Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Voz doEco
Prefácio
Cla1,de Jaeglé
Tradução
Vivia11c Veras
f\fQCHDO"'
� lfTRflS
PREf:\CIO
9
"estádio do espelho", cuja natureza conceituai per
manece, ela própria, discuth-el. Se Erik Porge reto
ma o termo "estádio", tah-ez seja porque a imagem
sonora de um grande conceito tenha alguma coi
sa de estimulante, mas ta!v-ez, sobretudo, porque o
"estádio do eco" pareça o avesso desse tempo de
apropriação e de confirmação que o "estádio do
espelho" oferece ao sujeito pela percepção de sua
imagem reduplicada. Também é pertinente pôr em
relação esses dois momentos narcísicos como "es
tádios", noção rica de uma problemática cujo teor
Porge amplia, acrescentando a ela um componente
inédito: o de espaço de jogo.
Se esse ensaio nos parece, contudo, o lugar
de nascimento de um conceito, é de saída porque
assume o risco e a felicidade da invenção. Erik Por
ge dá o pulo do,gato que o liberta das reiterações
que frequentemente limitam o pensamento da voz
a uma retomada de esquemas estruturais que ter
minam por destruir qualquer interesse pela mani
festação rncal empírica. E, em seguida, porque ele
consegue unir os fenômenos de invocação - grito,
voz, silêncio, apelo ao outro - em uma representa-
10
ção teórica original, e porque dá a esse lance de da
dos da Yoz, definida como "ecoJ ' da -voz, um nome
que se fixa imediatamente no pensamento como o
atrator de uma instrumentação inoyadora.
Se o julgamos pelo escasso número de obras
de psicanálise que lhe são consagradas, o pensamen
to da voz tem sido - ao menos na França - his
toricamente deixado de lado. "Sobre o diYã [... ], é
frequentemente por uma modificação na ordem da
\-oz que nos apercebemos de que alguma coisa, na
ordem do desejo, tenha sido tocada [ ...]", constata
Denis ,-asse, mas "não se fala disso frequentemen
te".' _-\ história dessa negligencia permanece por
escre,-er, a começar pelo pouco tempo consagrado
pelo próprio Lacan à "pulsão inrncante" e ao "afeto
auricular". Eri.k Porge e_stabelece o histórico da con
cepção lacaniana da voz como objeto pulsional e
ordena de forma útil seus componentes. l\Ias nesse
trajeto ele para, paciente, ante os fatos negligencia
dos. O pensamento psicanalítico retém, por exem
plo, das Metamoifoses de Ovídio a figura de um Nar-
1-J
que o precede, o que lhe dá um valor operatório que
vai muito além da vocalização tomada isoladamente
- e essa não é a menor lição desse ensaio.
Se se estima a qualidade de uma ideia pelo
número de hipótese.s e de ideias que ela, por sua vez,
engendrará, parece-me que o conceito de "estádio
do eco" está destinado a um belo futuro. Resta uma
questão inelutável: os autores afinados arriscam-se
a ter uma falsa concepção de voz? Não podemos
afirmar isso, mas, falando francamente, isso seria
apenas justiça. 3
Claude Jaeglé
15
fico, Alexandre c:abanel, 1874.
INTRODUC\O
19
O "monólogo a duas vozes" de Narciso e de
Eco é '.'como o espinho fincado no coração de toda
teoria da comunicação", "sustenta - se apenas em um
som, no qual realiza seu destino de antonomásia".5
Um destino que soube imediatamente inspirar os
poetas para uma nova forma de poesia: o verso em
eco, ao qual Étienne Tabourot consagrou um capí-
0,tlo de seu livro em 1583,6 e cuja tradição foi perpe
tuada por Yictor Hugo (Odes et balladu).
Restituir voz a Eco intro_duzindo um estádio
do eco vai além da homenagem literária. _-\poiar- se
no valor do mito como o modo narrativo da estru
tura é discernir o espaço-tempo topológico da voz
na pulsão invocante. Essa voz que Sócrates chamava
de seu daimonion: "Isso começou na minha infância.
Ouço uma voz que se faz ouvir e, toda vez que isso
acontece, ela me desvia do que estou a ponto de fa
zer, mas nunca me leva à ação." (Apologia de Sócrates).
20
Segundo . Lacan, é essa voz que sustenta a
atopia de Sócrates. "Nenhwn sentimento trágico,
como se diz em q,ossos dias, sustenta a atopia de Só
crates, somente wn demônio. Não esquecemos esse
daimon porque ele nos fala disso sem cessar. Esse de
mônio o alucina, parece-me, para permitir-lhe que
sobreviva nesse espaço (o entre-duas mortes] e ad
verh-lp quanto aos buracos em que poderia cair. 7"
Em seguida Lacan identificará esse espaço àquele
do objeto a, em que a voz � wna forma.
É justamente de wna estrutura topológica
que se trata com o estádio do eco e não da fixação
de �a etapa de desenvolvimento. •\ palavra estádio
faz referência ao estádio do espelho, no curso do
qual é preciso também levar em conta a yoz e a pul
são invocante que o excedem e o precedem. Falar de
wn estádio do eco é uma forma de reagrupar fatos
já conhecidos e de estabelecer laços entre eles, a fim
de fazer que sejam entendidos de outro modo.
21
_-\ pulsão inrncante ocupa um lugar pri,-ile
giado na prática da psicanálise graças ao dispositiYo
dissimétrico entre o analista e o analisante, entre a
escuta e o silêncio da atenção igualmente suspensa
do lado do analista e a fala liberada �s ideias insiden�
tes do lado do analisante. Pode-se também dizer que
o eco participa da interpretação analítica na medida
em que, para que ele opere, ''é preciso que haja al
guma coisa no significan_te que ressoe".ª _-\ razão é
réso,z. O eco, sem que sua presença seja facilmente
localizáYel, e sem dúYida por isso, faz ressoar a fala;
a esse título ele pode, na linguagem, confundir-se
com ela. Por exemplo, na frase: "Leitor! Escuta mi
nhas palaYras de cautela. Esconde-te no mais fundo
de seu porão, depois de rastejar rumo a um tonel
com aros de ferro, e não levanta em minha direção
o eco enfraquecido de teus protestos". 9
O estádio do eco representa também outro
apoio à abordagem de fenômenos clínicos em rela
ção à ,·oz. Trata-se, por exemplo, de não reduzir a
22
ecolalia no autismo unicamente à ilustração de um
estádio do espelho que s� constituiria fora da fala.
No entanto, é surpreendente, como sugeriu
.-1..lain Didier-\,-eill, que Lacan, malgrado tudo o que
• disse sobre a yoz, tenha apenas "aflorado" questões
que conduzem à pulsão im:ocante. 1 0
E m um primeiro tempo, retraçarei a emer
gência da Yoz em Lacan como objeto a. Ela é par
ticular no sentido de que tem seu paradigma nas
,·ozes do automatismo mental e 110 sup�reu. _-1,_ no
minação da \·oz como objeto a permite, por sua Yez,
uma abordagem noYa dos fenômenos clínicos que
estão em sua origem.
PromoYi.da a objeto a, a YOZ é ao mesmo tem
po incluída 110 fio do tempo e, depois de algumas
tentati,·as, em uma lista, finita, de quatro objetos a. _-\
estrutura de grupo desses objetos é um dado sobre
o qual frequentemente se estabelece o impasse, e que
é, no entanto, essencial para pensar em termos de es-
23
trutura e não de desem-ohimento. Esse será o objeto
de minha segunda parte.
Enfim, apresentarei os argumentos em fa
rnr da existência de � estádio do eco partindo de
características da pulsão invocante, parricularmente
a existência de duas fontes pulsionais; a boca e a
orelha, assim como de seu pri\;Iégio em relação às
outras pulsões, na medida em que, segundo o pró
prio Lacan, ela está mais próxima da experiência do
inconsciente.
2-!
.\ ll\iCLUS_ \ O D.\ ,·oz l\_.\
LIST_\ DOS OBJETOS a
26
do gozo - para o qual eles encarnam wn mais - de
gozar -, da necessidade, da demanda, do desejo. �o
início, Lacan incluiu o falo na sua lista de objetos a,
mas não foi para fazer dele um lugar de unificação.
.-\. sessão de 20 de maio de 1 959 de O dese
jo e ma i11te1pretaçào tinha sido preparada por certo
número de etapas dentre as quais reterei duas im
portantes: de saída, a pesquisa sobre a psicose e
as alucinações Yerbais no seminário Ás psicoses, e o
artigo "De wna questão preliminar ... "; em seguida
a escrita da fórmula do fantasma (S ◊ a) e seu po
sicionamento no grafo, nos seminários Asjórmaçàes
do ú1co11scimte e, depois, em O desejo e stta it1te1-p1·eta_,-ào.
É nesse último seminário que uma boca
parece se fechar para inYentar a \'OZ como objeto'
a. Lacan parte, então, de wn estudo das \-ozes na
psicose para aí retornar com a Yoz como objeto a.
27
de das alucinações auditirns, das dificuldades de sua
classificação, dos desafios de sua causalidade. Em
particular, ele estaYa bem a par da expressão "aluci
nação psíquica", empregada por Baillarger, em 1 846,
para, designar as ,- o zes percebidas no interior de si, ou
seja, o · fato de "om'Ír as falas que os pacientes pro
nunciam muito baixo contra sua vontade e de boca
fechada". 1 1 "Os alienados desconhecem então ·sua'
própria ,-oz como a desconhecemos nos sonhos."
O termo alucinação psíquica foi criticado
por J. Séglas (em 1 892) e substituído por "alucina
ção psicomotora ,-erbal", com uma extensão maior
que aquela que lhe daYa Baillarger. Daniel Lagache
publica em 1 93-1- uma obra sobre essas alucinações
que têm o mérito de situar o problema da dissocia
ção entre o falar e o om'Ír no mesmo sujeito: "como
a própria fala pode aparecer para seu autor como
uma fala estrangeira?"1 4 Eis como ele resume suas
28
obsen-ações: "Se alguém se coloca de um ponto de
,;sta estritamente fenomenológico, isto é, se alguém
se esforça para estabelecer o que experimenta o su
jeito falante, esse alguém é le,-ado a distinguir duas
ordens de fatos:
1 5. Ibid.. p. 87.
29
ser sempre obserndo e de ser essencial) um lugar
exemplar na sua classificação das alucinações acús
tico - ,-erbais que comportam, além d.isso, o que ele
chama de "alucinações aud.iti,-o-verbais fragmen
tárias" e as "alucinações psicossensoriais auditivo
Yerbais". Elas contêm em si: ele diz, "a própria es
sência do alucinar" 1 6• _-\s características gerais dessas
'\-ozes interiores" são as seguintes. _-\ primeira é a
ausência de sensorialidade: "É uma ,-oz mona", "é
antes em pensamento", diz o sujeito. Isso explica
a infinidade de formas que revestem esse tipo de
alucinação. _-\ segunda característica fundamental é
a impressão do i!lucinante "de não ser ele mesmo
o autor do discurso, embora seja 'interior', que ele
o m-e". O espaço de sua interioridade está esfuraca
do, cruzado por uma exterioridade, por uma xeno
patia, diz. Seu mais íntimo lhe é exterior. Ele sofre
do que o neurótico só alcança no máximo depois de
muitos anos de análise e que é o objeti,·o da máxima
freudiana !Fo Es 2/Ja1; sol Ich 111erden. Essas alucinações
traduzem uma intrusão do Outro em mim, Outro
que fala, pensa em meu lugar. Outro é eu.
30
Esse traço que dá a esse tipo de alucinaçào
um valor paradigmático suscitou o interesse de psi
quiatras clássicos e mo.ti...-ou a obra de Daniel Laga
che. _\ própria pesquisa de Làcan len essa questào
adiante. Tanto em seu seminário .,-J.s psii-oses quanto
em seu artigo "De uma questào preliminar...", po
de-se obserYar que ele emprega o termo "alucina
çào ,·erbal". É Yish·el a filiaçào a "alucinação psíqui
ca" (Baillarger), "alucinaçào psicomotora ,·erbal"
(Séglas), "alucinação P}íquica ,·erbal" (Ey). Depois
que o "motor" pifou, fica em torno do "psíquico".
De fato, o uso do termo alucinaçào Yerbal
em Lacan ultrapassa o que a psiquiatria tradicional
chama de alucinação psicomotora ,·erbal, partic_ular
mente porque ele inclui também as alucinações ditas
auditivas, correspondentes ao que Esquirol chama,·a
de "percepçào sem objeto", em que as ,·ozes sào ou
,-i.das e localizáYeis em uma exterioridade que pode,
entretanto, ser a do próprio corpo... :\'essas ...-ozes "a
temática delirante faz sensorialmente parte de aluci
nações" (Ey).
O uso do termo alucinaçào ,·erbal, nos pri
meiros te�tos de Lacan, liga o sujeito ao verbo e
significa, fundamentalmente, a essência Yerbal ins
crita na funçào e no campo da fala e da linguagem
31
de toda alucinação. "O drama do sujeito no ,-erbo
é que ele experimenta ali sua falta-a-ser",' 7 qualquer
que seja sua estrutura clínica.
_-\ partir daí Lacan se separa de Daniel La
gache e de seu amigo Henri Ey, aproximando-se
par;doxalmente de seu mestre Gaetan Gatian de
Clérambault. Em aparência paradoxalmente, por
que se Clérambault invoca um mecanismo orgânico
"serpiginoso" na origem das alucinações, ele wúfica
seu campo com o termo automatismo mental, que
Lacan retoma por cont� própria.
33
Inicial na psicose, neutro (atemático, sem
conteúdo afeti.-o) , não sensorial são as caracterís
ticas gerais do automatismo mental. Ele inclui fe
nômenos que j á eram conhecidos dos psiquiatras e
que são da ordem da "tomada de pensamento": os
pensamentos impostos ("dão-me pensamentos que
não são meus"), pensamentos estrangeiros que atra
Yessam o cérebro, pensamentos antecipados, pensa
mentos inesperados.
O que Clérambault considera o elemento
primordial do automatismo mental é o que chama
de o eco do pe11sammto. O sujeito aceita que se t;:ata de
seu pensamento, mas ele o percebe como imposto de
fora. Ele é desdobrado em face de seu pensamento.
O eco pode ser psíquico, auditi,-o ou mo
tor em graus diYersos e simultaneamente. Ele pode
ser consecuti,-o, simultâneo ou antecipado. Ele não
é sempre uma repetição e_strita, há muitos tipos
de eco: 2 1 o eco com ,-ariantes, o eco com adições:
enunciação de gestos, comentários, enunciação de
intenções...
21. (�. G. d e Clérambaulr, op. ât. , pp. 589-59 1 : 1�. Renard, op. .it., p.
95.
3-1
Enfim, ao automatismo mental podem-se
ligar outras modalidades alucinatórias menos fre
quentes, de uma imensa variedade: 22 emancipação
do pensamento abstrato, desenrolar mudo de lem
branças, falsos reconhecimentos, desaparições de
pensamentos, rnzio do pensamento, perplexidade,
dispersão de ideias, passagem de um pensamento
inYish-el, imagens impostas de fora, jogos Yerbais
parcelados: frases, palanas, sílabas, pala.-ras jacula
tórias fortuitas com acento nas escansões manifes
tando a fragmentação verbal...
�ão é necessário aceitar a causalidade orgâ
nica inYocada por Clérambault para reconhecer o
valor e a riqueza semiológica do automatismo men
tal como forma de alucinação Yerbal.
Para nosso propósito - o do isolamento da
voz como objeto a a partir de vozes - constata-se
facilmente o interesse que representa essa _semiolo
gia. _-\s yozes manifestam formas Yerbais do pen
samento e, portanto, a estrutura de um sujeito de
terminado pela linguagem. _-\ esse título, aliás, elas
,-ão ao encontro do que Paul Guiraud chamou de
3 :;
formas verbais da interpretaçào delirante,2 3 sobre as quais
Yoltaremos a falar. Em ,-i.sta dessas formas yerbais,
um desdobramento se produz para o sujeito; trata
se, ao mesmo tempo, de seu pensamento, e ele lhe
,-em de fora, ele lhe é imposto de forma parasitária,
e irrompe de forma repentina. Em As psúoses, Lacan
estuda o desdobramento em Schreber e o religa ao
duplo imaginário e ao esquema L. "É no nfre\ do
entre-eu, isto é, do outro com minúscula, do duplo
do sujeito, que é ao mesmo tempo seu eu e não seu
eu que aparecem as falas que são uma espécie de
comentário corrente da existência. Vemos esse fe
nômeno no automatismo mental, mas ele é aqui [no
caso das frases alucinatórias interrompidas que se
impõem a Schreber] mais bem acentuado, já que há
um uso por assim dizer implicante do significante
nas frases começadas, depois interrompidas". 2 •" De
antemão, Lacan nota que os fenômenos de eco do
pensamento no psicótico só amplificam "� relação
36
de eco interior em que o sujeito está relatiYamen
te a seu próprio discurso". 2 5 E acrescenta: ":---ião
sabemos nós, psicanalistas, que o sujeito normal é
essencialmente alguém que se coloca na posição de
não lenr a sério a maior parte de seu discurso in
terior"?26
_-\ serniologia do eco do pensamento mostra,
assim, que as alucinações verbais não precisam ser
sonorizadas - en:i Yozes audfreis, localizá,- e is - para
serem reconhecic.las.
Essas formas ,-erbais são neutras, atemáticas
e re,-estem-se de um caráter fragmentário, parcela
do, escandido.
37
da psicose, sem por isso terminar em uma teoria de
lirante de linguagem, como Jean-Pierre Brisset, por
exemplo. A trilha da ravina é estreita. Ela é traçada
pela significação. _-\ s�ficação é tributária de leis
de composição do significante (metáfora, metoní
mia) ; a significação (Bedeutuni) é o falo. •-\ foraclusão
de um significante, aquele do Nome do pai, faz cair
em um vazio (o vazio do pensamento, o deixar cair
de Schreber) ou em um excesso de significação (o
neologismo); a significação não remete mais a ou
tra significação, mas à própria significação (a língua
fundamental de Schreber) e estamos então na psico
se . •\o mesmo tempo, as mesmas leis de linguagem
desembocam em um além da significação, um "cen
tro exterior à linguagem": "Dizer que esse sentido
mortal revela na fala um centro externo à linguagem
é mais do que uma metáfora, ·e evidencia uma es
trutura, [... ] Ao querer fornecer dele [um anel] uma
representação intuitiva, parece que, mais do que à
superficialidade ' de uma zona, é à forma tridimen
sional de um toro que conviria recorrer, na medida
38
em que sua exterioridade periférica e sua exteriori
dade central constituem apenas uma única região".17
Uma topologia é convocada para uma apro e
ximação da linha de fronteira com a psicose: aquela
entre um além estrutural da significação e um além
de uma estrutura clínica particular.
Em As psicoses assistimos a esse movimento
pelo qual Lacan se apoia no que lhe fornece a tra
dição psiquiátrica, ao mesmo tempo em que dela se
separa.28 De saída ele retorna à alucinação verbal:
"Nada é ;mais ambíguo do que a alucinação verbal".
Não basta observar os movimentos articulatórios
quando o sujeito diz ouvir vozes. "Se esse problema
merece ser abordado é a partir da relação de boca
a orelha". Em seguida, uma "frase só se torna viva
a partir do momento em que apresenta uma sig
nificação". E o que põe em relevo a alucinação é
precisamente a antecipação dã" significação. "Há um
vínculo entre o ouvir e o falar que não é externo, no
sentido em que nos ouvimos falar, mas que se situa
39
no próprio rúvel do fenômeno da linguagem. É 110
11ível em que o sigllifica11te acarreta a significarão, e não 110
nível sensonà/ do fenômeno de que o ouvir e o falar sào como
o direito e o avesso."
�Ias se a significação remete à significação,
isso quer dizer que não há ponto de cessação, uma
vez entendido que a indicação da coisa não saberia
constituí-lo?
É nesse momento que Lacan procede a uma
espécie de retomo que, se ele devesse fazer ponto
de cessação, ele o faria justamente não sem a psicose.
Ele escolhe apresentar o belíssimo exemplo da paz tÚi
a11oitecer.29 "Yocês estão no declínio de um dia de tem
pestade e de fadiga, Yocês consideram a sombra que
começa a invadir o que os cerca, e alguma coisa passa
pela cabeça de vocês, que se encarna na formulação
a paz. do al!oitecei:" 30 Não saberemos dizer se essa for
mulação \'em de fora ou de dentro. E Lacan conclui:
"Chegamos agora ao limite em que o discurso, se ele
desemboca em alguma coisa além da significação é
40
sobre o significante no real. Nunca saberemos, na
perfeita ambiguidade em que subsiste, o que ele deve
ao casamento com o discurso." Esquematizando, po
der-se-ia dizer que o que faz limite ao ree�,-i.o infinito
da'·significação à significação é o significante no �eal,
ou seja, a franja com a psicose.
_\ linha de crista3 ' que se traça com a psi
cose, Lacan chama-a, com efeito, em 1 956, de uma
"franja", um "transespaço ligado à estrutura do sig
nificante e .da significação" . .\ localização do sujeito
só poderia ser topológica, e é somente a partir daí
que se pode tentar cernir as diferenças de estrutu
ra e suas franjas. Franjas de que Lacan dá alguns
exemplos em seu seminário As psicoseS'. levar a sério
o discurso interior,32 momento de tomada de pala
vra, ressurgimento de uri:J. afeto.n
31. N.daT.: '.\:o original, l,:g11, d,· ,7Úc. Linha de crista, linha de cume
ou cumeada é uma forma de relen, definida como linha que
, une os pontos msis altos (em relação a uma' superfície hori
zontal) de uma deYaçào, e é determinada pela intersecção de
d�as Yertentes; forma topográfica.
32. Confira G. Lanréri-Laura, "La ,·oi_'< t:t te langage intérieurn , em
R. Lew e F Sau,- agnat (orgs.) , L, ,oix. ad,s da ,oloqrff d'lrr: r d"
73 l'"""' 1988, Paris, Lnimague, 1989, que relembra oportu
namente as fontes místicas da ,·oz.
33. Ibid., pp. 140, 285, 305 [pp. 1 +0, 285, 30+] .
41
_-\ noção de litoral que Lacan introduzirá
mais tarde em "Lituraterra" pode ser considerada
wna sequência à de franja, na medida em que o li
toral, diferente da fronteira, situa-se entre dois do
mínios heterogêneos (o mar e a terra, por exemplo) .
_-\ nm-i.dade radical de Lacan em relação a
tudo o que se elaborou antes dele sobre a psicose é a
de ter reencontrado a necessidade de uma topologia
para com ela também dar conta do sujeito, única
forma de não nos tornarmos nós mesmos loucos,
por wna outra ,·olta.
42
as alucinações de Schreber constituem um dos da
dos com os quais ele o constrói, sem contar que a
matriz do grafo prO\-érn explicitamente do ponto de
cessação do significante que Lacan introduziu em
As psicoses.
O grafo permitiu a Lacan ler e interpretar
duas formas de alucinações que chegam a Schreber:
as vozes do que ele chama de a língua fundamental
(GmndspradJe) e as vozes de frases interrompidas que
ele impôs a si mesmo completar. O código composto
de "mensagens sobre o código" das primeiras, assim
corno "a mensagem reduzida àquilo que no código
indica a mensagem" das segundas, "necessitaria, diz
Lacan, ser transposto com o máximo cuidado para
um grafo35", sabendo que sobre ele os lugares do có
digo e da mensagem já estão indicados:
43
s(_-\) é o momento da mensagem, "da pontu
ação onde a significação se constitui como produto
acabado", na retroação de _-\, lugar menos de um
código que de uma reunião sincrônica de significan
tes. _-\ é um "local (mais lugar do que espaço)", s(_-\)
é um "momento (mais escansão do que duração)".36
Em Asfomwrõe.r do inconsciente o termo '\·oz"
é inscrito no grafo pela primeira yez, antes mesmo
de ser isolado como objeto a. De irúcio Lacan de
sign a o lugar do supereu, que se tornará o da YOZ,
sobre a linha de articulação significante passando
por s(_-\) e .-\, depois .-\, em oposição ao riso, que ele
situa antes de s(_-\). 3 '
_-\ assimilação do supereu à ,·oz não é tão
surpreendente. Por um lado, ela admite uma raiz na
língua, uma Yez que "obedecer" [obéi,j (oboedire) vem
de "escutar" [écouteij (audire) . 36 Por outro lado, a reli
gião e a filosofia o ha,;am antecipado com a expres
são '\·oz da consciência" para designar a instância
39. S. Freud, ·'I .e moi er k ç:i.", em Ess,rir de: p.[1 ,·h,111,zb·s,, Paris,
Payot, 1 98 1 .
-!O. R. . Fliess, "Silence and Yerbalizauon: a supplement to the
rheon· of rhe 'anaJyric rule'". Th, i,,1.-,·,utio11JI fo11mal of ?9 -
:bo,111,16,if, , ·ol X.\:X, 1949, pp. 21-.10. Tmduzido por frnncois
Saun1gnat, em L1 ,oh..:. op. át.: '�\ssiin como o núcleo do eu t:
o eu corporal, a esfera auclitin humana, modificada na direção
de uma capacidade de lingmgem, de,-e ser considerada o nú
cleo do supereu".
45
Identificando a YOZ ao supereu, Lacan se in
sere, e1;tão, na linha freudiana. ;\Ias ele também a
le,-a adiante. O sup�reu é um imperatiYo dissociado,
destacado das leis simbólicas da linguagem. Ele é
uma cisão nas relações do sujeito ao simbólico.4 1 O
supereu é uma lei, mas sem dialética. "Ele é ao mes
mo tempo a lei e sua destruição"." Ele é o "sabo
tador interno", o Tu que toma posse da casa e ejeta
o sujeito."3 É a lei incompreendida, interrompida. 44
Esse caráter de discurso interrompido, parasitário,
per.mite assimilar o supereu à ,·oz.45 É um "caroço
da palaYra",46 uma ,·oz "obscena e feroz".
-18. J. Lacan, / ..:s /Óm1.züons d: n,,,v,,,.-imt. op. .-it.. p. 3-1:'I [p. .,SS] .
./8
sujeito quer se apreend !'= r além da fala (Yê-se a recor
rência da questão de Lacan), encontrar o significan
te último que ,·á representá-lo, fazer cessar o em-io
infinito das significações. Nessa busca, ele reencon
tra um ,·azio no Outro, uma yez que não há Outro
do Outro, não há garantia última. _ -\ escrita do fan
tasma S ◊ a denota esse mo1JJe11to em que o sujeito se
eYanesce (jadi11g do sujeiro) em face da carência de
significante que responde se seu lugar no nÍYel do
Outro. O Lh do lf"o Es 1mr sol Lh 1?Jede11 não pode se
designar no momento em que ad,·ém. Como últi
mo recurso, ele encontra um suporte nesse objeto
a, tirado, aliás, de uma parte dele mesmo, na ,·er
d:ad�, do registro imaginário. Na di,-isão do Outro
pelo sujeito (antes da diYi.são do sujeito, quanto ele
quer se inscreYer no Outro) , o sujeiro diYidido $ é
o quociente, e o objeto a é o resto da di,'isão. Esse
resto compensa a carência de um significante que
responde de seu lugar no Outro. O objeto a supre
uma "nominação desfalecente" do sujeito. Para que
aí haja punção (◊) entre ? e a é preciso que em certo
nh-el haja identidade de estrutura entre os dois. Essa
identidade é o corte: "É como corte e como inter
Yalo que o sujeito se encontra no ponto final de sua
./9
interrogação. É assim, bem essencialmente como
forma de corte, que o a, em toda sua generalidade,
1nostra-nos sua forma". 49
P_ela prin1eira ,-ez, Lacan precisa, nesse mo
mento, que três objetos preenchem essa condição de
ter uma forma de corte e podem, assim, preencher a
função de suplência na tentatin falhada de o sujeito
se nomear. São os objetos ditos pré-genitais (seios,
fezes), o falo e ... as vozes. '�\ terceira espécie de obje
to desempenhando exatamente a mesma função em
relação ao sujeito em seu ponto de eyanescimento,
de fadúzg, isso não é nem mais nem menos do que
aquilo que se chama comumente de delírio, e é muito
precisamente isso o porquê de Freud, desde quase o
início de suas primeiras apreensões, ter podido escre
Yer: eles amam seu delírio como a si mesmos"_;o
_ \ Yoz é, como os objetos ditos pré- genitais
e o falo, "estruturada pelo corte", e é isso que a tor
na apta a "desempenhar esse papel de suporte no
nh-el em que o sujeito se encontra, ele mesmo, situ
ado como tal no significante".
_jQ
No que concerne à ,-oz, o que exerce a fun
ção de corte é a escansão de sua emissão. _-\ escan
são da fala cria a ,-oz como objeto a, como saída de
um orifício e como alguma coisa que se corta, tal
como outros objetos libidinais.
O que caracteriza a Yoz como objeto a não
é, portanto, a pulsação respiratória, nem a pura so
noridade, mas o fato de que há aí emissão a partir
de um orifício (a boca) e de que ela seja escandida.
Lacan não encontra melhor exemplo que as ,-ozes
rio delírio e nos com-ida a "uma releitura atenta"
de seu artigo "De uma questão - preliminar
. ...": "a sa-
ber, o que articulei disso que nos permite, de um
modo tão potente, tão elaborado, articular o delírio
de _Schreber; é isso que vai nos permitir apreender
a função da voz no delírio como tal. Creio que é �a
medida em que deYemos procurar ,-er em que a ,·oz
no delírio responde tão especialmente às exigências
formais desse a, na medida em que ele deve ser ele
ndo à função significante do corte, do inte!Yalo
como tal, que compreendemos as caracteósticas fe
nomenológicas dessa ,·oz"_ ;,
51
Uma vez mais Lacan faz também o paralelo
com "a voz grossa" do supereu, não sem diferenciá
-la da Yoz do delírio.
O que justifica pôr as rnzes do delírio no lugar
da voz como objeto a diz respeito á forma como algu
ma coisa sempre se esquin, de modo singular, quando
se trata de o delirante comunicar algo sobre a natureza
dessas vozes. Isso se reduz tal,-ez ao fato único de que
"isso" se impõe a ele. Sua dificuldade em falar disso,
fonte de tantas interrogações para os psiquiatras, faz
dela mesma parte das rnzes como objeto a.
_-\s ,-ozes de Schreber, em particular aquelas
das frases interrompidas, manifestam plenamente o
caráter de corte da voz. "O sujeito está i11teressado
nisso, com efeito, mas, para falar propriamente, n�.
medida em que ele mesmo desaparece, sucumbe,
devora-se inteiro nessa significação que só o visa
de um modo global." O sujeito está inter-essado no
sentido literal, porque ele se encontra no inte,�va!o.
"-\ elevação das vozes à dignidade de rnz é
feita a partir da fórmula do fantasma, e para, preci
samente, dar conta dela. O delírio é então incluído
na fórmula do fantasma e em sua problemática. _-\
fórmula aplica-se também à psicose. Isso não signi
fiG·a que não haja diferença entre neurose e psicose,
52
como Lacan semp·re manteYe, mesmo quando se
comparava ao psicótico por seu rigor. ;\Ias o fantas
ma não é a ,�a para diferenciar a neurose da psicose.
O fantasma torna equiYalentes as ,-ozes do delírio e
a yoz do neurótico. Elas têm as mesmas caracterís
ticas formais do objeto separá,·el suplente da falha
do sujeito em se nomear.
Se nos demoramos na semiologia das Yo
zes é justamente pàra mostrar como seus limites
puderam ser recuados até às�propriedades formais
anideicas, neutras, não sensoriais, parasitárias, frag
mentárias, escandidas.
\ -eremos no último capítulo o que concerne
à natureza temporal da YOZ.
53
tas: "Como é que todos nós não sentimos que as
falas das quais dependemos são, de algwn modo,
impostas? É justamente por isso que o que chama
mos de doente .-ai algumas ,·ezes mais longe do que
o que designamos como um homem saudáYel. _ \
questão é antes saber por que um homem dito nor
mal não percebe que a fala é um parasita, que a fala
é uma excrescência, que a fala é a forma de câncer
pela qual o ser humano é afligido?" 52
Seguramente. n_as "franjas" da psicose, cer
tos traços confinam. _\ aderência imaginária, a voz
que se sonoriza, a pre,·alência do olhar, o congela
mento do desejo na paranoia; o fato de que, se o
neurótico crê em seus sintomas, o psicótico os cria/3
ao ponto de, Yez por outra, passar ao ato.
\;o entanto, isso não diz por que a franja se
torna fronteira à loucura. Uma retomada do imenso
trabalho de Lacan sobre a causalidade da loucura
excede, seguramente, o quadro de nosso propósito.
Do mesmo modo, limitamo-nos aqui a adiantar al
gumas hipóteses que le.-am em conta uma e.-olução
�essa causalidade depois do seminário das psicoses.
5 -i
.\ identificação das vozes e da voz inscreYe
-as, de pleno direito, nc: circuito da pulsão.
_ \ garrafa de Klein, nós o veremos no último
capítulo, permitindo inscrever o circuito particular
da pulsão in\-ocante, vale tanto no quadro do delírio
(as vozes) quanto fora dele.
�o caso em que as \-ozes se fazem om-ir,
a sonorização da \'OZ dá uma aderência imaginária,
uma consistência, uma continuid�de ao circuito. 5ª
Do mesmo modo que no sonho, diz Freud,
uma imagem hiperintensa é o signo de uma conden
sação de conteúdo, o sonoro da ,·oz seria o signo
de um equinlente de condensação de significantes.
.\proximaremos isso do que Paul Guiraud
chamou de formas ,·erbais de interpretação deliran
te55 . Tomemos o exemplo da obsernção III do Se-
56
o homo da fonia Yenceu, fixando-se na continui
dade de wn "porque". � essa_ óptica, a sonorização
da Yoz constituiria wna suplência, uma reparação lá
onde a causa do desejo é indizível e lá onde o escrito
não exerceu sua função separadora, discriminante
do homo (identidade ou quase) da fonia.
O escrito permite distinguir o equfroco do
significante em lalingua, o escrito da grafia (11011 .
[não] e 110m [nome]) ou o da segmentação (d'e11x [de
les] e· deux [dois]). _-\ rnz é em lalingua uma função
e um signo do escrito, do escrito da letra a, de sua
álgebra. 58
Existem procedimentos de representação
gráfica para fixar no escrito o que diz respeito à \-oz,
por exemplo, os s_inais de pontuação marcando dife
rentes tipos de pausa. "O aspecto \-Ísual está impli
citamente contido na expres·sào \-ocal'9", na medida
em que a natureza não intrinsecamente sonora da \-oz
se aproxima do silêncio na fala e, com isso, do Yisual.
Homem ad,- ertido, Schrnber sen-e-se da ho
mofonia para entrar em diálogo e "desconcertar" as
58
ja com a possibilidade que lhe é assim oferecida de
"desconcertar" os pássaros que lhe falam "lançando
neles arbitrariamente palavras que se assemelham
por sua consonância" e isso se torna uma "forma
de passatempo".
Ele luta contra as alucinações com as armas
delas (a homofonia) e cria assim um terreno de jogo
comum. Todavia, seu principal recurso de escrita é a
publicação de seus "grandiosos feitos memoráveis"
(Denkwürdigkeiten) suas ditas ll'Íe!nórias, que se con
fundem com a eYolução do delírio na direção de
uma tentativa de cura, ou seja, seu valor de solução
de um fazer- saber ou fazer ouvir. 61
Em conclusão, não se poderia dizer que a
elevação das vozes à dignidade de objeto a tenha
permitido ir mais longe que em "De uma questão ..."
:\Ias talvez tenha permitido retomar a questão, saber
se demandar por que não se é louco e, a partir disso,
reconsiderat a neurose do ponto de vista da psicose
e não o inverso, como de costume.
º
61. E. Porge, "Schrcber t!cri.-ain", Es.,-�úm, n 1 6. Touloust:, tT�S,
PrimaYera de 2006.
59
Além disso, as vozes são integradas ao cir
cuito pulsional do fazer-se ouvir e põem-no em des
taque.
O jàzn--se ouvir, de todo modo, não escapa
ao mal -entendido, sobretudo quando ele se aloja
em um muito bem entendido. �ão há pior surdo
do que aquele que não quer om"Ír, diz o prm,-érbio.
.\quele·que não pode ouvir (as \:ozes) não é menos
surdo, mas sua surdez interpela e ela nos abre a ,"Ía
de uma abordagem lógica possh·el do "fazer-se ou
,"Ír", seja uma abordagem di lógica do possível que
responde ao voto de Lacan de tornar possível a ex
ploração do objeto a.
Tomando-se o lugar de um endereçamento
de um "fazer- se om"Ír", o analista ainda torna possí
Yel que o louco se ouça dizer o que ele ouve, de outro
lugar; em ligação, sem dúvida, com outro objeto a.62
Para que a exploração de um objeto a seja
possh-el, é preciso que ele cesse de s� �screver, a fim
_ de que isso não cesse de recomeçar (a repetição) .
É uma escansão que institui um segundo tempo.
Considerar as vozes objeto a faz cruzar-se a ordem
60
das pulsões e a lógica das modalidades tais como
Lacan as reescreve: o possível como um "cessar de
se escrever", o necessário como um "não cessar de
se escre\-er", o contingente como·um "cessar de não
se escrever" e o impossível como um "não cessar de
não se escrever". 63
.-\ "questão prelirri..inar possh·el da psicose"
encontra- se deslocada para a questão do tratamento
do possível na e com a psicose.
_-\ elevação da rnz à dignidade de objeto a
modifica seu estatuto e sua abordagem. Ele se torna
uma forma, deformável, contigua a uma letra. Sem ·
êntrar no detalhe da evolução da concepção da letra
em Lacan, observe-se que é essencialmente sua fun
ção de borda do real que termina por caracterizá-la.
Uma borda que os trancamentos do nó borromea
no tentam cernir. Estando enganchado à letra a, o
objeto voz ass�e o estatuto de um espaço-tempo
topológico, o da garrafa de Klein, cuja particulari
dade estudaremos no último capitulo, e que é um
modo de sutura do sujeito a si mesmo em sua rela
ção ao Ou�ro.
63. J. Lacan, E,Mr,·. op. .it., p. 132 [p. !TJ e L·r non-dllf'd m ,· 111. op. ,it.
61
_-\ designação do.objeto \-oz como a faz tam
bém que entre na lista bem fechada - uma yez que
são apenas quatro - dos objetos a. Essa conexão
faz parte da estrutura de cada um desses objetos
desde que se respeitem suas diferenças. Dito de ou
tro modo, elés não são equi\-alentes, mas não são
independentes uns dos outros. É sobre isso que nos
deteremos no capítulo a seguir.
62
.\ CONEX.\O DE OBJETOS a
63
_\ linguagem, a clínica, a literatura ... forne
cem múltiplos exemplos dessas conexões. Que se
reflita sobre as expressões "comer com os olhos",
"beber as palanas de alguém"; que se recorde do.
sonho do homem dos ratos em que as fezes \·êm no
lugar dos olhos da filha de Freud; que se leia Histón·a
do olho de Georges Bataille. Segundo os autores, as
relações podem ,·ariar: onde Claudel fala do olho
que escuta, Henri Meschonnic afirma que é uma
orelha que \-ê.
_-\ ,·onexão dos objetos a significa que a passa
gem de um a outro dos quatro objetos não obedece
a um processo de maturação, mas corresponde a
uma estrutura definida pelas inten-enções da de
manda e do desejo nas relações do sujeito ao Outro.
É em seu semi.Il.ário  angústia que Lacan
começa a formalizar a estrutura combinatória dos
objetos a, distinguindo cinco etapas na constituição
de a na relação do sujeito ao Outro65. Nô nível da
relação ao objeto oral, trata-se de necessidade no
Outro, no nfrel do Outro. _-\ mama faz parte do
66
quatro objetos a determina-se em função das rela
ções da demanda do sujeito ao desejo do Outro. Na
versão da demanda, o seio é demanda ao Outro; as
fezes, demanda do Outro. Na versão do desejo, o
olhar é desejo ao Outro; a voz, desejo do Outro.68
É essa, aliás, a razão pela qual a pulsão invocante
ocupa um lugar privilegiado. Ela "é a mais próxima
da experiência do inconsciente", diz Lacan. 69 Em
nenhum ponto o sujeito está mais interessado no
Outro que pela voz, ele diz também.70
Em uma estrutura de grupo há um elemento
neutro. Qual seria? Não seria precisamente o sem
blante de objeto a que o analista encarna? Como?
Eu responderia: com seu silêncio e com a pressa.
67
Em 1 964, ao término de seu estabelecimen
to das características das pulsões e no fim do se
miná110 Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise,
Lacan lennta uma questão: "depois da distinção do
sujeito em relação ao a, a experiência do fantasma
fundamental toma-se a pulsão. O que se torna en
tão aquele que passou pela experiência dessa relação
opaca na origem, a pulsão? Como um sujeito que
atravessou o fantasma radical pode viver a pulsão?
Isso é o além da análise e jamais foi abordado. .-\té o
presente, isso só foi abordável no nível do analista,
na medida em que seria exigido dele ter precisamen
te atravessado em sua totalidade o ciclo da expe
riência analítica" ." Trata-se de um além da análise
que concerne ao analista e ele se avalia em termos
de pulsão. Pensamos poder dar um passo a mais e
levantar a hipótese de que aí se trata de Yiver a pul
são in,·ocante, em particular sua ligação ao silêncio.
Em 1 966, em � objeto da psicanálise, no qual
Lacan procede a um longo e luminoso comentário
sobre As meninas de \ ·elásquez ele volta a levantar
uma questão que ,- amos aproximar da questão pre-
-1. )- 1 .acan, L·s q11,1/m ,v11,,pts... op. ,it., pp. 2+5-2+6 [p. 258].
68
cedente, na medida em que ela concerne à forma
como o analista se insere com o analisante na dialé
tica dos objetos a. em seu comentário, Lacan se de
tém no cruzamento . de duas linhas de força que se
podem traçar a partir dos element�s figurados: uma
partindo da base do quadro ,-irado, "representante
da representação" e dirigindo-se ao ponto de fuga
principal (no nh-el da porta do fundo) e outra par
tindo do olho de \'elásquez e dirigindo-se ao espa
ço a sua esquerda. Ele observa que as duas linhas
se cruzam no nível da infanta, personagem central
do quadro, brilhante, garotinha que encarna a "girl
como falo", e, propõe então a questão seguinte: "Ele
não é feito para que nós, analistas, nos perguntemos
como, para nós, se transfere essa dialética do objeto
a, se é a esse objeto que é dado o termo e o en
contro em que o sujeito deve se reconhecer? Quem
deve fornecê-lo? Ele ou nós"?"72
:O
erótico - no sentido da pulsão . parcial - do silêncio é
um efeito da regra analítica que desloca a erogenei
dade reativada para a fala. Esses silêncios são, ,P_or
sua Yez, um obstáculo à ,-erbalização, uma resistên
cia, e um modo de acesso às zonas erógenas infantis
às quais se ligam as ideias recalcadas.
Ora, isso é um fato, o silêncio ocupa uma
eminente posição na prática do analista. \Ias além
da natureza díspar das funções exercidas pelo si
lêncio, Lacan lhe atribui a função de ocupar uma
posição de semblante de objeto a que o analista en
carna para o analisante. "O silêncio corresponde ao
semblante de dejeto" no discurso analítico, ele diz_ - ;
O analista faz dom de seu silêncio ao analisando.
l\iesse ponto ele é comparável a Santa Cecília, "mu
sicista do silêncio" (Sainte, \Iallarmé).
Quer dizer que o silêncio é um norn objeto
a? Eu diria antes que ele é esse elemento neutro apto
;-r
a fazer �cionar a combinatória dos objetos a, a
dinamizá-la, para reencontrá-la no final da análise.
Smtro no sentido lógico, mas também no sentido
de Roland Barthes de um terceiro termo que des
trama a oposição binária.'6 O silêncio é, aliás, uma
figura do neutro, assim como o camaieu (grisalho),
o chamalote (moiré), o incolor, o não-predicfrel...
"O Neutro é esse �ão irredutfrel, um :--:ão como
suspensão frente aos endur_ecimentos da fé e da cer
teza, e incorruptfrel para uma e para outra'?'
O silêncio introduz a dimensão temporal.
O silêncio é uma pausa no discurso. Uma pausa da
qual se sente a dmação mais ou menos prolongada.
Essa pausa pode não passar de um ponto morto,
mas pode também ter um nlor de relance, de preci
pitação. Ela pode constituir uma escansão.
Em música isso será chamado de síncope.
Os silêncios fazem par te da música, contam e são .
contados. Cada silêncio porta um nome e'possui
72
um símbolo gráfico que o representa na partitura
e está localizado no compasso, como as notas. Dis
tinguem-se, assim, a pausa de semínima (nlendo a
duração de uma cheia ou semibreYe), a semibreve
(que equivale a quatro cheias ou a uma sernibreYe),
a pausa de mínima, a pausa de cokheia, o quarto de
semínima, etc. _-\ pausa de breYe (representada por
um quadrado negro) é raramente encontrada, e é a
notação de um silêncio equinlente a urna máxima
(nota com duração de oito cheias) .
Em O tempo lógico a escansão exerce seu papel
de relance, uma ,-ez que são duas escansões (que
Lacan qualifica só depois, em 1 966, de significantes)
que precipitam a certeza de uma conclusão anteci
pada e de uma saída pela pressa.
Nesse sentido, o tempo lógico representa um
belo exemplo de combinatória de objetos a. Com
efeito, em 1 9"'3, em seu seminário .Uais, ainda... , La
can procede a uma cifragem do tempo lógico por
meio do cálculo da di,-isão harmônica, no qual ele
faz equinler o número de ouro _(resultante do cál
culo) ao objeto a e, mais precisamente, ao olhar. 78
78
.-\ pulsão é, portanto, uma noção que afronta
a problemática do limite, da borda entre o corpo a
linguagem e lalíngua [/alangue].83 Essa definição per
mite conjeturar que uma pulsão que tem por ob
jeto a voz será a mais próxima do funcionamento
do conjunto de pulsões sexuais (Lacan não emprega
o termo "eco"?). I\Iuitos pesquisadores, externos à
psicanálise, têm, aliás, sublinhado isso.
De um ponto de vista estritamente anatô
mico, a produção de sons e a modulação da ,·oz fa
zem intervir diversos órgãos: os pulmões, as cordas
vocais e a glote, a cavidade rinofaóngea, as cavida
des nasais, a língua, os lábios. Ivan Fónagy elencou
as correspondências anatômicas das modalidades
da vocalização .que exprime a gama de emoções. 84
.-\lém disso, no que ele mesmo chama de "as bases
pulsionais da fenação", estabelece que os diferentes
sons �ssociam-se a qualidades como a doçura, a ale-
=
83. N<:olOl}Slllo introduzido por Lacan pan de.<tigmr a 10regcl
de cquimcos de que é cocnpom a língwi dia par:a
um sujeito, g ue di:renninn o funciorumenco do ÍnC0111SC1cnre,
tanto em seus tropeços quanto em seu mergulho no gozo do
corpo.
84. Irnn Fónagy, Lz ,fr, wix. Essais de psycho-phonérique, Prefá
cio de Roman Jakobson, Paris, Payot, 1983.
79
gria... ou a seus contrários, e também que existem
correspondências entre certos sons e os estádios
oral, anal, fálico e uretra!, e nesse ponto apoia-se
nas observações de Ferenczi. No período de bal
bucio, são as consoantes brandas m, I molhadas da
erogeneidade oral que predominam. O balbucio
está centrado na reprodução motora da sucção. O
erotismo anal se manifesta pelas consoantes ditas
oclusivas, k, g, t, e pela constrição da glote. Os sons
oclusivos equivalem à contração do esfíncter anal.
Para o estádio uretral tem-se uma predominância do
s, e para o estádio fálico, o r apicai.
90, S. Freud, .\ li"7J'JJd10/ogi,. op. ,it., pp. 25-29. [:\ história do mo
Yimenro psicanalírico, artigo$ sobre:: merapsicologia e outros
trabalhos. Edi,.io Sta11d.1rd flrasilcir". op. à!. w,I. XI\', 19�6].
91. J . Lacon, /...:, q11a1ruo11,,pts. op. ,it., p . 163 [p. 1 69J.
84
_\ questão que se coloca é saber se esse es
quema convém também à pulsão inYocante e se
suas particularidades, tendo em YÍsta outras pulsões,
não lhe conferem uma posição especial que designo
com a expressão "estádio do eco".
Obsernmos que é_ em 1 958 que Lacan in
troduz a voz - e particularmente _a voz na psicose
- na lista dos objetos a, antes de nela contar o olhar;
a expressão "pulsão invocante" só aparece em 1 96-1-,
no dia 20 de maio, em Os quatro co1h-eitos e ainda não
sem certa hesitação: " ...e a que será preciso quase
chamar de pulsão inYocante", ele diz.92
_\ particularidade da pulsão inYocante que
Lacan destaca diz respeito ao terceiro tempo de seu
trajeto, o "fazer-se om-ir", mas ela é suficientemente
importante para acarretar outras consequências. Ela
consiste no fato de que o trajeto - ah-o da satisfação
não retorna para o sujeito, nem para os outros, mas
para o Outro. 93 Um pouco mais adiante ele especi
fica que ela tem o privilégio de não poder se fechar
pelo fato de retornar às orelhas. 94
85
:\Ias se essa pulsão não pode se fechar, então
o esquema precedente da pulsão não é mais váli
do e a montagem desmorona, e q,tid da satisfação?
Quanto a dizer que o trajeto retorna não para o
sujeito mas para o Outro, que sentido tem isso, já
que é, de todo modo, o próprio de cada pulsão cujo
terceiro tempo vê (por não ver) o surgimento do
sujeito no campo do Outro? :\'ão seria necessário
reverter o propósjto e dizer que, de fato, toda pul- ,
são é invocante? 95
Essas objeções me conduzem a reconside
rar o fato - implícito, se bem que Lacan aí não se
demore - de que a pulsão invocante convoca não
um, mas dois orifícios: a boca para falar, chamar, e a
orelha para escutar, ouvir. Ela está imprensada entre
o oris (oralidade) e o aurú ("a auricularidade") .
86
Essa particularidade participa do caráter ina
preensível da voz, da impossibilidade de localizá-la
a não ser entre a boca e a orelha. Essa dualidade de
fontes inscreve de saída a pulsão imfocante em uma
problemática de divisão e de separação da relação
do sujeito ao Outro.
_ -\ voz situa-se entre o dentro e o fora, o que
a torna apta - quando é sonorizada - a fazer o papel
de objeto transicional, como observou \Virinicott. 96
Entretanto, não é necessário que ela fique estagnada
nessa aparência de jogo intermediário. Ela engen
dra passagens entre um sujeito que fala e outro que
ouve, mas também, e sobretudo, entre um sujeito
e ele mesmo, p elo fato de que se o outro não ouve
minha voz como eu a ouço, também ele não a ouve
como eu a emito (especialmente porque o crânio
se torna caixa de ressonância, de eco) . É isso que
atesta o sentimento de estranheza que experimenta
quem escuta uma gravação eletrônica de sua voz, e
é com isso que lidam os cantores, como nota Lacan,
87
que fala, nesse caso, de desconhecimento. 97 Os mú
sicos compositores são também testemunhas desse
caráter fugaz da "voz interior", dos sons, quando
escrevem a música.
"Escutamos nossa voz pela garganta e a dos
outros pelas orelhas. O mais familiar tinge-se de es
trangeiro, como se � duplo infinitamente próximo
aí se exprimisse. A voz não é mais completamente nossa
sem que seja completamente outrd'. 98
Como escreve também i\Iaurice Merleau-Pon
tj� ''Não me ouço como ouço os outros, a existência
sonora de minha voz é, por assim dizer, mal desdobr a
da; é antes um eco de sua existência articular, vibra mais
através de minha cabeça do que lá fora"99• Podemos,
enfim, citar ?\fichei Lei.ris: "Ouvir-se, desse modo, não
é encontrar- se diante de seu duplo, encontro que é sinal
de morte, segundo uma crença relatada por Nerval em
seu semi.fictício 1/�yage en Orient?" 1 00
88
O estranhamento à escuta da própria voz
pode explicar o suposto (porque não orgânico) "de
safinar" de alguns, quem sabe chegar até à angústia
e ao pavor, como testemunha a foto desta criança
surda que pela primeira.vez .ouve sua voz.
, 90
Em lugar de:
91
O toro é o rebatimento de uma superfície de
Klein, o trajeto é de fato a projeção de um corte da
garrafa de Klein; corte que a separa em duas bandas
de :\Ioebius:
92
objetos topológicos: a esfera, o toro, o cross-cap, a
garrafa de Klein, que são quatro superfícies fecha
das, de costura da relação do sujeito ao Outro. ' º4
Ele não especifica qual objeto a corresponde a qual
superfície, mas uma frase'º5 confirma que a garrafa
de Klein corresponde precisamente à voz.
Levando em conta o trajeto em torno de
dois orificios, podemos examinar como se reformu
lam os três tem�os da pulsão in,-ocante, uma vez
que eles .devem combinar, conectar duas séries: a
série saída da boca, do falar ou do chamar, e a que
sai da orelha, o escutar, o ouvir. Teremos então:
93
Segundo a escolha do verbo, há variações
de sentido em cada uma das sériés que são tanto
complementares (falar ou chamar e ser ouvido ou
escutado; ouYir e ser chamado) , quanto fatores de
uma reversão (fazer-se falar ou fazer- se chamar e
fazer- se chamar ou fazer-se ouvir). Essas variações
justificam o trajeto em laço da pulsão invocante.
Deveriam ser feitas outras considerações
concernentes à escolha de vocábulos para significar
os três tempos da pulsão invocante e os equívocos
que delas decorrem, assim como concernentes aos
curtos-circuitos e aos cruzamentos de trajetos. En
contramos nesse ponto a problemática geral da pul
são que se encontra no limite de lalíngua e do corpo,
de um corpo furado representando o sexual. Essa
problemática geral encontra uma exemplaridade e
quem sabe uma origem na pulsão invocante.
94
está no cruzamento do som e do sentido, do afeto
e da significação, do corpo e da linguagem, ela é
seu "desacordo". "Porque é silêncio, a voz divide e
separa".'º7 Sinal de loucura, as alucinações verbais
são também a alavanca da ação do analista. "É com
o que se propõe de saída no encontro com o louco,
isto é, a voz, que se pode operar" . 108 É também por
que divide o falar e o ouYir que a .-oz, reconhecida,
pàde se fazer objeto de um endereçamento Outro,
de uma reinscrição.
_\ssim como a dualidade do falar e do ouvir,
inerente a todo ato de fala, acarreta um desconheci
mento da voz, ela introduz a divisão do sujeito em
sua relação à fala, na medida em que a fala é vocal e
que o vocal está ligado' aos afetos, aos equfrocos do
significante e aos efeitos de sentido.
Como escreve :\Iontaign e, "a fala é metade
daquele que fala, metade daquele que· escuta". 1 09 É
a isso que Lacan faz eco abri.rido os Escn'tos com "o
estilo é o homem [...] a quem nos endereçamos" ou
dizendo que "na linguagem nossa mensagem nos
vem do Outro de uma forma ínvertida", o que ele
95
ilustra com sua leitura de A cmta roubada de Edgar
_-\llan Poe. É nesse entre-dois do ouvir e do falar que
vão deslizar as formações do inconsciente, tanto os
lapsos da fala quanto os da escuta 1 1 °, mas também os
esquecimentos de palavras, os at?s falhos, os sintomas
e todas as formas possíveis de desconhecimentos.
De fato, a dualidade pulsional se manifesta para
cada um tanto sobre o eixo imaginário do esquema
L,1 1 1 no que chamamos de discurso interior, quanto so
bre o eixo simbólico de �dereçamento ao Outro.
_-\ voz não é somente alguma coisa de inte
rior que passa ao exterior, como se a fronteira esti
,-esse já constituída, ela é também apreendida como
um interior a partir do exterior no que chamamos
de discurso interior, que acompanha todo indivíduo
e que duplica seu discurso exterior; discurso inte
rior que pode chegar até ao comentário de atos de
automatismo mental ou constituir-se como voz da
consciência (o supereu).
O eco interior de sua própna fala tem a
mesma estrutura da alucinação verbal. 1 1 2 O sujeito
ECO E ESPELHO
98
lação imaginária, que inibe o eixo simbólico _\-S.
_\ relação a'- a refere-se explicitamente ao estádio
do espelho,' 2º a saber, o momento em que o sujeito
antecipa a completude de seu eu [mot] na unidade de
uma imagem reconhecida pelo Outro.
É o caso de dizer que a voz como eco - e até
em suas manifestações sintomáticas como a ecolalia
- é redutível à estrutura do estádio do espelho? Sim
e não. Sim, porque no estádio do espelho é neces
sário contar com a participação da pulsão (especial
mente ÍllYocante), e não, porque esta última excede
e precede o estádio do espelho. É para discernir esse
sim e esse não que propomos a existência de um
estádio do eco.
Na versão do Estádio do espelho de 1 949,
nem a voz nem a pulsão Íll,-ocante Íllten-êm. Con
tudo, todo o texto do Estádio de Espelho aponta
para uma linha de partilha entre o imaginário e a
"eficácia simbólica", entre alienação do eu [mot] à
sua imagem e a fcirmação do Eu Ue] "antes que a
120. J. Lacan. f2,nts, op. dt. , p. 53, p. 549 [p. 58, p. 555].
99
linguagem lhe restitua, no WÚYersal, sua função de
sujeito " . 1 2 1
-Em cont_rapartida, na versão "generalizada"
do estádio do espelho que apresenta em 1 960 em
"ObserYacão sobre o relatório de Daniel Lagache",
por meio do esquema óptico especialmente cons
truído a partir do modelo do físi_co H. Bouasse que
cria a ilusão do buquê im-ertido,1 22 Lacan restitui
plenamente à dimensão simbólica da fala (o Outro)
sua função no advento do sujeito, e particularmen
te "no gesto pelo qual a criança diante do espelho,
,-oltando-se para aquele que a segura, aquele com o
olhar para o testemunho que decanta, por confirmá
-lo, o reconhecimento da imagem", 1 2 3 ou simples
mente quando sobrevém um barulho qualquer, uma
mosca que YOa, um cão que late, que surpreende e
a des,-i.a do campo de ,-i.sibilicl.ade. _-\lém disso, ele
destaca a função e a posição do objeto a, objeto de
desejo, objeto parcial, elemento de estrutura desde
a origem e ligado aos orifícios do corpo.
1 00
Em sua abordagem das pulsões em 1 964,
Lacan começa a se referir a esse modelo óptico para
nele sublinhar de no,·o que "é no espaço do Ou
tro _(-\) que ele [o sujeito) se vê, e o ponto de onde
ele olha também está nesse espaço [mesmo se os
dois pontos não são os mesmos]. Ora, é bem aqui
também que está o ponto de onde ele fala, pois, no
que ele fala, é no lugar do Outro (.\) que ele come
ça a constituir essa mentira Yerídica pela qual tem
começo aquilo que participa do desejo no niYel do
inconsciente". 1 2•
:'-:ARUSO E ECO
103
uma ,-ida longa - responde: "se ele não se conhe
cer". ,Cm dia, caçando wn cerYo, Narciso flagra o
olhar da ninfa Eco, que ainda tem wn corpo, mas
"não sabe se calar quando se fala com ela, nem sabe
falar primeiro". Essa condição lhe fora infligida por
Juno, em represália por ter sido enganada pelas pala -
nas mentirosas da ninfa, a fim de proteger os amo
res de Júpiter. _-\ssim que percebe Narciso, Eco dele
se enamora e lhe segue os passos, repetindo o que
ele fala, ou melhor, os finais de suas palanas. �Ias
quando ela se precipita para abraçá-lo, ele a repele e
foge, como era seu costume. Eco, então, esconde
se, definha, e só lhe restam sua voz e seus ossos, que
tomam a forma de um rochedo. Eco não é a única
a ter sido rejeitada por Narciso, e um dia uma pes
soa por ele repelida lança a maldição: '�-\ssim, seja·
permitido que ele ame a si próprio, e desse modo
jamais possua o objeto de seu amor" - wn Yoto que
uma deusa atende: Narciso queda enamorado de
sua imagem que contempla na água de wna fonte
em que tinha ,;ndo apaziguar sua sede. Sem dm;dar
da imagem, ele se deseja a si mesmo, ele é amante e
objeto amado. �arciso não pode se apartar desse lu
gar, implorando por seu amado do qual apenas uma
1 0../
superfície de água o separa. "Para onde foges quan
do te procuro?" Clama. E termina por compreender
que esse outro amado é somente ele mesmo. ".-\rdo
de amor por mim mesmo", ''o que desejo está em
mim", diz. Como conseguir o que deseja a não ser
separando-se de seu corpo? _-\ dor esgota suas for
ças, ele se consome e espera a morte que o libertará
de suas· dores e o unirá, erifim, a ele mesmo. i\Ias
ele resiste à morte e se agarra a seu amor. Eco pas
sa pelo local e, malgrado seu ressentimento, dele se
compadece. Cada vez que ele diz "Pobre de mim!",
sua voz lhe responde, repetindo, "Pobre de mim!".
Finalmente, já sem forças, Narciso morre. Ovídio
escreve ironicamente que "mesmo depois de ter en
trado na morada infernal, ele ainda se olhava nas
águas do Estige".
Algumas observações 1nscrevem-se nesse
fio de minha elaboração. De início, a história de
Narciso está intrincada com a de Eco, com seu
amor por ele. Narciso e Eco têm uma história de
amor, mesmo se este não é partilhado.
Com Eco, há reduplicação da voz de Nar
ciso; com o espelho d'água, há a reduplicação da
imagem. Não · são as mesmas reduplicações. Elas se
105
conjugam, mas não se equivalem. Uma concerne à
imagem, à aparência; a outra, ao som, à fala. Uma
é totalizante (a imagem de um conjunto); a outra,
parcializante (o eco de uma parte das palavras) . Por
outro lado, há dois movimentos em sentidos .fOn
rrários: Narciso se aproxima de sua imagem, _Eco se
distancia do som em.itido. 1 2 7
Como registrou Claude Jaeglé, "a duplicação
da voz de Narciso na voz da ninfa Eco significa que
uma mudança de sexo acompanha o fenômeno do
eco". 1 26
Isso decorre do fato de que a problemática
do espelho e a do eco não se superpõem no ponto
em que estão intrincados. O eco não é a duplicação
do que se passa no espelho.
Se o eco é posto do lado do feminino, não
é porque toca uma parte obscura que se opõe à luz
do espelho e que está em relação com o continente
negro? 1 29 O espelho tem necessidade de luz para re-
1 06
fletir a imagem, o eco não tem essa necessidade na
obscuridade de caverpas, e a noite pode até mesmo
amplificar sua ressonância.
Se Eco se torna aquela que "nã? sabe se ca
lar quando se fala com ela, nem sabe falar primei
ro", é por ter pec;do (segundo Juno) pela fala. Ela
é punida por onde pecou, porque ela mentiu para
Juno, e sua fala foi uma fala enganadora. Isso quer
dizer 'que só lhe resta com o eco uma fala não en
ganadora? N ão saberíamos dizer, já que Narciso se
deixa iludir por Eco, acreditando aí ouvir a fala de
seu reflexo.
i\Ias ela, Eco, não tem intenção de enganar.
Há no eco a supressão de uma dimensão de engano
inerente à fala. Que dimensão?
No relato de Ovídio, a existência de Eco
precede a de Narciso. Narciso não é ainda Narciso
quando encontra Eco, que é, ela, a ninfa já transfor
mada por Juno.
É seguindo essa intrincação que vou buscar
distinguir melhor as características de um estádio do
..-1,mdard briuikira, Rio de Janeiro: I mago, 1 926, ,·oi. 10, pp. :WS-
293.
107
eco precedendo, mesmo virtualmente, o estádio do
espelho, independente dele, ou excedendo-o.
Dois fatores estão intrinsecamente ligados à
voz e contribuem para singularizar a pulsão invo
cante: o silêncio e o grito. Há wna primeira nodu
lação do silêncio e da voz no grito, segundo varie
dades do gritar: bradar, vociferar, berrar, estridular,
esbravejar, ribombar. "Não ouves a medonha voz
que brada em torno do horizonte e que chamamos
COfI-!-Umente de silêncio? 1 3º
1 30- (). Büchncr. l ..1.w-;__. Citado por P.-L. :\ssoun, J r��iJrd d l, f'Oix.
.i.·
1 08
Importa discernir o entrelaça�ento do si
lêncio e da YOZ, da yoz como objeto a, quer dizer,
separado e separáYel. _-\ hiância entre os dois orifí
cios da fonte da pulsão im-ocante somente acentua
o caráter "separado" da ,-oz. Foram essas as carac
terísticas que permitiram a Lacan isolar a ,-oz como
objeto a, tomando como modelo as ,-ozes não so
norizadas do automatismo mental, como dissemos
no primeiro capítulo.
Como qualquer objeto a, a ,-oz não tem ima
gem especular.. O olhar não é a Yi.sào: o que nos
olha é, por exemplo, o branco do olho do cego. 1 3 1
Como objeto a, a YOZ s e destaca das representações
sensoriais (por exemplo, aquelas que são cantadas,
daí o caráter eyasiYo da Yoz interior). ·_-\ sonorização
é uma imaginarizaçào mais ou menos satisfatória
da ,-oz. Ela funciona como mais-de-gozar. O que
caracteriza a voz como objeto a é o fato de que há
passagem por um ou dois orifícios corporais (a fon
te da pulsão) e a existência de uma escansào, de um
1 09
intervalo de abertura e de fechamento que faz as
vezes de corte. 13 2
_-\. verdadeira estrutura da voz é temporal. "A
voz peide ser estritamente a escansão com a qual
lhes relato tudo isso", diz Lacan em seu seminário
de 9 de abril de 1 974. "Há alguma coisa assim que
está ligada ao tempo que levo para dizer as coisas,
uma vez que o objeto pequeno a está ligado a essa
dimensão do tempo". 1 33
Essa frase poderia, aliás, ser posta em exer
go ao título evocador do livro de Claude Jaeglé_i 34
'.\ele o autor mostra como a voz de Lacan força
a atenção para o fato da excepcional frequência e
duração (m�didas auferidas sobre as gravações)
de seus silêncios e de suas pausas oratórias, assim
como as múltiplas mudanças de registros de suas
entonações. Estas podem, aliás, chegar até mesmo
a vociferações. E devem, pensamos, ser postas em
relação com esta frase dos Escritos (que além disso
comporta uma citação, ou seja, outra. voz): "Sou no
1 70
lugar de onde se vocifera que 'o universo é uma falha
na pureza do Não-Ser"'.13 5 Claude Jaeglé considera
que as particularidades da voz de Lacan concernem
ao drama do mal-entendido: "uma voz engendra
da por um universo de mal-entendidos. Unia voz
formada e deformada pela impotência de se fazer
. ouvir". Sua voz fala para surdos. 1 36
_-\s pausas na fala são essenciais à sua escuta.
Na mãe, uma voz contínua, sem corte entre os frag
mentos sonoros, é muito mal recebida pela criança,
que dela se desvia. Podemos também nos perguntar
se os silêncios no discurso não constituem, talvez,
um equivalente do eco da fala ou seu bloqueio.
Como os outros objetos a, a voz supre a ca
rência de significante que responderia à questão do
sujeito, de seu lugar em e para o Outro. /É porque
há identidade de estrutura de corte entre S e a que a
pode suprir a "nominação desfalecente'_' do sujeito.
_-\ voz é parceira do silêncio, o silêncio do
Outro. O vazio no qual a voz ressoa não é um vazio
111
espacial, "é o Yazio do Outro como tal, o e::-· nihi!o
propriamente dito. .-\ yoz responde ao que é dito,
mas não pode responder por isso. Em outras pala
nas, para que ela responda, deYemos incorporar a
,·oz como alteridade do que é dito". m O ,·azio do
Outro é o vazio de sua falta de garantia última, do
enigma de seu desejo e de seu gozo. "Ora, é nesse
,-azio que ressoa a voz não distinta das sonoridades,
não modulada, mas articulada". 1 38 Tomando como
exemplo o som do shofar no }óm Kipur,' 39 Lacan
interp ela o pacto com Ja,-é.
Existem ,·árias modalidades do laço do silên
cio à voz. O silêncio pode ser aquele que suscita a voz
do outro: " ... como ninguém o interroga, ela se põe
a contar histórias no vazio, aos pedacinhos . . . ".'"º O
silêncio pode ter também um valor pulsiona, como já
,'Ímos na parte sobre a conexão dos objetos a..
0ia relação ao silêncio é preciso distinguir o
silêncio de ta,·ere e o de silere, mesmo se na ·história
Ir. J. 1 .acan, Um�oiss,. op. ,iL, pp. .> 1 8-319 [p. 300].
138. lbid.
I W lh,d.. p. 28.� [p. 268].
140. F. Kafka, ]011m,zl, Paris, Grasset. p. 459. Indicado por Claude
Jaeglé.
1 12
eles terminam por se confundir: "Tacere como silên
cio de fala opõe-se a silei·e como silêncio de nature
za, ou de divindade, depois, último avatar, os dois
se igualam, tornam-se sinônimos, mas em pro,·eito
do sentido de ta,-ere1 4 '". Essa distinção é uma forma
de fazer ouvir o cunho do silêncio pelas dimensões
do real, do simbólico e do imaginário. O mito de
Eco, transformada em rochedo, é a forma mítica de
escutar o silêncio da natureza.
.-\lém das modalidades do silêncio de tacm
há uma relação ao .-azio de silêncio .ri/ere, constituti
va de uma borda entre silêncio e ,·oz que um sujeito
pode entreYer, ou entreomcir, durante experiências
subjeti.ns cruciais.
É o caso do belo romance de Catherine
)\Iillot, Ó Solitude. 1 42 Nele ela relata sua busca pre
coce de uma solidão "habitada de silêncio". Uma
solidão sem parti.lha em face da palana interior (úl
timo círculo do Inferno), que cessaria com a distin-
1+1. R. Barthes, V .\- ,·,rir,, op. ât.. p. 50 [p. 49]. Lacan ernc, também
a distinção �ntre silen· e 1.1,:,:n· em Pro/J;;_' Vh'J ,rucúur.-...-pnNr laP:íJ1/ir.1-
11tt/JSf e em La lo_giqul' du f,'wturmc, 1 2 de abril de 1 96-:-.
1+2. C: '.\lillot, ü Solit;,d,, P�s, Gallima:rd. 201 1 . Cma cirndo da
poeta Katherine Philips.
113
ção entre o dentro e o fora, a qual se opera somente
quando o eu [motl ti,-er tomado forma. Solidão que
se confundiria com uma alteridade reinando sem
partilha, no êxtase e na angústia. �e �se tempo mí
tico coexistiriam ou se alternariam a derrelição que
faz surgir o Outro com o enigma de seu de·sejo e o
deslumbramento da não dualidade reencontrada 1 43 •
Catherine ).Iillot cita também o relato de um
explorador, o ornitólogo \'-·: H. Hudson, U11 jlâ11et1r
en Patago11ie, no qual ele relata em particular seus dias
de isolamento no deserto da Patagônia e no qual
escreYe esta frase tão significatiYa: "Um dia em que
estava escutando o silêncio, perguntei-me subitamente
sobre o efeito que eu produziria se me pusesse a
gritar". 1 44
Silêncio, yoz, grito formam um nó. "O gri
to se faz abismo onde o silêncio se precipita", diz
Lacan comentando o quadro de EdYard ).Junch, O
1 13
É ainda por meio do grito, através do encon
tro com o próximo (Nebenmmsch) que a criança ace
de à Coisa (das Ding) que se impõe como montagerg
constante e representa para Lacan a extimidade' 4"
territorial do sujeito, que os objetos a colonizarão. O
grito remete a das Ding, o primeiro estranho em si 1 49•
Certos cantos alcançam esse limite do grito
e'da voz, por exemplo, o cantejondo (canto fundo) de
que tão bem fala Federico Garcia Lorca. ':-\ sigHiriya
cigana [o tipo mais puro e perfeito de cante jondo]
começa por um grito terrível, um grito que divide a
paisagem em dois hemisférios ideais. É o grito das
gerações mortas, a elegia pungente de séculos pas
sados; é a patética evocação do amor sob outras luas
e outros ventos [. . . ] Depois a voz se detém para dar
lugar a um silêncio impressionante e comedido. Um
silêncio em que fulgura a face do lírio ardente que a
voz deixou no céu". 1 50 Também o cantejondo se canta
de preferência à noite.
1 19
É se fazendo apelo que o grito entra no cir
cuito da pulsão invocante. Mas suas raízes mergu
lham nas trevas do corpo, do corpo que sofre em
perigo, mas também do corpo que goza, ali onde
lalíngua se tece de gozo, no que Novalis chamava de
a Sprachtrieb, a pulsão de falar por falar, sem querer
fazer sentido ou transmitir uma mensagem.
Entre o grito e a voz propriamente dita há
esse tempo de passagem pelo jogo de vocalizações,
os balbucios, os gorjeios, as lalações, o motherese ou
o parentese' 5 ' (pois isso não se refere somente à mãe)
em que a criança goza da matéria sonora para seu
prazer. Sabemos a que ponto a qualidade de inte
rações sonoras entre o bebê e seus pais são capi
tais para seu desabrochar futuro. ' 52 Por outro lado,
precisamente no motherese e no parentese observamos
que há uma estrutura de fala em eco.
1 20
Corpo e língua, afetos e representações te
cem o corpo de lalíngua, ou melhor, fazem consis
tir lalíngua como corpo do simbólico. Esse corpo
tem tanta realidade quanto aquele a partir do qual
· o sujeito forma seu eu [moi] como reflexo da ima
gem. N"esse sentido, podemos compreender uma
expressão de Didier .-\nzieu, a de "espelho sonoro",
para falar desse momento que precede o estádio do
espelho.
É apenas por Yolta dos 6 ou "' meses que
a cnança é capaz de imitar os sons que om·e, e é
por ,-olta dos 8-1 0 meses que se produz a primeira
perda vocal, quando a criança busca adaptar seus
,-ocalizes à fala1 53. '�\ntes tudo é somente Yoz". 1 34
Para tomar a pala-na é preciso aceitar um sacrifício
de sua YOZ, de uma parte de si, de uma parte de go
zo. 1 55 �esse sentido, a yoz como objeto a é mesmo
um mais- de-gozar.
J :!-7
O estádio do eco estaria ligado a esse mo
mento de passagem do grito ao apelo e à fala, com
a voz como objeto resto, um momento constitutivo
da distinção exterior interior, correlativa de qual
quer identificação e, portanto, correlativa também
de uma reversão em que há um exterior do interior.
_ -\ ecolalia do autista seria a fixação a esse momento
que é também um momento estrutural.
_ -\ ,;-oz torna-se um resto que foge, inapre
ensível, do qual a pulsão inYocante faz a \'Olta. Um
resto do qual só apreendemos o eco; à medida que
sua sonorização ouvi.da difere da emitida, esse resto
se nodula ao silêncio. O eco manifesta a divisão do
sujeito inerente ao laço (a punção do fantasma) da
quele inerente à voz.
:'.\lesmo se podemos falar, com Fónagy, de
"estilo vocal", em caso algum há identidade vocal
objetivável, impressão vocal, e sem dúvida pela .
mesma razão.
1 22
CONCLUS_\O
1 23
Contudo, se a pulsão im-oc�nte participa do
estádio do espelho - graças precisamente à conexão
dos objetos a - ele se encontra apenas antes, na de
sordem do real do corpo, ela o excede, ela o precede
e tah-ez se oponha a ele.
De fato, se o júbilo acompanha a assunção
da unidade do eu [mo1]no estádio do espelho, é aci
ma de tudo o estranhamento, o mal-estar, tah-ez o
susto que acompanha a descoberta do eco interior
ou exterior de sua voz.
O eco se distancia e se perde no longínquo
obscuro, enquar:ito a imagem se aproxima ciu ni em
direção à luz.
Enquanto ir em direção à imagem é reen
contrar a alienação do transitiYismo, ouYir o eco
distanciar- se é experienciar a separação.
.\lesmo se um estádio do eco tem lugar grosso
modo nos dez primeiros meses da ,;d-a, ele não é um
estáqio genético, orgânico, mas um momento estru
tural que se repete, em que o tempo se nodula à su
perfície segundo o equh-oco da pala-na estádio [stade] ,
que significa de início o lugar em que se disputam os
jogos e, depois (a partir do século XIX), o período
de uma e,-olução. Para retomar uma expressão de
1 2-l
Merleau-Ponty, eu diria que se trata de wn· "turbi
lhão espacializante-temporalizanre". 1 56 Se algo da
origem está implicado na noção · de estádio, trata
se de wna "orige1? turbilhonária", segundo, desta
;-ez, a expressão de \,alter Benjamin. i;; O turbilhãó
[tourbil/011] é a ;-olta de wn furo [trou], é também wn
"fur(o)bilhão" ["troubi!loll"] , ou então um "turba
lhão" [trub!ion]. Um furo que Lacan discerniu com o
furo "imiolável" do nó borromeano. 1 58
Em U!a, _-\lain Didier-\,eill fala do tempo
"a-histórico da pulsão im-ocante", ela seria �de todo
modo, a matriz sobre a qual se poderia ulteriormen
te grafar as pulsões sexuais parciais" . 1 59
"Origem turbilhonante'' é wn oximoro por
que o turbilhão é wn furo no qual se perde a ori
gem, no qual ela está mergulhada na 01is-gm1 60 [l'o,i:-
1 26
de "a paz do anoitecer", 1 63 em que subitamente não
sabemos mais se o significante prm-ém de dentro
de nós ou de fora, da natureza, na qual subitamente
escutamos o silêncio (aquele de silere) .
�esse momento, pode-se dizer com Roland
Barthes que "o homem seria como um ruído da
natureza (no sentido cibernético), uma cacofonia".
:\Ias imediatamente ele levanta a questão: "?\Ias
sempre a mesma aporia: para dizer essa cacofonia,
preciso de um curso".1 6ª
Dizer o silêncio é também perdê-lo, como
perdeu Orfeu sua Eurídice.
Nà sua prática, o analista se transporta para
esses confins, e é assim que ele vi.-e a pulsão invo
cante.