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ENTREVISTA

“Não há desenvolvimento
econômico sem
domínio tecnológico”
PAULO GALA

Paulo Gala é graduado em economia pela Faculdade de Economia, Administra-


ção, Contabilidade e Atuária da Universidade de São Paulo (FEA-USP), mestre e
doutor em economia pela Fundação Getúlio Vargas em São Paulo (FGV-SP). Foi
pesquisador visitante nas Universidades de Cambridge, UK, e Columbia, EUA.
Foi economista, gestor de Fundos e CEO em instituições do mercado financeiro
em São Paulo. É professor de economia na FGV-SP desde 2002. Seu último livro
é Brasil, uma economia que não aprende. Conselheiro da FIESP e economista-chefe do
Banco Master.
Seguem trechos da entrevista concedida ao editor convidado da CEBRI-Revista,
Eugênio V. Garcia.

Hoje se fala muito sobre a influên- é dinheiro e poder. Quando resgata-


cia da tecnologia nos rumos da mos a história das nações, observamos
política internacional. Na sua que as grandes potências tecnológicas
visão, em uma perspectiva de con- sempre foram as potências econômi-
texto histórico, o fator tecnológico cas, que também foram as potências
sempre foi determinante na dis- bélicas. O domínio tecnológico se tra-
tribuição do poder mundial, ou duz em domínio econômico, em poder
estamos diante de uma realidade bélico e geopolítico. Na atualidade, a
diferente no século XXI? China ocupa esse espaço ao se tornar a
PAULO GALA: O fator tecnológico segunda maior economia do mundo em
sempre foi determinante – tecnologia dólares correntes, a maior economia do

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“Não há desenvolvimento econômico sem domínio tecnológico”

Quando resgatamos a história neta. Então o poder econômico acaba


redundando em inovações tecnológicas,
das nações, observamos que as militares e na construção de um exér-
grandes potências tecnológicas cito ou de forças militares poderosas.
sempre foram as potências
econômicas, que também Uma das disputas mais acirra-
das atualmente envolve as cadeias
foram as potências bélicas. globais de produção de semicon-
O domínio tecnológico se dutores, dado o peso estratégico
dos chips mais sofisticados para
traduz em domínio econômico, a indústria em inúmeros setores.
em poder bélico e geopolítico. Para os países que não produzem
ou estão muito atrás nessa cor-
mundo em Paridade de Poder de Com- rida, há alguma esperança de que
pra (PPP). Um terço das cerca de 1,3 possam ser mais do que apenas
milhão de patentes anuais do mundo consumidores de tecnologia pro-
são chinesas. E isso se traduziu em um duzida alhures?
poder econômico muito grande para PG: Eu dividiria essa questão em relação
a China, que é bélico-militar também. ao tipo de chip semicondutor de que se
Então os países que têm o domínio tec- fala, porque é uma indústria tão com-
nológico, que têm o poder econômico, plexa e tão relevante, que não é possível
estão na fronteira tecnológica e têm o tratá-la de maneira geral. Por exemplo,
poder das armas e o poder geopolítico. os chips muito pequenos, que têm sete
Isso vai mudando com o tipo de tecno- nanômetros ou menos, são de produ-
logia ao longo do tempo, mas o meca- ção muito técnica. Hoje, esses chips são
nismo econômico é muito forte. E não produzidos pelas máquinas da empresa
é só uma questão econômica, pois a holandesa ASML, que tem pratica-
tecnologia é poder militar também, que mente o monopólio dessa tecnologia,
vem como consequência tanto pelo uso com 80% do mercado mundial. Ela
da tecnologia nas armas, que é um canal vende essas máquinas para a taiwanesa
direto, quanto pelo uso do dinheiro para TSMC, que processa os semiconduto-
construir armas, um canal indireto que res para a fabricação dos nanochips.
o poder econômico propicia. Por exem- Cada máquina custa US$ 150 milhões,
plo, os Estados Unidos têm um orça- e cada fábrica da TSMC custa mais de
mento de quase US$ 1 trilhão para o US$ 5 bilhões. Então eu diria que, para
Pentágono, que é convertido em desen- os chips muito sofisticados, abaixo de
volvimento tecnológico para o país e na sete a cinco nanômetros, é um jogo para
construção do maior exército do pla- dois ou três players, no máximo.

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Para os chips maiores de dez, 15 ou [a produção de nanochips]


20 nanômetros, no entanto, é possível
a participação de outros países nesse mais sofisticados e mais
mercado. O próprio Brasil tem o Cen- avançados vão ficar nas mãos
tro Nacional de Tecnologia Eletrônica
Avançada (CEITEC), que é capaz de
de dois ou três países, se
produzir chips e semicondutores – não muito – provavelmente China,
esses de sete nanômetros ou menos, mas Estados Unidos, Coreia e
os maiores, que também têm aplicabili-
dade. Então, no futuro desse mercado,
Taiwan. Mas há espaço para
dez países ou menos no mundo serão países como o Brasil, que já
capazes de produzir esses tipos de semi- domina essa tecnologia dos
condutores, sendo que os mais sofisti-
cados e mais avançados vão ficar nas chips um pouco maiores. (...)
mãos de dois ou três países, se muito – Foi um investimento que a
provavelmente China, Estados Unidos,
Coreia e Taiwan. Mas há espaço para
nação brasileira fez e que
países como o Brasil, que já domina ainda mantém esse know-
essa tecnologia dos chips um pouco how. Não estaremos na
maiores. O Brasil investiu muito nessa
tecnologia e é importante resgatar a vanguarda da produção mais
história do CEITEC. Muito dinheiro avançada e sofisticada, mas,
público foi colocado nessa iniciativa,
pelo menos, em algum nicho
que foi inclusive multipartidária, desde
a época do presidente Fernando Hen- na cadeia de produção seria
rique Cardoso. Foram gastos mais de possível ter uma participação.
R$ 1 bilhão, quase R$ 2 bilhões, para
construir a fábrica do CEITEC. Foi mentos de mais de US$ 30 bilhões para
um investimento que a nação brasi- tentar desenvolver os chips de semicon-
leira fez e que ainda mantém esse know- dutores menores do que sete nanôme-
how. Não estaremos na vanguarda da tros em território chinês. Como isso é
produção mais avançada e sofisticada, um calcanhar de Aquiles da cadeia
mas, pelo menos, em algum nicho na tecnológica chinesa, os americanos
cadeia de produção seria possível ter estão explorando esse ponto fraco chi-
uma participação. nês fazendo sanções – como contra a
Certamente a maioria dos países do Huawei –, para impedir a empresa de
mundo não está ao alcance da China. competir com a Apple ou a Samsung. A
A China tem um programa de investi- Huawei já estava superando essas com-

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panhias em vendas de smartphones, e decisão óbvia de transferir a produção


agora, recentemente, surgiu a notícia para o lugar mais econômico, porque
de que a Huawei apresentou um smart- era muito mais barato produzir fora dos
phone com um chip de sete nanômetros, Estados Unidos. E essa transferência foi
supostamente produzido pela Semicon- feita especialmente para a China, pois
ductor Manufacturing International o governo chinês soube se aproveitar
Corporation (SMIC), empresa semipú- disso com muita inteligência e turbi-
blica chinesa, que está recebendo vul- nou políticas para atrair essas empre-
tosos recursos do governo chinês para sas. Estabeleceu uma política industrial
tentar desenvolver essa tecnologia. Mas que incentivou a vinda das multinacio-
é uma briga realmente de fronteira, e nais americanas para zonas especiais de
poucos países terão a capacidade finan- exportação, construindo universidades,
ceira e a força para entrar nessa luta. cedendo terras públicas, dando subsí-
dios à inovação, entre outras medidas.
E conseguiram criar um polo tecnoló-
Recentemente, no seu canal no
YouTube, uma de suas videoaulas gico fantástico que rivaliza com o Vale
tratava da “desindustrialização do Silício. Existem hoje diversos polos
do Vale do Silício”. O que seria na China, mas o principal é Shenzhen,
isso exatamente e o que podemos onde são feitos os smartphones, tablets
aprender a respeito como lição de e laptops. Shenzhen se tornou uma
economia e política industrial? espécie de novo Vale do Silício chinês
e virou uma entre as principais megaló-
PG: Esse tema da desindustrialização é
poles industriais e tecnológicas do pla-
muito interessante e diz respeito a uma
neta, superando inclusive Hong-Kong
reflexão que começou a ser feita no pró-
em termos de Produto Interno Bruto
prio Vale do Silício, com os CEOs das
(PIB), e só perde para Xangai e Bei-
empresas. O ex-CEO da Intel Andrew
jing em termos de produto industrial.
Grove escreveu um artigo muito
É uma das cidades mais incríveis do
influente em 2010 em que retratava esse
mundo, pois era uma vila de pescado-
processo, demonstrando muita preocu-
res com 80.000 pessoas e se tornou hoje
pação com a transferência para a Ásia
uma megalópole tech com 15 milhões
da produção manufatureira industrial
de habitantes.
de chips e semicondutores das empre-
sas multinacionais norte-americanas. Então as empresas de tecnologia chine-
Essa produção, inclusive da própria sas foram paridas por esse movimento
Intel, era toda feita nos Estados Uni- de desindustrialização do Vale do Silí-
dos – especialmente no Vale do Silício. cio, mas esse processo transferiu apren-
Os CEOs dessas multinacionais, bus- dizagem e conhecimento tecnológico
cando maximizar o lucro, tomaram a para os rivais. A lição que ficou para

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[A desindustrialização Apple, porque o próprio Vale do Silício


foi produzir smartphones na China. E
do Vale do Silício é] a os chineses aprenderam, copiaram, e
transferência para a Ásia agora conseguem competir.
da produção manufatureira O problema é que continua sendo
muito mais caro produzir nos Esta-
industrial de chips e dos Unidos. O governo Biden criou o
semicondutores das CHIPS and Science Act, com uma grande
empresas multinacionais quantidade de subsídios para convencer
as empresas americanas a produzir em
norte-americanas. E essa solo americano, de forma muito mais
transferência foi feita cara do que produzir de maneira mais
especialmente para a China, barata no Leste da Ásia. Isso não quer
dizer que as empresas estão dispostas
pois o governo chinês soube a fazer essa desconexão com a China,
se aproveitar disso com porque muitas vezes têm bons clientes
do outro lado.
muita inteligência e turbinou
políticas para atrair essas
Grande parte da literatura sobre
empresas. (...) E conseguiram o tema no exterior se dedica a
criar um polo tecnológico analisar os efeitos da tecnologia
sobre as relações entre as gran-
fantástico que rivaliza
des potências econômicas. Menos
com o Vale do Silício. atenção se dá aos desafios dos
países em desenvolvimento, suas
as companhias americanas, na reflexão necessidades e interesses pró-
dos CEOs, é que elas estavam perdendo prios. Qual seria seu conselho
a capacidade de inovar e a capacidade aos países com menos recursos
de competir, inclusive com os chineses. que desejam pular etapas para
A desindustrialização criou rivais na proporcionar nível mais alto de
Ásia, porque a excelência manufatu- bem-estar às suas populações?
reira foi transferida para a Ásia pelas PG: Como regra geral, países como o
próprias empresas americanas. Agora Brasil deveriam buscar nichos e espa-
os chineses fazem os produtos que com- ços que se abrem nesse conflito entre as
petem com o Vale do Silício. A Huawei grandes nações. Por exemplo, no caso
foi capaz de fazer um smartphone capaz brasileiro, mais especificamente, não
de competir com os da Samsung e da cabe ao país se alinhar nem aos Esta-

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dos Unidos nem à China, mas explorar tecnológica em curso, como vê a


espaços que surgem dessa disputa entre posição do país no cenário atual?
ambos e demandar transferência tecno- Acredita que é possível ocupar
lógica. E esse é um ponto chave: não há mais nichos de oportunidade,
desenvolvimento econômico sem domí- ou vê obstáculos a um desenvol-
nio tecnológico. O desenvolvimento vimento científico e tecnológico
econômico não é o consumo de tecno-
mais acelerado?
logia, é a produção de tecnologia. Países
que não se arvoram, que não se tornam PG: Primeiramente, é uma luta muito
capazes de produzir tecnologia, nunca desigual e assimétrica. São constituí-
conseguem se desenvolver. Natural- das anualmente cerca de 1,4 milhão
mente não é necessário ser um negócio de patentes. O Brasil tem um terço do
autárquico que vai produzir toda a tec- número de patentes feitas anualmente
nologia do mundo, mas alguns nichos na Austrália, que é quase 40.000, ou
de tecnologia precisam ser dominados.
Então cabe às nações, vamos dizer Um destaque no caso
assim, aspirantes ao enriquecimento
pleitear essa transferência tecnológica e
brasileiro é a capacidade
barganhar. O Brasil deve tentar defen- de promover a transição
der interesses próprios, trazer tecnolo- energética e a transição
gia e produzi-la aqui. A China deu um
grande exemplo disso para o mundo. Em climática. O Brasil tem
1980, era um dos países mais pobres do domínio de tecnologias (...)
mundo, estava em situação catastrófica,
com uma renda per capita de US$ 1
para produzir energias
mil, se muito, e ela foi construindo todo sustentáveis. A química
esse programa de desenvolvimento de brasileira é muito avançada
tecnologias próprias e transferência das
multinacionais para as empresas locais e sustentável – a chamada
de construção das zonas de exportação. química verde. Então o Brasil
Então, as nações em desenvolvimento
têm que ter claro esse objetivo da pro-
deveria buscar esses nichos
dução de tecnologia e a necessidade de em que ele já tem alguma
barganhar posições, de pleitear acesso à vantagem comparativa.
aprendizagem tecnológica.
Aliás, é o que se chama
Considerando o papel especí-
na economia de vantagem
fico do Brasil diante da revolução comparativa adjacente.

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seja, o Brasil está muito atrás dessa cor- Um destaque no caso brasileiro é a
rida tecnológica. Então há um grande capacidade de promover a transição
desafio pela frente, mas o Brasil tam- energética e a transição climática. O
bém tem oportunidades e vantagens Brasil tem domínio de tecnologias de
comparativas que devem ser explo- etanol, de motor flex, de carros híbridos
radas. Em relação ao domínio tecno- com etanol, agora de amônia verde, de
lógico, é preciso ter um pensamento uso do nosso parque energético limpo,
estratégico em relação a quais nichos para produzir energias sustentáveis. O
pleitear ou tentar avançar. Certas tec- etanol de segunda geração é uma coisa
nologias são muito difíceis de dominar. fantástica. O Brasil consegue tirar eta-
Anteriormente mencionei a produção
nol do bagaço da cana, com uma tec-
dos chips de semicondutores mais sim-
nologia totalmente brasileira, domi-
ples, na qual o Brasil tem vantagens
nada pela empresa brasileira Raízen.
a explorar. Então há caminhos muito
A química brasileira é muito avançada
promissores pela frente, mas o nosso
desenvolvimento tecnológico vai ser e sustentável – a chamada química
algo de nicho. A China tem uma pro- verde. Então o Brasil deveria buscar
dução industrial de US$ 4 trilhões; os esses nichos em que ele já tem alguma
EUA, de US$ 2 trilhões; e o Brasil, de vantagem comparativa. Aliás, é o que
US$ 200 bilhões. A briga nessa escala se chama na economia de vantagem
é muito difícil para o país, então nos comparativa adjacente, algo que está
resta a briga do nicho. Há nichos bem próximo do que já se sabe fazer. Con-
interessantes aí, como, por exemplo, a sidero que aderir à transição climática
indústria aeronáutica com a Embraer, e energética é um caminho quase que
de motores elétricos com a WEG. natural para o Brasil.

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Referências Bibliográficas

Grove, Andy. 2010. “Andy Grove: How America tecnológico”. Entrevista à CEBRI-Revista. CEBRI-
Can Create Jobs”. Bloomberg, 7 de janeiro Revista Ano 2, Número 7: 174-181.
de 2010. https://www.bloomberg.com/news
/articles/2010-07-01/andy-grove-how-america- To cite this work: Gala, Paulo. 2023. “There is no
can-create-jobs. economic development without technological
mastery.” Interview to CEBRI-Journal. CEBRI-
Journal Year 2, No. 7: 174-181.

Como citar: Gala, Paulo. 2023. “Não há DOI: https://doi.org/10.54827/issn2764-7897.


desenvolvimento econômico sem domínio cebri2023.07.06.02.174-181.pt

Seleção de trechos editados de entrevista gravada concedida em 15 de setembro de 2023.

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