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Erik Porge

Voz doEco

Prefácio
Cla1,de Jaeglé

Tradução
Vivia11c Veras

f\fQCHDO"'
� lfTRflS
PREf:\CIO

É fascinante assistir ao nascimento de um


conceito. Erik Porge não reiYindica esse termo para
aquilo que nomeia, com prudência, uma "expres­
são", uma "fórmula", uma hipótese que ele circunda
com um discreto condicional. O objetivo do autor é
esclarecer a prática analítica e não acrescentar uma
noYidade ao dicionário de filosofia. l\iesse sentido,
trata-se menos (para ele) de produzir uma definição
conceitua! que de tornar ,-isível uma estrutura - a da
\"OZ -, preservando-lhe a abertura formal que torna­
rá sua apreensão, antes de tudo, útil ao trabalho do
analista. Sobretudo porque um espectro assombra
o "estádio do eco" - o de seu ancestral ilustre, o

9
"estádio do espelho", cuja natureza conceituai per­
manece, ela própria, discuth-el. Se Erik Porge reto­
ma o termo "estádio", tah-ez seja porque a imagem
sonora de um grande conceito tenha alguma coi­
sa de estimulante, mas ta!v-ez, sobretudo, porque o
"estádio do eco" pareça o avesso desse tempo de
apropriação e de confirmação que o "estádio do
espelho" oferece ao sujeito pela percepção de sua
imagem reduplicada. Também é pertinente pôr em
relação esses dois momentos narcísicos como "es­
tádios", noção rica de uma problemática cujo teor
Porge amplia, acrescentando a ela um componente
inédito: o de espaço de jogo.
Se esse ensaio nos parece, contudo, o lugar
de nascimento de um conceito, é de saída porque
assume o risco e a felicidade da invenção. Erik Por­
ge dá o pulo do,gato que o liberta das reiterações
que frequentemente limitam o pensamento da voz
a uma retomada de esquemas estruturais que ter­
minam por destruir qualquer interesse pela mani­
festação rncal empírica. E, em seguida, porque ele
consegue unir os fenômenos de invocação - grito,
voz, silêncio, apelo ao outro - em uma representa-

10
ção teórica original, e porque dá a esse lance de da­
dos da Yoz, definida como "ecoJ ' da -voz, um nome
que se fixa imediatamente no pensamento como o
atrator de uma instrumentação inoyadora.
Se o julgamos pelo escasso número de obras
de psicanálise que lhe são consagradas, o pensamen­
to da voz tem sido - ao menos na França - his­
toricamente deixado de lado. "Sobre o diYã [... ], é
frequentemente por uma modificação na ordem da
\-oz que nos apercebemos de que alguma coisa, na
ordem do desejo, tenha sido tocada [ ...]", constata
Denis ,-asse, mas "não se fala disso frequentemen­
te".' _-\ história dessa negligencia permanece por
escre,-er, a começar pelo pouco tempo consagrado
pelo próprio Lacan à "pulsão inrncante" e ao "afeto
auricular". Eri.k Porge e_stabelece o histórico da con­
cepção lacaniana da voz como objeto pulsional e
ordena de forma útil seus componentes. l\Ias nesse
trajeto ele para, paciente, ante os fatos negligencia­
dos. O pensamento psicanalítico retém, por exem­
plo, das Metamoifoses de Ovídio a figura de um Nar-

1. D. Yasse. L'arbre d, lo roó:, Poris, Bayard, 2010. pp. 55 e 59.


ciso apaixonado por sua imagem contemplada na
água, e fi..'i:a, por isso mesmo, o narcisismo ao olhar e
à úsão. Ora, o texto de Oddio ilustra não somente
uma reduplicação da imagem de �arciso na água,
mas também uma reduplicação de sua ,-oz na da
ninfa Eco. Erik Porge tira disso importantes hipó­
teses concernentes a um eco que precede a própria
yoz em Yez de ser dela a reduplicação consecutiYa.
Todo um debate deYeria daí decorrer, porque, se na
,-ida da criança a anterioridade da experiência da ,-oz
sobre a do olhar foi proposta, foi para assimilar esse
tempo de identificação rncal à identificação narcísi­
ca permitida pela experiência do espelho.2 Porge, ao
contrário, distingue-as fwidarn:entahnente. _-\ rnz é
não somente um contraponto ao ,i.sual, em oposi­
cão diferencial ao campo do olhar, mas encontra-se
de saída em contraponto a ela mesma, de maneira
bem mais perturbadora.
Se Erik Porge sente-se autorizado a susten­
tar essa distinção até o fim, é sem dúvida porque

2. Esse é. por exemplo. o posição de i\Ihden Dobr em um en­


s;Uo, alií1s� inspira.dor, [ ·,,'L" 101�'\" d rim d',.111frt', Caen, Éditions
1\ous, 2U12, p. 51.
ele possui alguma coisa a mais que muitos autores e
psicanalistas: ele desafina. E desafina mesmo. �ada
a fazer. Em sua ,-ida, essa experiência tem sido
permanente e decepcionante. Porge teria adorado
cantar afinado e poder abandona!-Se mais intima­
mente a seu gosto pela música, mas lhe foi preciso
des(en)cantar ao contrário. _-\lguma coisa na sua Yoz
jamais cessou de dar atenção ao desejo de escutar
a re(a)finamento de seu gosto musical confirmado
pela faculdade de cantar afinadamente. Essa falta de
confirmação, essa estranha infidelidade da ,-oz ao
desejo de cantar do melômano, o autor nos mostra
que são essenciais para caracterizar a estrutura do
objeto rnz e .sua experiência subjetin. É mais afi­
nado desafinar, se o que se quer é tornar audh-el a
°
dissonância própria ao fato vocal e o mal-estar que
dela resulta na percepção do sujeito por ele mesmo.
O sonoro e suas modulações agradá,-eis ou desa­
gradáwis são interessantes ocasiões para refletir
sobre a estrutura áfona da ,·oz. Um segundo ele­
mento, sobretudo, retém sua atenção: desafinar não
tem relação com uma causa orgânica. O retomo
intempestiYo de notas desafinadas na ,·oz não ,-em
de uma deficiência fisiológica, mas - e o compreen-
13
<leremos pouco a pouco no decorrer de sua enquete
- de uma falha irredutfrel entre escutar, escutar-se
e faz'er-se escutar. Entre om-ir, om-ir-se e fazer-se
om-ir. De uma maneira ou de outra, cada sujeito faz
a experiência de desconhecer alguma coisa de .sua
própriã voz, de sofrer o equívoco e de suportar a
cisão que esse desconhecimento pro,·oca na iden­
tidade subjetiva. Desafinar, om-ir ,·ozes, não reco­
nhecer sua YOZ quando é graYada sào experiências
sonoras pelas quais o indivíduo faz a experiência de
uma identidade não confirmada da voz. Desafinar é
apenas uma das manifestações dessa fatalidade que
assombra a \ ·oz: ser, sem cessar, uma cópia não con­
forme dela mesma.
O autor mostra, enfim, que o trajeto espe­
cífico da pulsão in,-ocante modifica, em compen­
sação, o esquema geral de outras pulsões sexuais..-\
estrutura em eco não é uma característica adicional,
própria unicamente ao objeto voz, mas, como Lacan
deixa entender em uma passagem de seu seminário
circunscrita pelo autor, um dado que caracteriza as
outras pulsões. .-\ssim, último a chegar, o "estádio
do éco" vem reajustar todo o campo das pulsões

1-J
que o precede, o que lhe dá um valor operatório que
vai muito além da vocalização tomada isoladamente
- e essa não é a menor lição desse ensaio.
Se se estima a qualidade de uma ideia pelo
número de hipótese.s e de ideias que ela, por sua vez,
engendrará, parece-me que o conceito de "estádio
do eco" está destinado a um belo futuro. Resta uma
questão inelutável: os autores afinados arriscam-se
a ter uma falsa concepção de voz? Não podemos
afirmar isso, mas, falando francamente, isso seria
apenas justiça. 3

Claude Jaeglé

3. N. da T Em francês, o desafinado é o cha11!ja11x. enguaoto o


afinado é o d.11111/Jitsk.

15
fico, Alexandre c:abanel, 1874.
INTRODUC\O

�a Yersào transmitida por Ovídio, o mito


· de Eco está entrelaçado ao de :'\arciso. No entanto,
para manter seus projetores com o foco em l\iarci­
so,4 a posteridade relegou Eco ao segundo plano. _-\
psicanálise, com a noção de narcisismo, contribuiu
amplamente para isso e continua a fazê-lo. Sem dú­
,;da, é a própria Yerdade do mito que nos faz enten­
der que a yoz de Eco tem dificuldade em se fazer
ounr.

4. Sublinhamos og ui a úlcimnipero de Chris toph Willibald Gluck,


F.,hu d ,'<,zrJrs, (1 -:9). [!<. da T. na p eca de Gluck ,um gron­
dt fracasso - consider:1d:1 uma pasmrl.i e tüo uma trngf::dia).
Cupido entra �m cen,\ e Fco e I\:umo ti:m um fin:il frlizj.

19
O "monólogo a duas vozes" de Narciso e de
Eco é '.'como o espinho fincado no coração de toda
teoria da comunicação", "sustenta - se apenas em um
som, no qual realiza seu destino de antonomásia".5
Um destino que soube imediatamente inspirar os
poetas para uma nova forma de poesia: o verso em
eco, ao qual Étienne Tabourot consagrou um capí-
0,tlo de seu livro em 1583,6 e cuja tradição foi perpe­
tuada por Yictor Hugo (Odes et balladu).
Restituir voz a Eco intro_duzindo um estádio
do eco vai além da homenagem literária. _-\poiar- se
no valor do mito como o modo narrativo da estru­
tura é discernir o espaço-tempo topológico da voz
na pulsão invocante. Essa voz que Sócrates chamava
de seu daimonion: "Isso começou na minha infância.
Ouço uma voz que se faz ouvir e, toda vez que isso
acontece, ela me desvia do que estou a ponto de fa­
zer, mas nunca me leva à ação." (Apologia de Sócrates).

5. P.-L. Assoun, l....t· regard d la ,·o,�..,_-, t. II, Paris. l�d. Economica,


1 995, p. " 1 -72. [N.daT.: O olhar , a 1 0:;:. Lições psicanalíticas
sobre o olhar e a rnz: fundamentos da clínica à teoria, trad.
de Cdso P. de _\lmcida. Rio de Janeiro: Compan!úa de Freud,
1 999] .
6. É. Tabourot, I..cs b�·ga,nm:.r dJJ it(�nmr dó u�wrdJ, Genebra, Sla­
rkine reprinLs, 1 969, cap. 1 6 -

20
Segundo . Lacan, é essa voz que sustenta a
atopia de Sócrates. "Nenhwn sentimento trágico,
como se diz em q,ossos dias, sustenta a atopia de Só­
crates, somente wn demônio. Não esquecemos esse
daimon porque ele nos fala disso sem cessar. Esse de­
mônio o alucina, parece-me, para permitir-lhe que
sobreviva nesse espaço (o entre-duas mortes] e ad­
verh-lp quanto aos buracos em que poderia cair. 7"
Em seguida Lacan identificará esse espaço àquele
do objeto a, em que a voz � wna forma.
É justamente de wna estrutura topológica
que se trata com o estádio do eco e não da fixação
de �a etapa de desenvolvimento. •\ palavra estádio
faz referência ao estádio do espelho, no curso do
qual é preciso também levar em conta a yoz e a pul­
são invocante que o excedem e o precedem. Falar de
wn estádio do eco é uma forma de reagrupar fatos
já conhecidos e de estabelecer laços entre eles, a fim
de fazer que sejam entendidos de outro modo.

J. Lacan, L: tra11s.fart, Paris, Le Seuil, 200 1 , p. 104. (A tra11sfi·rê11-


âa, trad. de Dulce Duque Estrada, Rio de Janeiro: Jorge Zahar_.
1 992, p. 87].

21
_-\ pulsão inrncante ocupa um lugar pri,-ile­
giado na prática da psicanálise graças ao dispositiYo
dissimétrico entre o analista e o analisante, entre a
escuta e o silêncio da atenção igualmente suspensa
do lado do analista e a fala liberada �s ideias insiden�
tes do lado do analisante. Pode-se também dizer que
o eco participa da interpretação analítica na medida
em que, para que ele opere, ''é preciso que haja al­
guma coisa no significan_te que ressoe".ª _-\ razão é
réso,z. O eco, sem que sua presença seja facilmente
localizáYel, e sem dúYida por isso, faz ressoar a fala;
a esse título ele pode, na linguagem, confundir-se
com ela. Por exemplo, na frase: "Leitor! Escuta mi­
nhas palaYras de cautela. Esconde-te no mais fundo
de seu porão, depois de rastejar rumo a um tonel
com aros de ferro, e não levanta em minha direção
o eco enfraquecido de teus protestos". 9
O estádio do eco representa também outro
apoio à abordagem de fenômenos clínicos em rela­
ção à ,·oz. Trata-se, por exemplo, de não reduzir a

8 J. L1cU1. J...: sjnthuJJh', Paris, Le Seuil. 2005, P· 1 2. ru Jinthom.z.


trod. de Sérgin Laia, Rio dc .Janeiro: Jorge Zoh:i.r, 2005 , p. 18j ,
9. H. ;\lichaux, "C:os <le folie circulaire", em CE111,·,·.c ,vmpktcs, t. I,
l':i.ris, Gallimard, col. "LJ Pléiade'· , p. 4.

22
ecolalia no autismo unicamente à ilustração de um
estádio do espelho que s� constituiria fora da fala.
No entanto, é surpreendente, como sugeriu
.-1..lain Didier-\,-eill, que Lacan, malgrado tudo o que
• disse sobre a yoz, tenha apenas "aflorado" questões
que conduzem à pulsão im:ocante. 1 0
E m um primeiro tempo, retraçarei a emer­
gência da Yoz em Lacan como objeto a. Ela é par­
ticular no sentido de que tem seu paradigma nas
,·ozes do automatismo mental e 110 sup�reu. _-1,_ no­
minação da \·oz como objeto a permite, por sua Yez,
uma abordagem noYa dos fenômenos clínicos que
estão em sua origem.
PromoYi.da a objeto a, a YOZ é ao mesmo tem­
po incluída 110 fio do tempo e, depois de algumas
tentati,·as, em uma lista, finita, de quatro objetos a. _-\
estrutura de grupo desses objetos é um dado sobre
o qual frequentemente se estabelece o impasse, e que
é, no entanto, essencial para pensar em termos de es-

10. A. Didier-\\..-eill,- In,o:.ltio1!s. Dionysos> :\,[olse, s�tinr Paulo et


1-'reud, Paris. Calmann-Lén-, 1 998, p. 12. [lmoatõ,s: Diorúsio.
/1-loisés. São Paulo e Freud, trad. & Dulce Du9ue ESirada, Rio
de Janeiro: Compmhia de Freud, 1 999, p. 10J.

23
trutura e não de desem-ohimento. Esse será o objeto
de minha segunda parte.
Enfim, apresentarei os argumentos em fa­
rnr da existência de � estádio do eco partindo de
características da pulsão invocante, parricularmente
a existência de duas fontes pulsionais; a boca e a
orelha, assim como de seu pri\;Iégio em relação às
outras pulsões, na medida em que, segundo o pró­
prio Lacan, ela está mais próxima da experiência do
inconsciente.

2-!
.\ ll\iCLUS_ \ O D.\ ,·oz l\_.\
LIST_\ DOS OBJETOS a

É notáYel que Lacan tenha incluído a ,·oz na


lista dos objetos a antes do olhar e, sobretudo, que
ele o tenha feito a partir das Yozes alucinadas e do
supereu.
O acontecimento teYe lugar no curso de seu
seminário O des1!fo e sua, intei-prctaçào, durante a ses­
são de 20 de maio de 1 959. O isolamento do olhar
como objeto a se fará em 1 964 em Os quatro conceitos
jimdamentais da psicanálise.
Com esse último "objeto" Lacan fecha em
quatro o número de objetos a que são, portanto, o
seio, as fezes, a YOZ e o olhar. O objeto anal já ha,-ia
sido isolado pelos analistas desde Freud - particu­
larmente Karl _-\braham e :\Ielanie Klein - como
objetos "pré-genitais", parciais ou, antes, objetos de
amor parcial. Todavia, eles haviam sido assim con­
siderados, sobrétudo em uma perspectin genética
de estádios de desem-olvimento, convergindo para
uma pulsão genital tida por, segundo Freud, aquilo
que os unifican em die ga11�e sex1-1al Strebung (aspira­
ção sexual total), o que Lacan contesta. 1 1 _-\s pulsões
sexuais são pulsões parciais, e parciais de totalidade
alguma . Elas são não-todas. Se esse todo existisse,
isso significaria que aí ha,-eria uma relação sexual
(entre um todo masculino e um todo feminino) ins­
critfrel - o que, aliás, contradiz Freud. ~-\ libido é
"cor- de-,·azio". 1 2
Seio, fezes, ,-oz, olhar são objetos libidinais
reunidos na sincronia da estrutura do sujeito ao. Ou­
tro e na qual inten-êm particularmente as funções

11. S. Freud, .1/itapJ],ho!�;ie, Paris, Grulimard, 1968, p. -ti : J. Lacm,


L;J quutr,· ,·o,1,tpts_fimd,mh'lll:1ux &- lu PDi.:ha,uz/p"t', Paris, I ,e Seuil,
19-.1 , p. I 60. [Os q1t,zrto ,"01h·eitos f,111d.unmtais da psiúuhi!irc, tra.d.
de �[.D. i\lagno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, l 985J.
12. J. Lacan, É,nls, Paris, Le Seuil, 1966, p. 85 1 . l.E.r.,itos, trad. de
\--era Ribeiro. Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 1 998, p. 865].

26
do gozo - para o qual eles encarnam wn mais - de­
gozar -, da necessidade, da demanda, do desejo. �o
início, Lacan incluiu o falo na sua lista de objetos a,
mas não foi para fazer dele um lugar de unificação.
.-\. sessão de 20 de maio de 1 959 de O dese­
jo e ma i11te1pretaçào tinha sido preparada por certo
número de etapas dentre as quais reterei duas im­
portantes: de saída, a pesquisa sobre a psicose e
as alucinações Yerbais no seminário Ás psicoses, e o
artigo "De wna questão preliminar ... "; em seguida
a escrita da fórmula do fantasma (S ◊ a) e seu po­
sicionamento no grafo, nos seminários Asjórmaçàes
do ú1co11scimte e, depois, em O desejo e stta it1te1-p1·eta_,-ào.
É nesse último seminário que uma boca
parece se fechar para inYentar a \'OZ como objeto'
a. Lacan parte, então, de wn estudo das \-ozes na
psicose para aí retornar com a Yoz como objeto a.

De\"Ído à seriedade de sua formação psiqui­


átrica, da qual é testemunha sua tese de 1 932, Lacan
estan bem adYertido da complexidade e da Yarieda -

27
de das alucinações auditirns, das dificuldades de sua
classificação, dos desafios de sua causalidade. Em
particular, ele estaYa bem a par da expressão "aluci­
nação psíquica", empregada por Baillarger, em 1 846,
para, designar as ,- o zes percebidas no interior de si, ou
seja, o · fato de "om'Ír as falas que os pacientes pro­
nunciam muito baixo contra sua vontade e de boca
fechada". 1 1 "Os alienados desconhecem então ·sua'
própria ,-oz como a desconhecemos nos sonhos."
O termo alucinação psíquica foi criticado
por J. Séglas (em 1 892) e substituído por "alucina­
ção psicomotora ,-erbal", com uma extensão maior
que aquela que lhe daYa Baillarger. Daniel Lagache
publica em 1 93-1- uma obra sobre essas alucinações
que têm o mérito de situar o problema da dissocia­
ção entre o falar e o om'Ír no mesmo sujeito: "como
a própria fala pode aparecer para seu autor como
uma fala estrangeira?"1 4 Eis como ele resume suas

B. J\i.dif. : J. Baillarger, Des hallucinations, des causes qui les


pruJuisent et des mi!..Iad..ies car:ictérisent. In: .\Nmoirts di.: t-foz­
rlàllic &lr ,1/4 & . \ /M,-â11,, \"olurne 1 2, Paris, J .ibr:ú.rie de J.-ll. Bai­
llii·re. 1 8-16. p. -10�,
1 -t D. Lagacht:, l..1.·1 lu!àt,·á1,1fióJJS 1 :.rblzks 1'! !t.1. flzrok1 Pari�, Librairie
Felix . llcan. 1 9 ,. -1, p. 1 .

28
obsen-ações: "Se alguém se coloca de um ponto de
,;sta estritamente fenomenológico, isto é, se alguém
se esforça para estabelecer o que experimenta o su­
jeito falante, esse alguém é le,-ado a distinguir duas
ordens de fatos:

1. Há doentes que declaram perceber pala­


"Í;ras estrangeiras e enquanto uns falam as
vozes que dizem omn, desconhecendo
sua própria fala, outros, im-ocando ,-ozes
interiores, declaram perceber as ,-ozes nos
mo,-irnentos de seus órgãos ou nas sensa­
ções que deles prm-êm, no interior ou no
exterior do aparelho da fala;
2. Há sujeitos que se queixam daquilo que
os força a falar, por pensamento ou por
ação". 1 5

Em seu Tratado d,.s alirá1taiÕes. Henri E\- con­


cede às "alucinações psíquicas verbais" (obsen-e-se
que o "motora" incluído antes na expressão desa­
parece, uma vez que o aspecto motor está longe de

1 5. Ibid.. p. 87.

29
ser sempre obserndo e de ser essencial) um lugar
exemplar na sua classificação das alucinações acús­
tico - ,-erbais que comportam, além d.isso, o que ele
chama de "alucinações aud.iti,-o-verbais fragmen­
tárias" e as "alucinações psicossensoriais auditivo­
Yerbais". Elas contêm em si: ele diz, "a própria es­
sência do alucinar" 1 6• _-\s características gerais dessas
'\-ozes interiores" são as seguintes. _-\ primeira é a
ausência de sensorialidade: "É uma ,-oz mona", "é
antes em pensamento", diz o sujeito. Isso explica
a infinidade de formas que revestem esse tipo de
alucinação. _-\ segunda característica fundamental é
a impressão do i!lucinante "de não ser ele mesmo
o autor do discurso, embora seja 'interior', que ele
o m-e". O espaço de sua interioridade está esfuraca­
do, cruzado por uma exterioridade, por uma xeno­
patia, diz. Seu mais íntimo lhe é exterior. Ele sofre
do que o neurótico só alcança no máximo depois de
muitos anos de análise e que é o objeti,·o da máxima
freudiana !Fo Es 2/Ja1; sol Ich 111erden. Essas alucinações
traduzem uma intrusão do Outro em mim, Outro
que fala, pensa em meu lugar. Outro é eu.

16. H. E,·, Traiti d,, lu!/u,i,1<1/ion,, t. !, Paris. l\lasson, 19:3. p. 1 95.

30
Esse traço que dá a esse tipo de alucinaçào
um valor paradigmático suscitou o interesse de psi­
quiatras clássicos e mo.ti...-ou a obra de Daniel Laga­
che. _\ própria pesquisa de Làcan len essa questào
adiante. Tanto em seu seminário .,-J.s psii-oses quanto
em seu artigo "De uma questào preliminar...", po­
de-se obserYar que ele emprega o termo "alucina­
çào ,·erbal". É Yish·el a filiaçào a "alucinação psíqui­
ca" (Baillarger), "alucinaçào psicomotora ,·erbal"
(Séglas), "alucinação P}íquica ,·erbal" (Ey). Depois
que o "motor" pifou, fica em torno do "psíquico".
De fato, o uso do termo alucinaçào Yerbal
em Lacan ultrapassa o que a psiquiatria tradicional
chama de alucinação psicomotora ,·erbal, partic_ular­
mente porque ele inclui também as alucinações ditas
auditivas, correspondentes ao que Esquirol chama,·a
de "percepçào sem objeto", em que as ,·ozes sào ou­
,-i.das e localizáYeis em uma exterioridade que pode,
entretanto, ser a do próprio corpo... :\'essas ...-ozes "a
temática delirante faz sensorialmente parte de aluci­
nações" (Ey).
O uso do termo alucinaçào ,·erbal, nos pri­
meiros te�tos de Lacan, liga o sujeito ao verbo e
significa, fundamentalmente, a essência Yerbal ins­
crita na funçào e no campo da fala e da linguagem

31
de toda alucinação. "O drama do sujeito no ,-erbo
é que ele experimenta ali sua falta-a-ser",' 7 qualquer
que seja sua estrutura clínica.
_-\ partir daí Lacan se separa de Daniel La­
gache e de seu amigo Henri Ey, aproximando-se
par;doxalmente de seu mestre Gaetan Gatian de
Clérambault. Em aparência paradoxalmente, por­
que se Clérambault invoca um mecanismo orgânico
"serpiginoso" na origem das alucinações, ele wúfica
seu campo com o termo automatismo mental, que
Lacan retoma por cont� própria.

O L\BCJÇ( ) DO A[ º10:\L'1TIS.\1CJ .\ li:.\'T.,JL.


DO ECO DO PE\T.J..1/fi;,TO

O automatismo verbal faz parte, segundo


Clérambault, junto com o automatismo sensitivo e
com o automatismo motor, de um triplo automatis­
mo. O mestre do Dépôt' 6 começara a fazer uso do

1-. J. Locan, "Remaryue sur ! e apport d e Daniel ! .agache: Ps;dJa-


11:1{1 í,' d slrudur, d( l.1 pa:rom1ulitt", cm ÉL·rit.1, op. • -ir.• p. 655. [Es­
c,i/o r, op. ,it. , p. ú61 J .
1 8. ::S:.JaT: Fm 1905, Clérnmbaulr roma-se médico adjunto da
lnfirmerie spécirue de la Préfecrute de Police de Paris. hoje
termo em seus certificados a partir de 1 905. Segun­
do ele, o automatismo mental é o núcleo comum
de todos os delírios alucinatórios e constitui deles o
primeiro sinal. Ele é inicial e o delírio é secundário.
Há "com razão um processo histológico irritativo
numa progressão de alguma forma serpiginosa".1 9
"Qualquer que seja seu grau de verbalização,
o _-\:\ I (� utomatismo mental) é, no início, de conte­
údo totalmente 11etttro; ele não é de forma alguma
temático, uma vez que se limita a jogos com os ele­
mentos do pensamento e que nada neles permite
pressagiar a cor do delírio futuro". _-\liás, ele é tam­
bém caracterizado por sua natureza não sensorial,
"é o pensamento que se torna estrangeiro". 2º

Infirmtrie ps,·chiatrique de la Préfecrure de Police de Paris -


IPPI', conhecida como ''Dépôt de Police". _\ instituição fazia
a triagem e fornecia laudos de anliaçào psiquiátrica.
19. G. Gatian de Clérambault, CEmr, psy.hi,ifricp1c, t. I e li, Paris,
PCr� 1 9+2, p. _ -186. (?\.daT: chamam-se serpiginosas 'certas
afecções da pele (erisipelas, úlceras etc.) que progridem de
modo sinuoso, curando de um lado e se estcndtndo de outro'.
Confira Dicionário Houn.iss].
20. Jbid, p. +85. Confira também a tese de Élisabeth Renard. J_,,
CVxt�·11r Gai''trJ1J GtZ!t"a11 C!à,w1ba11!t, Stl ,'if ri ron amn· (18�:-1 93-1),
Paris, Librairie Le Francois, 19-12.

33
Inicial na psicose, neutro (atemático, sem
conteúdo afeti.-o) , não sensorial são as caracterís­
ticas gerais do automatismo mental. Ele inclui fe­
nômenos que j á eram conhecidos dos psiquiatras e
que são da ordem da "tomada de pensamento": os
pensamentos impostos ("dão-me pensamentos que
não são meus"), pensamentos estrangeiros que atra­
Yessam o cérebro, pensamentos antecipados, pensa­
mentos inesperados.
O que Clérambault considera o elemento
primordial do automatismo mental é o que chama
de o eco do pe11sammto. O sujeito aceita que se t;:ata de
seu pensamento, mas ele o percebe como imposto de
fora. Ele é desdobrado em face de seu pensamento.
O eco pode ser psíquico, auditi,-o ou mo­
tor em graus diYersos e simultaneamente. Ele pode
ser consecuti,-o, simultâneo ou antecipado. Ele não
é sempre uma repetição e_strita, há muitos tipos
de eco: 2 1 o eco com ,-ariantes, o eco com adições:
enunciação de gestos, comentários, enunciação de
intenções...

21. (�. G. d e Clérambaulr, op. ât. , pp. 589-59 1 : 1�. Renard, op. .it., p.
95.

3-1
Enfim, ao automatismo mental podem-se
ligar outras modalidades alucinatórias menos fre­
quentes, de uma imensa variedade: 22 emancipação
do pensamento abstrato, desenrolar mudo de lem­
branças, falsos reconhecimentos, desaparições de
pensamentos, rnzio do pensamento, perplexidade,
dispersão de ideias, passagem de um pensamento
inYish-el, imagens impostas de fora, jogos Yerbais
parcelados: frases, palanas, sílabas, pala.-ras jacula­
tórias fortuitas com acento nas escansões manifes­
tando a fragmentação verbal...
�ão é necessário aceitar a causalidade orgâ­
nica inYocada por Clérambault para reconhecer o
valor e a riqueza semiológica do automatismo men­
tal como forma de alucinação Yerbal.
Para nosso propósito - o do isolamento da
voz como objeto a a partir de vozes - constata-se
facilmente o interesse que representa essa _semiolo­
gia. _-\s yozes manifestam formas Yerbais do pen­
samento e, portanto, a estrutura de um sujeito de­
terminado pela linguagem. _-\ esse título, aliás, elas
,-ão ao encontro do que Paul Guiraud chamou de

22. É. Renard, ,ip. ,it.. pp. 96-9°.

3 :;
formas verbais da interpretaçào delirante,2 3 sobre as quais
Yoltaremos a falar. Em ,-i.sta dessas formas yerbais,
um desdobramento se produz para o sujeito; trata­
se, ao mesmo tempo, de seu pensamento, e ele lhe
,-em de fora, ele lhe é imposto de forma parasitária,
e irrompe de forma repentina. Em As psúoses, Lacan
estuda o desdobramento em Schreber e o religa ao
duplo imaginário e ao esquema L. "É no nfre\ do
entre-eu, isto é, do outro com minúscula, do duplo
do sujeito, que é ao mesmo tempo seu eu e não seu
eu que aparecem as falas que são uma espécie de
comentário corrente da existência. Vemos esse fe­
nômeno no automatismo mental, mas ele é aqui [no
caso das frases alucinatórias interrompidas que se
impõem a Schreber] mais bem acentuado, já que há
um uso por assim dizer implicante do significante
nas frases começadas, depois interrompidas". 2 •" De
antemão, Lacan nota que os fenômenos de eco do
pensamento no psicótico só amplificam "� relação

23. P. Guiraud. "l.('s formts ,·erba.lt:s de l'interpn:'.:rn.tiun deliran­


te::" • .--1.\IP, 193 1 . Rt·public:1do en1 L2 rr:111t' l,,1,wli,·1111,-, n.0 6,
·1,,ulcmse. éri:s, mar. 20 1 0. Confira ,,s coment,irios cleJ. .\Jlou­
ch e 1'. Porge em /....ito1c1/, o.º 3/-1, Toulouse, érés, fe,-. 1 982.
2-1. J. L1can, L·s pi-o.-,.-. Paris. Le Seuil, 1981, p. 2 1 9. [.·ss p,'i,os,s.
tGtd. de ,\luísio �lenezes, Rio dc Janeiro, Jorge Zahar, 2002, p.
222].

36
de eco interior em que o sujeito está relatiYamen­
te a seu próprio discurso". 2 5 E acrescenta: ":---ião
sabemos nós, psicanalistas, que o sujeito normal é
essencialmente alguém que se coloca na posição de
não lenr a sério a maior parte de seu discurso in­
terior"?26
_-\ serniologia do eco do pensamento mostra,
assim, que as alucinações verbais não precisam ser
sonorizadas - en:i Yozes audfreis, localizá,- e is - para
serem reconhecic.las.
Essas formas ,-erbais são neutras, atemáticas
e re,-estem-se de um caráter fragmentário, parcela­
do, escandido.

Compreende-se que desde então Lacan te­


nha seguido a Yia das ,-ozes em sua abordagem das
psicoses. �ão se trata, contudo, de aplicar às psico­
ses urna teoria de linguagem já constituída, mas de
habitar a linguagem incluindo nela a problemática

25. Ibid., F· i A2 [pp. l 86-18�].


26. Ibid, p. 1 -IO [p. 1+4].

37
da psicose, sem por isso terminar em uma teoria de­
lirante de linguagem, como Jean-Pierre Brisset, por
exemplo. A trilha da ravina é estreita. Ela é traçada
pela significação. _-\ s�ficação é tributária de leis
de composição do significante (metáfora, metoní­
mia) ; a significação (Bedeutuni) é o falo. •-\ foraclusão
de um significante, aquele do Nome do pai, faz cair
em um vazio (o vazio do pensamento, o deixar cair
de Schreber) ou em um excesso de significação (o
neologismo); a significação não remete mais a ou­
tra significação, mas à própria significação (a língua
fundamental de Schreber) e estamos então na psico­
se . •\o mesmo tempo, as mesmas leis de linguagem
desembocam em um além da significação, um "cen­
tro exterior à linguagem": "Dizer que esse sentido
mortal revela na fala um centro externo à linguagem
é mais do que uma metáfora, ·e evidencia uma es­
trutura, [... ] Ao querer fornecer dele [um anel] uma
representação intuitiva, parece que, mais do que à
superficialidade ' de uma zona, é à forma tridimen­
sional de um toro que conviria recorrer, na medida

38
em que sua exterioridade periférica e sua exteriori­
dade central constituem apenas uma única região".17
Uma topologia é convocada para uma apro e
ximação da linha de fronteira com a psicose: aquela
entre um além estrutural da significação e um além
de uma estrutura clínica particular.
Em As psicoses assistimos a esse movimento
pelo qual Lacan se apoia no que lhe fornece a tra­
dição psiquiátrica, ao mesmo tempo em que dela se
separa.28 De saída ele retorna à alucinação verbal:
"Nada é ;mais ambíguo do que a alucinação verbal".
Não basta observar os movimentos articulatórios
quando o sujeito diz ouvir vozes. "Se esse problema
merece ser abordado é a partir da relação de boca
a orelha". Em seguida, uma "frase só se torna viva
a partir do momento em que apresenta uma sig­
nificação". E o que põe em relevo a alucinação é
precisamente a antecipação dã" significação. "Há um
vínculo entre o ouvir e o falar que não é externo, no
sentido em que nos ouvimos falar, mas que se situa

27 . J. Lacan, ''F,mction et champ de la parole et du langage", em


Émts, op. át., p. 320-321 [Esm't<Js, pp 321 -322]
28. J. Lacan. Lcspsicosa, op. àt., 8 de feyereiro de 1 �56, pp. 1 54-157
(itálicos acrescentados). pspricvm, PP·. 157-161].

39
no próprio rúvel do fenômeno da linguagem. É 110
11ível em que o sigllifica11te acarreta a significarão, e não 110
nível sensonà/ do fenômeno de que o ouvir e o falar sào como
o direito e o avesso."
�Ias se a significação remete à significação,
isso quer dizer que não há ponto de cessação, uma
vez entendido que a indicação da coisa não saberia
constituí-lo?
É nesse momento que Lacan procede a uma
espécie de retomo que, se ele devesse fazer ponto
de cessação, ele o faria justamente não sem a psicose.
Ele escolhe apresentar o belíssimo exemplo da paz tÚi
a11oitecer.29 "Yocês estão no declínio de um dia de tem­
pestade e de fadiga, Yocês consideram a sombra que
começa a invadir o que os cerca, e alguma coisa passa
pela cabeça de vocês, que se encarna na formulação
a paz. do al!oitecei:" 30 Não saberemos dizer se essa for­
mulação \'em de fora ou de dentro. E Lacan conclui:
"Chegamos agora ao limite em que o discurso, se ele
desemboca em alguma coisa além da significação é

29. Em seu belo lino, L'a,t, ,sthitiq11,, Paris, Klincksieck, 2008,


Baldine Saint-Gtrous faz da paz do anoitecer o paradigma do
a to es térico, :1 pan:ir de uma ex-periência pessoal, partilhada
com ou tros, que ela ,i,·eu em Siracusa, na Sicilia.
30. J. l .acan, ,4. <p,,iuSiS. op. ,it. , pp. 156-160, fpp. 160-164].

40
sobre o significante no real. Nunca saberemos, na
perfeita ambiguidade em que subsiste, o que ele deve
ao casamento com o discurso." Esquematizando, po­
der-se-ia dizer que o que faz limite ao ree�,-i.o infinito
da'·significação à significação é o significante no �eal,
ou seja, a franja com a psicose.
_\ linha de crista3 ' que se traça com a psi­
cose, Lacan chama-a, com efeito, em 1 956, de uma
"franja", um "transespaço ligado à estrutura do sig­
nificante e .da significação" . .\ localização do sujeito
só poderia ser topológica, e é somente a partir daí
que se pode tentar cernir as diferenças de estrutu­
ra e suas franjas. Franjas de que Lacan dá alguns
exemplos em seu seminário As psicoseS'. levar a sério
o discurso interior,32 momento de tomada de pala­
vra, ressurgimento de uri:J. afeto.n

31. N.daT.: '.\:o original, l,:g11, d,· ,7Úc. Linha de crista, linha de cume
ou cumeada é uma forma de relen, definida como linha que
, une os pontos msis altos (em relação a uma' superfície hori­
zontal) de uma deYaçào, e é determinada pela intersecção de
d�as Yertentes; forma topográfica.
32. Confira G. Lanréri-Laura, "La ,·oi_'< t:t te langage intérieurn , em
R. Lew e F Sau,- agnat (orgs.) , L, ,oix. ad,s da ,oloqrff d'lrr: r d"
73 l'"""' 1988, Paris, Lnimague, 1989, que relembra oportu­
namente as fontes místicas da ,·oz.
33. Ibid., pp. 140, 285, 305 [pp. 1 +0, 285, 30+] .

41
_-\ noção de litoral que Lacan introduzirá
mais tarde em "Lituraterra" pode ser considerada
wna sequência à de franja, na medida em que o li­
toral, diferente da fronteira, situa-se entre dois do­
mínios heterogêneos (o mar e a terra, por exemplo) .
_-\ nm-i.dade radical de Lacan em relação a
tudo o que se elaborou antes dele sobre a psicose é a
de ter reencontrado a necessidade de uma topologia
para com ela também dar conta do sujeito, única
forma de não nos tornarmos nós mesmos loucos,
por wna outra ,·olta.

O (;RAFO. l'RI.\ /C!RA TOPOLO(;L,J D·" 1 DZ L D(! S U'ERE [.·

Essa topologia �omeçou com "o grafo" 34 e


é com esse suporte. que Lacan isola as ,-ozes como
objeto a. •-\ rnz é a topologia das ,·ozes.
O grafo começa a ser construído e explici­
tado no seminário Asforma_cões do inconsáente (1 957-
1 958). Ora, ele é contemporâneo do artigo "De
uma questão preliminar...", e não é por acaso que

3-1. Designamos grafo u que :-e encontra cm "SubYCf$àO do sujei­


to e di:ilérico do dese10" em Escritos, de Jacques Lacan.

42
as alucinações de Schreber constituem um dos da­
dos com os quais ele o constrói, sem contar que a
matriz do grafo prO\-érn explicitamente do ponto de
cessação do significante que Lacan introduziu em
As psicoses.
O grafo permitiu a Lacan ler e interpretar
duas formas de alucinações que chegam a Schreber:
as vozes do que ele chama de a língua fundamental
(GmndspradJe) e as vozes de frases interrompidas que
ele impôs a si mesmo completar. O código composto
de "mensagens sobre o código" das primeiras, assim
corno "a mensagem reduzida àquilo que no código
indica a mensagem" das segundas, "necessitaria, diz
Lacan, ser transposto com o máximo cuidado para
um grafo35", sabendo que sobre ele os lugares do có­
digo e da mensagem já estão indicados:

35. [b,Titos, pp. 546-5-171.

43
s(_-\) é o momento da mensagem, "da pontu­
ação onde a significação se constitui como produto
acabado", na retroação de _-\, lugar menos de um
código que de uma reunião sincrônica de significan­
tes. _-\ é um "local (mais lugar do que espaço)", s(_-\)
é um "momento (mais escansão do que duração)".36
Em Asfomwrõe.r do inconsciente o termo '\·oz"
é inscrito no grafo pela primeira yez, antes mesmo
de ser isolado como objeto a. De irúcio Lacan de­
sign a o lugar do supereu, que se tornará o da YOZ,
sobre a linha de articulação significante passando
por s(_-\) e .-\, depois .-\, em oposição ao riso, que ele
situa antes de s(_-\). 3 '
_-\ assimilação do supereu à ,·oz não é tão
surpreendente. Por um lado, ela admite uma raiz na
língua, uma Yez que "obedecer" [obéi,j (oboedire) vem
de "escutar" [écouteij (audire) . 36 Por outro lado, a reli­
gião e a filosofia o ha,;am antecipado com a expres­
são '\·oz da consciência" para designar a instância

36. lhid.. p. 806 jp. 820] .


3-. J Lacan, L:.r /011JJc1tiol/s de !'i11,ol/s,i, 1// (16 de abril de 1958), Paris,
Le Sc::uil, 1 998, p. .l33. [. -:ls jnrmd.L·fkJ do illl'OJ!J·,'iotk, trad. de \ern
Ribeirr.,, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1 999, p. 3-15] .
.3R. '.'\'.d:lT.: O n:rbo "obedecer'' tem a mesma origem.
moral. Para Freud, o supecreu é uma instância de sua
segunda tópica que se destaca do eu para julgá-lo
e que mergulha suas raízes no isso; ele é em parte
inconsciente. Ele se forma a partir de falas ouYidas
dos pais ou de seus substitutos. _ -\. influência critic�
dos pais é mediada pela ,-oz, diz Freud, O supereu
pode negar suas origens no ouvido (entendido). É
por isso q1=1e em seu esquema das duas tópicas em
forma de OYO Freud acrescenta a "calota acústica",
no nfrel do eu, de um único lado e em diagonal. 39
Outros analistas imitaram o passo de Freud
sobre esse �ema. Citamos particularmente Otto
Isakower e Robert Fliess (o filho de 'X--ilhelm Fliess
tinha imigrado para os Estados Unidos e se tornado
psicanalista), em um artigo clássico muitas ,-ezes ci­
tado por Lacan e do qual ,·oltaremos a falar. 40

39. S. Freud, ·'I .e moi er k ç:i.", em Ess,rir de: p.[1 ,·h,111,zb·s,, Paris,
Payot, 1 98 1 .
-!O. R. . Fliess, "Silence and Yerbalizauon: a supplement to the
rheon· of rhe 'anaJyric rule'". Th, i,,1.-,·,utio11JI fo11mal of ?9 -
:bo,111,16,if, , ·ol X.\:X, 1949, pp. 21-.10. Tmduzido por frnncois
Saun1gnat, em L1 ,oh..:. op. át.: '�\ssiin como o núcleo do eu t:
o eu corporal, a esfera auclitin humana, modificada na direção
de uma capacidade de lingmgem, de,-e ser considerada o nú­
cleo do supereu".

45
Identificando a YOZ ao supereu, Lacan se in­
sere, e1;tão, na linha freudiana. ;\Ias ele também a
le,-a adiante. O sup�reu é um imperatiYo dissociado,
destacado das leis simbólicas da linguagem. Ele é
uma cisão nas relações do sujeito ao simbólico.4 1 O
supereu é uma lei, mas sem dialética. "Ele é ao mes­
mo tempo a lei e sua destruição"." Ele é o "sabo­
tador interno", o Tu que toma posse da casa e ejeta
o sujeito."3 É a lei incompreendida, interrompida. 44
Esse caráter de discurso interrompido, parasitário,
per.mite assimilar o supereu à ,·oz.45 É um "caroço
da palaYra",46 uma ,·oz "obscena e feroz".

-1 1 . J. l .;can. L: , .'.-ri!, fr.hniqncs de F,wd. Paris, L e Seuil, 1 9 �5 , p.


220. [ O..- cs:-rito, ii,1:im,· d,· frmd. trad. de Bet ry :<-ili!an, Rio de
J aneiro, Zahar, 1 9�9, p. 221 -
,p S. Rabinm-irch. L·s w1x. Touk,uôe, éri:s, 1999, p. 6-1.
-1.,, J. L.lon, r�·s psi.'OJ,s. Of- à!,. pp. 3 1 2-., n, [pp. 1 1 1 -] 1 2] . [!\i.daT.:
Lacan diz que certo ;mmr nomtia o -supereu 'sabo t:1dor in­
temn' - WR.B. Fairbairn ( l 952-198U) T,s111./o; Psi,un,1/ili,w da
Pa:1 0,.,,.,/id.z&. Riu de Janeiro: Jnrer;1mericana ] .
-+4. J . Ltc:-u1, I .1.: 1110,: d_ws ,l;l t/,,:o,ii: d,· Frc·;1d d diin• la k,·/miq1tt' d1.,: l.1

t-t:cl1.m,1/: J,', P;uis, Le Seuil, 1 9�8, 1 58. [ O ,.,, "" r,oria & hmd
e' 1:.:1 k.11i:1.1 d: 1 _!:'si,;m,i!i.,·:·, trad. de f\ L (. Laznik. Penot, Rio de
Janeiro, Jorge Zahar, 1985, p. 16-1] .
➔5. J. L:tc,1n. L :u.1�rJ1:1.rl·, Paris, l.e SeuiJ, 2()0-4. p. 291 . k1 ,u:griJti:1: traJ.
de \'eu Ribetm, Rio de J aneiro, J< >rge Zahar, 2005, p. DS] .
➔6. N.d:11·.: J . l,:1can, Or ('J',ritus tcó:i,-os d, Frt·ud, u:id. de Betty !\lilan,
1 9�9, p. 125.
.-\ distinção do simbólico, do imaginário e do
real permite a Lacan radicalizar a assimilação do su­
pereu à ,-oz. Ela o conduz também a preci.sar, com
um desvio pela análise do masoquismo, o que faz o
fundamento desse imperati,-o: o gozo. "O supereu
é o imperatiYo do gozo - ]ottis'" [Goza]" . É aquilo a
que o sujeito pode apenas responder apen;s: ''j'ouis
[Eu ouço]".
No dia 22 de abril de 1 958, sempre em As
formações do i11co11sciente, Lacan inscreYe -o termo .-oz
ali onde hari.a localizado o supereu, e dá à ,-oz uma
primeira definição que a situa em certa excentricida­
de em relação ao significante, em wn além daquele:
"[n]o significante plenamente desem·oh-ido que é a
fala, há sempre uma passagem, isto é, algo que fica
além de cada um dos elementos que são articula­
dos, e que por natureza são fugazes, ennescentes.

-17. J. L.lcan, En,orc. Paris, Le Seuil, 1 9�5, pp. 1 0- 1 3. piais. .ii!id.1..• ,


trad. de i'vl. D. \fagno, Rio de Janeiro, Jorge Zaha.r, 1985, 11] r-
:\:.daT.: Coofi r:1 .,":t ,.ZJ,'J!,ÚS!Ú, op. ,1!. : ".\ esse <;oz:2 Joms.,:. só pos­
so responder uma coisa: é EH º":"º ] '011i(. m;'l.S. naruralmente,
nem por isso gozo com mais facilidade'", pp. 91 -92. Lacan re­
mete essa ordem ;i. Deus, no EJ,·sia.st::s. Confi.r:i. tambt'.m a obr,1
_Qohdd = O qu.· s,i/;r:, Ecle�iilstes: poem;1 :--::1.pienciJ, tr:1.nscri:-1.c;:j,o
de Ha.roldo de Campos (com colabor,tclo de J. Guinsburg),
Sõo Paulo. Perspecti,-a, 1991.
É essa passagem de um para o outro que constitui o
essencial do que chamamos cadeia sign ificante. Essa
passagem, como e\·anescente, é justamente o que se
faz YOZ - nem sequer digo articulação significante,
pois é possÍYel que a articulação continue enigm áti­
ca, mas o que sustenta a passagem é voz".48
.-\ \·oz designa, portanto, a "passagem, como
eYanescente", do significante. Ela é um resto não
redutfrel ao significante, mas essencial à sua articu­
lação como o que lhe sustenta a passagem . .-\ Yoz
não está ainda isolada como objeto a, mas já toma
um lugar particular em função do significante, mas
sem se reduzir a ele.

_.J I 07. f'R:J.1/CJ! 71'-� _.J Oil[Eí() a

� o ano seguinte, no seminário O desejo e sua


úzterprelafCÍO, no dia 20 de maio de 1 95 9, Lacan batiza
oficialmente a \'OZ como objeto a. No curso dessa
sessão ele chega a comentar a fórmula do fantasma
(S ◊ a) situada no grafo e a explicar como lê- la. O

-18. J. Lacan, / ..:s /Óm1.züons d: n,,,v,,,.-imt. op. .-it.. p. 3-1:'I [p. .,SS] .
./8
sujeito quer se apreend !'= r além da fala (Yê-se a recor­
rência da questão de Lacan), encontrar o significan­
te último que ,·á representá-lo, fazer cessar o em-io
infinito das significações. Nessa busca, ele reencon­
tra um ,·azio no Outro, uma yez que não há Outro
do Outro, não há garantia última. _ -\ escrita do fan­
tasma S ◊ a denota esse mo1JJe11to em que o sujeito se
eYanesce (jadi11g do sujeiro) em face da carência de
significante que responde se seu lugar no nÍYel do
Outro. O Lh do lf"o Es 1mr sol Lh 1?Jede11 não pode se
designar no momento em que ad,·ém. Como últi­
mo recurso, ele encontra um suporte nesse objeto
a, tirado, aliás, de uma parte dele mesmo, na ,·er­
d:ad�, do registro imaginário. Na di,-isão do Outro
pelo sujeito (antes da diYi.são do sujeito, quanto ele
quer se inscreYer no Outro) , o sujeiro diYidido $ é
o quociente, e o objeto a é o resto da di,'isão. Esse
resto compensa a carência de um significante que
responde de seu lugar no Outro. O objeto a supre
uma "nominação desfalecente" do sujeito. Para que
aí haja punção (◊) entre ? e a é preciso que em certo
nh-el haja identidade de estrutura entre os dois. Essa
identidade é o corte: "É como corte e como inter­
Yalo que o sujeito se encontra no ponto final de sua

./9
interrogação. É assim, bem essencialmente como
forma de corte, que o a, em toda sua generalidade,
1nostra-nos sua forma". 49
P_ela prin1eira ,-ez, Lacan precisa, nesse mo­
mento, que três objetos preenchem essa condição de
ter uma forma de corte e podem, assim, preencher a
função de suplência na tentatin falhada de o sujeito
se nomear. São os objetos ditos pré-genitais (seios,
fezes), o falo e ... as vozes. '�\ terceira espécie de obje­
to desempenhando exatamente a mesma função em
relação ao sujeito em seu ponto de eyanescimento,
de fadúzg, isso não é nem mais nem menos do que
aquilo que se chama comumente de delírio, e é muito
precisamente isso o porquê de Freud, desde quase o
início de suas primeiras apreensões, ter podido escre­
Yer: eles amam seu delírio como a si mesmos"_;o
_ \ Yoz é, como os objetos ditos pré- genitais
e o falo, "estruturada pelo corte", e é isso que a tor­
na apta a "desempenhar esse papel de suporte no
nh-el em que o sujeito se encontra, ele mesmo, situ­
ado como tal no significante".

-+9. J. L:1c1n, L· &:í;r .. t J·a,: r'nfrrprd,uio,!, 2() dt m:1.lo de 1 959, inécliro.


50. Ji-1d.

_jQ
No que concerne à ,-oz, o que exerce a fun­
ção de corte é a escansão de sua emissão. _-\ escan­
são da fala cria a ,-oz como objeto a, como saída de
um orifício e como alguma coisa que se corta, tal
como outros objetos libidinais.
O que caracteriza a Yoz como objeto a não
é, portanto, a pulsação respiratória, nem a pura so­
noridade, mas o fato de que há aí emissão a partir
de um orifício (a boca) e de que ela seja escandida.
Lacan não encontra melhor exemplo que as ,-ozes
rio delírio e nos com-ida a "uma releitura atenta"
de seu artigo "De uma questão - preliminar
. ...": "a sa-
ber, o que articulei disso que nos permite, de um
modo tão potente, tão elaborado, articular o delírio
de _Schreber; é isso que vai nos permitir apreender
a função da voz no delírio como tal. Creio que é �a
medida em que deYemos procurar ,-er em que a ,·oz
no delírio responde tão especialmente às exigências
formais desse a, na medida em que ele deve ser ele­
ndo à função significante do corte, do inte!Yalo
como tal, que compreendemos as caracteósticas fe­
nomenológicas dessa ,·oz"_ ;,

51
Uma vez mais Lacan faz também o paralelo
com "a voz grossa" do supereu, não sem diferenciá
-la da Yoz do delírio.
O que justifica pôr as rnzes do delírio no lugar
da voz como objeto a diz respeito á forma como algu­
ma coisa sempre se esquin, de modo singular, quando
se trata de o delirante comunicar algo sobre a natureza
dessas vozes. Isso se reduz tal,-ez ao fato único de que
"isso" se impõe a ele. Sua dificuldade em falar disso,
fonte de tantas interrogações para os psiquiatras, faz
dela mesma parte das rnzes como objeto a.
_-\s ,-ozes de Schreber, em particular aquelas
das frases interrompidas, manifestam plenamente o
caráter de corte da voz. "O sujeito está i11teressado
nisso, com efeito, mas, para falar propriamente, n�.
medida em que ele mesmo desaparece, sucumbe,
devora-se inteiro nessa significação que só o visa
de um modo global." O sujeito está inter-essado no
sentido literal, porque ele se encontra no inte,�va!o.
"-\ elevação das vozes à dignidade de rnz é
feita a partir da fórmula do fantasma, e para, preci­
samente, dar conta dela. O delírio é então incluído
na fórmula do fantasma e em sua problemática. _-\
fórmula aplica-se também à psicose. Isso não signi­
fiG·a que não haja diferença entre neurose e psicose,
52
como Lacan semp·re manteYe, mesmo quando se
comparava ao psicótico por seu rigor. ;\Ias o fantas­
ma não é a ,�a para diferenciar a neurose da psicose.
O fantasma torna equiYalentes as ,-ozes do delírio e
a yoz do neurótico. Elas têm as mesmas caracterís­
ticas formais do objeto separá,·el suplente da falha
do sujeito em se nomear.
Se nos demoramos na semiologia das Yo­
zes é justamente pàra mostrar como seus limites
puderam ser recuados até às�propriedades formais
anideicas, neutras, não sensoriais, parasitárias, frag­
mentárias, escandidas.
\ -eremos no último capítulo o que concerne
à natureza temporal da YOZ.

. ·-!LGUL .,/S co;,:sE,Ql'Ê.\'Q .,/S DO A<ISSO


D..J l -oz .-i R·.,:c,fo DE OBJETO a

_\ exemplaridade das Yozes alucinadas para


constituir a ,·oz como objeto a suscita muitas ques­
tões. _\ primeira que Yem ao espírito, e que correu
entre as linhas desde o irúcio, é aquela que Lacan
formula explicitamente em 1 9:' 6, em seguida a uma
apresentação de doente padecendo de falas impos-

53
tas: "Como é que todos nós não sentimos que as
falas das quais dependemos são, de algwn modo,
impostas? É justamente por isso que o que chama­
mos de doente .-ai algumas ,·ezes mais longe do que
o que designamos como um homem saudáYel. _ \
questão é antes saber por que um homem dito nor­
mal não percebe que a fala é um parasita, que a fala
é uma excrescência, que a fala é a forma de câncer
pela qual o ser humano é afligido?" 52
Seguramente. n_as "franjas" da psicose, cer­
tos traços confinam. _\ aderência imaginária, a voz
que se sonoriza, a pre,·alência do olhar, o congela­
mento do desejo na paranoia; o fato de que, se o
neurótico crê em seus sintomas, o psicótico os cria/3
ao ponto de, Yez por outra, passar ao ato.
\;o entanto, isso não diz por que a franja se
torna fronteira à loucura. Uma retomada do imenso
trabalho de Lacan sobre a causalidade da loucura
excede, seguramente, o quadro de nosso propósito.
Do mesmo modo, limitamo-nos aqui a adiantar al­
gumas hipóteses que le.-am em conta uma e.-olução
�essa causalidade depois do seminário das psicoses.

52. J- Loc:in, L· si11lhú111c, üp. ât., p. 95 [p. 921-


53. J Locsn, R.51, 21 de joneiro Je 1 975 e S de abril c.le 19-5, inéiliro,

5 -i
.\ identificação das vozes e da voz inscreYe
-as, de pleno direito, nc: circuito da pulsão.
_ \ garrafa de Klein, nós o veremos no último
capítulo, permitindo inscrever o circuito particular
da pulsão in\-ocante, vale tanto no quadro do delírio
(as vozes) quanto fora dele.
�o caso em que as \-ozes se fazem om-ir,
a sonorização da \'OZ dá uma aderência imaginária,
uma consistência, uma continuid�de ao circuito. 5ª
Do mesmo modo que no sonho, diz Freud,
uma imagem hiperintensa é o signo de uma conden­
sação de conteúdo, o sonoro da ,·oz seria o signo
de um equinlente de condensação de significantes.
.\proximaremos isso do que Paul Guiraud
chamou de formas ,·erbais de interpretação deliran­
te55 . Tomemos o exemplo da obsernção III do Se-

5--1-. . \ articulaçào dess.1 coloca�:lo em continuidade com a desconri­


nui.d,1.de (esc::i.nslo) <le \·ozes nec�ssitari:1 de um .esclarecimento
suplementa,:. Ele poderia nr da distinclo posta por FreuJ entre
o is�o (EJ) e o inconsciente. e de sua retom:1d:1 por L:1can G-i:1.1"­
riculnrmcnte em _,q i��i.�1 do_f.ÚttJsm,I, 1 1 e 18 dt 1:1m.:iro de 1 96-;-)
com a distinção correspondente entre u 1.1.10-eu [,,0,1:f,·l correl:ui­
Y O de um "eu não penso u dJ. es:trurur:1 gram:iric;iJ d:i.s pu..lsõcs e
do fantasma do lado do-isso e o ,1.10-:H do inconsciente, correh­
tiYo de um "eu não sou'' no sonho ou no chiste.
55. P. Guirnud, op. ,d.
nhor ;\l. F., ,pronYelmente de origem alsaciana, Ele
tem tendência a decompor os nomes próprios, mas
não somente, e a encontrar para eles uma significa­
, ção em seu delírio, L' m dia '\·endo um enfermeiro
com um colarinho de celuloide [ce!ht!oid], conclui que
o jogo de damas do qual se sen-e tinha sido em-iado
da _\lemanha por Loulou, a filha de seu patrão, Com
efeito, pronunciando-o sempre com um sotaque al­
saciano, celuloide representa: É Lulu Llqyd [c'est Lou­
lou Ll�J'IÍJ (Lloyd era a companhia de navegação que
haYia transportado o pacote)", 36 .\ tendência inter­
pretatin dos equívocos é estritamente instalada no
delírio, e ele se alimenta deles. _\ segmentação que
diferencia ce/!llloide de ást Lo11lot1 LIOJ d, quase ho­
mófonos, não operou, ou antes, foi substituída por
uma relação de lógica de causalida?e (a interpreta­
ção delirante) que faz continuidade: celuloide porque
é Lulu Lloyd, e é Lulu Lloyd, potta,zto, celuloide.
O enunciado de uma relação de causalidade
substitui o indizh-el objeto a. ".\ rnz ,0em no lugar
do que, do sujeito, é indizfrel, seu mais de gozar" , 57
.\li onde o escrito (o da segmentação co­
• mum que faz a escrita) faria corte na homo-fonia,

56. /úid., p, -106.


s-. J.·,\ \liller, "Jacyues l ,acan et la rn,x•·. em L, mi.,,�op. ât,, p. lRJ,

56
o homo da fonia Yenceu, fixando-se na continui­
dade de wn "porque". � essa_ óptica, a sonorização
da Yoz constituiria wna suplência, uma reparação lá
onde a causa do desejo é indizível e lá onde o escrito
não exerceu sua função separadora, discriminante
do homo (identidade ou quase) da fonia.
O escrito permite distinguir o equfroco do
significante em lalingua, o escrito da grafia (11011 .
[não] e 110m [nome]) ou o da segmentação (d'e11x [de­
les] e· deux [dois]). _-\ rnz é em lalingua uma função
e um signo do escrito, do escrito da letra a, de sua
álgebra. 58
Existem procedimentos de representação
gráfica para fixar no escrito o que diz respeito à \-oz,
por exemplo, os s_inais de pontuação marcando dife­
rentes tipos de pausa. "O aspecto \-Ísual está impli­
citamente contido na expres·sào \-ocal'9", na medida
em que a natureza não intrinsecamente sonora da \-oz
se aproxima do silêncio na fala e, com isso, do Yisual.
Homem ad,- ertido, Schrnber sen-e-se da ho­
mofonia para entrar em diálogo e "desconcertar" as

58. "A rnz se determina a p ru-ur da letra", ela procede do trança­


mento de RST. diz René l .ew em L1 mi", op• .:ir., pp. 1 55, 1 60.
59. L Fónagy, "La ,i,·e ,·oix", em L, roix. op. . it., p. 1 1 3.
,·ozes dos pássaros miraculosos que o assaltam com
suas frases decoradas cujo sentido eles nào compre­
endem: "Como foi dito, os pássaros nào entendem
o sentido das palavras que falam; mas, ao que pare­
ce, eles têm uma sensibilidade natural à homofonia.
Por isso, se enquanto estào ocupados em tagarelar
as frases decoradas percebem palavras que têm um
som igual ou próximo daquele que no momento estào
falando (tagarelando), seja nas vibrações provenientes
dos meus próprios nervos (meus pensamentos), seja
pelo que é dito no meu ambiente, isso os deixa em
um estado de surpresa em consequência do qual, eles,
por assim dizer, sucumbem à homofonia, isto é, por
causa da surpresa, eles esquecem o resto das frases
que ainda tinham para tagarelar e passam subitamen­
te para uma sensação autêntica". 60
�ão é necessário que a homofonia seja com­
pleta; basta que os pássaros distingam uma analogia
nos sons, aproximadamente: Santiago ou Cartago,
Chinesenthum ou Jesus-Cristo... Schreber se regozi-

60 . D. P. Schreber, J f,!moi".r d 1/111 11àrop,th,, trad. P. Duqucnne e N.


Seis, Paris, Le Seuil, 1975, p. 1 ·s. [.lfominas d, ""' domlt' dos ner­
rns, trod. e inrrod. de j\f:uilene Carone, Rio de Janeiro: Graal,
1 98+, p. 1 ++, tradução ligeiramente modifirnda].

58
ja com a possibilidade que lhe é assim oferecida de
"desconcertar" os pássaros que lhe falam "lançando
neles arbitrariamente palavras que se assemelham
por sua consonância" e isso se torna uma "forma
de passatempo".
Ele luta contra as alucinações com as armas
delas (a homofonia) e cria assim um terreno de jogo
comum. Todavia, seu principal recurso de escrita é a
publicação de seus "grandiosos feitos memoráveis"
(Denkwürdigkeiten) suas ditas ll'Íe!nórias, que se con­
fundem com a eYolução do delírio na direção de
uma tentativa de cura, ou seja, seu valor de solução
de um fazer- saber ou fazer ouvir. 61
Em conclusão, não se poderia dizer que a
elevação das vozes à dignidade de objeto a tenha
permitido ir mais longe que em "De uma questão ..."
:\Ias talvez tenha permitido retomar a questão, saber
se demandar por que não se é louco e, a partir disso,
reconsiderat a neurose do ponto de vista da psicose
e não o inverso, como de costume.

º
61. E. Porge, "Schrcber t!cri.-ain", Es.,-�úm, n 1 6. Touloust:, tT�S,
PrimaYera de 2006.

59
Além disso, as vozes são integradas ao cir­
cuito pulsional do fazer-se ouvir e põem-no em des­
taque.
O jàzn--se ouvir, de todo modo, não escapa
ao mal -entendido, sobretudo quando ele se aloja
em um muito bem entendido. �ão há pior surdo
do que aquele que não quer om"Ír, diz o prm,-érbio.
.\quele·que não pode ouvir (as \:ozes) não é menos
surdo, mas sua surdez interpela e ela nos abre a ,"Ía
de uma abordagem lógica possh·el do "fazer-se ou­
,"Ír", seja uma abordagem di lógica do possível que
responde ao voto de Lacan de tornar possível a ex­
ploração do objeto a.
Tomando-se o lugar de um endereçamento
de um "fazer- se om"Ír", o analista ainda torna possí­
Yel que o louco se ouça dizer o que ele ouve, de outro
lugar; em ligação, sem dúvida, com outro objeto a.62
Para que a exploração de um objeto a seja
possh-el, é preciso que ele cesse de s� �screver, a fim
_ de que isso não cesse de recomeçar (a repetição) .
É uma escansão que institui um segundo tempo.
Considerar as vozes objeto a faz cruzar-se a ordem

62. J. I .acan, L· , 11011-d11p" ,m111, 9 de abril de 1 97 4, inédito.

60
das pulsões e a lógica das modalidades tais como
Lacan as reescreve: o possível como um "cessar de
se escrever", o necessário como um "não cessar de
se escre\-er", o contingente como·um "cessar de não
se escrever" e o impossível como um "não cessar de
não se escrever". 63
.-\ "questão prelirri..inar possh·el da psicose"
encontra- se deslocada para a questão do tratamento
do possível na e com a psicose.
_-\ elevação da rnz à dignidade de objeto a
modifica seu estatuto e sua abordagem. Ele se torna
uma forma, deformável, contigua a uma letra. Sem ·
êntrar no detalhe da evolução da concepção da letra
em Lacan, observe-se que é essencialmente sua fun­
ção de borda do real que termina por caracterizá-la.
Uma borda que os trancamentos do nó borromea­
no tentam cernir. Estando enganchado à letra a, o
objeto voz ass�e o estatuto de um espaço-tempo
topológico, o da garrafa de Klein, cuja particulari­
dade estudaremos no último capitulo, e que é um
modo de sutura do sujeito a si mesmo em sua rela­
ção ao Ou�ro.

63. J. Lacan, E,Mr,·. op. .it., p. 132 [p. !TJ e L·r non-dllf'd m ,· 111. op. ,it.
61
_-\ designação do.objeto \-oz como a faz tam­
bém que entre na lista bem fechada - uma yez que
são apenas quatro - dos objetos a. Essa conexão
faz parte da estrutura de cada um desses objetos
desde que se respeitem suas diferenças. Dito de ou­
tro modo, elés não são equi\-alentes, mas não são
independentes uns dos outros. É sobre isso que nos
deteremos no capítulo a seguir.

62
.\ CONEX.\O DE OBJETOS a

:\ designação de formas Óu versões do obje­


to a (oral, anal, ,·oca!, escópico) não se situa em uma
perspecti,-a desem·ok1m.en tista diacrônica, mas na
sincronia de uma estrutura. É por isso que .é preciso
insistir no que Lacan chamou de crme.Yào de objetos
a, noção frequentemente esquecida quando se fala
deles. Isso tem a Yer com a constância do ímpeto da
pulsão: "Uma permanência que consiste apenas na
instância quádrupla em que cada pulsão se sustenta,
por coexistir com outras três".º•

6+. J. Locan, Jdàisio11, Pws, Le Seuil, 19:3, p. +2. [TelcYislu, em


Outros E s,,ilo:S, rud. de Vera Ribeiro, Rio de Janeiro, Jorge
Zahar, 2003, p. 528] .

63
_\ linguagem, a clínica, a literatura ... forne­
cem múltiplos exemplos dessas conexões. Que se
reflita sobre as expressões "comer com os olhos",
"beber as palanas de alguém"; que se recorde do.
sonho do homem dos ratos em que as fezes \·êm no
lugar dos olhos da filha de Freud; que se leia Histón·a
do olho de Georges Bataille. Segundo os autores, as
relações podem ,·ariar: onde Claudel fala do olho
que escuta, Henri Meschonnic afirma que é uma
orelha que \-ê.
_-\ ,·onexão dos objetos a significa que a passa­
gem de um a outro dos quatro objetos não obedece
a um processo de maturação, mas corresponde a
uma estrutura definida pelas inten-enções da de­
manda e do desejo nas relações do sujeito ao Outro.
É em seu semi.Il.ário  angústia que Lacan
começa a formalizar a estrutura combinatória dos
objetos a, distinguindo cinco etapas na constituição
de a na relação do sujeito ao Outro65. Nô nível da
relação ao objeto oral, trata-se de necessidade no
Outro, no nfrel do Outro. _-\ mama faz parte do

65. J. l.ocan, / ,:wioi,s, (12 de junho de 1963), Paris, Le Seuil, 2004,


PP· 3.,--3., 8 [pp. 31 --318].
mundo interior do sujeito e nào do corpo da mãe
(o que \'v'innicott chama de espaço transicional) . �a
segunda etapa, a do objeto anal, tem-se a demanda
do Outro. O objeto anal é o resto na demanda do
Outro. Na terceira etapa há o falo (- :.p), definido
pela falta de um objeto que se manifeste como tal.
Essa falta do falo constitui a disjunçào do desejo e
do gozo. Lacan fala, nesse nh-el, de um gozo no Ou­
tro. ::--Ja etapa escópica, que é a do fantasma, lidamos
com a potência no Outro: o sujeito está condenado
a desconhecer que se trata apenas de uma miragem
de potência. Enfim, na quinta etapa, o que emerge é
o desejo no Outro (ou desejo do Outro).
Na sessào seguinte do seminário, Lacan si­
tua a funçào do objeto a em um grafo e fala de uma
"constituiçào circular do objeto66":

66. lbid , p. 341 IP- 320].


65
_-\o trajeto ascendente, progressivo entre
oral e anal, sucede um trajeto descendente, regres­
si\-o (por seu retorno à mesma borda_ como na pul­
são) entre escópica e vocal, tendo entre as duas uma
espécie de excrescência fálica. _-\s duas fases do tra­
jeto ascendente entram em correspondência com as
duas fases do trajeto descendente.
O falo, nessa época (1 963), está ainda posto
em série com os objetos a, ainda que em posição
deslocada. Ele indica a falta em nível sexual, a falta
de mediação genital entre o homem e a mulher. Ele
-
é o que se faz obstáculo à relação sexual.
Se Lacan fala de "estádios", é um modo de
dizer que a estrutura tem uma dinâmica.
Enfim, vemos que Lacan continua a iden­
tificar a \-oz e o supereu. Já expusemos a razão no
capítulo precedente.
É em 1 966, no seminário O objeto da psicanáli­
se, que Lacan fala de "conexões" entre os objetos a:
"nenhum elemento pode ter a função de objeto a se
não é associá\-el a outros objetos no que se chama
uma estrutura de grupo". 67 _-\ estrutura de grupo de

6- . J. Lacan, L'objd de /41 pJJrba11<1lrsr (1 965- 1 966), sessão de 1 ° de

66
quatro objetos a determina-se em função das rela­
ções da demanda do sujeito ao desejo do Outro. Na
versão da demanda, o seio é demanda ao Outro; as
fezes, demanda do Outro. Na versão do desejo, o
olhar é desejo ao Outro; a voz, desejo do Outro.68
É essa, aliás, a razão pela qual a pulsão invocante
ocupa um lugar privilegiado. Ela "é a mais próxima
da experiência do inconsciente", diz Lacan. 69 Em
nenhum ponto o sujeito está mais interessado no
Outro que pela voz, ele diz também.70
Em uma estrutura de grupo há um elemento
neutro. Qual seria? Não seria precisamente o sem­
blante de objeto a que o analista encarna? Como?
Eu responderia: com seu silêncio e com a pressa.

junho de 1 966. inédito. Yer a esse respeito: E - Porge, "Le grou­


pe des objets ,1, l'objet h(a) té, le silence. em Di11101sionr _tra,di01-
11a, colóquio de 10-11 de outubro de 1 992, Paris.
68. J. Lacan, L'ob)d de la psyha11a{1 re, inédico, sessão de T de abril e
de 1 ° de junho de 1 966.
69. J. Laca.o, L·s quatn:s aJ111,1ptJjondammtaux dt- lap!J,:hanaf.:r,•. P:u:is, 1�
Seuil, 19�3, p. 9(,. [O.e q11<1tro ,v,i.rdo rJ,'mdu11a1lú1S daps,àwdiisc, rrad.
de i\l, D. l\fagno, Rio de Janeiro,Jorge Zahar, 1 998, p. 102[.
�O. J. Lacan D 1111 Autn· J l:111/re, Paris, Le SeuiL 2006, p. 25� - [ D,·
'"'' 011/ro ao outro, trnd. do Vera Ribeiro, Rio de Janeiro, Jorge
Zahar, 2008, p. 249].

67
Em 1 964, ao término de seu estabelecimen­
to das características das pulsões e no fim do se­
miná110 Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise,
Lacan lennta uma questão: "depois da distinção do
sujeito em relação ao a, a experiência do fantasma
fundamental toma-se a pulsão. O que se torna en­
tão aquele que passou pela experiência dessa relação
opaca na origem, a pulsão? Como um sujeito que
atravessou o fantasma radical pode viver a pulsão?
Isso é o além da análise e jamais foi abordado. .-\té o
presente, isso só foi abordável no nível do analista,
na medida em que seria exigido dele ter precisamen­
te atravessado em sua totalidade o ciclo da expe­
riência analítica" ." Trata-se de um além da análise
que concerne ao analista e ele se avalia em termos
de pulsão. Pensamos poder dar um passo a mais e
levantar a hipótese de que aí se trata de Yiver a pul­
são in,·ocante, em particular sua ligação ao silêncio.
Em 1 966, em � objeto da psicanálise, no qual
Lacan procede a um longo e luminoso comentário
sobre As meninas de \ ·elásquez ele volta a levantar
uma questão que ,- amos aproximar da questão pre-

-1. )- 1 .acan, L·s q11,1/m ,v11,,pts... op. ,it., pp. 2+5-2+6 [p. 258].

68
cedente, na medida em que ela concerne à forma
como o analista se insere com o analisante na dialé­
tica dos objetos a. em seu comentário, Lacan se de­
tém no cruzamento . de duas linhas de força que se
podem traçar a partir dos element�s figurados: uma
partindo da base do quadro ,-irado, "representante
da representação" e dirigindo-se ao ponto de fuga
principal (no nh-el da porta do fundo) e outra par­
tindo do olho de \'elásquez e dirigindo-se ao espa­
ço a sua esquerda. Ele observa que as duas linhas
se cruzam no nível da infanta, personagem central
do quadro, brilhante, garotinha que encarna a "girl
como falo", e, propõe então a questão seguinte: "Ele
não é feito para que nós, analistas, nos perguntemos
como, para nós, se transfere essa dialética do objeto
a, se é a esse objeto que é dado o termo e o en­
contro em que o sujeito deve se reconhecer? Quem
deve fornecê-lo? Ele ou nós"?"72

. _-\ consideração de uma conexão dos objetos


a é já uma questão de dizer que o analista pode "for­
necer" os objetos a porque ele está necessariamente
incluído em sua conexão. Ele fornece em ato sua

,2. J. Lacan, L'o/,jd d< la p1yha11,1{rs,, 25 de maio de 1966, inédito.


69
conexão. Referindo-se à peça de _ -\pollinaire, Lt·J ma -
111d!es de Tirésias, Lacan já dizia, em 1 96-1, que era ne­
cessário que o analista ti,·esse tetas. l'-ião para dá-las
diretamente a mamar ou substituí-las pelas maçãs
de :\I. .\. Sechehaye,73 mas para que seja reconhe­
cida a prova de sua falta, u:iscrita em sua estrutura
combinatória.
Como, então, fornecê-la(s)? F, aí que inter­
Yém o silêncio. ?-.: ão um" silêncio qualquer, mas um
silêncio que se liga à pulsão; a pulsão que constitui
o que Lacan design a um além da análise no analista.
O discurso pode ser portador de um úlor
pulsional pela escolha dos termos, suas sonoridades,
o ritmo das frases ... mas também por sei.Is silêncios.
Foi isso que mostrou brilhantemente Robert Fliess
em seu artigo já citado. Ele pôs em evidência, com
exemplos clínicos, a existência de tonalidades de si­
lêncio com um ,·alor oral, anal, uretra! e fálico, e
podendo se combinar. '4 Segundo o autor, o ,·alor

73. ?\1. .\. Secheluye, lntmdu,·tú11: .1 ;.-,:�· ftd.iothà;lfl�· da s.-l i�np/irh•t'J,


1

Paps , PUF·� 1 95-t. [Con:fir� J [Nmir/.1.i d: if)//a (Sq-'!/;;,,o_;liNi,·.1. tr:i.d.


t prefacio de C:irlos L:i.cerd:.i. Rio de J :ineiro, ?'(uy:1 Fronteira.
s/d. j .
7-+. R. Fliess, "�ilence ;wd ._-erb.7.liz:uion: :-i supplemenr to rhe

:O
erótico - no sentido da pulsão . parcial - do silêncio é
um efeito da regra analítica que desloca a erogenei­
dade reativada para a fala. Esses silêncios são, ,P_or
sua Yez, um obstáculo à ,-erbalização, uma resistên­
cia, e um modo de acesso às zonas erógenas infantis
às quais se ligam as ideias recalcadas.
Ora, isso é um fato, o silêncio ocupa uma
eminente posição na prática do analista. \Ias além
da natureza díspar das funções exercidas pelo si­
lêncio, Lacan lhe atribui a função de ocupar uma
posição de semblante de objeto a que o analista en­
carna para o analisante. "O silêncio corresponde ao
semblante de dejeto" no discurso analítico, ele diz_ - ;
O analista faz dom de seu silêncio ao analisando.
l\iesse ponto ele é comparável a Santa Cecília, "mu­
sicista do silêncio" (Sainte, \Iallarmé).
Quer dizer que o silêncio é um norn objeto
a? Eu diria antes que ele é esse elemento neutro apto

theory of the 'an:i.1 �1:lc rule:;•. 1 h,: frt.-1 ,:.1/im:.z!Jo::m:il of P[',··


:ho,11u!ysis, ,·oi. XXX, 1 9+9. r:itadu por Lacan em Í.i1i/r, Paris,
Le Seuil, 1966, p. 301 [p. .,02.] e em i'robi'm:.r :m."i.1:1.,-po:1r h
P{vlr.uMjJ rt:, 17 de:: m:-u-�o Je 1965, inédito.
"'7,5. J. L1c:1n, "Confêrences et entreriens d:1.n� des un..i\-eí$irie:.- nor­
d-américaines" 1 1 9�5), S.i/i:d, Gr, Paris. Le Seuil, 1 9�6. p. 61.

;-r
a fazer �cionar a combinatória dos objetos a, a
dinamizá-la, para reencontrá-la no final da análise.
Smtro no sentido lógico, mas também no sentido
de Roland Barthes de um terceiro termo que des­
trama a oposição binária.'6 O silêncio é, aliás, uma
figura do neutro, assim como o camaieu (grisalho),
o chamalote (moiré), o incolor, o não-predicfrel...
"O Neutro é esse �ão irredutfrel, um :--:ão como
suspensão frente aos endur_ecimentos da fé e da cer­
teza, e incorruptfrel para uma e para outra'?'
O silêncio introduz a dimensão temporal.
O silêncio é uma pausa no discurso. Uma pausa da
qual se sente a dmação mais ou menos prolongada.
Essa pausa pode não passar de um ponto morto,
mas pode também ter um nlor de relance, de preci­
pitação. Ela pode constituir uma escansão.
Em música isso será chamado de síncope.
Os silêncios fazem par te da música, contam e são .
contados. Cada silêncio porta um nome e'possui

0 6. R. Barthes, L- ,r,·1ttr,. Cn11r, a,, Cn/lig,· d, Fw,c,• /1 9T'- 19º8).


rexro estabelecido por Thomas Clerc. Paris, Le Seuil-Ii\L\C,
2002. [O ,-:,l!lm. ,rad. de h-one Benedetti, São Paulo, i\brrins
fonrts, 2003].
(omunicaciio de Sophie .\owllé.

72
um símbolo gráfico que o representa na partitura
e está localizado no compasso, como as notas. Dis­
tinguem-se, assim, a pausa de semínima (nlendo a
duração de uma cheia ou semibreYe), a semibreve
(que equivale a quatro cheias ou a uma sernibreYe),
a pausa de mínima, a pausa de cokheia, o quarto de
semínima, etc. _-\ pausa de breYe (representada por
um quadrado negro) é raramente encontrada, e é a
notação de um silêncio equinlente a urna máxima
(nota com duração de oito cheias) .
Em O tempo lógico a escansão exerce seu papel
de relance, uma ,-ez que são duas escansões (que
Lacan qualifica só depois, em 1 966, de significantes)
que precipitam a certeza de uma conclusão anteci­
pada e de uma saída pela pressa.
Nesse sentido, o tempo lógico representa um
belo exemplo de combinatória de objetos a. Com
efeito, em 1 9"'3, em seu seminário .Uais, ainda... , La­
can procede a uma cifragem do tempo lógico por
meio do cálculo da di,-isão harmônica, no qual ele
faz equinler o número de ouro _(resultante do cál­
culo) ao objeto a e, mais precisamente, ao olhar. 78

!8, J. Lacan. E,:�YJrc, op. �'li. Confira nossos escl:irecimentos concer­


nentes à releituro do rempo lógico cm b,con· em F. Porge, J1-
Cada wn dos três pns1one1ros, Lacan diz, "só in­
ten-ém nesse terno a título justamente desse objeto
a minúsculo que é aos olhos dos outros". _-\ssim,
Lacan consegue ligar uma contagem do incomen­
surá.-el do desejo à contagem dos três prisioneiros
com nÚlneros inteiros: "Em outros termos, eles são
três, mas na realidade são dois mais d', segundo a
realidade que se pauta pelo objeto causa do desejo.
E acrescenta: "E é bem nisso que esse dois mais a,
no ponto de a, se reduz não a dois outros, mas a
um Um mais a minúsculo". Essa cifragem explica a
saída apressada: "É na medida em que os dois ou0
tros são tomados pelo a minúsculo como l.:m mais
a minúsculo que funciona esse algo que pode leYar a
uma saída apressada". O_ incomensurável da relação
do a, identificado ao número de ouro, ao Um da
identificação ao círculo branco ao qual tende cada
um dos prisioneiros, preàpita a antecipação dessa
identificacão de que é testemunha a saída apressada,
a ponto de o objeto a se confundir com essa pressa:
"EscreYi algo que se chama "O tempo lógico e a

�·q;!�·r LF..l!l. :rm pú�·.v:,zli.rt.L A·1�-11J"So dr HIil r.:l!JilfO, trad. de C.T G.


de Lemos, 1\i. Leite, \". \'eros. Brasília, Editora do CnB, 2006,
p- 2 1 1 I.:' scgs.
asserção da certeza antecipada" em que se pode de
algum modo muito bem ler aí, se se escreYe, e não
somente se se tem ouY-i.dos, que a função da pressa
é a função desse pequeno a, pequeno (a)p1·essado."
No momento de concluir, o que funciona
como a não é mais o olhar, mas um objeto puramen­
te temporal, a pressa, a saber, a iminência do témpo
de a,·anço possível do outro. Esse tempo, que não
se mede em duração, é um objeto de concorrência
com o outro. Se não nos precipitamos em concluir,
não sabemos mais o que concluir. _-\. cerreza da con­
clusão ligada a esse tempo é antecipada. Esse tempo
se dissoh·e no ato de concluir. �esse momento há
uma queda do objeto a olhar no precipício entre o
que é presumi,·ehnente ,-i.sto pelo outro e o que afir­
mo me desprendendo dessa suposição.
O objeto (a)pressado é um norn objeto que
sena necessário acrescentar à lista dos objetos a,
Como o silêncio, trata-se antes desse elemento neu­
tro que torna possh·el a dialética dos objetos a, sem
se reduzir a um entre eles. Ele assinala a determina­
ção temporal do objeto a.
Sua aproximação com o silêncio é ainda
mais fundada pelo fato de que há alguma coisa de
comwn entre eles. _\ pressa é uma terceira dimensão
temporal completa, juntando à diacronia e à sincro­
nia. _\ssim como o silêncio manifesta no discurso
wna descontinuidade que ele torna audível, a pressa
do momento de concluir manifesta uma desconti­
nuidade temporal indispens,h-el à efetuação de ou­
tros tempos (instante de \-er, tempo de compreen­
der) . .\ escansão é um tempo de parada silencioso.
_ \ssim como - nós o ,·eremos - a YOZ como
objeto a é correlata do silêncio, a pressa põe em
jogo a pulsão inYocante.
É o trajeto dessa pulsão que yamos seguir
agora.
D_\ EXISTf'.NCI.\ DE U'.\I EST:\.DIO DO ECO

. -l/g,111ih1s i";'-.,..,- 1.1i-zi s11,rs 1,:1lcx1k.·s s,,br::


:, omo lirr,.u· n:2pid.1111.·1J/(' so, v·/n·bm
,�wJ1dt,-io 011 11Mis pn.·r.ifc11H1:11/r: ,.:o!ú!i('O
d�· ,:r:r!1u pa!a,·n.u ill'Jl
, .:.r,;r, .•
Louis \Volfson

Em francês, . a p;ilaYra "pulsion" 79 traduz


T1ieb, que vem de treiben, impulsionar [vo11sse1i ; a ên-

-9, '\i,daT.: No Brasil, os norns tradutores de Freud se diúdem


entre manter a tradução da coleção Stand:u-d, y ue traduz Tri<"b
por "instinto" ou Jdot:u a tr.i.duç;i,.o a parri.r do francê.s p1t!sio1!,
"pulsão". Para um:t discussão sobre :ts no,·:t.S tr;1du ç ões_confir:1
.:\s "deriYas'' de um conct:Ím em suas traduçcJe$: o caso do
' fni:I• fr_eudiano. Trabalhos em Linguisrica .\plicada, rnl. 50, n.''
fase é posta antes no impulso que na fixidez de um
objetivo [but], como é o caso de instinto. ªº Desde
seus Três ensaios sobre a teoria sexual, em 1 905, Freud
introduz o termo na psicanálise, e em 1 924 ainda
admite que a exploração dessa noção não está aca­
badaª ' . Ela deve ser levada mais longe.
Em As pulsões e seu destino, Freud define a
pulsão como "um conceito limite entre o psíquico
e o somático, como o representante psíquico das
excitaç? es, saídas do interior do corpo e chegando
ao psíquico". É uma força constante da qual é im­
possfrel livrar-se por meio de ações de fuga.
Na sequência do enunciado de que o incons­
ciente é estruturado como uma linguagem,. Lacan
assim reformula a definição freudiana da pulsão: as
pulsões "são, no corpo, o eco de que há um dizer" .82

2, Campinas, jul/dez, 2011 . Disponh-el em: http://ww"':scie­


lo.br/pdf/tla/,·50n2/09.pdf.
80. Sobre o modelo da tradução inglesa Dri,·,, Lacan também pro­
pôs a tradução de Tnib por "déri,·e" [deri,·aj.
81. S. Freud, Trois essais sur la théorie du sexuel, trad. La Transa,
Paris, 1 986, tl. Les égarements sexuels, Pulsions panieUes et
zones érogenes, p. 1 1 1 . [Três ensaios sobre a teoria da sexua­
lidade. Edição Standard Brasilára, Rio de Janeiro: 1 mago, 19º 4,
s-o!. Yllj.
82. Jacyues Lacan, L: .ri11rhon1', Paris, Seuil, 2005, p. 1 C [p. 1 8).

78
.-\ pulsão é, portanto, uma noção que afronta
a problemática do limite, da borda entre o corpo a
linguagem e lalíngua [/alangue].83 Essa definição per­
mite conjeturar que uma pulsão que tem por ob­
jeto a voz será a mais próxima do funcionamento
do conjunto de pulsões sexuais (Lacan não emprega
o termo "eco"?). I\Iuitos pesquisadores, externos à
psicanálise, têm, aliás, sublinhado isso.
De um ponto de vista estritamente anatô­
mico, a produção de sons e a modulação da ,·oz fa­
zem intervir diversos órgãos: os pulmões, as cordas
vocais e a glote, a cavidade rinofaóngea, as cavida­
des nasais, a língua, os lábios. Ivan Fónagy elencou
as correspondências anatômicas das modalidades
da vocalização .que exprime a gama de emoções. 84
.-\lém disso, no que ele mesmo chama de "as bases
pulsionais da fenação", estabelece que os diferentes
sons �ssociam-se a qualidades como a doçura, a ale-

=
83. N<:olOl}Slllo introduzido por Lacan pan de.<tigmr a 10regcl
de cquimcos de que é cocnpom a língwi dia par:a
um sujeito, g ue di:renninn o funciorumenco do ÍnC0111SC1cnre,
tanto em seus tropeços quanto em seu mergulho no gozo do
corpo.
84. Irnn Fónagy, Lz ,fr, wix. Essais de psycho-phonérique, Prefá­
cio de Roman Jakobson, Paris, Payot, 1983.

79
gria... ou a seus contrários, e também que existem
correspondências entre certos sons e os estádios
oral, anal, fálico e uretra!, e nesse ponto apoia-se
nas observações de Ferenczi. No período de bal­
bucio, são as consoantes brandas m, I molhadas da
erogeneidade oral que predominam. O balbucio
está centrado na reprodução motora da sucção. O
erotismo anal se manifesta pelas consoantes ditas
oclusivas, k, g, t, e pela constrição da glote. Os sons
oclusivos equivalem à contração do esfíncter anal.
Para o estádio uretral tem-se uma predominância do
s, e para o estádio fálico, o r apicai.

No entanto, Fónagy toma o cuidado de no­


tar que não há correspondências unívocas entre uma
pulsão e um som, porque há sempre intrincação,
complexidade de sons e plasticidade semântica; por
outro lado, existem outras variáveis consideradas im­
portantes, tais como o acento e a prosódia da fala.
Não é menos verdade que esses estudos ve­
rificam a ligação entre a erogen6dade do corpo. e
lalíngua - cada pulsão desenha dela o contorno.
;\Iais que retomar por sua conta a extensão
freudiana da teoria das pulsões (pulsão do eu, de
vida, de morte) , que examinará alhures, Lacan se
80
restringe ao domínio das pulsões sexuais, rev1s1-
tando um por um o s quatro termos definidos por
Freud: o impulso (Drang] , o but (Zie�, o objeto (Ob­
jek�, a fonte (Quelle) . 85

A HJ.,Te. o IJ[Pl ·uo. o OBJETO. () .--li; '() [2.C,S Vi.'LSÔI :S

Resumamos os principais resultados da in­


terpretação de Lacan. Para começar, já o disse, ele
limita o número de pulsões sexuais a quatro, pul­
são oral, anal, escópica e invocante, segundo o o�jeto
concernido: o seio, o cíbalo [excremento] , o olhar, a
,-oz. Esses quatro objetos são quatro formas do que
ele distingue pelo termo genérico objeto a, objeto
causa de desejo, não especular, não partilhável, resto
da operação de divisão do Outro pelo significante
que representa o sujeito.86
Outra característj.ca da pulsão, na qual Freud
insiste, interdita sua assimilação a uma função bio­
lógica: trata-se da constância de seu impulso [poussée].

85. Jacques Lacan, L:r q11at" ,·011,,pts, np.cit.


86. Jacq ues Lacan, L'a11goim. op. .-it., p, r [p. 36J.
81
mo e para o masoquismo 90: um tempo ativo e wn
tempo passivo de desarranjo (Umke/mmg), ao qual é
necessário acrescentar um terceiro tempo, o da re­
troversão de um nOYO sujeito, a saber: é novo q:e
aconteça um sujeito, wn sujeito que aparece "por
não aparecer".9 ' Lacan generaliza a existência desses
três tempos às quatro pulsões e faz que correspon­
dam a três formas gramaticais, ativa, passi,-a e refle­
xi,·a, o que le,·a, por exemplo, à pulsão oral: comer,
ser comido, fazer-se comer.
_-\ gramátíca vetoriza o trajeto da pulsão, no
limite do corpo e de lalíngua .
.-\ contagem de um terceiro tempo por La­
can, aquele de um "fazer-se ...", é um modo de re­
conhecer que o ir e ,n dos dois primeiros tempos
não segue o traçado de um círculo, redutível a um
ponto, mas leva em conta a existência de um furo
(o da fonte), porque agora o traçado não pode ser
redutível a um ponto, ele contorna um vazio a mais.
O ímpar - odd - faz sair a pulsão do transitivismo
do espelho.

90, S. Freud, .\ li"7J'JJd10/ogi,. op. ,it., pp. 25-29. [:\ história do mo­
Yimenro psicanalírico, artigo$ sobre:: merapsicologia e outros
trabalhos. Edi,.io Sta11d.1rd flrasilcir". op. à!. w,I. XI\', 19�6].
91. J . Lacon, /...:, q11a1ruo11,,pts. op. ,it., p . 163 [p. 1 69J.

84
_\ questão que se coloca é saber se esse es­
quema convém também à pulsão inYocante e se
suas particularidades, tendo em YÍsta outras pulsões,
não lhe conferem uma posição especial que designo
com a expressão "estádio do eco".
Obsernmos que é_ em 1 958 que Lacan in­
troduz a voz - e particularmente _a voz na psicose
- na lista dos objetos a, antes de nela contar o olhar;
a expressão "pulsão invocante" só aparece em 1 96-1-,
no dia 20 de maio, em Os quatro co1h-eitos e ainda não
sem certa hesitação: " ...e a que será preciso quase
chamar de pulsão inYocante", ele diz.92
_\ particularidade da pulsão inYocante que
Lacan destaca diz respeito ao terceiro tempo de seu
trajeto, o "fazer-se om-ir", mas ela é suficientemente
importante para acarretar outras consequências. Ela
consiste no fato de que o trajeto - ah-o da satisfação
não retorna para o sujeito, nem para os outros, mas
para o Outro. 93 Um pouco mais adiante ele especi­
fica que ela tem o privilégio de não poder se fechar
pelo fato de retornar às orelhas. 94

92. I/,id, p. 1 82 e p. 1-8 [p. 188 e p. 184].


93. lbid. p. 1-s [p. 1 83].
9+. Ibid., p. 181 [p. 184).

85
:\Ias se essa pulsão não pode se fechar, então
o esquema precedente da pulsão não é mais váli­
do e a montagem desmorona, e q,tid da satisfação?
Quanto a dizer que o trajeto retorna não para o
sujeito mas para o Outro, que sentido tem isso, já
que é, de todo modo, o próprio de cada pulsão cujo
terceiro tempo vê (por não ver) o surgimento do
sujeito no campo do Outro? :\'ão seria necessário
reverter o propósjto e dizer que, de fato, toda pul- ,
são é invocante? 95
Essas objeções me conduzem a reconside­
rar o fato - implícito, se bem que Lacan aí não se
demore - de que a pulsão invocante convoca não
um, mas dois orifícios: a boca para falar, chamar, e a
orelha para escutar, ouvir. Ela está imprensada entre
o oris (oralidade) e o aurú ("a auricularidade") .

95. É o que escre\'e .\ndré Green a partir de outra abordagem


em seu prefácio a _ 411 conin11::1hl'1J1t:11/ itail la 10,�,, organizado por
i\larie-France Castaréde e Gabrielle Konopczrnski, Toulouse,
érés, 2010, p. 1 6.

86
Essa particularidade participa do caráter ina­
preensível da voz, da impossibilidade de localizá-la
a não ser entre a boca e a orelha. Essa dualidade de
fontes inscreve de saída a pulsão imfocante em uma
problemática de divisão e de separação da relação
do sujeito ao Outro.
_ -\ voz situa-se entre o dentro e o fora, o que
a torna apta - quando é sonorizada - a fazer o papel
de objeto transicional, como observou \Virinicott. 96
Entretanto, não é necessário que ela fique estagnada
nessa aparência de jogo intermediário. Ela engen­
dra passagens entre um sujeito que fala e outro que
ouve, mas também, e sobretudo, entre um sujeito
e ele mesmo, p elo fato de que se o outro não ouve
minha voz como eu a ouço, também ele não a ouve
como eu a emito (especialmente porque o crânio
se torna caixa de ressonância, de eco) . É isso que
atesta o sentimento de estranheza que experimenta
quem escuta uma gravação eletrônica de sua voz, e
é com isso que lidam os cantores, como nota Lacan,

96. D.W \l<;'innicotr, Jm d n!alit.:. L'espace potenciei, Paris, Galli­


mard, 1975, pp. 8-9. [O bn11,ar ,. ,1 r,alid,,d,, trad. de J. O. ,\ .
.-\breu e V. Notire. Rio de Janeiro: Imago, 1 975, p. H].

87
que fala, nesse caso, de desconhecimento. 97 Os mú­
sicos compositores são também testemunhas desse
caráter fugaz da "voz interior", dos sons, quando
escrevem a música.
"Escutamos nossa voz pela garganta e a dos
outros pelas orelhas. O mais familiar tinge-se de es­
trangeiro, como se � duplo infinitamente próximo
aí se exprimisse. A voz não é mais completamente nossa
sem que seja completamente outrd'. 98
Como escreve também i\Iaurice Merleau-Pon­
tj� ''Não me ouço como ouço os outros, a existência
sonora de minha voz é, por assim dizer, mal desdobr a ­
da; é antes um eco de sua existência articular, vibra mais
através de minha cabeça do que lá fora"99• Podemos,
enfim, citar ?\fichei Lei.ris: "Ouvir-se, desse modo, não
é encontrar- se diante de seu duplo, encontro que é sinal
de morte, segundo uma crença relatada por Nerval em
seu semi.fictício 1/�yage en Orient?" 1 00

9,. J. Lacan, L 'a11goisse. op.át., p . 3 1 9 [p. 300] .


98. D. Le Breton, Edats d, taix. Une anthropologie des ,·oix, Paris,
Metailk, 201 1 , p. 57. Frase sublinhada por nós. O autor se
refere à personagem Kyo em La co11diti011 humain, de Malraux.
99. i\l. i\lerleau-Ponty, r_,, 1isib/e d lr,i1isib/e, Paris, Gallimard, 1964,
p. 1 94 e p. 190 [O 1ishd e o inrisíul, trad. de J. A. Gianotti e A.
i\l. d'Oli,·eira. São Paulo, Perspecrin, 1971, p. 143] .
100. Citado por D. Le Breton, op.cit., p. 58.

88
O estranhamento à escuta da própria voz
pode explicar o suposto (porque não orgânico) "de­
safinar" de alguns, quem sabe chegar até à angústia
e ao pavor, como testemunha a foto desta criança
surda que pela primeira.vez .ouve sua voz.

Nesse sentido, e em favor de um estádio do


eco, proponho a equação: minha voz = o eco de
minha voz. Ou: a voz é a a:fonia, a perda do sonoro.
Se em 1 964 Lacan não se demorou na du­
alidade das fontes da voz no caso da pulsão invo-
89
cante, isso não significa que ele não tenha previa­
mente preparado o terreno : por um lado, insistindo
no laço intrínseco entre o ouvir e o falar; por outro
lado, inscrevendo a na rede de conexões de dife­
rentes formas de objeto a, como apresentamos no
segundo capítulo.
Em seu seminário Aspsicoses, em 1955-1 956,
ele enuncia que "o ouvir e o falar são como o direito
e o avesso" 'º', o que, de maneira antecipada, for ­
nece o padrão de um tecido topológico moebiano
entre os dois orifícios bucal e auricular.
De modo muito natural, fui ajudado por La­
can na abertura dessa trilha, para modificar seu es­
quema geral das pulsões de uma forma que leve em
conta a dualidade das fontes no caso da invocante.
· Mais que subscrever a ideia de que ela não se fecha,
deYido a seu retorno sobre o Outro, proponho di­
zer que ela se fecha Outramente.
.-\ dualidade das fontes faço corresponder
um trajeto em duplo laço : 102

1 0 1 . Jacques Lacan, [,:s p,,d,om. op. ât, p. 1 55'[p. 159].


1 02. Confira meu artigo Les n,i.x, la \"Oix, pu:>licado em Essaim n,0
26, "Se fa.ire entendre", Toulou:-c.:, érCs, Prima,·era de 201 1 .

, 90
Em lugar de:

E passando pela boca e pela orelha:

O orifício da orelha pode se projetar sobre


o da boca (ou inYersamente) , e se obtém então a
superfície de wn toro, o que permite simplificar o
trajeto em torno dos dois orifícios:

91
O toro é o rebatimento de uma superfície de
Klein, o trajeto é de fato a projeção de um corte da
garrafa de Klein; corte que a separa em duas bandas
de :\Ioebius:

O trajeto da pulsão invocante é então um tra­


jeto em duplo laço, em oito interior, correspondendo
à borda moebiana entre o ouvir e o falar à qual fazia
referência Lacan. Ele se fecha sobre wn vazio, o do
espaço cercado pela garrafa de Klein, no qual a ocupa
esse lugar. Um vazio que Lacan assimila ao silêncio, 103
parceiro da voz, como ver=os mais adiante.
_",. confirmação de nossa hipótese v�m da
equirnlência que em duas retomadas Lacan esta­
belece entre as quatro formas de objeto a e quatro

103. J. l.acan, Probli'11rs ,mcia/fx po11r la pi)·cba11a(1s,, 1 ° mars 1 965.


inédito.

92
objetos topológicos: a esfera, o toro, o cross-cap, a
garrafa de Klein, que são quatro superfícies fecha­
das, de costura da relação do sujeito ao Outro. ' º4
Ele não especifica qual objeto a corresponde a qual
superfície, mas uma frase'º5 confirma que a garrafa
de Klein corresponde precisamente à voz.
Levando em conta o trajeto em torno de
dois orificios, podemos examinar como se reformu­
lam os três tem�os da pulsão in,-ocante, uma vez
que eles .devem combinar, conectar duas séries: a
série saída da boca, do falar ou do chamar, e a que
sai da orelha, o escutar, o ouvir. Teremos então:

a série de três tempos: falar ou chamar;


ser falado ou ser chamado; fazer- se falar
ou fazer-se ouYir;
• e a série: om-ir ou escutar; ser om-ido
ou ser escutado; fazer-se ouvir, fazer- se
escutar.

10-1.Iúid, 1 6 de junho de 1965, inédito, e D 1111 A11lrc à /'a11h,,.2006,


Paris, Seuil, p. 249. [D, '"" O,rtro ao Olllm, trad. de \'era Ribeiro,
Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2008. p. 241 l.
105. J. Lacan, D'1111 A11lre â !'"1!tr,·, op. cit.. p. 258 [p. 249].

93
Segundo a escolha do verbo, há variações
de sentido em cada uma das sériés que são tanto
complementares (falar ou chamar e ser ouvido ou
escutado; ouYir e ser chamado) , quanto fatores de
uma reversão (fazer-se falar ou fazer- se chamar e
fazer- se chamar ou fazer-se ouvir). Essas variações
justificam o trajeto em laço da pulsão invocante.
Deveriam ser feitas outras considerações
concernentes à escolha de vocábulos para significar
os três tempos da pulsão invocante e os equívocos
que delas decorrem, assim como concernentes aos
curtos-circuitos e aos cruzamentos de trajetos. En­
contramos nesse ponto a problemática geral da pul­
são que se encontra no limite de lalíngua e do corpo,
de um corpo furado representando o sexual. Essa
problemática geral encontra uma exemplaridade e
quem sabe uma origem na pulsão invocante.

Como escreve Henri �Ieschonnic "a voz é


ao mesmo tempo do corpo e da linguagem" . 106 Ela

1 06. H. ?\Ieschonnic, La ,-oix-p ot:rne coinme intime extérieur, in


A.it i-ommotcaJ101! dait la ror�,. op. àt., p. 61.

94
está no cruzamento do som e do sentido, do afeto
e da significação, do corpo e da linguagem, ela é
seu "desacordo". "Porque é silêncio, a voz divide e
separa".'º7 Sinal de loucura, as alucinações verbais
são também a alavanca da ação do analista. "É com
o que se propõe de saída no encontro com o louco,
isto é, a voz, que se pode operar" . 108 É também por­
que divide o falar e o ouYir que a .-oz, reconhecida,
pàde se fazer objeto de um endereçamento Outro,
de uma reinscrição.
_\ssim como a dualidade do falar e do ouvir,
inerente a todo ato de fala, acarreta um desconheci­
mento da voz, ela introduz a divisão do sujeito em
sua relação à fala, na medida em que a fala é vocal e
que o vocal está ligado' aos afetos, aos equfrocos do
significante e aos efeitos de sentido.
Como escreve :\Iontaign e, "a fala é metade
daquele que fala, metade daquele que· escuta". 1 09 É
a isso que Lacan faz eco abri.rido os Escn'tos com "o
estilo é o homem [...] a quem nos endereçamos" ou
dizendo que "na linguagem nossa mensagem nos
vem do Outro de uma forma ínvertida", o que ele

10,. S. Rabino,itch, L·r 1oiY, Toulouse, érés, 1999, p. 1 76.


108. Ihúi., p. 196.
1 09. l\1. de i\lontaigne, ErsaiJ, Line III. 1 3.

95
ilustra com sua leitura de A cmta roubada de Edgar
_-\llan Poe. É nesse entre-dois do ouvir e do falar que
vão deslizar as formações do inconsciente, tanto os
lapsos da fala quanto os da escuta 1 1 °, mas também os
esquecimentos de palavras, os at?s falhos, os sintomas
e todas as formas possíveis de desconhecimentos.
De fato, a dualidade pulsional se manifesta para
cada um tanto sobre o eixo imaginário do esquema
L,1 1 1 no que chamamos de discurso interior, quanto so­
bre o eixo simbólico de �dereçamento ao Outro.
_-\ voz não é somente alguma coisa de inte­
rior que passa ao exterior, como se a fronteira esti­
,-esse já constituída, ela é também apreendida como
um interior a partir do exterior no que chamamos
de discurso interior, que acompanha todo indivíduo
e que duplica seu discurso exterior; discurso inte­
rior que pode chegar até ao comentário de atos de
automatismo mental ou constituir-se como voz da
consciência (o supereu).
O eco interior de sua própna fala tem a
mesma estrutura da alucinação verbal. 1 1 2 O sujeito

1 1 ü. Confira \'. Clani.rier, Psychupathologie quotidicnne et saYoir­


faire (hüren) de l'analyste, b.,.,,,, n. 0 1 1 , 'loulouse, érés, 2003.
111 J. Lacan, Séminaire sur la lettre rnlée, Lri/J, op. ât., p. 53 [p. 58]
112 J. Ltcan, J,:rpsrd•o r,s, op.,,t., p. 1 82. [p. 180]
96
dito normal põe-se na posição de não levar a sério
a maior parte de seu discurso interior. 1 1 3 Ê falar de
discurso "interior" deforma a abordagem, porque
esse monólogo dito "interior" está em continui­
dade com o diálogo dito "exterior".' " Trata-se de
um discurso. que duplica as palanas emitidas. Ele
provém de um duplo do eu [moi] , um eu que fala
e um outro eu no mesmo sujeito. Lacan ,"i,-e essa
experiência durante sua exposição de A coisaji-eudia­
na, em Viena, em 1 955 (ano de seu seminário sobre
as psicoses), quando, para sua surpresa, seu atril se
põe - diz ele - a falar. 1 1 ; Há uma espécie de automa­
tismo mental normal, que não chega à sonorização
alucinatória na qual o sujeito escuta comentários
sobre suas ações e seus pensamentos. 1 1 6 Em outros,
não é mais somente um duplo do eu que fala ao eu,
mas o supereu, óu seja, uma voz que no limite não
é sonorizada e que só deYe sua autoridade ao fato
de representar a alteridade pura daquilo que se diz,

1 1 3. lbid. , p, 1 40 [p. l 4--+] .


1 1 -1. Jbid. , P· 128 IP- 132] .
1 1 5. J. Lacan, I.,-sPS:Jlhos,s. op. .it., p. 8+ [p. 8�) e E,its, op. ât., p. 425
[p. 426] .
116. J. Lacan, ús PD chos,s, op. ,,1., p. 21 9 [p. 222).
sem outra garantia que não a de se enunciar, mesmo
silenciosamente. 1 1 7
_\ partir desse ponto podemos imaginar o es­
tádio do eco como constitutivo do supereu, a exem­
plo do estádio do espelho constitutivo do eu [1.11oz].
Yisto que, segundo Lacan, a aparição do supereu se
faz "em um estádio [nós sublinhamos] tão precoce que
parece ser contemporâneo ou mesmo anterior ao
surgimento do etl'.1 1 8 Entretanto, seria redutor fazer
do estádio do eco um estádio do supereu. O supereu
· constitui um impasse do desejo do Outro que surge
no che vuoi? Reduzir o estádio do eco a um estádio do
supereu seria rebaixar a pulsão invocante a seu único
aspecto conYocatório, e até mesmo re,·ogatório. Seria
barrar o acesso da pulsão invocante aojôrt- da em que
"começa o encantamento" . 1 1 9

ECO E ESPELHO

Se nos referimos ao esquema L, o eco do


discurso interior se situa sobre a linha a '- a da re-

1 1". J. Lacan, Umgoim, op.ci!.., pp. 318-319 [p. 300J.


1 18. J. Lacan, É,rits. op. ,it., p. 1 36 [p. 1 38].
1 1 9. J. Lacao, Ls q11.;/rc ,mi.,p!J".... op. át. , p. 60 [p. 62].

98
lação imaginária, que inibe o eixo simbólico _\-S.
_\ relação a'- a refere-se explicitamente ao estádio
do espelho,' 2º a saber, o momento em que o sujeito
antecipa a completude de seu eu [mot] na unidade de
uma imagem reconhecida pelo Outro.
É o caso de dizer que a voz como eco - e até
em suas manifestações sintomáticas como a ecolalia
- é redutível à estrutura do estádio do espelho? Sim
e não. Sim, porque no estádio do espelho é neces­
sário contar com a participação da pulsão (especial­
mente ÍllYocante), e não, porque esta última excede
e precede o estádio do espelho. É para discernir esse
sim e esse não que propomos a existência de um
estádio do eco.
Na versão do Estádio do espelho de 1 949,
nem a voz nem a pulsão Íll,-ocante Íllten-êm. Con­
tudo, todo o texto do Estádio de Espelho aponta
para uma linha de partilha entre o imaginário e a
"eficácia simbólica", entre alienação do eu [mot] à
sua imagem e a fcirmação do Eu Ue] "antes que a

120. J. Lacan. f2,nts, op. dt. , p. 53, p. 549 [p. 58, p. 555].
99
linguagem lhe restitua, no WÚYersal, sua função de
sujeito " . 1 2 1
-Em cont_rapartida, na versão "generalizada"
do estádio do espelho que apresenta em 1 960 em
"ObserYacão sobre o relatório de Daniel Lagache",
por meio do esquema óptico especialmente cons­
truído a partir do modelo do físi_co H. Bouasse que
cria a ilusão do buquê im-ertido,1 22 Lacan restitui
plenamente à dimensão simbólica da fala (o Outro)
sua função no advento do sujeito, e particularmen­
te "no gesto pelo qual a criança diante do espelho,
,-oltando-se para aquele que a segura, aquele com o
olhar para o testemunho que decanta, por confirmá
-lo, o reconhecimento da imagem", 1 2 3 ou simples­
mente quando sobrevém um barulho qualquer, uma
mosca que YOa, um cão que late, que surpreende e
a des,-i.a do campo de ,-i.sibilicl.ade. _-\lém disso, ele
destaca a função e a posição do objeto a, objeto de
desejo, objeto parcial, elemento de estrutura desde
a origem e ligado aos orifícios do corpo.

1 2 1 . /bi.f., p. 9-l ir, 9:j -


122. J- 1 .acon, Éoir,: op. ,it.• pp. Ç3, 67-1, 680 [pp. C9, 680. 687].
1 23. Jbid., p. 6-8 [p. 685].

1 00
Em sua abordagem das pulsões em 1 964,
Lacan começa a se referir a esse modelo óptico para
nele sublinhar de no,·o que "é no espaço do Ou­
tro _(-\) que ele [o sujeito) se vê, e o ponto de onde
ele olha também está nesse espaço [mesmo se os
dois pontos não são os mesmos]. Ora, é bem aqui
também que está o ponto de onde ele fala, pois, no
que ele fala, é no lugar do Outro (.\) que ele come­
ça a constituir essa mentira Yerídica pela qual tem
começo aquilo que participa do desejo no niYel do
inconsciente". 1 2•

, Essa generalização do estádio do espelho


fornece, então, um lugar aos objetos da pulsão, em
sua desordem e no nh-el da imagem real do vaso
in,·ertido e, como tal, inYish-el, antes de perceber
sua ilusão na imagem Yirtual.
.\ ,-oz faz parte desses objetos na medida em
que é ela que ni ser reati...-ada na função simbólica
da fala e do ideal do eu, ·necessária à constituição
do eu [mo,] dado que "o sujeito se comprazerá em
encontrar ali as marcas de resposta que ti...-eram o
poder de fazer de seu grito um apelo. ,\ssim ficam

1 2-t. J. bcan, L:s q1ulr, c"o11c,pts. up. c"Íl., p. i 32 [p. ] 3�!-


101
circunscritas na realidade, pelo traço do significante,
as marcas onde se inscreve a onipotência da respos-
ta. Não é à toa que essas realidades são chamadas
de insígnias. O termo aqui é nominativo. É a cons­
telação dessas insígnias que constitui para o sujeito
o Ideal do Eu. Nosso modelo mostra que é ao se
situar nela como I que ele -fita o espelho _-\., para
obter, entre outros efeitos, uma dada miragem do
Eu Ideal". ' 25
É a partir de então que se pode separar o eu
do objeto a, o estádio do espelho não pode ser dito
estádio do olhar; ele é um estádio da disjunção do
olhar e da visão, uma vez que o objeto a não tem
absolutamente imagem especular. Nesse sentido, há
estádio do eco no estádio do espelho e ele não é
estádio da voz. _-\ voz não é especular, ela não tem
representação e ela está disjunta de sua represen­
tação sonora, de seu eco. No estádio do espelho o
olhar se destaca da visão, e no estádio do eco a voz
se destaca do eco sonoro.
O estádio do eco encontra sua pertinência
na contemporaneidade do estádio do espelho gra-

125. J. Lacan, É,nts, op. âl.. p. 619 [p. 686).


7 02
ças à importância da função simbólica que nele
exerce a fala, já que o ponto em que o sujeito se olha
é o ponto a partir do qual ele fala e faz de seu grito
apelo . •-\o mesmo tempo, para que o estádio do eco
faça seu papel no estádio do espelho, é preciso que
de certo modo ele tenha já existido, que o grito te­
nha sido lançado, que a voz tenha 'sido r?deada de
silêncio, que o grito tenha se tornado apelo.

:'-:ARUSO E ECO

Um desvio pelo mito fundador de Narciso,


tal como nos é transmitido por Ovídio, 1 26 nos aju;
dará a desemaranhar as intrincações entre espelho e
eco, já que aí, precisamente, os dois componentes
são cúmplices. O complexo do espelho é um com­
plexo de espelho e de eco.
Recordemos alguns elementos que nos pare­
cem significativos para nosso propósito. .-\ história
começa com a predição de Tirésias que, à pergunta
formulada pela mãe de Narciso - saber se ele teria

1 26. . O,-ide, ús , \litamo,-phom, Line III, 356.

103
uma ,-ida longa - responde: "se ele não se conhe­
cer". ,Cm dia, caçando wn cerYo, Narciso flagra o
olhar da ninfa Eco, que ainda tem wn corpo, mas
"não sabe se calar quando se fala com ela, nem sabe
falar primeiro". Essa condição lhe fora infligida por
Juno, em represália por ter sido enganada pelas pala -
nas mentirosas da ninfa, a fim de proteger os amo­
res de Júpiter. _-\ssim que percebe Narciso, Eco dele
se enamora e lhe segue os passos, repetindo o que
ele fala, ou melhor, os finais de suas palanas. �Ias
quando ela se precipita para abraçá-lo, ele a repele e
foge, como era seu costume. Eco, então, esconde­
se, definha, e só lhe restam sua voz e seus ossos, que
tomam a forma de um rochedo. Eco não é a única
a ter sido rejeitada por Narciso, e um dia uma pes­
soa por ele repelida lança a maldição: '�-\ssim, seja·
permitido que ele ame a si próprio, e desse modo
jamais possua o objeto de seu amor" - wn Yoto que
uma deusa atende: Narciso queda enamorado de
sua imagem que contempla na água de wna fonte
em que tinha ,;ndo apaziguar sua sede. Sem dm;dar
da imagem, ele se deseja a si mesmo, ele é amante e
objeto amado. �arciso não pode se apartar desse lu­
gar, implorando por seu amado do qual apenas uma

1 0../
superfície de água o separa. "Para onde foges quan­
do te procuro?" Clama. E termina por compreender
que esse outro amado é somente ele mesmo. ".-\rdo
de amor por mim mesmo", ''o que desejo está em
mim", diz. Como conseguir o que deseja a não ser
separando-se de seu corpo? _-\ dor esgota suas for­
ças, ele se consome e espera a morte que o libertará
de suas· dores e o unirá, erifim, a ele mesmo. i\Ias
ele resiste à morte e se agarra a seu amor. Eco pas­
sa pelo local e, malgrado seu ressentimento, dele se
compadece. Cada vez que ele diz "Pobre de mim!",
sua voz lhe responde, repetindo, "Pobre de mim!".
Finalmente, já sem forças, Narciso morre. Ovídio
escreve ironicamente que "mesmo depois de ter en­
trado na morada infernal, ele ainda se olhava nas
águas do Estige".
Algumas observações 1nscrevem-se nesse
fio de minha elaboração. De início, a história de
Narciso está intrincada com a de Eco, com seu
amor por ele. Narciso e Eco têm uma história de
amor, mesmo se este não é partilhado.
Com Eco, há reduplicação da voz de Nar­
ciso; com o espelho d'água, há a reduplicação da
imagem. Não · são as mesmas reduplicações. Elas se

105
conjugam, mas não se equivalem. Uma concerne à
imagem, à aparência; a outra, ao som, à fala. Uma
é totalizante (a imagem de um conjunto); a outra,
parcializante (o eco de uma parte das palavras) . Por
outro lado, há dois movimentos em sentidos .fOn­
rrários: Narciso se aproxima de sua imagem, _Eco se
distancia do som em.itido. 1 2 7
Como registrou Claude Jaeglé, "a duplicação
da voz de Narciso na voz da ninfa Eco significa que
uma mudança de sexo acompanha o fenômeno do
eco". 1 26
Isso decorre do fato de que a problemática
do espelho e a do eco não se superpõem no ponto
em que estão intrincados. O eco não é a duplicação
do que se passa no espelho.
Se o eco é posto do lado do feminino, não
é porque toca uma parte obscura que se opõe à luz
do espelho e que está em relação com o continente
negro? 1 29 O espelho tem necessidade de luz para re-

1 27. ( lbscn·aç.io uc Frédéoc l'dlio11.


1 28. Confira C. Jaeglé, I ,'inkn-it'n: .�1rti.1k1 d intd&·d11i:h Ju�·l, llll.\.-jour-
11alis1t-1, Paris, P U I ·� 2007.
1 29. N.JaT.: Freud se refere à sexualidade: feminina como um "con­
tinente neg ro". Confira ,\ g uest;\.o da análist:! leiga. ln: T"id!aio

1 06
fletir a imagem, o eco não tem essa necessidade na
obscuridade de caverpas, e a noite pode até mesmo
amplificar sua ressonância.
Se Eco se torna aquela que "nã? sabe se ca­
lar quando se fala com ela, nem sabe falar primei­
ro", é por ter pec;do (segundo Juno) pela fala. Ela
é punida por onde pecou, porque ela mentiu para
Juno, e sua fala foi uma fala enganadora. Isso quer
dizer 'que só lhe resta com o eco uma fala não en­
ganadora? N ão saberíamos dizer, já que Narciso se
deixa iludir por Eco, acreditando aí ouvir a fala de
seu reflexo.
i\Ias ela, Eco, não tem intenção de enganar.
Há no eco a supressão de uma dimensão de engano
inerente à fala. Que dimensão?
No relato de Ovídio, a existência de Eco
precede a de Narciso. Narciso não é ainda Narciso
quando encontra Eco, que é, ela, a ninfa já transfor­
mada por Juno.
É seguindo essa intrincação que vou buscar
distinguir melhor as características de um estádio do

..-1,mdard briuikira, Rio de Janeiro: I mago, 1 926, ,·oi. 10, pp. :WS-
293.

107
eco precedendo, mesmo virtualmente, o estádio do
espelho, independente dele, ou excedendo-o.
Dois fatores estão intrinsecamente ligados à
voz e contribuem para singularizar a pulsão invo­
cante: o silêncio e o grito. Há wna primeira nodu­
lação do silêncio e da voz no grito, segundo varie­
dades do gritar: bradar, vociferar, berrar, estridular,
esbravejar, ribombar. "Não ouves a medonha voz
que brada em torno do horizonte e que chamamos
COfI-!-Umente de silêncio? 1 3º

,\J/Jnl '/ . -1 (•ii> ll-1 1 D/., O<J (,"1(170 L no \Jl .liNUO

Entre a voz e seu eco desliza o silêncio. Se


não houvesse silêncio não se ouviria o eco. ,\ voz
sem eco é o silêncio. O silêncio é a tela, nos dois sen­
tidos do termo - e para fazer wn;i. analogia com o
olhar - sobre a qual se projeta a voz e que a mascara.

1 30- (). Büchncr. l ..1.w-;__. Citado por P.-L. :\ssoun, J r��iJrd d l, f'Oix.
.i.·

T. 1 1 , P,1ti:,;, l •:conomicn, 1995, p. 5. 1 0 olht1re a 1-u-:;_: li(Ôl'J rficcmu­


líti,:a.r solm- o olhur i: u 1v::;, trad. d� ( �clso l\·rcira de :\]me.ida. Rio
<lc Janeiro. Companhia de Freud, 1999J.

1 08
Importa discernir o entrelaça�ento do si­
lêncio e da YOZ, da yoz como objeto a, quer dizer,
separado e separáYel. _-\ hiância entre os dois orifí­
cios da fonte da pulsão im-ocante somente acentua
o caráter "separado" da ,-oz. Foram essas as carac­
terísticas que permitiram a Lacan isolar a ,-oz como
objeto a, tomando como modelo as ,-ozes não so­
norizadas do automatismo mental, como dissemos
no primeiro capítulo.
Como qualquer objeto a, a ,-oz não tem ima­
gem especular.. O olhar não é a Yi.sào: o que nos
olha é, por exemplo, o branco do olho do cego. 1 3 1
Como objeto a, a YOZ s e destaca das representações
sensoriais (por exemplo, aquelas que são cantadas,
daí o caráter eyasiYo da Yoz interior). ·_-\ sonorização
é uma imaginarizaçào mais ou menos satisfatória
da ,-oz. Ela funciona como mais-de-gozar. O que
caracteriza a voz como objeto a é o fato de que há
passagem por um ou dois orifícios corporais (a fon­
te da pulsão) e a existência de uma escansào, de um

13L J. l .acan, L:111,oissc-, op. CIÍ., r- 293 IP r�1-

1 09
intervalo de abertura e de fechamento que faz as
vezes de corte. 13 2
_-\. verdadeira estrutura da voz é temporal. "A
voz peide ser estritamente a escansão com a qual
lhes relato tudo isso", diz Lacan em seu seminário
de 9 de abril de 1 974. "Há alguma coisa assim que
está ligada ao tempo que levo para dizer as coisas,
uma vez que o objeto pequeno a está ligado a essa
dimensão do tempo". 1 33
Essa frase poderia, aliás, ser posta em exer­
go ao título evocador do livro de Claude Jaeglé_i 34
'.\ele o autor mostra como a voz de Lacan força
a atenção para o fato da excepcional frequência e
duração (m�didas auferidas sobre as gravações)
de seus silêncios e de suas pausas oratórias, assim
como as múltiplas mudanças de registros de suas
entonações. Estas podem, aliás, chegar até mesmo
a vociferações. E devem, pensamos, ser postas em
relação com esta frase dos Escritos (que além disso
comporta uma citação, ou seja, outra. voz): "Sou no

1 ,. 2. E. Porge, Les Yoix, la YOL°'\, op. át.


1 33. J Lacan, us 11011 dup,s ,m11I, 9 de abril de 1 974, inédito.
134. C. J aeglé, Portr<1il silmámx de]acq11es L,can, Paris, PUF, 2010.

1 70
lugar de onde se vocifera que 'o universo é uma falha
na pureza do Não-Ser"'.13 5 Claude Jaeglé considera
que as particularidades da voz de Lacan concernem
ao drama do mal-entendido: "uma voz engendra­
da por um universo de mal-entendidos. Unia voz
formada e deformada pela impotência de se fazer
. ouvir". Sua voz fala para surdos. 1 36
_-\s pausas na fala são essenciais à sua escuta.
Na mãe, uma voz contínua, sem corte entre os frag­
mentos sonoros, é muito mal recebida pela criança,
que dela se desvia. Podemos também nos perguntar
se os silêncios no discurso não constituem, talvez,
um equivalente do eco da fala ou seu bloqueio.
Como os outros objetos a, a voz supre a ca­
rência de significante que responderia à questão do
sujeito, de seu lugar em e para o Outro. /É porque
há identidade de estrutura de corte entre S e a que a
pode suprir a "nominação desfalecente'_' do sujeito.
_-\ voz é parceira do silêncio, o silêncio do
Outro. O vazio no qual a voz ressoa não é um vazio

135. J. Lacao, Sub,·ersioo du sujet et dialectique du désir, op.âi. , p.


819 [p. 834].
136. C. Jaeglé, Por/rali. . . , op. àt., PP· 43, 4�.

111
espacial, "é o Yazio do Outro como tal, o e::-· nihi!o
propriamente dito. .-\ yoz responde ao que é dito,
mas não pode responder por isso. Em outras pala­
nas, para que ela responda, deYemos incorporar a
,·oz como alteridade do que é dito". m O ,·azio do
Outro é o vazio de sua falta de garantia última, do
enigma de seu desejo e de seu gozo. "Ora, é nesse
,-azio que ressoa a voz não distinta das sonoridades,
não modulada, mas articulada". 1 38 Tomando como
exemplo o som do shofar no }óm Kipur,' 39 Lacan
interp ela o pacto com Ja,-é.
Existem ,·árias modalidades do laço do silên­
cio à voz. O silêncio pode ser aquele que suscita a voz
do outro: " ... como ninguém o interroga, ela se põe
a contar histórias no vazio, aos pedacinhos . . . ".'"º O
silêncio pode ter também um valor pulsiona, como já
,'Ímos na parte sobre a conexão dos objetos a..
0ia relação ao silêncio é preciso distinguir o
silêncio de ta,·ere e o de silere, mesmo se na ·história

Ir. J. 1 .acan, Um�oiss,. op. ,iL, pp. .> 1 8-319 [p. 300].
138. lbid.
I W lh,d.. p. 28.� [p. 268].
140. F. Kafka, ]011m,zl, Paris, Grasset. p. 459. Indicado por Claude
Jaeglé.

1 12
eles terminam por se confundir: "Tacere como silên­
cio de fala opõe-se a silei·e como silêncio de nature­
za, ou de divindade, depois, último avatar, os dois
se igualam, tornam-se sinônimos, mas em pro,·eito
do sentido de ta,-ere1 4 '". Essa distinção é uma forma
de fazer ouvir o cunho do silêncio pelas dimensões
do real, do simbólico e do imaginário. O mito de
Eco, transformada em rochedo, é a forma mítica de
escutar o silêncio da natureza.
.-\lém das modalidades do silêncio de tacm
há uma relação ao .-azio de silêncio .ri/ere, constituti­
va de uma borda entre silêncio e ,·oz que um sujeito
pode entreYer, ou entreomcir, durante experiências
subjeti.ns cruciais.
É o caso do belo romance de Catherine
)\Iillot, Ó Solitude. 1 42 Nele ela relata sua busca pre­
coce de uma solidão "habitada de silêncio". Uma
solidão sem parti.lha em face da palana interior (úl­
timo círculo do Inferno), que cessaria com a distin-

1+1. R. Barthes, V .\- ,·,rir,, op. ât.. p. 50 [p. 49]. Lacan ernc, também
a distinção �ntre silen· e 1.1,:,:n· em Pro/J;;_' Vh'J ,rucúur.-...-pnNr laP:íJ1/ir.1-
11tt/JSf e em La lo_giqul' du f,'wturmc, 1 2 de abril de 1 96-:-.
1+2. C: '.\lillot, ü Solit;,d,, P�s, Gallima:rd. 201 1 . Cma cirndo da
poeta Katherine Philips.

113
ção entre o dentro e o fora, a qual se opera somente
quando o eu [motl ti,-er tomado forma. Solidão que
se confundiria com uma alteridade reinando sem
partilha, no êxtase e na angústia. �e �se tempo mí­
tico coexistiriam ou se alternariam a derrelição que
faz surgir o Outro com o enigma de seu de·sejo e o
deslumbramento da não dualidade reencontrada 1 43 •
Catherine ).Iillot cita também o relato de um
explorador, o ornitólogo \'-·: H. Hudson, U11 jlâ11et1r
en Patago11ie, no qual ele relata em particular seus dias
de isolamento no deserto da Patagônia e no qual
escreYe esta frase tão significatiYa: "Um dia em que
estava escutando o silêncio, perguntei-me subitamente
sobre o efeito que eu produziria se me pusesse a
gritar". 1 44
Silêncio, yoz, grito formam um nó. "O gri­
to se faz abismo onde o silêncio se precipita", diz
Lacan comentando o quadro de EdYard ).Junch, O

1-U. C. .\lillor eira IL Barthes 9 uc sonha com um rifr.- (à imagem do


Deus de 13oehme) além do silêncio Yerbol (1,�trc) (Roland 1-larthes,
uf. ,ir., p. .+9) . l'm seu )oum,,I & dd111 (Paris, Lc, Seuil, 2()1l9). Barthes
também comunici su,o "necessidade de solidão", p. 101.
1 -+-+. \\: H. Hudrnn, [ ·11 JU11c1w ,,, PafüJ!,OIIÍ<", Pa\"ot, 2002, p. 206.
grito145 . Ó grito, diz, está atraYessado pelo espaço
do silêncio sem que o habite, eles não estão ligados
nem por ser um conjunto nem por se sucederem.
"O grito parece proYocar o silêncio; abolindo-se, o
grito o causa". "O sujeito só aparece como signifi­
cado nessa hiância aberta".

O silêncio é um nó entre um pacto e o Ou­


tro (que fala ou não) . Ele pode ressoar quando o
grito o esca,·a: o espaço cercado da garrafa de Klein
é o "furo do grito". �o quadro de .\Iunch, o perso­
nagem em primeiro plano tapa suas or.elhas e tem a
boca totalmente aberta.

O que pode ser melhor que o silêncio de um


quadro (dissociando o olhar da Yisão) para falar do
grito?

Podemos, graças aos brilhantes comentários


de Jean-Paul i\Iarcheschi, om:i.r também o silêncio
da ,·oz nos quadros de Piero della Francesca. Eles
mostram personagens hieráticas, impassh-eis, silen­
ciosas, inexpressiYas; sua representação pela pintura

1 45. J. L�can, Proh!1;n1a ..n1cic1u.-.- pum· /,1 PD,.-h.111'1!1 Sl', 1: de março de


1 965, inédito.

1 13
É ainda por meio do grito, através do encon­
tro com o próximo (Nebenmmsch) que a criança ace­
de à Coisa (das Ding) que se impõe como montagerg
constante e representa para Lacan a extimidade' 4"
territorial do sujeito, que os objetos a colonizarão. O
grito remete a das Ding, o primeiro estranho em si 1 49•
Certos cantos alcançam esse limite do grito
e'da voz, por exemplo, o cantejondo (canto fundo) de
que tão bem fala Federico Garcia Lorca. ':-\ sigHiriya
cigana [o tipo mais puro e perfeito de cante jondo]
começa por um grito terrível, um grito que divide a
paisagem em dois hemisférios ideais. É o grito das
gerações mortas, a elegia pungente de séculos pas­
sados; é a patética evocação do amor sob outras luas
e outros ventos [. . . ] Depois a voz se detém para dar
lugar a um silêncio impressionante e comedido. Um
silêncio em que fulgura a face do lírio ardente que a
voz deixou no céu". 1 50 Também o cantejondo se canta
de preferência à noite.

148. . \ saber, o que conjuga o íntimo à radical exterioridade do


sujeito (Dí111 Alffr< J l',lllfr<. op.át., p. 249, tp. 2411).
1 49. J- facan, Lethiq11<", Paris, Seuil, 1986, p. 68. [.·1 itiau hp. ,i,w,Jlis<", trad.
de Antônio Quinet, Rio de Janciro, Jorge Zahar, 1997, p. 76].
150. F Garcia Lorca, <Emm ,vn,pfcta, ti, La Pléiade, Gallimard, pp.
807, 827. Indicado por Cristina Fontam.

1 19
É se fazendo apelo que o grito entra no cir­
cuito da pulsão invocante. Mas suas raízes mergu­
lham nas trevas do corpo, do corpo que sofre em
perigo, mas também do corpo que goza, ali onde
lalíngua se tece de gozo, no que Novalis chamava de
a Sprachtrieb, a pulsão de falar por falar, sem querer
fazer sentido ou transmitir uma mensagem.
Entre o grito e a voz propriamente dita há
esse tempo de passagem pelo jogo de vocalizações,
os balbucios, os gorjeios, as lalações, o motherese ou
o parentese' 5 ' (pois isso não se refere somente à mãe)
em que a criança goza da matéria sonora para seu
prazer. Sabemos a que ponto a qualidade de inte­
rações sonoras entre o bebê e seus pais são capi­
tais para seu desabrochar futuro. ' 52 Por outro lado,
precisamente no motherese e no parentese observamos
que há uma estrutura de fala em eco.

1 5 1. N.daT.: Em portugut:s temos os termos manhês ou l'namanhês


e papatês.
1 52. Confira os dois artigos d� 1\1.-Ch. Laznik ct coU. ".-\s intera­
çôcs sonoras entre o.!- bebês autista..; e seus pais" e «:\s intera­
ÇÕ(:S sonoras no contexto da pesq uisa sobre o autú::mo a partir
de nlmc,;s familiares" en1 .,..--111 cnm1J1mü•me11! dai/ la mi.Y, np. ât. pp.
1 : 1 - 1 89.

1 20
Corpo e língua, afetos e representações te­
cem o corpo de lalíngua, ou melhor, fazem consis­
tir lalíngua como corpo do simbólico. Esse corpo
tem tanta realidade quanto aquele a partir do qual
· o sujeito forma seu eu [moi] como reflexo da ima­
gem. N"esse sentido, podemos compreender uma
expressão de Didier .-\nzieu, a de "espelho sonoro",
para falar desse momento que precede o estádio do
espelho.
É apenas por Yolta dos 6 ou "' meses que
a cnança é capaz de imitar os sons que om·e, e é
por ,-olta dos 8-1 0 meses que se produz a primeira
perda vocal, quando a criança busca adaptar seus
,-ocalizes à fala1 53. '�\ntes tudo é somente Yoz". 1 34
Para tomar a pala-na é preciso aceitar um sacrifício
de sua YOZ, de uma parte de si, de uma parte de go­
zo. 1 55 �esse sentido, a yoz como objeto a é mesmo
um mais- de-gozar.

1 53. C. Gillic-GuiJberr, "\":iriauons sur 1� ,·rnx des cnseignonts'º , .·li!


�·on1111i:,1.-l·1110.'f . . . /Jf. Jt., p. 91.
1 5-+. G. Kunopczyn�ki, ªJ,es en]cux de b YOÍx ' '. - ·�:: _·u11111H1:�·011{11f• • •
º!· ,it., p. 35.
1 55 . l\I, Poizat, ciL1do em . 'i:r .·un1111t1. , m.'o.'l . . • op. .-:it. pp. 9-1--95.
1

J :!-7
O estádio do eco estaria ligado a esse mo­
mento de passagem do grito ao apelo e à fala, com
a voz como objeto resto, um momento constitutivo
da distinção exterior interior, correlativa de qual­
quer identificação e, portanto, correlativa também
de uma reversão em que há um exterior do interior.
_ -\ ecolalia do autista seria a fixação a esse momento
que é também um momento estrutural.
_ -\ ,;-oz torna-se um resto que foge, inapre­
ensível, do qual a pulsão inYocante faz a \'Olta. Um
resto do qual só apreendemos o eco; à medida que
sua sonorização ouvi.da difere da emitida, esse resto
se nodula ao silêncio. O eco manifesta a divisão do
sujeito inerente ao laço (a punção do fantasma) da­
quele inerente à voz.
:'.\lesmo se podemos falar, com Fónagy, de
"estilo vocal", em caso algum há identidade vocal
objetivável, impressão vocal, e sem dúvida pela .
mesma razão.

1 22
CONCLUS_\O

_-\ pulsão invocante encarna de forma exem­


plar as demais pulsões, definidas como "eco no cor­
po pelo fato de que há um dizer", como já citei antes.
E é por essa razão que ela participa do es­
tádio do espelho (em sua versão generalizada) e
especialmente pelo funcionamento da função sim­
bólica do ideal do eu, a partir do qual o sujeito vê
seu eu [mot] como amá\-el. E assim como o estádio
do espelho não é um estádio do olhar, uma vez que
consagra a divisão entre a ,ásão e o olhar, também
o estádio do eco não é um estádio da .-oz, já que
distingue (marca) a separação da ,-oz como objeto a
de sua sonorização mais ou menos agradáYel.

1 23
Contudo, se a pulsão im-oc�nte participa do
estádio do espelho - graças precisamente à conexão
dos objetos a - ele se encontra apenas antes, na de­
sordem do real do corpo, ela o excede, ela o precede
e tah-ez se oponha a ele.
De fato, se o júbilo acompanha a assunção
da unidade do eu [mo1]no estádio do espelho, é aci­
ma de tudo o estranhamento, o mal-estar, tah-ez o
susto que acompanha a descoberta do eco interior
ou exterior de sua voz.
O eco se distancia e se perde no longínquo
obscuro, enquar:ito a imagem se aproxima ciu ni em
direção à luz.
Enquanto ir em direção à imagem é reen­
contrar a alienação do transitiYismo, ouYir o eco
distanciar- se é experienciar a separação.
.\lesmo se um estádio do eco tem lugar grosso
modo nos dez primeiros meses da ,;d-a, ele não é um
estáqio genético, orgânico, mas um momento estru­
tural que se repete, em que o tempo se nodula à su­
perfície segundo o equh-oco da pala-na estádio [stade] ,
que significa de início o lugar em que se disputam os
jogos e, depois (a partir do século XIX), o período
de uma e,-olução. Para retomar uma expressão de
1 2-l
Merleau-Ponty, eu diria que se trata de wn· "turbi­
lhão espacializante-temporalizanre". 1 56 Se algo da
origem está implicado na noção · de estádio, trata­
se de wna "orige1? turbilhonária", segundo, desta
;-ez, a expressão de \,alter Benjamin. i;; O turbilhãó
[tourbil/011] é a ;-olta de wn furo [trou], é também wn
"fur(o)bilhão" ["troubi!loll"] , ou então um "turba­
lhão" [trub!ion]. Um furo que Lacan discerniu com o
furo "imiolável" do nó borromeano. 1 58
Em U!a, _-\lain Didier-\,eill fala do tempo
"a-histórico da pulsão im-ocante", ela seria �de todo
modo, a matriz sobre a qual se poderia ulteriormen­
te grafar as pulsões sexuais parciais" . 1 59
"Origem turbilhonante'' é wn oximoro por­
que o turbilhão é wn furo no qual se perde a ori­
gem, no qual ela está mergulhada na 01is-gm1 60 [l'o,i:-

156. :-.1. i\lerleau-Pon n·, L· ,isi/-- k d l,múibl.-, op. cir., p. 298,


1 5-:-.
\X'. Benjamin, Origine dit dr,7/JJt" h.1ro,.j,'tt' .-dfaH,llld, Flamm:uion,
1 985, p. 56: "_·\ origem é um rurbilh:io no rio do de'"Lr'· .
158. J Lacan, RSI, 1 5 anil 1r5, inédito.
159. _\. Didier-Weill. Li!., d h ÚflJJiá, ,k f- :wkcr, P:u:is, Denoel,
200\ pp. 88 e 91.
1 60. "i.daT: O Dicion:irio f louaiss trsz or(i/ol- um elememo de
cumposiçàu, do brim os� oris, boca� lingu:i.gem, língua, idioma;
orifício. Gu1<·. unidade fund:unent:tl da hereditariedade. seg-
gyne] , a fala da mãe, lalíngua. O turbilhão sub[lJ_erso
e cuspido. O que ele cospe pode ser um nome, um
nome do pai como diz Lacan em seu seminário RSI.
Quanto à origem implicada no estádio do
eco, tratar-se-ia, antes de tudo, da origem do sujeito
(aquele nascido do cogito, como lembra Lacan) , de
um sujeito "antes de qualquer nominação", 1 6 1 do
sujeito no real, do sujeito do nó que circunda seu
lugar Yazio.
O estádio do eco seria a borda turbilhonante
do silêncio do sujeito, seu único significado na hiân­
cia aberta pela pulsão inYocante; hiâncià que tem a
estrutura especializada-temporalizada de uma gar­
rafa de Klein.
O sujeito, não o esqueçamos, deve ser situ­
ado no real. O sujeito como efeito de significação
é resposta do real. 1 62 Resposta ao signif\cante que
surge na "franja" do real e do simbólico, como o

mento de uma cadeia Je .\DN; o dicionário registra 'gen-/


gne 1JaJ',·/l1; ,�,:r:.ir (gàtn,,:. ,g,:11ito1� gàh·ro...).
1 6 1 . J. Larnn, L'i&111ijitúlio11, 10 jamier 1962, inédito.
1 62 J. l.acan, L:spsychus,s, op. ,il., p. I S� lp, 1 6 1 ] , p. 21 1 [p. 2 1 �] e
L'étourdit, A11tm icrits, Paris, Seuil, 200 1 , ['• -!59

1 26
de "a paz do anoitecer", 1 63 em que subitamente não
sabemos mais se o significante prm-ém de dentro
de nós ou de fora, da natureza, na qual subitamente
escutamos o silêncio (aquele de silere) .
�esse momento, pode-se dizer com Roland
Barthes que "o homem seria como um ruído da
natureza (no sentido cibernético), uma cacofonia".
:\Ias imediatamente ele levanta a questão: "?\Ias
sempre a mesma aporia: para dizer essa cacofonia,
preciso de um curso".1 6ª
Dizer o silêncio é também perdê-lo, como
perdeu Orfeu sua Eurídice.
Nà sua prática, o analista se transporta para
esses confins, e é assim que ele vi.-e a pulsão invo­
cante.

1 63. J. Lac:m, L:rps,·,bom. op.,·i!.. p. 15- [p. 161]. Confirn primeiro


capítulo.
1 64. R. Banhes, L· 1w1tr,·,op.àt. , p. 58 [p. 65J.
Lacan foi o primeiro a incluir a pulsão invocante
na l i sta das pu lsões e a elevar a voz ao estatuto de
objeto a. Erik Porge tenciona neste l ivro dar
seq uência ad rante esse primeiro tri lhamento.
Entre as quatro pulsões, oral, anal, escópica,
invocante, esta ú ltima tem o privi légio de ser a
mais píóxima da experiência do i nconsciente. Ela
tem também como especificidade concern ir a
dois orifícios do corpo, a boca e a orel ha.
Sob o nome de "estád io do eco", o autor designa
o momento estrutural que se situa nos confins do
grito e do apelo-da fala, e que, anterior ao estád io
do espelho, dele participa.
Em seu zelo de explicitação, revisita fenômenos
cl ínicos como a ecolalia no autismo, posiciona a
função do si lêncio do anal ista e aborda questões
de estrutura com a do supereu.

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