
rias e não existem mecanismos eficazes, no Brasil, para se saber, com rapidez,
o que vem sendo atualmente produzido em musicologia, nas diversas partes do
país, à exceção dos esporádicos simpósios, encontros e congressos, nos quais,
com raras exceções, as participações não têm resultado na criação de metas
comuns. As bibliografias da música erudita brasileira estão longe de reunir os
trabalhos publicados nessa área. Ainda que várias tentativas de sistematização
já tenham sido levadas a cabo, o tempo as torna obsoletas, sem que novos tra-
balhos venham atualiza-las.”

Em outra reflexão sobre o assunto, Maurício MONTEIRO (1998:104) também denun-


ciava o exclusivismo no acesso às fontes musicais, prática que, para esse autor, estava entre
“os principais empecilhos à pesquisa musicológica no Brasil”:

“[...] é necessário ressaltar que alguns grupos têm a pretensão de se


tornarem guardiões da fonte histórica, não colocando em prática a política da
pesquisa. Ou seja, alguns pesquisadores-arquivistas ignoram a Constituição e
impedem o acesso e o estudo das informações. A fonte textual ou iconográfica,
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manuscrita ou impressa é um documento histórico e por isso deve ser preser-


vada; entretanto, as informações contidas nele devem ser estudadas em busca
de uma compreensão da atividade musical - seja ela do passado ou da con-
temporaneidade”

A partir de então, uma das preocupações dos musicólogos interessados na reversão


desse quadro foi uma participação teórica mais ativa e o investimento de boa parte de seus
esforços na organização de eventos que permitissem a abordagem e discussão dessas ques-
tões. Dentre os eventos criados ou ampliados a partir dessa época, destinados a uma discussão
mais ampla das questões éticas do trabalho musicológico, destacam-se os Simpósios Latino-
Americanos de Musicologia (Curitiba), inspirado nos encontros bienais de musicologia reali-
zados em Santa Cruz de la Sierra (Bolívia), como parte do Festival Internacional de Música
Renacentista y Barroca Americana “Misiones de Chiquitos”, as três últimas edições dos En-
contros de Musicologia Histórica (Juiz de Fora) e o Colóquio Brasileiro de Arquivologia e
Edição Musical.
Em função dessa tendência, houve um significativo aumento na quantidade dos even-
tos disponíveis, que pode ser facilmente avaliado a partir dos números disponíveis: dentre os
quarenta e cinco eventos diretamente ligados à musicologia organizados entre 1981 e 2004 no
Brasil (ou por brasileiros no exterior), vinte foram realizados até 1996 e vinte e cinco entre
1997 e 2004. A partir desses índices, percebe-se que, nos últimos oito anos foi praticamente
duplicada a freqüência dos eventos (ou seja, o número de eventos por ano), mesmo conside-
rando-se que os encontros anuais da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em
Música (ANPPOM) converteram-se em congressos bienais a partir de 1999.
Paralelamente, alguns trabalhos propunham uma mudança paradigmática no trabalho
musicológico, como o que apresentei no I Simpósios Latino-Americano de Musicologia
(CASTAGNA, 1998), no qual foram formuladas várias críticas ao conceito da “descoberta”,
até então adotado pelos pesquisadores que se dedicavam à música antiga brasileira, discutin-
do-se também alguns problemas observados na relação entre pesquisadores e acervos musi-
cais no Brasil, sendo esta última questão também o tema de um trabalho apresentado no X
Encontro Nacional da ANPPOM (CASTAGNA, 1997).
André Guerra COTTA (1998), dedicando-se igualmente às reflexões ligadas ao traba-
lho em acervos de manuscritos musicais, apresentou seus “Subsídios para uma Arquivologia
Musical” no XI Encontro Nacional da ANPPOM, trabalho que, pouco tempo depois, foi am-
pliado em sua Dissertação de Mestrado em Ciência da Informação, intitulada “O tratamento
da Informação em Acervos de Manuscritos Musicais Brasileiros” (COTTA, 2000a). Esse au-
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tor continuou dedicando-se ao tema e produzindo textos destinados a proporcionar subsídio


teórico para o trabalho arquivístico-musical (COTTA, 2000b e 2000c), como também foi meu
caso, porém em menor escala (CASTAGNA, 2000).
Um dos trabalhos de André Guerra COTTA (2000b), intitulado “Considerações sobre
o direito de acesso a fontes primárias para a pesquisa musicológica”, demonstrava que, no
caso de acervos públicos de manuscritos musicais, não existia nenhum dispositivo legal que
pudesse impedir a consulta de um documento antigo por parte de qualquer interessado, salvo
quando este estivesse em precário estado de conservação, mas nesse caso, a instituição custo-
diadora teria a obrigação de informar quais eram os documentos cuja consulta não seria pos-
sível, além de disponibilizar ao consulente algum tipo de imagem dos documentos em ques-
tão. Esse trabalho deu respaldo teórico ao combate da prática de alguns musicólogos e arqui-
vistas de impedir o acesso a determinados documentos musicais ou mesmo a um acervo intei-
ro e, juntamente com outras ações, participou do início da reversão do protecionismo aos ma-
nuscritos musicais, o que obrigou várias instituições a rever suas normas de consulta e plane-
jar ações nas quais o acesso aos documentos musicais passava a ser não mais um problema,
porém um direito dos consulentes.
Outros trabalhos sobre o assunto foram apresentados no III Simpósio Latino-
Americano de Musicologia (Curitiba, 1999), no V Encontro de Musicologia Histórica (Juiz de
Fora, 2002) e no I Colóquio Brasileiro de Arquivologia e Edição Musical (Mariana, 2003). As
realizações mais expressivas nesse sentido, entretanto, foram as discussões realizadas em al-
guns eventos científicos, como nas cinco edições do Simpósio Latino-Americano de Musico-
logia (Curitiba, 1997 a 2001), especialmente o III SLAM (21 e 24 de janeiro de 1999), cujo
tema foi: “Preservação e acesso à memória musical latino-americana”. Desse Simpósio resul-
tou a apresentação de vários trabalhos ligados ao tema, e um documento bilingüe em quatorze
itens (Anexo I), intitulado “Conclusões do III Simpósio Latino-Americano de Musicologia”
(CONCLUSÕES, 2000), no qual seus dezenove signatários manifestaram suas opiniões sobre
o assunto, assumindo um importante compromisso no que se refere à democratização e ao
desenvolvimento das relações entre pesquisadores e acervos musicais.
No ano seguinte, as Conclusões do III SLAM foram ratificadas no IV Encontro de
Musicologia Histórica (Juiz de Fora, 21 a 23 de julho de 2000) (CONCLUSÕES, 2002), rece-
bendo mais quatorze assinaturas, embora duas delas já constassem das Conclusões do III S-
LAM. Devido ao seu conteúdo e sua difusão, tais Conclusões iniciaram um debate mais am-
plo das questões abordadas, começando a ser consideradas o núcleo de um futuro código de
ética da atividade musicológica brasileira.
6

Pouco tempo depois foi realizado o I Colóquio Brasileiro de Arquivologia e Edição


Musical (Mariana, 18 a 20 de julho de 2003), sob o tema “Perspectivas Metodológicas da Ar-
quivologia e da Edição Musical no Brasil”, o primeiro dessas duas especialidades no Brasil e
na América Latina. Desse evento surgiram as Conclusões e Recomendações do I Colóquio
Brasileiro de Arquivologia e Edição Musical (CONCLUSÕES, 2004), assinadas por dezoito
especialistas e destinadas a sugerir novas propostas em tais assuntos.
Únicos na musicologia brasileira, tais documentos tiveram a finalidade de contribuir
para o desenvolvimento dos estudos em musicologia, mas também das relações entre os pes-
quisadores e os acervos musicais, podendo futuramente contribuir para a melhor definição do
papel do pesquisador e da própria musicologia no Brasil.

Realizações práticas

No campo prático, entretanto, as novas realizações foram mais diversificadas, porém a


maior pare delas em consonância com as Conclusões do III SLAM. De maneira geral, procu-
rou-se conhecer melhor os acervos musicais brasileiros, especialmente aqueles que conservam
manuscritos musicais, estabelecendo-se com eles um contato mais amplo e tentando-se levan-
tar sua situação.
Até fins do século XX, não existia nenhum tipo de publicação que relacionasse os a-
cervos musicais existentes no Brasil, de modo a orientar os pesquisadores interessados na
localização e/ou estudo de fontes musicais específicas, como partituras impressas, partituras
manuscritas, artigos, livros, dissertações ou teses sobre música, gravações, documentação,
iconografia, instrumentos musicais, etc.
Com isso, somente os acervos de maior visibilidade acabavam sendo consultados, per-
manecendo os demais praticamente ocultos da maior parte dos pesquisadores, tendo sido o
conhecimento sobre sua existência muitas vezes utilizado como forma de poder. Paralelamen-
te, alguns importantes acervos musicais brasileiros apresentavam (ou apresentam) várias difi-
culdades para sua consulta, valendo-se até da pequena visibilidade como meio de evitar a pre-
sença de consulentes.
Essa situação começou a se modificar em 2001, com a inclusão, no guia VivaMúsica!,
de uma seção intitulada “Centros de Documentação e Acervos”, idealizada por sua coordena-
dora, Heloísa FISCHER (2001). Tal seção relacionava, pela primeira vez no país, cinqüenta e
um acervos musicais, com indicação do diretor de cada instituição, endereço postal completo,
telefone, fax, endereço eletrônico e página na internet, quando disponíveis.
7

As informações para a seção “Centros de Documentação e Acervos” foram levantadas


por algumas pessoas envolvidas com o guia VivaMúsica!, mas também enviada por colabora-
dores, como foi meu caso. O impacto das informações apresentadas por esse guia começou a
surgir no próprio ano de 2001, com a transferência dos registros para várias páginas da inter-
net e com o conseqüente aumento da procura dos acervos musicais no país.
Nos anos seguintes, novas informações continuaram a ser enviadas ao guia, fazendo
com que o número de acervos passasse de cinqüenta e um em 2001 para noventa e seis em
2004, o que representou o substancial aumento de 47% no número de acervos musicais co-
nhecidos (FISCHER, 2004). Se essa tendência for mantida, em alguns anos será possível sa-
ber, com grande precisão, quais são os acervos musicais existentes no Brasil e como contatá-
los, embira ainda não exista um mecanismo para se saber, á distância, qual é o conteúdo da
maioria desses acervos.
Além disso, novos acervos começaram a ser organizados (ou reorganizados) e catalo-
gados, visando um acesso democrático e uma nova forma de relacionamento entre os pesqui-
sadores e a instituição que os preserva. Entre os principais estão a Seção de Música do Arqui-
vo da Cúria Metropolitana de São Paulo (SP), o Museu da Música de Mariana (MG), o Ar-
quivo Vespasiano Gregório dos Santos (Belo Horizonte - MG), o Arquivo da Sociedade Mu-
sical Euterpe Itabirana (MG), o Arquivo Histórico Monsenhor Horta (Mariana - MG), o Acer-
vo de manuscritos musicais de Viçosa (MG) e o Arquivo do Cabido Metropolitano da Cate-
dral do Rio de Janeiro (RJ). O Arquivo Vespasiano Gregório dos Santos foi o primeiro acervo
brasileiro de manuscritos musicais a ser totalmente digitalizado e disponibilizado em CD-
Rom e em uma página da internet (PONTES, 1999), iniciativa que influenciou várias ações
posteriores.
Destaque-se, no caso dos acervos de manuscritos musicais, a situação dos três maiores
acervos musicais eclesiásticos brasileiros: a Seção de Música do Arquivo da Cúria Metropoli-
tana de São Paulo, o Museu da Música de Mariana e o Arquivo do Cabido Metropolitano do
Rio de Janeiro, que conservam os remanescentes das mais ativas catedrais brasileiras, no que
se refere à prática musical religiosa (no caso do Rio de Janeiro também da Capela Real e Im-
perial). Até meados da década de 1990 o acesso a esses acervos era muito restrito (ou nem era
permitido, como no caso do Rio de Janeiro), não existindo catálogos que relacionassem de
maneira precisa e sistemática todo o seu conteúdo.
Visando contribuir para a solução desses problemas, participei de iniciativas ligadas a
dois desses acervos: no Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo coordenei a organiza-
ção e a catalogação da Seção de Música (1996-1997), que permitiu o início das consultas sis-
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temáticas ao acervo, enquanto no Museu da Música de Mariana coordenei a equipe musicoló-


gica que trabalhou na reorganização e catalogação do acervo e na produção de nove CDs e
nove volumes de partituras entre 2001 e 2003, em projeto da Fundação Cultural da Arquidio-
cese de Mariana, gerenciado pelo Santa Rosa Bureau Cultural e financiado pela Petrobrás
(ver: http://www.mmmariana.com.br). Pouco tempo depois, o Arquivo do Cabido Metropoli-
tano do Rio de Janeiro começou a ser organizado e catalogado por uma equipe que inclui al-
guns pesquisadores que trabalharam em Mariana, com a finalidade de ser disponibilizado aos
consulentes com o mesmo procedimento adotado no Arquivo Vespasiano Gregório dos San-
tos em Belo Horizonte.
A partir dessas experiências, foi desenvolvido um conjunto bastante grande de proce-
dimentos que visam garantir a integridade de cada acervo, respeitar suas peculiaridades, le-
vantar seu histórico, proporcionar um conhecimento preciso de seu conteúdo e permitir ao
consulente um acesso democrático, baseado em normas claras e previamente estabelecidas.
Paralelamente, procurou-se criar mecanismos que beneficiassem também as institui-
ções mantenedoras dos acervos. O caso melhor sucedido, até o momento, é o do Museu da
Música de Mariana, no qual a arrecadação com a vendagem dos CDs e partituras está sendo
revertida à própria instituição custodiadora, no caso a Fundação Cultural e Educacional da
Arquidiocese de Mariana. As quase cem mil consultas à página do Museu da Música na inter-
net são uma clara demonstração do interesse gerado por esse tipo de projeto e também por
uma visibilidade que essa instituição não teria sem o projeto lá empreendido.

Considerações finais

Uma vez surgido respaldo teórico para uma nova postura na musicologia brasileira,
especialmente no que se refere à relação entre os pesquisadores e os acervos musicais, resta
ampliar as ações iniciadas até o momento, para dar à atividade musicológica no Brasil um
caráter mais amplo, além de uma visibilidade e um significado mais claro junto à sociedade.
Não será mais possível obter resultados satisfatórios na pesquisa musicológica sem um acesso
pleno às fontes musicais e mesmo sem uma postura ética do pesquisador, assim como será
cada vez mais difícil, para as instituições custodiadoras, evitar esse acesso, considerando-se
que o senso geral caminha no sentido contrário.

Referências bibliográficas
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Anexo. Conclusões do III Simpósio Latino-Americano de Musicologia (Preservação e acesso


à memória musical latino-americana), Curitiba, 24 de janeiro de 1999.

1. O desenvolvimento da musicologia e a difusão de seus resultados e benefícios de-


pendem da organização, catalogação e disponibilização de quaisquer tipos de fontes primárias
(manuscritos, impressos, registros sonoros, registros de imagens, instrumentos, objetos etc.),
pertencentes a acervos públicos, eclesiásticos e privados, mas principalmente de políticas não
restritivas de acesso a tais fontes, incluindo a disponibilização de fac-símiles, independente-
mente dos estudos já realizados sobre os mesmos.
2. O pesquisador deve respeitar a integridade dos acervos, contribuir para sua preser-
vação e valorizar o acesso dos demais interessados, mesmo aos acervos com os quais trabalha
ou trabalhou, visando à democratização da pesquisa, à pluralidade de abordagens dos objetos
de estudo e à expansão das investigações musicológicas.
3. É fundamental uma postura ética e humanística dos pesquisadores em relação aos
acervos musicais, documentais, bibliográficos, sonoros, iconográficos, organológicos etc.,
sejam eles públicos, eclesiásticos ou privados, procurando também retribuir à comunidade que
os conservou, pelo acesso que teve às fontes primárias.
4. É garantido aos pesquisadores o direito de acesso direto à informação contida nos
acervos públicos de qualquer espécie (musicais, documentais, bibliográficos, sonoros, icono-
gráficos, organológicos etc.), em consonância com os objetivos do Conselho Internacional de
Arquivos (9-11 jun. 1948),2 mas também de acordo com a Declaração Universal dos Direitos
do Homem (10 dez. 1948)3 e com a legislação específica de cada país.
5. É garantido aos pesquisadores o direito de acesso direto à informação contida nos
acervos eclesiásticos de qualquer espécie (musicais, documentais, bibliográficos, sonoros,
iconográficos, organológicos etc.), de acordo com a Epístola Encíclica Pacem in Terris (11
abr. 1963) de João XXIII4 e com a Carta Circular A função pastoral dos arquivos eclesiásti-
cos (2 fev. 1997), emitida pela Pontifícia Comissão Para os Bens Culturais da Igreja.5

2
Estatutos do Conselho Internacional de Arquivos (9-11 jun. 1948), artigo 2 (Objetivos Gerais), inciso d: “Faci-
litar a interpretação e uso de documentos arquivísticos, tornando o seu conteúdo mais amplamente conhecido e
promovendo maior facilidade de acesso aos arquivos”.
3
Declaração Universal dos Direitos do Homem (10 dez. 1948), artigo 19: “Todo indivíduo tem direito à liberda-
de de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar,
receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e idéias por qualquer meio de expressão”. [des-
taque nosso]
4
PAPA JOÃO XXIII. Encíclica Pacem in Terris (11 abr. 1963): “Todo ser humano tem direito [...] à liberdade
na busca da verdade [...] as exigências da moral e do bem comum sejam salvaguardadas. O ser humano tem,
igualmente, direito a uma informação objetiva”.
5
PONTIFÍCIA COMISSÃO PARA OS BENS CULTURAIS DA IGREJA. Carta Circular A função pastoral dos
arquivos eclesiásticos (Vaticano, 2 fev. 1997), item 4.3 (Destinação universal do patrimônio arquivístico): “Os
arquivos, enquanto bens culturais, são oferecidos antes de mais ao usufruto da comunidade que os produziu, mas
com o passar do tempo assumem uma destinação universal, tornando-se patrimônio da humanidade inteira. Com
efeito, o material depositado não pode ser impedido àqueles que podem tirar proveito dele, a fim de conhecer a
11

6. É necessária, para o desenvolvimento da musicologia e para a difusão de seus resul-


tados e benefícios, uma política de sensibilização dos proprietários de acervos privados de
qualquer espécie (musicais, documentais, bibliográficos, sonoros, iconográficos, organológi-
cos etc.) quanto à necessidade e à importância de sua abertura aos pesquisadores e da divulga-
ção de seu conteúdo em apresentações, registros sonoros, publicações e mídia, devido ao seu
significado enquanto parte da história coletiva e ao seu caráter público de patrimônio cultural.
7. É fundamental que as instituições públicas, eclesiásticas e privadas, que têm como
função a guarda e a preservação de acervos permanentes de qualquer espécie (musicais, do-
cumentais, bibliográficos, sonoros, iconográficos, organológicos etc.), correspondam às ne-
cessidades e às expectativas dos pesquisadores e de toda a comunidade em relação à seguran-
ça, preservação e acesso aos materiais depositados, do que dependem a credibilidade e a fun-
ção social de tais instituições.
8. É fundamental investir na formação da opinião pública, através da conscientização e
mobilização da comunidade em relação à importância de preservação da memória musical,
para que ela possa reclamar, junto às autoridades constituídas, políticas eficazes em relação à
criação, manutenção e continuidade das instituições comprometidas com o patrimônio musi-
cal.
9. É importante a criação de novos centros regionais de documentação, pesquisa e in-
formação musical, encarregados da preservação do patrimônio musical latino-americano de
todos os períodos, conforme recomendações da Acta General de Acuerdos y Proposiciones
del Ier Grupo Regional de Estudio de la Musicología Historica en America Latina (Lima, Pe-
ru, 6 a 11 de setembro de 1982) e sugestões do I Simpósio Latino-Americano de Musicologia
(Curitiba, Brasil, 21-24 de janeiro de 1997).
10. É fundamental que os manuscritos musicais, registros sonoros e imagens de qual-
quer período, depositados em acervos públicos, eclesiásticos e privados, sejam tratados como
documentos permanentes, pela sua unicidade e pelo valor histórico que têm, referenciados
com precisão e sujeitos à normatização técnica e à legislação arquivística específica.
11. É importante a caracterização e a padronização terminológica dos elementos e ma-
teriais musicais com os quais se depara o pesquisador. Nesse sentido, é importante também
observar a distinção entre fundo arquivístico e coleção, para que se possa determinar consci-
entemente os procedimentos mais adequados a cada caso, de acordo com as normas arquivís-
ticas internacionais e com as necessidades e especificidades de cada acervo e de cada região.
12. É importante reconhecer as singularidades de cada acervo, para que o tratamento
da informação e a confecção de instrumentos de trabalho, como guias, catálogos, inventários
etc., observe seus aspectos particulares, considerando, porém, critérios e normas científicas,
de maneira a não gerar sistemas casuísticos de catalogação.
13. As condições precárias de preservação e organização de grande parte dos acervos
de manuscritos musicais latino-americanos evidenciam a importância de se incluir, na pesqui-
sa musicológica, também o trabalho de natureza documental, como a organização e a catalo-
gação.
14. É necessário discutir a utilização de formatos de intercâmbio de informação entre
os acervos (musicais, documentais, bibliográficos, sonoros, iconográficos, organológicos
etc.), tendo em vista a necessidade de compatibilização com os sistemas internacionais de

história do povo cristão, as suas vicissitudes religiosas, civis, culturais e sociais. / Os responsáveis devem fazer
com que o usufruto dos arquivos eclesiásticos possa ser facilitado não só aos interessados que a ele têm direito,
mas também ao mais amplo círculo de estudiosos, sem preconceitos ideológicos e religiosos, como se dá na
melhor tradição eclesiástica, salvaguardando as oportunas normas de tutela, dadas pelo direito universal e pelas
normas do Bispo diocesano. Tais perspectivas de abertura desinteressada, de acolhimento benévolo e de serviço
competente devem ser tomadas em alta consideração, a fim de que a memória histórica da Igreja seja oferecida à
coletividade inteira”. [grifo nosso]
12

informação e a necessidade de observância dos critérios e possibilidades pertinentes à realida-


de latino-americana.

Paulo Castagna graduou-se e apresentou dissertação de mestrado na Escola de Comunica-


ções e Artes Universidade de São Paulo USP respectivamente em 1987 e 1992, e defendeu
tese de doutorado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da mesma Universi-
dade em 2000. Foi bolsista do CNPq (1985), da FUNARTE (1988-1989), da FAPESP (1986-
1987 e 1989-1991) e da VITAE (2001-2002), produzindo partituras, livros e artigos na área
de musicologia histórica, cursos, conferências, programas de rádio e. Foi professor da Facul-
dade Santa Marcelina e da Faculdade de Música Carlos Gomes entre 1990 e 1995, onde mi-
nistrou as disciplinas História da Música, História da Música Brasileira e Apreciação Musical,
sendo professor e pesquisador do Instituto de Artes da UNESP desde 1994, onde orienta pro-
jetos de pesquisa na graduação e na pós-graduação e coordena o grupo de pesquisa “Musico-
logia Histórica Brasileira”. Participou de encontros de musicologia na América Latina, Euro-
pa e Estados Unidos e coordenou projetos de organização e catalogação de acervos brasileiros
de manuscritos musicais e de edição e gravação de música brasileira dos séculos XVIII e
XIX. Coordenou ou participou da coordenação de encontros de musicologia em São Paulo,
Curitiba, Juiz de Fora, Mariana, Santa Cruz de la Sierra (Bolívia) e Sarrebourg (França).

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