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ELIÉZER RIZZO DE O

GERALDO L.CAVAGN
JOÃO QUARTIM DE M
RENÉ ARMAND DREIfflJSS

As
Foi
Ar
Autonomia e tutela armada
Cesarismo e bonapartismo
Construção da potência
Soberania nacional e popular
Papel político e função constitucional
Transição e autoritarismo
ELIÉZER RIZZO D E O L I V E I R A
GERALDO LESBAT CAVAGNARI F I L H O
JOÃO QUARTIM D E MORAES
RENÉ ARMAND DREIFUSS

PENSANDO O BRASIL

1. Pensando a família no Brasil


Vários autores

2. Do embuste das dívidas externas


ao absurdo dos privilégios às exportações
AS FORÇAS ARMADAS
Jacques Dezelin
NO BRASIL
3. A oficina do diabo
Edmundo Campos Coelho
Autonomia e tutela armada
4. Ecologia e política no Brasil Cesarismo e bonapartismo
Vários autores Construção da potência
Soberania nacional e popular
5. Brasil, um sonho intenso Papel político e função constitucional
Maria Helena Malta Transição e autoritarismo
6. O espelho índio
Roberto Gambini

7. As Forças Armadas no Brasil


Vários autores

espaço e tempo
Rio de Janeiro
© 1987, Editora Espaço e Tempo Ltda.
Rua Francisco Serrador, 2, gr. 604 — Centro
20031 — Rio de Janeiro — R J
Tel.: (021) 262-2011 SUMARIO

Capa: Cláudio Mesquita

Revisão e Diagramação: Helen Diniz


INTRODUÇÃO, 7
Fausto Castilho

O A R G U M E N T O D A FORÇA, 11
João Quartim de Moraes

AUTONOMIA MILITAR E CONSTRUÇÃO DA


P O T Ê N C I A , 57
C l P-Brasil. Catalogação-na-fonte Geraldo Lesbat Cavagnari Filho
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, R J .

S O C I E D A D E P O L Í T I C A A R M A D A O U FORÇA
As forças armadas no Brasil / Eliézer Rizzo... [et. al.]. —
F789 — Rio de Janeiro : Espaço e Tempo, 1987. ARMADA SOCIETÁRIA?, 101
(Coleção Pensando o Brasil, 7) René Armand Dreifuss
ISBN 85-85114-34-7
1. Forças Armadas — Brasil 2. Política — Brasil I .
Rizzo, Eliézer I I . Título I I I . Série C O N S T I T U I N T E , FORÇAS A R M A D A S E
CDD — 332.5 AUTONOMIA MILITAR. 145
87-0981 CDU — 355/359(81) Eliézer Rizzo de Oliveira

ISBN 85-85114-34-7
da LSN; a redefinição dos serviços corporativos; a eliminação da possi-
bilidade de que o Exército venha a predominar na organização do Mi-
nistério da Defesa; a adoção de critérios mais objetivos na promoção
dos oficiais; a desmilitarização das atuais polícias militares; a dissolução
do CSN e do SISNl a partir da extinção do SNI e o desaquartelamento
da tropa. Feito o quê, não mais haveria uma "força política armada",
mas uma "força armada societária", constituída e controlada por cida-
dãos, momento em que tocamos a outra extremidade da parábola. O ARGUMENTO DA FORÇA
Eliézer Rizzo de Oliveira, autor do último ensaio e mais interes-
sado na conjuntura, escreve a crónica de 1987, a partir da instalação
da Constituinte. É o que denomina "o roteiro de um retrocesso": ao João Quartim de Moraes
longo dos meses, os esforços desenvolvidos pelas Forças Armadas junto
aos constituintes, para manter no texto da futura Carta os preceitos
que no passado lhes facultaram o exercício de funções político-ins-
titucionais, contrariam a promessa de uma transição para a democra-
cia, pela pelo PMDB no momento em que aderiu ao poder — já
ocupado pelos militares —, para exercê-lo em condomínio. O que se "Há dois PMDBs no Brasil. Um forte, realista, coerente
nota hoje é não uma diminuição mas uma ampliação da autonomia e de bom senso. Outro fraco, com meia dúzia de radicais
militar, a qual é reconhecida pelas forças políticas presentes no Estado. desinformados. Mas o primeiro é o que conta, está comigo
Trata-se não de democratização e sim, de um procedimento para "cons- e me dá amplo e total apoio."
titucionalizar", através do PMDB, a simples posse de fato em posse
(Bresser Pereira, O Estado de S. Paulo, 23 de agosto
de direito dos espaços que foram conquistados durante a ditadura. Essa
de 1987.)
decepção crescente talvez se explique que um acordo que permanece
secreto e que teria sido "certamente negociado" pelo PMDB com os che-
fes militares, pelo qual o partido se teria comprometido, nas costas do "O realismo é o bom senso dos calhordas."
Povo — pois até hoje não foi publicado — a: 1) não fazer revanchismo, (Georges Bernanos, A França contra os robôs, prefácio.)
isto é, deixar os terroristas de Estado na impunidade; 2) não obstar a
capacidade de ação política das Forças Armadas; 3) reconhecer-Ihes a
singularidade constitucional, isto é, aceitar que constituem uma parte
do Estado que com ele não se identifica por fruir de maior permanên-
cia do que os governos fugazes. Eliézer Rizzo de Oliveira mostra por-
menorizadamente o retrocesso que se operou desde a Comissão Arinos 1. Formas históricas da autonomização do Estado:
até as versões que ora se discutem do projeto constitucional. E ressalta cesarismo e bonapartismo
que a ingovernabilidade, o "lobismo" militar, os programas que conti-
nuam fora do controle da representação política e a preservação dos Os estudos recentes sobre as funções das Forças Arma-
antigos instrumentos de coerção refletem uma escalada militar que, numa
das no Brasil apresentam notável convergência a respeito de
situação de "equilíbrio catastrófico", pode conduzir a transição do
PMDB, que a tudo assiste impassível, ao golpe de Estado ou à "salaza- ao menos duas questões essenciais: sua posição no aparelho
rização". de Estado e sua relação com o poder político central. Con-
Em resumo: a matéria é extensa e os ensaios procuram cobrir a cordam em caracterizar a primeira como de autonomia e a
questão das Forças Armadas do ângulo das diferentes disciplinas huma- segunda como de tutela. Concordam também em vincular esta
nas. Cabe porém, uma observação final. Os próprios autores são os
àquela como o condicionado à condição: é por disporem de
primeiros a chamar a atenção para a provisoriedade do aparelho con-
ceituai e analítico empregado. Assim, noções como as de autonomia autonomia no seio do Estado que as Forças Armadas podem
militar, autonomia estratégica e sociedade armada, entre outras, são con- tutelá-lo.
ceitos em elaboração. E não poderia ser de outra maneira, em se tra-
tando de uma equipe de pesquisadores que iniciou os seus trabalhos Não retomaremos neste trabalho, que se pretende sinté-
no ano de 1985. tico, as investigações e os argumentos que conduziram a tais

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conclusões, mesmo porque novos estudos, visando a desenvolvê- Augusto, o segundo césar, passou a depender cada vez mais
las e a aprofundá-las, continuam a ser efetuados.' Bastar-nos-á, do instrumento de coerção armada originariamente destinado
a título de esclarecimento semântico preliminar, notar que a a servir de guarda de corpo do imperador. O cesarismo dege-
autonomia das Forças Armadas significa que todos os assun- nerou em pretorianismo: a guarda de corpo do imperador tor-
fivnoN^i- internos à instituição; b) relativos à articulação da ins- nou-se corpo da guarda do Império.
^ tituição com as instâncias constitucionalmente investidas da O primeiro ensinamento desta matriz histórica é que o M à y a ^ ' '
FecHAi^y^ responsabilidade de controlá-la e c) relativos a atos praticados pretorianismo pressupõe o cesarismo, isto é, a usurpação do^w-^^^"^
por membros da instituição e/ou eventos provocados por ela poder político pela corporação das armas tem na concentração
ou por seus membros fora de seu âmbito, são resolvidos se- imperial dos poderes sua pré-condição. A lógica do processo
gundo critérios e procedimentos próprios à instituição, que é clara: num primeiro momento, o herói carismático arrebata
trata qualquer "ingerência" exterior, mesmo se apoiada na lei, o poder à cidadania; num segundo momento, o poder assim
como ameaça às suas prerrogativas. arrebatado desliza das mãos do césar para as de sua guarda
Assim caracterizada, a autonomia da corporação militar permanente.
constitui um fenómeno trans-histórico e transnacional: não por O segundo ensinamento é que a supressão do controle
acaso certos autores classificam como "pretorianas" as Forças social sobre a corporação militar, isto é, sua autonomização,
^ ^ ' ' ^ ^ A r m a d a s latino-americanas, comparando-as à Guarda Preto- constitui um subproduto de uma supressão mais fundamental,
èo '^'^^ riana dos imperadores romanos. O termo imperator, com efei- a do controle social sobre o poder político. A autonomização V^g^gg_
V. to, designava, durante a República romana, a autoridade mi- do Estado precede e condiciona a autonomização de sua força
litar de que estavam investidos, em tempo de guerra, os co- armada.
mandantes supremos de seus exércitos. Praetor ("o que vai
As comparações históricas, quando são pertinentes, per-
na frente") era um magistrado cujas funções, originariamente
mitem determinar reciprocamente o grau de universalidade das
judiciárias, estenderam-se progressivamente à administração
características comuns às situações comparadas e as diferen-
das províncias e ao comando militar. Durante a República,
ças que as singularizam. É frequente a comparação entre o
tais funções constituíam uma delegação de poder do Senado
cesarismo e o bonapartismo: Gramsci, por exemplo, trata o
e do povo romanos. Quando o poder foi usurpado por um
bonapartismo como um exemplo histórico de cesarismo, vendo
chefe de guerra carismático, Júlio César, o mando militar (im-
no primeiro Napoleão um "cesarismo progressivo" e no Na-
perium) estendeu-se à esfera política. Surgia, sobre as ruínas
poleão sobrinho um "cesarismo regressivo".^ Sem atribuir gran-
'"^da República, o cesarismo, isto é, a concentração de todos os
de importância a discrepâncias de terminologia, cabe no en-,
poderes na pessoa do imperador. Mas, como carisma não se
tanto notar que foi em torno da noção de bonapartismo que^
transfere automaticamente, o poder imperial, após a morte de
se elaboraram as principais interpretações (marxistas e não-o^xj^^
marxistas) do processo de autonomização^do Estado nos tein- '^^^^^^^^
pos modernos. ^ fvu^ ^ J V V A ^ O M &V£U>> « . « y U L k á ^^^uJ^-
' Os quatro estudos que compõem este volume — de Cavagnari, Drei-
fuss e Eliézer Oliveira, além do nosso — expressam, cada um a sua A preferência hermenêutica pelo paradigma bonapartista ' • '-'^"^
maneira, e todos à luz da dupla experiência recente da tutela militar se explica, antes de mais nada, por evidentes razões histó- ^ 'M
sobre a "Nova República" e das pressões das Forças Armadas (nota-
damente o Exército) sobre o Congresso Constituinte, o estágio atingido
pelo trabalho analítico universitário sobre a questão, à qual o Núcleo
de Estudos Estratégicos da UNICAMP (de que são membros ativos os 2 Antonio Gramsci, Note sul Machiavelli, sulla Politica e sullo Stato
quatro autores) vem dedicando o melhor de seu esforço intelectual. Moderno. Editori Riuniti, 1971, p. 84.

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ricas. Como Marx mostrou em suas merecidamente célebres teorizado por Marx (isto é, o regime político do pequeno
Napoleão) é um cesarismo regressivo (contrariamente ao do
análises do 18 Brumário de Luís Bonaparte, o bonapartismo,
grande Napoleão, exemplo de "cesarismo progressivo") anun-
ao reativar, nos tempos modernos, a forma imperial do po-
ciador, sempre segundo Gramsci, do cesarismo regressivo do
der, conferiu à autonomização do Estado uma dimensão iné-
século X X , o fascismo.'' Seguindo Marx, pelo menos quanto
i^aL.í&> í^-^dita, já que, ao longo dos séculos anteriores, a Monarquia
ao critério hermenêutico de erigir em paradigma não o Bona-
' absoluta, em sua luta contra as resistências feudais à centra-
parte "progressivo", mas o "regressivo", os analistas poste-
kíT^^f^*^ lização do poder político, forjara, peça por peça, um gigan- riores (inclusive os não-marxistas) convergiram no sentido de f^^'^''-»
UjiA^tA^ tesco aparelho administrativo e coercitivo que a Revolução aplicá-lo a situações em que a autonomização do Estado d e - ^ ^ ^ ^ " ^
e o primeiro Napoleão haviam expandido mais ainda, a tal corre de uma crise de hegemonia, isto é, de uma crise provo-\ '-J^^^
ponto que, entre essa colossal máquina de dominação e aquela cada por um confronto no qual forças sociais antagónicas, A ^ ^ ' f >
de que dispuseram os césares, a diferença é tão grande quanto tentam, sem sucesso, conquistar o poder político, desgastando- K**"^*"
— para parodiar o mesmo Marx — a que separa o arremesso se reciprocamente nesse esforço. Criam-se assim as condições -
do dardo do tiro do fuzil. Imensa é também a diferença propícias para que o Estado se sobreponha à sociedade, im-
entre uma sociedade escravocrata em estagnação técnica como pondo lhe arbitralmente uma solução arbitrária para a crise
a Roma dos césares e a febril dinâmica do desenvolvimento de direção política.
capitalista da França, que, embora atrasada em relação à Argumentar-se-á, à luz das considerações que precedem,
Inglaterra, entrara, no século X I X , em pleno ciclo de revo- que se a especificidade do bonapartismo relativamente ao ce-
lução industrial. sarismo é sobretudo histórica (o bonapartismo seria o cesa-

Uma segunda peculiaridade do paradigma bonapartista


está em ter sido elaborado com referência não ao grande * O excelente (mas não perfeito) Dicionário de política editado sob
Napoleão, ao herói carismático, mas ao pequeno, cuja prin- a alta direção de Norberto Bobbio, comete um erro elementar ao afir-
mar, no verbete bonapartismo, que para "os marxistas ortodoxos, a
cipal qualidade era ser portador do prestigioso sobrenome do definição de bonapartismo apresentada por Marx e Engels tornou-se...
tio — Bonaparte — e ainda assim, como observa maldosa- o principal fundamento teórico da interpretação marxista do fascismo"
mente Marx, graças ao dispositivo do Código Civil promul- (grifado no original). Embora a expressão "marxismo ortodoxo" apre-
sente mais dificuldades do que parece supor o autor do verbete, se
gado pelo grande Napoleão, que proibia a investigação da for para empregá-la, então não há dúvida de que não houve na Itália
paternidade.^ Na terminologia de Gramsci, o bonapartismo representante mais autorizado daquela ortodoxia, pelo menos até os
anos 50, do que Palmiro Togliatti, o maior dirigente comunista ita-
liano depois de Gramsci, além de dirigente do Komintern. Ora, em
suas Oito lições sobre o fascismo, proferidas em janeiro-abril 1935 em
3 Marx faz esta pérfida observação no sétimo e último capítulo de
Moscou, Togliatti parte da "definição a mais completa do fascismo",
O /S Brumário de Luis Bonaparte. Na versão francesa das Éditions
elaborada pelo X I I I Plenum do Komintern: "O fascismo é uma dita-
Sociales, Paris, 1968, a passagem em questão se encontra na p. 127.
dura terrorista aberta dos elementos mais reacionários, mais chauvi-
Pérfida, mas verdadeira: Luís Bonaparte, rei de Holanda, irmão mais
nistas e mais imperialistas do capital financeiro". Embora ele próprio
moço do grande Napoleão, e pai putativo de Luís Napoleão, aliás,
se encarregue de mostrar que a definição "ortodoxa" está longe de
Napoleão I I I , assim se refere à sua mulher Hortense, mãe do futuro
ser completa (ao observar que "o termo fascismo é freqiientemente
imperador, em carta enviada ao papa Gregório X V I : "Casei-me com
empregado de maneira imprecisa, como sinónimo de reação, terror etc",
uma Messalina que está dando à luz." (Octave Aubry, em seu Le se-
o que "não é justo", porque o "fascismo não significa somente a luta
cond empi<-e, simpático ao imperador, mas respeitoso da verdade his-
contra a democracia burguesa"; devemos empregar o termo "somente
tórica, menciona este e outros fatos que praticamente não deixam dú-
quando a luta contra a classe operária se desenvolve sobre uma nova
vidas sobre a falta de base biológica para a pretensão de Napoleão I I I
base de massas de caráter pequeno-burguês, como vemos na Alemanha,
de ser sobrinho do grande Napoleão; cf. op. cit.. Paris, 1938, pp. 10-11.)

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rismo moderno, apoiado na iiipertrofiada máquina estatal fran- "ioWo^M^T Progressivo ou regressivo, o bonapartismo não abriu ca-r
cesa), o mesmo não se pode dizer da especificidade de seu v"»^^^í^> minho para o pretorianismo. A autonomização do Estado não ^^^^^^^^
caráter regressivo, já que, durante a mesma época (a França conduziu, nem sob o grande, nem sob o pequeno Napoleão, ^ ^ ^ ^ . ^ .
do século X I X ) ele apresentou, com o grande Napoleão, ca- ft/jfF**j^à autonomização da força militar. A despeito — ou talvez
ráter progressivo. Do fato de que Marx e todos aqueles que ivecS> por causa — de suas excepcionais qualidades de chefe de^^ ti^mà^
se inspiraram nas análises do Í S Brumário de Luís Bonaparte, guerra, o primeiro Bonaparte manteve os exércitos franceses ' ' ^ o »
se refiram à forma regressiva do bonapartismo, não se infere, voltados exclusivamente para as atividades bélicas. Tanto mais c^^^j^^ji,.
com efeito, que não se deva levar em conta sua forma pro- que as guerras sucessivas que travaram contra as velhas mo- ^j-**^»^
gressiva. Mesmo porque é o conteúdo social e político da narquias europeias absorveram inteiramente os militares e exal- "^^"^^^
"solução bonapartista" à crise de hegemonia que determina taram, mesmo quando a sorte das armas voltou-se contra o o--^^
seu caráter progressivo ou regressivo. O regime do primeiro imperador, seu prestígio carismático até a idolatria.
Bonaparte foi progressivo porque, assumindo o poder no re- Embora tendo rapidamente desgastado o carisma que to-
fluxo 4a Revolução, consolidou juridicamente (com o Código mara emprestado ao tio, o pequeno Napoleão exerceu seus
Napoleftè) as conquistas camponesas e burguesas da fase poderes imperiais sem conceder qualquer autonomia à corpo-
ração militar. Como o tio, foi derrubado do poder após so-
ascendente do processo revolucionário. O de Luís Bonaparte
frer uma derrota decisiva no campo de batalha, face a forças
foi regressivo porque se serviu do poder discricionário do Es-
estrangeiras invadindo o território francês. Parece razoável
tado não para consolidar novas conquistas sociais, mas para
supor que, mesmo sem a desastrosa guerra franco-prussianaj^
conservar pela força uma ordem social em crise. o regime de Luís Bonaparte já tinha seus dias contados. É ^c.^
curiosa, neste aspecto, a analogia entre sua evolução e a da
ditadura militar brasileira. Sob Luís Bonaparte, realizaram-se
na França, na Inglaterra, em toda parte onde existe um fascismo típi-
co"). Togliatti deixa muito claro o ponto que lhe parece essencial na três eleições legislativas. Na primeira, em 1857, os partida- ' i~
"ortodoxia" do Komintern: "tomem cuidado", diz ele a seus ouvintes, rios do imperador (como os da ditadura nas eleições legis-
"quando ouvirem falar do fascismo como um bonapartismo. Esta afir- lativas de 1970), obtiveram esmagadora maioria (5.471.000 yo-\,-,t.-i^t^
mação, que é o cavalo de batalha do trotsquismo, foi extraída de certas tos contra 665.000 para a oposição republicana). Na segunda,
afirmações de Marx... e de Engels (cujas análises), boas para o tempo em 1863, os votos da oposição quadruplicaram (cerca de 2 ^''^^•^
deles... tornam-se falsas quando aplicadas mecanicamente nos dias
milhões). Na terceira, em 1869, os candidatos do regime obti-
de hoje, no período do imperialismo". Significativamente, a recusa
de aproximar o fascismo do bonapartismõTõi explicitamente ligada veram 4.438.000 votos e os da oposição, 3.355.000. Neste
-to"»»-
por Togliatti à questão da autonomia do Estado. A conseqiiência da ritmo, os partidários do império seriam certamente derrotados
definição do fascismo como bonapartismo, argumenta, é a de que então nas eleições seguintes. Situação análoga à da A R E N A após
"não é a burguesia quem comanda, mas Mussolini, mas os generais que as eleições de 1978. Com duas diferenças: graças à ab-rogação
arrancarão o poder mesmo à burguesia". Resumindo: se o fascismo do A I - 5 e à reforma partidária, o P D S conseguiu adiar, em
é um bonapartismo, como o bonapartismo é uma autonomização do
1982, o apodrecimento da massa falida da A R E N A enquanto,
Estado, o fascismo também o seria e, portanto, seus chefes não seriam
agentes da ditadura terrorista do capital financeiro, contrariando a de- na França, Napoleão I I I perdeu a coroa ao capitular diante de
finição do X I I I Plenum do Komintern. Portanto, o fascismo não é Bismarck e do Kaiser em 2 de setembro de 1870, frustrando
um bonapartismo... Ou então a definição do X I I I Plenum não era assim o corpo eleitoral francês, que sem dúvida iria infringir-
boa, hipótese com a qual Togliatti não estava trabalhando... Utilizamos Ihe uma derrota decisiva nas eleições previstas para 1873. _j
o texto completo das lições de Togliatti, publicadas em Rechercties
internationales à la lumière du marxisme, n.° 68 (3.° trimestre de 1971), Para a historiografia, que lida com fatos e não com
Le jascisme italien, huit leçons de Palmiro TogliaUi. tendências abortadas, a evolução liberalizante do bonapartismo

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decadente não passa de uma hipótese não-verifiçada. Para a tendência à retomada do controle do Estado pela sociedade
se manifesta nas formas regressivas do poder imperial (os
teoria poh'tica, no entanto, constitui uma das tendências pos-
dois exemplos de cesarismo regressivo mencionados por Gramsci
T ^ ^ u í , síveis da evolução dos regimes baseados na autonomização
são Napoleão I I I e Bismarck) e não nas formas progressivas.
/^^vvc^i^do Estado, quando desaparece o elemento carismático de que
Mas o paradoxo é apenas aparente. O u melhor, só há para-
^ u » ' l w ^ s e achava revestido o detentor do poder supremo. Vimos que
doxo para a ingénua dogmática liberal que se recusa a admi-
em Roma manifestou-se outra tendência, a degenerescência tir que o progresso político-institucional possa provir de um
pretoriana do poder imperial. A partir, portanto, de uma (^^o^^t.,,^ poder estatal discricionário. O cesarismo progressivo resolve^.lso^.
mesma situação política, de crise de hegemonia, a "solução ^ "pelo alto" a crise de hegemonia criando novas instituições
cesarista" conduziu a desdobramentos institucionais o p o s t o s , ^ ^ ^ ^ que tornam compatíveis os interesses sociais em choque. Assim,
na sua versão romana original e na sua versão francesa mo- ós primeiros césares puseram fim ao secular enfrentamento dos
derna: naquele caso, militarização do poder imperial; neste, patrícios e dos plebeus; assim ^Napoleão I consolidou jurídica
gradual retomada do controle social sobre o Estado. e politicamente as conquistas camponesas da Revolução Fran-
cesa, compatibilizando-as não apenas com a ordem burguesa,
Levar-nos-ia muito longe examinar porque, nas condições
mas também, em certa medida, com os dois estamentos privi-
históricas da Roma imperial, não se verificou nenhuma ten-
legiados contra os quais se fizera a Revolução: a nobreza
dência notável no sentido do retorno às instituições republi-
e a hierarquia católica. Ao passo que o cesarismo regressivo ^
canas. O princípio da explicação está, se aceitarmos a hipó-
se limita a mudar a jorma do governo para preservar pela t
tese de Gramsci, no caráter progressivo do poder político ins-
força os interesses constituídos que a crise de hegemonia co-
taurado pelos primeiros césares, que promoveram a "passa-
locara em questão. Portanto, não resolve as contradições que
gem de um tipo de Estado a um novo tipo", historicamente
mais avançado.' A despeito da degenerescência pretoriana do i{ haviam provocado a crise: impede-as temporariamente (o tempo
poder imperial (contrabalançada, a partir do fim do século I , que dura a eficácia de seu carisma) de se manifestar.
pela reativação do cesarismo progressivo com a chamada di- A "liberalização" consequente ao desgaste do carisma im-
nastia dos Antoninos), as instituições do Estado imperial^ com perial exprime, portanto, no essencial, o fracasso político e
sua vocação cosmopolita, sua concepção cada vez mais abran- institucional do cesarismo regressivo. Nesse sentido, quaisquer
gente da cidadania (concluindo uma longa evolução, um edito que sejam as qualidades pessoais do césar, seu papel histó-
do imperador Caracalla, em 212, conferiu a cidadania romana rico é o de um falso herói, de um chefe pseudoprovidencial.
a todos os habitantes do Império) e sua permeabilidade às
Tanto o medíocre Napoleão I I I quanto o talentoso Bismarck,
grandes tendências intelectuais e culturais expressas notada-
tanto o vencido quanto o vencedor da guerra franco-prussiana,
mente na filosofia helenística e no cristianismo nascente, aca-
deixaram como legado uma sociedade tão dilacerada quanto
baram recebendo deste último, com a conversão do imperador
a que haviam encontrado ao chegar ao poder. Na França, a
Constantino, uma nova legitimidade, em nome da qual, des-
primeira tarefa dos chefes "liberais" que assumiram o governo
truídas no Ocidente pelas invasões bárbaras, iriam sobreviver
após a abdicação de Napoleão I I I foi massacrar a Comuna
mais mil anos no Oriente bizantino.
de Paris. Na Alemanha, a modernização conservadora sob a
Embora sumaríssima, esta comparação entre a evolução hegemonia prussiana, isto é, do militarismo aristocrático dos
política das matrizes históricas do cesarismo e do bonapar- junkers constituiu, na opinião dos melhores historiógrafos e
tismo conduz a uma conclusão aparentemente paradoxal. A analistas políticos, o antecedente histórico decisivo da menta-
lidade belicista dos círculos dirigentes do Reich imperial, que
levou à hecatombe de 1914-1918. e da fúria genocida dos^
Gramsci, ibidem, pp. 86-87.

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chefes do I I I Reich nazista, que levou à ainda mais catastró- a preservação dos privilégios do capital passa a depender "da
fica hecatombe de 1939-1945.' fraqueza relativa da força progressiva antagonista" (isto é, a
classe operária); conservar esta fraqueza é, para os capita-
listas, conservar as condições de sua dominação de classe.
2. Fascismo e crise de hegemonia: a dinâmica da Quando não mais conseguem conservar sua dominação por
contra-revolução no século XX métodos políticos legais, quando o poder do dinheiro já não
basta para manter o dinheiro no poder, no "equilíbrio de
Não há de ser supérfluo lembrar que para um teórico forças de perspectiva catastrófica" que se instaura, o cesa-
marxista — e dirigente comunista — como Gramsci.a lógica rismo tem como objetivo restabelecer pela força as posições
da acumulação capitalista e a lógica da planificação socialista de força do capital: por isso, conclui Gramsci, "o cesarismo
são historicamente irreconciliáveis. Opinião, de resto, parti- moderno, mais do que militar, é policial".' Entendemos: está
lhada pelos ideólogos do capital — aliás da "livre empresa". mais voltado para a repressão interna do que para a ex-
A diferença é que estes sustentam que a propriedade pri- pansão externa.
vada dos grandes meios sociais de produção corresponde n ã o Sabia-o Gramsci melhor do que ninguém, como dirigente
somente aos interesses dos capitalistas, mas também aos dos do partido revolucionário da classe operária italiana, subme-
operários, enquanto para Gramsci — e para o pensamento tida, após a grande ofensiva sindical e política de 1919-1920,
socialista em geral — a emancipação dos operários passa pela ao poder terrorista da primeira versão histórica do cesarismo
propriedade social dos meios sociais de produção. policial moderno, o fascismo mussoliniano. Morto num cár-
Os argumentos deste debate secular e planetário são sobe- cere fascista antes do desencadeamento da Segunda Guerra
jamente conhecidos, embora neste domínio, mais do que em Mundial, Gramsci, ao enfatizar o caráter policial do cesarismo
qualquer outro, a "neutralidade científica", invocada por to- mussoliniano, tinha em vista a primeira fase daquele regime,
dos, não seja monopólio de ninguém. De qualquer modo, o durante o qual o duce absteve-se de iniciativas bélicas, con-
importante, para nós, é que o caráter historicamente irrecon- sagrando-se inteiramente à consolidação política e institucional
ciliável da contradição entre o capital e o trabalho constitui de sua ditadura contra-revolucionária apoiada em ampla mo-
o pressuposto teórico da concepção de Gramsci sobre o cesa- bilização reacionária de massas. O expansionismo colonialista
rismo do século X X . Na medida em que esta contradição se e o belicismo viriam mais tarde, ao longo dos anos 30,
torna preponderante nas sociedades capitalistas desenvolvidas. com a conquista da Etiópia e da Albânia e a intervenção ma-
ciça a favor da sublevação militar-fascista na Espanha.

* William Shirer em seu clássico The rise and fali of the Third Reich Ê extremamente importante notar, na perspectiva compa-
consagrou um capítulo ao "pensamento de Hitler e as raízes do I I I rativa que adotamos, que, em sua fase ascendente, o fas-
Reich", no qual lembra a fórmula de Mirabeau: "a Prússia não é um cismo se apresentou como um processo de ocupação do Es-
Estado com um Exército, mas um Exército com um Estado". Quanto tado de fora para dentro. Tendo como método a violência,
ao junker, "foi um tipo humano rude, autoritário e arrogante, inculto,
agressivo, duro, bitolado, orgulhoso, animado de avidez carregada de como ideia a unidade nacional na desigualdade social e como
mesquinharia"... "Otto von Bismarck foi o mais completo dos junkers cimento o carisma do chefe, o fascismo, como o nazismo uma
e aquele que mais deu certo" Shirer, ib., pp. 108-109 (citamos da década mais tarde, chegou ao poder através de um movimento
versão francesa integral e completa em um volume. Stock, 1967. A contra-revolucionário de massas enquadrado por formações mi-
versão original foi publicada em Nova Iorque em 1960). No plano
litarizadas (os arditi na Itália, as S A e SS na Alemanha), que
analítico, a referência indispensável é o clássico Social origins of dic-
tatorship and democracy de Barrington Moore, notadamente os três
capítulos finais ("Revolution from above and fascism", "The peasants
and revolution" e "Reactionary and revolutionary imagery"). ' Gramsci, ibidem, p. 87.

20 21
se encarregaram da tarefa que a classe dominante não conse- fluxo da grande revolução russa de outubro de 1917, sacudiu
guira realizar pelos métodos políticos e coercitivos legais: des- a Europa quando ainda ardiam as chamas da guerra, anun-
truir pela intimidação e pelo terrorismo em larga escala os ciando lhe o fim: para desespero dos oficiais e dos estados-
partidos e sindicatos operários, enterrando (sob o olhar "com- maiores, que queriam prolongar a carnificina, os soldados con-
preensivo" e com a colaboração discreta dos grandes indus- fraternizavam no front russo-alemão, voltando as armas con-
triais, dos latifundiários, das cúpulas burocráticas) o parla- tra seus opressores de sempre. E m Berlim a Comuna foi pro-
mentarismo e as demais instituições jurídico-políticas da or- ' clamada e logo massacrada pelos remanescentes do Exército
dem liberal burguesa. MussoHni e Hitler não tomaram o p o d e r : - y j L W ? imperial (agora sob as ordens de um governo provisório so-
foram cooptados por um poder em crise para salvá-lo pelos ck (^"^^ cial-democrata de direita). Na Itália do Norte, durante o "bié-
métodos do cesarismo policial. A Marcha sobre Roma foi u m i ^ c^uj^ló nio vermelho", os operários haviam mostrado que não neces-
desfile triunfal que valeu a Mussolini o convite do rei Vittorio sitavam dos capitalistas para dirigir a produção: suprema
Emanuele H l para formar um novo gabinete, logo transfor- insolência que os milionários ansiavam por castigar. Com-
mado em ditadura discricionária do duce. Uma década mais preende-se que tenham recebido Mussolini de braços abertos.
tarde, Hitler foi nomeado chanceler do Reich pelo marechal Na Alemanha, a solução contra-revolucionária final interveio
Hindenburg, presidente da moribunda República de Weimar. uma década mais tarde, quando, para os junkers^ para os
Uma vez instalados no poder, o duce e mais tarde o grandes industriais, tornara-se evidente que, sob as institui-
'5»v.ucfo Fiihrer, assumiram, com seus métodos peculiares, o controle ções liberal-parlamentares da República de Weimar, os par-
T(tí.von<;i^r-completo do aparelho estatal (polícia. Forças Armadas, admi- tidos operários, notadamente o comunista, fortaleciam-se or-
!)-vcnisc^ nistração dos serviços públicos. Economia, Educação, Cul- gânica e politicamente. Cumpria combatê-los com "novos mé-
sóT/- adaptando-o à "solução" terrorista da crise de VA\^ todos". Para tanto, o homem providencial era Adolf Hitler,
WIIV l/v c r ^ - _ ^ ^ ./í^
b problema é que os métodos hitlerianos mostraram-se me-
íiTivns<t<^ hegemonia do capitalismo liberal. Nesse sentido, contraria- ^'^J^^O^'''
lhores ainda que os mussolinianos: realmente ótimos. E m três
tMMUX-"' mente ao cesarismo histórico e ao bonapartismo, o fascismo iV^^^
anos (1933-1935) a SS e a Gestapo aniquilaram o Partido
e o nazismo, exatamente por terem organizado fora do apa-
Comunista da Alemanha (até então o mais forte do mundo,
relho estatal a contra-revolução policialesca, não configuraram,
um processo de autonomização do Estado. Ocuparam-no da depois do soviético) e as demais organizações operárias e
cúpula à base, ao mesmo tempo que mantinham e ampliavam democráticas, assassinando seus principais dirigentes e conde-
as funções paraestatais do partido e de suas formações mili- nando os outros a morrer lentamente nos campos de concen-
tarizadasyínotadamente na Alemanha nazista, onde a SS, tropa tração. Com a crise de hegemonia burguesa assim radical-
de choque do terror contra-revolucionário, exerceu, até os es- mente superada, Hitler, com Mussolini a reboque, lançou-se
tertores do regime, entre outras sórdidas funções, a de guarda fundo em seus projetos teratológicos de hegemonia planetária,
pretoriana do Fiihrer. que iriam desembocar na Segunda Guerra Mundial. O terro-
rismo nazi-fascista passou então de sua fase predominante-
t2?o:i>o ° ^ inimigo do bom. Os grandes interesses finan-
mente policial à fase predominantemente militar. A perversa
T>t> ceiros, industriais e agrários da Itália e da Alemanha do
^Autí» primeiro pós-guerra mundial, responsáveis em grande parte euforia dos primeiros triunfos bélicos do eixo Berlim-Roma
í i ' V ò ' pelo envolvimento de seus países respectivos numa confla- acentuou mais ainda o cesarismo dos dois regimes: mais do
gração tão inútil quão mortífera (cujo saldo incluía milhões que nunca, o Fiihrer e o duce se erigiram em chefes militares
de mortos e outros tantos feridos e mutilados, destruição, despóticos. Hitler, notadamente, dirigia pessoalmente o Estado-
desemprego, crise profunda dos valores liberais), haviam so- Maior alemão bem como as operações de genocídio da S S .
frido mortal ameaça com a vaga revolucionária que, ao in- Significativamente, no entanto, quando, graças sobretudo à

22 23
heróica resistência soviética ao assalto das hordas nazistas, materiais de combustão (no sentido figurado e literal da ex-
a sorte das armas virou, ocorreram tentativas — tardias — pressão): primeiro os comunistas, depois os social-democratas,
de transformar o cesarismo nazi-fascista em ditadura preto- depois os judeus. . . Sem o contínuo incêndio do terrorismo
riana. Na Itália, o grande conselho fascista depôs Mussolini reacionário, desgastar-se-ia o abjeto carisma do Fuhrer. Por
em 1943, substituindo-o pelo marechal Badoglio. Na Alema- mais eficaz que fosse a mise en scène de histeria coletiva da
nha, em 1944, um grupo de generais organizou um atentado propaganda hitleriana, ela não podia se alimentar somente
para matar Hitler e negociar a paz com os Estados Unidos. com discursos e desfiles militares. O projeto infame de escra-
vizar as "raças inferiores" trazia a solução para os problemas
A aniquiladora derrota militar sofrida pelo nazi-fascismo
crónicos do capitalismo: desemprego (absorvido pelo recruta-
não deve fazer esquecer de que, no plano interno, enquanto
mento militar), recessão (suprimida pela produção bélica),
supressão terrorista da luta dos trabalhadores contra a explo-
anarquia da produção (superada pelo enquadramento dos trus-
ração capitalista, o cesarismo policial, forma historicamente
tes e cartéis nos Reichsgruppen, os quais, por sua vez, se
a mais degenerada do cesarismo regressivo, "deu certo", no-
articulavam na câmara de economia do Reich) etc. A guerra,
tadamente na Alemanha, cujo povo foi acorrentado mental e
como se vê, constituiu a condição necessária à preservação
fisicamente ao abjeto programa hitleriano de colonização ra-
do carisma do chefe providencial. O sistema nazista de cor-
cial do planeta, a ponto de se tomar incapaz de oferecer, até
porativização estatal do capitalismo de monopólio só era viá-
a catástrofe final, resistência séria ao louco furioso que incen-
vel como economia de guerra. A passagem do cesarismo de
diava o planeta e massacrava povos inteiros. (O mesmo não
repressão política para o cesarismo de guerra total estava,
ocorreu na Itália, onde a resistência dos partisan, animada
portanto, inscrita na lógica do sistema. Felizmente para o
pelo Partido Comunista italiano, foi o fator decisivo que im-
destino do género humano, o nazismo foi aniquilado na guerra
pediu, em 1943, o sucesso da tentativa de reconversão da
de aniquilação que desencadeou.
ditadura fascista em ditadura militar com o marechal Badoglio
e, em 1946, a tentativa de manter a monarquia reacionária.) Extirpado da sociedade humana o tecido canceroso doT5iM«iA^-^
Do ponto de vista dos magnatas da alta finança e da nazi-fascismo hítlero-mussoliniano, a contra-revolução de nossa^»^^^%
grande indústria, bem como da casta latifundiário-militar dos época não mais assumiu as mesmas formas extremas de cesa-^J*^-
junkers, a aplicação, pelo terrorismo hitleriano, do princípio rismo policial-terrorista, mesmo porque, na correlação i n t e r - ^ ^ Í U J U O
corporativista de que a nação é uma totalidade orgânica com- nacional de forças instaurada no término da Segunda Guerra
posta de categorias hierarquicamente articuladas, cuja comple- Mundial, não havia mais lugar para as catastróficas aventuras
mentaridade, indispensável à realização dos objetivos nacio- de colonização planetária que haviam alimentado o carisma do
nais permanentes (no caso, do I I I Reich) estava ameaçada Fuhrer e do duce. A estabilização social de longo termo que
conheceu, no segundo pós-guerra, o capitalismo liberar euro- -'7
pelos "inimigos internos" que pregavam a discórdia entre
ricos e pobres, entre o capital e o trabalho, entre os mono- peu, onde a política dita do welfare state trouxe aos trabalha-
polizadores da terra e os camponeses sem terra, não se re- dores precárias mas reais satisfações materiais, deslocou para
velou uma boa solução histórica, exatamente por ter sido o "terceiro mundo" e notadamente para o chamado "capita-
uma ótima solução conjuntural na Alemanha dos anos 30. lismo tardio" da América Latina a crise de hegemonia de
É que, ao influxo de uma perversa dialética, cujos desdo- uma dominação burguesa desprovida de conteúdo democrático
bramentos Gramsci não viveu o suficiente para presenciar, (porque associada à oligarquia latifundiária e subordinada aos
o caráter essencialmente policial do cesarismo contemporâneo conglomerados agro-industriais e financeiros imperialistas). A
(isto é, o culto fanático do chefe e o ódio patológico ao estabilização social colocou-se antes de mais nada, nestas con-
"inimigo i n t e r n o ^ necessitava, como todo incêndio, de novos dições, como uma questão de polícia, isto é, de repressão

24 25
dos movimentos reivindicatórios e políticos dos trabalhadores. tendem a ofuscar os elementos profundos de identidade da \
Nas circunstâncias que conduziram à instauração de governos dinâmica contra-revolucionária engendrada pela crise de hege-
favoráveis a reformas sociais, ainda que tímidas, como no monia das sociedades burguesas de fraco ou nulo conteúdo
Brasil de João Goulart e, a fortiori, quando profundas, como democrático.
no Chile de Salvador Allende, a reação conservadora logo Do mesmo modo como os naturalistas provam o paren-
mo^mUVIVA sentir, combinando agressiva mobilização das forças tesco entre duas espécies descobrindo uma terceira espécie
^ t pcç^c. contra-revolucionárias da sociedade civil (como ocorrera na morfologicamente intermediária, elo biológico entre ambas, o
(iCíA^A, Cí).génese do nazi-fascismo) ao golpe desfechado pelas Forças analista político porá em evidência a afinidade entre o "cesa-
í^'' ^ Armadas. Como é notório, no entanto, a especificidade daivrMPPí- rismo policial" e a ditadura militar através de um exemplo
^^"'^^^^ contra-revolução latino-americana está no papel dirigente assu-^-''^^'*^'^'' historicamente significativo de um processo contra-revolucio-
mido pelas cúpulas militares e, portanto, na instauração de ce^jM^i^.^ nário onde se combinam os traços essenciais daquelas duas
uma ditadura de caráter burocrático (e não na de um "cesa- ^ ^ S L X C I Í X , formas distintas da contra-revolução contemporânea. O exem-
rismo policial"). Para ficarmos nos dois exemplos citados plo existe e nos é culturalmente próximo: a tragédia espa-
acima, foi extremamente importante a mobilização reacioná- nhola de 1936-1939.
ria que precedeu o golpe militar: a Marcha da Família com E m fevereiro de 1936, a Frente Popular, aliança de
Deus pela Liberdade, as articulações golpistas da oligarquia partidos da pequena-burguesia democrática e da classe ope-
latifundiária e do patronato e a frenética campanha anti-reforma rária, venceu as eleições e formou um governo comprometido
agrária da Igreja Católica de então' no Brasil; a histeria anti- com reformas sociais profundas. E m julho do mesmo ano,
Unidade Popular que tomou conta da massa da burguesia desencadeou-se um golpe militar reacionário apoiado pelos
chilena e infectou inclusive um partido centrista como a partidos de direita derrotados nas urnas, dentre os quais a
democracia-cristã, além da direita (Partido Nacional) e da Falange fascista e os carlistas, monarquistas tradicionalistas
extrema-direita (Patria y Libertad), no Chile. Mas, vitorioso com forte implantação rural na Navarra, que dispunham de
o golpe, os militares guardaram para si o controle das ala- formações paramilitares. Desfechado com uma fúria sangui-
vancas decisivas da máquina estatal. nária que chocou profundamente os observadores estrangeiros
p A divergência das vias da contra-revolução latino-ameri- (unânimes a este respeito), o golpe fracassou na maior parte
cana relativamente às europeias pode sugerir que se trate do país: vencendo as hesitações do governo, os sindicatos
de processos políticos substancialmente diferentes. As diferen- e os partidos operários se armaram e enfrentaram vitorio-
ças são, sem dúvida, importantes e a elas voltaremos, ao samente os militares golpistas na maior parte do país, nota-
analisar, no próximo item, a ocupação militar do Estado na damente nos grandes centros industriais como Madri e Bar-
América Latina e particularmente no Brasil. Parece nos, no celona. E m poucos dias, a sedição militar-fascista se v i u redu-
entanto, que exatamente por serem óbvias, essas diferenças zida a dois setores, um ao norte, em torno de Burgos (onde
um dos chefes golpistas, o general Mola, instalara seu co-
mando), outro ao sul, onde o general Queipo de Llano se
* O principal trabalho historiográfico sobre a questão é o conhecido apoderara de Sevilha, Córdoba e Granada (assassinando m i - ^ è ^ ^ "
1964: a conquista do Estado de René Dreifuss. A denúncia mais acerba
lhares de trabalhadores, numa sinistra prefiguração dos mas- \
dos métodos da contra-revolução está nos dois escritos de Paulo Schilling,
Brasil para extranjeros e Brasil de los latifundiários, publicados em sacres que ocorreriam em seguida).
Montevideu (o primeiro sem data, o segundo em 1968). Leitura indis-
O essencial das forças sediciosas se encontravai^, no en-
pensável sobre o tema continua sendo o ensaio "Cultura e política,
1964-1969" de Roberto Schwarz, escrito em Paris em 1969-1970 e inse- tanto, em território africano, no Marrocos espanhol, às ordens
rido em O pai de família e outros estudos, 1978. do general Franco. Compunham-se de tropas coloniais, inclu-

26 27
V ^ ^ M , —-> juVJu^- M > J l ^ l^íC:^-

sive legionários, e de contingentes marroquinos, recrutados nas se manter livre, realizou-os por meios diferentes daqueles uti-
camadas mais atrasadas das regiões sob "protetorado" espanhol. lizados por seus protetores alemães e italianos, isto é, por
Mercenários aguerridos, sedentos de pilhagem, bem treinados meios diretamente militares e não pelo terrorismo político
e equipados, os moros de Franco, se fizessem junção com as de um movimento reacionário de massas. Por isso o fran-
tropas de Queipo de Llano na Andaluzia poderiam devolver quismo foi, antes de mais nada, uma ditadura militaTTMas '^)^^'«
ao campo fascista a iniciativa. O problema era fazê-los atra- foi também uma ditadura fascista. A cruzada reacionária U*VÍ^

vessar o estreito de Gibraltar. A maioria dos navios de guerra que assassinara a República pretendia banir para sempre os ' ^ ^ ' ^
espanhóis, graças à vigilância democrática dos marinheiros e princípios democráticos e até liberais de solo espanhol. F f a '->^y^^
dos suboficiais, permanecera com a República, bem como boa preciso, como disse o general Yague ao entrar em Barce- ^^"^"^
parte da Força Aérea (a única arma onde os oficiais, em lona, curar aquele povo enfermo, que havia ousado querer'^ ^^j^^
sua maioria, recusaram-se a participar do golpe). Nessa hora governar-se a si próprio. Contrariamente, pois, ao que o c o r - ^ ' ^ ^
difícil, Hitler e Mussolini tiraram Franco do impasse. Já em reu no Brasil_de 1964 a 1985, onde a ditadura militar @ )
29 de julho, menos de duas semanas depois de desfechado s ; ^ , ^ _ ( ^ m i u n a ^ r á t l ç g , as instituições políticas do capitalismo l i - _
o golpe, a aviação alemã pôs em funcionamento uma ponte- b S ã I 7 mas nunca as renegou abertamente no plano dos prin- T'j2i,'^oXl.'
aérea entre Tetuã (Marrocos) e os aeroportos andaluzes de" cípios, na Espanha o princípio fascista de autoridade absoluta
Sevilha e de Jerez. E m dois meses, numa ofensiva fulminante do chefe foi abertamente assumido. Ungido "generalíssimo" e
acompanhada das piores atrocidades contra os defensores da "caudillo de Espana", Franco colocou-se acima das Forças v-^S^"-
República (em Badajoz correram literalmente rios de sangue; Armadas, ao passo que^ no Brasil, os generais-presidentes fo- i^^^S!"*^^
em Toledo, mais "higiénicos", os fascistas realizaram suas ram sempre delegados da cúpula militar. ^->Wlw^
rotineiras execuções em massa à beira da fossa comum), as Por outro lado, entretanto, o caudillo jamais dispôs do >^^^J*^"
tropas coloniais de Franco chegaram às portas de Madri. prestígio carismático do duce e do Fuhrer. Na paz dos cemi-
térios sobre a qual se assentou, o regime franquista, apoiando-
O heroísmo dos milicianos e do povo madrilheno barrou- se principalmente no aparelho militar e secundariamente nos
Ihes o caminho. Graças sobretudo ao incansável e lúcido partidos fascistas (Falange, carlistas), assumiu a híbrida con-
esforço de organização do Partido Comunista, criara-se rapi- figuração de um cesarismo regressivo sem carisma e de uma
áãmenté um exército popular em torno do célebre Quinto Regi- ditadura burocrática do aparelho de Estado autonomizado.
mento de milicianos, comandado pelo legendário Enrique Lister. Mais esperto que o Fiihrer e o duce, o caudillo não quis ser
Durante dois anos e meio, a guerra se estabilizou: foi com ótimo: contentou-se com ser bom para a causa reacionária.
o auxílio maciço e ostensivo do eixo nazi-fascista e com o Evitou — numa evidente ingratidão histórica — entrar na
auxílio hipócrita e envergonhado dos Estados Unidos (oficial- Segunda Guerra Mundial ao lado de seus amigos, a cuja der-
mente neutros, mas fornecendo, através de seus trustes petro- rota, portanto, pôde sobreviver. Com a Guerra Fria, tornou-se
leiros, o carburante necessário ao avanço de suas colunas fiel aliado dos Estados Unidos, mantendo-se até morrer como
motorizadas) bem como da Inglaterra e da França (que se ditador militar fascista. Um exemplo que, na América Latina,
recusaram a vender armas para a República) que o campo só o Pinochet parece querer imitar.
sedicioso triunfou. Q único país que ajudou a República
foi a União S o v i é t i c ã T l ^ ^ , , a > . . •
Embora inspirada pelos mesmos obejtivos do cesarismo 3. Dimensões e significados da militarização do Estado
policial" de Hitler e de Mussolini, a ditadura de Franco, na
medida em que se instaurou através de uma guerra de con- Embora tenha havido, inclusive em períodos recentes,
quista contra um povo que derramou torrentes de sangue para muitos exemplos de ditadura e, mais genericamente, de inter-

28 29
vencionismo militar no continente europeu (além da Espanha, nowitz e a do argentino José Nun correspondem ao que
que gemeu quatro décadas sob a bota do general Franco, da Gramsci chamou o "cesarismo sem césar". Não por acaso, ,(W<^
ditadura títere do marechal Pétain, na França, ocupada pelos a construção teórica dos dois autores remonta aos AXM^
nazistas, e a "ditadura dos coronéis" instaurada na Grécia A de Janowitz se apoia na análise das "novas nações" d a ^ » » ^ ^ ^ - "
em 1967 e derrubada após um fiasco militar face à Turquia, África e da Ásia. A de Nun se inspira na anáHse das m e s - * ^
como o seria a ditadura argentina após o desastre das Malvinas mas nações para propor uma interpretação do controle mi- J ^ ' ^ ^ ? ^
face à Inglaterra, convém lembrar que boa parte da Europa litar sobre o Estado na América Latina em termos de solução
oriental, notadamente a Polónia e a Hungria, viveu sob dita- golpista da classe média à "crise hegemónica"." Comum a
duras militares fascistóides durante o período compreendido ambas é afirmar o caráter progressivo das funções políticas
entre o término da Primeira Guerra Mundial e a derrocada assumidas pelos militares, que teriam preenchido um vazio "^^OJU-tú>'-*
do eixo nazi-fascista), o controle militar sobre o Estado cons- institucional: nas "novas nações" afro-asiáticas, as Forças A r -
titui, em nossa época, um traço característico dos países ditos madas, "desde sua criação" (pela metrópole colonial) repre-
do "terceiro mundo". E m 1970, 43 desses países estavam sentam uma "intelligentzia de uniforme"; "no seio de uma
submetidos a regimes militares contra 40 que não estavam.' sociedade tradicional", acrescenta José Nun, o Exército "cons-
Classificações desse género são sempre contestáveis, porque titui uma das raras organizações modernas em estado de fun-
necessariamente sumárias. Mas a importância do fenómeno que cionar".'^ Janowitz também deriva "o mais amplo envolvi-
os anglo-saxões designam como "military rule" faz consenso mento" (dos militares das "novas nações") na "economia do
nos estudos das instituições políticas contemporâneas. O exame país e na mudança social e política", da "fraqueza das insti-
da distribuição geográfica do fenómeno mostra que, do Su- tuições políticas civis".'^
deste Asiático à África Negra, do mundo árabe à América Chamamos a atenção para os limites no tempo e no es-
do Sul, das Filipinas ao Caribe, nenhuma região do "ter- paço das conclusões dos dois autores. No início dos anos 60,
ceiro mundo" (isto é, do mundo que, na era moderna, foi particularmente no mundo árabe e na África Negra, as Forças
economicamente espoliado e politicamente violentado pela ex- Armadas assumiram o poder político solitariamente ou, como
pansão imperialista do capitalismo ocidental) escapou do con- na Síria e no Iraque, em aliança com o grande partido nacio-
trole militar sobre o Estado. Na África Negra, por exemplo, nalista árabe dito Baas. Nestes casos estamos diante do "cesa-
havia, em 1975, 16 regimes militares.'" E m 1976, na América
do Sul ibérica, oito países em dez estavam submetidos a dita-
duras militares. Quando um fenómeno atinge tais proporções, " O texto de José Nun, embora contestável em muitas de suas apre-
ciações, constitui uma das mais brilhantes sínteses históricas sobre as
torna-se supérfluo argumentar para mostrar sua importância.
funções políticas das Forças Armadas que conhecemos. Publicado ini-
Ela é evidente. Q problema está em sua explicação. cialmente em Desarrollo Económico (22-23) de julho-dezembro 1966
Dentre as muitas interpretações que o fenómeno do con- sob o título "America Latina: la crisis hegemónica y el golpe militar",
foi traduzido, com ablação de boa parte das notas, para o francês
trole militar sobre o Estado foi suscitando na medida em que, (Sociologie du Travail, julho-setembro 1967) e para o inglês (publicado,
ao longo das últimas décadas, assumiu proporções planetárias, com o título truncado de "The middle-class military coup" in Veliz,
duas das mais importantes, a do norte-americano Morris Ja- The politics of conformity in Latin America", 1967.
•2 A propósito do "nasserismo", ele vai mais longe, dizendo que no
Egito "o Exército tornou-se, na teoria como na prática, a verdadeira
' Cf. Gavin Kennedy, The military in the Third World, Londres, 1974, ossatura do Estado". C f . , na versão francesa de Sociologie du travail,
p. 311.
p. 45 e S S .
" Morris Janowitz, The military in the politicai development of new
'O Cf. o dossiê publicado pelo Le Monde de Paris, em 12 de março
nations, 1964, pp. 8-9.
de 1975.

30 31
rismo sem césar" a que aludimos acima. E m 1952, entretanto, sentido de Gramsci (criação de um novo tipo de Estado, com-
após uma insurreição popular contra a monarquia corrupta patibilizando forças sociais em conflito não-antagônico e abrindo
e antinacional do rei Faruk, os militares haviam tomado o caminho para as tendências progressistas do movimento his-
poder no Egito. Dentre os oficiais progressistas que haviam tórico). A partir de 1935, no entanto, o impulso progressista
dirigido o golpe, logo sobressaiu a figura do coronel Nasser, aberto pelo combate dos "tenentes" e vitorioso em 1930, des-
sem dúvida o chefe carismático que melhor encarnou, dentro locou-se para a Aliança Nacional Libertadora, portadora de
e fora do Egito, o ideal do renascimento da nação árabe, após um projeto de reformas sociais avançadas. Para contê-la, Vargas
séculos de dominação estrangeira. Reformas económicas e so- recorreu a medidas repressivas e provocadoras, às quais os
ciais sobre um fundo de restauração dos valores culturais de dirigentes da A N L responderam com uma aventura insurre-
um passado glorioso configuraram esta versão progressiva do cional tragicamente fracassada. Vitorioso e mais poderoso do''taj,rc^M-
cesarismo apoiado no aparelho militar, que encontraria em que nunca, o césar acentuou a virada de seu regime no rumo ?
nações emergentes do "terceiro mundo" muitos seguidores, in- do ''cesarismo policial", institucionalizado, dois anos mais tarde, ' ^ ^ . Í - ^ - A ^
clusive o coronel Khadafi. no Estado Novo. Neste vieram se conjugar as duas forças que
Foi ao influxo das mencionadas experiências de interven- naquele mesmo momento ensanguentavam a Espanha em sua
ção militar que José Nun elaborou sua tese sobre o "golpe fúria liberticida: a reação militar e o fascismo. Como na Es-
de Estado hegemónico". Na América Latina dopiinada pelas panha, este último desempenhou um papel secundário no
oligarquias agrárias, o desenvolvimento tardio e atrofiado do processo contra-revolucionário, tendo sido neutralizado após
capitalismo não teria permitido que a "classe média" se trans- a fracassada tentativa de golpe no golpe do canhestro Fuhrer
formasse em "verdadeira burguesia" e portanto se organizasse integralista. Mas a singularidade do destino histórico do cesa- v ? . , ^
politicamente para dirigir a sociedade. Donde o caráter substi- rismo varguista está em sua nova virada, desta vez de sentido ^ ^
tutivo e compensatório do "golpe hegemónico" dos militares progressivo, que o conduziu a fazer do sindicalismo corpora- -xtoM^»*^
anti-oligárquicos, politicamente identificados com as aspira- tivista de Estado sua principal base de apoio político. Evo-
ções da "classe média", da qual constituíam a única fração lúção que não foi aceita pelas cúpulas militares que o haviam
decisivamente organizada." ajudado a instaurar o "Estado Novo". Donde a súbita meta- _
No caso brasileiro, a tese de Nun se aplica claramente morfose liberal dos dois chefes militares que haviam assegu- ^ ' ^ i ; ' ^ ^
ao "tenentismo", mas apenas parcialmente às intervenções mi- rado o apoio do Exército ao golpe fascistóide de 1937: como
litares posteriores. O regime oriundo da Revolução de 1930, o admitirá em suas memórias o general Góes Monteiro, foi
embora se apoiando num Exército comprometido com seus muito mais por temor da mobilização sindical do que por
objetivos essenciais (primado do ponto de vista nacional so- amor às liberdades públicas que virou a casaca contra o césar
bre o regionalismo das oligarquias da República Velha, centra- seu amigo.'' Quanto ao general Dutra, parceiro de Góes Mon-
lização orgânica do aparelho estatal, promoção pelo Estado
\o desenvolvimento industrial etc.) assumiu, na medida em
^C^Cc*^ se consolidou o poder e o prestígio pessoais de Getúlio '5 Lourival Coutinho, O general Góes depõe. Rio de Janeiro, 1955,
pp. 438 e S S . : "Getúlio... falou insistentemente sobre o "affaire" ar-
C^IJ^ÍMJ^ Vargas, o caráter de um "cesarismo progressivo" no estrito gentino, referindo-se com entusiasmo ao poder das massas, e notei que,
nessa ocasião, se achava muito influenciado a este respeito. Pude,
assim, estabelecer um nexo com o que ocorria nas manifestações po-
" José Nun distingue o golpe hegemónico dos militares latino-ameri- pulares ovacionando o Presidente durante os desfiles dos escalões da
canos, que "representam" a classe média, compensando-lhe a incapaci- FEB, quando aqui desembarcavam." O jornalista Lourival Coutinho
dade de se constituir "como classe hegemónica" e o dos militares afro- dirige então a conversa para o ponto que mais o inquietava, pergun-
asiáticos, que agem no lugar de uma classe média "inexistente" (ib., tando a Góes Monteiro como ele reagira quando Getúlio lhe falara
pp. 283-285 e 309-310). no "poder das massas". Disse-Ihe, responde Góes, "que o caso brasi-

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teiro em 1937 e crítico implacável do liberalismo enquanto listas e democráticas, embora minoritárias, eram importantes \ ' a ^ A»,
ministro da Guerra do Estado Novo," a pirueta política que y e, a despeito das perseguições que sofreram," impediram, até U>V>»MJJI
lhe permitiu saltar do barco estadonovista à beira do nau- o golpe de 1964, que a mentalidade reacionária se tornasse ^•^•'^^''^
frágio para a presidência da república liberal, instaurada com um dogma no seio do aparelho militar. t^t^
a deposição de seu amigo Getúlio Vargas, só iria encontrar A crise política que conduziu ao suicídio de Getúlio
^ um paralelo acrobático quarenta anos mais tarde, quando José Vargas em agosto de 1954 reproduziu, no contexto institu-
Sarney, em poucos meses, passou de presidente do partido cional da República liberal, o confronto de 1945: de um
da ditadura militar a presidente da "Nova República". lado a cúpula militar aliada à direita liberal pró-americana,
de outro o "cesarismo progressista" apoiado nos sindicatos. f^tliAvA-^
Poucas viradas políticas apresentam tanta importância
7 Atenuad^ pela euforia desenvolvimentista do governo Kubit-úV-
para a compreensão da história contemporânea do Brasil quanto
^ schek; o confronto reativou-se com a crise provocada p e l a " ^ ^
a ruptura da aliança entre o cesarismo varguista e a cúpula
^^^^^^ £ renúncia de Jânio Quadros em agosto de 1961 e com o golpe i^j^
militar. Desde então, o ex-ditador mostrou-se coerente com
- militar que tentou impedir a posse de seu sucessor c o n s t i t u - ' " t ^
p ;^o projeto político esboçado em 1943-1945, centrado na luta
' W l o j / * ^ ^ cional, o vice-presidente João Goulart. A resistência vitoriosa
c ^ c v ^ i ^ pelo desenvolvimento industrial autónomo e na redistribuição
^ t ^° g°'P^ conduziu à presidência o herdeiro político do "cesa-
I de renda a favor dos assalariados urbanos. A cúpula militar, Xj(,W-OJ^ rismo progressista" de Getúlio Vargas. Mas o movimento sin-
u ^ i , » ^ - por seu lado, também se mostrou coerente em sua opção pelo t»- c > y i ' * ' ^ dical e as forças progressistas haviam adquirido "massa crí-
W ^ * ^ alinhamento ativo no campo norte-ameticano, assimilando os Xs. O^JLMí^^^tica" suficiente para impor a Goulart, hesitante entre a ten-
fuAAv^ postulados estratégicos da Guerra Fria e, no plano interno, jUt^, " ^ ^ a ç ã o do "cesarismo progressista" e de uma aliança com o
oív^ por sua hostilidade aos sindicatos e às forças políticas progres- O aj^<f*^ centro, uma política, dita de "reformas de base", em torno .
-(VMVA^^ sistas. No corpo dos oficiais, no entanto, as posições naciona- , VjvtP-^Va qual começou a se aglutinar, pela primeira vez no Brasil, ^ ^ J ^
" uma frente popular no sentido histórico do termo: isto é, uma
aliança entre a burguesia, a pequena-burguesia e a intelectua- ^ ' ' j ^ '
cjfl\ j ^ . ^ ^ diferente do caso argentino, que ele não pensasse que Peron
irdade democráticas e as forças operárias e camponesas em " M r ^
fora reconduzido ao Poder apenas pela força das massas, mas sim c
principalmente pelas forças do Exército, as tropas do Campo de Mayo, vístã de promover reformas sociais profundas. Muitos oficiais
às ordens do general Avalo, opostas à Marinha, que aprisionara antes (proporcionalmente, muito mais do que na Espanha de 1936
Peron. Pude notar que ao Presidente Getúlio não agradou essa minha e mesmo que no Chile de 1973) mostraram simpatia pelas
interrupção à sua manifesta concordância com o que acontecera na reformas, ou, pelo menos, lealdade para com o governo legal.
Argentina. Silenciou e não tocou mais no assunto. A atmosfera nacio-
nal continuava carregada de eletricidade, e, de um lado e de outro dos Tanto assim que em 11 de abril de 1964, dez dias depois da
campos político-partidários, os rumores de conspiração prosseguiam, vitória dos golpistas, 122 oficiais foram expulsos das For-
agora mais acesamente, devido à intromissão do Partido Comunista, ças Armadas.'*
aliado aos trabalhistas e combatendo com todo o vigor a UDN e seus Se a natureza globalmente contra-revolucionária do golpe
caudatários".
desfechado a 31 de março de 1964 é evidente, o significado
Por exemplo, no discurso laudatório ao Estado Novo, pronunciado
a 10 de dezembro de 1940, Dutra investiu contra "a prática do libera- político do regime militar então instaurado não apresenta a
lismo democrático tão malsinado..." e "a ação desordenada do Legis-
lativo" que "vinha não raramente retardar a elaboração de leis julga-
das necessárias e mesmo imprescindíveis ao Exército" e felicitava-se " Sobre a luta política no seio do corpo dos oficiais e a repressão
de que "os militares que amam sua profissão... tiveram o reconforto macartista empreendida pela significativamente intitulada "Cruzada De-
de ver na Constituição de 1937 banido totalmente o direito de voto a mocrática", a principal fonte é História militar do Brasil de Nelson
todos os militares da ativa..." (Cf. A República dos Estados Unidos Werneck Sodré, 1965, pp. 326-355.
do Brasil e o Exército Brasileiro, Biblioteca do Exército, 1941, pp. 39-40.) Alfred Stepan, The military in politics, 1971, p. 223.

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mesma transparência. Na interpretação de José Nun, constituiu de 1965, a todos os partidos políticos, inclusive os da di-
mais um "golpe hegemónico" da classe média, que, alarmada reita. Foi, portanto, desorganizando a sociedade que as Forças
com a mobilização crescente das forças operárias e campo- Armadas teriam assumido a função de "organizá-la".
nesas, passou com armas e bagagens para o campo contra- É, no entanto, o próprio Oliveiros Ferreira, com a hon-
revolucionário, formando com as oligarquias agrárias e a ex- radez intelectual que lhe é unanimemente reconhecida, que
trema-direita uma aliança reacionária na qual os militares gol- aponta para a contradição entre a função hegemónica que
pistas funcionaram como ponta-de-lança e como núcleo hege- gostaria de ver exercida pelas Forças Armadas e o "ethos
mónico. Entre os autores brasileiros, quem mais insistiu no burocrático" que inspirava a visão do mundo da corporação
caráter hegemónico do golpe foi Oliveiros Ferreira, para o militar, notadamente a de seus doutrinadores da Escola Su-
qual, devido "à incapacidade das classes sociais de se orga- perior dê Guerra ( E S G ) . Atribui, em particular, à formação"*^ • X
nizar politicamente", as Forças Armadas constituíam, "nas hobbesiana do general Golbery do Couto e Silva — o p r i n - ' ^ " ' ' ' ' ! ^
condições particulares do desenvolvimento brasileiro", o "único cipal ideólogo do grupo conhecido pela ingenuamente provin-^" " ^ ^ j ^
grupo capaz de exercer as funções de partido" (grifado no ciana designação de "Sorbonne", ao qual pertencia o primeiro ^ Ç * "
original). general-presidente da ditadura, Castelo Branco — a invencível '
desconfiança dos chefes militares em relação às massas e por-
O pressuposto teórico em que se apoia a interpretação
tanto a incapacidade do regime para obter apoio na sociedade ""^"^'
'\jt.ouoo Oliveiros Ferreira repousa sobre a concepção funcionalista
civil. Para o general Golbery, "o povo. . . não é o sujeito da
•,J,)„,.. do "vácuo institucional", que, sob formas diversas, está tam- história da n a ç ã o . . . mas o objeto da ação estatal". Essa pe-
bém presente nas interpretações de Morris Janowitz, de José culiaridade da formação intelectual do general Golbery veio
"-^ " Nun e de Alfred Stepan — para mencionar apenas os autores reforçar o "ethos burocrático" do oficial enquanto tal, para
que nos interessam mais de perto. A falta das instituições o qual "o recruta" é "simples objeto de suas decisões, na
aptas a dirigir politicamente a sociedade — os partidos — rotina dos quartéis ou no campo de batalha", tudo isso agra-
cria um vácuo que a organização militar é levada a preencher, vado pelo caráter "igualmente aristocrático, igualmente anti-
exercendo — por substituição — a função de aparelho de popular" do "liberalismo brasileiro", tal, pelo menos, como
hegemonia. Não é aqui o lugar para procedermos ao exame o haviam assimilado os militares da "Sorbonne"."
crítico dos pressupostos epistemológicos do funcionalismo.
Notaremos apenas que, aplicado ao Brasil, o conceito de "vá- Justamente por operar com um conceito de hegemonia
cuo institucional" leva a uma contraverdade manifesta. Não mais denso e fiel ao significado que lhe atribuiu Gramsci do
foi, com efeito, para suprir uma ausência, mas para suprimir que aquele de que se serve José Nun (que o entende num
uma presença (a da frente popular que se gestava no Co- sentido estreitamente instrumental), Oliveiros discerne um pro-
mando Geral dos Trabalhadores, na mobilização crescente dos blema ali onde Nun vira uma solução. Para este, o golpe de
camponeses, na Frente de Mobilização Popular, nos centros 1964 foi hegemónico porque as Forças Armadas serviram de
populares de cultura, na U N E etc.) que as Forças Armadas instrumento à classe média. Para aquele, não o foi, porque
derrubaram o governo legítimo e implantaram a mais longa a função hegemónica, isto é, a função de partido dirigente,
ditadura de nossa história. Para contestar os funcionalistas
com seu próprio léxico, podemos concluir que o golpe de 1964
" Oliveiros Ferreira, "La geopolítica y el Ejército brasileiio", in Apor-
rebaixou o nível de institucionalização da sociedade brasileira tes, n.° 12, abril de 1969, pp. 129-130. Sobre a formação hobbesiana
ao destruir aquelas e outras organizações sindicais, políticas do general Golbery, cf. ib., pp. 117-120. Sobre o papel hegemónico
e culturais ligadas à causa do povo. Destruição que se es- do Exército, ib., p. 122. Consultem-se também, do mesmo Oliveiros,
O jim do poder civil. São Paulo, Convívio, 1966 e As Forças Armadas
tendeu, com o Ato Institucional vfi 2, de 27 de outubro
e o desafio da Revolução, Rio, 1964.

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constitui uma mediação institucionalizada entre a sociedade regressivo de Getúlio Vargas e a ditadura militar. Sobra a ^
e o Estado e supõe, portanto, que desta instituição participem ^ República liberal de 1946-1964, considerada com razão por ^ ^ v ^
forças sociais organizadas para dirigir o Estado. Aquilo que y^yj..^ ^^»>-um dos melhores brazilianists norte-americanos, Thomas Skid-Jj^, ^ •
Nun chama de "golpe hegemónico" não passa, portanto, de (v-o Y>Y^-more, como "um interlúdio entre governos autoritários".^H^ésta T<a-
^y>- uma solução golpista do aparelho militar para resolver, por AO>A*w) w'»''fórmula justifica-se o uso do qualificativo "autoritário" por se"^'^ s ^ ^ ,
^i«y òJ meios burocráticos e coercitivos, a crise de hegemonia (isto é, |^vx>a^ ^ tratar de uma apreciação genérica, denotando uma caracte- •=
3 J'X de direção política) da sociedade. Foi este o significado his- au^V»!vV^rística negativa comum a todas aquelas formas de governo, a <^'^<^\
(jVj^ / tórico da ditadura militar no Brasil, como das demais dita- /u^w^ saber, a de não serem democráticas. Mas para caracterizar
/ duras militares reacionárias do Cone Sul e, em geral, da positivamente um regime político determinado, deve-se, antes
América Latina. Não por acaso, foram as ditaduras "nasse- de mais nada, chamá-lo por seu nome, que é o nome com
ristas" do general Velasco Alvarado no Peru e do general que passou à História. O pedantismo sociológico _tem sido,
Omar Torrijos no Panamá que, por promoverem reformas so- a esse respeito, um eficiente instrumento no sentido de rees-
ciais e adotarem medidas anti-imperialistas de defesa da sobe- crever a História — sobretudo a mais recente. Empresta à
rania nacional, puderam assumir vocação hegemónica, mobi-- édúlcoração eufemística um verniz de cientificidade graças ao
lizando a população em torno do "partido militar". Nenhuma qual quem se refere ao regime instaurado pelo golpe militar
dessas duas experiências, no entanto, resistiu ao desapareci-
de 1964 como "o autoritarismo" parece mais objetivo do que
mento dos dois chefes militares que as dirigiram. Aos olhos
aqueles que persistem em chamá-lo de ditadura militar. Não
da História, portanto, elas aparecem mais como formas de
é de estranhar que o ocultamento, no léxico político oficial
"cesarismo progressivo" do que de exercício, pelo aparelho
militar, da função de partido hegemónico. da "Nova República", da expressão "ditadura militar" ou
mesmo "regime militar" tenha sido acompanhado, nos debates
do Congresso Constituinte, pelo ocultamento da própria ques-
tão do estatuto das Forças Armadas na nova ordem jurídico-
4. A cultura política da Nova República:
constitucional que se pretendia implantar. ^
raízes históricas de uma transição sem rumo
Ficaríamos frustrados se déssemos ao leitor a impressão
Enquanto durou a ditadura, o recurso ao eufemismo, par- de estarmos sustentando uma "logomaquia", um combate de
ticularmente na esfera política, justificou-se por razões evi- palavras. Estamos apenas lembrando que o léxico — notada-
dentes, embora, sobretudo a partir da revogação do Ato Insti- mente o político — é carregado de historicidade. O sentido
tucional n° 5, também se tomeu evidente que em muitos de um termo e, a fortiori, de uma expressão — por exemplo,
casos o medo da censura se interiorizava sob a forma de "segurança nacional" — apresenta um valor semântico deter-
autocensura e o gosto pela expressão verdadeira se estiolava, minado por seu emprego, isto é, pelas significações que foi
^ e m proveito do temor de desgostar os poderes constituídos. veiculando ao longo de sua trajetória. Nenhuma é politica-
O exemplo mais característico, nesse período, foi a caracte- mente neutra e algumas são escandalosamente mistificadoras.
rização da ditadura militar como "regime autoritário" ou, Basta lembrar a fórmula "comunidade da segurança" que de-
mais simplesmente, como "o autoritarismo". Por si só, subs- signa, no léxico político oficial e oficioso (a grande imprensa)
tituir uma fórmula específica por uma qualificação genérica
constitui um retrocesso teórico. Para não sair do Brasil, quase
cJÃxtc^ !^ todos os regimes políticos de nossa história nacional merecem ^ Thomas Skidmore, "Politics and economic policy making in authori-
O^UAV- 'U ser qualificados de autoritários: o Império, a República oli- tarian Brazil", in Authoritarian Brazil, editado por Alfred Stepan, 1972,
aA/WWjj gárquica dita República Velha, o bonapartismo progressivo- p. 3.

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manobras e pressões que acabaram impedindo a emenda pelas
do país, o conjunto de órgãos de espionagem, de repressão
diretas de ser aprovada pelo Congresso, ungiu-se vice-presi-
política, de "inteligência" e em geral, os serviços secretos e
dente da "Nova República" e, com a mortal enfermidade de
"especiais", responsáveis pelos crimes da "guerra suja" (1969-
que foi acometido seu companheiro de chapa, o presidente
1973), da regressão anticomunista de 1974-1975 e da longa
série de atentados terroristas que culminou no do Riocentro eleito Tancredo Neves, acabou se tornando o primeiro presi-
em 1981. dente do regime instaurado em 15 de março de 1985. A (efé-
mera) euforia do Cruzado Um e a (ainda mais efémera) ilusão
O advento da "Nova República" veio exacerbar o con-
de que a vitória esmagadora do P M D B nas eleições de 15 de
teúdo eufemístico-mistificatório da cultura política dominante
novembro de 1986 abria caminho para a evolução democrá-
(que é, segundo uma fórmula célebre, a cultura das classes
tica do país ajudaram a tenaz e onipresente propaganda go-
dominantes), na medida em que, abandonando seus poderes
vernamental a silenciar, durante algum tempo, o espanto pro-
discricionários de coerção, os círculos dirigentes do país pas-
vocado até mesmo nos observadores mais insuspeitos de "es-
saram a depender um pouco mais da opinião pública e, por-
querdistas", pela literalmente inacreditável metamorfose do
tanto, a se preocupar cada vez mais com os meios de influenciá-
notável udenista, arenista e pedessista em dirigente neo-repu-
la. Ao passar a fazer parte, e mesmo parte majoritária, desses
blicano, ardente partidário das liberdades e das reformas so-
círculos, a cúpula do P M D B , que aparecia revestida da res-
ciais. Extinta a euforia dos que se euforizaram, desfeitas as
peitabilidade adquirida ao longo de duas décadas de oposição
ilusões dos que se iludiram, o governo José Sarney foi coin-
bem comportada, reforçou o léxico propagandístico do apa-
cidindo, cada vez mais, ao longo de 1987, e sobretudo após
relho estatal com sua retórica liberal-democrática adaptada à
a aplicação do odioso programa de compressão salarial do
lógica da "Aliança Democrática", isto é, à aliança concluída,
Plano Bresser, com o político José Sarney de sempre, isto é,
nos estertores do "ciclo dos generais", entre os veteranos da
com a oca fraseologia de uma retórica provinciana sempre
oposição consentida (PMDB) e os noviços da oposição da v i -
pronta a edulcorar os interesses adquiridos e os interesses a
gésima quinta hora ( P F L ) . Filha desta aliança e engendrada
adquirir dos áulicos do poder.
no ambiente duvidoso do Colégio Eleitoral, a "Nova Repú-
blica" cometeu sua primeira mistificação na pia batismal. De A luz do Plano Bresser, isto é, do plano de estabilização
há muito, a historiografia já havia consagrado a expressão monetária baseado na supressão do chamado "gatilho sala-
"República Velha" para designar a República oligárquica de r i a l " e, portanto, no agravamento da perda de poder aquisi-
1899-1930. Evidentemente, não é a ela que se quis contrapor tivo dos salários — o salário mínimo desceu a seu mais
o regime nascido da vitória da chapa Tancredo Neves-José baixo nível histórico quando o ex-gerente do grupo Pão de
Sarney no Colégio Eleitoral, mas sim ao regime imediatamente Açúcar e ex-crítico da "tecnoburocracia" se tornou ministro
anterior, a ditadura militar, aliás, o "autoritarismo". Bati- da Fazenda — a réplica dirigida ao então senador José Sarney
zando de "Nova República" o regime que acabava de dar à por Ulysses Guimarães quando, em 1983, o Congresso debatia
luz, a Aliança Democrática, ipso facto, batizou retrospectiva- o Decreto-lei 2.045, dá a medida da inconseqiiência ético-polí-
mente de "Velha República" aquele instaurado pelo golpe de tica do P M D B desde quando se tornou partido de governo.
1964 e consolidado pelo Ato 1-5 e pela sanha repressiva dos E m 1983, Sarney era um dos muitos porta-vozes parlamentares
DOI-CODL do regime militar. Defendeu o Decreto lei 2.045 como defen-
dera, ao longo das duas décadas precedentes, a ditadura ins-
Esperteza semântica à sombra da qual, com desenvolta
taurada pelo golpe de 1964. Defendeu-a, como faziam os
esperteza política, o homem que até a véspera fora o presi-
áulicos do "ciclo dos generais", atacando o programa econô-
dente do P D S e, nessa qualidade, o grande articulador das

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No conúbio oriundo deste troca-troca, a oposição tinha
mico da oposição de então, isto é, do P M D B . Donde a ré- mais a perder do que seu adversário da véspera. Fora longa,
plica de Ulysses Guimarães, sob forma de artigo publicado com efeito, a caminhada que permitira ao M D B deixar de ser
na Folha de S. Paulo de 25 de setembro de 1983, da qual, mera "oposição consentida" à ditadura (o partido que só
•para efeito de contraste com as posições assumidas pelo P M D B dizia " s i m " ao regime militar, contrariamente à A R E N A , que
ao Plano Bresser retomamos duas conclusões: " O senador dizia "sim, senhor") para se tornar a frente democrática, na
Sarney conseguiu a mágica verbal de fazer crer que a baixa qual, até 1979, agruparam-se praticamente todas as forças
compulsória do salário real que está impondo o governo que resistiam ao poder discricionário dos generais e de seus
(Figueiredo) favorece mais os trabalhadores do que a descon- acólitos civis. Ao se lançar na campanha pelas diretas para
centração de renda proposta pelo P M D B " . Quando Bresser presidente, o P M D B , cuja credibilidade junto a importantes
Pereira repetiu a mesma mágica em 1987, Ulysses, discreto, setores da opinião democrática, sensíveis às posições mais
guardou para si a sensação de déjà vu que terá experimentado avançadas do P D T e do P T , começara a baixar seriamente,
em seu foro íntimo. Mais contundente ainda foi a peroração recuperou em ampla medida sua imagem de partido da tran-
final de sua réplica de 1983 a Sarney: " a resposta do eminente sição democrática. A decisão de participar do Colégio Elei-
senador José Sarney é a opção pela política recessivista tendo toral, após o bloqueio pelo Congresso das diretas-já (orques-
como apocalíptico cavaleiro o continuísmo entreguista exerci- trado notadamente, nunca será demais repeti-lo, pelo então
tado pelo senhor Delfim Neto". senador José Sarney), justificou-se pela necessidade de uti-
lizar todas as formas legais de luta para barrar o caminho
Teriam os dissidentes do P D S recebido, como o apóstolo
da extrema-direita malufista. Ao fazer concessões políticas em
Paulo no caminho de Damasco, um chamado divino para que,
nome de um objetivo maior, um partido não está traindo
de perseguidores, passassem a perseguidos? Parece, com efeito,
seus objetivos históricos, mas apenas cumprindo sua obrigação.
um milagre a súbita unção de Sarney como candidato do
A traição começa quando insidiosamente o recuo tático se
P M D B à vice-presidência. N ã o faltou quem, na época, levan-
transforma em recuo programático, quando, sob pretexto de
tasse justas dúvidas a respeito da seriedade da pretensa meta-
conquistar uma posição mais favorável para levar adiante a
morfose. E não somente à esquerda do espectro político. Sob
transição (no caso, a conquista da presidência), o partido em
o título "Sarney pela Qposição: escárnio, aberração". Mauro
questão está, na verdade, se acomodando às vantagens da
Chaves, um dos mais brilhantes articulistas de O Estado de
posição conquistada. Os fins só justificam os meios quando
S. Paulo explicava o fenómeno pelo caráter gelatinoso da cul-
os meios permanecem fiéis aos fins. Ao se apegar à letra da
tura política do país. E m suas palavras: "Neste país em que
Constituição espúria de 1969 e do "pacote de abril" (de
as convicções doutrinárias, a coerência político-partidária, a
1977), que lhe atribuía um mandato de seis anos, para bar-
inteireza de pensamento, palavra e ação dos homens públi-
ganhá-lo por um de cinco anos, Sarney não somente renegou
cos, ao longo de suas carreiras, pouquíssimo valem, ante a
o compromisso solene que assumira de exercer um mandato
praxis generalizada da vassalagem fisiológica, que leva ao
de quatro anos, como também, em seu "comunicado" trans-
troca-troca de siglas em função da irresistível grudadura ao po-
mitido em cadeia nacional de rádio e televisão a 18 de maio
der, parece que ninguém se escandaliza com o fato de. . . José
de 1987, pretendeu sobrepor sua vontade discricionária à pró-
Sarney, um mês após ter-se tornado dissidente de tudo aquilo
pria Constituinte, informando que decidira permanecer cinco
que defendeu fervorosamente por 20 anos, venha a se tornar
anos na presidência. Salvo os comensais e áulicos inveterados
candidato... de uma Oposição, que por definição deveria
do chefe do Executivo, praticamente todos os setores da
ser o oposto a tudo aquilo que tal candidato foi e defendeu,
opinião pública repudiaram ou pelo menos desaprovaram seu
em toda sua carreira política" (grifos do autor).

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pronunciamento. Mesmo um órgão tradicional da direita l i - o primeiro gabinete seria chefiado por Mário Covas, o se-
beral-conservadora, como o Jornal do Brasil noticiou-o com man- gundo por Ulysses Guimarães e o terceiro pelo general Urutu.
chetes que exatamente por serem descritivos, deixavam claro No que à classe operária se refere, os urutus já entraram em
seu conteúdo golpista: "Sarney avisa que fica cinco anos"; cena: muitos piquetes tiveram de operar sob sua mira incó-
"Sarney ignora Constituinte e fixa mandato" (Jornal do Brasil moda e ninguém deve duvidar de que, se necessário, aqueles
de 19/5/1987).^' O Estado de S. Paulo de 20 de maio foi mais blindados de fabricação genuinamente nacional garantirão, com
longe, classificando o ato do chefe de Estado, no título do sua espessa presença, o "sucesso" do Plano Bresser. Aos que
editorial, como o de um "Luís Bonaparte tupiniquim". Ao se espantam de ver a "anti-autoritária" "Nova República"
renegar em atos as convicções democráticas que proclamara
recorrer a tanques para intimidar grevistas, não será inútil
em palavras, Sarney voltava a coincidir com o que sempre
recordar a reiterada advertência de chefes militares do governo
fora, com os métodos e interesses políticos que constante-
Sarney, de que, "esgotada a força dos argumentos", não hesi-
mente haviam sido os seus, como golpista de 1964 e agente
tarão em recorrer "ao argumento da força". Seja-nos permi-
civil da ditadura militar durante duas décadas. Renegando
tido observar que o "argumento da força" é simplesmente a
na prática os métodos e os princípios democráticos, o chefe
força sem argumentos de uma transição sem rumo.
da "Nova República" permaneceu fiel ao mais profundo de si
mesmo. Quem se renegou não foi ele, mas aqueles que, para
ficarem em seu governo, perderam a alma. Os mais pessi-
mistas diriam que só podemos perder aquilo que possuímos, 5. As funções dos militares no Estado democrático:
ocasiões perdidas e ilusões desfeitas
e que se cabe, no caso, falar em "pacto com o diabo", en-
tão a cúpula peemedebista enganou o diabo, já que não tinha
Uma pesquisa de opinião realizada na Grande São Paulc
mais alma alguma para lhe oferecer em troca das sinecuras
governamentais. De qualquer modo, ao decidir, na patética em julho/agosto de 1986, cujos resultados foram divulgados
noite de 19 de julho de 1987, que nada tinha a decidir sobre no mês de outubro seguinte, constatou que 4 5 % dos entre-
as duas questões mais importantes da atualidade política (a vistados desejavam a volta dos militares ao poder, 7 8 % eram
duração do mandato de Sarney e a alternativa parlamenta- favoráveis à pena de morte, e 8 5 % consideravam os políticos
rismo/presidencialismo) o P M D B assumiu para si a gelatina como demagogos. Descontadas as notórias manipulações de
ideológica de que se compunha em si. Grandiloqúentes, os que são suscetíveis pesquisas de opinião desse género, sobre-
notáveis que impuseram à convenção nacional do P M D B a tudo quando ao crivo dos pesquisadores se sobrepõe o dos
opção pela omissão, proclamam haver salvo a "unidade do divulgadores (a imprensa apresentou conclusões opostas sobre
Partido". Talvez, mas enterrando-lhe de vez a identidade. seu significado, e um editorial do semanário Shopping News,
liberal, intitulado " A democracia e seus inimigos", ergueu-se
Atribuiu-se ao general Golbery do Couto e Silva a bou-
contra "o mau uso da informação", que "pode ter conse-
tade segundo a qual, em caso de adoção do parlamentarismo. quências funestas para a sociedade"),^^ é inegável que a pes-
quisa em questão confirma a existência de inquietantes sin-
21 O tom suficiente e insolentemente audacioso de Sarney no seu pro- tomas de que "a reação e o conservadorismo" penetraram nos
nunciamento de 18 de maio sugeriu aos mais diversos observadores o
mesmo comentário: ele antes consultou os chefes militares e recebeu
"sinal verde" para desafiar o Congresso Constituinte. Uma hipótese A f^í^Fi"^ 19-10-1986. Já o Estado de S. Paulo
mais pessimista é que se tratou de um simples exercício de ventrilo- de 4-10-1986 noticiou os resultados da pesquisa com maligna alegria:
quia: Sarney movia os lábios, mas quem falava era o general Leônidas. Volta dos mihtares é desejada por 45%".

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meios "populares e plebeus".^ A vitória de Jânio Quadros de acidentes de trânsito são escandalosamente altas no Brasil,
nas eleições de novembro de 1985 para a prefeitura de São notadamente as que concernem os mais desprotegidos (atro-
Paulo, após uma campanha agressivamente reacionária,^'' já pelamento de crianças)^ é porque o desrespeito generalizado
fora bastante reveladora a esse respeito. Só um grande partido às regras da cidadania se estende a esferas onde não estão
democrático de massas (e não um partido grande manipu- envolvidos interesses e compulsões materiais elementares. Q
lando para fins estreitamente eleitorais a retórica democrática, "informalismo" do relacionamento social, mais do que uma
como é o P M D B ) poderia transformar em força organizada peculiaridade "cultorológica" (como diria Oliveira Vianna),
e consciente de transformação social a esperança sempre frus- constitui um sintoma inequívoco de que as leis não são con-
trada de uma vida melhor e a resignação insatisfeita das cebidas como expressão da vontade geral (=do interesse co-
multidões imensas de brasileiros para os quais os direitos letivo), não exprimem valores ético-civis e não têm como fonte
elementares da cidadania não passam de amargas quimeras a soberania popular. Elas só dispõem da autoridade que lhes
a cada passo desmentidas pelas brutais condições de existên- confere o emprego (virtual e sobretudo socialmente seletivo)
cia a que os condenou uma sociedade onde a desigualdade da força coercitiva do Estado contra aqueles que as violam
é uma das mais gritantes do planeta. Na falta de um tal par- — e que não pertencem ao círculo de privilegiados secular-
tido, ou, mais exatamente, dadas as limitações políticas e mente habituados à impunidade. Como se espantar, nessas
orgânicas dos pequenos partidos que se lançaram há muito condições, que os desprezados de sempre não distingam luci-
ou há pouco tempo nesta grandiosa empreitada, permanece damente as virtudes cívicas da autoridade da lei da crua efi-
aberta a possibilidade de que os setores culturalmente — e cácia da autoridade da força? Se a perversa miragem do
socialmente — mais pauperizados da população se deixem "cesarismo policial" ou a mais prosaica — e mais plausí-
manipular pela pressão convergente do poder do dinheiro (não vel — hipótese da "volta dos militares ao poder" ativa senti-
apenas do dinheiro que compra votos de cabos eleitorais, mas mentos reacionários nos setores culturalmente mais pauperi-
também daquele que controla monopolisticamente os meios zados da população, boa parte da responsabilidade histórica
de comunicação de massa) e de uma propaganda habilmente por este fenómeno de regressão política se deve aos chefes
reacionária que aponta exutórios falsos para problemas verda- da "Nova República", notadamente aos do P M D B (do P F L
deiros, atribuindo por exemplo ao respeito pelos direitos do nenhum democrata sério poderia esperar muita coisa) que
homem e do cidadão a responsabilidade pela criminalidade "adaptaram" a democracia aos interesses estabelecidos das mi-
crescente, como se só fosse eficiente a polícia que agisse à norias privilegiadas de sempre, a ponto de torná-la pratica-
margem da lei. O desrespeito sistemático pelas normas jurí- mente indiscernível do liberalismo sob tutela militar que o
dicas e ético-civis não só não é um monopólio dos criminosos
que povoam as delegacias e as penitenciárias (isto é, os cri-
minosos oriundos das classes subalternas, ditos "marginais"), 2^ Um estudo recente da sanitarista Maria Helena Jorge, da USP, mos-
tra que a principal causa de morte violenta de crianças de 5 a 14 anos
como tampouco se limita, entre as classes endinheiradas, aos
em São Paulo (43% do total) é o trânsito, notadamente os atropela-
crimes financeiros estimulados pela impunidade. Se as taxas mentos de crianças perto das escolas. No Brasil, a proporção sobe para
praticamente 50%. Segundo a Cia. de Engenharia de Tráfego de São
Paulo, em 1982 houve, para cada 10.000 veículos em circulação, 1,1
23 Pensamos aqui na fórmula lapidar de Barrington Moore: "O fas- morte em Tóquio, 2,3 em Nova Iorque e 12,2 em São Paulo. A indife-
cismo foi uma tentativa de tornar a reação e conservantismo popu- rença dos "poderes constituídos" para esta hecatombe — e a impu-
lares e plebeus". (Social origins of dictatorship and democracy, Boston, nidade assegurada para os que desrespeitam as mais elementares nor-
1966, p. 447.) mas de trânsito — são responsáveis pelas 30.000 mortes anuais e um
2" Permitimo-nos, sobre este ponto, remeter o leitor a nosso artigo número muitas vezes superior de casos de invalidez provocadas pela
barbárie (isto é, ignorância sistemática da lei) dos motoristas brasileiros.
"A síndrome reacionária do janismo", in Presença n.° 7, março de 1986.

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general Ernesto Geisel deixou implantado no Brasil ao tér- toes liminares. A primeira, no plano dos princípios, concerne
mino de seu mandato. às condições que permitem qualificar, com um mínimo de
Sem dúvida, a esmagadora vitória do P M D B nas eleições objetividade, uma Constituição como democrática. Tomemos,
de 15 de novembro de 1986 mostrou que o vírus reacionário por exemplo, os princípios enunciados no artigo 3 da Cons-
não contaminara em profundidade o eleitorado popular e que tituição francesa de 1958, elaborada sob a inspiração do ge-
fenómenos como o culto filisteu das virtudes salvadoras da neral De Gaulle e por isso mesmo insuspeita de qualquer "ra-
disciplina militar ou o cesarismo circense do "homem da vas- dicaHsmo" ou "esquerdismo": " A soberania nacional pertence
soura" exprimem mais a perplexidade e as desilusões da opi- ao povo que a exerce por seus representantes e pela via do
nião pública diante da versão gelatinosa da democracia que referendum". O exemplo é tanto mais significativo que a França
lhes ofereciam os chefes da "Nova República" do que um des- vivia, naquele período, uma crise política provocada pela obs-
locamento para a direita de parcelas crescentes da massa dos ci- tinação dos chefes da I V R;pública em negar independência
dadãos. Não deixa, no entanto, de ser significativo o fato de que ao povo argelino. E m plena guerra colonial, à beira da guerra
na maior concentração urbana e industrial do país, o civil, com o espectro do golpismo militar-fascista dos generais
P M D B tenha sido derrotado em 1985. Sobretudo se con- Salan e Massu se delineando no horizonte, e com os partidos
siderarmos que seu enorme sucesso no resto do país, em liberais e social-democratas totalmente desmoralizados, o as-
1986, foi em larga medida fruto do Plano Cruzado I , isto é, de pecto representativo da democracia estava profundamente de-
uma isca eleitoral jogada ao lixo logo na abertura das urnas. A
bilitado. Ao chamarem De Gaulle ao poder, os partidos domi-
indignação dos eleitores face a esta indecente manipulação de
nantes estavam, "faute de mieux", optando pelo cesarismo, ou,
suas aspirações as mais justas e as mais elementares tende a
para ficarmos na tradição francesa, pelo bonapartismo. De
favorecer uma justificável descrença nos "políticos", propícia
Gaulle, no entanto, era um herói de verdade, um general vito-
a toda sorte de golpismos e de cesarismos. Dir-se-á que o
rioso numa das mais difíceis guerras patrióticas do povo fran-
desgaste de um partido infiel a seu programa não implica no des-
cês (1940-1945). Jamais lhe ocorreria — como ocorreu aos
gaste das instituições democráticas; ao contrário, estas se for-
generais brasileiros em 1967 e em 1969 — aproveitar a fra-
talecem quando os eleitores, traídos pelo partido em que de-
queza dos partidos para impor a "sua" Constituição a um
positaram sua confiança, sancionam-no nas eleições seguintes,
Legislativo sem representatividade. Por isso, recorreu ao refe-
recusando-lhe o voto. O problema é que este argumento, justo
rendum, isto é, à fonte originária da legitimidade que é o povo
no abstrato, pressupõe aquilo que entre nós está em jogo: a
soberano. Se, a despeito de seus fortes traços bonapartistas,
possibilidade de construir a democracia. A infidelidade peeme-
a Constituição francesa de 1958 ainda está viva, é porque
debista ao ideário que encarnou ao longo dos anos de chumbo
foi aprovada por um consenso majoritário, sufragado nas
e em nome do qual conquistou a maioria absoluta no Con-
gresso Constituinte e elegeu a esmagadora maioria dos gover- urnas pelo povo francês. Embora admitam a fraqueza dos
nadores, constitui, nas condições históricas que são as nossas, partidos no Brasil, sua escassíssima representatividade (menos
um rude golpe contra a credibilidade da própria "democracia para lamentá-la do que para utilizá-la como p: texto para se
dos partidos". oporem ao parlamentarismo), os chefes da " N c ' a República"
não se mostram particularmente interessados ei compensá-la
O ufanismo, isto é, o patriotismo dos tolos e dos confor- através da expressão direta da soberania popula que é o re-
mistas, responderia a estas e outras constatações, amargas mas curso do referendum.
irrecusáveis, que o processo consti*-unte, com todas as limita-
ções que se lhe possam imputar, garante, por sua própria rea- A segunda questão liminar concerne às condições concre-
lização, o caráter democrático das instituições da "Nova Re- tas do exercício do poder constituinte pela inbjíncia legal-
pública". O argumento ufanista passa por cima de duas ques- mente investida desta atribuição, a saber o Congresso eleito

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a 15 de novembro de 1986 (sem esquecer um terço dos sena- rante polémica em tomo da soberania do Congresso Consti-
dores, eleitos a 15 de novembro de 1982). A baixíssima re- tuinte, a qual, segundo os "poderes constituídos" do aparelho
presentatividade dos partidos, as fortes tendências corporativas de Estado, devia se limitar à redação do novo texto constitu-
da sociedade civil e a dramática intensidade assumida pelas cional. No plano filosófico e jurídico, uma soberania limitada
grandes questões sociais (a começar pela questão da terra), é uma aberração: o poder capaz de limitar a soberania é um
tornavam por si só extremamente complexa a determinação poder que de fato já a usurpou. A essência da soberania con-
de um consenso majoritário da cidadania a respeito das gran- siste, com efeito, em ser a instância cuja decisão prevalece
des opções em jogo na nova Constituição. Mas as dificuldades sobre todas as demais e, portanto, que fixa os limites do exer-
objetivas para atingir tal consenso teriam sido aplainadas se cício de todos os poderes da sociedade. Assim, quando Sarney
a eleição dos constituintes não tivesse sido politicamente ba- decide qual será a duração de seu mandato e quando o gene-
nalizada pelas eleições simultâneas para os governos estaduais ral Leônidas Gonçalves declara, após dezenas de outras im-
(que polarizaram a atenção dos votantes) e se os cidadãos, ao pertinências antidemocráticas, que o projeto do relator Ber-
votarem nos deputados e nos senadores, soubessem que opção nardo Cabral é "inaceitável", ambos estão usurpando o exer-
estavam fazendo a respeito do conteúdo do futuro texto cons- cício da soberania e erigindo-se, pelo argumento da força, em
titucional, o que só teria sido possível se os partidos tivessem árbitros de questões que, numa democracia, só o povo, por
divulgado com suficiente antecedência um esboço sintético seus representantes ou diretamente pela via plebiscitária, pode
das posições que iriam defender no Congresso Constituinte, decidir.
em vez de se omitirem (com as honrosas exceções de alguns
Nas pressões convergentes — e crescentes — exercidas
pequenos partidos de esquerda), obrigando o eleitor a votar
a partir do Executivo sobre o Congresso Constituinte, além
no escuro.
de ambições pessoais — evidentes no caso de Sarney — e fan-
A confusão em que se desenvolveram os debates do Con-
tasias bonapartistas — prováveis no caso do general Leônidas,
gresso Constituinte foi, portanto, consequência inevitável —
estão em jogo os interesses adquiridos da alta burocracia esta-
e em boa medida programada pelos chefes da "Nova Repú-
tal e especialmente os do aparelho militar e, indiretamente,
blica" — da ignorância em que foi mantido o eleitor (e em
os das camadas sociais que extraem seus privilégios da "or-
que estava boa parte dos candidatos) sobre o que estaria em
jogo no processo constituinte. Donde o caráter compensatório dem" vigente. Qualquer inventário, minimamente objetivo, da-
da intervenção ex post da opinião pública na elaboração do quelas pressões identificará, em suas motivações de fundo, a
texto constitucional. Intervenção improvisada (salvo para os vontade de preservar aquelas duas ordens de interesses.
círculos e sindicatos patronais, para algumas categorias pro- No que concerne aos interesses da corporação militar,
fissionais e a U D R , que organizaram minuciosamente seus gru- trata-se de preservar: a) sua autonomia no interior do apare-
pos de pressão), mas politicamente positiva, compensando pela lho de Estado; b) o controle militar de organismos não-milita-
participação dos cidadãos a falta de representação dos partidos. res do aparelho estatal e do setor estatizado da economia e c)
A essas nressões oriundas da sociedade civil se contra- a tutela militar sobre o poder político. O objetivo a) condicio-
puseram, no entanto, aquelas oriundas do aparelho de Estado, na os demais. Se as Forças Armadas se comportassem como
sobretudo as da Presidência e as do Exército. Estes "poderes um serviço público normal, se o ministro do Exército consi-
constituídos", persistindo na operação de banalização do pro- derasse seu cargo — como o fazem seus homónimos dos países
cesso constitunte, não pouparam esforços para reduzir as atri- de cultura democrática — em termos de uma responsabilidade
buições e fixar limites às deliberações do poder constituinte. administrativa específica no interior de uma equipe governa-
Nada mais revelador da confusão programada que afetou desde mental da qual é um membro como os demais, ele não agiria
o início o processo constituinte do que a juridicamente aber- como porta-voz de uma corporação que se define em relação

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ao governo, ÚO Estado e à sociedade e que portanto funciona político durante a República Liberal, nascida do golpe anti-
como um "Estado dentro do Estado". Os objetivos b) e c) cor- getulista de 1945, trucidada pelo golpe de 1964 e a tal ponto ^ ^ '
respondem à expansão das áreas controladas, no Estado e na "tutelada" pelos militares que o único presidente civil que
sociedade, por este "Estado dentro do Estado". E m b) incluem- / chegou ao fim de seu mandato, Juscelino Kubitschek, só con- I v^^.(><
se, além. dos seis ministérios e sete funções ministeriais ocupa- " seguira tomar posse graças ao contragolpe preventivo do ge- j / J J U M
das peia cúpula militar (os do Exército, Aeronáutica, Mari- neral Lott em novembro de 1955. Naquele conturbado perío- !''ii*.ifix-
nha, Estado Maior das Forças Armadas, S N I e Chefia da Casa do, os golpes militares tiveram sempre como objetivo derrubar ^ ^ ^ ^
Militar da Presidência, exercida cumulativamente com a Se- ou impedir a posse de presidentes cuja orientação política não ^^jt,
cretaria-Geral do Conselho de Segurança Nacional), o con- agradava às cúpulas das Forças Armadas. Com Sarney na pre--
trole de tecnologias de ponta (átomo, informática, pesquisa U<u, u ) ^ ^ ^ sidência, este "perigo" evidentemente não existe. O poeta dos
bélica e t c ) , do D E N T E L , da repressão política e social (por Marimbondos de fogo manifestamente foi bem além, no rumo
vias diretas e pelo controle das polícias militares), dos tribu-
^ ^ V t ^ da aceitação do controle militar sobre o Estado, do que fora
nais de exceção (Justiça Militar) etc.^' Finalmente, o objetivo
nr/S - estipulado no entendimento secreto entre Tancredo Neves e
c) constitui a projeção sobre o centro do poder político, dos
o general Leônidas Gonçalves, no qual se negociaram as con-
controles setoriais exercidos autonomamente pela corporação
dições do apoio do Exército à posse dos candidatos vitoriosos
militar. Na soi-disante Nova República, o controle do poder
no pleito presidencial realizado pelo Colégio Eleitoral reuni-
central pelas cúpulas militares deixou de ser exercido direta-
do a 15 de novembro de 1984."
mente, como o fora durante os vinte e um anos em que o cargo
de presidente ficou privativamente reservado a generais de Além de preservar o statu quo militar no quadro das
quatro estrelas, assumindo, com a posse de Sarney, a forma instituições políticas, as pressões da corporação armada visam
indireta que, como assinalamos no início do presente estudo, também conservar a ordem social vigente. Prova-o a tenaz
vem sendo caracterizada pelos analistas como tutela política. hostilidade da cúpula do Exército à definição das funções in-
Essa tutela se exerce através de pressões constantes sobre o ternas das Forças Armadas proposta pela Comissão Arinos
Congresso e mesmo sobre organismos governamentais suspei-
tos de "esquerdismo" (um exemplo característico: o levanta-
27 Basta reler a imprensa de setembro a novembro de 1984, quando
mento, por ordem do general Leônidas Gonçalves, das fichas
já estava configurada praticamente a vitória de Tancredo Neves no
no S N I de vários diretores do I N C R A ) . Comparada aos mé- colégio eleitoral, para se dar conta do clima de intoxicação política
todos discricionários da ditadura militar, a tutela das Forças fabricado pelos chefes militares do governo do general Figueiredo.
Armadas repousa não no emprego direto do poder da força Anunciava-se, com a vitória do candidato da Aliança Democrática, uma
coativa, mas na ameaça de seu emprego, isto é, no argumento vaga de "revanchismo" de "consequências imprevisíveis", ao mesmo
tempo que, na penumbra dos bastidores do poder, urdiam-se as últimas
da força. tentativas de um golpe de Estado militar-fascista, para cujo fracasso
contribuíram os oficiais que iriam comandar as Forças Armadas na
r^tilío- Assim, caracterizada, a tutela política dos militares recon- "Nova República", inclusive o general Leônidas Gonçalves. Em troca,
^.^Litc figura, nas condições históricas da transição liberal controla- este último obteve, em seus conciliábulos com Tancredo Neves, toda
uT[u da, o controle exercido pelas Forças Armadas sobre o poder uma série de garantias, cujo teor exato permanece secreto, mas que
sem dúvida incluíam a impunidade não somente para os crimes come-
tidos pelo aparelho repressivo dos DOI-CODI, durante o nefando go-
verno de Garrastazu Medici e a primeira parte do governo de Ernesto
2» No colóquio "A Constituinte em debate" realizado em maio de 1986
Geisel (que soube em seguida marginalizar os torturadores dentro do
na USP, Fausto Castilho apresentou, na mesa-redonda consagrada às
Exército), mas também para os repugnantes atentados terroristas pra-
Forças Armadas, uma tentativa de descrição sistemática da ocupação
militar do Estado. O texto do colóquio foi editado em 1987 por Salinas ticados antes e depois da anistia de 1979 pelos "bolsões radicais" do
Fortes e Milton do Nascimento. Exército.

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(garantia "dos poderes constitucionais' em vez dos "poderes Enquanto os constituintes debatiam as funções das Forças
constituídos, da lei e da ordem" como estipularam as Cartas Armadas, estas continuavam a funcionar nos moldes de sem-
outorgadas de 1967 e de 1969). E m sua versão final, o ante- pre. E m particular, o Exército, paralelamente ao envolvimen-
projeto Arinos, levando em conta o desagrado suscitado entre to sistemático na repressão do movimento operário, intervinha
os generais face à perspectiva de se tomarem, como seus cole- cada vez mais, através de declarações crescentemente truculen-
gas dos países democráticos, o braço armado dos poderes cons- tas e impertinentes de seus chefes, no combate político em
titucionais, houve por bem, para acalma los, acrescentar-lhes tomo do Congresso Constituinte e a favor do continuísmo
outra atribuição interna, a de garantir "por iniciativa expres- presidencial.
sa" dos poderes constitucionais e "nos casos estritos da l e i " ,
Um dos aspectos mais lamentáveis dessa crispação regres-
"a ordem constitucional". Precaução inútil. Os generais que-
siva da cúpula militar em estreito acordo com a Presidência
riam muito mais, notadamente ocupar-se da "ordem" em ge-
é o enterro das esperanças numa reformulação democrática das
ral, isto é, daquilo que entendem por "ordem" (além dos um-
instituições militares. Antes que Sarney buscasse ostensiva-
tus ocupando fábricas, os aplausos entusiastas que recebeu na
mente no braço armado que lhe oferecia o general Leônidas
Escola Superior de Guerra o chefe da U D R — um sepulcro
Gonçalves o apoio de que carecia para fazer face à desilusão
caiado de branco, para usarmos a fórmula evangélica — são e à indignação da opinião pública, quando ainda permanecia
reveladores dos interesses sociais a serem protegidos pela re- vivo o influxo da exaltante mobilização popular pelas eleições
pressão da "desordem"). Com a exigência de continuarem sen- diretas e da emoção nacional diante da morte de Tancredo
do guardiães da ordem, os militares também têm em vista Neves (qualquer que seja o conteúdo mítico que se cristali-
interesses corporativos: quanto mais ampla e imprecisa for a zou em torno de sua figura) surgiram, no interior das Forças
definição de suas atribuições constitucionais (e é difícil en- Armadas, iniciativas que desmentiam, por sua abertura de
contrar noção mais ampla e imprecisa que a de ordem), maior espírito, o morno conformismo dos políticos "realistas" do
será a margem de manobra de que disporão para se imiscuí- P M D B , para os quais o controle militar sobre o Estado é uma
rem em questões fundiárias, trabalhistas, culturais, vale dizer, fatalidade de nossa história (e que por isso mesmo colocaram
para exercer funções de polícia política e social.^ o ex-ardoroso malufista Prisco Viana como seu representante
na comissão constitucional que tratou das funções dos mili-
tares). Significativamente, foi na Aeronáutica e na Marinha,
2' A mentalidade que preside o envolvimento do Exército na repressão na primeira com um caráter nitidamente institucional, na se-
das greves operárias foi reiterada na constrangedora (por seu primaris-
gunda graças sobretudo ao esforço pessoal do almirante Flores
mo) intervenção do general Leônidas Gonçalves contra a proposta cons-
titucional da semana de 40 horas. "Um país como o nosso precisa de (que em 1986 representou as Forças Armadas junto à Comis-
muito mais horas de trabalho", observou o prolixo general (cf. O Estado são Arinos, então elaborando seu anteprojeto de Constituição)
de S. Paulo de 25/6/1987). Infelizmente, não levou seu zelo pelo au- que se manifestou a vontade política de discuilr fora da cor-
mento das horas de trabalho ao ponto de conseguir emprego para os poração militar o conjunto das questões suscitadas pela rede-
milhões de desempregados e subempregados e nem mesmo se deu conta
do que, reduzindo-se a 40 horas a semana de trabalho, os operários que
finição constitucional das atribuições das Forças Armadas.
estão na produção ficariam em melhores condições físicas e mentais
para aumentar o rendimento de seu esforço produtivo, ao mesmo tempo
que se criariam novos empregos para absorver aqueles que não tra- pitalistas não seria terrível. Nesse ponto, o general Leônidas pode ficar
balham hora nenhuma, por terem sido postos no olho da rua. Evi- tranqiiilo: as multinacionais se defendem muito bem sozinhas. Com ra-
dentemente, isto aumentaria um pouco a folha salarial das grandes in- zão o sindicalista Walter Barelli, entrevistado por Lourenço Dantas Mota,
dústrias. Mas como as multinacionais pagam, pelo mesmo trabalho, de observou: "Não conheço os meandros do poder, mas parece-me que
cinco a dez vezes menos aos operários brasileiros do que pagar suas o SNI é o conselheiro político trabalhista que nós temos" (cf. Dantas
matrizes nos países capitalistas desenvolvidos, o "sacrifício" dos ca- Mota, Quem manda no Brasil, São Paulo, 1987).

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Tanto nos três seminários promovidos em São Paulo pelo
Ministério da Aeronáutica entre março de 1986 e abril de
1987, quanto nos diversos debates em ambiente universitá-
rio de que participaram os almirantes Flores e Vidigal,^ pre-
valeceu, através do confronto de opiniões, um espírito de cida-
dania em nítida ruptura com a impermeabilidade burocrática
AUTONOMIA MILITAR
assumida pelo aparelho militar durante o "ciclo dos generais".
Infelizmente, as tendências politicamente regressivas ativadas
E CONSTRUÇÃO DA POTÊNCIA
pelo apego de Sarney ao presidencialismo bonapartista latino-
americano (um bonapartismo à maneira de Napoleão I I I , evi-
dentemente) e pela rápida recaída do Exército na obsessão Geraldo Lesbat Cavagnari Filho
repressiva contra o movirtento operário (e não é a fraseologia
liberal que irá exorcizar o demónio fascista incubado nesta
obsessão) obscureceram as perspectivas abertas pela iniciativa
esclarecida daqueles militares empenhados em aproximar as
Forças Armadas da cidadania. E m vez disso, assistimos a um A grande potência é um fim que pode ser estabelecido pela
confronto entre Sarney e Leônidas, do lado do aparelho mili- Política. O Estado brasileiro, apesar da carência do país em
tar e o Congresso Constituinte que, precariamente embora, re- capital e tecnologia, tem condições de construí-la a longo pra-
presenta a legitimidade democrata. Os que buscaram este con- zo. No entanto, tal tarefa não deverá se restringir ao desen-
fronto são os responsáveis pelo dilema político-institucional
volvimento da capacidade estratégica do Brasil, mas deverá
com que se defronta o país: ou ganham Sarney e Leônidas,
abranger a redução das suas deficiências, já que essas pode-
ou ganha a democracia.
rão se converter, em certo momento do processo de constru-
ção, em vulnerabilidades estratégicas — passíveis de apro-
veitamento por qualquer potência superior.
Como a condição de grande potência visará à afirmação
da autonomia estratégica brasileira, no espaço geopolítico
ocupado pela hegemonia norte-americana, sua construção po-
25 O ponto de vista do almirante Flores sobre as funções constitucio-
derá contrariar alguns interesses (de potência) dos Estados
nais das Forças Armadas está expresso em sua exposição na mesa- Unidos. Daí a importância que deve ser creditada à redução
redonda sobre o tr.na realizado no colóquio "A Constituinte em debate", das deficiências, de modo a neutralizar as ações contrárias que
mencionado na r ta 26. Também significativa foi sua intervenção no
debate "Os militares e a política", publicado em Relatório Reservado, poderão vir a ser conduzidas por tal hegemonia. É a partir
número especial, dezembro de 1986. A revista Política e Estratégia, dessa dialética, de afirmação e de negação da autonomia estra-
co-organizadora dos três seminários promovidos pelo Ministério da Ae- tégica, que o antagonismo de intenções deve ser considerado:
ronáutica, também organizou, em setembro de 1986, um seminário com
oficiais-generais da Marinha, do qual participaram os almirantes Flores num pólo, o Brasil buscando afirmá-la no seu espaço geopo-
e Vidigal. Ambos também se fizeram presente em debates organizados lítico de interesse; noutro pólo, os Estados Unidos tentando
pelo Núcleo de Estudos Estratégicos da UNICAMP. Ver também o impor disciplina no seu espaço geopolítico de influência e per-
debate entre militares e civis, A tutela militar. São Paulo, 1987, pp.
15-16, que publicamos em colaboração com Wilma Peres Costa e Eliézer suadindo o aspirante a grande potência a subordinar-se à sua
Rizzo. ordem ideológico-estratégica.

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