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P a r a l e l is m o e n t r e H is t ó r ia e P s ic o g ê n e s e

d a E s c r it a d o R it m o M u s ic a l

José Nunes Fernandes


Universidade do Rio de Janeiro - Uni-Rio

A pesquisa tem com o objetivo traçar um paralelism o entre o desenvolvi­


mento histórico de um conceito, o de escrita do ritmo musical, na história
da música e na psicogênese da notação musical. Ao mesmo tempo esta
pesquisa contesta a visão de paralelism o entre a ontogênese e afilo g ên e-
se, ja m a is proposta p o r Piaget. Esta pesquisa se apóia na redefinição das
etapas estipuladas p o r P iaget para o desenvolvim ento de um conceito,
abandonando a tradicional sucessão de quatro estágios divulgada hoje
em dia. O reconhecim ento da seqüência de etapas intraobjetal, interob-
je ta l e transobjetal, que acontece tanto na história das ciências com o na
psicogên ese desses conceitos, representa a descrição de um processo no
qual os m ecanismos pelos quais o desenvolvim ento cognitivo e a constru­
ção conceituai se realizam.

D escritores: Epistem ologia genética. Escrita. Ritmo. Música. D esen­


volvim ento cognitivo.

xiste interesse na notação musical para a educação musical? Muitos


E afirmam que não. Pesquisadores, como o inglês Terry (1994), posi­
cionam-se contra a obrigação da leitura da notação musical do Currículo
Nacional Inglês. Ele diz que essa leitura “só tem valor para executantes
especialistas os quais queiram passar grande parte de suas vidas profissi­
onais estudando ou interpretando a literatura musical existente” (p.l 10), e
que a notação musical está tendo menor importância hoje, com a grava­
ção e o uso de recursos eletrônicos e tecnológicos para o registro “direto”
do som e com a não intervenção dos símbolos visuais. Se a notação não é
importante no ensino da música, então por que ela foi e é importante para
o músico? Por que houve um processo histórico de constituição da nota­
ção musical?
Colocaremos essa questão de lado, já que a decisão ou não do uso
da notação musical no ensino da música necessita ser esclarecida pela in­
vestigação sobre a gênese dessa escrita. Haveria paralelismo entre a nota­
ção historicamente construída e a produzida pela criança? Ou seja, a psi-
cogênese da notação do ritmo musical teria ou não relação direta com a
gênese histórica da notação? Aqui emerge, imediatamente, um problema:
o que se desenvolve? A resposta imediata é: “conteúdo” No entanto, sa­
bemos que são os “instrumentos e mecanismos” cognitivos que se apli­
cam a qualquer conteúdo (daí serem formais). A passagem de um estágio
para outro constitui o problema central da epistemología genética. Assim,
ao se comparar o desenvolvimento social e psicológico das notações mu­
sicais, verificamos que os mecanismos e os instrumentos são determina­
dos por uma razão social: a necessidade (prática) da uniformização da es­
crita do ritmo musical. Será que essa necessidade se apresenta para as
crianças? Caso a resposta seja positiva, então seria preciso definir em que
condições essa necessidade se impõe; se for negativa, então como expli­
car que ocorra uma psicogênese da escrita do ritmo musical?

Instrumentos do conhecimento: História e Psicogênese

A história da ciência nos informa que a formação do conhecimento


baseia-se na significação epistemológica, só sendo relevante a análise da
evolução de um conceito se tomarmos em conta o papel dos precursores
no estabelecimento de um novo sistema. Sob esse ponto de vista, toma-se
essencial a caracterização dos grandes períodos sucessivos do desenvol­
vimento de um conceito ou de uma estrutura. Nessa análise, devemos
considerar também as acelerações/regressões e as ações dos precursores.
Nesse ponto, Piaget e Garcia (1984) afirmam que é comum negligenci­
armos tais aspectos também na psicogênese, já que, em ambos os casos,
história e psicogênese, cada estágio ou período inicia-se com a reorgani­
zação do herdado dos estágios anteriores. Isso compromete a afirmação,
comum na psicogénese, de que os estágios superiores não estão ligados
aos estágios elementares.
A análise comparativa entre estudos histórico-críticos e psicogené-
ticos conduz ao reencontro (em todos os níveis) de instrumentos e meca­
nismos similares. Esse fato nos leva a identificar os mesmos problemas
gerais, comuns a todo desenvolvimento epistêmico. O problema mais ge-
ral encontrado aqui refere-se, por um lado, à determinação do papel da
experiência, e, por outro, das construções operativas do sujeito.
Tanto na historia como na psicogénese, um ponto comum pode ser
identificado nas relações entre o sujeito e os objetos de seu conhecimento:
o estabelecimento dos tipos de instrumentos cognitivos que o sujeito utili­
za para resolver os problemas, de onde surgem e como são elaborados.
Uma dualidade é encontrada aqui, tanto na historia como na psico­
génese: na historia, há dualidade dos instrumentos comparativos (corres­
pondências que o sujeito faz) e dos instrumentos transformadores (cons­
truções operacionais), enquanto que na psicogénese, os instrumentos
“iniciais não são nem a percepção nem a linguagem, e sim os esquemas e
ações sensório-motoras” (Piaget & Garcia, 1984, p. 19) que só muito
tempo depois se interiorizam em operações do pensamento (se verbali­
zam em conceitos). Cada esquema de ação é fonte de correspondências
na medida em que elas vão se aplicando a novos objetos/situações, re­
sultando em transformações e novas possibilidades de ação. Aqui se
comprova a existência de tal dualidade, tanto na história como na psico­
génese, desde os estágios elementares até os superiores.

Construção e preformação

Em que medida um conhecimento é preformado em um conheci­


mento precedente, e/ou em que medida ele surge de uma construção efe­
tiva? Não se defende aqui nem o inatismo nem a construção, mas sim um
sistema de auto-regulação - não a herança. Com isso podemos afirmar
que o conhecimento nunca é um estado e sim um processo influenciado
pelas etapas precedentes. Daí a importância da análise histórico-crítica
que nos mostrará a necessidade evolutiva de determinado conceito em
um campo dado, e da análise psicogenética que nos mostrará a maneira
em que essa necessidade se constitui desde as formas mais simples. Tal
análise resultará na eleição da construção de hipóteses construtivistas
e/ou preformativas.
Piaget e Garcia (1984, 1987) negam a preformação, demonstrando
dois fatos. Primeiro, que os resultados obtidos por diferentes caminhos im­
plicam em diferentes transformações; segundo, que as coordenações das
transformações só são possíveis a posteriori e não podem ser preformadas.
Os únicos fatores realmente presentes, tanto na história como na
psicogênese, são de natureza funcional e não estrutural. Eles estão vin­
culados à assimilação e à acomodação do que é novo às estruturas prece­
dentes, e com a acomodação dessas últimas às novas aquisições realiza­
das (Piaget & Garcia, 1984, 1987). Esse aspecto funcional do
desenvolvimento cognitivo explicita a “relativa estabilidade das estrutu­
ras adquiridas, o processo de desequilibração de uma estrutura e o pro­
cesso de reequilibração do sistema em uma estrutura de ordem superior.”
(Piaget & Garcia, 1984, p.242). A passagem de uma estrutura para outra
é descontinua. Existe, pois, uma lógica interna das reestruturações; elas
não são um salto no vazio. A continuidade funcional proporciona uma
generalidade muito maior dos caracteres do conhecimento científico, uma
inconsistência relacionada ao próprio mecanismo e a um devenir cons­
tante e contínuo (incluindo as rupturas, desequilibrações e reequilibra-
ções). Isso não significa, entretanto, que devamos considerar somente o
desenvolvimento do sujeito em relação ao objeto, mas sim, ao contrário,
levar em conta que esse último está imerso em um contexto social com
relações dos tipos: 1) mediatizada pelas interpretações que provêm do
contexto social do sujeito; 2) preestablecida socialmente da maneira
pela qual o objeto funciona em relação a outros objetos ou com outros
sujeitos. Nesse processo, nem o sujeito e nem o objeto apresenta neutra­
lidade. Este é o ponto exato de intersecção entre conhecimento e ideolo­
gia (Piaget & Garcia, 1984).
Isso faz com que, tanto na história da ciência como na psicogênese,
seja encontrada a repetição de formas similares de aquisição dos conhe­
cimentos, qualquer que seja o nível. Neste fato, reside a explicação do
porquê da existência dos mesmos mecanismos cognitivos (em ação) em
todos os períodos da história e nas crianças de todos os grupos sociais,
independente da forte influência social. É necessário diferenciar os me­
canismos de aquisição de conhecimento que o sujeito dispõe e &form a de
apresentação do objeto a ser assimilado. A segunda é modificada pela
sociedade, mas os primeiros independem dela. A sociedade influencia na
significação dada a um objeto, em um momento, no contexto de suas re­
lações com outros objetos. A maneira pela qual essa significação é adqui­
rida depende exclusivamente dos mecanismos cognitivos do sujeito e não
de fatores sociais, ou seja, a maneira pela qual o indivíduo assimila de­
pende dele mesmo, mas o que ele assimila depende, ao mesmo tempo, de
sua capacidade e da sociedade. Esta última lhe fornece o componente
contextual da significação do objeto.

Desenvolvimentos sociogenéticos relativos à evolução das idéias di­


retivas, conceitualizações e às teorias, no campo da escrita do ritmo
musical

Tratando exclusivamente do caráter histórico desse conceito - es­


crita do ritmo musical -, buscaremos agora determinar os mecanismos
que atuam cada vez que se passa de uma etapa para outra na evolução
dos conceitos e teorias referentes à escrita do ritmo musical.
A notação musical é a imagem gráfica análoga ao som musical que
contém uma série de indicações (também visuais) para a execução. É,
sem dúvida, um campo muito vasto, tendo em vista sua complexidade
tanto em termos de variações nacionais ou regionais da escrita rítmica,
como em termos temporais. A discussão só pode ser estabelecida porque
existem documentos escritos (fontes) comprovando a história/evolução
da escrita musical. Para falarmos em notação musical, devemos lembrar
que ela está ligada a sistemas formalizados de signos usados entre músi­
cos, assim como a sistemas de memorização e ensino da música com sí­
labas, palavras ou frases. Cada sociedade desenvolveu, ou não, um siste­
ma de escrita musical. Os povos que utilizaram a escrita musical foram as
comunidades brancas (europeus) que desenvolveram sistemas de escrita
da língua falada; no caso da África, a maioria das comunidades negras,
mesmo tendo um complexo sistema de discurso musical, não desenvol­
veu sistemas de escrita musical.
A origem da escrita neumática1, da qual derivam-se os sinais musi­
cais usados hoje em dia, está possivelmente ligada à notação sangaliana
cujos elementos foram todos tomados dos sinais de acentuação e pontua­
ção usados nos textos literários da antigüidade e da Idade Média (Cardi-
ne, 1989). A hipótese mais aceita pelos estudiosos do assunto é a de que
a origem da escrita neumática está ligada aos acentos da palavra escrita
(Cardine, 1989; Sadie, 1980; Strunk, 1981), principalmente no que se re­
fere ao sistema de acentuação da gramática Alexandrina (Sadie, 1980).
Os neumas primitivos não eram escritos em linhas, mas sim no es­
paço acima do texto (Figura 1). Com o tempo, os neumas passaram a ser
escritos mais próximo ou mais longe do texto, iniciando o processo de
intenção de altura mais precisa na notação (Figura 2). O surgimento de
uma linha-guia viria inaugurar o aparecimento de várias outras linhas, fi­
xando as alturas (Figura 4).
Mas o ritmo continuava mais ligado ao texto e, com o aparecimento
da notação neumática quadrada2, a notação neumática primitiva (sangali­
ana) perdeu a função quando a melodia passou a ser precisamente regis-

1 A palavra neuma deriva da Grécia Antiga (significava gesto, daí sua decodificação
primeira ser relativa ao gestual do regente [o cantor] para dirigir o coro) e parece ter
sido usada primeiramente no ocidente no século IV pelo gramático Cominianus,
que escreveu o interpretatur nutus - denotando um signo ou um “gesto”
2 Estilizada pela Vaticana e atualmente é plenamente usada (Cardine, 1989).
trada na pauta, usando dois fragmentos silábicos muito simples, trans­
formados em seus elementos de base: um do acento agudo (que se tomou
virga = nota aguda), e o outro do acento grave que se tomou punctum
(indicador de nota grave), transferidos para a notação quadrada e para a
pauta (Cardine, 1989) (Figura 3).
Depois de seu aparecimento no século IX, a escrita neumática so­
freu modificações e foi também identificada com características diversas
em regiões distintas. Muitas escritas neumáticas não podem ser descritas
pois não se sabe o que cada signo significa. Somente quando os neumas
passaram a ser escritos nas linhas (século XII, com a notação quadrada),
foi possível interpretar mais precisamente a notação. A notação neumáti­
ca baseia-se na rítmica inerente da prosódia, de gestos manuais e de “le­
tras significativas”, as quais poderiam significar aspectos rítmicos, co-
mumente usadas entre os séculos IX e XI (Cardine, 1989; Sadie, 1980).
Guido D ’Arezzo desenvolveu, já no século X, além de um sistema
melódico definido por sílabas hoje conhecidas como notas musicais, um
sistema rítmico detalhado que se fundamentava no ritmo do verso. Mas tor­
nava-se cada vez mais clara a necessidade de sistematizar as durações. Gui­
do D ’Arezzo, no seu Micrologus, afirmava que “é necessário saber onde
uma duração longa ou curta deve ser usada.”(Apud Sadie, 1980, p.812).
Na música polifónica do século XII, principalmente no organum
melismático, o ritmo era muito livre (imprecisão das durações), proporci­
onando desencontros entre as vozes e superposições não previstas ou de­
sejadas, gerando o aparecimento da música mensurata, na qual a duração
dos sons e silêncios passou a ser regulada. Podemos verificar que a nota­
ção neumática evoluiu de signos imprecisos para uma precisão relativa,
em termos de melodia, até chegar a uma maior precisão: a pauta musical.
Entretanto, o ritmo estava embutido num “todo” que era regido pelo tex­
to, já que não se tratava somente de “amoldar simplesmente à acentuação
das palavras e de seguir o ritmo natural (...) trata-se então do espírito do
texto mais que sua matéria, mas, definitivamente, é sempre o texto que
inspira a melodia.” (Cardine, 1989, p.57).
Com a polifonia, ocorreu uma sofisticação estilística, devido ao in­
cremento da improvisação, necessitando-se de uma definição maior das
relações rítmicas entre as vozes individuais. Paris (Catedral de Notre
Dame) foi o centro musical de maior importância no estabelecimento de
padrões rítmicos regulares definidos em uma pulsação constante, mas
ainda muito ligada às exigências textuais. Evidencia-se aqui o apareci­
mento de uma nova significação rítmica para os símbolos sonoros. Quan­
do ocorre o aparecimento de uma nova notação rítmica, evidencia-se uma
“crise rítmica.” (Sadie, 1980).
Os modos rítmicos compreendiam seis padrões que se baseavam no
ideal de expressão dos melismas do organum, os quais eram não-textuais. O
princípio da divisão temária, derivado do perfectio do número 3, foi manti­
do. No século Xin, a liberdade de movimentação das vozes e a liberdade
mensurai podem ser percebidas na “enorme possibilidade de subdivisão e
conseqüente aumento da independência rítmica das vozes individuais.” (Sa­
die, 1980, p.813). Os modos rítmicos eram, muitas vezes, superpostos, prin­
cipalmente, o Io, 2o e 3o modos. Neste mesmo século, Marchetus di Padova
(Marchetto da Padua) introduz signos referenciais importantes na evolução
da paleografía do Ocidente (Scliar, s.d.; Strunk, 1981). Philipp de Vitry, no
seu tratado Ars Nova, desenvolveu o sistema de Padova, criando símbolos
específicos para as durações e suas divisões e subdivisões binárias e temári-
as. A versatilidade rítmica {Ars Nova do século XIV) caracterizou-se por di­
visões quantitativas diversas, pela alternância métrica, pela poliritmia3 e po-
limetria, e pela variação do valor normal das figuras (coler), com a mudança
de coloração (de preto para vermelho e, posteriormente, do vermelho para o
branco), gerando o que se chamou de “white notation.” (Sadie, 1980, p.814).
No século XV, as figuras em forma de losango começaram a dar espaço às
figuras de forma arredondada (v.Figura 7), por causa da dificuldade de dese­
nhar manualmente losangos com rapidez.

3 Poliritmia é a superposição de divisões quantitativas heterogêneas com coincidên­


cia nos apoios e, muitas vezes, também coincidindo no início. Na polimetria os
apoios não coincidem.
Entre os séculos XV e XVI, desenvolveu-se um sistema baseado
em proporções aritméticas. Havia também uma referência para a pulsa­
ção, o tactus, que se vinculava ao caráter da música, já que inexistiam os
andamentos. Mesmo assim, os valores das figuras não eram totalmente
independentes, sendo necessário analisar o conjunto, pois diferentes pro­
porções eram agrupadas. Existiam também símbolos para diminuição e
aumentação, manipulando-se o valor do tactus.
A complexidade decorrente do uso das proporções fez com que
Tomas Morley, no século XVI, criasse a organização dos compassos
(Scliar, s.d.), o que correspondeu aos efeitos do acento condicionado.
Isso ocorreu porque na polifonia, com a combinação de melodias inde­
pendentes, ressaltava-se também a sua independência rítmica. Motivava-
se, pois, a não-coincidência dos apoios. Além disso, o processo imitativo
entre as vozes, um tipo de unidade da música polifónica, e a busca da
consonância, na maioria das vezes, não permitiam que as imitações se
iniciassem no mesmo lugar da voz anterior, ocorrendo assim um deslo­
camento da tésis.
No barroco inicial, Michael Praetorius, na segunda metade do sé­
culo XVI, introduzia o seu próprio sistema, que dividia a música em
harmônica e métrica (Sadie, 1980), sendo o ritmo, para ele, pura divisão
matemática. Via-se, nessa época, a proliferação da música instrumental
com o corrente uso do ostinato e do baixo contínuo, e do uso excessivo
de ornamentos, deixando o estilo declamatório somente para a voz supe­
rior. Iniciava-se, pois, a homofonia - uma melodia acompanhada por
acordes e um baixo contínuo. O impulso da dança deu vida ao ritmo na
era barroca (as sonatas da câmera, as suítes, tinham ritmos inspirados na
dança). A padronização do ritmo das danças identificava-se com a padro­
nização dos modos rítmicos medievais. Em contraste com a música influ­
enciada pela dança, que era regulada pelos acentos rítmicos, os compo­
sitores polifónicos conservaram um estilo rítmico isócrono. O
deslocamento de uma série rítmica, simples em todos os registros, tor-
nou-se característica das polifonias barrocas, estabelecendo um pulso re-
guiar (em termos de duração e intensidade). Sistematizava-se, então, uma
complexa notação do ritmo totalmente independente.

Desenvolvimentos psic ogenéticos relativos à escrita do ritmo musical


nas crianças e seu paralelo com o seu desenvolvimento na história

Segundo Beyer (1988), uma das condições para a fundamentação


de uma teoria cognitiva da Educação Musical seria fazer um paralelo en­
tre a ontogênese e a filogênese musical. Piaget e Garcia (1984) dizem que
isso só é possível em alguns campos do conhecimento e, dentro deles,
com alguns conceitos específicos. Isso implica num paralelismo que não
pode ser generalizado para toda a história da música (seus diversos cam­
pos e áreas), mas apenas ao paralelismo entre a evolução de alguns con­
ceitos musicais e o seu desenvolvimento psicogenético. Para que um pa­
ralelismo seja estabelecido, é fundamental, em primeiro lugar, localizar e
apresentar documentos que comprovem e expliquem as etapas do desen­
volvimento, seja no campo da história, seja na psicogênese de um con­
ceito específico.
Quanto ao conceito de escrita do ritmo musical, comprova-se, pelos
documentos existentes, que havia uma imprecisão inicial, seguida de uma
apuração dessa imprecisão, até alcançar padrões rítmicos precisos e defi­
nidos. Isso ocorre também com a escrita da língua falada, o alcance de
uma maior complexidade em termos de precisão (Azenha, 1993; Ferreiro,
1990). Baseados nos estudos de Bamberger (1990), tentaremos levantar
algumas questões referentes ao desenvolvimento psicogenético do con­
ceito de escrita do ritmo musical4 e seu possível paralelismo, ou não, com
o desenvolvimento histórico desse conceito.

4 Atterbury (1992) mostra a ligação entre consciência rítmica e representação sim bó­
lica no desenvolvimento musical afirmando que o entendimento rítmico pode ser
visto através da representação simbólica.
Apesar de todo ser vivo estar cercado e entranhado por/de ritmos
(coração, respiração, andar), a notação das durações foi muito tardia na
história da música e da escrita musical. Na história, a rítmica inicial usou
como referencial a língua falada - transferência do ritmo do texto para a
música -, uma dependência inicial que foi transmitida para a escrita da
música (e do ritmo), fazendo com que os sinais aparecessem primeira­
mente sobre o texto, adquirindo depois precisão e independência progres­
sivas. Como isso se relaciona com o desenvolvimento psicogenético do
conceito?
Bamberger (1990) mostra que crianças de 4-5 anos produzem um
tipo de “garatujas rítmicas” (Figuras 8 e 9), consideradas como “formas
primitivas das quais emergem todas as outras.” (p. 103). Parece haver ne­
cessidade de reproduzir no papel os “movimentos das mãos e dos braços
que produzem as batidas” (p. 103) (neste caso a escrita referia-se a uma
série de palmas), não fazendo distinção entre a ação e o som produzido.
A mudança de centração, do movimento contínuo de bater, para os
“efeitos discretos”, é um importante elemento no desenvolvimento da es­
crita do ritmo musical. Muitos pesquisadores, segundo Bamberger
(1990), já estudaram e descreveram as “garatujas”5 feitas por crianças,
inclusive menores, de objetos e formas geométricas, e Ferreiro (1990),
das garatujas da palavra.

O primeiro caráter (...) é o de um simples ritmo, a expressão mais ele­


mentar do grafísmo de uma criança é o movimento da mão sobre o papel,
e é desse jogo rítmico de m ovimentos que irão se diferenciar as primeiras
formas do estádio I. (Piaget & Inhelder apud Bamberger, 1990, p. 105).

No desenvolvimento histórico, a notação também se inicia de for­


ma associada ao gestual dos braços6 e, conseqüentemente, ao som (melo-

5 Entre eles estão Gardner, Goodnow e Piaget e Inhelder.


6 “Constata-se, então, a preocupação de se utilizar vários m eios gráficos para expri­
mir a variedade de notas. Na base do sistema, m anifesta-se a intenção de traduzir
uma melodia por um gesto e de fixar esse gesto sobre o pergaminho: de fato, o
neuma é um ‘gesto escrito.’” (Cardine, 1989, p. 107).
dia + ritmo), e podemos dizer que de forma “garatujal”, tendo em vista
que a notação originou-se de pequenos neumas rabiscados em cima do
texto, imprecisos e confusos. Mas o ponto de coincidência não é a impre­
cisão garatúgica, e sim o mecanismo de ambos os casos, da não-
separação entre o som e o movimento contínuo de produção deste som.
Dessa maneira, parece existir, sob certas condições, um processo de
desenvolvimento psicogenético semelhante ao histórico que merece ser
melhor compreendido. Esse estudo centra-se no esclarecimento baseado
nas investigações conduzidas por Piaget e outros, mostrando que o pro­
cesso apoia-se em uma estruturação da cognição das ações (musicais) dos
sujeitos. As ações humanas podem ser separadas em dois aspectos: os
causais ou efetivos e os antecipatórios ou inferenciais. A ação musical,
então, pode ser compreendida como o momento da execução e o mo­
mento da antecipação do que se executará. A notação musical, dessa ma­
neira, envolveria o segundo aspecto: antecipa-se o que se executará e de-
fine-se os modos de execução.
Na investigação psicognética, uma segunda fase da notação pode
ser caracterizada: as formas “figurai” e “representação métrica”, comuns
em crianças entre 6-7 anos, mostram o início de uma capacidade de re­
flexão sobre as suas próprias ações e de diferenciação de suas caracterís­
ticas (Bamberger, 1990). Ao contrário da fase anterior, a notação repre­
senta o número correto de sons (eventos) e inclui a regulação dos
movimentos, aproximando-se mais da descrição do ritmo apresentado,
representando um grupo e sua repetição (tipos figurai 1 e 2) e a separação
dos eventos sutis do movimento contínuo da ação. Cada desenho repre­
senta um evento, uma unidade, mas já apresenta o início da aparição de
unidades referentes à pulsação na criança. A modificação, em relação ao
estágio anterior, vai desde a separação da ação e do som, até uma maior
especificação das unidades apresentadas. Essa nova etapa apresenta uma
importante mudança: a saída de um estado indiferenciado de todos os
elementos e o início do desmembramento de um ritmo contínuo, com se­
paração entre o movimento (ação) e as partes internas.
Outra importante mudança é apresentada nessa etapa, pois, segundo
Piaget e Inhelder (Apud Bamberger, 1990, p.107), essa escrita contém

... em estado indiferenciado todos os elementos que, ulteriormente, cons­


tituirão o desenho das retas, das curvas, dos ângulos, embora o sujeito
seja ainda incapaz de extraí-las ou abstraí-las do ritmo do conjunto (...) O
problema apresentado à criança consiste, na verdade, em realizar uma
forma definida a partir de movimentos ritmados, oscilantes eles próprios
entre ziguezagues vagos e formas cíclicas. Conseqüentemente, mesmo
para fazer um círculo, trata-se de interromper o ritmo contínuo, aprovei­
tando suas voltas ou seus fechamentos espontâneos.

Mesmo falando da forma e não da escrita de ritmos percebidos, as


afirmações de Piaget e Inhelder confirmam esse acontecimento, também
em relação ao ritmo musical, pois em ambas, nessa etapa, as crianças pa­
recem estar em um ‘“ processo de regulação’ na sua capacidade de inter­
romper e agrupar” (Bamberger, 1990, p. 107), de desmembramento de um
ritmo contínuo, com separação entre o movimento (ação) e as partes in­
ternas (Figura 9).
Na psicogênese, os estudos têm demonstrado que, em crianças
acima de 7 anos, o aparecimento de outro tipo de notação, chamada de
“figurai 2”, inclui claramente elementos das notações anteriores, mas
mostram uma ultrapassagem: a diferenciação das divisões (Bamberger)
(Figura 9). A escrita já está, como na etapa 2, desvinculada do movi­
mento contínuo, diferenciando os eventos que o compõem, mas também
apresentando diferenciação das divisões. Nesta etapa, além da escrita dos
eventos individuais, apresenta-se também uma alteração no tempo global
da seqüência e a representação da não-ação (pausas). Bamberger (1990)
mostra que essa fase difere da anterior, pois mesmo permanecendo “figu­
rai”, ela exige do sujeito reflexão sobre as ações, expressando mais “ ‘o
pensamento em ação’ do que a própria ação”’ Inicia-se aqui um processo
desvinculado da ação imediata, porém muito mais simbólico, ilustrando
“ações do que vêm a ser, elas próprias, ações” (p.l 10); é mais complexa,
pois reflete a mudança de tempo e mostra uma estrutura agrupada, ou
melhor, hierarquizada; fornece mais dados para a repetição mais precisa
por outra pessoa ou em outra ocasião.
Na gênese histórica, da mesma forma, a segunda etapa é caracteri­
zada por um tipo de notação, ainda neumática, mas com escrita de pe­
quenos signos geralmente em forma quadrada e depois losangular. Essa
notação não mais mistura o movimento (um todo) com os eventos parti­
culares e já apresenta uma especificação: o número correto de sons e a
regulação dos movimentos. Nesta etapa, cada neuma significa um grupo
de sons, ou som, mostrando assim o aparecimento, como na psicogênese,
de um processo de regulação na capacidade de interromper e agrupar e de
desmembrar um ritmo contínuo, com separação entre o movimento, en­
quanto um fenômeno inteiro (ação), e as partes internas.
O paralelismo, nessa etapa da psicogênese e da história, pode ser
comprovado quando verificamos que, no desenvolvimento histórico,
ocorreu da mesma forma, pois a notação neumática secundária gerou
uma série de modos rítmicos organizados, os quais já estavam desvincu­
lados do movimento contínuo (notação neumática primitiva), diferenci­
ando os eventos que o compunham (neumática secundária), mas também
apresentando diferenciação das divisões (modos rítmicos), a pulsação (o
tactus) e iniciando-se as primeiras regulações de divisão proporcional,
com o início da desvinculação da música e do texto e o predomínio da
música instrumental, primeiramente baseada em ritmos da dança (Sadie,
1980; Scliar, s.d.).
Numa etapa posterior do desenvolvimento da escrita do ritmo mu­
sical, aparecem nas crianças notações, chamadas por Bamberger (1990)
de notação tipo “Métrica 2”, que refletem muito mais um “deslocamento
importante de centração cognitiva do que uma elaboração de uma abor­
dagem já presente antes, como no caso da mudança de F1 para F2.” (p.
110). Este novo tipo de notação do ritmo “... mostra a passagem da cen­
tração da reprodução de uma ação efetuada e sentida, da atenção prestada
aos agrupamentos em figuras e à função dos eventos, para uma centração
na medida das durações relativas de todos os eventos.” (p.l 10).
Existe uma correspondência da escrita de sons curtos e formas pe­
quenas, e de sons longos com formas maiores. Inicia-se, portanto, uma
diferenciação entre as durações de cada evento e forma-se a capacidade
de comparação de todos os eventos entre si e da sua classificação, muito
mais do que preocupações em relação à situação seqüencial. Este tipo de
notação se afasta da anterior em favor da medida.
Nessa etapa (Métrica 2 e 3), além da capacidade de classificação
dos eventos em função da duração relativa entre eles, as crianças são ca­
pazes de mostrar a duração de cada evento em relação a um pulso estável
(Bamberger, 1990). Nesse estágio, as crianças

... inventaram os com eços de um sistema formal simbólico, próximo da


notação rítmica tradicional. Um sistema simbólico formal (em nosso
contexto) é definido com o um conjunto de signos cujos referentes são
elem entos e relações que ficam constantes em relação a um quadro refe­
rencial externo e estável (uma estrutura formal), generalizáveis a todas as
instâncias em um dado domínio (por exemplo, a todo ritmo), aplicáveis de
um ponto a outro de contextos internos variados e aceitáveis por leitores
diferentes. (Bamberger, 1990, p. 111).

No caso da escrita do ritmo musical, isso significa que os signos


trazem tanto os diferentes níveis de estrutura temporal e as relações entre
esses níveis, como uma conseqüente unidade de medida invariante-
unidade métrica. Hargreaves e Zimmerman (1992) afirmam que vários
estudiosos já mostraram que é nessa mesma idade que se fixa a “conser­
vação métrica.” (p.387).
Os historiadores têm mostrado que, na Renascença7, constituiu-se
um sistema regular de divisão aceito e usado em um referencial de tempo
invariável: o pulso. No Barroco, esse sistema tomou-se mais complexo
ao se tomar o pulso por regulador por meio das divisões e subdivisões
(Sadie, 1980; Scliar, s.d.). Essa regulação, que se apresenta na notação,
onde a unidade de tempo encontra-se subjacente - nem sempre ela é ex­
plicitada - apresenta uma coordenação de uma unidade com as batidas,
projetando-as em um quadro de referência fixo.
Nas investigações psicogenéticas, reencontra-se esse mesmo modo
de organizar a notação rítmica. Apresenta-se aqui uma expressão acabada
da centração nas unidades, que já se iniciava no segundo estágio (“Métri­
ca 1”). Neste estágio, as crianças constróem algo semelhante ao que Pia-
get chama de “agrupamentos”:

... todo mecanismo mental evolui do ritmo ao agrupamento por intermé­


dio de regulações que coordenam, primeiro, os elementos dos ritmos8 ini­
ciais e que resultam, em seguida, em sua reversibilidade crescente, em
formas diversas de agrupamentos. (Bamberger, 1990, p .l 13).

Verifica-se que o ciclo do desenvolvimento da escrita musical das


crianças inicia-se com as garatujas rítmicas para regulações expressas nos
tipos F1 e M l (desde a separação da ação e do som, até uma maior espe­
cificação das unidades apresentadas), passando depois por um tipo de re­
gulação bem mais articulada (F2) e, finalmente, construindo um quadro
de referência fixo, que é resultado de uma reversibilidade crescente (Ml
e M2) (Bamberger, 1990). No processo de desenvolvimento da escrita do
ritmo musical nas crianças, as relações métricas e figurais interagem e
são totalmente coerentes, aparecendo em vários estágios da escrita muitas
vezes separadas, mas

... os dados da experimentação psicológica parecem sugerir que é o pró­


prio processo de descrição que separa os aspectos métricos e figurais (.:.)
é quando traduzimos nossas unidades de apreensão em unidades de des­
crição que “analisamos” a experiência vivida nessas duas dimensões.
(Bamberger, 1990, p .122).

A natureza das representações em símbolos e signos define a sepa­


ração dos aspectos apreendidos simultaneamente, devido à especificidade
dos referentes. A notação do ritmo musical é, pois, uma apreensão de fi-

8 Piaget refere-se aqui ao movimento e não ao ritmo musical.


guras, “descritas somente postfacto como uma coordenação particular de
características integrantes” (Bamberger, 1990, p.123), tanto na psicogé-
nese como na historia.
Assiste-se aqui ao conflito entre a experiência interior subjetiva e a
exteriorização simbólica, porque as diferentes notações produzidas nas
distintas etapas do desenvolvimento demonstram o estado atual da capa­
cidade do sujeito de descrever, exteriorizando certos aspectos do fenó­
meno sonoro mais que outros (ou sem poder ainda descrevê-los). Verifi-
ca-se, porém, que os processos de descrição são resultado de urna certa
aprendizagem: “o sujeito aprende a centrar, a diferenciar e classificar
propriedades, a comparar eventos separados no tempo e, assim, a distan-
ciá-los de seu próprio contexto situacional único.” (Bamberger, 1990,
p. 123). O processo de singularidade e de unicidade é a característica da
experiência artística, mesmo de um simples ritmo, já que envolve a capa­
cidade de manipular o conflito entre a “invariáncia de certas propriedades
e o caráter único de sua formação contextual.” (p.123). Trata-se de urna
“transação figural-formal ... essa capacidade de operar agrupamentos va­
riados e de reuní-los de maneira que eles se enriqueçam mutuamente.”
(Bamberger, 1990, p.124).

Conclusões

A pesquisa teve como objetivo traçar um paralelismo entre o des­


envolvimento histórico de um conceito, o de escrita do ritmo musical, na
historia da música e na psicogênese desse conceito. Ao mesmo tempo, a
pesquisa é contrária a uma visão de paralelismo entre a ontogénese e a
filogênese, jamais proposta por Piaget. Ela utiliza a redefinição das eta­
pas proposta por Piaget para o desenvolvimento de um conceito, abando­
nando mesmo a tradicional sucessão de quatro estágios divulgada hoje
em dia. O reconhecimento da seqüência de etapas intra-, inter- e trans-,
que acontece tanto na história das ciências como na psicogênese dos con­
ceitos, representa a descrição de um processo no qual se realizam os me­
canismos do desenvolvimento cognitivo e a construção conceituai. Com
a comprovação das três etapas, Piaget (Piaget et al., 1980) as relaciona
com as três formas conhecidas de equilibração cognitiva: (1) equilibração
entre assimilação e acomodação dos esquemas (etapa intra-); (2) equilibra­
ção entre sub-sistemas (etapa inter-) e (3) equilibração entre a diferencia­
ção crescente dos sub-sistemas e a integração em totalidades (etapa trans-).
O paralelismo entre a evolução das noções, no campo da história e
no desenvolvimento psicogenético, não se refere aos conteúdos das no­
ções mas, sim, aos instrumentos e mecanismos comuns em sua constru­
ção. O mais geral deles é a natureza dos raciocínios, que, em todos os ní­
veis psicogenéticos e na história das ciências, evoluem de abstrações
empíricas9 para abstrações reflexivas10 e, por outro lado, por generaliza­
ções, tanto extensionais como construtivas (Piaget & Garcia, 1984). O
sequenciamento dos estágios não é aleatóreo. O conhecimento das leis
que regem este sequenciamento é importante, mas não basta. E necessá­
rio apontar que os mecanismos de passagem de um período histórico para
o seguinte são análogos aos de passagem de um estágio psicogenético
para o seguinte. Um mecanismo já conhecido é o que se refere ao fato de
que quando ocorre um “transbordamento”11 cognitivo, o que foi trans­
bordado está de alguma forma integrado ao ultrapassante, isto é, ao novo.
Outro mecanismo de passagem é o processo que conduz do intraobjetal
(ou análise dos objetos) ao interobjetal (ou estudo das relações e trans­
formações) e daí ao transobjetal (ou construção das estruturas). Esta tría­
de dialética está presente em todos os níveis e domínios, sendo encontra­
da nas sucessões globais e nas sub-etapas que compõem essas sucessões.
Este é o argumento de maior peso a favor de uma epistemologia genética
construtivista.12

9 “que extrai suas informações do próprio objeto.” (Piaget & Garcia, 1984, p. 10).
10 “que procede a partir das ações do sujeito.” (Idem, ibidem).
11 ultrapassagem, no original, rebasamiento.
12 Para os autores o empirismo daria conta somente da passagem do intra para o inter,
o apriorismo daria conta somente do trans, mas não satisfaria as etapas do tipo intra
Piaget estabelece três etapas características do desenvolvimento
dos conceitos nas crianças e na historia da ciência. A primeira dessas eta­
pas é a intraobjetal que, no nosso caso, representa a etapa na qual a nota­
ção rítmica aparece extremamente ligada à notação melódica e, conse­
qüentemente, ao texto. Não há distinção entre o movimento final
resultante (ação) e urna escrita do ritmo. A notação representa uma não
separação entre sujeito (a música, a produção sonora e sua notação como
um todo) e objeto (ritmo). O som unificado ao gesto, unificado ao texto. O
conceito de ritmo independente do texto (ou do todo) ainda não existe. O
conceito desenvolvido resume-se, pois, à ação musical; essa fase é, por­
tanto, intraobjetal. A atividade musical é anotada no seu conjunto, fazendo
com que o objeto da representação seja a ação musical e não o ritmo.
No caso da psicogênese, nota-se o perfeito paralelismo com a etapa
citada por Bamberger (1990) com as garatujas rítmicas, consideradas
pela autora como ponto emergente de todas as outras notações rítmicas
posteriores, nas quais não há distinção entre a ação e o som produzido,
sendo o movimento contínuo apresentado sem distinção entre objeto
(ritmo) e ação produzida.
Essa ação produzida pode ser entendida no desenvolvimento histó­
rico como a performance gestual do monge regente, tentando conduzir o
movimento melódico e rítmico (ambos em função do texto), comprova­
dos na escrita neumática inicial, a sangaliana. A mudança de centração,
do movimento contínuo para os seus efeitos discretos, é uma característi­
ca da mudança de etapa, é uma resposta a uma “crise rítmica” Tal mu­
dança que traz consigo um mecanismo de passagem para outra etapa,
agora é interobjetal, na qual o ritmo já é um conceito quase independente.
Vemos aqui que o processo histórico (e o psicogenético) partiu de uma
visão sociocentrada para uma visão de maior descentração. Já podemos
falar num conceito de ritmo quase independente.

e inter. O caráter dialético e construtivista das atividades cognitivas é evidenciado


na sucessão dos intra para os inter e somente daí para os trans.
Na psicogênese, verifica-se o aparecimento de uma notação com
maior grau de diferenciação quanto ao ritmo. Agora, o conceito de ritmo
aparece ligado a um grupo fixo de sons. Representa-se, pois, o número
correto de eventos rítmicos. O mecanismo de mudança entre as duas eta­
pas foi, inicialmente, a separação da ação e do som e também uma maior
especificação das unidades apresentadas. Aparece então a capacidade de
interromper e agrupar padrões rítmicos mais independentes, principal­
mente do texto, no caso da história. As notações figurais (1 e 2) de Bam-
berger (1990) representam essa etapa, mostrando claramente que quando
a criança alcança a notação tipo figurai 2, na qual os elementos das eta­
pas anteriores são visíveis, demonstram uma ultrapassagem.
Na história, a ultrapassagem vai desde o aparecimento da escrita
neumática quadrada, que simbolizava eventos mais específicos e sua in­
clusão na pauta, até o desenvolvimento de dezenas de modos rítmicos, os
quais foram sucumbidos na notação tradicional atual, com a adoção da
PRP (Progressão Redutiva Proporcional) binária, substituindo a PRP ter-
nária (v. Figura 5).
Uma última etapa, a transobjetal, fixa-se a partir de outro mecanis­
mo de mudança. A notação focaliza os elementos musicais distintamente,
havendo uma determinação de um sistema simbólico formal, generalizá-
vel a todas as instâncias em um dado domínio, no caso, o ritmo. Na histó­
ria, isso se deu com a notação renascentista, onde a notação rítmica já é
independente, ou seja, os signos trazem tanto os diferentes níveis de es­
trutura temporal como as relações, com uma conseqüente unidade de me­
dida invariante - a unidade métrica.
O reconhecimento da seqüência de etapas intra-, inter- e trans-, que
acontece tanto na história das ciências como na psicogênese dos concei­
tos, representa a descrição de um processo; estão aqui os mecanismos
pelos quais o desenvolvimento cognitivo e a construção conceituai se re­
alizam (Piaget et al., 1980). Daí Piaget mostrar a necessidade dos estudos
do processo dialético na teoria do conhecimento e de uma lógica das si­
gnificações (Piaget & Garcia, 1987; Piaget et al., 1980). O processo,
descrito em etapas sucessivas, encontra sua validação na medida em que
engendra diferentes necessidades progressivas, cujas conquistas só são
feitas por etapas. Na etapa intraobjetal, no nível das ligações p.ex., a ne­
cessidade implica nas relações entre elementos, não indo muito além da
simples generalização. Na etapa seguinte, a interobjetal, a notação alcan­
ça um nível explicativo superior, já que as transformações fornecem um
sistema de conexões necessárias que determinam “intrinsecamente” as
“razões” das propriedades invariantes. A última e mais elevada etapa é a
transobjetal; na medida em que as estruturas fornecem uma resposta à
necessidade de “explicação” (requeridas na etapa tipo inter-), o sistema
total de transformações representado por uma estrutura, engendra novas
transformações e fornece as razões de sua composição de conjunto. Uma
teoria cognitiva da Educação Musical levaria em conta esses estágios es­
tabelecidos com o paralelismo, baseando-se nas características de cada
etapa para a elaboração de programas escolares que queiram incluir tam­
bém um treinamento da escrita musical.

Figuras

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N eu m as de u m a n o ta

Virg:i / P im c iu m
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N e u m a s de d u a s n o ta s
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C H in a cu s ^ \ S c a n d íc u s 3
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Figura 3: Quadro de neumas. Fonte: Cardine, Dom Eugène. (1989) Prim eiro Ano de
Canto G regoriano e Semiologia Gregoriana. São Paulo: Attar
Editorial/Palas Athena.
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F igura 4: M elodia Gregoriana. Fonte: Cardine, Dom Eugène. (1989) Prim eiro Ano
de Canto G regoriano e Semiologia Gregoriana. São Paulo: Attar
Editorial/Palas Athena.

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Alcintoal bal l oa l Jo m bro

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estruturações cognitivas da apreensão e notação de ritmos sim ples” In
Hermine Sinclair (Org). A produção de notações na criança. Linguagem,
número, ritmos e melodias. São Paulo: Cortez.

Tipo 0

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F igura 9: Tipologias de notações de crianças. Fonte: Bamberger, J. (1990) “As


estruturações cognitivas da apreensão e notação de ritmos sim ples” In
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A bstract: The purpose o f this research was to draw a parallel between the
development o f a concept, that o f written musical rhythm within the
history o f music and the psychogenesis o f musical notation. This article
contests the idea o f a parallel between ontogenesis and psychogenesis,
which was never proposed by Piaget. This study was based on the
redefinition o f the levels proposed by Piaget for the development o f a
concept and abandoned the traditional sequence o f Piaget’s four stages,
which are currently more diffused. The acknowledgement o f the
continuous intraobjectal and transobjectal levels, which happens in the
history o f science and in the psychogenesis o f each concept, represent the
description of a process in what the mechanisms o f the cognitive
development and the conceptual construction happen.

Index terms: Genetic epistemology. Handwriting. Rhythm. Music.


Cognitive development.

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