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d a E s c r it a d o R it m o M u s ic a l
Construção e preformação
1 A palavra neuma deriva da Grécia Antiga (significava gesto, daí sua decodificação
primeira ser relativa ao gestual do regente [o cantor] para dirigir o coro) e parece ter
sido usada primeiramente no ocidente no século IV pelo gramático Cominianus,
que escreveu o interpretatur nutus - denotando um signo ou um “gesto”
2 Estilizada pela Vaticana e atualmente é plenamente usada (Cardine, 1989).
trada na pauta, usando dois fragmentos silábicos muito simples, trans
formados em seus elementos de base: um do acento agudo (que se tomou
virga = nota aguda), e o outro do acento grave que se tomou punctum
(indicador de nota grave), transferidos para a notação quadrada e para a
pauta (Cardine, 1989) (Figura 3).
Depois de seu aparecimento no século IX, a escrita neumática so
freu modificações e foi também identificada com características diversas
em regiões distintas. Muitas escritas neumáticas não podem ser descritas
pois não se sabe o que cada signo significa. Somente quando os neumas
passaram a ser escritos nas linhas (século XII, com a notação quadrada),
foi possível interpretar mais precisamente a notação. A notação neumáti
ca baseia-se na rítmica inerente da prosódia, de gestos manuais e de “le
tras significativas”, as quais poderiam significar aspectos rítmicos, co-
mumente usadas entre os séculos IX e XI (Cardine, 1989; Sadie, 1980).
Guido D ’Arezzo desenvolveu, já no século X, além de um sistema
melódico definido por sílabas hoje conhecidas como notas musicais, um
sistema rítmico detalhado que se fundamentava no ritmo do verso. Mas tor
nava-se cada vez mais clara a necessidade de sistematizar as durações. Gui
do D ’Arezzo, no seu Micrologus, afirmava que “é necessário saber onde
uma duração longa ou curta deve ser usada.”(Apud Sadie, 1980, p.812).
Na música polifónica do século XII, principalmente no organum
melismático, o ritmo era muito livre (imprecisão das durações), proporci
onando desencontros entre as vozes e superposições não previstas ou de
sejadas, gerando o aparecimento da música mensurata, na qual a duração
dos sons e silêncios passou a ser regulada. Podemos verificar que a nota
ção neumática evoluiu de signos imprecisos para uma precisão relativa,
em termos de melodia, até chegar a uma maior precisão: a pauta musical.
Entretanto, o ritmo estava embutido num “todo” que era regido pelo tex
to, já que não se tratava somente de “amoldar simplesmente à acentuação
das palavras e de seguir o ritmo natural (...) trata-se então do espírito do
texto mais que sua matéria, mas, definitivamente, é sempre o texto que
inspira a melodia.” (Cardine, 1989, p.57).
Com a polifonia, ocorreu uma sofisticação estilística, devido ao in
cremento da improvisação, necessitando-se de uma definição maior das
relações rítmicas entre as vozes individuais. Paris (Catedral de Notre
Dame) foi o centro musical de maior importância no estabelecimento de
padrões rítmicos regulares definidos em uma pulsação constante, mas
ainda muito ligada às exigências textuais. Evidencia-se aqui o apareci
mento de uma nova significação rítmica para os símbolos sonoros. Quan
do ocorre o aparecimento de uma nova notação rítmica, evidencia-se uma
“crise rítmica.” (Sadie, 1980).
Os modos rítmicos compreendiam seis padrões que se baseavam no
ideal de expressão dos melismas do organum, os quais eram não-textuais. O
princípio da divisão temária, derivado do perfectio do número 3, foi manti
do. No século Xin, a liberdade de movimentação das vozes e a liberdade
mensurai podem ser percebidas na “enorme possibilidade de subdivisão e
conseqüente aumento da independência rítmica das vozes individuais.” (Sa
die, 1980, p.813). Os modos rítmicos eram, muitas vezes, superpostos, prin
cipalmente, o Io, 2o e 3o modos. Neste mesmo século, Marchetus di Padova
(Marchetto da Padua) introduz signos referenciais importantes na evolução
da paleografía do Ocidente (Scliar, s.d.; Strunk, 1981). Philipp de Vitry, no
seu tratado Ars Nova, desenvolveu o sistema de Padova, criando símbolos
específicos para as durações e suas divisões e subdivisões binárias e temári-
as. A versatilidade rítmica {Ars Nova do século XIV) caracterizou-se por di
visões quantitativas diversas, pela alternância métrica, pela poliritmia3 e po-
limetria, e pela variação do valor normal das figuras (coler), com a mudança
de coloração (de preto para vermelho e, posteriormente, do vermelho para o
branco), gerando o que se chamou de “white notation.” (Sadie, 1980, p.814).
No século XV, as figuras em forma de losango começaram a dar espaço às
figuras de forma arredondada (v.Figura 7), por causa da dificuldade de dese
nhar manualmente losangos com rapidez.
4 Atterbury (1992) mostra a ligação entre consciência rítmica e representação sim bó
lica no desenvolvimento musical afirmando que o entendimento rítmico pode ser
visto através da representação simbólica.
Apesar de todo ser vivo estar cercado e entranhado por/de ritmos
(coração, respiração, andar), a notação das durações foi muito tardia na
história da música e da escrita musical. Na história, a rítmica inicial usou
como referencial a língua falada - transferência do ritmo do texto para a
música -, uma dependência inicial que foi transmitida para a escrita da
música (e do ritmo), fazendo com que os sinais aparecessem primeira
mente sobre o texto, adquirindo depois precisão e independência progres
sivas. Como isso se relaciona com o desenvolvimento psicogenético do
conceito?
Bamberger (1990) mostra que crianças de 4-5 anos produzem um
tipo de “garatujas rítmicas” (Figuras 8 e 9), consideradas como “formas
primitivas das quais emergem todas as outras.” (p. 103). Parece haver ne
cessidade de reproduzir no papel os “movimentos das mãos e dos braços
que produzem as batidas” (p. 103) (neste caso a escrita referia-se a uma
série de palmas), não fazendo distinção entre a ação e o som produzido.
A mudança de centração, do movimento contínuo de bater, para os
“efeitos discretos”, é um importante elemento no desenvolvimento da es
crita do ritmo musical. Muitos pesquisadores, segundo Bamberger
(1990), já estudaram e descreveram as “garatujas”5 feitas por crianças,
inclusive menores, de objetos e formas geométricas, e Ferreiro (1990),
das garatujas da palavra.
Conclusões
9 “que extrai suas informações do próprio objeto.” (Piaget & Garcia, 1984, p. 10).
10 “que procede a partir das ações do sujeito.” (Idem, ibidem).
11 ultrapassagem, no original, rebasamiento.
12 Para os autores o empirismo daria conta somente da passagem do intra para o inter,
o apriorismo daria conta somente do trans, mas não satisfaria as etapas do tipo intra
Piaget estabelece três etapas características do desenvolvimento
dos conceitos nas crianças e na historia da ciência. A primeira dessas eta
pas é a intraobjetal que, no nosso caso, representa a etapa na qual a nota
ção rítmica aparece extremamente ligada à notação melódica e, conse
qüentemente, ao texto. Não há distinção entre o movimento final
resultante (ação) e urna escrita do ritmo. A notação representa uma não
separação entre sujeito (a música, a produção sonora e sua notação como
um todo) e objeto (ritmo). O som unificado ao gesto, unificado ao texto. O
conceito de ritmo independente do texto (ou do todo) ainda não existe. O
conceito desenvolvido resume-se, pois, à ação musical; essa fase é, por
tanto, intraobjetal. A atividade musical é anotada no seu conjunto, fazendo
com que o objeto da representação seja a ação musical e não o ritmo.
No caso da psicogênese, nota-se o perfeito paralelismo com a etapa
citada por Bamberger (1990) com as garatujas rítmicas, consideradas
pela autora como ponto emergente de todas as outras notações rítmicas
posteriores, nas quais não há distinção entre a ação e o som produzido,
sendo o movimento contínuo apresentado sem distinção entre objeto
(ritmo) e ação produzida.
Essa ação produzida pode ser entendida no desenvolvimento histó
rico como a performance gestual do monge regente, tentando conduzir o
movimento melódico e rítmico (ambos em função do texto), comprova
dos na escrita neumática inicial, a sangaliana. A mudança de centração,
do movimento contínuo para os seus efeitos discretos, é uma característi
ca da mudança de etapa, é uma resposta a uma “crise rítmica” Tal mu
dança que traz consigo um mecanismo de passagem para outra etapa,
agora é interobjetal, na qual o ritmo já é um conceito quase independente.
Vemos aqui que o processo histórico (e o psicogenético) partiu de uma
visão sociocentrada para uma visão de maior descentração. Já podemos
falar num conceito de ritmo quase independente.
Figuras
F igura 1: Neumas ingleses, “Burial O ffice” c. 1000, Winchester. Fonte: (1980). The
N ew G rove D ictionary o f Music and M usicians. London: Macmillan.
F igura 2: Neumas Aquitanianos: “Gradual” inicio do sec.XI, St. Michel-de-Gaillac.
Fonte: (1980). The New Grove D ictionary o f M usic and Musicians.
London: Macmillan.
N eu m as de u m a n o ta
Virg:i / P im c iu m
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N e u m a s de d u a s n o ta s
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Figura 3: Quadro de neumas. Fonte: Cardine, Dom Eugène. (1989) Prim eiro Ano de
Canto G regoriano e Semiologia Gregoriana. São Paulo: Attar
Editorial/Palas Athena.
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F igura 4: M elodia Gregoriana. Fonte: Cardine, Dom Eugène. (1989) Prim eiro Ano
de Canto G regoriano e Semiologia Gregoriana. São Paulo: Attar
Editorial/Palas Athena.
F igura 7: Score Notation, c.1600, Parte do “Coro Primo” Anônimo. Fonte: (1980).
The New Grove D ictionary o f Music and Musicians. London: Macmillan.
F igura 8: Tipologias de notações de crianças. Fonte: Bamberger, J. (1990) “As
estruturações cognitivas da apreensão e notação de ritmos sim ples” In
Hermine Sinclair (Org). A produção de notações na criança. Linguagem,
número, ritmos e melodias. São Paulo: Cortez.
Tipo 0
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A bstract: The purpose o f this research was to draw a parallel between the
development o f a concept, that o f written musical rhythm within the
history o f music and the psychogenesis o f musical notation. This article
contests the idea o f a parallel between ontogenesis and psychogenesis,
which was never proposed by Piaget. This study was based on the
redefinition o f the levels proposed by Piaget for the development o f a
concept and abandoned the traditional sequence o f Piaget’s four stages,
which are currently more diffused. The acknowledgement o f the
continuous intraobjectal and transobjectal levels, which happens in the
history o f science and in the psychogenesis o f each concept, represent the
description of a process in what the mechanisms o f the cognitive
development and the conceptual construction happen.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AZENHA, M.G. Construtivismo: de Piaget a Emilia Ferreiro. São Paulo, Ática, 1993.
CARDINE, D.E. Primeiro ano de canto gregoriano e sem iologia gregoriana. São
Paulo, Attar/Palas Athena, 1989.
FERREIRO, E. A escrita ... antes das letras. In: SINCLAIR, H., org. A produ ção de
notações na criança: linguagem, número, ritmos e melodias. São Paulo, Cortez,
1990. p. 19-70.
PIAGET, J.; GARCIA, R. Vers une logique des significations. Genève, Mourionde,
1987.
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1980.
STRUNK, O. Source readings in music history: antiquity and the middle ages. Lon
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