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BUENO, Eduardo. Brasil: uma história.

OS ANOS DE CHUMBO
Logo após a vitória do golpe de 1964, seus líderes se apressaram em defini-lo como um
“movimento legalista”. O general Mourão Filho declarou que Jango fora afastado do poder, “de
que abusava”, para que, “de acordo com a lei, se opere sua sucessão”. Já o general Kruel
garantiu que o Exército iria “se manter fiel à Constituição e aos poderes constituídos”. Porém,
quando Castelo baixou o AI-2, reduzindo a farrapos a Constituição de 1946, o movimento de
1964 se tornou uma ditadura militar de fato. Com a posse de Costa e Silva, em 1967, a linha-
dura chegou ao poder. Embora, mais tarde, o segundo general-presidente quisesse promover a
redemocratização, as circunstâncias históricas o tornariam o maior responsável pelo fechamento
definitivo do regime. Pressionado pela linha-dura e pelas greves operárias e manifestações
estudantis, Costa e Silva encontrou um pretexto fútil para decretar, em 13 de dezembro de 1968,
o Ato Institucional no 5, chamado de “golpe dentro do golpe”. Apesar de a expressão ter virado
chavão, ela continua refletindo a realidade: o AI-5 concretizou o golpe de 1964 e deixou claro
que os militares estavam dispostos a abandonar sua posição de “poder moderador”. Desde a
proclamação da República, eles eram chamados a intervir no processo político da nação em
momentos de crise – e retornavam aos quartéis tão logo tais problemas estivessem contornados.
Dessa vez, dispostos a colocar em prática suas teses desenvolvimentistas, eles se manteriam por
duas décadas no poder, promovendo o fechamento político do país e se impondo à sociedade
civil.
O auge do binômio “fechamento político-euforia desenvolvimentista” se deu no
governo de Garrastazu Médici. O AI-5 (leia o box na p. 406) convencera vários setores de
oposição de que o único caminho que restava para combater o regime e destituir os militares era
a luta armada. Tanto é que, em setembro de 1969, no início de uma série de ações similares, o
embaixador norte- americano no Brasil foi sequestrado e trocado por quinze presos políticos.
Médici, o terceiro e mais brutal dos generais-presidentes, iniciou então um combate sem trégua
aos “terroristas” – e os venceu. Com o surto desenvolvimentista, batizado de “milagre
econômico”, repressão e ufanismo andaram de braços dados. Médici se tornaria presidente de
um país esquizofrênico: numa nação em crise, jornais e TVs, sob censura, só davam “notícias
boas”. As boas notícias de fato vieram, embora devagar, com a posse de Ernesto Geisel, em
março de 1974.
Disposto a promover o retorno aos quartéis e acabar com o “poder paralelo” da linha-
dura (que, por vias transversas, trouxera de volta o fantasma da quebra da hierarquia militar),
Geisel deu início ao processo de abertura “lenta, gradual e segura”. Realmente lenta e gradual, a
abertura – concretizada por João Figueiredo, o quinto general-presidente – foi muito insegura.
Além da crise econômica global e da falência do “milagre”, a ultradireita reagiu com bombas à
anistia assinada por Figueiredo. A medida beneficiou não só guerrilheiros de esquerda, mas
torturadores e terroristas de direita. Nos anos 1990, famílias de militantes de esquerda
receberiam indenizações da União. A nação, porém, não foi indenizada por 21 anos de arbítrio.
O GOVERNO COSTA E SILVA
Embora, durante o desenlace da conspiração de 1964, Artur da Costa e Silva tenha
desempenhado apenas o papel de coordenador das tropas golpistas no Rio de Janeiro, após a
vitória do movimento esse general “tradicionalista” foi assumindo uma posição cada vez mais
influente, até se tornar o porta-voz da linha-dura do Exército. Em princípio, Costa e Silva foi
contrário à posse de Castelo Branco, sugerindo que o poder permanecesse nas mãos do
Comando Supremo da Revolução, a Junta Militar que ele mesmo comandava e que fora
responsável pela decretação do AI-1. Poucos dias depois, em nome da “unidade do Exército”,
Costa e Silva apoiou a posse de Castelo – embora se mantivesse sempre à direita do primeiro
general-presidente. Como ministro da Guerra, Costa e Silva solidificaria essa posição e teria um
papel decisivo não apenas na cassação de JK, mas também na decretação do AI-2, o ato que
institucionalizou a ditadura.
Em janeiro de 1966, Costa e Silva embarcou para uma longa viagem ao exterior (e três
mil oficiais “prestigiaram” seu embarque, para apoiá-lo). Em entrevista em Paris, lançou sua
candidatura à Presidência – “preferencialmente pelo partido do governo; senão, pela oposição”.
Foi um desrespeito explícito à determinação de Castelo Branco, que já o alertara sobre a
existência de outros candidatos (entre eles os generais Cordeiro de Farias e Juraci Magalhães e
os civis Nei Braga e Olavo Bilac Pinto). Cordeiro de Farias se enfureceu, uma vez que,
cumprindo as ordens do presidente, ainda não saíra em campanha. De qualquer modo, em
outubro de 1966, com a abstenção do MDB (que se retirou do plenário), Costa e Silva foi eleito
presidente, e o civil Pedro Aleixo, vice. Depois da posse, em 15 de março de 1967, em vez de
contar com o apoio, Costa e Silva teria de enfrentar a oposição e a ousadia crescentes da linha-
dura, cada vez mais radical. Mesmo sem ter ligações com o “grupo da Sorbonne”, Costa e Silva
– chamado de “tio velho” pelos conspiradores de 1964 – assumiu o poder com planos de
restabelecer a democracia. Mas, ao fazer Delfim Netto seu todo-poderoso ministro da Fazenda,
o presidente passou a ser visto como inimigo pela linha-dura ultranacionalista. Pressionado pela
direita e pela esquerda – já que, pelo país, explodiam manifestações estudantis e greves
operárias –, Costa e Silva viu-se forçado a abrir mão de seus planos liberalizantes e respondeu
com o endurecimento político. Após a morte do estudante Édson Luís Souto, em março de
1968, a Passeata dos Cem Mil, em junho, e o discurso do deputado Márcio Moreira Alves, em
setembro, o general capitulou e decretou o AI-5 – o ato que sacramentou o arbítrio. Em agosto
de 1969, quando Costa e Silva ficou doente (leia o texto seguinte) e uma junta militar assumiu o
poder, a vitória da linha- dura já estava plenamente consolidada.
A VITÓRIA DA LINHA-DURA
Quando o general Costa e Silva sofreu um derrame, em agosto de 1969, a Constituição
determinava que o vice, Pedro Aleixo, assumisse o poder. Embora a Constituição tivesse sido
promulgada pelo próprio regime militar, ela foi simplesmente ignorada. Uma junta militar
assumiu o controle da nação – e acelerou a escalada repressiva. Com as esquerdas já tendo
deflagrado a luta armada e sequestrado o embaixador norte-americano Charles Elbrick, no dia 4
de setembro (leia p. 396), a Junta baixou novos atos institucionais: o AI-13, criando a pena de
banimento do território nacional, aplicável a todo cidadão que se tornasse “inconveniente,
nocivo ou perigoso à segurança nacional”; e o AI-14, que estabeleceu a “pena de morte para os
casos de guerra externa psicológica, revolucionária ou subversiva”. Ao mesmo tempo em que
endurecia as regras políticas, a Junta também institucionalizava a tortura, que se tornaria uma
prática comum nos porões da ditadura.
NASCE O AI-5
Em março de 1968, a Polícia Militar invadiu o restaurante estudantil Calabouço, no Rio
de Janeiro, e, no choque que se seguiu, foi morto o estudante Édson Luís Souto. No dia
seguinte, 50 mil pessoas saíram às ruas para protestar. Três meses depois, cem mil estudantes
fizeram uma enorme passeata no Rio de Janeiro. No início de setembro, depois de a PM ter
invadido a Universidade de Brasília, o deputado carioca Márcio Moreira Alves, do MDB, em
discurso no Congresso, sugeriu que a população boicotasse o desfile do 7 de Setembro e as
mulheres se recusassem a namorar oficiais que não denunciassem a violência. O discurso foi
considerado uma ofensa às Forças Armadas e os ministros militares decidiram processar o
deputado. Para isso, precisavam que o Congresso suspendesse a imunidade parlamentar de
Moreira Alves. Em 12 de dezembro de 1968, o Congresso corajosamente se negou a fazê-lo. No
dia seguinte, disposto a punir o deputado, o general-presidente Costa e Silva decretou o AI-5.
Naquele instante, o governo militar abriu mão de qualquer escrúpulo, abandonando de vez sua
suposta busca pelo retorno à legalidade constitucional. De fato, a punição a Márcio Moreira
Alves foi só o pretexto para a decretação do AI-5. O ato pisoteou a Constituição de 1967,
decretando o fechamento do Congresso, autorizando o Executivo a legislar “em todas as
matérias previstas nas Constituições”, suspendendo as “garantias constitucionais ou legais de
vitaliciedade, inamobilidade e estabilidade” e permitindo ao presidente “demitir, remover,
aposentar, transferir” juízes, empregados de autarquias e militares. Na prática, o ato concentrava
nas mãos de Costa e Silva uma quantidade monumental de poder, tornando-o um ditador no
sentido pleno da palavra. O AI-5 perduraria por onze longos anos.
Mas, em nome da “segurança nacional”, a linha-dura contestava até mesmo as decisões
da Junta – como o fato de ela ter negociado com os sequestradores de Elbrick, trocando-o por
quinze presos políticos. No dia 14 de outubro, por pressão da “comunidade de informações” do
Exército – liderada pelo SNI –, a Junta, convencida de que Costa e Silva não se recuperaria,
decretou o AI-16, declarando vagos os cargos de presidente e vice. Iniciou-se então a luta pela
sucessão, vencida com facilidade pelo general Garrastazu Médici – não por acaso ex-chefe do
SNI (posto que assumira depois que o general Golbery, incompatibilizado com a linha-dura, se
afastara do cargo, no fim do governo Castelo Branco). Médici foi escolhido por 240 generais, e
não pelos habituais 1.300 oficiais das Três Armas. Em 17 de dezembro de 1969, o
“tradicionalista” Costa e Silva estava morto, e o poder passara para mãos muito mais radicais do
que ele previra ou desejara.
O GOVERNO MÉDICI
Durante os governos Castelo Branco e Costa e Silva, a linha-dura não mostrou a cara:
agiu nas sombras, em nome da “segurança nacional” e sob a denominação vaga de “sistema
militar”. Ao assumir o poder no dia 30 de outubro de 1969, o terceiro general-presidente Emílio
Garrastazu Médici deixou tudo mais explícito. Disposto a consolidar o poder da “comunidade
de informações” e a combater a esquerda utilizando as mesmas táticas de “guerra suja”
(supostamente deflagrada pelos “terroristas”), Médici deu início àquele que talvez tenha sido o
período mais repressivo da história do Brasil.
O governo Médici também se transformaria num dos períodos mais esquizofrênicos na
vida da nação: oficialmente tudo ia às mil maravilhas – o Brasil era o “país grande” que
ninguém segurava, o “país que vai pra frente”. Enquanto isso, nos porões da ditadura, havia
tortura, repressão e morte. O próprio Médici acabou se tornando o melhor intérprete dessa
incongruência ao declarar, em uma de suas raríssimas entrevistas, que “o Brasil vai bem, mas o
povo vai mal”. Gaúcho (como seu antecessor, Costa e Silva, e seu sucessor, Ernesto Geisel),
Médici era neto de um combatente maragato, estudara no Colégio Militar de Porto Alegre, fora
a favor da Revolução de 30 e contra a posse de Goulart em 1961: três características comuns aos
cinco generais-presidentes. Mas, dentre eles, apenas Médici faria o país retroceder aos tempos
do Estado Novo, não apenas pela utilização maciça da propaganda para promover o regime,
como pelo fato de ter feito do deputado Filinto Müller (o carrasco que servira a Vargas)
presidente do Congresso e chefe do partido do governo, a Arena. De todo modo, durante o
governo Médici o Legislativo seria reduzido à condição de mero homologador das decisões de
um Executivo ultracentralizador. Apesar das várias semelhanças, o Brasil do general Médici se
revelaria um país ainda mais repressivo do que fora na época do Estado Novo. Nunca houve
tanta censura à imprensa, nunca houve tanto cerceamento às liberdades individuais e de
pensamento. E nunca se escutaram tão poucas críticas – a não ser quando espocavam os tiros
disparados pela guerrilha urbana e rural (das quais Médici veria o apogeu e a decadência). Em
outubro de 1972, Médici enterrou outra vez as esperanças de redemocratização do país,
promulgando a Emenda Constitucional no 2, modificando a Carta outorgada pela Junta Militar,
que previa eleições diretas para os governos de estado em outubro de 1974. Mas, então, um
grupo de generais “castelistas” concluiu que era hora de tentar restituir um mínimo de
normalidade constitucional à nação – e lançou Ernesto Geisel como candidato à sucessão de
Médici. As trevas começaram a se dissipar, embora lentamente.
O PAÍS VAI BEM, JÁ O POVO...
De todas as “boas notícias” alardeadas nos tempos do “Brasil Grande” – a época de
“ame-o ou deixe-o” –, uma das únicas reais talvez tenha sido a conquista da Copa do Mundo no
México, em 1970. Ainda assim, embora a seleção que arrebatou o tri fosse de fato
deslumbrante, o uso que a máquina de propaganda ao governo fez dessa conquista histórica foi
tal que os segmentos mais intelectualizados da nação nem conseguiram festejá-la. O pior é que
o general Médici realmente adorava futebol, chegando a palpitar (equivocadamente) na
escalação da seleção, deixando-se fotografar brincando com a bola e erguendo a taça Jules
Rimet assim que o time vencedor voltou para casa. Os índices de popularidade do governo
chegaram à estratosfera. O ufanismo era completado pelo plano de construção da
Transamazônica (que fracassou) e pelo delírio da soberania sobre as 200 milhas marítimas, em
lugar das 12 milhas internacionalmente aceitas (outro plano que não vingou).
Mais euforia seria trazida pelo “milegre econômico”. De 1969 a 1973, de fato ocorreu
um extraordinário crescimento econômico no país, aliado a baixos índices de inflação (18% ao
ano). O PIB cresceu na espantosa média anual de 11% (chegando a 13% em 1973). Houve uma
febre de investimentos, grandes obras (muitas delas faraônicas, e muito dinheiro vindo do
exterior, com juros baixos. O ministro Delfim Netto foi o articulador- mor do “milagre”. Logo o
processo de crescimento se revelaria mais terreno do que “milagroso”. Com a crise do petróleo,
iniciada em 1974, e a consequente retração do capitalismo internacional, o “milagre” mostrou
sua face mais real: o que ocorreu no Brasil durante o governo Médici foi um brutal processo de
concentração de renda e o crescimento desmedido da dívida externa e do fosso social que
separava ricos de pobres. O país ia bem, e o povo, de mal a pior.
MARIGHELLA E A GUERRILHA URBANA
Apesar de o Partido Comunista Brasileiro ter sido contrário à luta armada como forma
de combater a ditadura, o endurecimento do regime militar levou vários militantes a contrariar a
posição do principal partido da esquerda brasileira e pegar em armas para enfrentar o avanço da
linha-dura. Um dos primeiros a romper com a determinação do PCB foi Carlos Marighella,
velho militante de esquerda que participara da Intentona Comunista de 1935. Em 1967, aos 56
anos, ele fundou a ALN (Ação Libertadora Nacional) e partiu para a luta armada. “Expropriou”
vários bancos e, na ação mais espetacular, tomou uma estação da Rádio Nacional, em agosto de
1969, lendo um “manifesto revolucionário”. Inspirados pelo exemplo de Carlos Marighella, pela
Revolução Cubana e pelo slogan dos revolucionários de todo o mundo – “criar um, dois, três,
mil Vietnãs” –, centena de jovens militantes (muitos deles estudantes de classe média) aderiram
à guerrilha urbana nos dois últimos anos da década de 1960. Houve inúmeras dissidências
internas, divergências táticas e ideológicas e posições ensandecidas. Em fins de 1969, a morte
de Marighella se tornara questão de honra para os grupos encarregados da repressão. Após a
tortura de dois frades dominicanos que mantinham ligação com o “terrorista”, os homens do
delegado Sérgio Paranhos Fleury, liderados por ele mesmo, surpreenderam Marighella numa rua
de um bairro chique de São Paulo, na noite de 4 de novembro de 1969. Antes que pudesse
reagir, Marighella – autor de vários livros sobre guerrilha publicados em todo o mundo – foi
crivado de balas. Segundo a versão oficial, ele morreu ao tentar “resistir à prisão”. A morte de
Marighella não foi suficiente para sufocar a guerrilha, que, com o sequestro de vários
diplomatas, adquiriria repercussão nacional e internacional. É uma lei da física que se aplica à
história: toda ação gera reação igual e em sentido contrário. Se o endurecimento do regime
resultou na eclosão da guerrilha – com o surgimento de várias organizações, como ANL, VPR,
MR-8 e VAR-Palmares –, o início da “guerra suja” levaria o governo, especialmente depois da
posse de Médici, a radicalizar ainda mais a repressão.
Nesse contexto, surgiram primeiro a Operação Bandeirantes (Oban) e depois os DOI-
CODIs. Criada em julho de 1969, a Oban reuniu todos os órgãos que combatiam a luta armada e
foi financiada por empresários (entre os quais Henning Boilesen, depois morto pela guerrilha).
Mais tarde, o Exército passou a agir por meio dos Destacamentos de Operações e Informações
(DOIs) e Centros de Operações de Defesa Interna (CODIs), órgãos coordenados pelo Centro de
Informações do Exército (CIE). Na prática, essas casas de tortura acabariam se tornando um
poder paralelo que mais tarde desafiaria o próprio governo. Embora não fosse militar, ninguém
simbolizou melhor esse período negro da história do Brasil do que o delegado Sérgio Fernando
Paranhos Fleury. Fleury entrou para o Dops com 17 anos e logo ingressou na Ronda Noturna
Especial (Ronde), notabilizando-se como um ferrenho caçador de bandidos que andava
acompanhado por um cão policial. São dessa época as acusações de que Fleury fazia parte do
Esquadrão da Morte, grupo de extermínio montado dentro da polícia. A partir de 1968,
convocado para a luta contra a “subversão”, ele prendeu, torturou e, em alguns casos, matou
muitos “terroristas”. Foi condecorado várias vezes. Levado a julgamento, nunca foi punido,
embora houvesse provas de seus crimes. Contrário à anistia, que o beneficiou, Fleury morreu
em circunstâncias bastante misteriosas em 1979.
LAMARCA E A GUERRILHA RURAL
Entre as inúmeras teses que faziam os “revolucionários” se consumirem em debates
intermináveis estava aquela que dividia as ações armadas em guerrilha urbana e guerrilha rural.
Uma das teorias mais aceitas entre os que partiram para a luta contra o regime militar era a de
que a guerrilha urbana serviria para “arrecadar fundos” (por meio de assaltos a bancos, na época
chamados pelos guerrilheiros de “expropriações”), que financiariam a guerrilha rural. O
primeiro foco de guerrilha no campo surgiu em fins de 1966, na serra de Caparaó, fronteira
entre Minas Gerais e Espírito Santo. Foi estabelecido por integrantes do Movimento Nacional
Revolucionário. Com apenas quatorze guerrilheiros, esse “núcleo” revolucionário foi logo
desbaratado pelo Exército, em janeiro de 1967. Mas o MNR deu origem à Vanguarda Popular
Revolucionária e, sob a liderança do capitão Carlos Lamarca – desertor do Exército –, a VPR
criou um novo foco de guerrilha rural, no vale do Ribeira, região sul do Estado de São Paulo.
Com apenas nove homens, a guerrilha do vale do Ribeira também foi vencida com facilidade
em maio de 1970. Mas Lamarca já se tornara um herói revolucionário. Em janeiro de 1969, o
capitão Carlos Lamarca fugira do quartel de Quitaúna, Osasco – SP, com 63 fuzis FAL, dez
metralhadoras INA e três bazucas. Nacionalista de esquerda, Lamarca, nascido em 1937,
escapara do expurgo do exército em 1964 e se tornara instrutor de tiro dos funcionários do
banco Bradesco – para “protegê-los” dos “terroristas”. Acontece que Lamarca tinha se tornado
marxista em 1957 e, desde 1967, fazia parte da Vanguarda Popular Revolucionária. Escapando
do vale do Ribeira, Lamarca e sua companheira Iara Iavelberg, então filiados ao MR-8, foram
para a Bahia. Iara ficou em Salvador. Foi presa e morta – embora a versão oficial falasse em
“suicídio” – em agosto de 1971. Poucos dias depois, em 17 de setembro, esgotado depois de
percorrer o sertão baiano, Lamarca seria surpreendido, na companhia do metalúrgico José
Barreto, dormindo sob arbustos. Foram ambos fuzilados. Em 1972, o PC do B criou um novo
foco guerrilheiro no Araguaia. Cerca de setenta homens resistiram por três anos ao cerco de 10
mil soldados. Em 1973, sem o apoio dos “camponeses” e sem obter nenhum resultado prático, a
guerrilha rural foi definitivamente sufocada no país.
O SEQUESTRO DO SENHOR EMBAIXADOR
Cinco dias depois de a Junta Militar assumir o poder no lugar do adoentado presidente
Costa e Silva e endurecer ainda mais as regras do jogo político no país, militantes do MR-8 e da
ALN decidiram, numa audaciosa ação conjunta, sequestrar o embaixador dos Estados Unidos
no Brasil. E assim, em 4 de setembro de 1969, Charles Burke Elbrick se tornaria o primeiro
diplomata dos EUA a ser sequestrado em todo o mundo, e a ação seria a primeira desse tipo
realizada na América do Sul. Elbrick, que substituíra John Tuthill (por sua vez, substituto de
Lincoln Gordon), era um democrata liberal contrário à ditadura. Mas os Estados Unidos
estavam por demais envolvidos com o regime militar brasileiro para que seu embaixador não se
revelasse a vítima ideal. Apesar de os “guerrilheiros” quase terem capturado por engano o
embaixador de Portugal, que, pouco antes, passou pelo caminho habitualmente percorrido pelo
diplomata norte-americano, o sequestro foi bem-sucedido. Elbrick acabou sendo trocado por
quinze prisioneiros políticos, que no dia 6 de setembro embarcaram para o México. Além da
libertação dos companheiros, os guerrilheiros conseguiram divulgar nas rádios e nos jornais de
todo o país um “manifesto contra a ditadura”, o que despertou a atenção nacional e internacional
para sua luta contra os militares – até então mantida pela censura na mais rigorosa
clandestinidade. O sequestro do embaixador Elbrick deflagraria uma onda de novas ações da
mesma natureza e novas trocas de prisioneiros. Se as críticas da linha- dura ao fato de a Junta
Militar ter aceito negociar com os sequestradores de Elbrick tinham sido feitas em razão do
“perigoso precedente” que tal atitude abriria, então a linha-dura estava coberta de razão. A ação
contra o embaixador norte-americano foi a primeira de uma série de sequestros bem-sucedidos.
Em março de 1970, o cônsul do Japão em São Paulo, Nobuo Okuchi, foi sequestrado pela VPR
e trocado por onze presos políticos. Em junho, a ALN e a VPR voltaram a executar uma ação
conjunta, dessa vez capturando o embaixador da Alemanha, Ehrenfried von Holleben, no Rio de
Janeiro, e trocando-o por quarenta presos. Em dezembro do mesmo ano, o sequestro do
embaixador suíço Giovani Bucher, no Rio, possibilitou a libertação de setenta prisioneiros dos
porões do regime militar. A partir de 1971, a onda de sequestros arrefeceu.
O GOVERNO GEISEL
Como chefe da Casa Militar de Castelo Branco, o general Ernesto Geisel (1908-1996) ajudara a
manter a linha-dura a distância. Membro permanente da Escola Superior de Guerra, Geisel tinha
notórias ligações com o grupo castelista. Sua indicação para a Presidência representou uma
derrota para Médici e seus seguidores mais radicais. Com a posse de Geisel, em 15 de março de
1974, o general Golbery do Couto e Silva voltou ao poder. Ambos, Golbery e Geisel,
articularam um projeto de abertura “lenta, gradual e segura” rumo a uma indefinida
“democracia relativa”. A abertura de fato se concretizaria – e de fato seria lenta e gradual,
embora fosse também tremendamente insegura. Não apenas uma economia em crise, mas
também a reação ousada e petulante da linha-dura colocariam permanentemente em xeque os
planos de “distensão” imaginados por Golbery e implantados por Geisel.
Embora disposto a levar em frente seu projeto reformista, Geisel não hesitaria em
“endurecer” sua relação com a oposição todas as vezes que achasse necessário, usando
amplamente os poderes que lhe eram concedidos pelo AI-5 – o ato institucional que mais tarde
ele próprio extinguiria. A atitude mais ríspida de Geisel contra a oposição foi o fechamento do
Congresso, em abril de 1977. Em novembro de 1974, o MDB havia vencido as eleições,
aumentando sua bancada na Câmara e no Senado. Dois anos depois, nas eleições municipais,
nova vitória da oposição. Assim, em março de 1977, o MDB pôde impedir a aprovação de um
projeto do governo para a reforma do Judiciário. Denunciando a existência no país de uma
“ditadura da minoria”, Geisel fechou o Congresso e, além de implantar a reforma do Judiciário,
baixou uma série de medidas “casuísticas”, freando o avanço do MDB e garantindo a
supremacia da Arena.
Com o apoio do ministro do Planejamento, Reis Velloso; do chefe do SNI, João
Figueiredo; do chefe da Casa Militar, general Hugo Abreu; e do chefe da Casa Civil, general
Golbery, Geisel ainda contava com o respaldo político de três governadores importantes: Paulo
Egydio – SP, Aureliano Chaves – MG e Sinval Guazelli – RS. Embora com essa sustentação e
com a ajuda dos “casuísmos” Geisel pudesse dobrar a oposição, na hora de enfrentar os
espasmos da linha-dura ele seria forçado a empregar toda a força de sua personalidade. Apesar
dos pesares, Geisel colocaria em prática várias medidas para implementar a “distensão”. A
primeira delas foi a suspensão da censura prévia à imprensa escrita, no início de 1975 – embora
o rádio e a TV continuassem sob vigilância. De qualquer forma, o centralismo do governo
permanecia inalterado em muitos aspectos e, em julho de 1975, Geisel assinou um vultoso
“programa de cooperação nuclear” entre Brasil e Alemanha, sem consultar a comunidade
científica e a sociedade civil. Na área econômica, Geisel herdou de seu sucessor um país com
inflação anual de 18,7% e uma dívida externa de US$ 12,5 bilhões. Apesar de, durante seu
governo, o PIB ter crescido espantosos 41%, a inflação chegou a 40% anuais, e a dívida externa
disparou para US$ 43 bilhões. Mesmo com todas as crises políticas e econômicas, Geisel não
apenas seria o único general-presidente a fazer seu sucessor – depois de vencer a queda de braço
com o general Sílvio Frota, da linha-dura – como conseguiria cumprir a promessa de concretizar
sua “abertura lenta e gradual”. No dia 1o de janeiro de 1979, extinguiu o AI-5. Em 15 de março,
João Figueiredo tomou posse como o quinto general-presidente.
A MORTE DE HERZOG
Apesar de toda a crise política provocada pelo “Pacote de Abril”, o momento de maior tensão
vivido pelo governo Geisel – e, por extensão por toda a nação –, deu-se em 26 de outubro de
1975. Um dia antes, o jornalista Vladimir Herzog, chefe do Departamento de Jornalismo da TV
Cultura – SP, uma emissora estatal, e editor de cultura da revista Visão, fora preso e levado para
o DOI-CODI paulista. Herzog era simpatizante do PCB, mas nunca se envolvera em ações
armadas. Após o que se supõe ter sido uma brutal sessão de tortura, o jornalista morreu nas
mãos de seus algozes. Então, montou-se uma farsa trágica e sórdida numa das celas do DOI-
CODI: o corpo de Herzog foi colocado numa posição absurda, e fontes do 2o Exército
anunciaram que ele se enforcara com o cinto de seu macacão.
Herzog havia assumido cargo de chefia na TV Cultura por indicação do secretário de
Tecnologia e Cultura do Estado de São Paulo, com a aprovação do governador Paulo Egydio.
Sua morte causou profunda comoção em São Paulo e em todo o país. O velório foi proibido e o
enterro realizado sob vigilância militar. No dia 31 de outubro, porém, cerca de oito mil pessoas
se reuniram na catedral da Sé – SP, para assistir ao culto ecumênico celebrado pelo cardeal D.
Paulo Evaristo Arns, os rabinos Henry Sobel e Marcelo Rittner e o reverendo Jaime Wright.
Além de se tornar a primeira manifestação de peso contra a ditadura desde 1968, foi também um
dos instantes mais tensos da história recente do Brasil – e um episódio que obviamente
repercutiu em Brasília.
De acordo com o depoimento do general Hugo Abreu, logo após a morte de Herzog,
Geisel foi a São Paulo e se encontrou com o general Ednardo D’Ávila Mello, chefe do 2o
Exército. “O presidente então avisou-o, de forma clara, que não seria tolerada mais nenhuma
morte naquelas circunstâncias”, revelou Abreu. Já o general Golbery do Couto e Silva achou
prudente avisar alguns jornalistas de que o governo, de certa forma, perdera o controle sobre
São Paulo.
O choque entre Geisel e a linha-dura após a morte de Herzog e do operário Manoel Fiel
Filho (leia box na página seguinte) foi apenas o primeiro assalto no confronto entre o governo e
a linha-dura. O último e decisivo embate se deu quase dois anos após a morte de Vladimir
Herzog. No início do segundo semestre de 1977, apesar de Geisel ter deixado claro que não
abriria mão de chefiar o processo sucessório, o general Sílvio Frota não só estava articulando o
lançamento de sua candidatura como já contava com o apoio de um bloco parlamentar (do qual
faziam parte até membros do MDB).
Em agosto de 1977, Frota fora a favor da ocupação militar da Universidade de Brasília,
contrariando Geisel. Em setembro, o ministro do Exército impedira a volta ao Brasil de Leonel
Brizola – outra vez em desacordo com o presidente. Em outubro, Geisel soube que a
candidatura de Frota lhe seria apresentada como fato consumado no dia 14 e que no dia 16 o
ministro se reuniria com o marechal Odílio Denys e integrantes da linha-dura que o apoiariam
publicamente. Então, às sete horas da manhã de 12 de outubro de 1977, Geisel convocou Frota
para uma reunião e, após dez minutos de áspero diálogo, demitiu-o. Frota tentou obter apoio do
Alto Comando do Exército, mas Geisel chamara os principais chefes militares do país para
Brasília e, naquele instante, eles estavam no aeroporto, sendo recebidos por oficiais de sua
confiança. O general Hugo Abreu, embora amigo de Frota e entusiasta de sua candidatura, ficou
do lado do presidente e ajudou a abortar qualquer revolta no nascedouro.
Em 31 de dezembro, Geisel comunicou formalmente ao general Figueiredo, então chefe
do SNI, que o indicaria como seu sucessor. Em 4 de janeiro de 1978, Geisel era forçado a
exonerar Hugo Abreu, que discordava da indicação. “Eu o servi lealmente e fui traído por ele”,
diria Abreu. Mas a linha-dura e seu “governo paralelo” estavam vencidos e, em 15 de março de
1979, Figueiredo assumiu a Presidência do país.
O GOVERNO FIGUEIREDO
Como Garrastazu Médici, o quinto general-presidente, João Baptista Figueiredo,
também chegou ao poder, em 15 de março de 1979, após chefiar o SNI. Mas, ao contrário de
seu predecessor, Figueiredo foi levado ao cargo com a missão de concretizar a abertura iniciada
por Ernesto Geisel – o único dos generais-presidentes a fazer o próprio sucessor. De uma
truculência quase caricatural, dono de frases que seriam hilárias se, antes, não soassem absurdas
na boca de um presidente militar, Figueiredo foi um retrato fiel das incongruências do Brasil: a
um homem da “comunidade de informações” acabaria sendo dada a missão de reconduzir o país
à normalidade democrática. Não seria uma missão simples: embora contasse com as
maquinações eficientes do general Golbery do Couto e Silva e o apoio irrestrito do ministro da
Justiça, Petrônio Portela, Figueiredo teria de enfrentar não só uma das maiores crises
econômicas da história do Brasil – uma das heranças do “milagre” – como também os últimos
(e por isso mesmo violentos) espasmos da linha-dura e da direita radical.
Se, durante o governo Médici, a economia ia bem e o povo mal, durante os seis longos
anos do governo Figueiredo tanto a economia quanto o povo foram tremendamente mal. A uma
série de medidas “heterodoxas”, drásticas e equivocadas – tomadas pela equipe econômica,
ainda sob o comando de Delfim Netto, com a participação de Mário Henrique Simonsen –, se
juntaria a segunda crise internacional do petróleo. A inflação e a dívida externa dispararam. No
fim de 1983, o PIB caiu em 2,5%, e a dívida externa (que passara de US$ 81 bilhões para US$
91 bilhões) era responsável por juros anuais de US$ 9,5 bilhões.
Ainda assim, graças ao modelo concentrador de renda e ao arrocho salarial, muitas
empresas e empresários lucraram com a inflação e a manipulação das taxas de correção
monetária. Por outro lado, a crise econômica reforçou os argumentos da oposição (que pôde se
rearticular longe da ameaça do AI-5), fortaleceu os políticos contrários ao governo, fez espocar
as greves no ABC paulista (berço do PT) e ajudou a deflagrar a campanha pelas “Diretas Já”.
De qualquer forma, o general Figueiredo – que chegara a pedir que o povo o chamasse de
“João” e, até se envolver numa briga quase corpo a corpo com estudantes em Florianópolis em
1979, desenvolvera um tipo particularíssimo de comportamento populista – não apenas fingiu
ignorar as mazelas econômicas como, a decretar a anistia, em agosto de 1979, foi capaz de
arrancar das mãos da oposição sua maior bandeira. Mas, para cumprir a promessa de que faria
“desse país uma democracia”, ele precisou enfrentar as bombas da linha-dura – que, no início da
década de 1980, fez o país retornar à época da “guerra suja”. Beneficiados pela anistia, os
terroristas de direita nunca foram punidos. Apesar de contemporizar com a linha-dura no caso
Riocentro (leia box abaixo), Figueiredo manteve o calendário eleitoral, que previa eleições
estaduais para novembro de 1982, embora forçasse o Congresso a adotar medidas restritivas à
oposição. Por isso, em abril de 1984, a emenda das “Diretas Já” não foi aprovada. Mas, em
janeiro de 1985, Tancredo Neves foi eleito pelo Colégio Eleitoral e Figueiredo pôde deixar o
poder com a promessa cumprida.
ADEUS ÀS ARMAS
Chefe do gabinete militar no governo Médici e do SNI no governo Geisel, João Baptista
Figueiredo entrou para a história não só por ser o último general-presidente do movimento de
1964, mas pelas frases típicas de seu estilo “rude e franco”. Eis algumas: “Não posso obrigar o
povo a gostar de mim. Sou o que sou, não vou mudar para que o povo goste.” “Me envaideço de
ser grosso.” “Prefiro cheiro de cavalo do que cheiro de povo.” “Se ganhasse salário-mínimo,
daria um tiro na cabeça.” “O que eu gosto mesmo é de clarim e de quartel”. E, por fim, a frase
pronunciada em 27 de junho de 1979, depois de assinar a 48a anistia da história do Brasil: “Eu
não disse que fazia? Eu não disse que fazia?”. Figueiredo fez o que disse que faria – mas a
direita radical também cumpriu a promessa de tumultuar a abertura. De janeiro a agosto de
1980, terroristas explodiram bombas em todo o país. O atentado mais grave não se concretizou;
no dia 1o de maio de 1981, uma bomba explodiu no colo de um sargento, dentro de um carro,
no estacionamento do Riocentro – RJ, onde se desenrolava um show comemorativo ao Dia do
Trabalho. O caso foi investigado por militares de forma parcial, e os envolvidos, isentados de
culpa. Como os torturadores dos anos 1970, os terroristas de direita ficariam impunes.

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