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26/03/2019 História, volver

EDIÇÃO 150 | MARÇO_2019

anais da ditadura

HISTÓRIA, VOLVER
O 31 de Março, o golpe militar e a nostalgia da direita
FABIO VICTOR

“Vocês vão ser torturados com algumas verdades aqui”, disse Bolsonaro em 2014, ao tomar a palavra no Congresso para
festejar os cinquenta anos do golpe. Deputados viraram as costas ANTONIO AUGUSTO_ACERVO CÂMARA DOS
DEPUTADOS

D
iante do Ministério da Defesa, em Brasília, Jair Bolsonaro ergue o
braço direito e dispara um rojão. De terno escuro, aproxima-se da
câmera e, em tom solene, afirma: “Trinta e um de Março de 1964.
Data da segunda independência do Brasil.” Atrás dele, vê-se uma grande
faixa amarela na qual está escrito: “Parabéns Militares – 31/março/64 –
Graças a vocês o Brasil não é Cuba” – essa última palavra está em
vermelho. Dois homens seguram a faixa, um deles é seu filho Eduardo
Bolsonaro. Não se vê mais ninguém no desolado canteiro da Esplanada
dos Ministérios onde o então deputado federal resolveu fazer seu
pronunciamento. Ele volta a falar para a câmera:

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“Estamos aqui comemorando os cinquenta anos da gloriosa


contrarrevolução de 31 de Março de 64. O grande líder da esquerda Luiz
Carlos Prestes, em 63, já disse, num seminário de apoio a Cuba, que o seu
grande sonho era fazer com que o Brasil seguisse o exemplo da nação de
Fidel Castro. Esse sonho não se concretizou. A nossa liberdade e a nossa
democracia devemos em especial aos militares, que evitaram que o Brasil
fosse comunizado em 1964.”

A mise-en-scène dura dois minutos e está registrada em um vídeo


publicado no canal de Bolsonaro no YouTube. A trilha sonora é o hino
marcial Fibra de Herói, que diz: “Bandeira do Brasil/Ninguém te
manchará./Teu povo varonil/Isso não consentirá.” Além desse filme de
2014, há na internet pelo menos mais dois registros parecidos, gravados
no mesmo local, um em 2013, outro em 2015. Nesse último estão reunidas
vinte pessoas, entre elas dois dos filhos do protagonista, Flávio e
Eduardo, que entrecortam o discurso do pai com gritos: “Brasil! Brasil!”
Bolsonaro levanta a voz: “Sete de Setembro nos deu a independência; 31
de Março, a liberdade.” E o grupo inteiro exclama: “Brasil acima de
tudo.”

Quando encenou essas performances, Jair Bolsonaro era apenas um


membro do chamado baixo clero da Câmara dos Deputados. Durante 28
anos, ou sete mandatos, foi esse o lugar um tanto obscuro que ocupou na
Casa, onde se preocupava quase que exclusivamente com temas de
interesse dos militares e em comemorar, teimosamente, todo ano, o 31 de
Março. Quando chegava o dia, ele subia à tribuna do plenário para fazer
sua apologia da ação militar em 1964.

Para a historiografia corrente desde a redemocratização, entretanto, o 31


de Março é um dia nefasto: o do golpe militar que, após derrubar um
presidente eleito, João Goulart, implantou uma ditadura de 21 anos que
sufocou a democracia no país. A própria data é parte da batalha pela
memória: a rigor, a deposição de Jango só foi consumada em 1º de abril,
quando os militares golpistas tomaram o Forte de Copacabana e forçaram
o presidente a deixar o Rio de Janeiro. Já que a data é conhecida como o
dia da mentira, os militares adotaram oficialmente o 31 de Março –
quando as tropas do general Olímpio Mourão Filho começaram a se
mover de Juiz de Fora (MG) rumo ao Rio.

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Pela primeira vez desde o final da ditadura, o país atravessará a data


histórica do golpe tendo à frente do Executivo alguém que contesta
testemunhos e provas sobre as agressões e mortes cometidas pelos
militares, mitifica um de seus oficiais mais associados à tortura, o coronel
Carlos Alberto Brilhante Ustra, e está na linha de frente de uma cruzada
revisionista pela memória do período, uma vez que considera que em
1964 não houve um golpe, mas um movimento feito por militares em
favor dos valores democráticos.

N
este ano, pelo menos duas unidades importantes do Exército, a
EsPCEx (Escola Preparatória de Cadetes do Exército) e o COTer
(Comando de Operações Terrestres), incluíram entre as datas
festivas de seus calendários oficiais, publicados na internet, a “Revolução
democrática de 1964”. A EsPCEx, localizada em Campinas (sp), é o
primeiro passo na formação de oficiais e por lá passaram Bolsonaro, o
atual comandante do Exército, Edson Leal Pujol, e o anterior, Eduardo
Villas Bôas.

Solicitei uma visita à EsPCEx. O Exército pediu que eu antecipasse as


perguntas que pretendia fazer no local. Entre elas, enviei duas questões
referentes ao 31 de Março e ao golpe de 64. O pedido de visita foi
rejeitado. Um assessor me informou que, na avaliação do Departamento
de Educação e Cultura da corporação, ao qual a escola está subordinada,
os estudantes ainda não têm maturidade para responder a perguntas
sobre aquele episódio histórico. Os alunos ingressam na escola com
idades entre 17 e 22 anos. O Exército também não quis responder que
tipo de solenidades a EsPCEx e o COTer farão para comemorar a data
nem se ela foi festejada nos últimos anos.

O Exército tem, garantida por lei, autonomia sobre seu sistema de ensino.
Até 2014, os colégios militares do país adotavam um livro de história que
contava que “a Revolução de 1964” havia sido feita por “grupos
moderados, respeitadores da lei e da ordem” e omitia as arbitrariedades e
violações dos direitos humanos cometidas no período. A obra, História
do Brasil: Império e República, da coleção Marechal Trompowsky, não
fazia parte da lista do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), do
Ministério da Educação (MEC). Ao discordar do seu uso em sala de aula,
a professora de história Silvana Schuler Pineda, do Colégio Militar de

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Porto Alegre, foi afastada das suas funções. Recorreu à Justiça e


conquistou o direito de voltar a dar aulas. Procurei Pineda, que está
aposentada desde 2014, mas ela não quis dar entrevista. Desde que
reportagens foram publicadas sobre o assunto, os colégios militares
adotam livros de história do PNLD, com relatos mais fiéis sobre o que de
fato ocorreu.

Segundo o comandante Leal Pujol, o modo como o 31 de Março será


comemorado neste ano “depende da diretriz a ser expedida pelo
Comando do Exército, em conformidade com orientações da Presidência
da República e do Ministério da Defesa”. A resposta do comandante às
minhas questões chegou na forma de nota oficial: “O Movimento de 31 de
Março representa um fato histórico, enquadrado em um contexto
mundial de Guerra Fria, quando dois blocos antagônicos se enfrentaram,
e que envolveu toda a Nação brasileira, com a ativa participação das
Forças Armadas. Como tal deve ser estudado e melhor compreendido,
levando-se em conta o contexto histórico em que está inserido.”

O ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, numa conversa


em 14 de fevereiro, deu a entender que a data não passará em branco. “É
um fato histórico, e tem que ser lembrado como tal. Teve a participação
significativa das Forças Armadas? Teve. A mídia lembrou os
antecedentes e o pós? Lembrou. Então por que não resgatar isso? Não
vejo como omitir uma data histórica, como tantas que temos e que fazem
parte do nosso imaginário”, afirmou Azevedo e Silva, em seu gabinete no
ministério, a cerca de 200 metros do canteiro onde Bolsonaro costumava
celebrar o golpe.

O presidente da República não respondeu às perguntas que enviei sobre


como pretende lembrar o 31 de Março neste ano e se passará alguma
diretriz às Forças Armadas a esse respeito. Na posse do diretor-geral
brasileiro da usina binacional de Itaipu, general Joaquim Silva e Luna, em
26 de fevereiro, Jair Bolsonaro se referiu ao primeiro ditador do regime
militar, Humberto de Alencar Castelo Branco, como “o homem que foi
eleito presidente da República do Brasil no dia 11 de abril de 1964” – na
verdade, o general foi escolhido em votação indireta pelo Congresso. E,
ao lado do presidente paraguaio, Mario Abdo Benítez, chamou de

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“estadista” o ditador Alfredo Stroessner – de quem o pai de Abdo foi


secretário particular.

Poucos dias antes de o general Otávio Santana do Rêgo Barros se tornar


porta-voz presidencial, quando ocupava ainda a função de chefe do
Centro de Comunicação Social do Exército, perguntei a ele qual seria o
comportamento da corporação sob o governo Bolsonaro em relação ao 31
de Março e ao período militar. “Não acredito que vá mudar muita coisa
em relação a isso”, disse ele. “Não porque não achamos que [o dia] não
mereça ser comemorado, mas porque é história, tem de ficar na história.
Nossa percepção sobre o 31 de Março nunca mudou, o que mudou
durante um período foi a exposição sobre isso.” Na caserna, é dado como
certo que Bolsonaro fará alguma manifestação, ainda que seja um tuíte.
Seria o primeiro presidente pós-redemocratização a celebrar a data.

Grupos de direita também se preparam para o aniversário. A produtora


Brasil Paralelo anunciou para o dia 31 de março a pré-estreia do
documentário 1964 – O Brasil Entre Armas e Livros. A empresa produz
séries e programas para a internet com conteúdo de direita e tem entre os
seus colaboradores o polemista Olavo de Carvalho, o blogueiro Flavio
Morgenstern e o deputado Luiz Philippe de Orleans e Bragança, do PSL.
“Ditadura, Regime Militar ou Revolução? O Brasil Paralelo está
produzindo um documentário inédito para resgatar o período mais
deturpado da nossa história”, diz um dos textos promocionais do
documentário. No começo de fevereiro, o deputado federal Eduardo
Bolsonaro, filho do presidente, fez no Twitter a seguinte propaganda do
documentário: “1964, O FILME! Uma produção Brasil Paralelo que estreia
nos cinemas dia 31 de março falando verdades nunca antes contadas –
muito menos pelo seu professor de história!”

O
governo é hoje dominado por militares. Além do presidente, que é
capitão reformado, de seu vice, general Hamilton Mourão, e de seu
porta-voz, general Rêgo Barros, há oito ministros oriundos das
Forças Armadas e vários militares em postos importantes no primeiro e
segundo escalões – um recorde da presença militar no Executivo desde a
abertura política.

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Cinquenta e cinco anos depois do golpe, a grande maioria dos militares


mantém a convicção de que cumpriram um dever cívico em 1964. Parte
deles ainda se refere ao golpe que depôs Jango como “revolução”. Mas a
maioria, especialmente o grupo hoje no governo, passou a adotar a
denominação “contragolpe” ou “contrarrevolução democrática”.

Depois da redemocratização, os militares se recolheram à caserna,


mantendo-se reservados com relação ao 31 de Março. Sempre que algum
deles quebrava o silêncio tácito, eclodia uma crise política. Uma delas
ocorreu em 2011, quando o general Augusto Heleno, às vésperas de
entrar para a reserva, preparou uma palestra intitulada “A
contrarrevolução que salvou o Brasil”, para ser lida num evento em 31 de
Março. A informação vazou, e o então ministro da Defesa, Nelson Jobim,
a mando de Dilma Rousseff – ela mesma uma ex-integrante da luta
armada –, ordenou que Heleno desistisse da palestra, que acabou
cancelada. Desde então, nenhum comandante nem general da ativa se
manifestou publicamente sobre a efeméride. Heleno é hoje ministro-chefe
do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência.

Oficiais do Exército afirmam que, nos quartéis pelo país, o 31 de Março


sob Bolsonaro deverá ser festejado de forma muito mais aberta que nos
últimos anos. Um general da ativa que comanda um batalhão no interior
do país e preferiu ficar anônimo me disse que o clima entre os militares é
de alívio, por não precisarem mais sufocar algo que sempre tiveram como
verdade. “As últimas comemo-rações estavam muito discretas, quase
escondidas, os comandantes não convidavam ninguém de fora, não havia
entrega de medalhas.” Dois ex-ministros da Defesa corroboram a ideia de
uma provável mudança de tom.

Por outro lado, há na caserna quem defenda que é melhor as Forças


Armadas guardarem discrição na data do golpe, devido ao início caótico
do governo Bolsonaro – com crises políticas, intrigas com familiares,
denúncias de corrupção e a demissão de um ministro palaciano em 49
dias de governo, além dos obstáculos para aprovar a reforma da
Previdência no Congresso e a ampliação da crise na Venezuela.
Conforme esse raciocínio, ainda que Bolsonaro resolva comemorar a data,
seria melhor que os militares permanecessem em silêncio.

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O vice-presidente Hamilton Mourão, que desde o início do governo tem


buscado se contrapor a opiniões extremadas de Bolsonaro, defende que o
Exército mantenha uma postura moderada – mas não nega que
comemorações possam ocorrer. “Julgo que a data será comemorada
internamente e sem estardalhaço”, me disse o general em 16 de fevereiro.
No final do ano passado, já eleito, mas antes de tomar posse – antes,
portanto, de fixar uma imagem de prudência e contrapeso em relação ao
presidente –, Mourão fora menos assertivo. Quando perguntei sobre a
possibilidade da volta das comemorações de 31 de Março aos quartéis, o
general ficou calado por alguns segundos e por fim respondeu: “Acho
que o comandante do Exército não vai ficar fazendo ordem do dia a
respeito. Mas é um fato histórico, e o Exército sempre comemora os seus
fatos históricos.”

M
ais que os militares, algumas autoridades civis em postos
estratégicos do governo Bolsonaro escancaram sua postura
revisionista com relação à ditadura militar, sobretudo o trio mais
ideológico da Esplanada: a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos
Humanos, Damares Alves, o ministro da Educação, Ricardo Vélez
Rodríguez, e o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo.

Depois que Bolsonaro tirou a Comissão de Anistia da alçada do


Ministério da Justiça e a subordinou ao de Damares, ela sinalizou que
pretende esvaziar a entidade, criada em 2001, no governo Fernando
Henrique Cardoso, para reparar vítimas de perseguições e violações dos
direitos humanos durante a ditadura. A ministra anunciou que vai rever
os critérios de concessão de indenizações e mudar todos os conselheiros
que analisam os pedidos de reparação.

Fervoroso defensor da reinterpretação da ditadura, Vélez escreveu


quando ainda não era ministro um artigo chamado “31 de Março de 1964:
É patriótico e necessário recordar essa data”. No final de fevereiro, o MEC
enviou uma carta a todas as escolas do Brasil pedindo que alunos,
professores e funcionários cantassem o Hino Nacional diante da bandeira
do Brasil, e que a cena fosse gravada. Também solicitava que na ocasião
fosse lida uma carta de Vélez que se encerrava com o slogan de
campanha de Bolsonaro:
“Brasil acima de tudo. Deus acima de todos.” Dada a repercussão

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negativa, Vélez voltou atrás no pedido de filmagem e na inclusão do


slogan bolsonarista.

O ministro Ernesto Araújo, por sua vez, num texto publicado em


fevereiro em seu blog, observou: “Vendo que o Brasil rumava para o
abismo de uma ditadura comunista ao estilo cubano, [meu pai] apoiou a
Revolução de 1964 na primeira hora […] Acreditou que o caminho para a
democracia e a liberdade no Brasil passava pela luta contra a subversão
comunista […].”

U
ma pesquisa do Ibope feita entre 9 e 26 de março de 1964 em oito
capitais, mas que não foi divulgada à época, revelou que, às
vésperas de ser deposto pelos militares, o presidente João Goulart
continuava popular nas maiores cidades do país. Em cinco capitais (Rio,
Salvador, Recife, Porto Alegre e Fortaleza), entre 50% e 51% dos
entrevistados afirmaram que votariam em Jango nas eleições
presidenciais de 1965, caso ele concorresse (o que não era possível, na
época, pois a Constituição proibia a reeleição). Em São Paulo, Belo
Horizonte e Curitiba, o índice variava entre 39% e 41%. O acesso público
aos dados da pesquisa só foi possível em 1989, depois que o Ibope doou
seu acervo ao Arquivo Edgard Leuenroth, da Universidade Estadual de
Campinas.

O apoio da população ao presidente, contudo, não impediu os militares


de irem adiante com o golpe, uma vez que tinham o respaldo do
empresariado, dos meios de comunicação, da Igreja Católica e de uma
parcela expressiva de brasileiros. Pode haver divergências entre
pesquisadores do período sobre se o evento de 1964 foi um golpe militar
ou um golpe civil-militar, mas eles concordam que “revolução” é uma
palavra inadequada.

“Tecnicamente, tratou-se de um golpe de Estado, definido como uma


ação súbita que quebra a ordem constitucional e derruba um governo
legalmente constituí-do”, disse Celso Castro, diretor e professor titular do
CPDOC-FGV (Centro de Pesquisa e Documentação de História
Contemporânea do Brasil da Fundação Getulio Vargas) e especialista na
história dos militares no país. “No dia 2 de abril, o general Costa e Silva
organizou um autodenominado Comando Supremo da Revolução,

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composto por três membros: o brigadeiro Francisco de Assis Correia de


Melo [Aeronáutica], o vice-almirante Augusto Rademaker [Marinha] e o
próprio Costa e Silva. No dia 9 de abril, esse Comando Supremo da
Revolução editou um Ato Institucional cuja introdução deixava bem claro
que a ‘revolução vitoriosa legitima-se a si própria’ e afirmava que o
Congresso recebia sua legitimidade do Ato Institucional, e não vice-versa.
O uso do termo ‘revolução’ pelos que apoiaram o golpe procura marcar
uma profunda ruptura com o passado e empregar uma palavra de
sentido menos negativo que ‘golpe’”.

O que dizer então de “contragolpe” ou “contrarrevolução”, termos que ao


longo dos anos foram gradativamente sendo empregados pelos militares,
às vezes acompanhados do adjetivo “democrático(a)”? Segundo Castro,
para esses termos fazerem sentido seria necessário antes “provar que
havia de fato um golpe ou uma revolução em curso, o que não é crível,
embora houvesse, sem dúvida, pessoas e grupos que gostariam de fazê-
los”.

Não apenas o meio militar rejeita o conceito de “golpe”, mas há também


quem defenda que, ao se falar em “ditadura”, o termo deva ser
empregado somente para o período que vai do fim de 1968, com a
decretação do AI-5, até o fim do governo Médici, em março de 1974.
O Ato Institucional nº 5 aumentou a repressão aos grupos da luta
armada, deu poderes ao presidente para fechar o Congresso, instituiu
censura prévia e suspendeu o habeas corpus, entre outras
arbitrariedades. Entretanto, nos primeiros dias após o golpe de 64,
sindicatos e movimentos sociais foram fechados ou sofreram intervenção.
Direitos políticos foram cassados. Já em 2 de abril, o militante comunista
Gregório Bezerra foi torturado em praça pública. Milhares de militantes
de esquerda e funcionários públicos foram presos – de tão extensa a
operação, usaram-se como prisões navios ancorados em Santos, no Rio de
Janeiro e em Rio Grande (RS).

Com a escalada da luta armada contra o regime, no final dos anos 60, a
repressão tornou-se mais brutal. Instalada pelo governo federal em 2012
para apurar violações de direitos humanos entre 1946 e 1988, a Comissão
Nacional da Verdade contabilizou 434 mortos e desaparecidos no período
da ditadura militar e apontou 377 agentes de Estado como responsáveis

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pelos crimes. Os militares não reconhecem o relatório da comissão e a


acusam de ter agido de maneira enviesada, por não investigar também os
crimes cometidos por militantes de esquerda e por restringir a apuração
ao período 1964-85.

E
m 2 de abril de 1964, o jornal O Estado de S. Paulo publicou a
seguinte manchete: “Vitorioso o movimento democrático.” O
editorial de O Globo estampou: “Ressurge a democracia!” Em 10 de
abril, a revista O Cruzeiro lançou uma “Edição Histórica da Revolução”.
Quase toda a imprensa apoiou o golpe. Durante a ditadura, o 31 de
Março era uma data festiva. Os presidentes falavam em cadeia nacional
de rádio e tevê, o governo promovia desfiles militares – e a mídia
registrava tudo com destaque.

Em 1974, nos dez anos do golpe, a manobra autoritária continuava a ser


chamada por quase toda a imprensa de “revolução”. Em 1º de abril de
1984, tanto O Globo quanto O Estado de S. Paulo ainda noticiavam os “20
anos da revolução”. O diário paulista, entretanto, registrou uma mudança
de ventos: “A comemoração ficou praticamente restrita aos quartéis em
todo o país.” Entre os jornais, a novidade vinha da Folha de S.Paulo, que
apoiou a ditadura, mas foi o primeiro grande meio de comunicação a
aderir à campanha pelas Diretas Já e passar a definir a ação militar de
1964 como “golpe”.

Nos primeiros governos civis depois da distensão, de José Sarney e


Fernando Collor, os militares estavam fragilizados pela perda de poder e
pela crise do país. Os choques com o Executivo começaram a aparecer na
gestão de Fernando Henrique Cardoso, que desagradou a caserna ao
criar o Ministério da Defesa, subordinando os comandantes militares a
um comando civil. Foi nesse ambiente que, em 31 de março de 2000, o
Exército divulgou um informe afirmando que em 1964 ocorrera um ato
de “coragem moral” para “restaurar a democracia”. O documento,
intitulado “Revolução de 31 de Março de 1964: A história que não se
apaga nem se reescreve”, provocou mal-estar no governo de Fernando
Henrique Cardoso, ele próprio vítima da perseguição política durante a
ditadura – em 1969, foi aposentado compulsoriamente do cargo de
professor de ciência política da Universidade de São Paulo e teve os
direitos políticos cassados pelo AI-5.

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Em 2004, já no governo Lula, um choque com os militares derrubou o


ministro da Defesa, José Viegas. Foi o primeiro grande episódio de atrito
entre a caserna e o governo civil depois da redemocratização. Em
resposta a uma reportagem sobre o jornalista Vladimir Herzog, morto
pela ditadura, o Exército havia declarado que “as medidas tomadas pelas
forças legais foram uma legítima resposta à violência dos que recusaram
o diálogo”. Lula ordenou, então, que o comandante do Exército, general
Francisco Albuquerque, redigisse uma nota de retratação, o que foi feito.
O episódio levou Viegas, que já estava desgastado, a deixar o cargo. Em
sua carta de demissão, ele apontou a “persistência de um pensamento
autoritário” no Exército.

Albuquerque protagonizou outro momento delicado durante o governo


Lula, quando, em 2006, seu último ano como comandante do Exército, fez
uma ordem do dia com apologia ao dia do golpe: “O 31 de Março […] É
memória, dignificado à época pelo incontestável apoio popular.” Procurei
Albuquerque para comentar os episódios. Ele preferiu não se pronunciar,
alegando que está na reserva. “Talvez [uma manifestação minha] não
ajude meus companheiros. É um período que ainda requer atenção”,
justificou, por telefone.

Q
uem nunca deixou de fazer alarde em relação ao 31 de Março foi
Bolsonaro. Nas ocasiões em que, como deputado federal pelo
estado do Rio de Janeiro, usou a tribuna da Câmara para louvar o
dia do golpe e o período ditatorial, ele sempre lembrava o apoio que os
militares receberam das mulheres, da Igreja, dos empresários e dos meios
de comunicação. Chegou a dizer em mais de uma ocasião que “o erro da
ditadura foi torturar e não matar” e dedicou o seu voto a favor do
impeachment, em 2016, à memória do coronel Carlos Alberto Brilhante
Ustra – “o terror de Dilma”, nas palavras de Bolsonaro –, que comandou
o DOI-Codi do II Exército, em São Paulo, um dos principais centros de
tortura durante a ditadura.

Em 31 de março de 2004, Bolsonaro fincou cruzes no gramado da


Esplanada para lembrar colegas de farda mortos na ditadura. Ao
discursar na tribuna da Câmara, ajoelhou-se para “reverenciar a memória
dos militares que, em 1964, evitaram que fosse instalada no país uma
ditadura totalitária de esquerda”. Em seguida leu trechos de um editorial

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assinado por Roberto Marinho no jornal O Globo, em 1984, em que o


dono e diretor de redação do diário carioca justificava o apoio ao golpe
de 64 – Bolsonaro recorreria a esse texto em diversas ocasiões, inclusive
na campanha eleitoral, quando o citou, de memória, ao ser entrevistado
ao vivo no Jornal Nacional.

Em 31 de março de 2005, o capitão reformado se queixou: “A data de hoje


deveria ser comemorada com muita festa pelo Brasil. Infelizmente,
interesses mais fortes e escusos fazem com que esta data passe
praticamente despercebida.”

Em 2007, homenageou o 31 de Março dizendo: “Acusam-nos de tortura e


desvios, mas até hoje não encontramos nenhum sargento, cabo, coronel
ou general rico, com vinte anos de poder.”

Em 2009, Bolsonaro glorificou os militares e atacou Dilma Rousseff, então


ministra da Casa Civil e pré-candidata do PT à Presidência, pela
participação dela na luta armada.

Em 31 de março de 2010, pontificou que em 1964 “o Brasil deu início a


vinte anos de glória, período em que o povo gozou de plena liberdade”.

Em 2012, como não estava em Brasília na data, Bolsonaro contratou um


avião para sobrevoar praias cariocas puxando uma faixa com elogios ao
golpe. “Sou macho, mas estou arrepiado”, disse o então deputado à
imprensa, ao assistir paraquedistas saltarem com a bandeira do Brasil,
outro evento comemorativo.

Em 2014, no cinquentenário do golpe, Bolsonaro se empenhou com


ânimo redobrado na tarefa. Além da performance na Esplanada dos
Ministérios, fez um requerimento ao presidente da Câmara, Henrique
Eduardo Alves, do PMDB, para a realização de uma sessão solene em
homenagem ao 31 de Março. Na justificativa, escreveu que os militares
possibilitaram “ao longo de vinte anos a consolidação da democracia, o
respeito aos direitos humanos e um inegável progresso na geração de
empregos e direitos sociais”.

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Havia outros pedidos de sessão solene para lembrar a data, mas a fim de
atacar o golpe e a ditadura. O presidente da Câmara deferiu o pedido de
Luiza Erundina, então no PSB, e rejeitou o de Bolsonaro. “Vou, de forma
democrática, indeferir o requerimento do parlamentar Bolsonaro, porque
esta Casa jamais poderia homenagear uma revolução que cassou 173
deputados federais, fechou esta Casa por três vezes e, durante o período
em que esta esteve fechada, editou praticamente por um ato, por uma
emenda outorgada, uma nova Constituição. Aquela revolução não
mereceu nem merece o respeito desta Casa”, discursou Alves na ocasião.

Quando Bolsonaro subiu à tribuna para discursar, deputados e


manifestantes viraram as costas para ele e exibiram cartazes com fotos de
desaparecidos na ditadura. “Vocês vão ser torturados com algumas
verdades aqui. Deixe-os de costas, presidente, por favor”, disse Bolsonaro
a Amir Lando, que comandava a sessão. Alegando que a atitude feria o
regimento da Câmara, Lando pediu que o grupo se virasse de frente para
ouvir o colega ou então se retirasse. Como não foi atendido, encerrou a
sessão.

A essa altura, Bolsonaro já começava a aparecer como uma liderança


nacional, beneficiado também pela crescente popularidade dos militares
entre a população. Em 2017, pesquisa Datafolha mostrou que as Forças
Armadas eram a instituição na qual a população tinha mais confiança. No
mesmo ano, o deputado se lançou como pré-candidato à Presidência.

N
ão é improvável que os embates vistos nos cinquenta anos do golpe
no plenário da Câmara se repitam no próximo 31 de Março. Nunca
a base governista foi tão direitista e tão alinhada aos militares.
Indagado sobre o que o PSL prepara para a data do golpe, o líder do
governo na Câmara, deputado Major Vítor Hugo (GO), disse que ainda
não havia conversado com Bolsonaro sobre o assunto e não quis falar
sobre a ditadura. Duas deputadas do partido com trânsito com o
presidente, Joice Hasselmann (SP), nomeada líder do governo no
Congresso, e Bia Kicis (DF), tampouco quiseram dar entrevista sobre o
assunto.

A oposição sustenta que, se os governistas fizerem apologia ao golpe,


haverá reação. O líder do PSOL na Câmara, Ivan Valente, que viveu na

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clandestinidade e foi preso e torturado durante a ditadura por integrar o


Movimento de Emancipação do Proletariado (MEP) – grupo que defendia
a luta armada e a implantação de um governo socialista no país –,
afirmou que, nesse caso, terá de lembrar os instrumentos de tortura de
que ele e outros foram vítimas. “Vou trazer uma cadeira do dragão para o
Salão Verde da Câmara”, ele disse, em referência ao equipamento usado
para dar choques elétricos em opositores do regime. Valente foi preso
duas vezes: em 1977, por seis meses (quando foi torturado por dez dias
seguidos), e em 1978, por cinco meses. “Por mais que queiram fazer
revisionismo histórico e cultural, você não reescreve uma história que já
está gravada dentro e fora do país, com registros e documentos,
evidências incontestáveis – cassações, fechamento do Parlamento,
censura, tortura. Embora o bolsonarismo sobreviva pela lógica do
retrocesso, o espaço para essa revisão é limitado”, observou o deputado.

Para Valente, os generais que integram o governo pensarão duas vezes


antes de comemorar o 31 de Março. “Seria contraproducente, num
momento em que querem aprovar a reforma da Previdência. Eles
precisam do apoio da mídia, e o governo tem uma fragilidade imensa na
articulação política.”

Procurado, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, não respondeu como


a Casa deve agir se houver pedidos de sessões solenes para lembrar a
data nem como ele, pessoalmente, interpreta o que ocorreu em 31 de
Março.

A
sala dos estudantes da Faculdade de Direito da USP, no Largo de
São Francisco, no Centro de São Paulo, estava abarrotada na manhã
de quarta-feira, 20 de fevereiro. Centenas de pessoas ocupavam o
auditório para a cerimônia de lançamento da Comissão Arns, cujo nome
homenageia o cardeal dom Paulo Evaristo Arns, referência no combate à
ditadura. Trata-se de um observatório criado para “prevenir e impedir
uma escalada do autoritarismo e da violência” e monitorar “todas as
medidas tomadas para atacar a sociedade civil, para restringir as
liberdades públicas e enfraquecer o estado de direito”, como afirmou na
fala de encerramento do evento o presidente da nova entidade, o cientista
político Paulo Sérgio Pinheiro, ex-ministro dos Direitos Humanos
(governo FHC) e integrante da extinta Comissão Nacional da Verdade.

https://piaui.folha.uol.com.br/materia/historia-volver/ 14/16
26/03/2019 História, volver

Durante o evento, a presidente do Centro Acadêmico XI de Agosto,


Laura Arantes, lembrou que o lançamento da comissão ocorria num local
por onde passaram “gerações de estudantes que deram a vida para
defender os direitos humanos, em tempos tão difíceis como a ditadura
militar”. Leonardo Pinho, presidente do Conselho Nacional dos Direitos
Humanos (CNDH) – entidade ligada ao Ministério da Mulher, da Família
e dos Direitos Humanos, mas formada por integrantes da sociedade civil
e do poder público –, listou quatro grandes desafios para a democracia
brasileira, entre eles o desafio da memória. “Estamos vivendo tempos em
que autoridades públicas buscam negar e reescrever a história do nosso
país. É fundamental resgatar e valorizar a história dos que tombaram e
dos que resistiram para fazer valer os direitos humanos e a democracia”,
discursou.

Ao final do evento, perguntei a Pinheiro se, além de monitorar violações


atuais aos direitos humanos, a comissão agiria para evitar o revisionismo
histórico que encontra ambiente propício no governo Bolsonaro.
“Evidente que é preocupante quando um torturador é tratado como
herói, mas o que vamos fazer é examinar situações concretas, caso a caso.
Se alguma lei for proposta nesse sentido, poderemos agir.”

Outros integrantes do colegiado defenderam uma posição mais efetiva no


debate sobre a memória da ditadura. O advogado José Carlos Dias, ex-
ministro da Justiça no governo FHC e também integrante da Comissão
Nacional da Verdade, disse que a questão do revisionismo deveria ser
debatida pela Comissão Arns, “porque cabe a nós também cuidar para
que a história seja contada com exatidão, e não com as distorções que
vêm sendo feitas pelo atual presidente”.

A socióloga Maria Victoria Benevides, professora titular aposentada da


USP, que leu no evento o manifesto de lançamento da comissão, afirmou
que, independentemente das decisões do grupo, ela encampará a
“batalha da narrativa”. “Eu, pessoalmente, como professora, irei reagir.
Estaremos sempre abertos ao diálogo, mas atentos à verdade histórica,
que está mais do que documentada. Queremos preservar o futuro de
retrocessos.”

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26/03/2019 História, volver

https://piaui.folha.uol.com.br/materia/historia-volver/ 16/16

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