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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

Leonor Freire Costa – A HISTÓRIA ECONÓMICA DE PORTUGAL – Esfera dos Livros,


2011, pág. 73 - 141.
CAPÍTULO 2
A EXPANSÃO, 1500-1621
Uma vez ultrapassadas as sucessivas vagas de Peste Negra da segunda metade do
século XIV, a viragem do século conheceu um novo ciclo de expansão económica
e populacional na Europa, nesse «longo século XVI», de acordo com a expressão
consagrada de Fernand Braudel para caracterizar uma baliza temporal que, em rigor,
se iniciou em 1480 e terminou em 1620. Se a recuperação da economia portuguesa se
mostrou lenta e plena de hesitações durante o século XV, depois de 1480-1490
proliferam os sinais positivos, a demonstrar já um crescimento que, não obstante as
variações regionais, se estendeu à segunda década de 1600.
É nesse arco temporal que se inscreveu o auge dos contactos comerciais com a
Ásia. O dinamismo do comércio ultramarino, animado pelo afluxo de mercadorias
tropicais e exóticas aos portos do reino, constituiu a face mais visível desse período.
Importa, por isso, avaliar os sinais macroeconómicos e ponderar o contributo do
império. Qualquer tentativa de resposta a esta questão, aliás, dificultada pela
ausência de dados estatísticos, exige que se tenha em conta a configuração da
economia portuguesa e o seu comportamento dinâmico. Tanto mais que, à
semelhança das outras economias europeias, a portuguesa era
indubitavelmente marcada pela atividade agrícola, quer do ponto de vista do
valor da produção, quer quanto à mão de obra absorvida. Nessas circunstâncias,
o peso das relações económicas com o império no produto interno bruto, isto é,
na produção gerada dentro das fronteiras da metrópole, ainda que muito difícil de
medir, repercutiu-se no sector do comércio externo e nas indústrias cuja
procura foi incrementada com as relações ultramarinas, por exemplo, a
construção naval, e subsidiárias, bem como os transportes.
O objetivo deste capítulo é avançar com uma radiografia da economia portuguesa.
Este retrato implica olhar para a evolução da população e para as implicações
decorrentes da consolidação das formas de exploração dos proventos do império e
das relações económicas com o exterior. Uma avaliação das repercussões desta nova
geografia económica nas receitas da Coroa devolve, noutra ótica, uma medida do
pulsar da economia portuguesa. O enquadramento da fase em que Portugal se
integrou na monarquia hispânica fecha os tópicos deste capítulo, que se sustenta na
perceção de que as balizas cronológicas da história política não foram inteiramente
coincidentes com as flutuações da economia. Com efeito, procura-se clarificar os anos
de 1580 a 1620 como ainda entalhados num período de prosperidade das relações
económicas com o exterior, pese embora o facto de a ameaça militar que impendia
sobre a Europa dos Habsburgo ter repercussões financeiras que a prazo geraram
tensões intencionalmente solucionáveis com o retorno à autonomia política.
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1. A evolução demográfica
Os sinais de recuperação da recessão demográfica, sensível no reino e noutras
regiões europeias na sequência da Peste Negra e de outros surtos que vitimaram as
populações ao longo do século XV, tornam-se nítidos por volta das décadas de
1480-1490. Admite-se que em 1500 a população portuguesa tivesse recuperado o
patamar de efetivos anterior às grandes epidemias do século XIV, isto é,
aproximadamente um milhão de almas. Confrontando este número, que não passa
de uma estimativa, com valores também eles reconstruídos para outros países
europeus, no início do século XVI Portugal surgia como um país de fracos
recursos humanos, só comparável em termos de efetivos com as Províncias Unidas
ou com os Países Baixos do Sul, concentrando no seu território menos de dois por
cento da população da Europa ocidental. No quadro ibérico, os Portugueses estavam
em franca minoria, representando pouco mais de 15% da população peninsular (cf.
Quadro n.° 3).
QUADRO N.° 3
A população europeia em 1500
Alemanha 12 000 000

Áustria 2 000 000


Dinamarca 600 000
Espanha 6 800 000
França 15 000 000
Ilhas Britânicas 3 942 000

Itália 10 500 000


Noruega 300 000
Países Baixos do Norte 950 000

Países Baixos do Sul 1 400 000


Portugal 1 000 000
Suécia 550 000

Suíça 650 000


Fonte: Maddison 2001: 241.

Depois de 1500, o crescimento demográfico em Portugal consolidou-se,


inscrevendo-se num movimento de longa duração, que é também europeu, e
que só diminuirá lá para o final de Quinhentos. Os dados expressos no
Numeramento de 1527-1532, que incidiu sobre a quase totalidade do espaço
metropolitano - à exceção da Beira Baixa -, apontam para essa conclusão. Destinado a
obter informações sobre o universo dos contribuintes, este numeramento fornece,
pela primeira vez, uma imagem mais segura da dimensão da população residente em
Portugal, não obstante os problemas suscitados pela unidade de contagem utilizada,
centrada no fogo (unidade familiar), a exigir o recurso a um coeficiente multiplicador
para estimar o número total de habitantes. Em 1527, o reino de Portugal tinha 282
708 fogos, a que corresponderiam um mínimo de 1 088 426 e um máximo de 1 300
457 indivíduos, consoante a aplicação dos coeficientes extremos, respetivamente, de
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3,85 e de 4,6 por fogo. Tendencialmente, tomam-se valores intermédios como


hipótese de trabalho para obter um retrato da população portuguesa em 1530: 1 211
0005 ou 1 120 0006 (cf. Quadro n.° 4). Até cerca de 1580, a população portuguesa
cresceu a uma taxa a todos os títulos notável, de cerca de 0,8% ao ano. Nas
décadas seguintes, e pelo menos até 1620, a tendência de fundo mantém-se, embora
a um ritmo mais moderado. As fases e o ritmo desta variação demográfica estão bem
documentados para a população de Évora, que cresceu 0,63% entre 1527 e 1589,
0,42% entre 1589 e 1593, e apenas 0,12% depois desta última data.
Considerando o valor máximo de uma população de 1 300 000 de indivíduos em
1527, o reino teria uma densidade média na ordem dos 15 habitantes por
quilómetro quadrado, número que está em sintonia com o resto da Península, mas
que diverge das densidades entre 27 e 31,6 habitantes por quilómetro quadrado
registadas, no mesmo período, em França, na Alemanha, na Itália e na Holanda.
Tratava-se, todavia, de uma densidade próxima da registada nas Ilhas Britânicas,
entre 16,1 e 18,48. Portugal surge, pois, como um país escassamente povoado.
Os primeiros sinais de quebra dessa vitalidade colhem-se de uma sucessão de
cinco crises de mortalidade, respetivamente em 1569, 1580, 1588, 1593-1594 e
1599, que afetaram todo o espaço nacional. Estreitamente associadas aos agentes
patogénicos da Peste Negra, estas crises de mortalidade resultaram de um padrão de
deslocação da epidemia que se fez no sentido leste/oeste: depois de fazer razias em
França, Alemanha, Itália e Espanha, a peste acabava invariavelmente por chegar a
Portugal.
Os anos de 1596 a 1603 foram particularmente difíceis, porque o aparecimento
da peste foi antecedido por uma sucessão de quatro maus anos agrícolas, expressão
da vulnerabilidade de uma agricultura pré-industrial às adversidades climáticas e aos
seus efeitos favoráveis à propagação da epidemia. A situação de escassez cerealífera
esteve na origem de uma desarticulação temporária da produção e distribuição,
acompanhada por reações de pânico, que punham em marcha movimentos
migratórios em direção aos centros urbanos, potenciando o alastrar de doenças
epidémicas. Para além de Lisboa, onde a situação problemática vivida durante estes
anos foi agravada pelo espectro da guerra, devido ao receio de uma ofensiva inglesa,
este surto de peste fez disparar as curvas da morte em regiões tão diferentes como
Braga, Trás-os-Montes, Beira, Alentejo e Algarve.
Se a morte levava vantagem sobre a vida durante a incidência destas crises, em finais
do século XVI o seu impacto não terá sido suficiente para inverter a tendência de
longa duração. Uma vez debelados os efeitos mais devastadores dos surtos
epidémicos, a curto prazo os batismos superavam os óbitos, permitindo a
recuperação dos efetivos, atestada para os primeiros anos do século XVII. Para essa
recuperação concorreu provavelmente a mutação entretanto verificada no padrão da
mortalidade epidémica, concretizada num recuo dos surtos cíclicos de Peste Negra e

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a sua substituição por outras doenças como o tifo e a difteria. Neste sentido, os
efeitos conjugados das crises de mortalidade e de escassez das últimas décadas
de Quinhentos levaram ao abrandamento da expansão secular, mas sem a
deter por completo.
Este padrão evolutivo estendeu-se a todo o país, não obstante os ritmos variáveis.
No Minho, as dificuldades demográficas na transição para o século XVII deram lugar a
uma fase de reorganização demográfica que se estendeu até 1638, com alguns
refluxos de curta duração nos anos anteriores. Em Coimbra, depois do retrocesso
inaugurado na década de 1590 que chegou a ceifar um quarto da população ativa, as
curvas de batismo sobrepuseram-se às da mortalidade até 1620-1621, podendo-se
falar de um crescimento a um ritmo moderado. Esse cenário não difere
substantivamente daquele detetado para o bispado de Viseu. Só o Sul do país parece
não se integrar nesta tendência de fundo. Em várias freguesias da raia alentejana, as
dificuldades demográficas já estão de volta em meados da década de 1610. E na
região de Évora a retoma dos nascimentos tendeu a perder força logo depois de
1606, travando, pois, um crescimento cumulativo da população que, por isso, não se
deteta até às vésperas da Restauração. Já no Algarve, a retoma subsequente à cava da
viragem para o século XVII, particularmente gravosa por uma conjuntura regional
específica que combina os efeitos da guerra, peste e fome, não foi suficiente para
reconstituir o número de fogos existentes em 1591, donde também aqui a imagem
regional que prevalece até ao final do período filipino é, verdadeiramente, a da
inércia demográfica.
No domínio dos comportamentos demográficos, o retrato que as fontes permitem
traçar a partir da segunda metade do século XVI é muito semelhante ao que tem
vindo a ser detetado na maioria dos países europeus: a coexistência de taxas
elevadas de natalidade e mortalidade, entre os 30 e 40 por cada mil habitantes
(embora os nascimentos superassem ligeiramente as mortes), uma mortalidade
infantil e adolescente muito elevada, que ceifava metade das crianças nascidas, e,
consequentemente, uma baixa esperança média de vida à nascença, que oscilava
entre os 25 e os 35 anos de idade. A mortalidade era dominada por causas exógenas,
posto que as doenças infeciosas, como a peste, o tifo, a varíola, determinavam a
maioria das mortes. Por seu turno, também em Portugal se encontram indícios da
prevalência de um padrão europeu de casamentos, um european marriage
pattern, que atua como regulador do crescimento populacional, pela sua ação sobre a
fecundidade. Embora não seja seguro afirmar que este padrão de casamento esteja já
estabelecido em 1500, é ao longo desta centúria que se vão definindo os seus traços
essenciais, aparecendo perfeitamente instituídos no século seguinte. Apesar das
variações, nas regiões a norte do Tejo as mulheres tendiam a casar mais tarde,
entre os 23 e os 26 anos, enquanto se constata também uma percentagem não
negligenciável de celibato definitivo, que afeta sobretudo as mulheres. Seguindo
um padrão mais próximo daquele detetado para o Mediterrâneo, no Alentejo e no

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Algarve casava-se mais cedo.


Como regulador da dinâmica populacional, a emigração ultramarina foi uma
variável secundária, não obstante os testemunhos contemporâneos que falam da
falta de gente no reino. Os dados disponíveis são, contudo, muito incertos e as
estimativas avançadas refletem tão só ordens de grandeza. Depois de uma primeira
fase em que a saída de gentes do reino se fez em direção ao Norte de África e às
ilhas atlânticas, mas envolvendo contingentes reduzidos, na ordem dos 500
indivíduos por ano, a partir de meados do século XVI o número de saídas aumentou,
com o débito regular para a Ásia e para o Brasil. Segundo uma estimativa, entretanto
revista, de 1500 a 1580 saíram do reino cerca de 3500 indivíduos por ano, num total
de 280 000 indivíduos. Contudo, esta estimativa não leva em conta os que
retornavam, pelo que, em média, o número de emigrados para a Ásia oscilou entre
450 e 650 indivíduos por ano. A apreciação numérica da população portuguesa
dispersa pelos espaços ultramarinos em 1600 - 100 000 indivíduos, entre os quais
apenas 30 000 na América Portuguesa - parece igualmente pouco consentânea com
uma corrente migratória daquela dimensão elevada.
Em todo o caso, o volume da emigração portuguesa quinhentista esteve longe de ser
quantitativamente despiciendo e certo é que a exploração económica do império
quinhentista coincidiu com o crescimento continuado da base demográfica
metropolitana. Essa tendência positiva funda-se, no entanto, em realidades muito
distintas no que respeita à densidade e à distribuição da população pelo território. Os
contrastes regionais são uma marca estrutural da demografia portuguesa e
constituem um legado do povoamento realizado nos séculos anteriores que,
aliás, não sofreria grandes transformações nos períodos subsequentes, como
muito justamente se tem sublinhado. Para esse efeito, vale a pena voltar aos dados
veiculados pelo numeramento de 1527-1532, expressos no quadro n.° 4, e que
tomam como base de cálculo o coeficiente 4,3 por fogo. Das seis comarcas em que
estava subdividido o reino, o Minho era de longe a mais povoada: apesar da sua
reduzida dimensão geográfica, com 8% do território, aí vivia cerca de um quinto dos
Portugueses. No extremo oposto, com uma superfície muito maior, quase 34% do
território, o Alentejo surgia como uma região fracamente povoada, albergando
17% dos Portugueses. Com 6,9 habitantes por quilómetro quadrado, situava-se bem
abaixo da densidade média nacional, no que ainda era acompanhado pelo Algarve,
com 8,5 hab./km2. Entre os extremos constituídos pelo Noroeste e pelas comarcas do
Sul do país, a Beira surge como a província mais equilibrada na correlação entre
população e território, com 19,03 hab./km2, não obstante uma distribuição irregular
no seu interior motivada pelo relevo. A coluna das densidades populacionais
mostra a diminuição do número de gentes à medida que se desce de norte para
sul. Quase 80% dos Portugueses viviam nas quatro comarcas localizadas a norte do
rio Tejo. Embora representassem quase 40% do território, o Alentejo e o Algarve
continham pouco mais de um quinto da população portuguesa, tanta como

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aquela que se concentrava nos limites territoriais do Minho.


QUADRO N.° 4
Distribuição regional da população portuguesa em 1527
Comarca N.° fogos Pop. Total1 População
Densidade Superfície Superfície
total (%) (hab./km2) (km2) total (%)
Entre-Douro-e-Minho 55 016 236 569 19,46 32,62 7252 8,12

Trás-os-Montes 35 629 153 205 12,60 13,33 11493 12,87

Beira 67 696 291 093 23,95 19,03 15 298 17,13

Estremadura 65 515 281 715 23,17 14,14 19 930 22,32

Entre-Tejo-e-Guadiana 48 934 210 416 17,31 6,94 30 319 33,96

Algarve 9 918 42 647 3,51 8,55 4989 5,59


282 708 1 215 644 100,00 13,62 89 281 100,00

1 - Considerando 4,3 habitantes/fogo


Fonte: Serrão 1996: 68; Rodrigues 2009: 177-178.

O numeramento joanino mostra ainda a distribuição da rede urbana nacional


(Quadro n.° 5). Restringindo a classificação de cidade aos aglomerados com mais de
mil fogos, ou seja, entre quatro mil e cinco mil habitantes, considerado como o
patamar mínimo para reter apenas os centros com capacidade de dinamização
regional, a taxa de urbanização em Portugal chegava a 13%.
No confronto com os dados conhecidos para a Europa na viragem para o século
XVI, com base no primeiro critério agregador de cidades com cinco mil habitantes,
sobressai a imagem de um país com uma taxa de urbanização de 12,8%, mais
elevada do que a média europeia, incluindo a Rússia, que rondava os 7% a 9% (cf.
Quadro n.° 6). Longe, é certo, das regiões mais densamente urbanizadas como os
Países Baixos do Norte e do Sul, mas em conformidade com um padrão comum à
Europa do Sul, onde o grau de concentração da população nas cidades era mais
elevado do que na globalidade da Europa Setentrional.
QUADRO N.° 5
Urbanização em Portugal (1527-1532)
N.° de fogos % total da N.° de fogos Pop.
> 1000 fogos pop. > 2500 fogos urbana %

Entre-Douro-e-Minho 5,5
2 16 1
Trás-os-Montes - -
Beira - -
Estremadura 3 41 1 19,9
Entre-Tejo-e-Guadiana 5,8
6 62 1
Algarve 64 -
2
Portugal 13 12,8 3 6,7

Fonte: Dias 1998: 18-20; Serrão 1996: 68; Rodrigues 2009: 193.

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QUADRO N.° 6
Urbanização na Europa (1500)
(% da população total)
> 5000 hab. > 10 000 hab.

Alemanha 7-9 3,2


Escandinávia 5-8 0,9
Espanha 10-16 6,1
França 9-12 4,2
Inglaterra 7-9 3,5
Itália 15-20 12,4
Países Baixos do Norte 20-26 15,8
Países Baixos do Sul 30-45 21,1
Portugal 12,8 6,7
Rússia 3-6 3-6
Fonte: Dupâquier 1997: 258; Livi-Bacci 1999: 57; Rodrigues 2009: 193.

Se este cálculo da população urbana seria consentâneo com a matriz


mediterrânica, uma análise mais detalhada sobre a realidade que o sustenta dilucida
importantes diferenças a nível nacional. Para começar, na Beira e em Trás-os-
Montes, embora abundassem pequenos aglomerados populacionais, nenhum
ultrapassava os mil fogos, enquanto o Alentejo concentrava o maior número de
cidades acima desse patamar. Refletindo uma vocação urbana que recuava ao
período muçulmano, a grande maioria dessas cidades localizava-se a sul do Tejo,
por oposição à zona norte do país, onde o povoamento era tradicionalmente mais
disperso e a vida urbana menos significativa. Considerada nestes moldes, a malha
urbana estava, pois, longe de cobrir o território de forma homogénea.
Por outro lado, os 13 aglomerados urbanos que chegavam ao patamar dos mil fogos
escondem escalas distintas de concentração populacional. Desde logo, a dimensão de
Lisboa, com o seu peso no sistema urbano nacional: em 1527, com cerca de 56 mil-
60 mil habitantes, Lisboa ombreava com outras cidades europeias,
designadamente com Londres, embora fosse uma cidade desmedidamente grande
para a dimensão demográfica do Portugal quinhentista. Na hierarquia urbana,
seguiam-se o Porto e Évora, com cerca de 12 500 habitantes, vindo depois
Santarém e Elvas, com uma população na casa das 8000 almas, num escalonamento
não muito distinto daquele que o período anterior, de definição das fronteiras, havia
fixado. Por ordem decrescente, sucediam-se Tavira, Guimarães, Coimbra, Lagos,
Portalegre, Setúbal, Beja e Olivença, com populações na ordem dos 5000-6500
habitantes.
Apesar destas diferenças de escala, um olhar sobre a distribuição geográfica destas
cidades no espaço nacional identifica, ao mesmo tempo, traços comuns e algumas
especificidades de funções. Os rios, antes de mais, constituem um forte elemento de
agregação populacional, sobretudo quando as suas condições de navegabilidade
permitiam a ligação com o mundo rural circundante. Por esta ordem de ideias,
Lisboa, Porto, Santarém, Coimbra constituíam bons exemplos de cidades animadas
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pelos respetivos cursos fluviais que, nos dois primeiros casos, ainda se
complementavam com atividades portuárias e tratos comerciais com o exterior, fruto
da sua localização geográfica. Lisboa juntava a essas condições o estatuto de capital
do reino e do império, assim ditando a sua excecional capacidade de atração
demográfica que se iria acentuar nos séculos subsequentes. No Noroeste atlântico,
Guimarães deveu o seu crescimento à sua função de centro catalisador da produção
de uma região densamente povoada. Já na orla marítima algarvia, o estímulo para o
crescimento de Lagos e Tavira radicou na sua agitada vida portuária, muito
focalizada nas ligações comerciais com a Andaluzia e com os presídios do Norte de
África. No interior alentejano, a concentração urbana era, simultaneamente, a
expressão de uma tradição de povoamento herdada do urbanismo árabe, de uma
ação de fomento das ordens militares religiosas após a Reconquista e da riqueza
agrícola local, particularmente nas terras em torno de Beja e de Portalegre. Aqui,
mais do que os contactos com o litoral, as ligações comerciais a Castela imperavam,
pela proximidade de algumas cidades relativamente à raia.
Desequilibrado, portanto, este retrato da rede urbana portuguesa: uma capital,
a raiar os 100 000 habitantes nos meados do século, contrastava com aglomerados
urbanos bastante mais pequenos. Cidades de dimensão média, capazes de
catalisar os circuitos comerciais e de concentrar a capacidade de consumo,
constituíam as grandes ausências. Se o critério de aglomerado urbano for alargado
a núcleos de entre os 500 fogos e os mil fogos, isto é, considerando um patamar
mínimo para distinguir centros urbanos de aglomerados de cariz rural, a cartografia
da malha urbana portuguesa deixa entrever alguns «desertos» de ocupação,
particularmente evidentes no Baixo Alentejo, na Beira Interior e em Trás-os-Montes
(Mapa 4).
Ao longo do século XVI, a dinâmica de crescimento populacional introduziu algumas
alterações, embora não substantivas, neste cenário, já que, nos seus traços gerais, se
manteve a estrutura urbana aqui delineada. Apesar de tudo, algumas cidades
experimentaram desenvolvimentos mais positivos, motivados por fatores
económicos específicos. Assim, o número de fogos cresceu em cidades marítimas
como Aveiro e Viana do Castelo, fruto da intensificação das trocas comerciais
realizadas pelo Atlântico, sobretudo depois de meados do século XVI, com a
consolidação do povoamento no litoral brasileiro, assente na economia açucareira.
Também Braga conheceu uma dinâmica positiva, enquanto Lisboa continuou a
crescer a um ritmo acelerado, mercê da captação sistemática de fluxos migratórios. Já
o Porto viu os seus efetivos estabilizarem, ao mesmo tempo que as cidades marítimas
do Algarve perdiam residentes pelo arrefecimento dos contactos comerciais com o
império espanhol através de Sevilha. Destes exemplos, a percetível maior
concentração da população urbana em cidades marítimas permite que se fale
de um lento processo de litoralização ao longo do século XVI.
2. A expansão agrária
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O mundo rural ocupava naturalmente uma fatia dominante da força de


trabalho e era a origem principal dos rendimentos das populações. Esse
domínio do rural que, em Portugal como nas outras partes da Europa, haveria de
durar ainda alguns séculos, não impediu que se verificassem importantes
desenvolvimentos nas atividades comerciais e transformadoras, nas pescas,
assim como nas atividades portuárias e comerciais ligadas à expansão
ultramarina.
Em finais do século XV, um novo ciclo expansionista, que é também de cariz
europeu, detetou-se na população em crescimento. É difícil determinar se a
multiplicação dos efetivos se deveu mais a fatores exógenos ou endógenos, isto é, até
que ponto foi causa ou consequência de mudanças da economia circundante. Uma
coisa é certa: tal como na Europa, a tendência secular expansionista que está em
marcha no reino de Portugal em finais do século XV faz-se em estreita
articulação com um crescimento populacional que serviu de estímulo ao
desenvolvimento da produção agrícola.
Desde a segunda metade do século XV multiplicaram-se, um pouco por todo o país,
testemunhos de um verdadeiro impulso arroteador destinado a reconquistar terras
anteriormente abandonadas na sequência da mortalidade causada pela Peste Negra.
No vale do Mondego, terras de Alcobaça e Algarve procedeu-se ao desbravamento de
matos e florestas, à drenagem e ao aproveitamento de pauis e à recuperação de
infraestruturas como celeiros e moinhos, em resposta a uma maior pressão exercida
sobre os recursos alimentares. Se, numa primeira fase, a extensão da área cultivada
se fez no sentido de reaproveitar terras que já haviam sido submetidas a
afeiçoamento humano, o movimento arroteador alargou-se depois a zonas que
nunca haviam sido alvo de cultivo. Procurou-se conquistar não só charnecas e
matos, mas também terrenos baldios, pertencentes ao património dos concelhos.
Nalguns casos essas mudanças ameaçaram o equilíbrio da típica rotação cultural que
combinava cultivo de cereais com a criação de pecuária e que exigia a manutenção de
pastos naturais, de uso coletivo, submetidos ao direito de compáscuo, segundo o qual
os gados pertencentes a membros da mesma comunidade podiam pastar nos baldios
e matos concelhios. Como consequência, as arroteias comportaram conflitos
cada vez mais comuns entre os interesses da lavoura e os da pecuária, uma vez
que a diminuição dos incultos colidia com a criação de gado.
O aumento da área cultivada prosseguiu ao longo das primeiras décadas do século
XVI tendo sido, entretanto, animado pela subida dos preços agrícolas, a partir da
segunda década do século XVI, que tornou mais compensadores os investimentos na
agricultura, e revelando alguma pressão demográfica sobre a terra. As terras
conquistadas destinavam-se maioritariamente ao cultivo de cereais, embora
também pudessem ser convertidas e aproveitadas para outras culturas, mais
rendosas, como a vinha e a oliveira. O crescimento da produção e as alterações,
ainda que ligeiras, na composição do produto agrícola fizeram-se com uma cada vez
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maior vinculação ao mercado.


Nesse movimento expansionista participaram os proprietários e os foreiros, numa
relação mediatizada por contratos de aforamento, habitualmente perpétuos e
prevendo o pagamento de foros reduzidos durante os primeiros anos, condições que
satisfaziam as partes envolvidas: o proprietário, por ver roçada uma terra antes
improdutiva, e o foreiro, por obter garantias de vinculação perpétua à sua família de
um lote de terra como contrapartida pelo esforço e investimento de trabalho feito no
seu desbravamento. Esses contratos eram o expediente mais comum, mas outros
havia, como o arrendamento de bens concelhios para cultivo por parte das
câmaras, que engrossavam as receitas municipais, ou a dada de terras em regime
de sesmarias. Já empreendimentos mais dispendiosos e exigentes em termos
técnicos, como a secagem de pântanos, pediam um outro envolvimento por parte do
proprietário, não se estranhando o protagonismo dos senhorios eclesiásticos,
capazes de avançar com o necessário empate de capital. Em qualquer caso, são os
pequenos acréscimos na superfície cultivada, protagonizados pelas famílias
camponesas, que constituem a tónica dominante da extensão dos
arroteamentos.
A expansão agrária encetou-se num padrão genérico de baixas rendas fundiárias,
particularmente evidente nos prédios que se iam reaproveitando para a agricultura.
Os camponeses de menores recursos encontravam assim o estímulo suficiente para
suportar os riscos e encargos dos investimentos de trabalho realizados no
desbravamento de pequenas parcelas de terra, ainda considerados compensadores.
Contudo, esta tendência foi cedendo o lugar a uma outra, visível já nas últimas
décadas do século XVI e marcada desta feita por rendas nominais mais elevadas.
Que nesse período as rendas fundiárias estão em crescimento progressivo no espaço
nacional é uma constatação feita abundantemente por estudos regionais, em
consonância com uma elevada procura de terra, indissociável do crescimento
populacional e do aumento da procura de bens alimentares. No Alentejo as rendas
em 1605 atingiram um pico máximo de toda uma série que se estende até às
primeiras décadas do século XIX. Da mesma forma, certas rendas urbanas melhor
documentadas, como acontece para Estremoz, subiram 200% a 300% ao longo do
século XVI, numa tendência mais marcadamente altista que a dos bens de consumo.
Como tem sido muito justamente sublinhado pela historiografia, o traço
predominante da agricultura portuguesa do período moderno é a diversidade,
fundada, desde logo, nos condicionalismos do relevo, solo e clima, no quadro dos
quais se desenrolava a atividade agrária e que impunham sujeições difíceis de
ultrapassar. Nesse sentido, as três grandes regiões naturais em que se decompõe o
espaço nacional identificadas por Orlando Ribeiro - Portugal do Norte ou atlântico,
Portugal transmontano e Portugal meridional -, para lá de determinarem
distintas paisagens rurais, impuseram também diferenças de evolução na
atividade agrária, vinculadas aos seus contrastes geográficos. Realidade que é
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

fundamental ter em conta na realização deste exercício de síntese.


Elemento marcante na paisagem agrícola do Portugal medieval e moderno é a
cultura cerealífera, que continua a ocupar a maior parte da área cultivada,
fenómeno, aliás, comum a toda a Europa. Dificilmente poderia ser de outro modo, já
que os cereais, consumidos quer sob a forma de pão, papas ou bolos,
proporcionavam a fatia preponderante da ração calórica da vasta maioria da
população e desempenhavam ainda um papel relevante na alimentação animal. Claro
que este predomínio dos cereais não era tão forte nos estratos sociais superiores,
com uma dieta mais variada, mas certo é que o bem-estar alimentar da grande
maioria dos Portugueses, e bem assim dos restantes europeus, dependia da
disponibilidade de cereais. Não é surpreendente, pois, o predomínio das terras
semeadas de «pão», em relação a outras culturas, a despeito de amplas variações
regionais. Tomando o exemplo da Estremadura, em Torres Vedras, 87% a 95% do
espaço cultivado estavam ocupados com cereais.
De uma forma geral, a cultura cerealífera era conduzida em campos abertos, isto
é, sem vedações ou outros obstáculos, de configuração quadrada, típica do mundo
mediterrânico, a contrastar com os campos alongados e estreitos da Europa do Norte.
Só no Entre-Douro-e-Minho e, com menor expressão na Estremadura, os campos
fechados, constituídos por pequenas parcelas delimitadas por renques de árvores,
combinavam uma policultura de tipo intensivo com o cultivo de cereais.
Entre os cereais que pontificavam na paisagem agrícola portuguesa no início do
século XVI, e que faziam ainda parte integrante do velho património agrário
mediterrânico, contam-se o trigo, o milho-alvo, distinto do de origem americana, o
centeio e a cevada. Destes, o trigo encontrava-se mais difundido por todo o
território, não obstante as zonas que reuniam as condições edafo-climáticas
necessárias para garantir boas produções de um cultivo tão exigente se
circunscreverem às terras ricas e argilosas à volta de Beja (os «barros de Beja»), às
terras vermelhas dos arredores de Lisboa, zonas aluviais da bacia do Tejo e aos
granitos da região situada a norte de Castelo Branco. As oscilações da produção e os
fracos rendimentos culturais médios, dos mais baixos da Europa, são disso expressão.
Contudo, a preferência dada ao «pão alvo», de trigo, e o significado social atribuído ao
seu consumo justificaram a sua dispersão do Minho ao Algarve. Se era na
Estremadura, Ribatejo e Alentejo que conhecia especial relevo, no Algarve, apesar
das condições naturais adversas, persistia o seu cultivo.
Em Trás-os-Montes e na zona montanhosa do Centro, até à serra da Estrela, o trigo
cedia a primazia ao centeio, cereal mais resistente e melhor adaptado à
irregularidade térmica (invernos rigorosos e verões quentes e secos) e aos solos
pobres, característicos do Portugal transmontano: «cereal pobre para pobres». E,
contudo, a repartição destes cereais pelo espaço nacional está longe de
constituir uma dicotomia. Eram complementares, semeando-se cada um onde as

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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

circunstâncias naturais garantissem os melhores resultados.


O milho-alvo ou milho-miúdo, um outro cereal considerado pobre, encontrava no
Nordeste a sua zona de eleição, mercê do clima temperado marítimo. Mas também
estava representado na Estremadura, onde era o segundo cereal mais cultivado nos
coutos de Alcobaça, logo a seguir ao trigo. Consumido igualmente em pão e papas,
por ser cereal de primavera, surgia habitualmente combinado com trigo, centeio e
cevada. Por fim, no leque dos cereais panificáveis, a cevada encontrava-se difundida
por todo o reino, com especial incidência na Estremadura e no Entre-Douro-e-Minho.
Fazendo parte constitutiva da alimentação das camadas mais humildes da população,
mais relevante era, contudo, a sua utilização como forragem para cavalos e mulas.
A este património agrário cerealífero juntaram-se duas novidades introduzidas no
século XVI: o arroz e o milho-maís. O primeiro não colheu adesão, por razões que
não são inteiramente conhecidas, mas a que não serão alheios os hábitos alimentares
da época. O seu cultivo permaneceu acantonado nalguns pauis como Asseca, Ota e
Muge, e é provável que as condições de insalubridade associadas aos pauis, entre elas
a prevalência do paludismo, limitassem também o sucesso desta cultura. O mesmo
não sucedeu com o segundo. Originário do continente americano, o milho de
maçaroca ou milho-maís foi introduzido pelos espanhóis na Andaluzia no início do
século XVI, de onde se estendeu pela Europa. Semeado pela primeira vez na região de
Coimbra, provavelmente entre 1515 e 1525, na década de 1530 o «milho marroco»,
tal como surge designado nas fontes, já era um caso de sucesso, mercê da sua elevada
produtividade por semente, quando comparada com os menores rendimentos do
trigo e o centeio. A isto ainda se juntava um ciclo vegetativo mais rápido (cinco
meses) e a sua fácil combinação com as restantes culturas e com a criação de gado,
como o demonstraram os agricultores do Portugal Atlântico. Queria águas
abundantes, e nas terras frescas e húmidas encontrou condições privilegiadas que
permitiram a sua difusão, ainda que só no século XVII se tenha convertido na cultura
dominante do Entre-Douro-e-Minho.
Para a população minhota o maís passou a constituir um importante suplemento
alimentar que viria a dar sustentabilidade ao crescimento demográfico durante todo
o período moderno.
Noutras regiões do país, a difusão da maçaroca foi mais lenta. Para isso concorreu a
falta de cursos de água, bem como o forte legado cultural mediterrânico, centrado no
consumo do pão alvo, que resistia a alterações da dieta alimentar. O maís era
considerado cereal de gente pobre, e o menos valioso dos cereais no mercado. Ainda
assim, no decurso das últimas décadas do século XVI, a sua difusão estava em curso
na Beira, feita à custa do milho-miúdo e do centeio, e, na centúria seguinte, iria
progredir para a Estremadura. Mas, para todos os efeitos, e salvo raras exceções, a
influência do maís nos hábitos alimentares da população permaneceu sobretudo
confinada aos locais de produção, tanto mais que o seu cultivo visava o

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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

autoconsumo.
A vinha, o segundo pilar da trilogia alimentar mediterrânica, revestiu-se de
características distintas. Também as vides se achavam disseminadas por todo o país
desde o período medieval, porém neste caso, e ao contrário do que sucedia com os
cereais, as condições edafo-climáticas de vastas áreas do reino eram claramente
favoráveis ao seu cultivo, assim permitindo uma produção abundante e com bons
níveis de produtividade. Não é, pois, de admirar que o vinho gozasse de um lugar
destacado entre as bebidas que se consumiam em todas as mesas e que fosse
facilmente identificado como uma das principais produções portuguesas,
entrando em circuitos de exportação. Por isso, o que distinguiu verdadeiramente a
vinha foi a sua precoce vocação de mercado. A produção de vinho orientou-se
desde cedo para a comercialização, quer no mercado urbano, quer no mercado
internacional. A sua inclusão regular nas exportações portuguesas dos tempos
medievais é disso exemplo. Tenha-se presente o panorama detetado para o Alto
Douro. Embora a verdadeira expansão da vinha ocorra no século XVII, já no
século XIII era visível uma orientação para a viticultura, fundada nas condições
climatéricas e na possibilidade de fazer escoar a produção pelo rio. Nesse sentido, e
devido também aos cuidados que exigia, a vinha desenvolvia-se habitualmente em
pequenos campos próximos dos núcleos populacionais, formando um aro em torno
das vilas. Essencial era igualmente a proximidade a cursos de água ou vias de
comunicação terrestres por onde se garantia o acesso aos mercados.
Na continuidade de uma expansão que se encetou nos finais da Idade Média, a cultura
da vinha manteve-se em progresso por quase todas as regiões portuguesas,
beneficiando do quadro macroeconómico favorável e da dinamização da vida urbana
expressa, como se viu, no crescimento do número de fogos de várias cidades, em
particular das marítimas. Mas será sobretudo nas últimas décadas do século XVI
que se multiplicaram os investimentos realizados por comerciantes na
exploração de vinhedos, tendência que continuará pelo século XVII.
A aliança mediterrânica completa-se com a oliveira. Se a isso juntarmos as múltiplas
utilizações do azeite, na alimentação, iluminação, medicina e preparação de lã, assim
se compreende a implantação desta árvore que, contudo, no período tardo-medieval
estava ainda longe de ostentar a cobertura que conheceu ao longo dos séculos XVI e
XVII. Na viragem para a modernidade, a oliveira protagonizava um movimento
multissecular de expansão que se espraiava a partir da sua área de implantação
tradicional, o Portugal mediterrânico, em direção ao norte. Depois de ultrapassada a
região de Coimbra e da Covilhã, seu limite setentrional no final da Idade Média,
durante o século XVI os olivais continuaram a expandir-se, insinuando-se no
Portugal transmontano e nalguns pontos do Entre-Douro-e-Minho, sinal de uma
generalização do seu consumo e da sua crescente importância nas exportações.
À propagação da oliveira também não será alheia a sua combinação com outras
culturas, uma vez que podiam surgir isoladas ou em olivais, em parelha com outras
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

árvores de fruto, em parceria com a vinha ou ainda em terras onde também se


semeava pão. Não obstante a generalização do seu cultivo, foi no Sul do país que no
século XVI se continuavam a concentrar as principais manchas de produção, de
onde irradiava o azeite que abastecia zonas onde a produção local fosse deficitária.
Embora menos relevantes para a formação do produto agrícola, outras culturas
ainda merecem referência, pelo papel complementar exercido na alimentação e na
vida económica das populações. Assim sucedia com as árvores de fruta, que se
insinuavam na paisagem agrária, onde se reunissem condições climáticas e
geológicas favoráveis, quer formando pomares, quer misturando-se entre as vinhas e
as searas. Exemplos de laranjas exportadas para Londres referem já a importância
destas culturas. Citem-se, como exemplo, os pomares de macieiras e pereiras que
abundavam na Estremadura, no Alentejo e nas Beiras, mas também os pessegueiros,
cerejeiras, laranjeiras, cidreiras, nespereiras e romãzeiras que surgem associados à
riqueza frutícola de diferentes regiões do país, como os termos de Lisboa e Sintra,
Setúbal, Coimbra e Lamego. No Algarve a fruticultura conheceu uma expressão
particular ao constituir o suporte da economia local. Para isso contribuiu o
abundante cultivo de figos, que encontravam na exportação o seu principal destino,
para além de terem um papel indispensável na dieta algarvia, substituindo o pão em
épocas de fome. A norte de Coimbra, no Portugal interior e montanhoso, um outro
fruto que servia de recurso alimentar era a castanha, consumida sob a forma de pão
em anos de escassez de cereais.
Também as leguminosas, utilizadas na alimentação humana e animal, marcavam
presença no mundo agrário desde a Idade Média, embora ocupassem um espaço
limitado na superfície agricultada. As favas, tremoços, ervilhas, grão-de-bico e
chícharos (ervilhas-quadradas) eram cultivados nas terras de pão, em alternância
com os cereais, sempre que as condições edafo-climáticas locais permitissem a
adoção de um sistema rotativo que combinasse culturas de primavera com culturas
de outono. Devido à prevalência do clima mediterrânico, a rotação trienal de culturas
esteve longe de se generalizar no espaço nacional, como é bem conhecido, em claro
contraste com sua propagação na Europa do Norte desde o período tardo-medieval.
Em todo o caso, nas terras férteis e húmidas do Entre-Douro-e-Minho, no vale do
Baixo Mondego e nos coutos de Alcobaça as leguminosas eram cultivadas em
alternância com os cereais. Enquanto no Algarve, desde o último quartel do século
XVI, sem abandonar o afolhamento bienal, introduziu-se a prática de semear favas e
ervilhas na contrafolha, inovação que veio ampliar os recursos alimentares
disponíveis e sustentar o crescimento demográfico que então tinha lugar. À custa da
pecuária, contudo, que assim via reduzida a superfície das terras de pousio,
onde os animais eram lançados a pastar entre a colheita e a sementeira, o que
impediu a generalização de semelhante prática.
Apesar de se cultivar um pouco por todo o país, o linho encontrava as melhores
condições de cultivo no Entre-Douro-e-Minho, onde surgia inserido na rotação
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cerealífera de culturas. Já as hortaliças (couves, cenouras, alfaces, beringelas,


cebolas, etc.), por exigirem atenções constantes, de irrigação e de proteção face à
movimentação da pecuária, eram cultivadas em locais específicos para o efeito: as
hortas, habitualmente cercadas, localizavam-se junto às povoações. À semelhança do
que sucedeu noutras regiões da Europa, a horticultura em Portugal esteve em
expansão, estimulada pelo crescimento urbano. Disso é expressão o elevado número
de hortas que proliferavam em torno de Santarém, de Lagos, Coimbra, Évora ou
Lisboa no século XVI.
Faziam parte da paisagem rural as terras incultas, como as florestas, matos e
terrenos baldios, cuja extensão é impossível de avaliar para o período aqui
observado. Apesar do movimento arroteador, testemunhos coevos do início do século
XVII apontavam ainda para a permanência de vastas áreas de terrenos incultos. É
possível que uma grande parte dessas terras fossem de facto próprias para a
agricultura, já que muitas delas haveriam de ser ocupadas ao longo do século XIX e
mesmo mais tarde. Pode então presumir-se que elas não foram ocupadas por falta de
braços, de capitais ou de tecnologia apropriada, ou por intencional desinvestimento
mediante o risco de entrada de tropas de Castela, como sucedia nalgumas zonas da
Beira Baixa.
Todavia, é preciso recordar que numa economia agrícola típica de Antigo Regime os
incultos exerciam uma função indispensável de suporte. Matos, charnecas e
terrenos maninhos serviam como fornecedores de um leque apreciável de matérias-
primas e alimentos, como a lenha, madeira, cortiça, colmo, resina, pez, bolota, frutos,
cogumelos, para além de serem utilizados como terras de pasto. Tal como em
períodos anteriores, não faltam referências à criação de bovinos, ovinos, caprinos,
suínos, equinos e muares.
Em todo o caso, falar de pecuária no Portugal do período moderno é falar sobretudo
da criação de gado miúdo, nomeadamente, ovelhas e cabras, prevalecentes nos
testemunhos relativos a explorações agrícolas de Casas senhoriais, um pouco por
todo o país. Assim era numa das maiores Casas nobiliárquicas, a de Bragança, com a
preponderância das ovelhas sobre os bois e os cavalos, bem expressa no inventário
de D. Teodósio de 1565. No conjunto dos bens de raiz valorizados em cerca de 15
contos, o gado perfazia 932 560 réis, ou seja, 6,2%. A mesma prevalência do gado
miúdo observa-se na província de Entre-Douro-e-Minho, embora aqui a criação de
bois conhecesse concentrações elevadas, sem paralelo noutras regiões do reino. De
acordo com uma estimativa de 1512, muito provavelmente exagerada, pela província
distribuíam-se 250 000 cabeças de gado miúdo, a que se juntariam cerca de 100 000
cabeças de gado vacum. Só para a cidade de Braga e o seu termo, em meados do
século estimava-se em 5000 o número de bois, que compartilhavam essa área com 12
800 ovelhas, cabras e porcos. A crer nestes números, haveria 4,5 cabeças de gado
miúdo por habitante. Em descrições de meados do século da região de Lamego
conta-se que não havia morador que não tivesse dois porcos e uma marrã, o que dava
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cerca de 10 200 porcos e 5100 marrãs num largo perímetro em torno da cidade de
Lamego. Na serra de Montemuro, não eram poucos os criadores que dispunham de
100, 120 ou 150 vacas e touros.
No território onde predominam os verões secos e os solos menos húmidos, como
sucedia a sul do Mondego, as pastagens naturais eram menos abundantes e tinham
uma qualidade globalmente inferior às do Norte do país e também da Europa. Apesar
disso, os animais eram necessários, pelo que havia que harmonizar cultura da terra e
criação de gado, na busca de um equilíbrio, habitualmente precário, em que ambas
beneficiassem. O compáscuo foi o regime que vigorou em grande parte do território
nacional e que pressupunha a utilização comunitária das terras de pasto: todos
os animais pertencentes aos vizinhos da povoação tinham entrada livre quer nos
bens concelhios (como baldios e maninhos), quer nas terras de apropriação
particular para pastar nos pousios ou nos restolhos. Aliás, é esta comunhão de
pastagens que, com algumas variantes, explica a prevalência dos campos abertos
no território.
O crescimento, em torno dos povoados, de culturas como a vinha, a oliveira e as
culturas de regadio, incluindo pomares e hortas - já para não falar dos avanços das
arroteias ou da introdução de leguminosas nas contrafolhas, em detrimento dos
pousios -, podia conduzir a tensões com a criação de gado. Por um lado, havia que
assegurar pastos em dimensão suficiente para o seu sustento, até para garantir a
produção de estrume para a fertilização das terras cerealíferas, e, por outro, era
imperioso afastá-los dos aros citadinos onde predominavam os cultivos mais
delicados (vinha, oliveira, legumes) que urgia proteger. E perante a necessidade de
compatibilizar as duas atividades que, desde o século XIV, no Centro e no Sul do país
se introduziram medidas destinadas a organizar o pastoreio coletivo e que se
irão aprofundando na viragem para o período moderno. Os bois de arado foram os
primeiros a ser agrupados em boiadas ou aduas, conduzidos em conjunto para as
pastagens reservadas para o efeito ou para os restolhos. Nenhum vizinho podia
excluir os seus animais do rebanho da coletividade, o que justifica a dimensão
alcançada pelas suas deslocações: para o século XV há notícias que dão conta da
movimentação organizada de várias centenas de bovinos às pastagens de Ourique,
provenientes do Alentejo e do Algarve, e que podiam chegar ao milhar de cabeças.
Também as ovelhas se agrupavam em grandes rebanhos que circulavam pelo
Alentejo, Beira Interior e Trás-os-Montes, em busca de pastagens numa transumância
organizada, com canadas, caminhos reservados para o efeito. Particular importância
assumia a serra da Estrela, enquanto destino de pastagem de verão. Em números
mais restritos, cabras, porcos e muares marcavam presença por todo o país. A
criação de aves de capoeira seria de todas a mais generalizada, por ser muito
pouco exigente em termos de espaço e de alimentos. Disso mesmo é expressão
sistemática a composição dos foros pagos aos senhorios que, não raras vezes,
incluíam galinhas e ovos.
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

Desta ampla descrição da paisagem agrícola intenta-se devolver uma imagem de um


sector em crescimento. Não é possível quantificar o produto agrícola, em franca
diversificação, e com algumas produções a responderem à procura de
mercados europeus. Estimativas para 1515 computam-no em 1634 milhões de réis,
com a seguinte estrutura: cereais 38%, gado 43%, vinho 16%, azeite 3%. Mas não é
seguro se o seu crescimento teve uma variação superior ao da população, e
estimativas recentes sugerem uma resposta negativa.
É preciso, na verdade, frisar que a expansão agrária que se acabou de descrever se fez
dentro dos moldes típicos de uma economia de Antigo Regime, ou seja,
adicionando sobretudo terra e trabalho ao processo produtivo, sem que se
tivessem introduzido alterações significativas no domínio das técnicas utilizadas,
pelo que dificilmente se poderá falar de ganhos de produtividade, da terra ou do
trabalho. Em consequência, os índices de rendimento médio cerealífero
permaneceram muito baixos. Tome-se como exemplo os dados levantados para a
região de Barcarena no início do século XVI, onde as médias de rendimento do trigo
não ultrapassavam as duas e as 3,5 sementes, embora alguns casais, em terrenos
mais férteis, conseguissem obter médias mais elevadas, de 4:1 e 5:1, valores também
detetados para o Baixo Mondego. Esses valores estavam longe dos níveis de
produtividade dos Países Baixos, ainda que não destoassem grandemente de outras
regiões mediterrânicas. Como termo de comparação, sirvam as médias de quatro a
seis sementes detetadas para o Alentejo no início do século XIX.
Assim, se o produto bruto agrícola aumentou certamente neste longo século XVI,
precisou de mais terra e braços. Tratou-se, portanto, de um crescimento
extensivo, que não foi acompanhado por inovações que pudessem ter conduzido a
uma elevação do produto agrícola per capita. A introdução do milho, como se viu,
apesar da sua elevada rentabilidade por semente, permaneceu restrita ao Norte
Atlântico, pelo menos neste período, e a sementeira de leguminosas nas folhas de
pousio, tal como se praticou no Algarve, não se generalizou, por implicar restrições
à pecuária. Por outro lado, a articulação entre o mercado urbano e o mercado rural
sofria ainda com os constrangimentos impostos por uma rede de comunicações
deficiente. Nestes termos, a produtividade permaneceu baixa, e os agricultores
prosseguiram numa atividade de baixos rendimentos, descapitalizada e
dominada ainda pela lógica da autossuficiência. A capacidade da agricultura para
animar os restantes sectores económicos permaneceu assim circunscrita a umas
escassas produções como os linhos, vinhos, azeite e fruta.
A correlação positiva verificada entre as variáveis macroeconómicas começa a dar
sinais de tensão na abertura do século XVII. Crises sucessivas de escassez,
acompanhadas de flutuações demográficas negativas, e a forte contração das rendas
nominais são sintomas evidentes de problemas que afetaram o crescimento
extensivo do mundo rural.

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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

3. As manufaturas
Na Europa, a partir do terceiro quartel do século XV, as atividades industriais,
entendidas num sentido amplo, isto é, enquanto produção e transformação de bens
não agrícolas, deram também sinais inequívocos de dinamismo. É possível falar de
um crescimento da sua capacidade produtiva que, contudo, permanece por
quantificar, devido à insuficiência de dados empíricos. O aumento da procura nos
centros urbanos, a maior disponibilidade de trabalho, de capitais e matérias-
primas, e a animação dos circuitos comerciais forneceram as bases para esse
avanço industrial nas sociedades europeias, que se sucedeu à letargia que afetara o
sector durante a crise do século XIV.
O comportamento da indústria em Portugal insere-se nesta tendência geral
europeia. O ritmo de crescimento industrial, todavia, dificilmente terá superado o do
resto da atividade económica nacional, e o peso da indústria na economia não terá
aumentado. O predomínio da atividade agrícola refletia-se na dinâmica do sector
industrial, cuja evolução dependeria, assim, da evolução da configuração das
estruturas agrárias e dos seus reflexos nos níveis de consumo das populações ou na
oferta de trabalho e de matérias-primas. Embora tendo em conta outras variáveis, é
essa perspetiva que orienta o inquérito que se segue em torno da evolução das
atividades industriais e da sua distribuição no espaço nacional.
Na viragem para a Idade Moderna, um pouco por toda a Europa, e também em
Portugal, multiplicam-se os indicadores que apontam para um desenvolvimento
da produção manufatureira, realizada nos lares das famílias camponesas,
destinada já não apenas ao autoconsumo, mas também à satisfação da procura
em mercados distantes, locais, regionais, ou mais além. Aproveitando a
familiaridade da mão-de-obra com o processo produtivo, a abundância de matérias-
primas e a difusão dos instrumentos de fiação e de tecelagem, bem como os estímulos
da abertura de mercados, a emergência da indústria rural corresponde à
extensão de uma lógica empresarial ao trabalho doméstico realizado no campo.
Na verdade, a organização e a coordenação desse trabalho dependiam menos dos
produtores, cabendo antes a agentes económicos, oriundos seja do sector mercantil,
seja do sector industrial urbano, empresários que constituíam as redes que ligavam a
produção eminentemente dispersa. São estes agentes que, conhecendo a
configuração da procura, distribuíam as encomendas pelos lares dos produtores,
asseguravam a sua recolha e o seu encaminhamento para o mercado, num sistema
que a historiografia alemã classificou de Verlagssystem, ou putting out system, para
designar uma indústria doméstica coordenada pelo mercado.
Uma outra característica desta modalidade organizativa radicava na profunda
imbricação entre agricultura e indústria, sendo esta última uma atividade
secundária, realizada nos tempos mortos da faina agrícola com o intuito de obter
rendimentos complementares à sobrevivência do agregado doméstico. Nesses

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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

termos, tem sido reconhecido um papel crucial à configuração das estruturas socio
agrárias na proliferação da produção doméstica rural. Embora as relações
estabelecidas entre agricultura e indústria demonstrem uma forte complexidade,
eram as insuficiências da agricultura, derivadas da pobreza dos solos, de uma
desigual repartição do acesso à terra ou ainda de uma forte densidade populacional,
que criavam as condições para a oferta de uma mão-de-obra mais abundante e
relativamente mais barata, que encontrava nas tarefas artesanais o complemento
indispensável à sua subsistência.
Mas a cidade e campo, a oficina artesanal e a indústria rural não constituíam formas
concorrentes de produção industrial. Bem pelo contrário. Na relação entre a cidade
e o campo é visível uma complementaridade que resulta do estabelecimento de
uma divisão regional do trabalho, particularmente evidente no sector têxtil: às
indústrias rurais entregavam-se as etapas iniciais do processo de fabrico, a fiação e
tecelagem, enquanto as indústrias urbanas se centravam nas etapas de acabamento
e aperfeiçoamento dos tecidos que exigiam técnicas mais complexas e dispendiosas,
como a tinturaria e estampagem. Pela mão de mercadores ou de artesãos
especializados que coordenavam a produção do sistema doméstico, a influência das
cidades estendeu-se ao mundo rural, num movimento que tendeu a aprofundar-se ao
longo do século XVI. Assim sucedia com a produção de lã e de linho, dispersa pelos
campos mas coordenada por centros regionais, como Guimarães, Bragança,
Portalegre e Évora, onde se concentravam artesãos especializados que
transformavam os panos antes de serem redistribuídos pelo mercado urbano ou por
mercados mais longínquos. Também no fabrico de cordame, utilizado na Ribeira das
Naus na construção naval, se revelou esta articulação entre o mundo urbano e o
rural, já que a primeira fase de produção de fio, conduzida nos campos de Moncorvo
ou de Santarém, se combinava com a sua transformação em cordame na cordoaria de
Lisboa.
Quanto à distribuição sectorial da indústria portuguesa, a insuficiência de elementos
quantitativos relativos a este período cronológico dificulta a aproximação ao tema. O
mesmo é válido para a sua repartição geográfica. Mesmo sem números, uma coisa é
certa: à semelhança do que sucedia nas sociedades europeias da época, o sector
têxtil detinha a primazia na ocupação de trabalho em relação a todos os outros.
Satisfazendo uma necessidade básica das populações, a produção de têxteis, fossem
de lã, linho, seda ou algodão, era de longe aquela que ocupava um maior número de
pessoas e também a que se encontrava mais amplamente difundida por todo o país.
Aliás, é devido à extraordinária disseminação das rocas e dos teares nos lares e à
prática muito enraizada da produção de panos para satisfação do consumo doméstico
e local que a aferição do seu peso no conjunto da indústria se torna particularmente
difícil.
O linho representou um caso paradigmático dessa realidade. A fiação e a tecelagem
desta fibra, ocupações entregues habitualmente à mulher no seio da indústria
A EXPANSÃO, 1500-1621 - 19
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

doméstica, espalhavam-se por várias áreas do país. Onde quer que estivessem
reunidas as condições naturais favoráveis à sua cultura, aliadas à disponibilidade de
mão-de-obra local, como sucedia no Minho, na Beira, na Estremadura e também, em
menor grau, no Algarve. O sucesso e a vulgarização desta indústria radicavam
também na ampla utilização dada aos panos de linho, mais ou menos grosseiros,
deles se fazendo camisas, roupa interior e a maior parte da roupa de casa, como
lençóis e toalhas de mesa. Era seguramente a indústria mais popular e
disseminada da época, embora se tenha de destacar a região do Minho que, ainda
no século XVI, conheceu o seu desenvolvimento mais intenso. Aproveitando uma
matéria-prima de há muito inserida na rotação de culturas, aí se congregaram os
vetores essenciais que permitiram um forte desenvolvimento da produção, cujos
excedentes, depois de transformados, se escoavam nos mercados urbanos,
integrando também os circuitos mercantis de exportação. Exemplo disso encontrou-
se na produção de panos de vela, a serem exportados do porto de Vila do Conde.
A tradição do fabrico de panos de linho que caracterizava o território minhoto
assentava na relação entre uma ativa indústria rural dispersa e a indústria oficinal,
sedeada em centros regionais como Braga e Guimarães, capazes de polarizar a
produção rural que, na zona de Guimarães, ultrapassava as 100 mil varas por ano.
Esse fenómeno é indissociável da maior densidade populacional que caracterizava a
região, assim como do facto da pulverização das explorações que, embora baseadas
numa policultura intensiva, proporcionarem rendimentos insuficientes para
satisfazer as necessidades da sua população. Também para outras zonas do país,
como Guarda e Sever do Vouga, está documentada uma ligação entre pobreza e
tecelagem de panos de linho exercida a tempo inteiro por mulheres, sobretudo
viúvas e mulheres solteiras, a sugerir uma especialização. Por fim, condições
favoráveis à circulação, quer por via terrestre, quer fluvial, e a proximidade ao litoral
vieram consolidar a forte implantação regional da indústria do linho no Minho, que,
aliás, se iria intensificar nos séculos seguintes e responder à procura da indústria
naval para panos de vela.
Por razões semelhantes, também a produção de lanifícios se difundiu um pouco por
todo o reino, mercê de tradições seculares. Onde quer que a existência de gado ovino
o permitisse, fabricavam-se panos de lã em teares caseiros, destinados a confecionar
as mais variadas peças utilizadas no vestuário, desde os capotes e casacos às meias e
chapéus. Além desta produção caseira com destino a mercados locais, em algumas
áreas do país os lanifícios revelavam forte densidade produtiva, esboçando uma
regionalização da indústria, já desde o século XV. Ao contrário do linho, mais
concentrado em zonas próximas do litoral, as maiores aglomerações dos têxteis de
lã situavam-se no interior, repartidas numa faixa que se estendia do Norte da Beira
Baixa ao Baixo Alentejo. Em importantes núcleos de produção situados perto da
fronteira, como Arronches, Portalegre ou Castelo de Vide, e no perímetro da serra
da Estrela havia condições mais favoráveis de oferta de matéria-prima, pela forte

A EXPANSÃO, 1500-1621 - 20
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

incidência da criação de gado ovino e da transumância, mas também de mão-de-obra,


decorrente da disponibilidade de mão-de-obra local. À semelhança do panorama
detetado para o linho, a produção doméstica dispersa submetia-se, por exemplo, à
coordenação das oficinas urbanas da Covilhã e de Portalegre, antevendo-se as
potencialidades da região para um século mais tarde aí se promoverem manufaturas
projetadas para uma escala elevada de produção.
Bem diferente era a situação da indústria da seda, com uma representatividade
menor no conjunto da economia industriai da época. Implantada em Trás-os-Montes
desde o século XIII, graças à constituição de plantações de amoreiras, foi no século XV
que este sector conheceu um impulso significativo, com a atribuição do monopólio de
fabrico ao duque de Bragança em 1475. O fabrico exigia a disponibilidade de mão-de-
obra especializada, motivo que justificou a elevada concentração de tecelões em
Bragança. O estabelecimento de tecelões judeus expulsos de Castela em 1492
reforçou a capacidade transformadora nessa região. Além de Trás-os-Montes, no
século XVI também se produziam sedas nas zonas de Évora, Lamego, Lisboa e Porto.
Após uma primeira transformação, a seda escoava-se para as maiores aglomerações
populacionais, ao encontro dos grupos sociais restritos a quem estes tecidos eram
acessíveis. Assim, o Porto atraía uma parte da produção transmontana, mas era para
Lisboa que seguia a maior quantidade transformada, enquanto Castela constituiu
desde cedo um importante destino de exportação.
Na segunda metade do século XVI, a economia industrial ganhou ainda um novo ramo
do sector têxtil que, contudo, não conhecerá grande expressão antes de meados do
século XVIII. Trata-se da fiação e tecelagem do algodão, atividades inteiramente
dependentes de fluxos externos, com matéria-prima importada de Cabo Verde e do
Brasil. A produção algodoeira centrava-se em Lamego e Tomar, centros produtores
com tradição acumulada de capital e de mão-de-obra no fabrico de panos de linho, e
bem ligados aos mercados pelo Tejo e Douro, respetivamente, que assumiram aqui
um papel de articulação fundamental, quer com os portos marítimos onde chegava o
algodão em rama, quer com os mercados consumidores, sem os quais a interioridade
da produção acarretaria custos inaceitáveis.
A indústria de curtumes ocuparia provavelmente o segundo lugar na distribuição
sectorial, se aceitarmos, com todos os riscos que isso envolve, a retroprojeção do
panorama detetado para o início do século XIX. Pela sua diversificada utilização no
fabrico de objetos e alfaias, isto é, calçado, vestuário, correias, freios, revestimento de
mobiliário, etc., o trabalho dos couros conhecia uma vasta disseminação pelo país,
fornecendo também o suporte para uma miríade de oficinas especializadas nos
recintos urbanos. Igualmente muito difundido entre as populações era o trabalho do
barro, sobretudo onde existissem argilas próprias para o efeito. Para além da telha e
do tijolo, essenciais na construção de habitação, de que havia vários fornos em Lisboa
e no Algarve, pequenas olarias locais satisfaziam a procura camponesa de louça de
barro (púcaros, tigelas, cântaros, potes, jarras, etc.). Já a produção de vidro tinha
A EXPANSÃO, 1500-1621 - 21
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

características distintas, indissociáveis do processo de fabrico, mais exigente em


termos de equipamento e de mão-de-obra especializada e, por isso, incompatível com
a produção em pequena escala. Diversas fontes registam a presença de artesãos
vidreiros, desde o século XV, em Lisboa e Santarém, mas os fornos mais importantes
situavam-se em Coina (Aldeia Galega) e em Oliveira de Azeméis (Covo). Em todo o
caso, a produção vidreira permaneceu de fraca qualidade, circunscrita a algumas
povoações e limitada, até porque foi alvo de normativas régias que impediram a sua
expansão, em virtude da energia utilizada, madeira de carvalho e sobro, concorrer
com a construção naval.
O ferro era o «parente pobre das economias pré-industriais» por constrangimentos
tecnológicos. A sua produção era muito restrita no Portugal do início do período
moderno, seja pelos limites impostos por tecnologias arcaicas, seja pela escassez de
jazidas de grande dimensão. A fraca expressão da metalurgia perpassará todo o
Antigo Regime, sendo ainda muito percetível no último quartel do século XVIII. Em
todo o caso, o metal não estava ausente da cultura material dos Portugueses da
época, muito pelo contrário. Facas, tesouras, navalhas, ferraduras, fechaduras e
dobradiças tinham utilização corrente, e o mesmo se poderá afirmar de alfaias
agrícolas como pás, enxadas, foices e arados, dos quais pelo menos algumas peças
eram de ferro. E, nesse sentido, desde tempos medievais que pequenas oficinas de
ferreiros e ferradores se encontravam espalhadas por todo o país, junto dos
aglomerados populacionais. Note-se que a profusão de ferreiros não é
necessariamente um indicador da existência de minas. O minério podia chegar de
uma região vizinha ou mesmo de fora do reino, já que a importação de ferro está
atestada para Portugal desde a Idade Média. Mas este é o nível mais elementar da
produção. A montante, o trabalho realizado nas minas e nas forjas, e a jusante a
transformação metalúrgica mais sofisticada, como a armaria, exigiam meios que não
se compadeciam com a pequena oficina. Tais sectores operavam em manufaturas
centralizadas, envolvendo maiores investimentos de capital em infraestruturas e
equipamento, onde a mão-de-obra, predominantemente assalariada, e a
transformação se concentravam num mesmo espaço. Disso era exemplo a fundição
de ferro e fábrica de armas de Barcarena, a funcionar em pleno por volta de 1490, e
que terá sido a primeira a utilizar a energia hidráulica. Não obstante, a produção de
armaria não chegava para satisfazer a procura interna, atendendo ao regular fluxo de
importação de armas provenientes da Flandres e dos territórios alemães.
Na viragem para o período moderno, a imagem que prevalece da leitura aqui
apresentada quanto à estrutura e à repartição geográfica da indústria portuguesa é,
sem dúvida, a enorme dispersão do sector, dominado pela produção de pequena
escala, protagonizada quer pela oficina doméstica quer pela indústria caseira rural,
respondendo sobretudo à procura local ou, quando muito, regional. Ainda assim, é
possível constatar que na segunda metade do século XVI estavam já em marcha
alguns fenómenos de regionalização da indústria, compatíveis, aliás, com o que ia

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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

acontecendo na Europa. Mediante a convergência das vantagens produtivas, como a


acessibilidade de matérias-primas, abundância de recursos naturais e
disponibilidade da mão-de-obra rural, algumas regiões do país apresentavam uma
enraizada tradição de trabalho industrial, não especializada, é certo, já que a
mão-de-obra permaneceu eminentemente rural.
Contrastam com esta descrição as indústrias que requeriam a concentração do
trabalho e de capital, a que a economia respondeu positivamente, como aconteceu
com a construção naval. Conduzida em vários portos e estaleiros no país, foi
sobretudo na Ribeira das Naus, em Lisboa, que a atividade atingiu maior
complexidade, estimulada pelos interesses estratégicos da monarquia portuguesa em
torno do comércio e da navegação. A Ribeira das Naus era um complexo industrial
que integrava várias atividades transformadoras, subsidiárias da construção naval e
nem todas confinadas ao recinto do estaleiro. O facto de ser uma dependência da
Coroa deu-lhe as bases financeiras e organizativas para a sua considerável
dimensão, à semelhança de outros estaleiros fora do país vocacionados para
responder às encomendas dos Estados, como acontecia em Veneza. O abastecimento
de matérias-primas e bens intermédios semitransformados ativavam circuitos
comerciais, internos ou externos, constituindo por isso os estaleiros em centros
importantes de atividade económica. As madeiras do casco, de pinho-manso ou
sobro, e uma parte do pano para velas e estopa de calafetagem tinham oferta no
mercado interno, envolvendo nas redes do estaleiro as regiões da indústria do linho,
como Entre-Douro-e-Minho, escoando-se as lonas pelo porto de Vila do Conde.
Outros panos para velame, de maior dimensão, eram adquiridos na Bretanha, saídos
de Vitré e Pous-de-avis. Durante um curto período em que as relações diplomáticas
com a França estiveram interrompidas no reinado de D. João III, a região de Lamego
respondeu à procura do estaleiro de Lisboa, promovendo-se aí a indústria doméstica.
Mais a norte, Torre de Moncorvo, em complementaridade com o Ribatejo, oferecia o
fio de cânhamo para fabrico de cordame na cordoaria de Lisboa, então nas
proximidades das Portas de Santa Catarina (atual Rua do Alecrim). Os pinhais do
litoral de Leiria eram importantes para a indústria naval de Lisboa, mas as matas que
mais satisfizeram a procura da Ribeira das Naus encontravam-se no Ribatejo e na
margem sul do Tejo, na Charneca ou na Aldeia Galega. Para os mastros, feitos de
peças únicas de carvalho ou de pinho nórdico, eram importadas madeiras das
florestas escandinavas e da Europa Central, esta servida pelo porto de Riga. Só essas
eram adequadas ao aparelho de navios com tonelagem crescente, rondando as 500-
600 toneladas de frete em meados de Quinhentos. Outros materiais, como breu,
pregadura e pasta de ferro, vinham regularmente de Biscaia, no Sul de França, e
contavam para a sua transformação com as ferrarias em Lisboa.
Pelo facto de ser uma indústria cuja produção foi estimulada pelo império, teve
significado que grande parte dos custos de produção de um navio
correspondesse a matérias-primas e bens intermédios com oferta no mercado

A EXPANSÃO, 1500-1621 - 23
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

interno. Por orçamentos do final do século XVI conhece-se a estrutura dos custos,
correspondendo ao casco, quase integralmente construído com madeiras nacionais,
68% (cf. Quadro n.° 7). Atendendo, ainda, ao facto de parte do aparelho utilizar
linhos, estopa e cordame produzidos com matérias-primas nacionais, parece certo
que a oferta interna respondeu a mais de dois terços das necessidades da indústria.
QUADRO N.° 7
Estrutura de custos de produção de um navio em Lisboa na primeira metade do século XVI
Itens da despesa % do total
Casco 68
Mastros 9

Poleame 1

Enxárcia 15

Velas 3

Âncoras 3

Montagem do aparelho 1

Fonte: Costa 1997: 178.

O estaleiro de Lisboa apresentou uma capacidade média de produção de 750


toneladas anuais (entre as 300 e 400 toneladas por navio). O financiamento dependia
fundamentalmente de transferências de verbas da Casa da Índia, cobrindo entre 75%
e 92% do total das receitas cabimentadas à Ribeira, no valor médio de 18 contos por
ano (por amostra de 1521-1539). Por essa altura, o estaleiro de Aveiro, por exemplo,
lançava 405 toneladas por ano, o que colocava a produção de Lisboa/Ribeira numa
ordem de grandeza próxima do dobro da de outros estaleiros do reino, igualmente
ativos. Admitindo que o cômputo da despesa pode ser orientado pelos custos de um
navio de 300-400 toneladas (6000 réis dos custos de produção acrescidos em 81%
das despesa com armação, totalizando 10 860 réis/ton.), aquele ritmo da Ribeira
configura uma formação bruta de capital de 8,14 contos anuais.
No panorama industrial a construção naval sobressaía, pois, por ter uma
geografia específica, por ser, em termos relativos, de capital intensivo e por exigir
mão-de-obra especializada. Destacava-se também por constituir um dos sectores
mais incentivados pela maior abertura da economia ao exterior, escorada nas vias
marítimas.
4. O comércio com o império e a Europa
Com a expansão ultramarina Portugal adquiriu uma diferente função nas
relações económicas intraeuropeias. O naipe das exportações revelou um novo
padrão de especialização, tanto quanto à natureza dos bens como ao valor unitário
dos mesmos. Na monarquia «agrária» medieval haviam-se destacado certos produtos
agrícolas por entrarem em circuitos de distribuição que ultrapassavam os mercados
locais, como fossem uvas e figos secos algarvios, algum vinho, e sobretudo sal,

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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

dando à região de Setúbal proeminência como porto exportador. A exploração do


império alterou este panorama. Não que a economia deixasse de ser
fundamentalmente agrária. Continuaria a sê-lo, como todas as demais da Europa. A
novidade do longo século XVI (1480-1620) residiu na distribuição das mercadorias
produzidas noutros continentes que sustentaram, e em muitos casos justificaram,
um incremento de importações provenientes de mais diversificadas regiões
europeias.
Esta nova estrutura do comércio externo exibia uma das repercussões do império,
pois significou que Portugal desenvolveu uma intermediação entre quatro
continentes. Os portos nacionais eram pontos de baldeação de mercadorias
importadas e reexpedidas novamente para outros mercados, o que deu às
reexportações uma ponderação elevada no conjunto das exportações nacionais.
Nisso o reino não diferiu de outras regiões europeias, pois o comércio
internacional desenhava uma rede de vias de comunicação que continha pontos
polarizadores, quer pela sua posição geograficamente estratégica, quer porque os
poderes instituídos forçavam essa função. No caso português, a baldeação de
produtos do império nos portos nacionais antes de seguirem para praças
europeias, assim como o movimento de bens em sentido inverso, serviu intuitos
fiscais, num conseguido aproveitamento das trocas com as várias partes do império
no engrossamento das receitas aduaneiras da monarquia.
A função de entreposto caracterizou as relações externas seguramente até ao
século XVIII (Mapa n.° 6). Nesse sentido, a averiguação das diferentes especializações
económicas dos domínios ultramarinos elucida o leque de mercadorias com que
Portugal pôde compensar as importações. É possível reconhecer uma hierarquia,
tanto nas quantidades e valores de cargas implicadas, como pela mutável projeção de
cada um dos espaços ultramarinos. Ciclos de expansão, estagnação e contração dos
produtos-chaves repercutiram-se no naipe de bens que Portugal introduzia nas redes
intraeuropeias.
O exclusivo nacional, ou monopólio, deu condição para se retirarem vantagens
nesta intermediação. Incrementava o rendimento interno enquanto fossem
asseguradas elevadas margens de lucro nas transações de bens não substituíveis em
qualquer das economias europeias, como, por exemplo, a pimenta, ou na oferta de
produtos que se tornaram competitivos em virtude de funções de produção
específicas, como aconteceu com o açúcar, capaz de eliminar centros produtores
preexistentes no Mediterrâneo.
A mão-de-obra escrava utilizada em economias de plantação caracterizou a história
do Atlântico como espaço económico e teve nas ilhas da Madeira e de São Tomé as
suas experiências pioneiras. O açúcar concretizou o primeiro ciclo económico
relevante destas ilhas. Cerca de sessenta anos após a descoberta da Madeira, já a
produção atingira uma escala tal que a queda dos preços poderia questionar a

A EXPANSÃO, 1500-1621 - 25
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

viabilidade dos engenhos de refinação. A imposição de quotas de mercados por


parte do duque de Viseu, seu senhorio, pareceu ser a solução para a manutenção da
economia da ilha. Não obstante estas intervenções para administrar o mercado, o
irreversível processo, lento e gradual, de «democratização do consumo» levaria a
ultrapassar os tetos de produção inicialmente concebidos. A evolução foi
extraordinária, sobretudo marcada na segunda metade do século XV (Quadro 8).
QUADRO N.° 8
Produção do açúcar da Madeira (1455-1525)
Ano Arrobas1

1455 1600

1470 30 000

1494 105 000

1505 143 000

1515-1525 200 000


11 arroba = 54 kg
Fonte: Godinho 1982-1983, vol. IV: 75-78.

Esta expansão rápida esmagaria as tradicionais regiões mediterrânicas produtivas


como a Cândia e Sicília ou Granada. Os italianos, conhecedores dos circuitos de
distribuição, intervieram na Madeira, até no financiamento da produção. Contudo, a
evolução em baixa dos preços e rendimentos decrescentes do investimento
sentiram-se nos montantes das receitas cobradas pela Coroa, indicador indireto dos
ritmos de produção. No início do século XVI, a produção anual de açúcar avaliava-se
em 144 000 arrobas. Atingido o máximo de 200 000 arrobas em 1506, nas décadas
subsequentes o montante das safras foi diminuindo até estabilizar em meados da
mesma centúria na ordem das 40 000 arrobas, valor consentâneo com os dados que
se conhece para os anos de 1581-1587.
Após acentuada baixa, mercê da explosão da produção no último quartel do século
XV, os preços estabilizaram durante a primeira metade de Quinhentos, entre um
mínimo de 530 réis e 600 réis a arroba do açúcar de segunda cozedura. Subiram, no
entanto, a 2400 réis em 1581-1587, sendo então bastante mais elevado que o
preço de São Tomé (660 réis) ou do Brasil (1400 réis), diferença sintomática das
dificuldades da economia da ilha para resistir à expansão da cultura noutros espaços.
A relação entre os preços nos anos de 1530, tal como em 1580, era de 3,2:1 a 3,6:1,
com vantagem para a Madeira sobre São Tomé. A reputação manteve a procura nos
mercados internacionais até que a qualidade do produto do Brasil se impusesse,
fazendo-se passar como insular, espécie de contrafação, uma via comum de
penetração de um novo produto.
A difusão da cana-de-açúcar explica em parte os ciclos de expansão e contração de
zonas produtoras, num jogo de concorrência entre as próprias áreas do império.
A da Madeira não resistiu à entrada do Brasil no mercado, no final da centúria, tendo,
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

no entanto, coexistido com a de São Tomé porque a qualidade diferenciada permitiu


a partilha de centros consumidores. São Tomé entrou, assim, no século XVI nas
rotas do açúcar, sem ensombrar a economia madeirense.
A expansão da plantação foi ali igualmente notável até finais do século XVI. Revoltas
de escravos e pragas nas canas dissuadiram a recuperação desta cultura nos anos de
1610-1620, num momento em que o Brasil se afirmava como o maior exportador à
escala mundial. Na ilha, a plantação iniciar-se-ia na década de 1480 e, tal como na
Madeira, em cerca de trinta a quarenta anos a produção ultrapassaria a centena de
arrobas, andando pelas 135 860 arrobas. Não se sabe como evoluiu, entretanto, o
sector na Madeira, entre máximos e mínimos no século XVI, mas, para os efeitos aqui
pretendidos, nas décadas de 1520 a 1550 estes dois arquipélagos garantiram uma
capacidade de exportação de 300 000 arrobas (Quadro n.° 9).
QUADRO N.° 9
Produção de açúcar na Madeira e em São Tomé (1515-1580)
Madeira São Tomé

1515-1525 200 000 100 000


1527-1529 123 170

1535-1536 135 860

1550 150 000


1578 175 000

1580 45 000 200 000

Fonte: Godinho 1982-1983, vol. IV: 96.

Aceitando a relação dos preços de uma e outra área de produção acima indicada
como constante, na qual o da Madeira era três vezes superior ao de São Tomé, é
plausível que as exportações de açúcar nos anos de 1515-1525 e de 1580 valessem,
respetivamente, 138,5 milhões e 312 milhões de réis, somas com interesse para
comparar com cargas específicas de outras partes do império.
Com efeito, além do açúcar, o ouro e os escravos formaram o tríptico de
mercadorias que definiu a importância do Atlântico no império português. O
trabalho escravo nas plantações contou com o tráfico organizado nas feitorias da
costa da Guiné. Diferentemente do que sucederia no século XVII com o Brasil, para o
qual as ligações a Angola foram indispensáveis, a fase da produção insular
estimulou o tráfico negreiro acima do equador, pondo Cabo Verde como placa
de redistribuição dos escravos trazidos da Guiné. Impulsionou, também, a
indústria cabo-verdiana de panos de algodão necessários às transações na costa.
Das escassas fontes quantitativas conhecidas, estima-se que em média passaram por
Cabo Verde 1400 escravos por ano na primeira metade do século XVI, a diversos
preços, em função da etnia, da idade e de oscilações de oferta e procura, variando
entre um mínimo de 3500 réis e a um máximo de 7000 réis. Embora os preços
máximos aumentassem em 1520 e l530, a moda esteve nos 5000 réis, aceitando-se
A EXPANSÃO, 1500-1621 - 27
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

como estimativa que esta mercadoria movia cerca de 7 milhões de réis anuais.
A participação portuguesa no comércio negreiro não se destinou somente aos
arquipélagos atlânticos, pois, com distribuição a partir de Cabo Verde, encetou-se um
circuito de abastecimento às índias de Castela de escravos da Guiné e outro, a
partir da costa do Congo, que se dirigiu aos próprios mercados indígenas mais
a sul. Na feitoria de São Jorge da Mina, a venda, e não a compra, de escravos era
realizada por portugueses para obtenção de ouro.
As informações sobre quantidades de ouro resgatado na Mina contam com
documentação oficial, sendo um negócio de monopólio régio. Os valores estimados a
partir da verificação de contas dos oficiais responsáveis figuram no Gráfico n.° 1.
GRÁFICO N.° 1
Remessas de Ouro da Mina (1487-1561)

Fonte: Vogt 1979; Pereira 2003.

Vicissitudes do tempo na preservação de fontes de informação sobre este tema


impedem a construção de séries sem lacunas. Em alguns períodos foram carregadas
quantias acima dos 100 milhões de réis e calcula-se que o tráfico particular
autorizado não acrescente mais de 20% a estes valores respeitantes a resgate
realizado em nome do rei de Portugal. As variações acentuadas reduzem as médias
anuais para 25 milhões de réis.
A função desta feitoria para a entrada de remessas de ouro no reino sofreu um
gradual estiolamento desde a década de 1530, embora continuasse a figurar nos
orçamentos régios do final de 1500 como uma das parcelas rentáveis do espaço
africano. Não deixa de ser necessário sublinhar que o ouro da Mina, segundo contas
de 1519-1522 (um dos máximos registados, com 143 milhões de réis), em pouco
excedeu os montantes acima calculados em açúcar importado, em torno dos 138,5
milhões de réis.
A viagem inaugural de Vasco da Gama foi o primeiro passo para a montagem de uma
ligação regular entre o reino e o Índico. Dada a natureza das cargas em circulação,
esta rota pelo cabo da Boa Esperança projetou-se para um patamar singular de
mobilização de capitais cuja rentabilidade esteve, durante décadas,
A EXPANSÃO, 1500-1621 - 28
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

dependente de preços da pimenta afixados pela Casa da Índia em Lisboa, os


quais em parte refletiam a capacidade de Portugal se impor nos mercados europeus
como um fornecedor deste bem a preços que interessavam às grandes casas de
negócio internacionais. Mercê dos altos prémios de arbitragem das mercadorias a
bordo, aqui encontravam-se as somas mais elevadas de cargas num e noutro sentido,
e não admira que D. Manuel, mais do que o rei da Mina, fosse conhecido na Europa
por ter armazéns de pimenta nas proximidades do Paço em Lisboa.
As quantidades descarregadas na Casa da Índia, pesem embora as muitas lacunas
da documentação, seguiram dois padrões. Um, da primeira metade de 1500, no qual
as médias anuais de pimenta e de outras especiarias rondaram os 35 000 e 40 000
quintais (Gráfico n.° 2). O outro, do último quartel, descreve-se pela descida das
médias para 15 000 quintais anuais, mas com fortes oscilações por ação do variável
sucesso de cada armada da Índia. Esta mudança de padrão, descrito pelas
quantidades, não se reflete nos valores, pois a inflação caracterizou a segunda
metade de 1500, em todos os bens, e estes não foram exceção, embora a variação
relativa lhes tenha sido favorável (cf. Quadro n.° 10).

GRÁFICO N.° 2
Pimenta descarregada na Casa da índia (1501-1600)

Fonte: Godinho 1978: 301-304; Boyajian 1993: apêndice 2.

QUADRO N.° 10
Valor das cargas de pimenta na Casa da índia (1501-1600)
Média anual (réis) n.° de anos

1501-1510 97 951 333 6

1511-1520 258 753 660 4

1521-1530 125 951 467 3


1531-1540 166 056 000 1

1541-1550 265 051 600 2

1581-1590 234 181 120 5


1591-1600 136 914 489 9

Fontes: Godinho 1978:301-304; Godinho 1982-1983, vol. m: 17,21,24; Boyajian 1993, apêndice 2.

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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

Parece que, na década de 1580, estava anunciado o fim de um longo ciclo


asiático do império marítimo português, justificando a paulatina viragem atlântica
para a intensificação da colonização do Brasil no período de União Dinástica.
Com efeito, só considerando o açúcar produzido nas ilhas atlânticas, que igualmente
se inscreveu nesta tendência altista dos preços, estimam-se capitais em valor
superior ao que se apura aqui em pimenta (312 milhões de réis em açúcar contra 234
milhões de pimenta).
A quebra nas importações de pimenta, a reexportar para mercados europeus,
acompanhou-se de uma redução de prémios obtidos nesta mercadoria (Quadro n.°
11), compondo um leque de desafios à manutenção da Rota do Cabo. Este cenário
desfavorável, decorrente do comportamento dos preços, foi agravado com a perda
de eficiência no transporte, multiplicando-se o número de naufrágios, danos já
implicados na quebra das quantidades importadas, mas cuja probabilidade se mede
pelo coeficiente entre partidas e chegadas a Lisboa.
QUADRO N.° 11
Margens de lucro na pimenta (1506-1607)

Preço na origem Frete Custo total (frete e Preço no destino Custo total Preço no
preço na Ásia) destino
(Cochim)1 (Casa da índia)

1506 3 1 4 22 450%

1558 5,33 4 9,33 34 264%

1607 7,115 8 15,22 32 110%

1 Preço
do quintal em cruzados
Fonte: Godinho 1982-1983, vol. in: 17, 21 e 24.
O desempenho das embarcações na viagem foi sendo cada vez mais calamitoso
desde 1580, em parte, devido a sobrecarga, mas especialmente devido aos efeitos
dessa sobrecarga em embarcações de pior qualidade. Depois das primeiras décadas
do século XVI, em que o contributo dos estaleiros portugueses no provimento das
armadas da Ásia foi crucial, transferindo-se desde 1505 a 1520, 27 navios que não
eram supostos retornar, a regularização das comunicações refletiu-se numa
tendência para a redução das baixas de efetivos na rota (cf. Gráfico 3). Que se
inverteu criticamente a partir de 1580, tendo o número de perdas disparado.
Houve, assim, diversos sinais de que o circuito de bens asiáticos enfrentava
problemas endógenos, pois a opção da Coroa portuguesa nesta conjuntura de pior
prestação do transporte ancorou-se na encomenda de navios de grande tonelagem,
mais do que num aumento do número de efetivos de menor porte e que se acreditava
terem maiores qualidades náuticas. Ainda que tivessem economias de escala, as
embarcações com 600 e mais toneladas que circulavam sobrecarregadas pareciam
incrementar a probabilidade de naufrágio.

A EXPANSÃO, 1500-1621 - 30
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

GRÁFICO N.° 3
Navegação da carreira da índia (1500-1629)
(percentagem de navios que não regressaram)

A pior prestação do transporte, se não foi a causa, esteve correlacionada com


transformações na estrutura das cargas que deram a esta carreira um ímpeto que os
números sobre as baixas escondem. A história da Carreira da Índia como circuito de
pimenta e especiarias escamoteia que as cargas emergentes nesta conjuntura
contavam com prémios mais elevados do que alguma vez a pimenta teve, tais como
têxteis de algodão, de seda, ou matéria tintureira, como o índigo e diamantes.
Por exemplo, cada peça de seda da China poderia ser adquirida a 2 cruzados e
vendida a mais de 30 em Lisboa, potenciando um prémio de 1000%, os algodões e
índigo 500%, bem superiores à probabilidade de danos. Bastava regressar um
navio para justificar a manutenção da rota.
Refira-se, ainda, que o naipe de mercadorias com arbitragens superiores
estava à margem do monopólio da Coroa. A participação de capitais privados
num novo tipo de mercadorias deu viabilidade à Carreira da Índia,
transformando-a numa das vias cruciais de penetração das manufaturas
asiáticas nos mercados europeus. No final do século XVI e princípio do século
XVII, no que respeitava ao valor das cargas, a Carreira da índia era um circuito
de têxteis asiáticos (cf. Gráfico n.° 4).
GRÁFICO N.° 4
Estrutura do valor das cargas da Carreira da índia (1586-1600)

Fonte: Boyajian 1993: apêndice 2.


A EXPANSÃO, 1500-1621 - 31
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

Em virtude desta reconversão, mesmo no final de Quinhentos, com maior número


de naufrágios, a rota continuava a movimentar cargas que, a preços da Casa da Índia,
a catapultavam para o topo da hierarquia do império, pelo que só uma
consideração restringida à pimenta aqui movimentada confirmaria o fim de um ciclo
asiático do império no período da União Dinástica (cf. Quadro n.° 12). De resto, a
pimenta de monopólio régio, que ocupava o maior espaço a bordo, competia com
estas cargas particulares e terá sido essa escassez de espaço a bordo, para
acomodar todos estes interesses convergentes, que agravou a prestação dos
navios.
QUADRO N.° 12
Cargas das naus da Índia (1586-1600)
Anos Valor das cargas (réis)
1586
1 882 800 000
1587 1 691 796 000
1588 3 105 522 000
1589 3 663 440 000

1590 2 553 388 400


1592 1 051 034 000
1593
1 668 108 000
1594 903 900 000
1595 2 717 097 200
1596 1 058 934 800
1597 3 630 812 800
1600 2 552 834 000

Fonte: Boyajian 1993: apêndice n.

A manutenção da rota do Cabo com tantos constrangimentos assinala que o negócio


se manteve prometedor pelo menos até ao final de 1620. No período da União
Dinástica o império atingiu o seu máximo potencial, aferido pela amplitude
geográfica das mercadorias baldeadas nos portos nacionais para serem
maioritariamente distribuídas pelos mercados europeus.
Presume-se que os bens providenciados pelo império pagaram as importações
que estas mesmas transações realizadas nos espaços ultramarinos requeriam.
Como foi referido, se esteve em causa uma função de intermediação da economia
portuguesa, é porque certas importações europeias se mostraram
indispensáveis como meios de pagamento em cadeias de troca nos espaços
ultramarinos. Na feitoria de São Jorge da Mina, desde a sua fundação nos finais do
século XV, o resgate de ouro estribou-se em panos de lã norte-africanos (os
alambéis), linhos vários, com especial incidência franceses, conhecidos como panos
de Ruão, e diferentes objetos de cobre e latão, como fossem bacias com designações
muito precisas, para diversificados fins, e toda a sorte de quinquilharia, cuja
importação pedia contactos com as cidades flamengas, particularmente Antuérpia.
A geografia da circulação assinala que Portugal não desenvolveu estas
A EXPANSÃO, 1500-1621 - 32
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

indústrias e obteve vantagens na compra de bens transformados nas praças


europeias para as resgatar por ouro na costa africana. Da mesma forma, no
momento da largada das naus para a Índia havia que garantir a carregação do
cabedal, como se chamavam as mercadorias que se expediam exclusivamente para
pagar a pimenta. Para o efeito, a importação de diferentes bens tinha de ser
assegurada. Tal como aconteceu no circuito de vinda, também este cabedal da
pimenta experimentou alterações com repercussões relevantes que colocaram
a América dos metais preciosos na geografia do comércio asiático.
Durante a primeira metade do século XVI o essencial das mercadorias para o trato da
pimenta consubstanciava-se em metais, sobretudo o cobre, e em têxteis italianos e
valencianos. Os mercados asiáticos consumiam poucos bens europeus
transformados, mas as escarlatas, veludos e damascos italianos, tafetás de Toledo e
panos de seda de Valência tinham mercado. A feitoria régia em Antuérpia teve um
papel crucial nos circuitos de cobre para a índia. Os contratos com as grandes
casas mercantis alemãs, dos Hochstetter, Welser, Fugger, estavam envolvidos nos
fornecimentos, cujas quantidades subiram de 6000 quintais para 12 000 por ano, por
dois contratos, entre as datas extremas de 1514 e 1521. A preços médios de 1636
réis o quintal, só em cobre, as importações para estes fins computaram-se pelo
primeiro contrato em 3,6 milhões de réis, e pelo segundo 7,8 milhões anuais.
Admitindo que cada nau da Índia tinha cabedal que se aproximava dos 7,6 milhões de
réis na primeira metade de 1500, maioritariamente composto por estas mercadorias
europeias, e se regularmente partiram cinco embarcações, terão sido necessários
cerca de 38 milhões de réis de importações só para este negócio no império.
Alguns exemplos de registos de carregamento ilustram em que medida a circulação
valorizava estes cabedais. Em 1520 seguiram em três naus 3355 quintais de cobre,
além de outros metais, cujos circuitos de abastecimento são menos conhecidos na
historiografia. Pelos preços acima referidos, o cobre valia 5,4 milhões de réis em
Lisboa. Mas na costa do Malabar valeu 15,3 milhões de réis para as transações de
pimenta. O mesmo se passava com o circuito de retorno. À vinda, cada nau trazia
especiarias, sempre mais de 50% em pimenta, que se computaram entre 66,4
milhões e 80 milhões de réis, ou seja, cerca de oito vezes o valor no início do circuito
(7,6 milhões de réis). Pela contabilidade régia, em orçamento de 1534, afirmava-se
que o negócio da Índia permitia um saldo líquido de 72 milhões de réis para a
monarquia, descontados os investimentos sobre receitas brutas orçadas em 272
milhões de réis.
A alteração na estrutura das cargas que acima se referiu não questiona esta imagem,
apenas a crescente probabilidade dos danos pôde reduzir a renda. O cobre que cede
a favor da prata, esta amoedada, castelhana, e a participação de cargas não
monopolizadas aproximaram a economia portuguesa dos espaços do império
espanhol, onde a prata era extraída a preços competitivos, em parte mercê do
trabalho engajado das populações indígenas e da escravatura, esta, por sua vez,
A EXPANSÃO, 1500-1621 - 33
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

garantida pelos abastecimentos das feitorias portuguesas africanas. Para os grupos


económicos que corporizaram tal mundialização da circulação de capitais, a
integração económica dos dois impérios ibéricos augurava vantagens na
anexação dos dois reinos. A importação de metais preciosos afigura-se, assim, como
um dos fatores possíveis para a pacífica aceitação dos direitos de Filipe II ao trono de
Portugal em 1580. Verificou-se, com efeito, uma integração económica dos
impérios ibéricos nos anos da União Dinástica que fala da irrelevância das
fronteiras fixadas no Tratado de Tordesilhas e que se conformou com as importações
de prata amoedada ou a amoedar na Casa da Moeda de Lisboa.
As relações económicas com o exterior, todavia, não se quedaram na satisfação de
uma procura incrementada pela dimensão colonial da economia portuguesa. Os
cereais entraram claramente na categoria dos bens que tiveram consumo no
mercado interno. Os Açores, é certo, supriram a escassez frumentária do reino e
das praças marroquinas, mas o arquipélago não foi o único espaço envolvido, pois
Castela contou em tempos críticos. Porém, tudo indica que as cidades e vilas do
litoral como, antes de mais, Lisboa consumiram com maior regularidade cereais
importados por via marítima. Na verdade, a França e o Báltico, intermediado pela
Holanda, perfilaram-se como mercados dominantes. Uma estimativa do volume do
tráfico para os anos de 1527-1533 coloca-o em 100 000 moios, sejam 828 000
hectolitros nos seis anos, para uma população de 1 400 000 habitantes. Se o consumo
per capita rondava os 3 hectolitros, cerca de 3% da população portuguesa
dependeria do que então se chamava pão de mar. Em documentação com data de
1575, afirma-se que Viana do Castelo não se poderia sustentar sem o pão de fora do
reino. Por isso, disposições régias, recorrentemente promulgadas, isentaram de
dízima este bem essencial, não só em Viana como no Porto. Nos finais do século e
ao longo da primeira metade da centúria seguinte, a extensão da cultura do milho no
Entre-Douro-e-Minho, e Beira, ajudou a mitigar esta forte dependência frumentária
das regiões do litoral.
Não existindo registos sistemáticos de alfândegas do reino, uma análise serial da
estrutura e geografia de todas as importações está fora de alcance, pelo que o
significado dos cereais no conjunto fica por saldar. Todavia, registos contabilísticos
de negociantes portugueses radicados em Antuérpia em 1552 garantem que da
Flandres se enviou para Portugal têxteis que perfizeram 98% do valor e do
volume dos seus negócios. Comparativamente com a feitoria régia na mesma
cidade, onde o feitor tratava de organizar os fluxos comandados pelo rei de Portugal,
e que incluíam os negócios da Casa da Índia, confirma-se que o cobre teve especial
relevância nas contas dos feitores régios.
Os têxteis importados, se seguiram para as praças do império, tiveram
seguramente, ao lado dos cereais, procura no mercado português. Em Vila do
Conde, nos anos de 1504 e 1505 deram entrada mercadorias no valor de 4 358 854,5
reais, 32,6% dos quais se reportam às relações com a Inglaterra, logo seguida da
A EXPANSÃO, 1500-1621 - 34
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

França e da Flandres na mesma ordem de importância, com 26,6% e 26,1%,


respetivamente. Finalmente, a Irlanda participou em 14,7% destas importações. A
esta repartição geográfica não corresponde uma distinção assinalável no tipo de bens
importados, todos eles transformados e compondo-se de têxteis - 90,9% do seu valor.
Os restantes 9,1% foram preenchidos pela importação de diversos tipos de bens,
entre papel, ferragens, utensílios domésticos e aprestos marítimos. No Algarve, em
1520, pela alfândega de Faro entraram panos avaliados em 4 637 400 réis, na sua
maioria ingleses, embora quase todos reexpedidos a partir de Castela. A entrada de
panos ingleses em Portugal por via de Castela é um fenómeno que se afirmou nesta
época. Alguns bens intermédios e matérias-primas, utilizados na indústria de
tanoaria, como arcos de tonéis e pipas, linho em bruto, estopa, ferro, breu, entraram
nos portos portugueses, para satisfazer a procura de indústrias que se
desenvolveram neste longo século XVI, como foi a construção naval.
Estas importações foram pagas com reexportações de bens exóticos e com
produtos agrícolas do reino. Mais uma vez é necessário observar registos
realizados no exterior para conhecer como a Europa via a função de Portugal. Uma
informação de meados do século XVI sobre Antuérpia oferece uma primeira
apreciação de que a especialização portuguesa radicava na oferta de produtos
exóticos, os quais, no entanto, em valor, não superavam as ricas manufaturas
italianas (Quadro n.° 13). Assim o Mediterrâneo ainda se apresenta como um mar
bordejado de prósperos centros industriais.
QUADRO N.° 13
Importações da Flandres segundo Marino Cavali (1551)
Regiões Produtos Valor
(ducados)

Espanha frutos secos, vinhos, azeite, matéria tintureira, 500 000


seda bruta

Portugal especiarias, açúcar 500 000

Inglaterra estanho, lã, têxteis 300 000

França e Alemanha vinhos, metais 800 000

Itália veludos, têxteis de seda 1 000 000

Ostende madeira, linho, cereais 250 000

Fonte: Goris 1925: 319.

Os registos oficiais da feitoria régia naquela mesma cidade, por todo o reinado de D.
Manuel, confirmam a relevância das especiarias, destacando-se a pimenta, apesar
de o gosto por paladares condimentados abrir o mercado à malagueta africana. O
naipe das mercadorias exportadas por Portugal é aqui mais diversificado do que na
síntese de Cavali, porque se incluem matérias tintureiras, como o pastel açoriano, e
236 pipas de vinho (sem indicação de proveniência). Desconhecem-se os valores
implicados e as taxas de câmbio. A preços de Lisboa, a pimenta transacionada
pelos feitores do rei entre 1495 e 1521 ficava-se pelos 76 milhões de réis.
A EXPANSÃO, 1500-1621 - 35
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

As contas da feitoria de Antuérpia não são inteiramente exemplificativas da balança


comercial do reino, pois o leque das mercadorias envolvidas tanto se conformava
com o consumo da Casa Real como com as necessidades de provimento das armadas
do império. Mas o superavit das contas do negociante Francisco Ximenes em 1552
indica que da Flandres enviou mercadorias com valor superior às importadas, mas
também não negociava nos ricos produtos orientais. As suas contas apenas referem
que de Portugal seguiu azeite (76% em valor) e apenas 15% em açúcar de São Tomé.
Os dados valem o que valem, pois um caso não é representativo de que nas
exportações portuguesas os bens agrícolas contassem mais do que os produtos do
império. O exemplo mantém, contudo, o seu interesse. Recorda que entre os
maiores comerciantes das comunidades ibéricas na Flandres os produtos de
origem agrícola mantiveram a sua importância nas relações externas de
Portugal. A mesma lição se retira a partir da integração do Algarve nas rotas
internacionais pela oferta de figos e passas com expressão no porto de Antuérpia.
QUADRO N.° 14
Exportações portuguesas para Antuérpia (1535-1537)

1535-1537 Bens agrícolas Mercadorias Total


nacionais do império

Valor em milhões de réis 8,20 250,1 258,3

Volume em ton. de frete 1632,25 2856,0 4488,0

Fonte: ANTT, Feitoria de Antuérpia, Livro de Avarias, liv. 1.

Para os anos de 1535-1537, tidos como amostra, apreende-se uma estrutura de


exportações, na qual os bens agrícolas nacionais perfizeram 3% dos valores totais,
mas com uma ponderação de 36% no volume. Entre os 8,2 milhões de réis de bens
agrícolas, o figo entrou com 7%, bastante abaixo do azeite, que atingiu os 88%.
Donde para Antuérpia, um dos principais centros redistributivos nas rotas
europeias, Portugal exportou, quer em volume quer em valor, sobretudo bens
do império, significando que a representatividade dos circuitos de
reexportação ascendeu a 97%.
Pela estrutura das importações londrinas entre 1574 e 1576, o quadro não é muito
distinto no essencial. Portugal afirmava-se como um fornecedor de bens
exóticos. Em 20 384 libras de exportações, a pimenta perfez 63%. Os açúcares,
melaços e marmeladas contaram em 9,3%, além de pequenas quantidades de
panos da índia de algodão. Dos produtos do reino, dos bens transformados constou
apenas sabão, que não chegou a 1%, enquanto os bens agrícolas se compuseram de
laranjas e sal, ascendendo este a 3,2%. Eis os escassos bens originários do mercado
português que se registaram no porto de Londres.
Ao longo do século XVI fixou-se um padrão que levaria séculos a mudar. Na
estrutura das importações prevaleceram os bens transformados, na das

A EXPANSÃO, 1500-1621 - 36
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

exportações bens primários, sobretudo exóticos. Entre os nacionais, fruta, sal,


vinho e cortiça, azeite, o qual parece ter tido maior importância nos circuitos
externos do que a historiografia lhe tem atribuído. A elevada ponderação dos bens
exóticos sugere condições para balanças comerciais superavitárias escoradas nas
reexportações.
Não obstante, a feitoria régia em Antuérpia acumulava dívidas no montante de 778
milhões de réis em 1543, cerca de três vezes as receitas fiscais previstas em
orçamentos de 1519. Um facto que confirma que os défices foram a regra, mas as
encomendas régias para a Casa Real, muito diversificadas no que respeita a
bens de consumo transformados, devem ser incluídas nas causas do
desequilíbrio das contas. Aliás, nestas transações, os juros implícitos nas letras
de câmbio utilizadas nos pagamentos internacionais, entre 25% e 30%, ajudaram a
agravar esse desequilíbrio. A partir de 1522, coincidindo com o refluxo das cargas
de ouro da Mina, o endividamento de curto prazo da fazenda régia aumentou
rapidamente de 400 000 cruzados (160 milhões de réis) em 1534 para 779 milhões
de réis em 1544. A falência da feitoria coagiu os monarcas a declinarem a sua
intervenção direta na redistribuição de especiarias pela Europa, o que chamou à Casa
da Índia os consórcios internacionais alemães e italianos. O cancelamento da feitoria
e a posterior conversão das letras em divida pública, a juro de 5%, constituíram a
operação financeira que solucionou o problema, ilustrativa de que os credores
confiaram numa renda fundada em receitas coletadas no reino.
Se a feitoria régia pode não ser exemplo para extrapolar para o conjunto dos fluxos
externos, também um cômputo das transações de mercadorias não é indicador
seguro do comportamento da balança comercial que envolve transação de bens e
serviços. Com efeito, nos serviços de transporte a marinha portuguesa esteve
bastante ativa. De resto, disposições régias cuidaram dessa vitalidade com eventuais
repercussões positivas no equilíbrio da balança.
Legislação manuelina antecedeu em cerca de 150 anos o espírito das medidas
inglesas de William Cromwell, conhecidas por Atos da Navegação, coagindo o
fretamento prioritário de navios nacionais, nos portos portugueses. Como
incentivo à indústria naval instituíram-se subsídios à construção de navios acima
de 120 toneladas. As medidas tiveram acolhimento, pois há inúmeros registos
comprovativos da concessão dos subsídios. A frota naval em expansão defrontou, no
entanto, o saque, periodicamente mais intensivo do corso e da pirataria, que nos
meados do século XVI foi sobretudo francês.
Os danos perpetrados pelo corso francês incidiram em navios e capitais de
todos os portos do reino, mas a ordem de grandeza em que cada um foi afetado fala,
indiretamente, da sua importância relativa na oferta de transporte, aceitando que o
número de navios em circulação incrementaria a probabilidade da captura. Assim, os
portos de Entre-Douro-e-Minho quase repartiram o transporte com o Algarve, cada

A EXPANSÃO, 1500-1621 - 37
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

região, respetivamente, com 35% e 27,2% das perdas. A faixa costeira a sul do
Mondego compreendia outros 27%, embora fosse Lisboa o porto responsável pela
representatividade desta zona. A estrada marítima da Flandres dominou quer em
número de vítimas, quer em volume e valor dos capitais saqueados.
Quanto à tonelagem total ao serviço destas relações externas, as estimativas só
podem ser lacunares. As entradas em Antuérpia apreendem-se pela coleta de um
imposto de ancoragem e por ele se conhece a tonelagem total das embarcações aqui
envolvidas. Até 1547 a tendência foi para o aumento do volume, partindo de valores
próximos das 500 toneladas e atingindo um pico de 2400, em dez anos. O fecho da
feitoria régia parece ter afetado as relações com esta praça. Mas o mais significativo
nestes registos ocorre com a evidência de que a frota portuguesa se foi
retirando desta rota da Flandres quando deflagrou a guerra nos Países Baixos
(1568-1648).
GRÁFICO N.° 5
Exportações para Antuérpia (1535-1550)

Fonte: Costa 1997, apêndice.

As marinhas francesa e holandesa passaram a dominar o transporte. Assim


sendo, o gráfico acima retrata, por uma amostra circunscrita a duas décadas centrais
do século XVI, nas quais se assistiu à dinamização das indústrias que serviram a
distribuição: o transporte e a construção naval. Se houve entrada de invisíveis nos
fretes, enquanto a marinha portuguesa controlou o circuito, a subsequente demissão
dos armadores portugueses ter-se-á repercutido negativamente na balança comercial
depois de 1570.
A coincidência desta mudança com uma tendência para custos crescentes na
indústria naval sugere que a guerra na Flandres e o aumento dos custos do
capital empregue na construção naval perfizeram dois fatores conducentes à
perda de representatividade da marinha nos fluxos intraeuropeus (cf. Quadro
n.° 15). Com efeito, houve uma subida dos preços de todos os materiais e bens
intermédios necessários, o que se repercutiu num agravamento do custo de cada
tonelada em todos os escalões de arqueação. Além disso, a variação foi superior à dos
preços dos bens de consumo, numa demonstração de que os custos do capital
A EXPANSÃO, 1500-1621 - 38
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

mitigaram a vitalidade do sector, indesmentível durante os três primeiros quartéis de


Quinhentos.
QUADRO N.° 15
Custos de produção de navios por tonelada (1510-1604, em réis)
Períodos 40-70 71-100 101-130 131-200 201-300 301-400 401-500

1510-1520 2750 3000 6000

1520-1550 2057 2171 3779


1826 1666
1580-1604 8000 11 250 11 000 14 857 15 000

Fonte: Costa 1997: 176.

Numa lista de 1586, contudo, Portugal tinha uma frota marítima considerável em
comparação com a Espanha. Na medida em que a população deste reino era cerca de
sete vezes a portuguesa, um rol de 304 efetivos para Portugal, contra 650 em
Espanha, matiza a imagem de um reino com uma força marítima em decadência.
Lisboa preenchia 29% da frota, seguida de Tavira com 20%. Os demais portos não
alcançaram representatividade superior a 9%, pela dispersão destes efetivos por
toda a faixa costeira.
O incremento da produção do açúcar no Brasil deu mais um novo impulso à
frota nacional e em 1605 a administração filipina reiterava o espírito da legislação
manuelina, interditando a entrada de navios estrangeiros nas comunicações do
Atlântico Sul.
Estas medidas, de cariz protecionista, encaminharam a marinha portuguesa
para uma especialização nos circuitos coloniais, o que, simultaneamente, abria
espaço à participação maioritária das marinhas europeias nos fluxos que
integravam Portugal na Europa. Nesse sentido, a dimensão pluricontinental da
economia portuguesa afeiçoou de várias formas as características da oferta de
transporte, expondo-se menos à concorrência europeia, mercê dos exclusivos nas
águas do império.
Por fim, a função de entreposto reverberou no sistema fiscal, dando primazia
às receitas aduaneiras. E se a fiscalidade representa uma forma redistributiva do
produto, o império teve outros impactos na estrutura da economia.
5. As raízes do Estado fiscal
As primeiras décadas do século XVI foram palco de mudanças, quer no tecido
organizativo vocacionado para a gestão dos recursos fiscais da Coroa, quer na
clarificação de uma parte da sua matriz fiscal. Inseridas num ciclo de reformas
que a historiografia considera de uniformização institucional mais do que de
verdadeira centralização política, os seus efeitos ultrapassam o corte cronológico
aqui em observação, perdurando até às reformas liberais do século XIX.

A EXPANSÃO, 1500-1621 - 39
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

Do ponto de vista tributário, releva a ampla revisão que os forais conheceram no


reinado de D. Manuel, muito embora esta intervenção se tivesse iniciado ainda em
vida de D. João II. Mandados recolher à corte, do texto dos forais foram retirados os
princípios particulares que regiam a administração e a autonomia de cada município,
mantendo-se apenas a relação atualizada das prestações devidas à Coroa, ou
aos seus donatários, no caso em que a sua cobrança tivesse sido cedida a entidades
senhoriais. E certo que, como se tem insistido, a imagem que prevalece dos forais
reformados (1497-1520) é a da diversidade, refletida na natureza, na tipologia dos
direitos cobrados e também na carga fiscal representada face ao produto bruto
agrícola. Em todo o caso, o que importa desde já reter é o efeito duradouro que esta
reforma produziu: uma vez definidos, os direitos de foral cristalizam-se na forma e
nos termos fixados durante o reinado de D. Manuel, vedando aos donatários de
direitos reais a hipótese de exigir arbitrariamente prestações adicionais às
populações, sob pena de perda da jurisdição. Se estas medidas significaram uma
rigidez nos rendimentos provenientes destes bens da Coroa concedidos às Casas
senhoriais, no conjunto das receitas da monarquia estes encaixes já eram pouco
representativos.
Por seu turno, a sistematização das normas que orientavam a gestão fiscal e
financeira operada pelo Regimento da Fazenda (1516) veio dotar a Coroa de novos
instrumentos de controlo. Por um lado, o regimento trouxe uma definição mais
precisa das atribuições dos oficiais que cumpriam todas as funções de
recebimento e pagamento a nível local, isto é, os almoxarifes e recebedores, bem
como daqueles que os enquadravam ao nível das circunscrições intermédias, os
contadores das comarcas. Por outro, também o centro unificador daquela malha de
almoxarifados e contadorias foi alvo de um novo figurino institucional que se
concretizou no desdobramento da jurisdição do antigo vedor da fazenda em três
vedores.
Igualmente relevantes foram as intervenções de D. Manuel na Casa dos Contos do
Reino e Casa (1514), organismo central que tinha a seu cargo a fiscalização
contabilística das 13 contadorias espalhadas pelo reino. Dotando-a de um corpo mais
alargado de oficiais, a monarquia procurava dessa forma exercer uma fiscalização
mais apertada sobre uma administração local que se complexificara entretanto e
que ia gerando problemas de informação sobre a prestação dos seus oficiais. Em
1560, a fusão deste organismo com a Casa dos Contos de Lisboa, que até então se
ocupava da fiscalização das contas dos oficiais de recebimento que operavam na
capital e sua comarca, sublinhou a centralidade deste tribunal no contexto da fazenda
real.
A agregação do reino de Portugal na monarquia hispânica em 1580 não significou
mudanças substantivas neste dispositivo, que manteve as suas características
genéricas. Contudo, vale a pena sublinhar a integração dos três vedores da fazenda
num órgão único, o Conselho da Fazenda, que depois de 1591 concentrou as
A EXPANSÃO, 1500-1621 - 40
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

atribuições de coordenação e superintendência em assuntos de fazenda, assegurando


também o enquadramento superior de organismos como a Casa dos Contos, as
alfândegas, a Casa da Índia e a Casa da Moeda.
Pese embora este ambiente de mudança institucional quinhentista, o regime de
pluralidade orçamental que caracterizava a administração financeira, pelo
menos desde meados do século XIV, não foi posto em causa: as receitas fiscais da
monarquia eram arrecadadas e dispendidas pelas diversas repartições territoriais -
almoxarifados -, sob a coordenação das diretivas emanadas pelos vedores da fazenda,
é certo, mas sem que houvesse uma gestão unificada das receitas.
Este modelo descentralizado de gestão da fazenda, comum, aliás, aos dispositivos
de governo financeiro das monarquias europeias durante o período moderno, foi
transposto para os diferentes espaços do império, sempre que a Coroa se
assumiu como entidade fiscal, como decorrência do exercício da soberania. Assim
sucedeu nos arquipélagos atlânticos, na América Portuguesa e nalgumas possessões e
parcelas territoriais do Estado da Índia. Neste último caso, a apropriação de sistemas
tributários preexistentes, por substituição dos anteriores soberanos asiáticos, dotou
a intervenção da Coroa na Ásia de receitas próprias. Os direitos alfandegários
cobrados nas alfândegas principais de Goa, Malaca, Ormuz e Diu proporcionavam a
fatia maioritária dos encaixes da fazenda real (cerca de 60% entre 1581 e 1620),
seguindo-se rendimentos fundiários, decorrentes da apropriação de direitos de
propriedade (entre 16% e 25% no final do século XVI). As receitas assim obtidas
eram inteiramente dispendidas na manutenção da organização administrativa,
eclesiástica, militar e naval local, sugerindo que, por meados do século XVI, estavam
reunidas as condições para a autossustentação financeira desta estrutura política e
comercial. Dos rendimentos vinculados à fazenda real e arrecadados na Ásia,
nada fluía para os cofres centrais do reino de Portugal. E se anualmente do reino
saíam capitais, estes destinavam-se à aquisição das cargas de retorno da Carreira da
Índia, numa clara dissociação dos fluxos financeiros da administração do Estado da
Índia relativamente aos fluxos financeiros da exploração da rota do Cabo (Mapa n.°
6).
A mesma lógica de autofinanciamento prevalece no Atlântico, seja nos espaços
insulares seja na América Portuguesa, fundada numa transposição da matriz fiscal
do reino. A sua divisão em capitanias-donatarias veio introduzir algumas
características específicas a este modelo, ao reservar para os donatários certas
prerrogativas fiscais, como os monopólios de produção e a redízima, isto é, a décima
parte das rendas devidas ao rei. Não obstante essa repartição com os donatários, a
fiscalidade da monarquia integrava maioritariamente dízimas alfandegárias e
dízimos eclesiásticos, estes últimos cobrados pela fazenda em virtude da cedência
da jurisdição espiritual à Ordem de Cristo, de que o rei passou a ser administrador
depois de 1495. Seguindo a mesma prática em uso no reino, os encaixes daí
decorrentes serviam para satisfazer pagamentos locais.
A EXPANSÃO, 1500-1621 - 41
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

A arquitetura fiscal e financeira do império não pressupunha, pois,


transferências regulares de receitas fiscais para o reino. É certo que há exceções
que desacreditam esta regra. Estão neste âmbito transferências de saldos líquidos
positivos provenientes da Madeira, que se conhecem para os anos de 1581-1586,
realizadas por meio de letras de câmbio. Mas também não se pense que a
manutenção destas partes do império repousou única e exclusivamente nas suas
receitas locais. É preciso levar em conta as múltiplas situações de aperto militar que
obrigaram a monarquia, mediante a imputação de despesa ao centro político, a acudir
com homens, navios e artilharia às diversas partes do império, mormente à Índia,
mas também ao Brasil, como sucedeu durante a União Ibérica.
O contributo financeiro do império residiu, pois, na circulação de bens dos
vários espaços para o reino, que engrossaram as alfândegas, e direitos de
propriedade que permitiram ao rei impor a distribuição de certos bens como
monopólio, cuja renda podia ser explorada diretamente pela Coroa ou cedida a
particulares por meio de contratos de arrendamento. Aconteceu assim com o ouro
da Mina, a pimenta, os escravos e o pau-brasil.
Além disso, o império contribuiu para a abertura da economia ao exterior
derivada do alargamento da gama de bens transacionados e integração destas
relações em circuitos europeus. Nesse sentido, os orçamentos da monarquia no
reino permitem uma análise que questiona alterações conjunturais no contributo dos
monopólios proporcionados pelo império face à evolução da economia do reino para
o conjunto das receitas da Coroa.

QUADRO N.° 16
Orçamentos do reino (1506-1607) (em milhões de réis)

1506 1519 1527 1534 1557 1588 1607

Reino (total) 74,8 111,7 131,3 153,7 288,8 421 460,8

Almoxarifados 65,71 961 84 190,51 198,2 198,3

Alfândegas de mar 5,7 125 186,5

Alfândega e casas de Lisboa 9,1 15,7 41,6 98,3 97,8 76

Império (total) 104,1 164,6 s.i 284,8 s.i 347 521

Casa e naus da índia 51,3 117,6 s.i 252 s.i 245 397,5

Guiné, CaboVerde, Mina 50,9 47 s.i 24,8 s.i 56,4 27


Angola s.i s.i
11 21
São Tomé 6 8 s.i 7,8 9,5

A EXPANSÃO, 1500-1621 - 42
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

QUADRO N.° 16 (cont.)


Orçamentos do reino (1506-1607) (em milhões de réis)

1506 1519 1527 1534 1557 1588 1607

Pau-brasil 1,9 s.i s.i s.i 13,6 24,0

TOTAL 178,9 276,3 s.i 438,5 s.i 754,8 939,8

(1) inclui alfândegas, não discriminadas na fonte.


Fontes: Pedreira 2007; Coleção de São Lourenço, I, vol. VI; Pereira 2003, Gavetas da Torre do
Tombo, vol. i, 891-894; BNL, FG, cod. 637, 17 v., 24; Falcão 1859.

Diretamente, o império, como se disse, providenciou um conjunto de rendas de


monopólio incluídas no Quadro n.° 16, nas categorias discriminadas em império. Da
comparação das variações destas grandes categorias, reino e império, reforça-se a
perceção da importância da função de entreposto de Portugal. As rendas do império
tiveram uma variação média acumulada inferior à do reino, que entre 1557 e 1588,
respetivamente, foi de 0,3% e 1,9%. Para esta variação acentuada das receitas do
reino foi decisivo o contributo das alfândegas, que aumentaram bastante mais do que
as casas de Lisboa (cf. Quadros n.os 16 e 17).
QUADRO N.° 17
Taxas de variação das receitas nos orçamentos do reino

1506-1519 1519-1534 1534-1557 1557-1588 1588-1607

Reino 3,1% 2,2% 5,0% 1,9% 0,5%

Império 3,6% 3,7% 0,3% 2,2%

Total 3,4% 3,1% 1,0% 1,2%

Fonte: Quadro n.° 16.

Contudo, o acréscimo da ponderação das receitas com origem nos almoxarifados,


menos beneficiados com esta exposição ao mar, não foi despiciendo. Com efeito, os
almoxarifados incluídos nas comarcas de Trás-os-Montes e Beira tiveram uma
variação superior à de Entre-Douro-e-Minho. A seguir à Estremadura, comarca que
experimenta uma variação média (não acumulada) de 118%, o Alentejo afigura-se a
região do país cuja receita mais cresceu (107%). Depreende-se que a dinâmica
demográfica, as suas repercussões nas transações e um grau superior de
monetarização da economia concorreram para o aumento das receitas da monarquia.
Essa vitalidade parece ser menos evidente a partir de 1588. Entre 1588 e 1607 os
dados contam uma história diferente. A variação comparada entre as duas categorias
- reino e império - mostra agora as rendas do império a crescerem 2,2% ao ano e o
reino 0,5%. E, desta vez, os almoxarifados tiveram uma prestação estabilizada, o
contributo de Lisboa decresceu, pelo que, aquele crescimento em 0,5% das receitas
A EXPANSÃO, 1500-1621 - 43
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

dependeu inteiramente do movimento dos portos marítimos. A inelasticidade da


receita dos almoxarifados tem sido imputada a alterações na execução do seu
principal imposto, a sisa, reveladora de uma diferente interação entre a Coroa e os
municípios. O chamado encabeçamento da sisa, generalizado em 1564-1565,
consubstanciou-se no trespasse para os concelhos do risco da variação desta receita.
Estipulou-se a entrega de montantes fixos à Coroa, por períodos temporais de vários
anos, que deixou de fora as sisas cobradas em Lisboa. Isto significava duas situações
possíveis: quando a coleta ficava aquém do estabelecido, haveria que preencher o
montante do cabeção com tributação extraordinária incidente em rendimento e
património da população local, como aconteceu em Coimbra no início do século XVII;
se a receita excedesse o encabeçado, não revertia para a Coroa, integrando os
encaixes dos municípios. O que assinala o possível distanciamento entre variações
reais da economia e o produto deste imposto. É esta rigidez que já transparece nos
dois orçamentos de 1588 e 1607.
Na variação superior do império está sobretudo a prestação da Casa da Índia e o
contrato de Angola. Estes dados, que apresentam uma variação superior das
alfândegas de mar que não Lisboa, a manutenção do contributo da Casa da índia, com
uma nova estrutura de cargas como se viu acima, e Angola a duplicar as suas receitas,
configuram o complexo de integração dos vários espaços e confirmam o dinamismo
dos primeiros 40 anos da União Dinástica, como a historiografia tem assinalado.
Se as rendas nominais totais aumentaram entre 1588 e 1607, foi sem dúvida graças a
uma acentuação das dinâmicas económicas nos espaços ultramarinos. A rigidez
do encabeçamento da renda dos almoxarifados moldava, definitivamente, a estrutura
do sistema fiscal do Estado em formação, tornando-o cada vez mais sensível às
conjunturas económicas do império.
Por seu lado, o encabeçamento da sisa, principal receita dos almoxarifados, confirma
igualmente o que a historiografia tem assinalado sobre as consequências político-
institucionais do império em Portugal: um Estado patrimonial que, pelas rendas
ultramarinas, pôde adiar a sua transformação em Estado fiscal e ceder à aristocracia
e a outras instituições uma parte dos direitos de apropriação do excedente do
produto interno. Com D. João III, a incorporação na Coroa da administração perpétua
dos mestrados das três ordens militares de Cristo, de Avis, e de Santiago (1551)
representou para a monarquia a possibilidade de dispor das comendas das ordens,
eminentemente compostas por recursos fundiários, direitos foraleiros e dízimos
eclesiásticos. Em última instância, alargou-se a sua capacidade redistributiva,
exercida por meio da cedência das comendas das ordens aos seus servidores,
sobretudo a nobreza, em remuneração de serviços.
Nesse sentido, rendas do reino e do império, formas de execução fiscal que
transferiam para o município receitas eventuais, e redistribuição de recursos
fundiários e jurisdicionais reforçada pela incorporação das ordens militares traçam o
suporte de uma relação pactuada entre a monarquia e os diferentes corpos sociais,
A EXPANSÃO, 1500-1621 - 44
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

nobreza, Igreja e municípios, que se manterá durante as décadas iniciais da União


Dinástica.
6. A União Dinástica
Em 1581, Filipe II de Espanha foi aclamado nas Cortes de Tomar como rei de
Portugal, pondo-se fim à crise de sucessão dinástica que se abrira em 1578 com a
morte de D. Sebastião, sem descendência, em Alcácer Quibir. Doravante e nos
sessenta anos subsequentes, os destinos do reino de Portugal seguiriam unidos à
monarquia do ramo espanhol dos Habsburgo. Não obstante a vitória militar dos
Áustria sobre as tropas apoiantes do prior do Crato, que poderia configurar a
agregação política do reino de Portugal por meio da conquista, legitimada, é certo,
por direitos de sucessão hereditária, o novo rei preferiu atuar com prudência.
Consciente de que havia sentimentos anti castelhanos em vários segmentos da
população, Filipe II entendeu recorrer a uma integração pactuada, sustentada em
diversos compromissos negociados com os corpos da sociedade portuguesa nas
Cortes de Tomar, reunidas em Abril de 1581. Por meio do pacto então
estabelecido, o reino de Portugal manteve o seu ordenamento jurídico e a sua
autonomia administrativa e institucional, enquanto as suas elites
nobiliárquicas e urbanas viram reconhecidos, ou mesmo reforçados, os seus
direitos e privilégios.
Dos princípios consagrados em Tomar, dois deles tiveram particular relevância: a
exclusividade das nomeações dos ofícios da administração régia, quer do reino,
quer do império, para os naturais de Portugal e a extensão da manutenção dos
particularismos político-administrativos de cada reino aos respetivos
prolongamentos ultramarinos. Isto é, apesar da União Dinástica, juridicamente
nada mudaria ao nível da gestão dos monopólios associados à exploração das
respetivas possessões ultramarinas e da apropriação dos seus benefícios.
Independentemente desta solução agregativa, com a União Ibérica, Portugal veio a
tomar uma nova posição na Europa, pois até 1580 o reino tinha conseguido
permanecer fora dos conflitos religiosos que dilaceraram a Europa do Norte, na
sequência do movimento reformador encetado por Martinho Lutero. Além disso,
mediante uma hábil atividade diplomática, os seus domínios ultramarinos não
haviam sido seriamente ameaçados. A integração na monarquia dos Habsburgo
alterou o contexto político da economia portuguesa, pois o reino sofreu o
embate das múltiplas frentes de guerra conduzidas pelos Habsburgo de
Madrid. Inevitavelmente, a guerra afetou Portugal de várias formas. Antes de se
sentir diretamente no reino, num aumento da pressão fiscal e na mobilização de
efetivos para incorporar nos exércitos das frentes da Flandres e Catalunha
(sobretudo depois de 1624, com o projeto de União de Armas de Olivares), desde os
primeiros anos de 1600 os ataques de Holandeses, Ingleses e, em menor grau, de
Franceses alvejaram o império.

A EXPANSÃO, 1500-1621 - 45
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

Por estas novas circunstâncias, os 60 anos de União Ibérica mereceram juízos


depreciativos na historiografia dos séculos XIX e princípios do século XX, atribuindo-
se ao domínio castelhano o início de uma «decadência» nacional. Tomou-se como
bom exemplo o movimento da Carreira da Índia e o Estado da Índia. A crise estaria
em marcha desde 1570, é certo, mas julga-se que se acentuou em 1580 em virtude da
entrada em cena de Holandeses e Ingleses no Índico e do fim da hegemonia
portuguesa sobre a rota do Cabo.
O envolvimento de Portugal na conjuntura política e militar europeia trouxe
consequências económicas inquestionáveis, mas nem por isso a todas se pode
atribuir um sinal negativo. Àquela visão sombria do período de União Dinástica,
outras linhas de investigação contrapuseram sinais de vitalidade. No Brasil, a
dilatação da inserção territorial portuguesa concretizou-se até ao Pará e a colónia foi
devidamente protegida das ameaças francesas no Maranhão. Durante o último
quartel do século XVI consolidou-se a economia do Atlântico Sul, enquanto polo de
intervenção portuguesa, operada por meio do negócio do açúcar. Reconfiguração,
portanto, talvez mais do que crise geral, mesmo se o reino teve de suportar custos
acrescidos para assegurar a defesa das suas extensões ultramarinas. Os moldes de
intervenção portuguesa na Ásia modificaram-se, do que são exemplo a extensão da
influência para lá do Ceilão ou o recuo da intervenção direta da Coroa na exploração
das rotas comerciais intra-asiáticas, em favor da iniciativa privada. Recorde-se o que
acima se apresentou sobre as transformações ocorridas com a exploração da Carreira
da Índia e o significado da maior ponderação de cargas não monopolizadas.
Parte dessa reconfiguração não pode ser dissociada da conjuntura político-militar
europeia da primeira metade do século XVII, marcada pelas disputas
internacionais que opuseram a monarquia dos Habsburgo espanhóis às
potências marítimas emergentes, em particular à Holanda, à Inglaterra e, até certo
ponto, também à França. Nestes termos, por via da sua agregação à monarquia
hispânica, o reino de Portugal não se exclui desse quadro de generalização dos
conflitos militares, seja no espaço europeu seja na África, Ásia e no Novo Mundo.
Mas, o reino participou também de um conjunto de interações, de natureza
militar e comercial, que assinalam uma «convergência estratégica» com
inegáveis consequências na prosperidade de certos negócios coloniais.
Os sinais de integração das economias das duas Coroas ibéricas e dos respetivos
impérios prevalecem sobre as dinâmicas de tensão que terão como corolário a
Restauração.
À data das Cortes de Tomar, o potencial económico do império revelava-se nas
rendas ainda apreciáveis do núcleo asiático e nos encaixes alfandegários
provenientes do despontar de uma economia açucareira na América
Portuguesa. A multiplicação do número de engenhos nas grandes regiões
produtoras (Pernambuco e Bahia) conheceu o seu período mais intenso entre 1570 e

A EXPANSÃO, 1500-1621 - 46
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

1585, a que correspondeu um significativo incremento da produção. Na década de


1600, o regime dos engenhos tinha capacidade para produzir cerca de 600 000
arrobas por ano e a expansão produtiva ainda se prolongou nos anos seguintes,
sustentada pela tendência em alta do preço do açúcar que se iria manter até cerca de
1612. Nos anos subsequentes, marcados por uma quebra dos preços nos centros
brasileiros e nos mercados europeus, a introdução de uma inovação tecnológica - o
«engenho de palitos» - foi largamente responsável pela expansão continuada da
produção que, em 1625, rondaria as 900 000 arrobas anuais.
O sistema atlântico não assentava só no açúcar, mas também nos escravos
africanos, indispensáveis para a laboração dos engenhos. Com a fixação portuguesa
em Luanda (1575) consolidava-se a presença portuguesa nos dois continentes
bordejados pelo Atlântico Sul e estruturava-se o essencial das suas redes comerciais,
dominadas por açúcar e escravos. No final do século XVI, embora o centro de
gravidade do império ainda pendesse para a Ásia, despontava um complexo
económico capaz de dilatar as receitas da monarquia e dos particulares. Disso
mesmo é expressão a perpetuação do crescimento nominal das receitas
alfandegárias entre 1588 e 1607.
A tendência positiva das receitas incidentes na circulação externa demonstrava o
limitado alcance dos sucessivos embargos ao comércio entre as Províncias Unidas e
os reinos da Península Ibérica, decretados quer pelos monarcas espanhóis, quer
pelos Estados Gerais, num conflito que usou táticas de guerra económica. No quadro
do conflito, os Estados Gerais proibiram o comércio com a Espanha e Portugal em
1581 e 1582, ao que os monarcas espanhóis retaliaram com iniciativa idêntica em
1585, 1595, 1598 e 1605. Indiscutivelmente, estas proibições, sempre acompanhadas
da ameaça de confisco de navios, produziram interrupções no relacionamento
comercial, mas com repercussões muito circunscritas e sem efeitos duradouros. Uma
das interrupções mais alargadas que teve lugar entre 1585 e l588, foi logo
compensada por uma intensificação dos contactos comerciais na década de 1590,
assim que o embargo foi levantado por Filipe II na sequência de uma prolongada
crise cerealífera.
Na verdade, por estas ligações abrangerem abastecimentos de bens críticos para
qualquer das economias em confronto, os embargos afetavam qualquer dos Estados
em conflito. Se o consumo nos povoados do litoral português tornava imprescindível
o abastecimento de cereais por mar, também o sal de Setúbal era fundamental para
as pescarias holandesas e mercados do Báltico, cuja oferta requeria o transporte
holandês. O movimento de navios nos portos de Setúbal e Aveiro atestava essa
interdependência definida nos circuitos de sal e cereais, desenhada desde o século
XVI. Os navios partiam dos Países Baixos, seguiam para o Báltico, vinham de lá aos
portos portugueses com prata e em lastro, ou com cereais para carregar sal, o qual se
destinava à pesca ou a ser redistribuído no Báltico. Os embargos decretados em 1595
e 1598 não foram completamente eficazes, não tendo conseguido suster por muito
A EXPANSÃO, 1500-1621 - 47
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

tempo o tráfico que unia Amsterdão ao porto de Setúbal. Do mesmo modo, também a
interdição da permanência de mercadores holandeses nos portos portugueses
decretada em 1605 não impediu o relacionamento comercial com as Províncias
Unidas. É certo que, um pouco mais tarde, esta comunidade em Lisboa foi
efetivamente desestruturada, mas o vazio que deixou foi rapidamente preenchido
por mercadores portugueses com ligações a Amsterdão. Afinal de contas, o comércio
era suficientemente compensador para os agentes envolvidos, fossem portugueses,
fossem holandeses, justificarem tentativas sistemáticas de contornar as proibições.
Os holandeses precisavam da intermediação das produções do Báltico com o
mundo mediterrânico, enquanto os portugueses não dispensavam as
carregações de trigo. A Lisboa chegariam anualmente cerca de três mil navios
carregados de cereal, de acordo com Luís Mendes de Vasconcelos numa apreciação
de 1608, talvez exagerada, mas que diz bem da importância do «pão do mar». Sal,
açúcar e cereais polacos escoados por Dantzig eram produtos essenciais que
animavam estas rotas, aos quais se juntava a pimenta, que, pelo menos até ao início
da década de 1590, também circulava de Portugal para os portos da Holanda e
Zelândia.
Entretanto, as tréguas entre a Casa de Áustria e as Províncias Unidas em 1609, e que
durariam até 1621, dinamizaram estas ligações e envolveram os três principais
portos portugueses ligados ao tráfico com o Brasil. Lisboa, o maior porto do reino,
detinha igualmente uma posição cimeira nas ligações transatlânticas, secundada pelo
Porto e Viana do Castelo, outros nós de articulação dos portos brasileiros e das
praças europeias. Viana do Castelo, sobretudo, viveu nos primeiros quarenta anos de
União Ibérica um período de particular prosperidade, mercê do estabelecimento de
ligações diretas com o Brasil, conduzidas por cerca de setenta navios entre 1619 e
1629, ou como porto na rede de negócios de mercadores residentes em Lisboa. Na
vigência das tréguas, as Províncias Unidas conseguiram captar pelo menos metade do
açúcar brasileiro, do que foi sintomática a multiplicação das refinarias a laborar em
Amsterdão. Com três unidades de produção em 1594, vinte e cinco anos depois
albergava duas dezenas e meia. Nem mesmo a tendência em baixa dos preços do
açúcar, que começou em 1612, logo depois das tréguas assinadas, conseguiu suster as
ligações comerciais com as Províncias Unidas. Aquele ano encetou um período difícil
para o açúcar brasileiro, quer para os produtores, quer para os circuitos mercantis,
debatendo-se com margens cada vez mais curtas na intermediação. Os preços
desciam na Europa sem que tivessem igual comportamento na colónia. A conjuntura
depressiva agravou-se em 1618, com o início da Guerra dos Trinta Anos e
subsequente continuação da contração dos mercados centro-europeus. Mas
nem por isso as ligações holandesas aos portos da Península Ibérica, sobretudo a
Lisboa, deram prova desta conjuntura. Só em 1621, com o renovar das hostilidades
entre a Espanha e as Províncias Unidas, acompanhado de novo embargo à navegação
holandesa, este com uma administração e controlo bastante mais apertado do que os

A EXPANSÃO, 1500-1621 - 48
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

anteriores, ficou em causa a inserção dos portos portugueses nas redes mercantis
europeias.
Assim, a integração económica de Portugal num feixe de rotas transatlânticas
reforçou-se com a União Dinástica, tempo em que se abriram aos mercadores
portugueses novas oportunidades de negócio na América Espanhola e na
própria Península. Embora no plano dos princípios os domínios ultramarinos
permanecessem separados, a sua unificação sob a pessoa do mesmo rei acabaria por
se refletir numa suspensão temporária da efetivação das fronteiras do Tratado
de Tordesilhas e, por isso, numa maior tolerância às infrações. Se anteriormente à
União Ibérica já os mercadores portugueses se infiltravam nas redes de comércio do
reino e do império vizinhos, depois de 1580 esse fenómeno intensificou-se.
Mercê do seu domínio sobre os mercados abastecedores de escravos da Guiné e
de Angola, os mercadores portugueses penetraram nas «Índias de Castela». O
negócio não só era controlado a montante, por grandes mercadores portugueses que
chamavam a si os asientos, contratos exclusivos de abastecimento de escravos à
América Espanhola, como a jusante, pela venda de licenças que estes assentistas
realizavam, disseminando os seus direitos de monopólio por uma miríade de
operadores. Também o transporte de escravos envolvia a participação de navios e
capitais portugueses numa rede que ligava entre si Lisboa, Sevilha, portos negreiros
e a América Espanhola. Esta triangulação agitou a vida portuária portuguesa, sendo
hoje reconhecida a resposta preferencial de Vila do Conde a estes investimentos
no transporte negreiro, enquanto outras localidades permaneceram mais
vocacionadas ao tráfego do açúcar, como aconteceu em Viana do Castelo. Donde
resulta clara a existência de uma efetiva complementaridade entre as
economias dos dois impérios, castelhano e português, operada por meio dos
escravos e da prata, da qual beneficiaram os agentes mercantis e os cofres do
erário. Aliás, quando experimentava o seu auge na segunda década do século XVII,
esta ingerência portuguesa no império espanhol causou mal-estar na comunidade
mercantil sevilhana, mostrando como estas redes mercantis portuguesas chegavam à
prata americana.
Para esta integração ainda contribuíram os fluxos migratórios portugueses. Em
primeiro lugar, considere-se a migração de Portugal para Castela, que transformou
Sevilha e Madrid nas cidades onde se encontravam as maiores comunidades
portuguesas no exterior. Fluxos justificados pela capacidade de atração económica
destes centros urbanos, mas também instigados pelas perseguições inquisitoriais. As
saídas de mercadores cristãos-novos do Algarve deveram-se, pelo menos em parte,
aos ritmos de repressão da Inquisição. Uma vez em Sevilha, muitos dos cerca de 2000
portugueses que aí residiram trabalhavam ativamente no tráfico da Carreira das
Índias, onde a sua participação chegou a representar um quinto do volume dos
negócios, mesmo sem ter em conta o contrabando e o tráfico de escravos. Em
segundo lugar, considerem-se os fluxos com destino na América Espanhola,
A EXPANSÃO, 1500-1621 - 49
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

protelando uma tendência anteriormente delineada, mas que se ampliou durante a


União Ibérica. A partir de Sevilha ou da Bahia e Pernambuco, muitos foram os
mercadores portugueses que se derramaram para centros como Cuzco, Lima,
Cartagena das Índias, Acapulco e Buenos Aires. Por seu intermédio, aumentou o
grau de união económica das duas Américas, a qual transpareceu na profusão de
uma ocupação designada de «peruleiros», comerciantes de origem portuguesa que
se dedicavam a comerciar com o Baixo Peru. Aqui procuravam a prata do Potosí, vital
para a sustentação das transações na América portuguesa. A partir de finais do século
XVI, não obstante as proibições decretadas pela monarquia, foi particularmente
intenso o comércio clandestino que se estabeleceu entre Buenos Aires e o Rio de
Janeiro e que envolvia a troca de escravos e açúcar por grandes quantidades de prata,
tornando evidente o carácter complementar das economias platina e fluminense.
Neste caso, as interações com o império espanhol faziam-se ao arrepio dos interesses
da Casa de Áustria, mas outros tantos exemplos ainda se poderiam aduzir como
reveladores de convergência de interesses, tendo como palco o Brasil, e que trariam
efeitos positivos à Coroa de Portugal. Relembre-se apenas a conquista da Paraíba em
1585, que envolveu a participação de uma armada luso-castelhana, ou ainda a
expulsão dos franceses do Maranhão, onde se operou uma aliança entre os interesses
das elites locais ligadas ao açúcar e a estratégia imperial da Casa de Áustria. Do
ponto de vista territorial, como é bem conhecido, o domínio filipino coincidiu
com uma dilatação considerável da América Portuguesa.
Globalmente, de 1580 a 1620 a União Ibérica significou o estabelecimento de
interações úteis com o império espanhol, parecendo ter havido maior inserção
portuguesa nos exclusivos castelhanos do que o inverso. Até as Canárias se
inscreveram como pontos de escala no carregamento de vinho para consumo no
Brasil. Se bem que a Madeira encetou um novo ciclo económico que reconverteu em
vinho a anterior especialização no açúcar, a comparação entre a função dos dois
arquipélagos nas rotas comerciais do Atlântico português dá vantagem às Canárias.
Se a imagem de uma feliz integração deve prevalecer, esta conjuntura não deixou de
comportar problemas, já que a monarquia dual foi sinónimo de superior
conflitualidade nas extensões ultramarinas que acarretou custos financeiros
acrescidos.
No Atlântico, a partir de 1598 os holandeses encetaram uma série de expedições de
retaliação pelo embargo portuário. A ilha de São Tomé foi conquistada nesse ano,
mas logo perdida, enquanto uma armada causou o pânico em Salvador da Bahia,
atacando e tomando navios portugueses. Em 1604, nova frota holandesa sulcou o
Atlântico com o mesmo objetivo, mas ainda sem a intenção de substituir os circuitos
dominados pelos agentes ibéricos por redes próprias. Por isso, ainda não eram
percetíveis sérias perturbações nas rotas do açúcar brasileiro, pois estas
continuaram a ser controladas por Lisboa, em rede com mercadores portugueses
cristãos-novos, sedeados em Amsterdão. Também a costa ocidental de África foi
A EXPANSÃO, 1500-1621 - 50
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

palco da navegação regular de navios holandeses, em busca do ouro e do marfim, a


um ritmo de 20 navios por ano na década de 1600, sem que nenhuma possessão
portuguesa fosse tomada.
No índico a pressão holandesa assumiu outros contornos, mercê da intervenção da
Companhia Holandesa das Índias Orientais (VOC), concebida em 1602 enquanto
«braço armado» dos Estados Gerais das Províncias Unidas na guerra que moviam
à monarquia hispânica. Em causa estava o acesso direto aos mercadores
abastecedores de especiarias. Os 76 navios largados dos portos da Holanda em
direção à Ásia entre 1602 e 1610 sobem para 117 na década seguinte, numa clara
exibição da insistência da Companhia em se afirmar como potência naval e militar na
Ásia. Por volta de 1610 parece claro que a VOC tinha conseguido acabar com o
monopólio português de pimenta. Para isso muito contribuíram os rápidos
avanços concretizados no Sueste asiático, não interrompidos pela Trégua dos 12
Anos, que não teve aqui efeitos práticos. Em 1605, a ocupação de Amboíno
simboliza a primeira perda de posições portuguesas na Ásia. Nos anos seguintes, as
ações de corso organizado perturbaram a navegação de Malaca, Moçambique e Goa.
Em virtude do esforço de guerra, a concorrência europeia foi causa de um
aumento exponencial das despesas extraordinárias do Estado da Índia.
Contudo, até 1620 os efeitos desta ofensiva não devem ser sobrevalorizados. Por um
lado, porque, no que respeita à Carreira da Índia, o número crescente de baixas se
deveu mais ao elevado número de invernadas, arribadas forçadas ou naufrágios, do
que a ações do corso neerlandês propriamente dito. Não são, naturalmente, de
descurar os efeitos colaterais desta alteração de condições em que se desenrolavam
os negócios da rota do Cabo, pois desencadeou uma importante mudança na
estrutura das cargas, como acima se referiu, e obrigou ao reforço dos recursos
militares das armadas e à exploração episódica de diferentes meios de
financiamento, como sucedeu em 1614, aquando de um empréstimo contraído à
Câmara de Lisboa. Por outro lado, os circuitos de comércio intra-asiático dominados
pelos Portugueses não chegaram a ser desestruturados pela concorrência europeia,
continuando a alimentar os cofres do Estado da Índia.
O fim das tréguas, em 1621, entre a monarquia hispânica e a Holanda veio alterar
drasticamente esta aparente capacidade de resistência do reino e do império à
ofensiva europeia contra a monarquia hispânica. Desde logo, porque o renovar das
hostilidades se inscreveu numa profunda recessão do comércio internacional, em
geral, e do comércio do açúcar, era particular. Depois, porque a reabertura das
hostilidades com a Holanda assumiu uma dimensão tal que pôs em causa a
capacidade do reino para financiar a guerra. Pelo menos, em termos políticos os
custos da guerra foram tidos como incomportáveis. Com efeito, este novo
enquadramento internacional encontrou as estruturas produtivas do reino
apresentando sinais de recessão e com menores condições para responder ao
aumento da carga fiscal necessária para custear a defesa dos impérios. As décadas
A EXPANSÃO, 1500-1621 - 51
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

finais da União Dinástica foram pontificadas por tensões várias, e a fiscalidade pode
ter sido um bom pretexto para a restauração da autonomia política.

A EXPANSÃO, 1500-1621 - 52
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

Leonor Freire Costa – A HISTÓRIA ECONÓMICA DE PORTUGAL – Esfera dos Livros,


2011, pág. 143 - 207.
Capítulo 3
A Restauração, 1621-1703
Por volta de 1620, encontram-se em diferentes espaços europeus
sinais de inversão na tendência de crescimento que pautou o século XVI. A
variação da população seguiu um padrão menos compatível com crescimento
cumulativo e suspeita-se que o produto agrícola foi sensível a essa tendência de
recessão ou estagnação demográfica. A relação destas duas variáveis ao longo da
primeira metade do século XVII, denotando rutura com a estrutura delineada em
mais de um século de prosperidade antecedente, foi um fenómeno extensível a
toda a Península Ibérica e aos outros espaços mediterrânicos europeus.
Em contraste, nas economias do Noroeste, quanto muito, ocorreu uma
desaceleração do ritmo de crescimento da população, aliás só detetável
depois de 1650.
A afirmação de potências, como a Inglaterra, Holanda e França, no comércio
intercontinental questionou o predomínio ibérico que havia sido alcançado nos
séculos XV e XVI e aliou-se à emergência de centros financeiros, industriais e
comerciais no Noroeste da Europa. Essa transferência de centros económicos não
foi indiferente às disputas políticas e militares dos Habsburgo espanhóis e austríacos
contra as novas potências marítimas. A história política e militar cruza-se, pois, com a
alteração da geografia económica, com dois grandes confrontos a marcarem esta
mudança nos equilíbrios entre as novas forças e a velha unidade imperial dos
Habsburgo. O primeiro, a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), ainda sob o estigma
das fraturas religiosas, envolveu a monarquia hispânica em confrontos regionais na
Alemanha, Suécia e França, coincidindo com a guerra de independência dos Países
Baixos do Norte e, ainda, com o deflagrar da revolta na Catalunha e a Restauração
portuguesa, numa exibição das múltiplas tensões internas e externas que desafiaram
a monarquia hispânica. No segundo conflito, que estalou nos primeiros anos do
século XVIII, conhecido como Guerra de Sucessão de Espanha (1702-1714), esteve
em causa uma disputa sobre os direitos franceses e austríacos àquele trono.
Numa ordem internacional orquestrada por conflitos armados tão prolongados, a
manutenção de tropas e o armamento aumentaram significativamente as
despesas dos Estados, colmatadas com receitas sob a forma de impostos,
confirmando uma gradual monopolização pelo poder central de certas funções
públicas, como a defesa. O advento de um modelo de Estado fiscal, por distinção com
o Estado patrimonial financiado com bens próprios das Coroas, consubstanciou uma
mudança institucional com consequências nos sistemas financeiros nacionais e, em

A RESTAURAÇÃO, 1621-1703 - 1
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

particular, numa diferente estrutura dos sistemas de tributação. Um pouco por todo o
lado, o aumento das receitas trouxe a preponderância dos impostos indiretos
sobre os impostos diretos. Recentes abordagens de história fiscal descrevem esta
progressiva estatização das economias no século XVII. Com este enfoque,
alargou-se a inteligibilidade do que é há muito conhecido por mercantilismo, quer
pelo tipo de impostos, quer pelo sentido de medidas públicas de fomento às
manufaturas, ou de proteção a sectores considerados estratégicos para a afirmação
dos Estados na ordem internacional.
Portugal inscreveu-se neste cenário a vários níveis. A inserção do reino na
monarquia hispânica implicou a sua participação numa frente generalizada de
choques militares, na Europa, África, Ásia e no Novo Mundo. À autonomia
readquirida em 1640 seguiram-se 28 anos de Guerra da Restauração que reforçou
a aliança com a Inglaterra por meio dos tratados de 1654 e 1661. Depois de um
período de hesitação nos seus alinhamentos externos, a ratificação desta viragem
atlântica veio com a Guerra de Sucessão de Espanha, em 1703. A assinatura de
tratados entre os dois aliados, um deles com conteúdo exclusivamente económico e
conhecido por Tratado de Methuen, tornou-se o melhor símbolo dessa inserção
atlântica, no campo diplomático e também no campo económico.
Assim, Portugal fez parte do mapa de Estados em formação que, por diferentes
motivos, enfrentaram uma despesa crescente com a guerra, buscaram receitas em
bases alternativas de execução fiscal e entenderam a proteção aduaneira às
indústrias nacionais como um meio necessário à reputação política e económica.
Contudo, o trilho da construção de um Estado fiscal em Portugal seguiu uma
trajetória diversa da dos outros países europeus, nomeadamente das potências
emergentes, pois desde cedo os impostos indiretos preencheram a fatia mais
significativa das receitas coletadas no reino, com a sisa a constituir um dos
melhores exemplos, enquanto o império, por sua vez, acrescentara a base
incidente no movimento das alfândegas ou na criação de rendas de monopólio
concessionadas pelo Estado. A Guerra da Restauração ofereceu condições para a
mudança desta estrutura fiscal, com a introdução de um imposto direto sobre o
rendimento, cobrado pelo Estado, denominado de décima. Não obstante as
diferenças, o período final da União Dinástica, a Restauração e a posterior atuação do
Estado na criação de manufaturas foram etapas fundamentais de ingerência pública
na economia, caminho comum a outras experiências nacionais e uma das marcas
deste século de transformação da geografia económica europeia.
1. Fiscalidade, rebelião e Restauração
O termo das tréguas, em 1621, entre a monarquia hispânica e a Holanda inscreveu-se
numa fase de recessão do comércio internacional, com os preços em queda, à qual

A RESTAURAÇÃO, 1621-1703 - 2
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

não foi alheia a contração dos mercados com o deflagrar da Guerra dos Trinta Anos.
Por sua vez, o retomar das armas entre os Habsburgo e os Países Baixos teve efeitos
na economia portuguesa, pois criou uma situação de rutura nas tradicionais
formas de financiamento das despesas públicas. Na base dessa rutura encontram-
se múltiplos fatores. Mas há que relevar os que dependeram das relações económicas
com o exterior, com reflexos na redução de receitas aduaneiras, pressionando a
busca de alternativas fiscais que haveriam de questionar os equilíbrios
constitucionais definidos desde 1581 nos estatutos de Tomar.
A proibição de comércio com a Holanda, decretado logo em 1621, e a apertada
fiscalização imposta pela administração do conde-duque de Olivares sobre os
portos deram uma outra eficácia a este embargo. A navegação holandesa e de outras
nações estrangeiras foi afastada dos portos nacionais. Lisboa foi a localidade que
mais perdeu. As receitas do consulado e das alfândegas ressentiram-se desta
conjuntura, a qual testemunhos contemporâneos não duvidaram tratar-se de uma
grave crise no comércio da cidade. Porém, os portos de Faro e Setúbal assistiram
igualmente a uma redução considerável na afluência de navios, enquanto em Viana
do Castelo, a brusca quebra de importação do açúcar foi consentânea com o
enfraquecimento da sua frota comercial. Com efeito, o cenário de crise nos fluxos
do império e de reexportação foi sensível na atividade destes portos
secundários, tal como em Vila do Conde desde 1620. A quebra das importações de
açúcar e das receitas aduaneiras das principais alfândegas do reino trouxe a perda
significativa de encaixes. Só o Porto beneficiou temporariamente destes embargos,
mercê de uma reorganização dos circuitos de financiamento do tráfego, transferindo-
se capitais de Lisboa destinados a manter o negócio brasileiro. Não foi apenas
afetada a redistribuição dos produtos coloniais. Na exportação de bens nacionais,
a venda do sal, tradicionalmente escoado para as Províncias Unidas, sofreu os
embates desta situação, pelo que a navegação entre Amsterdão e os portos de Aveiro
e Setúbal entrou num período de recessão que se estendeu, embora com uma ligeira
recuperação na década de 1630, até à Restauração.
O estiolamento do movimento portuário repercutiu-se na contração das receitas
aduaneiras e coincidiu com o aumento das despesas extraordinárias, potenciadas
pelos mais elevados custos da manutenção do império sob diferentes ameaças. Desde
logo, a fundação da Companhia Holandesa das índias Ocidentais (West Indische
Compagnie - WIC), em 1618, e a sua estratégia de afirmação no Atlântico desafiaram
os interesses portugueses. Começou com o ataque holandês e conquista da sede do
governo do Brasil, Salvador da Bahia, em 1624, acontecimento sentido como uma
humilhação e que teve uma resposta vigorosa por parte da monarquia hispânica.
Uma armada luso-castelhana conseguiu a libertação da cidade no ano seguinte. Este
episódio bem sucedido da cooperação militar entre os dois reinos ibéricos não

A RESTAURAÇÃO, 1621-1703 - 3
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

voltaria a repetir-se, mesmo quando um novo ataque holandês, desta feita a Olinda,
em Pernambuco, originou uma guerra local prolongada. Uma armada de socorro
luso-castelhana enviada em 1631 não desalojou os adversários, que entretanto
logravam alargar a sua posição territorial no Brasil. Em 1634, com a conquista da
Paraíba, a WIC conseguiu chamar a si o controlo total da principal região produtora
de açúcar do Brasil, privando o Estado das receitas fiscais decorrentes da baldeação
desta mercadoria nos portos nacionais, e os negociantes, de um sector fulcral dos
negócios.
O esforço de congregação de fundos para resgatar o Nordeste brasileiro não alcançou
resultados, já que as sucessivas armadas luso-espanholas de socorro, de 1635 e de
1639, se revelaram inconsequentes. Em 1637, os holandeses tomaram a fortaleza
de São Jorge da Mina que, todavia, já se encontrava em acelerada perda de
influência comercial, em virtude de o exclusivo português na região estar há muito
ameaçado pela concorrência europeia.
Entretanto, na Ásia, os custos de defesa atingiam um novo patamar, dando
mostras de exceder as receitas ordinárias do Estado da Índia e a sua capacidade de
autofinanciamento que caracterizara o sistema no século XVI. É certo que as
dificuldades vinham de trás, após o confronto com ingleses ao largo de Surrate em
1611 e 1614. Mas a situação agudizou-se posteriormente. A colisão com os ingleses e
as alterações do relacionamento português com a Pérsia safávida atingiram o auge
em 1622, com a queda de Ormuz às mãos de uma aliança anglo-persa, assinalando o
início de um período crítico que se estenderia até 1641. Donde, não sendo
completamente novas, as dificuldades financeiras do Estado da Índia exacerbaram-se
nas décadas de 1620 e 1630 devido ao crescimento das despesas extraordinárias e à
perda da alfândega do porto de Ormuz, responsável por cerca de um quinto dos
encaixes do Estado da Índia.
Para enfrentar a situação crítica no império asiático recorreu-se a financiamentos
extraordinários, por meio dos expedientes disponíveis no quadro das monarquias
europeias. Um deles teve intenção de captar recursos locais, com a criação de novos
tributos sobre as populações, lançados entre 1617 e 1623: o chamado consulado,
imposto aduaneiro, e a coleta, incidente sobre as transações de carne e vinho. Além
disso, recorreu-se a crédito junto de particulares ou das misericórdias. O governo
de Filipe IV de Espanha deitou mão a um terceiro expediente, desta feita bulindo com
a população do reino, não mais poupada a tributações extraordinárias destinadas ao
envio regular, a partir de Lisboa, de subsídios financeiros, designados socorros sob a
forma de ouro ou prata. Nas armadas de 1622 e 1623 foram enviados 200 milhões de
réis, que corresponderam a cerca de 62% do total de receitas do Estado da Índia em
cada um desses anos.
Assim, uma conjuntura gravosa estigmatizou, indiscutivelmente, os vinte anos
de governo de Filipe IV em Portugal. Porém convém frisar que os meios de
A RESTAURAÇÃO, 1621-1703 - 4
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

financiamento acionados extremaram situações anteriormente ensaiadas. Nos


primeiros quarenta anos da União Ibérica houve ocasião para angariar receitas
introduzindo-se novos impostos, ainda que para cobrir gastos pontuais. Cite-se o
exemplo do consulado, de origem espanhola, oferecido pelos mercadores
portugueses como donativo voluntário a Filipe II de Espanha em 1591, para a
sustentação de uma armada de costa. Ou ainda o tributo do sal, criado em 1601, que
onerava o sal exportado por mar. Em ambos os casos, estes novos tributos
reforçavam a configuração financeira do reino, mais dependente das atividades
marítimas e das alfândegas do que das receitas internas.
Esporadicamente, recorreu-se também à venda de padrões de juro, títulos de
dívida pública, para os mais diversos fins, designadamente para as armadas da
Índia. Entre 1600 e 1608 as receitas assim obtidas terão alcançado os 520 milhões de
réis, ou cerca de 65 milhões de réis por ano, valor equivalente a 8% do total das
receitas da monarquia para o ano de 1607. Perto de 70% das verbas assim
alcançadas acabariam por ser canalizados para a armada da Índia e para o cabedal da
pimenta. De notar que, na década seguinte, continuaram a diminuir as receitas da
venda de padrões de juro, que ascenderam apenas a 371,2 milhões de réis, em toda a
década.
Este esforço de guerra visou cumprir uma política de reputação da monarquia
hispânica. Concretizada por Filipe IV e pelo seu ministro favorito, o conde-duque de
Olivares, incluiu a designada União de Armas, segundo projetos ventilados desde
1615, mas só posta em marcha dez anos mais tarde. Não descurou a mais alargada
mobilização de tropas, afetando agora todos os reinos integrados na monarquia, com
Portugal a ter de constituir uma reserva de 16 000 soldados. Indissociável de uma
maior exigência fiscal, não surpreende que os pedidos de «subsídio voluntário»,
muito frequentes nas décadas de 20 e 30 do século XVII, tocassem os corpos sociais
tradicionalmente isentos, como a nobreza e a Igreja. Com os homens de negócio da
praça de Lisboa, de sangue cristão-novo, negociaram-se empréstimos forçados e
novos perdões gerais, designação para a compra de imunidade relativamente à ação
inquisitorial. Também a câmara da cidade de Lisboa foi chamada a suprir os défices
das receitas ordinárias. No âmbito destas contribuições, entraram 80 milhões de réis
para o socorro da Índia proporcionados em 1623 pela câmara de Lisboa, os
empréstimos impostos à comunidade mercantil, que ascenderam a 160 milhões de
réis entre 1621 e 1630, ou ainda a contribuição voluntária de 80 milhões de réis
imposta aos eclesiásticos.
Um novo ciclo de exações veio na sequência da queda de Olinda às mãos da WIC e
do subsequente emagrecimento das receitas alfandegárias. O estanco do sal (1631)
e as meias anatas (1632), que oneravam os rendimentos dos ofícios e mercês régias,
fazem parte dessa pressão acrescida. Os últimos cinco anos do domínio habsburgo
em Portugal ainda presenciaram medidas desesperadas para se proceder à cobrança
A RESTAURAÇÃO, 1621-1703 - 5
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

efetiva de uma renda no montante de 200 milhões de réis. Entre as vias de obtenção
desse montante conta-se o aumento do cabeção das sisas em 25%, decretado em
1635, vivamente contestado por, mais uma vez, tal como sucedera com os outros
subsídios, não ter sido salvaguardado o consentimento expresso dos povos. E, no
mesmo ano, Filipe IV ordenou a extensão a todo o reino do real-d’água, um direito
municipal lançado sobre a carne e o vinho vendidos a retalho. Este novo tributo não
admitia qualquer tipo de isenção, estendendo-se, pois, aos privilegiados. Só em
Lisboa, o real-d’água rendia aproximadamente 35 milhões de réis na década de 1640,
sendo praticamente impossível estimar os encaixes deste tributo à escala nacional.
A manutenção do império envolveu o sacrifício de todo o corpo da república, já que
os seus custos repousavam, nesta conjuntura, quer sobre os vassalos estantes no
império, quer sobre os do reino. À luz da ordem constitucional portuguesa, qualquer
uma destas iniciativas exigia o expresso consentimento do reino, reunido em Cortes,
mas nunca convocadas para o efeito.
Se houve levantamentos populares anteriores à pressão fiscal de Olivares, a
tributação extraordinária potenciou uma agitação social sem precedentes na
última década do período filipino. Comoções mais ou menos espontâneas eclodiram
por todo o país, culminando nas manifestações de 1637-1638, que começaram por
deflagrar em Évora e se estenderam por contágio ao resto do Alentejo e ao Algarve.
De cunho marcadamente urbano, orquestrados na maior parte dos casos pelas
autoridades municipais, os levantamentos populares insurgiam-se contra a
cobrança de impostos. Tendo como pano de fundo crises de produção cerealífera
que, efetivamente, coincidiram com esta maior pressão tributária, os levantamentos
populares acusaram os limites políticos e económicos da fiscalidade dos Habsburgo
em Portugal.
Esta instabilidade social e política suportou, oportunamente, as intenções
separatistas de frações da nobreza e da Igreja portuguesa. A 1 de Dezembro de
1640, um golpe palaciano, organizado pela nobreza titular em torno do duque
de Bragança, devolveu a autonomia política a Portugal, entronizando-o como D.
João IV, em cerimónia de 15 de Dezembro.
A propaganda legitimadora do golpe de Dezembro precisou de acusar o domínio
castelhano de espoliação de recursos do reino e de usurpação de poder, fosse pelas
levas de soldados deslocados para as frentes de combate fora de fronteiras, fosse
pelas imposições extraordinárias para custear a máquina de guerra. A introdução de
novos tributos sem a convocação de Cortes ofereceu argumentos à autonomia, que
assim surgia como solução para a tirania castelhana. Mas a aclamação de um rei
«natural» não prometia menos motivos de tensão e agitação social, pois haveria que
esperar a reação dos exércitos de Filipe IV.
Perante um descontentamento popular por alegada punção fiscal injustificada, e dada
a inevitabilidade de uma guerra no território, a Restauração não foi uma simples
A RESTAURAÇÃO, 1621-1703 - 6
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

transferência de Coroas para acalmar uma população exangue de tributos. Afigurou-


se como uma etapa da construção do Estado, exigindo uma diferente
abordagem da fiscalidade, com a seleção de novas bases de tributação. Para que
o pagamento não se confundisse com extorsão ou coerção, mas sim com a
participação voluntária num movimento destinado a repor a ordem anterior a 1580,
o empenho financeiro na guerra acompanhou-se de uma laboriosa propaganda. À
impressão de obras que divulgaram a legitimidade dos direitos de D. João IV,
narrando os episódios prodigiosos da revolta, sinais divinos que sacralizavam os
princípios consagrados pelo direito, juntou-se a diplomacia e a ação, graciosa, da
Igreja nos púlpitos. Com estas três frentes de intervenção - imprensa, diplomacia e
pregação - contribuiu-se para um sentimento coletivo de pertença a uma rede de
laços de fidelidade a um rei natural. Este ativo político, que cruzou o plano dos afetos,
tornou menos falível o que se acordava regularmente nas Cortes, um espaço de
decisão dos assuntos fiscais onde os povos faziam ouvir as suas queixas.
A 28 de janeiro de 1641 as Cortes reuniram-se para jurar o príncipe D. Teodósio
como herdeiro do trono, como exigia a constitucionalidade da monarquia portuguesa.
Nesta convocação dos três estados do reino, o braço do clero, da nobreza e o terceiro
estado, exibiu-se a mudança de estilos de governo, ao reconhecer-se que o pedido
régio de subsídios para despesas extraordinárias de guerra carecia do consentimento
geral do reino. Foram revogadas as medidas fiscais pretéritas, tidas como abusivas,
nomeadamente o real-d’água. Mas o que o rei devolvia com uma mão tirava com
outra. Logo os povos foram instruídos, nessas mesmas Cortes de janeiro de 1641, de
que a guerra contra os exércitos de Filipe IV requeria uma contribuição financeira e a
aceitação de um recrutamento de homens para combate.
Estimou-se que a mobilização de tropas não ultrapassaria os 25 000 infantes e 6000
cavalos ou soldados de cavalaria. Vale reconhecer que o nível de mobilização era
muito superior ao que a União de Armas de Olivares tinha exigido. Calculou-se que
este esforço carecia de um imposto que providenciasse uma receita de 720 milhões
de réis. Aparentemente, a estimativa dos efetivos necessários orientou a afinação dos
montantes a sancionar em Cortes reunidas nos triénios seguintes. A despesa revelou-
se subavaliada e ocorreram ajustamentos que a computaram em 860 milhões de réis,
dos quais 680 milhões advinham do novo imposto sancionado em 1641 e os
restantes 180 milhões precisavam da reposição de antigos tributos, nomeadamente
do real-d’água.
O imposto, que fora emblematicamente aquiescido pelos povos como um donativo
temporário em 1641, teve a designação de décima, numa analogia com o dízimo
eclesiástico e já um indício de que a inovação fiscal poderia bulir com uma taxa até
10%. Mas, contrariamente ao dízimo, houve a determinação do rendimento líquido
como base de execução. A legislação regulamentadora da contribuição era clara sobre
o que se entendia por rendimento, diferenciado de outras bases de coleta que
A RESTAURAÇÃO, 1621-1703 - 7
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

suportaram pedidos extraordinários anteriores incidentes na propriedade ou na


riqueza. No caso da décima, o conceito de rendimento era inteiramente moderno e
cingia-se a ordenados e salários, lucros, rendas e juros. Por outro lado, o Estado
invadia os grupos tradicionalmente isentos, o clero e a nobreza, uma vez que a
universalidade da tributação foi confirmada nas Cortes de 1641 e depois reiterada
nas de 1644. Por pressão do braço popular, inflexível quanto a isenções ou privilégios
nestes contributos financeiros para a guerra, a Igreja sofreu uma tributação incidente
em 10% de todas as rendas das ordens e bispados. A nobreza, na década de 1650, foi
coagida ao pagamento de uma contribuição adicional, de um quinto sobre o
rendimento dos bens que possuía como doações da Coroa, mormente comendas das
ordens. Foi admitida a redução da taxa incidente sobre o rendimento do trabalho
braçal não qualificado para 2%.
Mesmo sofrendo ajustamentos quanto às taxas de execução, o modelo continha
problemas que comprometiam a sua operacionalidade. As estimativas baseavam-se
em rendimentos presumidos, declarados pelos contribuintes. A informação era mais
transparente para os rendimentos do sector agrícola do que das outras atividades
produtivas, pois os dizimeiros da Igreja deram algum contributo com os seus
cadastros. Mas a opção por um imposto direto como forma de financiar a guerra
continha outras fragilidades que ameaçaram a sua eficácia, além dos custos de
informação. A primeira decorria da necessidade de montar uma estrutura
administrativa centralizada que coordenasse a execução a nível local. A outra
fragilidade do novo sistema tributário decorreria dos efeitos económicos da guerra, o
que augurava a redução da base coletável se o conflito afetasse as atividades
produtivas que mais contribuíam para o rendimento interno.
Quanto aos problemas da operacionalidade do imposto, uma nova malha
administrativa ajudou a colmatá-los. Assim, a Junta dos Três Estados, equiparada a
tribunal régio, controlava a nível central as receitas deste imposto, com autonomia
relativamente ao Conselho da Fazenda. Significa que a coleta da décima era
inteiramente consignada à guerra e não entrava no conjunto das receitas de outros
impostos que o Conselho da Fazenda deveria controlar. A nível local, uma rede de
oficiais nomeados pela administração central era coadjuvada pelos poderes
municipais na elaboração dos cadastros, os chamados cadernos de lançamento.
Apesar das dificuldades em implementar esta rede administrativa, o Estado não
chegou a recorrer ao arrendamento da coleta do imposto, optando por contratos para
o abastecimento dos exércitos aos quais foi dada a afetação da receita da décima. Por
outro lado, a máquina administrativa foi gradualmente calibrada com a promulgação
de três regulamentos, o último dos quais datado de 1656, feito repositório de
informação sobre o sistema de execução de um imposto direto, a que o período
pombalino haveria de remeter quando retomou a cobrança à taxa de 10%.
Quanto aos efeitos da guerra na evolução da base de execução fiscal, em pouco o
A RESTAURAÇÃO, 1621-1703 - 8
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

Estado poderia intervir. Em virtude de um recrutamento exigente, os embates do


conflito sentiram-se na alocação do trabalho e nas atividades produtivas, o que
contribuía para comprometer os resultados financeiros do novo imposto. Um balanço
das implicações económicas de uma guerra ao longo de vinte e oito anos será sempre
impreciso, dada a escassez de informação sobre a despesa em vários anos. Todavia,
documentação fragmentada viabiliza algumas apreciações sobre o modo como a
conjuntura afetou a evolução do produto, bem como certifica a perceção coeva de que
retirar braços à lavoura tinha custos de oportunidade.
De acordo com documentação produzida em 1653, na repartição da despesa
entravam maioritariamente as verbas para pagamento de soldos de infantaria,
perfazendo 55% do total dos gastos. As restantes partes distribuíam-se pela cavalaria
(20%), artilharia (10%), manutenção das fortificações (5%) e despesas
extraordinárias (10%). Desta estrutura ressalta o peso da infantaria. Não estão
assinalados gastos com a alimentação, nem dos animais, nem dos efetivos humanos,
porque cabia aos soldados retirarem do seu soldo os gastos com alimentação que,
para os de cavalaria, eram acrescidos com o sustento dos cavalos, recebendo um
soldo quatro vezes superior aos de infantaria. Na base da hierarquia, o soldado de
cavalaria recebia uma mesada de 6000 réis, enquanto o de infantaria se quedava por
1500 réis brutos, aos quais eram abatidos 40% a 50% para o sustento - munição de
boca, à base de pão e carne e fardamento.
Aceite esta especificidade, e pecando por simplificação, os soldos dos efetivos da base
da hierarquia militar servem para uma estimativa de despesas mínimas. Mesmo que
subavaliados, os quantitativos atestam a importância da redução dos contingentes de
cavalaria na década de 1650 (Quadro n.° 18).
QUADRO N.° 18
Despesas com o exército em Portugal (1643-1666)
Infantaria Cavalaria
Total em réis
N.° de N.° de
Custo anual Custo anual
soldados soldados

1643 14 996 269 928 000 4044 291 168 000 561 096 000

1652 15 671 282 078 000 3099 223 128 000 505 206 000

1666 30 000 540 000 000 7800 561 600 000 1 101 600 000

Nota: estimado pelo menor valor.


Fonte: Santo 2008: 49-50; Freiras 2007: 348-349.

Na verdade, os anos de 1650 foram de impasse, pois nenhum dos lados da contenda
optou por uma tática ofensiva. O estacionamento das tropas pôs os soldados
ocupados na reparação das fortificações, além de algumas movimentações
esporádicas de saque, as chamadas entradas, de pequeno alcance militar, prática, de
resto, seguida por qualquer dos lados. O desgaste lento de recursos locais foi um
dos aspetos desta guerra. Mas o tratado de paz entre a Espanha e a França (1659)

A RESTAURAÇÃO, 1621-1703 - 9
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

colocou o perigo castelhano num novo patamar. A fase final da Guerra da


Restauração assumiu uma violência desconhecida até então, o que se espelha na
necessidade de reforçar o recrutamento. Os custos mínimos defensivos terão
disparado para valores muito acima do que a fiscalidade sancionada em Cortes
cobriria, problema agravado com os efeitos indiretos de uma mais ampla
mobilização.
Uma aferição dos impactos da mobilização de homens na demografia está
constrangida pela falta de recenseamentos populacionais de validade indiscutível
para os anos de 1640-1660. É preferível, aqui, tomar os recenseamentos de 1527-
1532 e os dados da Corografia de 1703 para um balanço. Sendo agora indiferente a
repartição entre cavalaria e infantaria, o total acima considerado, respeitante a
soldados mobilizados, sugere que os contingentes teriam uma expressão pouco
significativa no conjunto da população (Quadro n.° 19). Por seu lado, os métodos de
recrutamento autorizaram o pagamento da desobrigação. Privilégios e isenções
sociais confinaram o recrutamento a todos aqueles que não se encontravam
escudados por mecanismos sociais de proteção, próprios de uma sociedade que
rejeitava a igualdade como valor. Houve, no entanto, na poupança das casas de
lavradores com filhos únicos o entendimento de que o recrutamento era grande
inimigo da agricultura, como se evocava na documentação coeva.
QUADRO N.° 19
Efetivos portugueses mobilizados (1643-1666)

Efectivos Efectivos em % pop. - Efectivos em % da pop.


1527 - 1700
1643 19 040 1,5% 0,8%

1666 37 800 3,1% 1,7%

Fonte: Rodrigues 2009: 177.

A mobilização, não pugnando pela equidade, não deixava de alocar parte da


população a uma função militar, improdutiva. Por isso, uma outra perspetiva dos
custos da autonomia terá de observar os custos de oportunidade do recrutamento,
pelo facto de 2% a 2,8% da população ativa pegarem em armas. Antes de mais,
haveria uma quebra no rendimento do reino correspondente a estes salários. O
salário nominal de um trabalhador agrícola tendia a igualar o do trabalho não
qualificado nos centros urbanos, rondando os 100 réis por dia. Um ano de trabalho
oscilaria entre 270 e 250 dias. Àqueles contingentes corresponderia, em 1643, uma
redução de 514 milhões de réis e, em 1666, uma redução de 1026 milhões de réis.
Assim sendo, o Estado não só pagava os soldos como a guerra, tirando braços à
lavoura, reduzia a base de execução fiscal.
A afetação do trabalho terá sofrido enviesamentos ao longo do conflito. Mas as
implicações da guerra afiguram-se mais gravosas em outros planos da vida

A RESTAURAÇÃO, 1621-1703 - 10
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

económica, nomeadamente no comportamento das rendas agrícolas e na perda


de capitais no mar.
A instabilidade dos preços dos cereais, mercê de colheitas muito irregulares, não era
pecha exclusiva do estado de guerra. O conflito, todavia, não ajudou a introduzir
melhorias na produção, sobretudo na fase em que os exércitos de Filipe IV avançaram
pelo território português. A conjuntura de incerteza colocou o mercado de
arrendamento da terra numa situação crítica. Vários indicadores de risco para o
senhorio devem ser elencados, como seja, a constante renovação dos arrendamentos,
por fuga dos rendeiros às suas obrigações contratuais. Contudo, o principal fator de
risco residia nas próprias contingências da exploração agrícola, que constrangia os
exploradores diretos a pagarem a renda contratada em anos de más colheitas ou
danos nas propriedades. A previsibilidade destas situações inspirou o articulado dos
contratos, havendo lugar a especificar, ou não, direitos do rendeiro a uma quita ou
encampação, isto é, ao reconhecimento de parte ou da totalidade da renda como
incobrável, sem lugar a juros. Donde, neste mercado, problemas na seleção de
rendeiros bons pagadores e a frequência das quitas, diferença mais ou menos ampla
entre a renda nominal (contratada) e a renda efetiva (cobrável), eram riscos
suportados pelo senhorio, o contribuinte, e constituem um indicador do grau de
perturbação introduzido pela guerra. Em última instância, também a este nível, a
irregularidade do rendimento do senhorio refletir-se-ia na base de execução da
décima.
Com efeito, quer pelo comportamento das rendas, dado o número de quitas, quer
pela renovação dos rendeiros, confirma-se que os anos de 1640 e de 1660, com uma
redução de risco na década de 1650, também ela correspondente a uma fase de
relativo impasse na guerra, foram traumáticos para a agricultura, tomando a região
do arcebispado de Évora como bom exemplo. Para este desempenho do sector
concorreram as razias ou as más colheitas, ou ambos os fatores em conjunto,
agravando a diferença entre rendas nominais e rendas efetivas.
O reino tinha ainda uma fração do seu rendimento, cuja ponderação é difícil de
apurar, dependente do mar e das relações com o império. No mar, o perigo não
provinha de Castela, antes das Províncias Unidas, adversários herdados do tempo
da União Dinástica. Como se viu, as comunicações entre Portugal e o Brasil
sujeitaram-se à ameaça holandesa, com a ocupação da sede do governo-geral da
colónia do Brasil, a Bahia de Todos-os-Santos (1624-1625), pela Companhia das
Índias Ocidentais holandesa, que pouco depois conquistou as chamadas capitanias
nordestinas de Pernambuco, Paraíba e Itamaracá, nos primeiros anos da década de
1630.
Em termos diplomáticos, a Restauração deu um diferente enquadramento à presença
holandesa no Brasil. Disso se ocupou a diplomacia de D. João IV, que tratou da
imediata assinatura de tréguas. Entre a proposta de tratado e a ratificação por
A RESTAURAÇÃO, 1621-1703 - 11
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

ambas as partes, a Companhia das Índias Ocidentais avançou sobre as praças


portuguesas de escravos na costa africana, ocupando Luanda, e ampliou a sua
presença no Brasil, com as incorporações de Sergipe (até ao Rio Real) e de São Luís
do Maranhão.
A causa portuguesa, direcionada a recuperar os territórios coloniais perdidos, não
teve fácil negociação em Haia. A iniciativa encetou-se com uma proposta de compra
do Nordeste brasileiro ocupado pela companhia holandesa. Comportou diferentes
modalidades, entre as quais a aquisição das ações da companhia. Por parte dos Países
Baixos, a transação não continha grandes motivos de aceitação, ainda menos quando
os preços do açúcar nas praças europeias subiram a partir de 1644. O desenrolar dos
acontecimentos foi dando maior consistência à proposta que punha em cima da mesa
o pagamento de 800 milhões de réis, a ser suportado por um imposto sobre a
produção de açúcar ao longo de várias décadas. Entretanto, o impasse das
negociações dera azo a que estalasse a rebelião dos colonos portugueses de
Pernambuco, que se ofereceram em junho de 1645 como «fiéis vassalos do rei de
Portugal» para resgatar pelas armas as regiões ocupadas pelos holandeses. Estava
declarada a guerra na colónia. As tensões entre ambos os Estados sentiram-se nas
frotas em circulação no Atlântico Sul, com a ação implacável do corso holandês. Esta
nova frente colonial delapidava capitais em circulação entre Portugal e o
Brasil. Os sectores ligados ao mar e às trocas expunham-se à captura das cargas
pelos corsários. Uma vez atacados, entregavam os efetivos náuticos saqueados,
porque, na generalidade, eram pior armados e a mais das vezes eram compostos por
pequenas caravelas.
O corso estava para a economia marítima como as razias e entradas para a
agricultura: uma guerra económica, forma lenta de desgastar os recursos do
adversário. Mas, enquanto nas fronteiras, as entradas e as razias eram táticas
seguidas por ambos os lados, no caso da guerra no mar a marinha portuguesa
aparentava incapacidade, ou ausência de uma estratégia de retaliação, faltando
o interesse dos agentes pela armação de navios com capacidade de fogo, fosse para se
defenderem dos ataques, fosse para responderem com extorsão idêntica. Por seu
lado, o Estado não ofereceu de forma continuada uma defesa, que teria de vir com a
organização de frotas comboiadas, escoltadas com vasos de guerra.
Se o Estado poupava os escassos recursos financeiros para subsidiar a guerra no
território, os particulares não trataram de se autodefender. Os pratos da balança
desequilibraram-se para o lado holandês. Em 1648 o Conselho da Fazenda avaliou os
danos, apercebendo-se do problema através da fiscalidade, não tanto por se antever
que a perda de capitais reduzia o rendimento coletável, mas sobretudo pela imediata
diminuição das receitas aduaneiras. Cada navio perdido representava carga de
elevado valor que deixava de ser tributada nas alfândegas do reino. O Conselho da
Fazenda interessou-se pela informação que o mundo dos seguros poderia fornecer e
A RESTAURAÇÃO, 1621-1703 - 12
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

soube, por consulta dos livros dos respetivos corretores, que nos anos de 1647 e
1648 a frota em trânsito no Atlântico brasileiro tocava as 259 embarcações, das quais
se haviam perdido 35 em 1647 e 73 em 1648, totalizando 108 baixas. Pelo número de
baixas depreende-se que o ano de 1647 comportou uma perda de 30% dos capitais
em circulação, e o ano seguinte, 51%.
Uma parte destes montantes estava coberta por créditos cujas regras obedeciam à
lógica de uma aposta, o que sancionava taxas de juro aparentemente exorbitantes
mas que escondiam, quer custos de oportunidade do credor, aferidos pelo prémio de
arbitragem das mercadorias em circulação, quer o prémio de um seguro. Trata-se do
que era conhecido por créditos a risco, ou empréstimos de grossa aventura, e que
pressupunham que o emprestador apenas receberia o capital e o juro se a aventura
marítima tivesse um desfecho feliz. Caso contrário, o devedor ficava ilibado de
o --------- ———.. .................... .......... .......... ............... ....................

qualquer encargo da dívida. Ora, em tempo de guerra, este jogo generalizou-se, ao


1613 1618 1623 1628 1633

... © Pernambuco —♦—Bahia


1638 1643

A Rio de Janeiro
1648 1653 1658

mesmo tempo que as taxas de juro disparavam, levando a um aumento do frete. O


interesse por este negócio, apesar do aumento da probabilidade de o credor perder,
não parece ter esmorecido (cf. Gráfico n.° 6), Significa, portanto, que o emprestador
encontrou formas de dispersar o risco e de retirar dividendos de um juro elevado.
GRÁFICO N.° 6
Taxas de juro do crédito a risco nas viagens de ida e volta (1613-1658)

1613 1618 1623


o --------- ———
1628 1633 1638 1643 1648 1653 1658

© Pernambuco —♦—Bahia A Rio de Janeiro

Fonte: Costa 2002b.

Os anos da Restauração apanharam o juro em torno dos 100%. Mesmo depois de


recuperado Pernambuco aos holandeses, em 1654, a taxa só cedeu
momentaneamente, demonstrando que não era apenas a estimativa da probabilidade
de perdas que interferia nos juros destes créditos. Donde, o que há para desvendar é
o modo como o emprestador protegia o capital emprestado e esperar que os prémios
de seguro correntes na praça de Lisboa ou Amsterdão digam o risco incorrido neste
sector.
A cobertura de capitais por seguros era prática conhecida, e não raro oferecida nas
cidades europeias, incluindo por aquelas que mais ajudavam a elevar o risco no mar,
como Amsterdão ou Midleburgo, por exemplo. O Conselho da Fazenda, desde 1625,
denunciou essa prática que tornava os adversários seguradores dos capitais

A RESTAURAÇÃO, 1621-1703 - 13
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

saqueados. A guerra endémica numa Europa em transformação alimentava negócios


especulativos, embora o seguro de créditos a risco marítimo não estivesse isento de
reprovação pela tratadística do século XVI, pois retirava-lhe o carácter de aposta e
estigmatizava o juro com o pecado da usura. Pese embora essa restrição de ordem
ético-religiosa, documentação de 1649 refere que os seguros de capitais em
circulação no mar tinham prémios de 15%. Esta é a melhor pista para uma aferição
de quanto o conflito na colónia brasileira contra os Países Baixos afetou a economia
portuguesa. Uma taxa de risco sem dúvida superior à que foi estimada no sector
agrícola.
Se o sector marítimo esteve debaixo de um risco elevado, não coube ao Estado
prover-lhe proteção, não havendo notícia de transferências de verbas arrecadadas na
décima para montar qualquer estrutura defensiva no mar. Ademais,
comparativamente à manutenção dos exércitos, a guerra no mar era tão intensiva no
uso de capitais quanto o era o próprio negócio. Considerou-se na época que a oferta
de uma escolta, obrigando os navios particulares a navegar em comboio, teria de
compreender 18 navios de armada, cuja operação obrigaria a uma despesa de cerca
de 286 milhões de réis por ano.
A dimensão da despesa justificou que fosse adiada a solução para mitigar os
problemas no sector marítimo, deixando os negócios encontrarem os seus
próprios meios de proteção. Todavia, a prazo esta estratégia teve repercussões nas
receitas das alfândegas. Como tal, a perda de metade da frota em 1648 forçou a
diplomacia portuguesa a rever a negociação morosa com os Países Baixos. Aceitou-se
que a única saída seria Portugal desistir de Pernambuco, sendo nessa base que se
elaborou um esboço de tratado de paz, chegado a Lisboa pela mão do padre António
Vieira, que havia sido enviado como comissário extraordinário a Haia para coadjuvar
o embaixador Sousa Coutinho na elaboração desta paz. Porém, os termos dessa paz
escandalizaram o reino.
A solução pacífica não poderia agradar aos grupos que mais rendimentos auferiam
com a especulação dos créditos a risco, por sinal, os mesmos que abonavam os
contratos com o Estado para suprir as despesas da guerra no território. A rejeição
das condições da paz ajudou este corpo de financeiros a decidir-se por assinar um
contrato com o Estado pelo qual se comprometia a organizar a defesa das frotas
do Brasil, mediante a concessão do monopólio das principais cargas exportadas para
a colónia (azeite, vinho, farinha de trigo e bacalhau), para além de direitos de
cobrança de uma taxa sobre cargas e fretes. Assim se fundou a Companhia Geral do
Comércio do Brasil, por alvará de 11 de março de 1649. E desta decisão emergiu um
regime de comunicações por frotas escoltadas que, se protegia os capitais, introduzia
uma lentidão na rotação dos mesmos, inédita nestas rotas. O tempo das

A RESTAURAÇÃO, 1621-1703 - 14
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

comunicações e o seu ritmo anual sincopado mantiveram imperfeita a integração dos


mercados metropolitano e brasileiro, sustentando um prémio elevado na arbitragem
das mercadorias. Ao abdicar do monopólio da defesa, o Estado devolveu uma
relativa prosperidade ao sector marítimo, e não admira que o açúcar fosse a única
mercadoria a reforçar as receitas cabimentadas às despesas da guerra.
O sistema de frotas no Atlântico perdurou até ao consulado pombalino, mesmo
depois de ter sido extinta a Companhia Geral do Comércio do Brasil em 1663.
Vinda a paz, concretizou-se a estatização das estruturas defensivas, extinguiu-se
o monopólio e transferiu-se os custos da escolta e cobrança das taxas para uma
Junta do Comércio, equiparada na sua dignidade a um conselho régio, a não
confundir com a junta do mesmo nome instituída no período pombalino. As
consequências no sistema portuário deste novo regime de comunicações foram
apercebidas logo na década de 1650. Porque coube a Lisboa centralizar a organização
das comunicações, haveria vantagens em abrir casas ou agências de negócio na
capital, porto de transbordo de mercadorias coloniais. Lisboa adquiriu, por isso,
uma centralidade nas relações coloniais atlânticas que não conhecera no
século XVI.
Os diferentes embates da guerra na economia questionaram a eficácia do imposto
sobre o rendimento. Houve que proceder a uma reavaliação das fontes de
receita. Após uma década de autonomia política, repuseram-se algumas das
iniciativas filipinas sem agitação de maior. Em 1652, um relatório da Junta dos Três
Estados explicitava que a quantia de 860 milhões de réis havia sido preenchida em
81% pela décima, que assim se determinara dever atingir 680 milhões de réis, e os
restantes valores haviam sido obtidos com os chamados «novos direitos». Na
verdade, reintroduziu-se o imposto do real-d’água, e instituiu-se um imposto de
chancelaria, assim designada uma taxa sobre o provimento em cargos públicos, além
de uma taxa sobre o açúcar importado do Brasil. De entre outros efeitos financeiros,
cabe sublinhar os contributos da Casa de Bragança, cujo património não fora
incorporado na Casa Real, permanecendo uma Casa ducal autónoma a ser gerida pelo
príncipe herdeiro.
Apesar destes expedientes para colmatar os défices sistemáticos, a documentação
disponível sobre o grau de execução da décima narra uma história de sucesso
relativo, apenas desafiado pelos corpos sociais com maior poder de resistência à
contribuição. As coletas da Junta dos Três Estados podiam registar flutuações
significativas, ano a ano, sobretudo na década de 1640, e bem se demonstra que o
produto agrícola afetou de sobremaneira esta contribuição, pois 1652 foi marcado
por más colheitas, repercutindo-se numa taxa de execução muito baixa, de 47%.
Mercê desta estrutura administrativa, o grau de execução do imposto esteve entre os

A RESTAURAÇÃO, 1621-1703 - 15
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

72% e os 81% (cf. Quadro n.° 20).


QUADRO N.° 20
Execução da décima em réis (1650-1653)
Anos Total estimado Total arrecadado Taxa de execução
1650 628 229 000 502 687 000 80%
1651 632 707 000 454 703 000 72%
1652 635 890 000 296 626 000 47%
1653 642 211 000 523 324 000 81%

Fonte: Hespanha 2004: 182.

A arrumação dos montantes coletados por grandes categorias de contribuintes


sugere que o estatuto social não foi indiferente para a adesão ou resistência à
tributação. As maiores diferenças entre o lançamento e a receita efetiva
encontraram-se na Igreja, já que, segundo a taxonomia das fontes disponíveis, a
quebra nas categorias «eclesiásticos», «religiões» e «mitras» dos bispados se situou
entre um mínimo de 58% e um máximo de 74%. Recorde-se que as primeiras
estimativas do potencial do novo imposto recorreram a cadastros dos dizimeiros da
Igreja, razão da aproximação dos valores ventilados nas Cortes de 1641 ao que seria
o rendimento do braço eclesiástico, então presumido em 640 milhões de réis. Donde,
a melhor informação disponível sobre rendimento agrícola coletável encontrar-se-ia
na posse da Igreja. A baixa eficácia da cobrança entre este corpo social não se deveria
tanto a problemas na avaliação dos rendimentos. Ergue-se a hipótese de que a
décima foi sensível à capacidade de resistência dos grupos usualmente imunes à
fiscalidade régia. Com efeito, as ordens militares também tiveram quebras elevadas,
na ordem dos 52%. Em contraste, o cumprimento geral destaca-se no conjunto das
comarcas do reino, coletado em 87%. Quanto aos chamados «novos direitos», não
incidentes no rendimento, mas sim no açúcar, chancelaria e real-d’água, as quebras
foram nulas.
Tomadas as categorias tributárias como expressão de forças centrípetas
relativamente a um processo de construção do Estado, julga-se que o contributo
financeiro dos grupos nobiliárquicos e eclesiásticos para a sustentação da
autonomia ficou, em proporção, pelo menos considerando as avaliações
oficiais, aquém das contribuições dos restantes corpos sociais. Mas, de um modo
geral, os vários estratos sociais pactuaram com a causa aclamadora. Os grandes do
reino, a nobreza titulada, contribuíram com serviços nos postos de comando dos
exércitos, nos lugares de decisão política, e nas embaixadas. Em alguns casos, como o
do marquês de Nisa, embaixador em Paris durante a década de 1640, gastaram da
sua própria fazenda, e este não foi seguramente caso único, pois a posse de fortuna
foi razão para a escolha de embaixadores. A Igreja participou ativamente na obra de
propaganda, nos púlpitos e na encomenda de retábulos decorativos que fizeram do
barroco português uma particular expressão plástica de um sentimento
protonacionalista.
A RESTAURAÇÃO, 1621-1703 - 16
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

Se a malha administrativa local, inscrita nas comarcas do reino, constituiu um bom


suporte para a execução do imposto, nem por isso as despesas deixaram de
ultrapassar as receitas. A diferença entre os lançamentos e os impactos locais do
conflito potenciou uma cadeia de créditos com repercussões na distribuição social
dos rendimentos e no endividamento público.
Uma observação comparada entre os gastos mínimos e as potencialidades fiscais da
economia esclarece quão deficitários terão sido os orçamentos, logo em 1643. Para
uma despesa em soldos na ordem dos 561 milhões de réis, como acima se estimou,
estava a décima a ser arrecadada no limiar dos 440 milhões de réis. A transferência
de verbas para os governos de armas ficava muito aquém da própria quebra de
receita da décima, uma vez que as mesadas previstas para cada uma das províncias
sustentariam no máximo 73,9% dos efetivos de infantaria, como acontecia para Trás-
os-Montes. No Alentejo, então, os gastos com a cavalaria não seriam cobertos em
mais de 63,6%, mercê da remissão de mesadas muito abaixo das despesas.
À escassez de meios, o Estado respondeu de diferentes modos. Uma das vias, de
curto prazo, foi simplesmente não pagar os soldos, ou prover os governos de armas
correspondentes a cada província com escassas e irregulares quantias. Os relatórios
dos governadores eram pródigos no relato das consequências de uma soldadesca mal
paga e desmotivada. As deserções eram a regra, e o endividamento a vizinhos das
localidades próximas dos presídios tornaram-se norma. Os soldados adquiriam a
fiado o sustento e o calçado, enredando numa cadeia creditícia várias camadas das
populações.
Ao mais alto nível, os défices orçamentais justificaram o endividamento da fazenda
pública a grandes credores, indivíduos que arrematavam a concessão de créditos
de curto prazo, cujo pagamento, do principal e juro, era consignado a
determinadas receitas fiscais. Estes contratos eram designados como assentos,
seguindo-se a tradição dos Habsburgo. Um balanço de contas de 1652 explicita que
os dez primeiros anos de guerra haviam forçado a Coroa a dois contratos, ou
assentos, indicando que o credor tinha por trás um sindicato de investidores.
Ascendeu o negócio a 533 milhões de réis a juro de 2,5%. O segundo contrato, no
valor de 200 milhões de réis, foi arrematado a um dos mais reputados homens de
negócio, sem mácula de cristão-novo, e destinava-se a prover o pão de munição.
Muitas vezes, o que ficava consignado ao pagamento do principal do contrato era
insuficiente, pelo que o pagamento de juros era certo. Este tipo de contratos
tornou-se rotina no Conselho da Fazenda como forma de garantir o provimento
dos exércitos e as despesas de representação. Entraram na gíria administrativa os
chamados «assentos de fronteira» e das «embaixadas».
Uma avaliação sumária dos montantes comprometidos nos diferentes assentos
esclarece que estes credores, sempre homens de negócio, controlaram transações
com o Estado que ultrapassaram os 4000 milhões de réis, qualquer coisa como

A RESTAURAÇÃO, 1621-1703 - 17
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

quatro vezes o orçamento anual do mesmo. Contudo, o seu papel na intermediação


da dívida pública não deixou de envolver outros grupos sociais. A liquidez de que
dispunham nem sempre se baseava em capital próprio, gerindo fundos obtidos por
empréstimo a membros da aristocracia. Ao satisfazer a preferência destes estratos
nobiliárquicos por formas de rendimento rentista, estes credores chamaram outras
elites económicas a pactuar com a causa aclamadora, pois ao sucesso dessa causa
haveria de subordinar-se o futuro reembolso ou a perpetuação da renda. Nesse
sentido, a dívida pública foi um mecanismo para o pacto das elites sociais no
destino vitorioso da guerra de autonomia.
Não é possível avaliar os totais da dívida a partir da emissão de padrões de juro.
Todavia, sabemos que as despesas com os juros subiram de 179,5 milhões de réis em
1641 para 227 milhões em 1688.
Este passivo financeiro constrangeu os povos a acordar a perpetuação da cobrança
da décima nas Cortes de 1668, em parte para resolver uma dívida de 50 milhões de
réis recentemente contraída, a outra parte para garantir a manutenção dos presídios
militares, no intuito de se arrecadar uma receita anual de 200 milhões de réis. A
repartição do lançamento da décima, mesmo finda a guerra, esboça um retrato da
distribuição regional dos seus encargos, pois mais relevante que os valores absolutos
é a estrutura dessa repartição (cf. Quadro n.° 21).

QUADRO N.° 21
Repartição da décima por províncias (1668)
Décima 1668 Décima (réis)/km2 População 1527 População 1700
Alentejo 22% 1367,4 17,3% 18,7%
Beira 25,2% 2101,0 23,9% 21,6%

Trás-os-Montes 4,5% 982,1 12,6% 9,6%


Douro-e-Minho 13,7% 3509,4 19,5% 23,4%
Estremadura 32,% 4949,4 23,2% 23,8%
Algarve 2,5% 955,0 3,5% 2,9%
Fontes: Biblioteca da Ajuda, 50-V-337, fls. 268-270; Hespanha 1994: 3-77; 99-101.

O cálculo dos valores da décima por área pretende associar a tributação fiscal a um
indicador grosseiro dos recursos disponíveis, como a área cultivada, por exemplo. A
Estremadura liderou a coleta, seguida da Beira, Alentejo, Entre-Douro-e-Minho e, por
fim, Trás-os-Montes e Algarve, sugerindo que entre as três regiões de maior
contribuição estavam as que mais sofreram a guerra no território (Beira e Alentejo).
Em termos de coleta por km2, as províncias mais agravadas foram a Estremadura,
novamente, mas agora seguida por Entre-Douro-e-Minho, enquanto o Alentejo, dada
a sua maior extensão, foi mais poupado. Finalmente, o Quadro n.° 22 compara a
estrutura do lançamento da coleta e a da distribuição da população, antes e depois da
guerra, datas extremas em que as fontes demográficas são as menos polémicas.
A RESTAURAÇÃO, 1621-1703 - 18
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

QUADRO N.° 22
Repartição da décima de 1668 por população
Distribuição da décima Distribuição da décima
Distribuição da Distribuição da
população (1527) população (1700)
Alentejo 1,3 1,1
Beira (*) 1 1,2
Trás-os-Montes 0,4 0,5
Douro-e-Minho 0,7 0,6

Estremadura 1,4 1,3


Algarve 0,7 0,8

(*) A comarca ou almoxarifado de Aveiro está incluída na Estremadura em 1527 e na Beira em


1700. Fonte: Quadros n.° 21 e n.° 25.

Qualquer dos censos populacionais e dos indicadores até agora observados leva à
conclusão de que a Estremadura foi a mais agravada das regiões, quer em
termos de área, quer em termos de capitação, apontando os elevados níveis de
concentração de rendimento e de recursos nesta província, onde se inscreve Lisboa.
Por analogia, o Alentejo seria, ainda no final da guerra, a segunda região do país
com maior potencial fiscal per capita, pese embora o facto de mais de 70% dos
contingentes mobilizados terem estacionado nesta região e de as grandes batalhas
decisivas terem tido lugar aqui. Donde, o Alentejo foi uma região duplamente
castigada nesta conjuntura, tanto porque suportou os efeitos da instabilidade dos
exércitos, como ainda lhe foi exigida uma carga fiscal superior a outras províncias
comparativamente mais poupadas. De resto, esta província revelou ao longo da
segunda metade do século XVII outras particularidades dignas de nota pelo
crescimento urbano que registou, constatação que requer uma análise centrada na
demografia do reino e no modo como a guerra questionou a evolução desta variável.
2. A recomposição demográfica
A guerra, se não foi causa única de saldos populacionais negativos, desenhou uma
conjuntura pouco favorável ao comportamento desta variável. Com efeito, a época da
aclamação inseriu-se num período de estagnação demográfica, problema que
ultrapassava as fronteiras de Portugal, sendo comum a outras regiões da bacia
mediterrânica, como Espanha e Itália. Globalmente, entre 1600 e 1650, a
população europeia perdeu cerca de 9% dos seus efetivos, perda só compensada
na segunda metade do mesmo século. Assim, importa frisar que no século XVII a
população europeia cresceu cerca de 5%, longe, portanto, dos 30% registados no
século anterior.
Houve, seguramente, uma interrupção do crescimento também em Portugal e
até à fase final da guerra de aclamação não houve condições para alterar este
quadro sombrio, embora as estimativas das baixas em combate sejam
necessariamente muito aproximadas. Ainda assim, a leitura da crónica do conde da
Ericeira oferece pistas a não descartar, já que nos seus minuciosos relatos de

A RESTAURAÇÃO, 1621-1703 - 19
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

batalhas e razias constam números sobre perdas humanas. Os vinte e oito anos de
conflito terão sacrificado um total de 19 217 vidas de soldados. Recorde-se que as
grandes batalhas concentraram-se na década de 1660, pelo que as baixas mais
significativas ocorreriam então. As informações respeitantes ao arcebispado de Évora
confirmam que os óbitos dispararam entre 1655 e 1665, acompanhando-se esta
elevada mortalidade de um número muito reduzido de batismos. A relação entre
estas duas variáveis define a crise mais profunda de todas as observadas entre
1590 e 1815.
Desconhece-se se o ponto mais baixo da série, atribuído ao tempo da Restauração,
representou um recuo para os níveis próximos dos de 1527-1532 (cerca de 1 200
000). Alguns autores admitem essa possibilidade. Testemunhos de depressões
cíclicas nos nascimentos em várias freguesias do Norte, Centro e Sul concorrem para
a verosimilhança dessa hipótese. Para o caso do Alentejo, contudo, projeções feitas
com base nas contagens de 1527 e de 1720 mostram ter sido pouco provável uma
quebra de longa duração dessa magnitude. Partindo de pressupostos semelhantes,
numa outra proposta de reconstrução de uma série não se colhe a ideia de uma
contração de efetivos, observados na longa duração, antes se aceita uma estagnação
nas décadas de 1620 a 1660. As dúvidas subsistem. Em todo o caso, as dificuldades
demográficas, apesar da guerra, não tiveram em Portugal a mesma amplitude
que se conhece para Castela, onde se verificou um fenómeno intenso de
despovoamento.
Em síntese, abrandamento até 1620 e estagnação de 1620 a 1660 encerram o
essencial do comportamento demográfico português durante o domínio
filipino e as guerras da Restauração. Todavia, entre 1660 e o fim do século, todas
as propostas admitem que a população voltou a crescer. Chega-se a avançar com a
estimativa de uma taxa de variação na ordem dos 0,43%. Assim sendo, o último
quartel de Seiscentos revela-se excecional no que toca à evolução da
demografia portuguesa (cf. Quadro n.° 23), já que as feições dessa recuperação são
apreciáveis no confronto com outros espaços europeus.
Entre 1650-1660 e 1700, a população portuguesa teve um crescimento só
comparável com o da Alemanha, região europeia que nesta segunda metade do
século XVII recuperava igualmente de um conflito. Esta evolução singular não se
compagina com o padrão mediterrânico, o qual, embora crescendo também, variou a
uma taxa inferior a Portugal.
As duas tendências demográficas que cindem o século XVII têm causalidades
múltiplas. Na estagnação ou recessão, os fatores não se restringiram aos efeitos da
guerra ou a crises agrárias, embora estas entrem na explicação dos picos de
sobremortalidade em economias de Antigo Regime, os quais, segundo Thomas
Malthus, correspondiam a choques negativos inevitáveis para a reposição do
equilíbrio entre recursos inelásticos e a população. Estudos regionais não descartam

A RESTAURAÇÃO, 1621-1703 - 20
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

a explicação malthusiana, mas descobrem outras implicações destes choques


sucessivos na redistribuição das unidades de exploração. Em anos de crise de
produção, as unidades de pequena e média dimensão eram as mais afetadas pelas
quebras, que conduziam ao endividamento e, no pior cenário, à expropriação da
terra.
QUADRO N.° 23
Crescimento da população europeia (1650-1700)
Taxas de
variação
Holanda 0,00%

Alemanha 0,45%
França 0,14%
Inglaterra -0,11%
Espanha 0,11%

Itália 0,33%
Portugal (1) 0,43%
Norte e Oeste 0,12%
Mediterrâneo
0,30%

(1) Segundo hipótese de Rodrigues 2009:177 Fonte: De Vries 1994b, 13.


As condições climáticas e surtos epidémicos, ou seja, fatores exógenos, que se
estavam a fazer sentir na bacia mediterrânica desde 1620, entram também na
explicação do comportamento demográfico. Difteria, gripe, varíola causaram subidas
bruscas da mortalidade, muitas vezes associadas a crises agrárias, é certo, em regiões
tão diversas como o Minho, Coimbra, Viseu e Évora. Ora, na segunda metade do
século XVII alterou-se a característica das crises de mortalidade. Mais
frequentes, menos breves no tempo, mas menos intensas no número de vítimas,
tiveram um menor impacto na demografia do que as chamadas pestes que assolaram
as regiões europeias entre os séculos XIV e XVI. Os anos de maior mortalidade que
pontuaram este quartel de século afetaram certamente a amplitude dos saldos
fisiológicos positivos (diferença entre taxas de natalidade e mortalidade), mas a sua
intensidade não foi suficiente para os contrariar na longa duração.
O crescimento do número de habitantes foi geral em todo o território, ainda que
com diferenças entre regiões. No Quadro n.° 24 verifica-se que Entre-Douro-e-
Minho e o Alentejo foram as províncias mais dinâmicas, alterando-se a sua
ponderação no conjunto da população.
A Beira, primeira em número de fogos no século XVI, perdeu essa posição para a
Estremadura e para o Entre-Douro-e-Minho, num lento caminho de litoralização
do povoamento das regiões a norte do Tejo, que continuará até aos dias de hoje. O
Algarve revela particularidades dignas de nota. Aqui, o crescimento da população
acompanhou-se de uma transformação estrutural da economia regional, em que o
sector primário respondeu à relativa esterilização da vida portuária. Até 1672 as
cidades perderam gente, em termos absolutos. E se o litoral participou do
A RESTAURAÇÃO, 1621-1703 - 21
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

movimento de recuperação depois dessa data, não foram as cidades que mais
contribuíram para a variação positiva dos valores da região.
QUADRO N.° 24
Distribuição da população por províncias (1527-1700)
Percentagem do n.° de fogos
1527 1700

Entre-Douro-e-Minho 19,5 23,4


Trás-os-Montes 12,6 9,6
Beira 23,9 21,6

Estremadura 23,2 23,8


Alentejo 17,3 18,7
Algarve 3,5 2,9

Fonte: Rodrigues 2009: 177-178.

Com efeito, o caso algarvio, se é uma boa ilustração de que a recomposição


demográfica do último quartel do século XVII não elevou a taxa de urbanização,
também mostra algumas das particularidades desta região. Em outras partes do
reino houve um aumento do número de habitantes nas grandes cidades (cf. Quadro
n.° 25).
QUADRO N.° 25
Taxas de urbanização (1527-1700)
População urbana em %
Províncias 3000-5000 hab. >10000 hab.

1527 1700 1527 1700


Entre-Douro-e-Minho 16 10,1 5,5 8,6
Trás-os-Montes 0 3 0 0
Beira 0 9,2 0 3,8

Estremadura 41 31,4 19,9 23,6


Alentejo 62,4 34,1 5,8 15,6
Algarve 64,3 41,4 0 0
Portugal 12,8 18,1 6,7 10,3

Fonte: Rodrigues 2009: 193.

Considerando o patamar dos 10 000 habitantes (acima de 2500 fogos) constata-se


que a taxa de urbanização atingiu 10,3% em 1700. Deste movimento participaram
o Alentejo, a Beira e Entre-Douro-e-Minho, mais do que a Estremadura, onde Lisboa,
com cerca de 150 000 habitantes, inibia a multiplicação de centros de grande
dimensão. O cotejo com outros espaços europeus matiza o alcance desta mudança na
configuração do povoamento. Portugal experimentou um crescimento
populacional entre 1650 e 1700 a uma taxa superior à das potências marítimas
do Noroeste Europeu. No entanto, na abertura do século XVIII tinha um grau de
urbanização inferior, sendo essa taxa nas Províncias Unidas e na Inglaterra,
respetivamente, 33,6% e 13,3%, espaços sujeitos a uma variação menos espetacular
que Portugal nos últimos 50 anos do século XVII. A observação comparada sugere

A RESTAURAÇÃO, 1621-1703 - 22
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

que em Portugal os grandes centros urbanos participaram menos do que naqueles


países europeus na alteração da configuração do povoamento. Vale, por isso, a nota
referente ao aparecimento de cidades acima dos 10 000 habitantes no Alentejo. Com
efeito, a urbanização em Portugal, nesse período, descreve-se melhor pela
verificação do adensamento da rede dos pequenos aglomerados, abaixo dos
3000 habitantes, ficando a imagem de que cidades de média dimensão tiveram
menor dinamismo. Donde, a evolução das atividades económicas, agricultura e
indústria, não terá facilitado a mobilidade do trabalho rural para os aglomerados de
média dimensão, enquanto as grandes cidades, acima dos 10 000 habitantes, só em
certas partes do país exerceram essa atração.
3. Agricultura: rendas e preços
Os valores relativos aos rendimentos fundiários servem de indicadores indiretos da
evolução da atividade agrícola e confirmam as conclusões extraídas da variável
demográfica até aqui analisada. A finalizar o século XVI, ainda era evidente uma
pressão da procura sobre a terra. As rendas mais elevadas registam-se nos
primeiros anos de Seiscentos. A situação mudaria por volta de 1620, segundo o
pulsar da economia das instituições eclesiásticas nortenhas, tal como no Centro e Sul
do país. Assim, as rendas da Misericórdia de Évora ou do cabido da Sé de Coimbra
começaram a baixar. Também os dízimos do cabido da Sé de Faro e relativos ao
Algarve Central seguiram o mesmo padrão entre 1618 e 1646. A tendência geral
parece ser recessiva. É necessário, todavia, ressalvar que, até meados do século
XVII, a dinâmica das rendas fundiárias das instituições referidas, e porventura de
outras, tanto comporta quebras, em amplificação das oscilações agudas de curto
prazo, como momentos de recuperação e crescimento durante as fases de bons
anos agrícolas sucessivos. Dito de outro modo, esta variável denota um nervosismo
de curto prazo, tal como os preços dos cereais, verificando-se, por exemplo, a partir
dos registos da Misericórdia de Évora, que maus anos agrícolas, com preços em alta,
suscitavam quebras nos valores das rendas e maior número de quitas.
Os mesmos estudos regionais que descrevem esta recessão comprovam uma
recomposição económica aproximadamente uma década depois da finalização
da Guerra da Restauração.
Numa avaliação da prestação da economia depois de 1668, o comportamento das
rendas emite sinais do pulsar do sector primário, embora as relações sociais
implícitas na exploração agrícola continuassem a ter conteúdos institucionais
heterogéneos. Em primeiro lugar, porque o rendimento se confundia com exações de
natureza senhorial ou dominial, segundo uma matriz jurídica que vinha de épocas
pretéritas, como foi exposto em capítulos anteriores, e que nem sempre eram
proporcionais à variação da base coletável. Donde, naquela parcela do rendimento
das instituições detentoras de direitos sobre o produto, no que dependia de
imposições fixas, escapavam-lhes os benefícios do dinamismo da economia, embora

A RESTAURAÇÃO, 1621-1703 - 23
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

para os pagadores isso pudesse significar uma maior ou menor carga tributária, em
função de uma variação negativa ou positiva do rendimento por hectare. Em segundo
lugar, na execução desses direitos assistiu-se à gradual intervenção de um segmento
social estranho à posse da terra, tendencialmente coincidente com a ocupação
mercantil. Uma formação social específica, que acompanhou a mercantilização do
produto agrícola, destacou uma «classe de rendeiros» intermediários na cobrança de
rendas senhoriais e eclesiásticas. Se a cobrança não era realizada de forma direta
pelos detentores dos direitos, os respetivos rendimentos seriam condicionados pela
margem de lucro destes intermediários. Duas variáveis relevantes, ambas
dependentes do mercado, intrometiam-se na evolução das rendas reais destes grupos
e instituições: os preços dos bens de que dependia a renda e a capacidade negocial
de qualquer das partes num contrato. Épocas de inflação dariam vantagem a quem
controlasse a informação do mercado, pelo que nessas circunstâncias os detentores
dos direitos poderiam perder mais do que os arrematantes da cobrança dos mesmos.
Por fim, há para apreciar as rendas derivadas da alocação do fator terra, as quais
tinham variações de curto prazo mas que, na longa duração, seguramente, servem
como indicador das expectativas dos rendeiros na obtenção de um rendimento com a
exploração do domínio útil da terra.
Além destas diferentes interpretações da evolução do rendimento da terra, não deve
ser descurada a interferência de uma outra variável, aleatória, decorrente da
abundância ou escassez de registos contabilísticos. A disponibilidade de registos
retrata a resistência da documentação às vicissitudes dos arquivos ou a deliberada
intenção de os preservar por parte de certas instituições, das quais, por sua vez,
pouco se sabe sobre a representatividade para a economia no seu conjunto. É difícil
sopesar a margem de erro de uma extrapolação de casos particulares para o geral.
Independentemente destes constrangimentos, o melhor indicador da evolução do
produto colhe-se nos registos das instituições que cuidaram de uma
organização documental das suas receitas e despesas. Entra nesse capítulo o caso
da Igreja e das misericórdias, o que à partida augura bons resultados para a análise
pretendida, pois o domínio sobre a terra repartia-se em Portugal pela Igreja, a
Coroa e a nobreza. Contudo, não era na proporcionalidade da repartição deste fator
produtivo crucial que residida o poder socioeconómico da Igreja, detentora de
apenas 15% do mesmo. Portanto, qualquer notícia respeitante às formas de
exploração e técnicas agrícolas reportadas em documentação eclesiástica reflete o
que sucedeu num microuniverso. Diferentemente, os direitos que assistiam à Igreja
na cobrança universal do dízimo consubstanciavam a sua importância no tecido
produtivo, concorrendo com o Estado numa forma de punção tributária que se
mostrou útil aos cálculos de um imposto público sobre o rendimento, como
aconteceu com a décima em 1641. Se no rendimento global do clero regular a parte
que coube ao dízimo teve expressão muito diversificada porque havia outras fontes
de receita controladas pelas instituições monásticas, em certas regiões do país o clero
secular dependeu em 100% desta imposição, a qual deu à Igreja um lugar superior ao
A RESTAURAÇÃO, 1621-1703 - 24
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

Estado na exação sobre o produto agrícola. Sendo o dízimo uma imposição


proporcional ao produto bruto, aceita-se que a variação deste tributo serve de
indicador adequado da evolução das atividades agrícolas.
Desta forma, trabalhos monográficos caracterizaram a evolução do sector primário
com base, quer nos direitos senhoriais da Igreja, quer no dízimo eclesiástico. Entre as
instituições melhor estudadas está a Ordem Beneditina que tem descrito a região de
Entre-Douro-e-Minho. Aqui, as rendas dos foros e pensões de trigo, ou cereais de
mistura - centeio e milhos -, exibiram um «surto dos ingressos», antes mesmo de
finalizar o conflito com a Espanha. De 1662 em diante, os aumentos foram garantidos,
com destaque para o período de 1674 a 1677, a partir do qual se define um patamar,
ou uma estabilização em alta, até ao final da centúria.
Na mesma província, e para a mesma ordem monástica, os arrendamentos dos
dízimos de um mosteiro localizado na margem sul do Douro, na região de Grijó,
desenham uma tendência que, sendo positiva, teve alguns anos críticos entre 1689 e
1694, durante os quais a renda deflacionada por um índice de preços regrediu para
níveis próximos da guerra da aclamação. Só no final de 1690 voltaram os valores a
ultrapassar os já observados em período crítico. Com esta imagem negativa destes
primeiros anos de 1690 contrasta a prosperidade de toda a década de 1680. Para
todos os efeitos, diferentes mosteiros beneditinos desta região acusam o aumento
do produto em 1670 e 1680, com alguns triénios em que a rentabilidade do trigo se
revelou extraordinária, como aconteceu no Mosteiro de Bustelo (1:7,3), Em Ganfei, os
foros em dinheiro, que haviam batido no fundo em 1638, computados em 62 289 réis,
ultrapassaram estes valores de forma sustentada a partir de 1665.
Só uma instituição em Guimarães destoa neste cenário do Entre--Douro-e-Minho. As
rendas nominais da respetiva colegiada subiram visivelmente mas, aqui, a progressão
nos valores dos contratos de arrendamento do dízimo fez-se a uma taxa inferior à
variação dos preços dos cereais, o que acusa uma depreciação da renda em termos
reais. Estes sinais dissonantes levam a prever problemas específicos desta
instituição. Suspeita-se da interferência dos rendeiros intermediários na erosão da
renda da colegiada, dada a ausência de paralelismo com institutos religiosos
regionalmente equivalentes.
Para a Beira interior, o bispado de Viseu fala dos resultados satisfatórios da
generalização do milho-maís. Os valores dos alqueires recolhidos, indexados a 1601,
indicam que o produto dos milhos e do trigo foi quase sempre superior ao verificado
no início da centúria, mesmo durante as guerras de aclamação. No entanto, por nessa
altura o cereal que mais entrava no produto agrícola era o centeio. A participação
maioritária do centeio perdeu-se a partir de 1680, quando o milho entrou como
cereal dominante na tulha do bispado, proporcionando uma recuperação do produto
para níveis superiores a um pico nos anos de 1605.

A RESTAURAÇÃO, 1621-1703 - 25
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

A superação dos tetos de produção do período da Guerra da Restauração foi


garantida a partir de 1680 e crê-se que a alteração de culturas, que vulgarizou a broa
de milho na alimentação da população mais pobre, contou para essa melhor
prestação. No entanto, havia diferenças mesmo entre regiões documentadas como
tendo experimentado a generalização deste cereal, que fontes coevas referem como
de elevado rendimento por área. Como se indicou em capítulo anterior, o maís foi
introduzido em Portugal ainda no século XVI, mas só na segunda metade do século
XVII se definiu a sua geografia no território, atravessando o Noroeste, o litoral da
Beira, estendendo-se a certas áreas do interior, como Guarda e Viseu. As
particularidades desta cultura afeiçoaram-se ao regadio e à pequena propriedade, em
complementaridade com o linho no Norte litoral de Portugal. Ainda assim, a renda de
certos institutos eclesiásticos, como a Colegiada de Guimarães, numa das principais
zonas de profusão de campos de milho, não se amolda à evolução positiva que
caracterizou a renda da mitra do bispado de Viseu, a qual também beneficiou da
difusão desta cultura.
O Alentejo, não sendo zona de milhos, vem no mesmo sentido do que se apurou para
a Beira interior e não ilude que o dinamismo populacional foi acompanhado por um
aumento do produto agrícola, decerto dependente de uma utilização extensiva de
fatores - terra e trabalho. As rendas das herdades da Misericórdia de Évora revelam
uma tendência altista entre 1670 e 1700. No final da centúria, a renda ultrapassou os
níveis de 1672. Só nos primeiros anos do século XVIII, com a participação de Portugal
na Guerra de Sucessão de Espanha, voltaram as quebras acentuadas. Não surgem
evidências de dificuldades no último quartel de Seiscentos, antes se vislumbra um
período em que a evolução geral das rendas admitiu «uma rápida recomposição» nas
décadas de 1680 e 1690.
Sinais de que a agricultura se tornava um negócio com atrativos para os
poderosos locais encontram-se nos registos das vereações de vilas e cidades
algarvias. Membros das elites revelaram empenho em tomar por aforamento
terrenos comuns e logradouros, o que gerou celeuma com os criadores de gado,
porque se retirava terras à pastagem. Na verdade, a cultura cerealífera exibiu uma
«grande recuperação» nos anos de 1660 e de 1670, em conformidade com a
evolução da economia de todo o Algarve, mas sem ganhos de produtividade
aparentes. Puseram-se em cultura novas terras, pelo que o crescimento do produto
cerealífero foi fundamentalmente extensivo. E competia com a criação de gado
bovino e caprino, tanto quanto com a vinha, opções alternativas que
consubstanciaram a diversificação do produto da região. De resto, aqui, as décadas de
1670 e 1680, já documentadas como de recomposição do produto noutras regiões do
país, foram de expansão dos vinhedos, igualmente à custa dos maninhos e
logradouros concelhios.
A justaposição dos quadros regionais permite concluir que houve condições
para uma recuperação, mais do que para uma expansão do produto para tetos
A RESTAURAÇÃO, 1621-1703 - 26
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

superiores aos do início de Seiscentos. Como os preços do reino mostram uma


tendência altista, é de presumir que este crescimento do produto respondeu a uma
pressão demográfica, indiciando um continuado desajustamento entre oferta e
procura (cf. Gráfico n.os 7 e 8). No entanto, se o crescimento do produto é uma
conclusão verosímil, atendendo aos saldos da população e à variação positiva das
rendas reais, a alta dos preços que acompanha esta recomposição económica
terá ainda uma explicação monetária.
GRÁFICO N.° 7
Preço de um cabaz de consumo em Lisboa (1621-1704)

Fonte: Reis 2008-2010.

GRÁFICO N.° 8
índice de preços no reino* (1621-1704)

* 1918=100 Fonte: Valério 1997.

Manipulações monetárias acompanharam esta fase de reconversão da economia da


Guerra da Restauração e alteraram o rácio ouro/prata, valorizando-se este último
metal em relação ao primeiro. A razão de 16,5:1, definida em 1668, foi fixada por lei
de 1688 em 15,5:1, numa tentativa régia para atrair a prata à Casa da Moeda. Ao
mesmo tempo, mantendo-se o valor intrínseco da moeda em circulação, foi o seu
valor facial desvalorizado em 20%: o marco de prata passou a valer 6000 réis. A
escassez de metal amoedável justificou as sucessivas desvalorizações do real entre
1640 e 1688, como adiante se dirá. Antes de 1640 um marco de prata valia 2800 réis.
A RESTAURAÇÃO, 1621-1703 - 27
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

Em 1643, sofrendo o real a sua primeira grande desvalorização, o marco de prata


ficou a 4000 réis. Em 1663, nova desvalorização colocou aquela relação em 5000 réis.
Por fim, em 1680, valia 5300 réis. No espaço de 40 anos houve uma depreciação
em quase 100% da unidade de conta. A escassez de prata, metal amoedável
controlado pelos circuitos do império castelhano, desafiou estas diferentes medidas
para prover numerário à economia.
Conforme os Gráficos n.° 7 e n.° 8 demonstram, a segunda metade da centúria foi
de subida de preços e a inflação terá interferido na distribuição do rendimento
entre fatores produtivos, penalizando mais o trabalho do que os detentores de
direitos sobre o produto agrícola, uma vez que as rendas reais subiram.
Do que é conhecido sobre salários rurais na região minhota, a sua estabilidade
reforça essa conclusão, face à subida dos preços. Os salários urbanos, de trabalho não
qualificado, tinham uma evolução semelhante ao trabalho agrícola, pelo que uma
extrapolação a partir desta variável recolhida em Lisboa esclarece que o rendimento
do trabalho depreciou-se ao longo do último quartel de Seiscentos (Gráfico n.°
9).
GRÁFICO N.° 9
Salários reais em Lisboa de trabalhadores não qualificados (1621-1704)

Fonte: Reis et al. 2008.

Esta evolução comporta elementos distintos do que se passava noutras partes da


Europa. Nas regiões ocidentais das Províncias Unidas, estudos recentes asseguram
que a queda dos níveis de vida foi acentuada somente até 1570. A partir daí, e até
1750, a estabilização do poder de compra dos salários acompanhou esta longa fase de
crescimento da economia holandesa. Mesmo em Castela, a tendência não é
claramente descendente. Havendo flutuações de curto prazo até 1714, em termos
gerais, os salários não sofreram uma redução significativa depois daquela que se
verificou ao longo do século XVI.
Sendo assim, em termos relativos, a queda dos salários reais que sucedia em
Portugal revelava uma penalização superior da remuneração do trabalho,
mercê das desvalorizações monetárias causadoras de inflação. É possível que
esta inflação desse vantagem a quem dominasse a informação do mercado. A
consolidação de grupos de rendeiros das rendas eclesiásticas insinua que tal
A RESTAURAÇÃO, 1621-1703 - 28
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

intermediação prometia dividendos, os quais, em certos casos, poderão ter


transferido este imposto encapotado na inflação para os detentores de direitos sobre
o produto.
Além das manipulações monetárias, as preocupações do Estado com a economia
incidiram noutros campos, nomeadamente no sector manufatureiro. Ora, a ação
governativa que incentivou o aumento do produto da indústria data dos finais da
década de 1670. Coincidiu, então, com indicadores positivos na evolução do
produto agrícola e das rendas reais, bem como com uma fase de recomposição
demográfica, apesar das balanças comerciais negativas. Compagina-se com as
manipulações monetárias e suas implicações nos preços, que afetaram a distribuição
social do rendimento pelos diferentes estratos sociais, favorecendo os detentores de
direitos sobre a terra e penalizando a população dependente de um salário. O mais
correto enquadramento do programa de fomento ao produto industrial, que emerge
nesta conjuntura com o conde da Ericeira, deverá sublinhar, não a ideia de uma crise
económica mas antes a perceção por parte dos poderes públicos de balanças
comerciais negativas que, de acordo com os princípios dominantes da
economia, política mercantilista, indiciavam perda de riqueza. No entanto pouco
consideravam que as balanças comerciais negativas poderiam ser um efeito colateral
das manipulações monetárias que se terão possivelmente repercutido nos termos de
troca. A substituição de importações emergiu como solução.
4. O fomento manufatureiro
Desde tempos medievais que certas unidades produtivas contaram com
capitais e administração régios. Os casos da Ribeira das Naus, das ferrarias, ou
da cordoaria em Lisboa deram um exemplo da expansão dessa ingerência pública
nas áreas de produção industrial, já no século XVI. A novidade do último quartel
do século XVII reside na prioridade atribuída aos bens de consumo final, não
maioritariamente de luxo, ainda que as sedas merecessem aturadas considerações
dos arbitristas e fossem igualmente incluídas num «programa» reformador, encetado
no último quartel de Seiscentos, atingindo as regiões de implantação de sericultura
em Trás-os-Montes e Entre-Douro-e-Minho.
A iniciativa que merece especial caracterização, pela importância das suas
consequências, dirigiu-se à promoção do fabrico de baetas e sarjas, variedades de
têxteis de lã, cuja procura no reino era maioritariamente satisfeita pela Inglaterra. O
arranque desta política informou-se nos «discursos» datados de 1675 do embaixador
português em Paris, Duarte Ribeiro de Macedo, pouco antes de regressar a Lisboa,
após uma estada de nove anos no reino de Luís XIV. Trata-se de um arbítrio (parecer
emitido fora dos espaços de decisão política) onde o embaixador divulgou o sucesso
da política económica ensaiada em diversos Estados europeus. O exemplo francês,
consubstanciado nas medidas económicas do ministro Colbert, foi incluído num seu
discurso intitulado «Sobre a introdução das artes em Portugal», querendo o vocábulo

A RESTAURAÇÃO, 1621-1703 - 29
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

«artes» designar atividades transformadoras, de onde deriva a ocupação «artífice» ou


«artesão». O dito arbítrio desenvolveu-se em resposta a uma missiva enviada pelo
seu interlocutor, o secretário de Estado Francisco Correia de Lacerda. Aí foi invocado
o estado «lastimoso» em que se encontrava o comércio do reino, com consequências
na drenagem de meios de pagamento monetários, problema a que toda a corte era
sensível, e que teve o apreço do conde da Ericeira, D. Luís de Meneses, vedor da
Fazenda. Se, por um lado, a contenção das importações se afigurava uma saída
necessária, convém ter presente que em simultâneo se atendeu ao Brasil como
espaço de acesso a fontes de prata castelhana, colmatando-se a escassez de metal
amoedável que havia justificado sucessivas desvalorizações do real.
Independentemente das soluções visionadas, o problema económico em debate
nos meios cortesãos prendia-se com a balança comercial do reino. A perceção de
défices sistemáticos sugere que a situação tinha níveis de gravidade inéditos na
história das relações económicas com o exterior. O modo de lhe dar resposta, no
entanto, não colhia unanimidade nos meios de decisão política, cindidos em duas
correntes de opinião, sumariadas por Ribeiro de Macedo no início do discurso. Para
os «políticos» (sic) a simples proibição da importação de mercadorias supérfluas (de
luxo), que satisfaziam o gasto sumptuário da nobreza, resolveria a questão. Mas na
ótica dos mercadores, os défices comerciais residiam nos desincentivos às
reexportações das «drogas do Brasil». Mercê dos elevados direitos cobrados nas
alfândegas portuguesas, perdiam competitividade em mercados terceiros, reduzindo
o potencial destas mercadorias para compensar as importações. A solução deveria
passar pelo desagravo das tarifas aduaneiras.
Ribeiro de Macedo entendia que qualquer das avaliações era válida, nem se
autoexcluíam, mas nenhuma atacava o mal pela raiz. A visão dos «políticos» era
redutora e pouco atentava no facto de muitos dos bens importados serem já
indispensáveis, isto é, não se descreverem em propriedade como bens de luxo. Pelos
costumes socialmente generalizados, lembrou que os panos finos, mas comuns, como
baetas, sarjas, panos e meias de seda e lã, tinham procura urbana alargada, sendo
essa a razão por que comprometiam o equilíbrio da balança comercial. Só em sarjas,
«os mantos das mulheres» gastavam a maior parte do que entrava no reino. Pelo
exemplo que lhe era próximo, em Paris, e pelo que soube ter-se procedido na Europa
(Inglaterra, Génova, Veneza e Holanda), Ribeiro de Macedo asseverava que quando o
consumo de um bem se vulgarizava, ao ponto de incrementar as importações, a ação
dos Estados intentava a introdução da respetiva «arte a todo o custo, e prémios a
quem melhor obrasse, proibindo a sua entrada com rigor». Na falta de matérias-
primas, havia que facilitar a sua importação, mas em caso de abundância das mesmas
a interdição de exportação era indispensável. Ora, o que sucedia com os têxteis de
lã em Portugal era emblemático dos problemas nacionais, pois a matéria-prima
abundante no reino, e que abastecia a Inglaterra, era depois importada sob a
forma de produto transformado que lhe acrescentava valor.

A RESTAURAÇÃO, 1621-1703 - 30
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

Na sua correspondência diplomática, Ribeiro de Macedo dera vários detalhes sobre


as políticas de fomento vulgares em outros Estados europeus. O fomento das artes,
por toda a Europa, consubstanciou-se em duas linhas de intervenção
conjugadas. Por um lado, numa política aduaneira, com elevação das tarifas
sobre bens substituíveis, ou interdição do consumo, que não é o mesmo que
interditar a sua importação ou baldeação nos portos nacionais. Por outro lado, na
concessão de prémios aos empresários que concretizavam os investimentos em
unidades de produção de bens substitutos das importações.
As linhas de intervenção pública na economia pouco pediam o financiamento ou a
ingerência direta do Estado na indústria. Donde, em Portugal, o conde da Ericeira,
que acolheu o arbítrio de Ribeiro de Macedo e o concretizou numa política de
incentivo à indústria, observou vários subsectores - sedas, vidros, ferrarias e têxteis
de lã - mas não pugnou pela multiplicação de estabelecimentos sob administração do
Estado. As respostas à política de promoção económica deveriam vir dos
capitais privados, que aguardavam a intervenção do Estado para a defesa de
exclusivos no mercado interno através de alvarás que davam a designação de «reais
fábricas» às unidades transformadoras criadas. O conceito explicitava o facto de
estas empresas decorrerem da iniciativa do Estado que, para captar capitais
privados, contratava com os investidores a fundação das unidades e apenas
garantia a remuneração com o privilégio do monopólio. Assistiu-se nesta
conjuntura ao aparecimento de manufaturas em todos os sectores acima
elencados. Contudo, no caso das ferrarias, só a de Figueiró dos Vinhos esteve sob
administração direta do Estado, fornecendo os arsenais e estaleiros de Lisboa em
complementaridade com outra ferraria, a fábrica do Prado de Tomar, contratada a
particulares, e cuja administração mostrava melhor eficiência.
Não foi a maior ou menor disponibilidade de meios de financiamento público o
que ditou o sucesso destas iniciativas empresariais, mas sim a capacidade do
tecido produtivo para gerar uma oferta capaz de responder à procura
anteriormente satisfeita pelas importações e o modo como foi executada a
proteção a estes sectores por tarifas aduaneiras. Tal como noutros exemplos
europeus, a contenção das importações originou a promulgação de leis
pragmáticas em Portugal. As leis assim designadas tinham uma tradição antiga,
medieva. Até ao reinado de D. João IV pautaram-se por uma regulamentação do
vestuário, como condição da preservação de sinais exteriores de pertença a
diferentes estatutos sociais, pensando-se que assim se refreava uma indesejada
mobilidade social ascendente, feita da «democratização» de certos trajes.
Confundem-se essas pragmáticas com medidas moralizadoras que enveredaram por
considerações sobre os perigos do luxo. No caso do reinado de D. João IV, um
discurso protonacionalista nas pragmáticas promulgadas associou luxo a costumes
castelhanos que interessava banir. Tinham, portanto, um carácter bem distinto
daquele que subjaz à legislação do final do século XVII, não já prioritariamente

A RESTAURAÇÃO, 1621-1703 - 31
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

orientada para garantir a diferenciação estatutária, mas antes para dar sustentação
a uma política económica.
A promulgação de pragmáticas cuidava da satisfação de um consumo exigente numa
certa relação preço-qualidade, o que implicou algumas tergiversações na legislação,
com promulgações depois revogadas, em casos particulares, quando se verificava a
incapacidade da indústria nacional para satisfazer a procura, como aconteceu com os
chapéus de castor. Esta específica atenção às características dos produtos e
respetivos mercados socialmente diferenciados tem relevância para compreender a
intervenção do Estado no desenvolvimento de certas indústrias que obrigaram à
adoção de técnicas estrangeiras. No que se referia à disponibilidade de fatores
produtivos e à relativa simplicidade dos processos de fabrico, Ribeiro de Macedo
entendia que os panos finos de lã, ditas sarjas e baetas, entravam no ramo das «artes
fáceis», em contraste com os brocados de seda e papel, sectores muito mais rigorosos
em termos técnicos. Apontava a adequação das medidas preconizadas à realidade
portuguesa, desde que direcionadas a retirar às baetas e sarjas inglesas a sua
supremacia no mercado português: sendo uma das principais causas da drenagem de
moeda, reportavam-se a técnicas mais fáceis de utilizar.
Como aconteceu mais tarde, no período pombalino, também a promoção de
manufaturas no final do século XVII tocou em atividades bem enraizadas em
certas áreas do território. Essa ação política não teve, por isso, a intenção de
«criar» indústria, mas sim reorganizá-la, ao menos em parte, segundo modelos
que pediam maior concentração de fatores produtivos, em manufatura, ou
segundo iniciativas protegidas por regime de monopólio. Não surpreende que os
têxteis fossem dos subsectores mais recetivos a este programa político. Eram uma
indústria muito disseminada, com forte inserção nos meios rurais. Desde o século
XVI, em virtude da expansão dos mercados urbanos e suprarregionais, unidades
domésticas, essencialmente vocacionadas para produzir para autoconsumo, foram
chamadas a participar num mercado regionalmente mais alargado, em virtude
de o capital mercantil intervir na organização da produção, como se viu em capítulo
anterior. O negociante-empresário pagava à tarefa e não raro fornecia as matérias-
primas a unidades rurais. O papel deste novo intermediário traduziu-se na
coordenação de várias microunidades transformadoras, espacialmente dispersas e
integradas no ciclo de produção agrícola.
A «deslocação» do capital mercantil, urbano, para os meios rurais tem como
explicação necessária, ainda que não suficiente, a disponibilidade do fator
trabalho. Além disso, descobre estratégias para escapar aos constrangimentos das
corporações oficinais urbanas, que impunham técnicas de fabrico e interferiam no
tabelamento de preços. Por seu lado, a recetividade dos agregados domésticos rurais
ao acréscimo de horas de esforço, isto é, a emergência de uma nova perspetiva da
utilização do tempo com trabalho à tarefa, prender-se-ia com expectativas de
obtenção de um rendimento complementar do que era proveniente do domínio útil
A RESTAURAÇÃO, 1621-1703 - 32
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

de terra. Desenhou-se assim um feixe de fatores favoráveis a uma lenta


transformação dos padrões de consumo e à maior inserção das unidades rurais na
economia de mercado, com consequências na redução da representatividade do
autoconsumo como regime dominante de afetação de recursos nas economias pré-
industriais. Note-se, no entanto, que a realocação do capital da indústria nos meios
rurais pode ter retroagido na configuração do povoamento, penalizando o
crescimento das cidades de média dimensão que polarizassem mercados regionais. O
fenómeno é generalizável a toda a Europa do século XVII e preparou, assim,
«distritos» industriais rurais que dão sentido ao conceito de protoindustrialização
vulgar na historiografia económica.
Independentemente de ser questionável a evolução «natural» destas regiões para
centros industriais modernos no século XIX, as virtudes interpretativas do conceito
radicam na deteção de uma geografia económica, pois, sendo o modo de produção
disperso por unidades domésticas, não deixou de debuxar manchas de distribuição,
tanto na Europa, como em Portugal. O conceito destaca, precisamente, configurações
socioeconómicas que relacionaram as matérias-primas usadas com as práticas de
exploração agrícola, em contextos de trabalho abundante e por isso subutilizado nos
campos. A transformação do linho encontrava-se nas zonas onde esta cultura melhor
descreveu o aproveitamento dos campos de regadio desde a Idade Média. Em
Portugal, o Minho apresentou-se como região por excelência da indústria de
linifícios, embora esta tivesse significativa expressão na Beira. Lamego e o seu termo
definiram-se como centros de protoindustrialização de linho tão precoces como o foi
o triângulo Vila do Conde-Guimarães-Barcelos. Mesmo Torre de Moncorvo, em Trás-
os-Montes, também região de sedas, mostrou o seu potencial como zona de produção
de lanifícios. Já na Beira interior, na serra da Estrela-Montejunto, e no Alentejo, a
transumância de gado ovino acomodou a tradição local de produção de panos de lã,
exigente em cursos de água. Sendo áreas bem servidas de olivais, o azeite entrou
como gordura utilizada na preparação da fibra.
Oferta de matérias-primas e dinâmicas demográficas, por toda a Europa, ajustaram-
se à difusão deste modo de produção industrial, conferindo ao mundo rural uma
especialização económica que extravasou as atividades estritas do sector primário,
condição talvez essencial para o aumento do rendimento familiar. Por isso, pode-se,
com verosimilhança, associar o programa fomentista do final da centúria em
Portugal a uma fase de saldos fisiológicos positivos da população e a sua
inscrição num contexto de recuperação económica do produto interno bruto.
Se foi reconhecido que o incremento da produção de baetas e sarjas era viável para
os recursos disponíveis no reino, não admira que viesse resposta das regiões onde a
transformação da lã era há muito desenvolvida em agregados domésticos. Três
negociantes de panos da Covilhã, de sangue cristão-novo, agarraram um contrato
com o Estado em 1677. O negócio comportava aspetos inovadores, não tanto ao nível
da organização da produção, antes ao nível técnico. Para arrancar, logo careceu da
A RESTAURAÇÃO, 1621-1703 - 33
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

importação de um capital intangível, incorporado no trabalho de artífices, peritos


ingleses que se esperava virem a instruir uma mão-de-obra afeiçoada à fibra em
questão. A intervenção do Estado neste fomento económico circunscreveu-se a três
aspetos, contudo fundamentais, ainda que com poucos encargos financeiros diretos:
oferta de meios para garantir o exclusivo dos contratadores (custos na observação do
contrato por ambas as partes); mobilização da rede da embaixada em Londres na
contratação de técnicos, estipulando o prémio através de salários mais elevados e
assegurando as respetivas despesas de deslocação e alojamento, durante o primeiro
mês em que decorreu o contrato; política aduaneira que implicou o incumprimento
do artigo secreto do tratado de paz entre Portugal e Inglaterra, assinado em 1654,
que dava aos panos ingleses uma tarifa preferencial na base de uma taxação de 23%,
medidas aduaneiras mais tarde reforçadas com a interdição do uso de panos
importados.
O que se conhece desta iniciativa pioneira foi relatado pelo juiz de fora da Covilhã,
Gonçalo da Cunha Vilas Boas, nomeado como superintendente deste
empreendimento, elo de ligação entre o Estado e os contratadores e a quem
poderiam ser assacadas responsabilidades se alguma circunstância questionasse o
resultado da política do vedor da Fazenda. Pelo relatório de Vilas Boas captam-se as
características técnicas e empresariais da iniciativa na Covilhã, a qual não teve em
vista, de imediato, a concentração de todas as fases de transformação num único
equipamento, fábrica ou manufatura. E mesmo a fiação continuou a contar com o
trabalho doméstico das mulheres da região, assim como a tinturaria envolveu de
início a utilização de um engenho independente, explorado por um irmão de um dos
contratadores.
Só depois de testes à qualidade dos primeiros carregamentos, chumbados por
alfaiates de Lisboa, e despachados para Castela, os empresários enveredaram por
outro caminho. Construíram um amplo edifício junto à ribeira que concentrava várias
fases de transformação, com casa de estambres, pisões, cardagem, e chamaram mais
técnicos para as fases de produção que impunham maior especialização e que mais
agravavam os custos de produção, como era a tinturaria. A fiação, contudo, parece ter
permanecido dependente do trabalho em unidades domésticas.
O investimento dos contratadores avolumou-se. Três anos após o início do contrato
contava 17 teares, pedindo cada um a intervenção de 23 pessoas. O complexo
manufatureiro envolvia, além do pessoal da fábrica, a distribuição, com loja em
Lisboa. Entre feitores (administradores) de cada fase de transformação e mão-de-
obra ocupada nos engenhos - prensas e pisões - empregavam-se mais 34 pessoas. Em
síntese, esta empresa, em 1680, teria gastos com salários e ordenados de 415
pessoas. A escala a que produzia e a qualidade dos seus tecidos animaram os
contratadores a diversificar o empreendimento a Manteigas e empurraram o Estado
a procurar novos empresários que replicassem a iniciativa em Estremoz para os

A RESTAURAÇÃO, 1621-1703 - 34
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

panos de lã. Este tipo de contratos passou também a ser aplicado no sector das sedas,
vidros e ferrarias.
Na guerra económica movida contra as manufaturas inglesas, tudo indicava que
a capacidade produtiva do reino responderia aos intentos do vedor da Fazenda, ainda
que a produção necessária para substituir integralmente as importações tivesse de
atingir as 6000 peças por ano, tal era o consumo de baetas e sarjas no reino. Cada
peça media 33 metros, pelo que o total do consumo ascendia a 198 000 metros,
muito inferior ao que se estima ser a produção dos linhos que, em números do século
XVIII, tocaria os 5,4 milhões de metros. No ano de 1680, os 17 teares da Covilhã
asseguravam uma produção à volta das 3000 peças. Bastaria duplicar o
investimento, o que já se adivinhava com os quatro teares instalados em Manteigas,
para que se concretizassem os intentos de satisfazer a procura interna com os
recursos do reino.
Pese embora a diferença da dimensão dos mercados do linho e lã, as inovações da
manufatura da Covilhã acusavam produtividades superiores nas baetas e sarjas. Cada
tear operado por 23 pessoas produzia quatro peças por semana (132 m), o que
coloca a produtividade do trabalho nos 5,7 m, enquanto nos linhos foi estimada em
4,2 m/tear/homem. Em Lisboa, os panos custavam de 21 000 a 22 000 réis, ao passo
que os ingleses se vendiam a 27 000 réis, incluídos os custos de transporte e tarifas
aduaneiras nos dois países. A margem seria apenas aumentada se fossem ignorados
os direitos preferenciais de 23% garantidos pelo artigo secreto do tratado de 1654, o
que terá acontecido, pelas tensões constantes entre a feitoria inglesa e os provedores
da alfândega de Lisboa. A interdição de uso, prescrita nas pragmáticas, não
significou, portanto, a interdição de importação. De resto, se a importação -
mesmo sem a cobertura de contrabando - tivesse estancado, não haveria como
explicar que nas vésperas da assinatura de novo tratado com a Inglaterra, em 1703,
11% das exportações inglesas de panos de lã fossem dirigidos a Portugal.
Por sua vez, a produção de cada peça na Covilhã orçava os 15 000 réis, não estando
incluídos os custos fixos da fábrica neste cômputo, porque neles entram apenas as
matérias-primas e o trabalho, e não as despesas com a administração. O diferencial
de 4500 réis por peça, entre produção e venda em Lisboa, sobrestima os lucros dos
empresários, os quais careceriam sempre de um regime de monopólio para assegurar
margens confortáveis. Por essa altura a iniciativa tinha uma sustentação frágil,
porque qualquer abertura à concorrência reduziria as margens de lucro e
obrigaria a ganhos de produtividade de difícil alcance, vistos os
constrangimentos técnicos requererem a importação de mão-de-obra especializada.
Assim, as margens com que operava a manufatura da Covilhã e de Manteigas
relativamente à concorrência inglesa nas cidades portuárias eram estreitas.
Num balanço dos resultados económicos desta política, ou da sua longevidade,
poder-se-iam adivinhar os efeitos de qualquer alteração nas tarifas aduaneiras

A RESTAURAÇÃO, 1621-1703 - 35
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

praticadas e que o eram no desrespeito do estipulado por tratados assinados nos


tempos da Guerra da Restauração. No entanto, as resistências locais, advindas de
outros interesses também envolvidos na indústria de panos de lã, mas excluídos do
monopólio, colidiram com a iniciativa dos três cristãos-novos contratadores de
baetas e sarjas. Em primeiro lugar, alegou-se que a escala da produção da manufatura
trazia a evicção do trabalho das fiandeiras, contrariedade que o superintendente
Vilas Boas procurou desmontar, fazendo crer que as fiandeiras eram suficientemente
numerosas para responder ao acréscimo da procura. A sua demonstração não colhe,
pois a promoção de um fabrico que ascendesse as 6000 peças, se não retirava
trabalho à fiação para outros panos, aumentaria os custos da tarefa. Em segundo
lugar, como em muitas ocasiões sucedeu, esses interesses, abalados pela alteração de
equilíbrios prévios, instrumentalizaram a Inquisição e, portanto, ainda antes da
Guerra da Sucessão de Espanha e de qualquer assinatura de tratados com a
Inglaterra, ações persecutórias enredaram mercadores de panos e artífices,
desestabilizando a produção de têxteis de lã na região. Por fim, o programa do
conde da Ericeira agredia a comunidade inglesa em Portugal, que se fez ouvir,
mas também dava argumentos a uma fação da corte que concebia o movimento
alfandegário como o nervo das finanças do Estado.
Uma avaliação dos custos e benefícios da política do conde da Ericeira foi sua
contemporânea, supondo-se que teceram uma trama cortesã que o levou ao suicídio.
Falam da resistência a uma política que não garantia a competitividade da
produção beirã nos mercados urbanos do litoral, prova da vulnerabilidade do
programa fomentista relativamente a qualquer mudança nas pautas aduaneiras que
aconteceria em 1703. Por outro lado, a evolução das receitas nas alfândegas
ressentia-se desta substituição de importações, enquanto os saldos da balança
comercial, continuando negativos, não mostravam com clareza os benefícios da
ação do vedor da Fazenda. Por isso, as relações com o exterior, se foram a causa
da política de Ericeira, também deram o mote para o seu descrédito, quando
em simultâneo decorria uma discreta expansão colonial para regiões
meridionais americanas, fornecedoras de prata.
5. Comércio e tratados
No último quartel do século XVII, enquanto se concretizava o programa fomentista,
um novo contexto internacional desafiava a função de Portugal como
entreposto europeu de produtos coloniais americanos. Os testemunhos coevos
referem-se à descida dos preços do açúcar e tabaco e à proteção aduaneira dos
mercados europeus, mercê da expansão destas culturas nas colónias dos Barbados,
Caraíbas e no Chesapeake, fundamentando a suspeita de que a drenagem de prata
para o exterior ocorreu com uma depreciação dos termos de troca portugueses.
Nestas circunstâncias, as exportações terão adquirido uma ponderação superior
face às reexportações, cujo domínio esmagador caracterizou o comércio externo no

A RESTAURAÇÃO, 1621-1703 - 36
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

século XVI e na primeira metade do XVII, oferecendo evidências de que a balança


comercial seria então positiva.
Um relatório datado de 11 de maio de 1685 orçava o défice da balança comercial
portuguesa em 782 milhões de réis, dada a diferença entre o valor das importações,
à volta de 2092 milhões de réis, e das exportações, na ordem dos 1310 milhões de
réis. As estimativas assentaram no movimento das alfândegas de Lisboa, Porto,
Setúbal, Viana do Castelo, Aveiro, Buarcos, Faro, Tavira, Portimão e Lagos, ou seja,
todos os portos de mar, não entrando os portos secos e que melhor retratariam as
ligações com Espanha. Para todos os efeitos, o tipo de mercadorias variava entre
estes portos. O tráfico por Lisboa era, seguramente, dos mais diversificados. O
nível de concentração das relações externas na capital, cidade da corte, expressa-se
no facto de 77% das importações (1570 milhões de réis) e 75% das exportações (969
milhões de réis) passarem pelo seu porto.
A decomposição deste tráfico por tipo de mercadorias certifica que as ligações ao
império continuavam a justificar uma boa parte das importações de bens
transformados. Se a produção nacional de panos teve saída no Brasil, a colónia
nunca dispensou os panos ingleses. Com efeito, relatórios de embaixadores em
Portugal na década de 1690 testemunham que as frotas seguiam carregadas de toda
a sorte de mercadorias, sendo metade delas preenchida pelas de origem inglesa.
A preponderância dos bens manufaturados entre as importações, a seu modo,
matiza a imagem de uma dependência de bens alimentares como justificativa de
saldos negativos da balança comercial, já que aquelas aquisições, com intuito de
sustentar as relações com o Brasil, contribuiriam muito mais para esse resultado.
Contudo, a desagregação dos valores por tipos de mercadorias não desmente que
outros bens alimentares diversificaram a estrutura do comércio externo, com o
pescado a ditar boa parte da dinâmica das relações económicas portuguesas com a
Inglaterra. Se é certo que os cereais quase atingiam os 50% dos bens alimentares
importados no reino, no conjunto, não ultrapassavam os 12% do movimento de um
porto como Lisboa. De resto, entre 1679 e 1684 entraram pela cidade 74 874 moios,
isto é, 619 956,72 hectolitros, dos quais 180 114,84 em trigo. Desconhece-se o
correspondente do valor destas cargas, em particular. Os números ajudam, no
entanto, a aferir a proporção em que o reino carecia de cereais importados, que
dão uma média anual de 36 022 hectolitros. Rondando a população os 2 milhões de
habitantes, e mantendo os 3 hectolitros como ração média anual per capita, a qual
orientou uma avaliação semelhante para o século XVI, verifica-se que por Lisboa,
porto que concentrava três quartos do tráfico externo, as quantidades entradas
satisfariam 0,5% das necessidades de consumo anual do país.
Valem estas considerações para colocar a hipótese de uma inferior
dependência frumentária no final de um século que, embora pautado por uma
crise nos primeiros quartéis, exibiu condições para a redução das importações

A RESTAURAÇÃO, 1621-1703 - 37
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

de cereais face ao que se estimou para o século XVI, tempo de maior dinamismo
demográfico.
Mais significativo se revelou, então, o aumento das importações de pescado.
Testemunhos do ano de 1689 avançaram com somas tão elevadas quanto 280
milhões de réis em bacalhau, que desde os meados da centúria ocupava a marinha
inglesa nas relações com Portugal. A tomar como verídica esta avaliação, cerca de
13% das importações estavam confinadas a este bem que, recorde-se, tinha ampla
saída no mercado brasileiro, tendo sido concedido à Companhia Geral do Comércio
do Brasil o monopólio da sua reexportação.
QUADRO N.° 26
Importações em Lisboa em 1685
Valor
em milhares %
de réis

Manufaturas 1251 79,7%


Bens alimentares 273
Cereais 187 11,9%
Laticínios 45 2,9%
Bacalhau e outro pescado 41,4 2,6%

Bens intermédios 46 2,9%


Total 1570 100%

Fonte: Rau 1954: 257.

Quanto às exportações, não é possível estimar com exatidão qual a parte das
reexportações de bens coloniais (açúcar e tabaco) relativamente a azeite e vinho que
perfaziam, no conjunto, 914 milhões de réis de tráfico liderado por Lisboa. Ora, em
1690 escoaram-se pela cidade 10 mil pipas de azeite e outras 5 mil pelo Porto, em
direção ao Norte da Europa. Quanto ao vinho, na mesma altura, para Inglaterra, já o
mercado do vinho nacional mais significativo, embarcaram apenas 1115 tonéis de
vinho (um tonel = duas pipas). Mais uma vez, constata-se que, entre os bens agrícolas
nacionais, o azeite preenchia uma fatia das exportações subestimada pela
historiografia, que se tem mantido atenta ao vinho, de certo a cultura com
incrementada representatividade nas exportações após 1703. Mas quer no século
XVI, quer ao longo de Seiscentos, a expansão dos olivais merece uma
reapreciação no entendimento da evolução da agricultura portuguesa e a sua
articulação com a abertura da economia ao exterior.
Além do vinho e do azeite, ainda pela capital saíram 27,5 milhões de réis em sal no
ano de 1685. Mas era Setúbal, e não Lisboa, o grande porto desta mercadoria. Entre
1680 e 1703 exportaram-se daqui, em média anual, 95 270 moios, sendo a moda do
preço 1500 réis o moio. Cerca de 143 milhões de réis de exportações anuais em sal de
Setúbal remetem a posição da capital para uma escala insignificante num fluxo
decisivo das relações externas nacionais, mas dizem também que entre os 1310
milhões de réis de total de exportações, Lisboa e Setúbal, em sal, contribuíram com

A RESTAURAÇÃO, 1621-1703 - 38
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

13%. Neste tráfico lideravam os holandeses, em muito devido às condições da


assinatura da paz em 1669 que resolveu, por fim, o problema da recuperação
portuguesa da região de Pernambuco.
Pelo Tratado de Haia de 1661, Portugal pagou uma indemnização de mil
milhões de réis, mediante a receita do imposto sobre a exportação do sal de Setúbal,
prevendo-se que o prazo de vinte anos fosse suficiente para perfazer a soma
estipulada, o que não sucedeu. Com efeito, na década de 1690, ainda o cônsul
holandês cobrava o imposto sobre o sal de Setúbal, num total de aproximadamente
270 milhões de réis. Não obstante o escoamento da mercadoria ter uma escala
inferior à prevista, protelando a resolução da dívida, que se haveria de revelar crucial
para os alinhamentos de Portugal na Guerra de Sucessão de Espanha, como adiante
se verá, o que merece ser agora relevado radica na escolha da mercadoria cuja
tributação e tráfico satisfaria o acordo diplomático de 1661. No ónus de uma
negociação diplomática sobre domínios no Brasil, a transferência do açúcar
para o sal descreve alterações na estrutura do comércio externo português, na
qual se inscreveu a maior preponderância de bens primários nacionais face à
perda de competitividade dos bens coloniais, perda a que não foi indiferente o
processo expansionista das potências atlânticas em territórios asiáticos e
americanos. Desta forma, se Portugal pagou a recuperação de territórios de
açúcar com o sal de Setúbal, os mercados terceiros onde a mercadoria brasileira
teria melhor acolhimento não seriam mais os que experimentavam maior
crescimento no final do século XVII. É presumível, pois, que associada a esta alteração
na estrutura das trocas externas esteja uma maior aproximação de Portugal a
praças mediterrânicas, geografia que as balanças comerciais do século XVIII
continuariam a exibir nas reexportações de açúcar.
A navegação que servia estes circuitos externos tinha pavilhão estrangeiro,
uma característica das relações económicas que se afirmaram durante a União
Dinástica e que a Restauração não alterou, antes acentuou, cativando ainda
mais a vinda de navios de bandeira inglesa, holandesa, francesa e hanseática.
De 1641 a 1688, havendo um hiato temporal na série entre 1649 e 1677, contam-se
1115 navios a passar pela barra do Tejo, reveladores da esmagadora intervenção de
marinhas do Norte Europeu ao serviço do comércio externo português (cf. Quadro n.°
27).
Pese embora a disputa da posse do Brasil entre Portugal e os Países Baixos, o
alinhamento diplomático da Restauração confirmou a relevância das marinhas
holandesa e inglesa na costa nacional. Tanto o movimento do porto de Lisboa
como o do de Faro, espaços de observação melhor documentados, permitem afirmar
sem exagero que o comércio externo estava «na mão de transportadores
estrangeiros», o que significa uma regular saída de invisíveis e uma espacialização
da frota portuguesa nas ligações ao império.
QUADRO N.“ 27
A RESTAURAÇÃO, 1621-1703 - 39
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

Frotas estrangeiras nas relações externas de Portugal (1641-1688)


Caso de Lisboa (três quartos do comércio externo)
Origem da frota N.° de %
navios

Holandeses 477 42,8%

Ingleses 398 35,7%

Hanseáticos 145 13,0%


Dinamarqueses 2,0%
22
Franceses 1,8%
20
Suecos e noruegueses 31 2,8%

Polacos 2 0,2%

Portugueses 1 0,1%

Não identificados 19 1,7%


Total 1115 100,0%

Fonte: Rau 1954: 241.

Os saldos negativos na balança comercial forçaram a drenagem de meios de


pagamento, cuja travagem foi tentada com uma política monetária, acima
referida, destinada a atrair prata à Casa da Moeda do reino. Assim, se a prestação
da economia for apenas observada a partir da inserção de Portugal nas trocas
internacionais, ergue-se a suspeita de saldos negativos na balança de pagamentos
com uma amplitude inédita, justificativa das políticas de substituição de importações
e da atenção dos poderes instituídos por este problema.
Pela similitude desta conjuntura com outras fases posteriores, a historiografia
portuguesa valorizou as flutuações do comércio internacional como filão explicativo
da dinâmica da economia portuguesa na longa duração. Destacou o papel do
império no provimento de bens transacionáveis que permitiam o incremento
de importações de mercadorias de maior valor acrescentado, limitando o
desenvolvimento das manufaturas no reino. Por outro lado, o enfoque nas
políticas de fomento, como contracíclicas, atribui ao Estado uma posição singular no
diagnóstico de crises gerais e respetivos mecanismos de superação. Crises nos
circuitos de reexportação de bens coloniais comportariam um efeito
regenerador porque punham em evidência a necessidade de incentivar certos
subsectores produtivos. Nestas interpretações revisita-se, de certo modo, o
discurso sobre a decadência portuguesa ou ibérica que teve em António Sérgio um
dos seus mais consagrados autores. Num ensaio intitulado «As duas políticas
nacionais», o autor tipificou os caminhos por que a economia portuguesa poderia
enveredar, justapondo o que chamou «política de fixação» a uma «política de
transporte», crendo que esta última, a dominante, impediu Portugal de uma
exploração ótima dos recursos internos. Uma especialização assente na
reexportação, mais do que na exportação de bens autóctones, colocou em xeque
os resultados de episódicas «políticas de fixação», fomentadoras do potencial interno,

A RESTAURAÇÃO, 1621-1703 - 40
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

e cuja falência teve como reverso a emigração, penalizadora do sector primário por
privá-lo de um fator essencial - o trabalho130.
O último quartel do século XVII emerge, portanto, como uma conjuntura especial, na
qual os atores e decisores políticos visionaram vulnerabilidade de Portugal no
sistema internacional, quando entraram em cena outras potências europeias a
disputar a sua função de entreposto. A menor abertura dos mercados europeus às
reexportações portuguesas contou para a avaliação dos custos e benefícios da política
fomentista de Ericeira. Mas convém ter presente que com ele coexistiram outras
opções políticas na corte que acabaram por vingar igualmente, e que não pareciam
ser contraditórias com a política de substituição de importações, antes concorriam
para a prossecução do mesmo fim, o qual era a superação da escassez de metal
amoedável no reino.
Qualquer expansão dos mercados, nacional ou colonial, exigiria um volume de
produção industrial que as estruturas produtivas nacionais teriam de estar
preparadas para atingir. Esse incremento da procura ocorreu quando foi fundado um
enclave português, na boca do rio da Prata, com a colónia do Sacramento. Abriram-
se as portas a um amplo mercado no extremo sul da América Espanhola por onde se
abastecia uma vasta região do império espanhol de fazendas muito procuradas e que
providenciavam pagamentos em prata. O contrabando perfilou-se, portanto, como
uma via complementar da substituição de importações para obtenção de prata, mas
significou igualmente um acréscimo da procura de fazendas que, por sua vez,
revitalizava os circuitos de reexportação de sarjas e baetas.
O império, deste modo, entra na equação das condições, não de uma
desindustrialização das regiões protoindustriais, que não aconteceu, mas da menor
competitividade da produção de regiões do interior de Portugal em mercados
longínquos, apenas acessíveis por mar. A expansão da economia colonial
redescobria as vantagens comparativas das manufaturas reexportáveis, ou seja, das
que apenas transitavam pelos portos para fins tarifários. E se as tarifas que sobre elas
impendiam fossem desagravadas, ou melhor, colocadas na taxa que os tratados de
1654 e l661 estipulavam, mais evidentes seriam os fatores que confinariam a
produção nacional aos circuitos internos, regionais.
A discreta expansão portuguesa no último quartel do século XVII dirigiu-se, assim,
aos limites extremos da colónia brasileira, enquanto as ligações à Ásia eram
esforçadamente mantidas pelo Estado através do regular envio anual de dois a três
navios em cada armada. Diante da crise das reexportações das mercadorias
tradicionalmente oferecidas pelo Brasil, os resíduos do Estado da Índia, após
décadas de capitulações às forças militares das companhias europeias, tiveram
alguma utilidade na absorção de tabaco brasileiro, enquanto escalas na Bahia de
Todos-os-Santos, no retorno da Índia, valorizaram a baldeação de têxteis de algodão

A RESTAURAÇÃO, 1621-1703 - 41
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

asiáticos, de investimento particular, que seguia a bordo destes navios armados pelo
rei.
Um lento caminho de integração dos espaços do império operou-se nesta
conjuntura, mas o que melhor caracteriza a dinâmica colonial esclarece-se na
agonia da cultura do açúcar. Em valor, as exportações das décadas de 1670 a 1690
ficaram abaixo dos níveis atingidos em 1610-1630. É verdade que houve
compensação com o tabaco, negócio sob administração do Estado e com condições
para chorudos contratos, que asseguraram uma renda pela concessão a sindicatos de
contratadores da sua transformação e distribuição. Negócio, ainda, central na
dinamização das relações entre a costa brasileira e a costa africana dos escravos. Mas
a economia colonial descreve-se nesta época pela descentragem dos seus polos
económicos, do nordeste para o sul, onde áreas de ganadaria deram aos couros uma
importância desconhecida décadas antes. Este impulso no sentido de uma
meridionalização da economia brasileira, quase da inteira responsabilidade dos
próprios colonos, foi encarada por Lisboa como prometedora de resultados havia
longa data perseguidos: prospeção de minas e definição dos limites meridionais da
colónia, o que esbarrava com a resistência das missões jesuíticas do Paraná e
Uruguai. Gradualmente, novos povoados foram fundados, desde Curitiba (1668) até à
ilha de Santa Catarina (1677), ao mesmo tempo que a atribuição pontifícia da diocese
do Rio de Janeiro em 1676 consagrava o rio da Prata como seus limites.
A fundação de um enclave na margem norte da boca do rio da Prata concretizava a
aspiração portuguesa de defini-lo como fronteira entre os dois impérios ibéricos,
antevendo o seu potencial para trocas clandestinas de mercadorias com retorno em
prata, como comprovadamente acontecera no período em que as duas Coroas
estiveram sob governo habsburgo. Uma expedição organizada pelo governo do Rio de
Janeiro em 1679 reuniu 300 a 400 pessoas, num ano em que já decorria o contrato
com os cristãos-novos da Covilhã. Com efeito, a expansão no rio da Prata traçava uma
ação complementar, e não alternativa, da substituição de importações. A justaposição
das duas linhas de intervenção favoreceria a reexportação de panos ingleses, mas tal
dinâmica contraditória não seria percetível pelo monarca, que deu o apoio pessoal a
qualquer das formas de intervenção. Por instruções régias, o governador preparou a
construção de uma fortificação na margem norte do rio, fronteira à cidade de Buenos
Aires, de imediato assediada pelas armas do respetivo governador.
O contencioso poderia ter consequências mais onerosas, mas foi congelado por um
tratado provisional em 1681 que autorizou a presença portuguesa até que uma
avaliação deslindasse os direitos de cada uma das partes. As alegações portuguesas
não tinham clara demonstração cartográfica, no entanto, a incerteza derivada da
indefinição da linha de Tordesilhas deu tempo para a praça militar se transformar
num povoado, com governador próprio, que cuidaria de promover a colonização da
região envolvente e de iludir a vigilância espanhola sobre o contrabando. Em 1692, a
colónia tinha 1000 habitantes e contava com a vitalidade da comunidade mercantil
A RESTAURAÇÃO, 1621-1703 - 42
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

sedeada no Rio de Janeiro, enviando notícias para Lisboa sobre as margens de lucro
excecionais obtidas nas fazendas pagas em prata e em couros, matéria-prima fulcral
para muitos dos bens transformados de consumo corrente.
Quando deflagrou o conflito internacional da Guerra de Sucessão de Espanha, era
já sabido em Portugal que o enclave do Sacramento tinha virtudes na captação dos
circuitos de prata peruana. A indefinição dos limites dos dois impérios ibéricos,
questão por resolver, poderia pôr em causa este esforço colonizador, a menos que o
alinhamento pela Espanha pudesse ser moeda de troca para sanar o problema a favor
de Portugal.
A guerra, como muitos dos conflitos internacionais anteriores e posteriores,
teve um pretexto dinástico e definiu dois blocos em confronto. De um lado as
potências marítimas, Inglaterra e Províncias Unidas, coligadas com o Sacro Império
Romano-Germânico; do outro, Espanha e França. O motivo residiu na crise
sucessória de Carlos II, um Habsburgo. Em testamento datado de 1700, o rei
moribundo designou como seu sucessor, um neto de Luís XIV, o duque de Anjou, com
a condição de este renunciar ao direito ao trono francês. Como segundo na linha
sucessória, confirmou um descendente do ramo austríaco dos Habsburgo, o
arquiduque Carlos, filho segundo do imperador Leopoldo. Após a morte de Carlos II, o
duque de Anjou tomou posse do trono como Filipe V. O cumprimento daquela
cláusula específica do testamento de Carlos II desencadeou a desconfiança das outras
potências, que nela anteciparam o perigo de uma poderosa unidade francesa na
Europa, exercendo influência sobre vastos territórios habsburgos, na Itália e nas
Américas. No conflito entre aqueles dois blocos, o candidato austríaco foi a peça
utilizada para contrariar as pretensões de Filipe V, numa guerra que teve como
protagonistas os dois Estados que disputariam a geopolítica europeia no século XVIII:
a França e a Inglaterra.
A neutralidade portuguesa foi aconselhada pelos diferentes embaixadores em
Haia, Paris e Londres, mas houve fações na corte que ajuizaram o apoio ao primeiro
na linha sucessória como uma utilidade para o reino. Em 1701 Portugal aderiu
formalmente à causa do duque de Anjou, assinando dois tratados de aliança,
respetivamente, com a Espanha e com a França. Por sua vez, nesse mesmo ano, a
Inglaterra, Províncias Unidas e o imperador do Sacro Império, Leopoldo I, formaram
a Grande Aliança de apoio à causa do arquiduque Carlos.
O lado surpreendente da história diplomática portuguesa provém da mudança
extemporânea dos alinhamentos em 1703, pondo Portugal numa guerra com
palco na Península Ibérica, inserido no bloco da Grande Aliança e implicando a
assinatura de dois tratados: um militar, de aliança defensiva e ofensiva, com data
de 17 de maio de 1703, com a Inglaterra, as Províncias Unidas e o Sacro Império.
Outro tratado, assinado a 27 de dezembro de 1703, entre o marquês de Alegrete e
John Methuen, embaixador extraordinário, continha duas cláusulas de âmbito

A RESTAURAÇÃO, 1621-1703 - 43
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

económico. Portugal taxava as manufaturas inglesas de acordo com o artigo secreto


previsto nos tratados de 1654 que determinaram direitos preferenciais aos têxteis
ingleses, taxados em 23%. O mercado inglês, em contrapartida, admitia os vinhos
portugueses com tarifas inferiores em um terço às impostas aos vinhos franceses.
Uma terceira cláusula assegurava a ratificação do acordo pelos respetivos monarcas.
A alteração da aliança pode ter diferentes apreciações. Umas passam pelo
reconhecimento da habilidade diplomática do seu negociador, John Methuen, outras
sublinham a importância do suborno como código específico das negociações, outras,
ainda, apreciam os interesses dos grandes do reino, enquanto proprietários de
amplos vinhedos. Mas haveria causas de fundo, que obrigam a deslindar nas
negociações diplomáticas várias estratégias confluentes para o lado inglês, com
oportunidade para Portugal. Por um lado, através do aliciamento de Portugal para a
Grande Aliança, terá estado a promessa de moratórias de dívidas contraídas nos
anos imediatos à Restauração, quer às Províncias Unidas, quer à Inglaterra, derivadas
de conflitos com distintos enquadramentos, mas que submeteram as receitas
aduaneiras portuguesas ao seu pagamento. Em 1654, firmara-se o tratado de paz
com a Inglaterra de Cromwell, com vários artigos que abriram o espaço
brasileiro à ingerência inglesa e, sobretudo, que obrigaram a cabimentar parte
das receitas aduaneiras ao pagamento de indemnizações pelo sequestro
português de navios ingleses em Lisboa no ano de 1650. Um artigo secreto
estipulava direitos preferenciais às manufaturas inglesas. Pela mesma altura, em
janeiro de 1654, o Recife holandês capitulava diante das forças da armada da
Companhia Geral do Comércio do Brasil, embora o reconhecimento da posse
portuguesa deste território não dispensasse uma indemnização, no valor de 4
milhões de cruzados, paga com sal português desde que foram firmadas as pazes em
1661.
Este passivo da Restauração teve desfecho através do alinhamento português
com a Grande Aliança. Se pelo Tratado de Utrecht (1713-1714) os direitos
portugueses à Colónia do Sacramento foram internacionalmente sancionados,
presume-se que estiveram sobre a mesa das negociações. De resto, ter duas potências
marítimas como adversárias anunciava consequências drásticas para um reino que se
abastecia de alimentos pelo mar, um dos quais o bacalhau, fornecido pelas frotas
pesqueiras inglesas e que entrara na alimentação da população mais carenciada.
Sabia-se, também, como as relações com o império eram dependentes do feliz
regresso das frotas. Os custos do corso haviam sido conhecidos nos anos de 1640 e
era conveniente evitá-los, como lembrou a Casa dos Vinte e Quatro.
As oportunidades para Portugal no alinhamento pela Grande Aliança parecem
evidentes. Fica a questão fulcral sobre o que tinha a Inglaterra a ganhar com a não
neutralidade portuguesa, questão que não tem sido equacionada na historiografia. É
certo que o tratado de dezembro explicita as vantagens económicas, mas convém não
esquecer que elas eram repartidas e consagravam uma especialização das respetivas
A RESTAURAÇÃO, 1621-1703 - 44
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

economias já demonstrada desde 1690, quando as guerras entre a Inglaterra e a


França deram lugar ao incremento conjuntural de importações de vinho nacional.
Sabendo-se que as exportações de vinho nos anos de 1690 oscilaram em função da
guerra económica movida pela Inglaterra ao vinho francês, a abertura do mercado
inglês ao produto não era matéria de menor importância. Não serve, no entanto, para
admitir que a fação dos grandes proprietários de vinhedos pactuasse com esta
decisão diplomática. O duque de Cadaval manter-se-ia sempre um francófono.
Ora, na questão sobre os benefícios da Inglaterra em alterar a decisão de D. Pedro II
datada de 1701, a Holanda surge como o parceiro ludibriado pela diplomacia
inglesa, pois com Portugal apenas se haveria de repor uma situação estipulada havia
quatro décadas em tratado de 1654, passando-se nas alfândegas portuguesas a
observar com rigor o artigo secreto que dava direitos preferenciais aos têxteis
ingleses. Ao invés, pelo alinhamento de Portugal com a Grande Aliança, foram
retirados às Províncias Unidas direitos sobre o sal, cuja vantagem era conhecida dos
Ingleses, que os tinham como uma das chaves de penetração na atividade pesqueira e
de domínio do Báltico, onde a concorrência holandesa era apertada.
Na matriz das trocas intraeuropeias, o Báltico afirmou-se ao longo da segunda
metade do século XVII como um espaço imprescindível para as potências com o
sector naval em crescimento e com forte poderio militar. Providenciava
matérias-primas (madeiras, ferro, linho, cânhamo) e produtos semiacabados
estratégicos para a construção naval e artilharia. Ainda que importasse uma
gama de bens coloniais, pescado, serviços de transporte e bens transformados, esta
região tinha balanças comerciais superavitárias com a Inglaterra, causando a
drenagem de meios de pagamento obtidos noutras balanças bilaterais positivas. Sem
sal, ou tendo de o adquirir em idênticas condições ao de outras potências pesqueiras,
a Holanda fragilizava-se, e isso aconteceu aquando da entrada de Portugal na
Grande Aliança, negociação liderada pela Inglaterra, que previu o cancelamento da
dívida portuguesa sobre o reconhecimento de Pernambuco, paga em sal.
A Guerra de Sucessão de Espanha ficou estigmatizada pelos Tratados de Methuen.
Não vale esquecer que a Holanda cuidou da assinatura de um acordo em tudo
idêntico em 1704. No longo prazo, é sabido que a produção e a organização mercantil
inglesas souberam aproveitar essas condições favoráveis e incrementar as
exportações de panos para Portugal. A Holanda não lhe seguiu o trilho. Há que buscar
razões na própria indústria holandesa. Do lado português, estes anos finais do longo
século XVII auguraram novos horizontes para o vinho português e a necessidade de
abastecer o mercado brasileiro em expansão com quantidades crescentes de
manufaturas.
A participação portuguesa na Guerra de Sucessão de Espanha voltou a requerer a
mobilização militar. As perturbações na produção revelaram-se nos preços, numa
tendência inflacionária marcante que não se descobre nos vinte e oito anos das

A RESTAURAÇÃO, 1621-1703 - 45
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

guerras de aclamação. Recolocou-se a décima à taxa de 10% e duplicaram-se as


sisas. A punção fiscal não foi mais gravosa porque os aliados se comprometeram a
avançar com um volumoso auxílio financeiro e militar. Passados estes dez anos
agitados, repôs-se a décima na taxa de 4,5%, tal como a sisa voltou em muitos casos
aos níveis anteriores à guerra.
Guerras e políticas económicas falam de níveis crescentes de estatização da
economia. Resta indagar se as finanças públicas portuguesas revelam uma efetiva
progressão na construção do Estado fiscal.
6. O Estado fiscal
A Restauração estribou-se num discurso acusatório da pesada fiscalidade filipina,
mas foram as campanhas militares subsequentes ao golpe do 1 de Dezembro que
impuseram uma inovação fiscal. Tanto pela conceção do imposto sobre o rendimento,
que foi descrita atrás, como pelo peso que adquiriu nos orçamentos, e que se verá em
seguida, pode-se apurar o contributo da guerra para a legitimidade de o Estado
arrecadar uma parte superior do excedente produzido.
A avaliação deste problema precisa de se focalizar na tributação executada no reino e
ignorar o papel dos monopólios e das rendas providas pelos prolongamentos
coloniais para sopesar a evolução dos montantes globais que eram arrecadados no
território e nos arquipélagos dos Açores e Madeira como um rendimento do reino.
Em termos nominais, a punção fiscal duplicou de 1632 para 1641 (cf. Quadro n.°
28), o que comprova que a agitação popular no período final dos Habsburgo tinha
fatores outros que não os limites económicos da fiscalidade do reino, pois este
suportou uma carga fiscal duas vezes mais pesada em menos de dez anos. Em
segundo lugar, os valores nominais dos orçamentos sugerem que também em
Portugal a guerra foi um fator do crescente nível de estatização da economia. Mas,
uma vez a paz assinada, os totais decresceram, em virtude de uma nova forma de
execução da décima após 1668, com uma taxa de 4,5% e cuja distribuição regional foi
acima apresentada.
QUADRO N.° 28
Receitas do reino (1618-1681)
Anos Reino
1619 759 886 827
1632 822 546 000
1641 1 612 039 890

1660 1 650 157 000


1 256 188 185
1680

Nota: excluídas as rendas do império.


Fontes: Godinho 1978; Hespanha 1994: 114, 156e 158;Dias 1985; Biblioteca da Ajuda 51-V1-19, fls.
127 e 359-365.

A RESTAURAÇÃO, 1621-1703 - 46
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

Uma desagregação dos valores incluídos nestes orçamentos descobre, por sua vez, o
lugar dos novos tributos introduzidos com a guerra (Gráfico n.° 10), atendendo
aos seus efeitos na alteração da estrutura do sistema fiscal, com base numa
classificação dos impostos em diretos, indiretos e patrimoniais. Nesta categoria
constam os confiscos de propriedades de particulares - que revelam o lado coercitivo
destas receitas -, as rendas das ilhas, que compreendem tributação direta sobre o
produto agrícola, e os monopólios dos sabões, cartas de jogar e solimão. Estas rendas,
não sendo verdadeiramente patrimoniais, resultavam da negociação de um
monopólio por determinação real, aproximando-se, por isso, de um direito de
propriedade régia.
GRÁFICO N.° 10
Efeitos da guerra nas receitas do Estado (1619-1680)

Fontes: Godinho 1978; Hespanha 1994; Dias 1985; Biblioteca da Ajuda, Miscelâneas 51-VI-19, fols
127 e 359-365.
Não surpreende que a estrutura das receitas durante os anos do conflito se alterasse,
participando um imposto direto com 42% e 41% no total dos orçamentos, em 1641 e
1660, respetivamente. O ímpeto da mudança, contudo, perdeu-se, pois em 1680
representava apenas 16% das receitas fiscais, voltando o Estado a depender
sobretudo de impostos indiretos.
A proporção da décima, pouco expressiva em 1680, não lhe retirou utilidade em
futuras situações de conflito. A Guerra de Sucessão de Espanha autorizou a reposição
conjuntural da taxa de 10%. A legitimidade desta cobrança ficou, assim, assegurada.
Por isso, no período pombalino, novamente a propósito de um conflito internacional,
inscreveu-se definitivamente no sistema fiscal português essa taxa. Os orçamentos
da década de 1760 certificam, então, que o esforço de autonomia política entre
1640 e 1668 abriu uma oportunidade duradoura à intrusão do Estado no
rendimento dos particulares. É esta longevidade da décima que permite atribuir à
Restauração, ou à conjuntura de 1640, uma inovação fiscal com semelhanças à que as
guerras fernandinas com Castela induziram por meio da sisa.

A RESTAURAÇÃO, 1621-1703 - 47
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

A tendência para a reposição de uma estrutura muito próxima daquela que se


encontrava nas centúrias anteriores decorria do papel das alfândegas, espelho do
sector externo na composição dos orçamentos (Gráfico n.° 11). Com efeito, a
recuperação de possessões coloniais no Brasil, sendo a reexportação de produtos,
como o tabaco e o açúcar, uma das principais condições daquela variação positiva,
proporcionou o incremento da participação dos encaixes aduaneiros ainda durante o
conflito com Espanha.
GRÁFICO N.° 11
Contributo das alfândegas no conjunto dos impostos indiretos (1619-1680)

Fontes: Godinho 1978; Hespanha 1994; Dias 1985; Biblioteca da Ajuda, Miscelâneas 51-VI-19, fols
127 e 359-365.

Se a estrutura se aproximou do que acontecera em 1619, houve, no entanto, uma


alteração fundamental na posição relativa de Lisboa no cômputo geral das
aduanas do reino. Enquanto em 1619 as casas de Lisboa contavam em 33% para o
total das alfândegas, em 1680 atingiram os 55% e segundo documentação de 1688
chegaram a ter uma ponderação de 75%-77%, o que confirma os enviesamentos
introduzidos pelo sistema de frotas organizado pela administração central.
No orçamento de 1680, o império não tinha ainda o lugar nas rendas do Estado que
veio a adquirir meio século mais tarde, com o ciclo mineiro do ouro, ou que teve
antes da Restauração, quando ainda o Brasil era dominante no mercado de açúcar.
Mas nesta fase de viragem para o Atlântico, acompanhada por uma maior
participação das casas das alfândegas de Lisboa, o império, que concorria para o total
dos orçamentos com 38% em 1619, ficou-se pelos 23% em 1680.
Os opositores do conde da Ericeira - os negociantes evocados no discurso de Ribeiro
de Macedo - julgavam as entradas nas alfândegas como decisivas para a saúde
financeira da monarquia e o que se soube a esse respeito assinalou as diferenças
entre valores das importações e das exportações, já estando em curso as medidas
fomentistas do ministro, jogando os pareceres em seu desfavor. Uma série
A RESTAURAÇÃO, 1621-1703 - 48
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

significativa de orçamentos de receitas públicas permitiria aferir em quanto a política


afetou esta estrutural preponderância das rendas aduaneiras. A única
informação disponível data de 1716, quando a conjuntura no império era bem outra,
tendo as minas do Brasil já revelado o seu potencial para os cofres da monarquia. Por
isso mesmo, a variação positiva do conjunto dos almoxarifados, entre orçamentos de
1680 e este de 1716, é digna de nota. Tendo em conta que na rubrica «casas de
alfândega de Lisboa» estão compreendidas receitas provenientes do abastecimento
interno da cidade, estas três fontes de receita (almoxarifados, alfândegas e casa de
Lisboa), (taxa de variação anual de 1,1%), em termos comparados, assinalam o
contributo do crescimento das transações internas que ocorreu em regime de maior
autarcia. Se, na verdade, houve quebra nas alfândegas, houve também um aumento
excecional dos almoxarifados, cuja taxa de variação média acumulada (3,1%) não se
equipara à que pode ser estimada entre orçamentos anteriores a 1716. Um mesmo
aumento verifica-se nas taxas de variação média acumulada das «Casas de Lisboa»,
com 2,7%.
Qualquer destas apreciações considerou valores correntes. A respetiva conversão em
gramas de prata certifica, afinal, que vinte anos depois da paz com a Espanha a
arrecadação de receitas totais em pouco ultrapassava o que se verificara em 1619.
QUADRO N.° 29
Receitas do reino em marcos de prata (1619-1680)
Ano Receitas

1619 271388,2
1641 403010

1660 388031,4

1680 291743,3

Fontes: Godinho 1978; Hespanha 1994: 114, 156 e 158; Dias 1985; Biblioteca da Ajuda 51-VI-19,
fls. 127 e 359-365

Faltando estimativas para a variação do produto, mas dando a população sinais


positivos, a hipótese mais provável é a de que o Estado tenha perdido capacidade
para arrecadar e redistribuir níveis crescentes do produto. Tal fragilidade
seria compensada pelas rendas de monopólios do império. A perda de espaços
asiáticos e a devastação da região pernambucana subtraíram fontes de receitas
significativas, mas o tabaco, que ainda não atingia nessa época o patamar de
importância que haveria de ter no século XVIII, mostrava já o seu potencial de
gestação de uma renda, com a valorização em mais de 100%, entre 1680 e 1716.
Conforme as mais recentes abordagens sobre história fiscal vêm assinalando,
Portugal seguia uma rota distinta da de Inglaterra. Nesta última, os anos de 1680
reafirmaram uma tendência no sentido da crescente carga fiscal, baseada em
impostos indiretos e na administração do Estado da respetiva arrecadação,
prescindindo-se de contratar com particulares a execução dos impostos.

A RESTAURAÇÃO, 1621-1703 - 49
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

A progressão da receita avalia etapas de construção do Estado, e, nesse âmbito, a


história fiscal portuguesa mostra divergências relativamente a outras experiências
nacionais. A estatização da economia portuguesa ao longo do século XVII não
residiu em níveis superiores de carga fiscal. Porém, noutros planos de observação
da ingerência pública na economia, como sejam a regulação dos fluxos externos
através de uma política aduaneira, ou alterações nas características da despesa
do Estado por participação direta em atividades produtivas com a intenção de
influenciar a afetação de fatores produtivos, Portugal traçou um caminho comum a
outras potências europeias. Talvez mais à semelhança do caso da França de
Colbert, do que da Inglaterra da rainha Ana, precisamente, a potência que mais
influenciou os alinhamentos diplomáticos do reino desde 1654, cujo corolário foi o
Tratado de Methuen de dezembro de 1703.

A RESTAURAÇÃO, 1621-1703 - 50
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

Leonor Freire Costa – A HISTÓRIA ECONÓMICA DE PORTUGAL – Esfera dos Livros,


2011, pág. 143 - 207.
Capítulo 4
A Consolidação, 1703-1807
A noção de expansão tem vindo, desde há muito, a unificar a interpretação dos
múltiplos aspetos que caracterizam o comportamento da economia do mundo
ocidental no século XVIII, quando a Europa setecentista conheceu várias
transformações que acabariam por produzir um crescimento sustentado, com
características estruturais distintas, tornando os sectores da indústria e também dos
serviços cruciais na variação da produtividade do trabalho e do produto interno
bruto. No início do século XIX, os vários indicadores disponíveis à escala
internacional, incluindo população, taxas de urbanização, produção agrícola e
industrial, ou comércio externo, refletiam um inequívoco crescimento do produto
relativamente ao ano de 1700. As transformações promotoras desta prosperidade
não tiveram a mesma amplitude em todo o lado e o crescimento começou por se
operar graças à conquista de pequenos ganhos de eficiência, dentro dos limites
estreitos de economias, com inovações tecnológicas esparsas e lentas na sua difusão.
Mas não é menos certo que esta expansão se tornaria irreversível, desencadeando
um fenómeno de industrialização que viria a culminar com a revolução industrial
britânica sensivelmente a partir da década de 1760.
Em todo o caso, se a expansão constitui o leitmotiv de interpretação da época, é
importante resistir à tentação de ver na dinâmica económica do século XVIII o fim do
velho modo de produção pré-industrial. Muito pelo contrário. Tal como nos séculos
precedentes, eram ainda a agricultura e as atividades manufatureiras
tradicionais que marcavam o ritmo evolutivo das economias europeias, mesmo
nas suas regiões mais avançadas. No caso da economia portuguesa setecentista,
estas considerações genéricas que se aplicam às regiões mais ricas e desenvolvidas
do Noroeste da Europa devem ser tomadas ainda com maior precaução. Por um lado,
se a tónica dominante deste período também parece ter sido a de crescimento,
a evolução positiva não se revelou uniforme ao longo de todo o século, mediante
a atuação de fatores exógenos como a Guerra de Sucessão de Espanha (1702-
1714), o terramoto de 1755 ou a participação de Portugal nas perturbações
imputadas às guerras napoleónicas. Por outro lado, no desempenho da economia,
o império adquiriu uma relevância distinta, pois ofereceu um recurso com
propriedades extraordinárias, em quantidades inéditas, e que reforçou a função de
entreposto dos portos portugueses: metal amoedável. Com efeito, a exploração
das vantagens do Tratado de Methuen para o vinho português no mercado inglês
coincidiu com a expansão da economia mineira do Brasil. As balanças superavitárias

A CONSOLIDAÇÃO, 1703-1807 - 1
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

da metrópole relativamente ao Brasil assentaram em reexportações, e, de entre estas,


as de produtos ingleses. Por sua vez, a abundância de meios de pagamento
monetários, que compensavam as balanças deficitárias portuguesas relativamente à
Inglaterra, abriu este mercado à importação de vinho. Um balanço global da
prestação da economia portuguesa ao longo do século XVIII deverá, pois, considerar
as diversas conjunturas que atravessaram este século.
1. Tendências demográficas
Entre 1700 e 1800, a população portuguesa manifestou uma variação globalmente
positiva, traduzida num crescimento de cerca de um terço dos seus efetivos. Pese
embora o carácter incerto dos números, derivados, como para os períodos anteriores,
de fontes nem sempre congruentes, as estimativas apontam para o crescimento, já
que a população passou de cerca de 2 milhões, em 1700, para perto de 3 milhões de
efetivos, em 1801. Tudo indica, pois, que o país participou ao longo do século XVIII
numa dinâmica que também foi europeia, desigual em termos de ritmo e de
intensidade, é certo, mas que expressa um impulso demográfico expansivo, como se
pode constatar pelos dados avançados no Quadro n.° 30.
QUADRO N.° 30
A população europeia (1700-1800)
1700
1800
Alemanha 15 000 000 24 500 000

Áustria-Boémia 4 600 000 7 900 000

Escandinávia 2 900 000 5 000 000

Espanha 7 500 000 10 500 000


França 27 300 000
22 000 000
Ilhas Britânicas 8 400 000 15 300 000

Itália 13 300 000 17 800 000

Países Baixos do Norte 1 900 000


2 100 000
Países Baixos do Sul 1 900 000 2 900 000

Portugal 2 150 000 2 931 900


Suíça 1 700 000
1 200 000
Fonte: De Vries 1994: 13; Rodrigues 2009:177.

A variação positiva da população europeia foi quase ininterrupta a partir de meados


do século XVIII, embora tenha ocorrido ainda num quadro demográfico de tipo
antigo, com elevados níveis quer de fecundidade, quer de mortalidade. Considerando
que os progressos económicos e sanitários eram ainda pouco apreciáveis na maior
parte das regiões europeias, a historiografia tem-se inclinado a explicar esta
expansão pela prevalência de fatores climáticos e ecológicos particularmente
favoráveis que implicaram o recuo da virulência de algumas doenças epidémicas,
suavizando os efeitos das crises de mortalidade. Esta leitura parece acomodar-se
globalmente ao caso português. Estudos recentes sublinham a existência de uma
A CONSOLIDAÇÃO, 1703-1807 - 2
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

mudança no padrão das epidemias no século XVIII (tifo, cólera e febre-amarela) com
efeitos nas crises de mortalidade: os seus picos de eclosão tendem a tornar-se menos
gravosos e a concentrar-se em áreas de maior densidade populacional.
Na viragem para o século XIX, com perto de 3 milhões de habitantes, Portugal
continuava a fazer parte dos países menos populosos, porém vários indicadores dão
conta de alguns ganhos paulatinamente conquistados ao longo do período moderno.
À escala da população europeia, a variação é pouco significativa, mantendo-se a
proporção dos 2% do peso relativo dos Portugueses, mas é no confronto com a
vizinha Espanha que se deteta um progresso, com os efetivos lusos a representarem
agora perto de 28% da população ibérica, valor mais próximo da relação
contemporânea.
O aumento populacional em Portugal não foi uniforme ao longo do século XVIII, como
se depreende da análise das fontes disponíveis. Assim, depois do crescimento
registado a partir de sensivelmente 1670, a população diminuiu ao longo das três
primeiras décadas do novo século, tendência que contrasta com os demais países
europeus, onde os efetivos cresciam, embora a um ritmo moderado. Em Portugal, o
número de fogos decresceu até 1732 a um ritmo anual de -0,2%, mercê da atuação
conjunta de fatores externos que afetaram o comportamento das variáveis
demográficas. A atração exercida pelo ouro brasileiro, geradora de um forte impulso
emigratório para a América Portuguesa, é certamente um deles, ainda que seja difícil
avaliar a dimensão do fenómeno. Para as primeiras décadas do século, quando a
atração das minas era mais intensa, as estimativas oscilam entre um mínimo de três
mil a quatro mil e um máximo de oito mil a dez mil saídas anuais. Além disso, a
participação de Portugal na Guerra de Sucessão de Espanha e a eclosão de crises de
mortalidade intensas e devastadoras justificam também a tendência recessiva dos
primeiros anos do século.
Depois de 1732, o crescimento foi retomado e permaneceu até ao final do
século, um pouco à semelhança da maior parte dos países europeus, palcos de um
crescimento mais rápido após 1740. Contudo, na segunda metade do século XVIII em
Portugal, os efetivos cresceram a um ritmo menos acelerado. Como se demonstrou
para algumas regiões do país, incluindo a Beira, o Alentejo e o Algarve, a evolução
populacional nas décadas de 1760 e 1770 reflete os efeitos conjugados de
movimentações militares, recrutamento de soldados, abastecimento dos exércitos,
maus anos agrícolas e epidemias. Graças à recuperação dos últimos anos da centúria,
a dinâmica de crescimento secular acabaria por não ser interrompida (Quadro n.°
31). Em todo o caso, mercê destas hesitações, a população portuguesa sofreu uma
variação menos espetacular do que a média europeia.

A CONSOLIDAÇÃO, 1703-1807 - 3
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

QUADRO N.° 31
Evolução da população (1700-1801)/Crescimento anual médio (%)
c. 1700/1732
-0,20

1732/1758 0,64

1758/1798 0,32
1758/1801 0,31

Fonte: Moreira 2008: 256.

Dirigindo o olhar para os padrões de distribuição, é possível constatar que o século


XVIII não alterou substantivamente os tradicionais desequilíbrios e assimetrias
regionais, herdados ainda do período medieval (cf. Quadro n.° 32). O Minho manteve
o seu dinamismo demográfico, traduzido num aumento do seu peso relativo para
cerca de 25% da população portuguesa. Também o Algarve mostrou uma evolução
positiva, devido ao crescimento contínuo desde o último quartel do século XVII. Já o
Alentejo viu a sua população relativa diminuir, em virtude de uma regressão
particularmente intensa entre 1700 e 1730, cuja recuperação foi dificultada pela
sucessão de conjunturas que se fizeram sentir na segunda metade da centúria. Em
particular as comarcas de Portalegre, Elvas, Vila Viçosa, Évora e Beja revelaram uma
sensibilidade extrema aos efeitos, quer de maus anos agrícolas, quer dos conflitos
militares com a Espanha no quadro da Guerra Fantástica (1762), que se traduziram
em crises de mortalidade mais intensas.
QUADRO N.° 32
Distribuição regional da população (%)
1706 Área
1800
Minho 22,3 25,1 8,1

Trás-os-Montes 8,7 8,9 12,3

Beira 30,5 30,1 25,5

Estremadura 20,7 21,7 20,3


Alentejo 14,9 10,7 28,2

Algarve 2,8 3,5 5,6

Fonte: Serrão 1993a: 54.

Durante o século XVIII acentuou-se também um contraste antigo: concentração da


esmagadora maioria dos fogos nas quatro províncias localizadas a norte do rio
Tejo, na ordem dos 86% em 1801. Esta desigualdade adquire ainda maior expressão
se tomarmos como indicador as densidades do povoamento: 12 fogos por km2 no
Norte e Centro face aos 3,5 das províncias do Sul. Menos percetível em 1801 é a
divisão entre litoral e interior, mostrando-se a distribuição interna da população
ainda favorável ao interior (54%), embora, ao longo do século XVIII, tanto o litoral
norte, como o litoral centro tenham conseguido crescer a um ritmo mais elevado do
que o conjunto nacional.

A CONSOLIDAÇÃO, 1703-1807 - 4
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

As dinâmicas regionais diversas fundam-se em práticas e costumes específicos,


decorrentes de estruturas agrárias e processos de reprodução social diversificados.
Tome-se como exemplo o caso do Minho, a região mais densamente povoada do país,
palco de uma intensa vitalidade demográfica, que a transformou no alfobre da
emigração portuguesa desde finais do século XVII. Essa dinâmica não pode ser
dissociada da «revolução do milho», que encontrou no clima temperado marítimo do
Entre-Douro-e-Minho as condições ideais para uma ampla difusão e cuja elevada
rendibilidade abriu caminho para a obtenção de ganhos de produtividade agrícola. A
multiplicação dos recursos assim obtida permitiu sustentar uma expansão
contínua da população minhota. Esse forte crescimento demográfico deveu-se
sobretudo à diminuição da taxa de mortalidade e a uma esperança de vida mais
elevada ao nascimento, em virtude de transformações na dieta alimentar e de uma
maior proteção perante a mortalidade de tipo epidémico fornecida pelo povoamento
disperso. A nupcialidade e a natalidade não terão desempenhado um papel muito
relevante neste comportamento da demografia, já que a idade média de casamento
feminino (entre os 24 e os 27 anos), combinada com níveis altos de celibato feminino
definitivo, colocava limites ao número de nascimentos nas famílias camponesas. E,
não obstante, nem a forte emigração da população minhota para as demais
províncias do reino e para o império susteve o crescimento demográfico. Aliás, a
ocorrência em simultâneo destes fenómenos sugere que a explicação para esta
dinâmica regional específica deve ser encontrada nas características da economia
agrária minhota, assente em pequenas explorações familiares, e em práticas
sucessórias que privilegiavam a transmissão da propriedade (entenda-se, do seu
domínio útil) num sucessor universal, em conformidade com os princípios que
exigiam a indivisibilidade das terras aforadas fixados no regime enfitêutico. Numa
região densamente povoada, onde quase toda a propriedade era dominada por
entidades senhoriais, esta era também uma estratégia destinada a garantir a
sobrevivência económica das famílias camponesas. O dinamismo económico e
demográfico do Minho não é, pois, incompatível com uma elevada corrente
emigratória seletiva, composta por segundogénitos de lavradores abastados,
afastados da sucessão.
Quadro bem diverso é oferecido pelo Alentejo no século XVIII, caracterizado por uma
dinâmica demográfica negativa, como já se viu. Neste caso, os saldos fisiológicos
decorrentes da nupcialidade elevada, expressa por meio de uma idade média de
casamento mais baixa (21 anos), foram absorvidos pela elevada incidência da
mortalidade. Para além da maior ou menor gravidade das suas causas próximas -
maus anos agrícolas, epidemias ou guerras a intensidade das crises de mortalidade
era ainda condicionada por outros fatores. No Alentejo setecentista, o povoamento
concentrado facilitava a propagação de doenças epidémicas e os baixos recursos da

A CONSOLIDAÇÃO, 1703-1807 - 5
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

maioria da população potenciavam também a mortalidade extraordinária. Na


verdade, a sociedade rural compunha-se já maioritariamente de jornaleiros,
empregues nas lavouras de média e de grande dimensão, na sequência de um
fenómeno de concentração da exploração agrícola que estava em curso no século
XVIII.
Na ponderação do alcance do crescimento populacional setecentista importa também
avaliar o comportamento da urbanização. Tomando como critério agregador
aglomerados com mais de 10 mil habitantes, o Quadro n.° 33 mostra que, no final do
século XVIII, a taxa de urbanização rondava os 10%, valor abaixo da média, quer da
Europa Ocidental (14,9%), quer da Europa mediterrânica (12,9% ).
QUADRO N.O 33
Urbanização em Portugal (1706-1801)
(Cidades com 10 mil ou mais habitantes)
1706 Pop. 1801 Pop.
urbana % urbana %
Entre-Douro-e-Minho 3 8,6 2 8,1
Trás-os-Montes - - - -
Beira 2 3,8 1 1,8
Estremadura 1 23,6 2 29,0
Entre-Tejo-e-Guadiana 4 15,6 2 8,0
Algarve - - - -
Portugal 10 10,3 7 9,8
Fonte: Serrão 1996: 75.

Não obstante a cautela exigida por estes valores, condicionados por fontes cujos
critérios de recenseamento estão longe de ser uniformes, outras observações ainda
se impõem. A estabilização secular da taxa de urbanização ao longo do século XVIII é
uma delas: entre 1706 e 1801 o peso relativo da população urbana permaneceu
praticamente idêntico, realidade que contrasta com a forte aceleração urbana
registada em Portugal entre 1527 e 1700. Tomando novamente os valores relativos
às cidades com mais de 10 mil habitantes, a taxa de urbanização passou dos 6,7% no
início de Quinhentos para os 10,3% estimados em 1706 (Quadro n.° 33). Observado
na longa duração, o crescimento da urbanização em Portugal esteve, pois, longe de se
fazer a um ritmo contínuo, fenómeno comum, aliás, ao resto da Europa, onde ao
crescimento rápido dos séculos XVI e XVII se seguiu uma fase de estabilização que
coincide com a primeira metade de Setecentos. Contudo, uma aceleração da dinâmica
urbana na segunda metade da centúria permitiria que se registasse globalmente um
aumento da importância percentual da população das cidades, quer na Europa
Ocidental, quer no Mediterrâneo, fenómeno que não se encontra replicado no
Portugal de Setecentos. Se é certo que os núcleos urbanos revelam uma maior
rapidez de crescimento na segunda metade da centúria, fenómeno atestado para
Lisboa, Porto e para as cidades do litoral, a taxa de urbanização ficou aquém da média

A CONSOLIDAÇÃO, 1703-1807 - 6
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

europeia. (Quadro n.° 34).


QUADRO N.° 34
Urbanização na Europa (1700-1800)
(% de população que vive em cidades com 10 mil ou mais habitantes)
1700
1800
Alemanha 4,8 5,5
Espanha 9,0 11,1
França 9,2 8,8
Holanda 33,6 28,0

Inglaterra e Gales 13,3 20,3


Itália Central 14,3 13,6
Itália Meridional 12,2 15,3
Itália Setentrional 13,6 14,3
Países Baixos do Sul 23,9 18,9
Países escandinavos 4,0 4,6
Portugal 10,3 9,8
Suíça 3,3 3,7
Grandes regiões
Europa Ocidental 13,1 14,9

Europa do Sul 11,7 12,9


Fonte: De Vries 1987: 58; Serrão 1996: 75.

A estabilização secular da população urbana durante este período esconde ainda


duas tendências contraditórias. Globalmente, as duas maiores cidades do país,
Lisboa e Porto, cresceram a um ritmo mais acelerado do que a média nacional
(30%), respetivamente 56% e 148%, enquanto outras cidades estabilizaram ou
perderam mesmo efetivos. A redução de dez para sete dos aglomerados que
albergavam mais de 10 mil habitantes em 1801 e o recuo da urbanização no Alentejo,
na Beira e no Minho dão conta desta última tendência (Quadro n.° 33). Este
comportamento díspar adquire ainda maior relevância quando se considera a
configuração da rede urbana no início do século XIX. No topo da hierarquia, com
perto de 170 mil habitantes e representando 6% da população portuguesa, Lisboa
continuava a ter uma dimensão considerável, embora o seu crescimento tivesse sido
marcado nas últimas décadas da centúria pela reposição dos efetivos perdidos na
sequência do terramoto. A grande distância seguia-se o Porto, palco de um acelerado
aumento populacional desde finais de Seiscentos, mas cuja população não
ultrapassava os 45 mil habitantes no início do século XIX. Outros cinco aglomerados
urbanos ultrapassavam a fasquia dos 10 000 habitantes, sem todavia alcançar os 20
000. A estes ainda se podem juntar os cerca de 17 centros populacionais que à data
tinham mais de 5000 efetivos, embora pareça certo que boa parte desses
aglomerados estaria longe de desempenhar funções de tipo urbano.
A rede urbana portuguesa no início do século XIX denota a macrocefalia de Lisboa e a
existência de uma malha esparsa de cidades de média dimensão, características já
evidentes no século XVII e que se agravaram ao longo de Setecentos. Este sistema
A CONSOLIDAÇÃO, 1703-1807 - 7
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

traduz não só a compartimentação do espaço económico nacional, fragmentado em


mercados dispersos e pouco integrados, mas também a distorção provocada por
uma capital, simultaneamente sede da administração do reino e do império, maior
porto marítimo do país, espaço da corte e de habitação das principais casas
aristocráticas, centro de convergência de boa parte da riqueza produzida no reino e
do comércio internacional e ultramarino. Mas é também ao longo do século XVIII que
o Porto conhece um crescimento demográfico inovador. Mercê da sua afirmação
enquanto mercado de escoamento de manufaturas e dos vinhos do Alto Douro, o
Porto irá destacar-se do resto das cidades do país, dando pela primeira vez ao
sistema urbano português uma configuração bipolar.
2. A agricultura: mudanças e permanências
Exceção feita à Inglaterra e à Holanda, a agricultura europeia desenrola-se ao longo
do século XVIII num quadro marcado mais pela extensão das permanências e das
continuidades do que pelas ruturas ou mudanças profundas. No início do século XIX,
quer as técnicas agrárias, quer as instituições sociais e políticas que enquadravam
esta atividade, não eram substancialmente diferentes daquelas que existiam em
1700, asserção que parece ser verdadeira para a esmagadora maioria das sociedades
europeias, intocadas pela «revolução agrícola» que estava em curso nalgumas regiões
do Noroeste da Europa, onde se registaram ganhos de produtividade significativos.
Mediante esta constatação, estudos recentes têm vindo a demonstrar que o século
XVIII assiste a um aprofundamento da divergência económica no seio das
economias europeias, com a Inglaterra e a Holanda a conquistarem vantagens
importantes relativamente aos demais países europeus, expressas nos seus níveis de
rendimento. Sendo certo que a explicação para esta divergência exige a conjugação
de múltiplas variáveis, a atenção tem vindo a ser dirigida para as instituições sociais
e políticas que enquadravam a atividade económica, sobretudo aquelas que
impendiam sobre a agricultura, atendendo ao seu peso na produção de riqueza.
Desenvolvidas pelas sociedades europeias para alocar os recursos e controlar a sua
distribuição, instituições como o regime senhorial e os sistemas comunais rurais
condicionavam ainda o funcionamento do sector agrário no século XVIII, muito
embora os seus efeitos práticos pudessem ter alcances diversos24.
Fazendo parte do lote de países que não conheceram uma alteração estrutural da sua
agricultura, o Portugal de Setecentos representa um caso exemplar de uma
economia que operava dentro de uma moldura institucional ancestral que só
viria a ser lentamente desmantelada com as reformas liberais do século XIX. Nessa
moldura se fundava não só uma desigual apropriação dos recursos, como dela
decorriam restrições ao livre funcionamento do mercado fundiário. Aliás, estes
efeitos não passavam despercebidos à época, se considerarmos a ampla literatura

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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

reformista do século XVIII, muito centrada na questão agrária e nos problemas


decorrentes do seu enquadramento político e institucional. A sondagem que aqui se
inicia sobre o comportamento da agricultura portuguesa no século XVIII toma, pois,
como ponto de partida a configuração das estruturas de posse e de exploração da
terra, a fim de retomar as características mais marcantes da moldura social, jurídica e
política e de salientar algumas das suas especificidades face ao restante contexto
europeu.
A prevalência de uma estrutura concentrada de posse da terra e o exercício de
poderes senhoriais continuaram a marcar o panorama agrário português no
século XVIII. O controlo sobre a terra permanecia dominado pelos mesmos grupos
sociais, a saber, a Coroa, as instituições eclesiásticas, as casas senhoriais e, em menor
grau, as instituições municipais, que fundavam nesses direitos de propriedade a
captação de uma parte da riqueza agrária produzida pelas famílias camponesas,
como contrapartida pela cedência da exploração. Para além disso, o regime senhorial
continuava a conferir à nobreza e, em menor proporção, às instituições eclesiásticas,
mecanismos adicionais de apropriação de recursos, fundados no enquadramento
jurisdicional das populações. A este respeito cabe lembrar que, depois de 1640, o
equilíbrio existente entre os domínios da Coroa - 30% das terras e 42% da população
- e os senhorios laicos e eclesiásticos - 58% das terras - foi sendo progressivamente
invertido, mercê de uma reconfiguração que se fez a favor da jurisdição da
monarquia. No início do século XIX, os senhorios laicos e eclesiásticos
representavam pouco menos de um terço do total, face aos quase 53% controlados
pela monarquia. Todavia, se a diminuição dos senhorios jurisdicionais laicos e
eclesiásticos entre 1640 e 1811 é um dado incontornável, os ingressos senhoriais em
termos tributários acabariam por se identificar com a cobrança de direitos de foral.
Da prevalência deste enquadramento senhorial decorria uma complexa justaposição
de prestações fiscais de natureza muito variada que oneravam as explorações
agrícolas. Não é possível saber o peso que dízimos eclesiásticos, prestações
senhoriais e direitos de foral tinham relativamente ao produto bruto. Porém, no
quadro de uma agricultura de baixa produtividade, parece certo que absorveriam
uma fatia significativa. Dados para as terras trabalhadas pelos beneditinos de Tibães
nos últimos anos do século XVII apontam para índices de produtividade do centeio e
do trigo na ordem de 1 para 4, valor que podia ascender aos 1:6 e 1:7 nas terras
cultivadas também com milho-grosso.
Ora, nas terras arrendadas do mesmo mosteiro, depois de deduzidos os encargos
contratuais, as prestações fiscais e as despesas com a atividade produtiva, o balanço
líquido das pequenas explorações não ultrapassaria os 30% a 35% da produção
cerealífera. Note-se que os encargos da exploração com as outras produções (vinho e

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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

azeite) eram menos onerosos, aligeirando aquele balanço aos rendeiros que
explorassem simultaneamente courelas não reservadas aos cereais. Ainda que assim
seja, parece certo que a rentabilidade das pequenas unidades de exploração
familiares era insuficiente para sustentar elevados investimentos.
Nos seus traços gerais, este retrato não difere muito do que se conhece para outros
contextos europeus. E, no entanto, uma análise mais aprofundada permite identificar
algumas especificidades das estruturas agrárias do Portugal setecentista, que,
embora partilhando de um enquadramento comum com a Península Ibérica, se
afastam de tendências que na mesma altura se afirmavam noutros países da Europa.
Esta asserção é sobretudo verdadeira quando se observa as instituições que
condicionavam o mercado fundiário, respetivamente as formas de amortização da
terra, a prevalência de sistemas de direitos de propriedade atenuados, derivadas
sobretudo do regime enfitêutico por um lado, e os comunitarismos agrários por
outro.
A amortização dos bens que entravam nas instituições eclesiásticas (por doações
testamentárias ou dotes) e a prática de vinculação que instituía os chamados
morgadios e capelas, amplamente prosseguida por todos os grupos sociais, com
particular destaque para a nobreza, contribuíram para a rigidez do mercado
fundiário. Em zonas de maior densidade demográfica como Entre-Douro-e-Minho,
os efeitos dessa rigidez eram particularmente sentidos, sendo certo que o dinamismo
macroeconómico que caracteriza globalmente o século XVIII agravou o problema. É
neste contexto que se deve entender a intervenção legislativa do consulado
pombalino (1750-1777). Tanto mais que o aumento da disponibilidade de capitais
privados em virtude da mineração do ouro brasileiro e o crescimento demográfico
fazem pressupor uma maior pressão sobre as terras, em particular daquelas mais
produtivas, cuja aquisição era sinónimo de investimento seguro e símbolo de
distinção social. As restrições introduzidas à amortização eclesiástica, a supressão
dos vínculos de baixo rendimento e a definição de regras mais apertadas para a
constituição de novos vínculos fazem parte de um conjunto de disposições
legislativas destinadas a suavizar alguns dos aspetos mais rígidos do sistema
institucional vigente e a assegurar maior acessibilidade à posse da terra. No
entanto os seus efeitos práticos foram muito limitados, tanto mais que não estava em
causa uma completa desestruturação do sistema. Os 15 mil vínculos de baixo valor
extintos na década de 1770 estiveram longe de libertar para o mercado uma massa
fundiária significativa. Provavelmente porque envolveriam prédios de baixo
rendimento agrícola. Em todo o caso, o seu elevado número constitui uma prova mais
do que evidente da ampla receção que a prática de vinculação de bens teve na
sociedade portuguesa, ultrapassando largamente as fronteiras da nobreza.

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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

A persistência destas formas de amortização continuou, pois, a limitar o acesso à


posse plena da terra por parte de outros grupos sociais que não os tradicionais
terratenentes, embora o sistema comportasse também alguma mobilidade. Cabe
lembrar que, mediante as autorizações necessárias, desencadeadas junto dos
tribunais de corte, a nobreza podia sub-rogar bens vinculados e lançá-los no mercado
enfitêutico. Donde, apesar das limitações impostas pelo direito e pela jurisprudência,
o regime vincular não impediu que se realizassem transferências do domínio útil das
terras que lhe estavam submetidas.
Quanto às formas específicas de propriedade, resultantes das modalidades de
acesso à exploração da terra, ainda no século XVIII, as mais utilizadas eram a
enfiteuse e o arrendamento. Da ampla difusão da primeira modalidade contratual
decorria, como já se viu, o desdobramento dos direitos de propriedade sobre um
mesmo bem e a sua repartição entre vários senhorios (o titular, o enfiteuta e,
eventualmente, o subenfiteuta), de onde resultavam também mecanismos complexos
de apropriação da renda fundiária e a prevalência de formas limitadas ou imperfeitas
de propriedade. Embora ambas as modalidades se detetem por todo o país, a sua
utilização oferece um retrato contrastante entre o Norte e o Sul.
Assim, a norte do Tejo, a enfiteuse coletiva ou individual, enquanto instrumento
preferencial de fixação da população à terra, mostrava-se predominante. Sirva de
exemplo o Noroeste Atlântico, onde a ocupação secular do território, apropriado
maioritariamente por senhorios eclesiásticos e laicos, aliada a uma forte pressão
demográfica e a condições naturais que favoreciam a policultura, modelou a
paisagem rural. Predominavam as pequenas explorações agrícolas, trabalhadas por
famílias camponesas por meio de contratos enfitêuticos, sobretudo pelo
emprazamento em vidas, o mais amplamente utilizado neste recorte cronológico.
Já o Alentejo, e em particular a região de Évora, oferece um quadro diverso. Também
aqui, no início do século XVIII o senhorio primordial da terra repartia-se entre Casas
senhoriais (50%) e instituições eclesiásticas (36%). Contudo, diversos fatores, a que
não são alheias as características do povoamento do Sul e as condições ecossistémi-
cas da região, contribuíram para que a atividade agrícola, desde finais do século XVII,
fosse conduzida predominantemente em unidades de média dimensão. As chamadas
herdades eram exploradas por meio de contratos de arrendamento e orientadas
para a produção de uma agricultura comercializada, assente na produção de cereais e
pecuária. Todavia, não se pense que a enfiteuse estava ausente a sul do Tejo ou
que se relacionava em exclusivo com a pequena propriedade. Na região de
Lisboa, explorações de grande dimensão, mais valorizadas do ponto de vista
produtivo, surgiam muitas vezes associadas ao regime enfitêutico e ao seu universo
de relações. Em Beja, também se identificaram inúmeras herdades foreiras, enquanto

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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

a evolução ocorrida na região de Évora nos finais do Antigo Regime serve igualmente
de exemplo de uma dinâmica que associa a enfiteuse à grande propriedade.
Entre os dois polos extremos representados pelo Norte e pelo Sul, a configuração das
estruturas agrárias da Estremadura merece uma referência especial, pelo seu
panorama variado e complexo. As casas senhoriais tinham aqui uma forte
implantação patrimonial, mas a propriedade eclesiástica estava igualmente bem
representada, designadamente nas lezírias do Tejo. Enfiteuse e contratos de
arrendamento coexistiam nesta zona, onde pontuavam explorações de tipo muito
diverso, entre quintas vedadas, ocupadas com culturas variadas (pomares, vinhas,
pecuária), e casais mais votados à cerealicultura. Note-se, por exemplo, que a ordem
dominicana explorava o seu património nas lezírias do Tejo por meio de contratos
enfitêuticos, enquanto as casas senhoriais preferiam recorrer a contratos de
arrendamento para explorar o património mais produtivo e de maior dimensão,
como sucedia nos campos de Muge, Golegã e Valada.
Para já, este retrato fragmentário remete para um intrincado sistema fundiário
que limitava o exercício de direitos plenos de propriedade a vários níveis: por
um lado, pela existência de vários senhorios sobre um mesmo bem (senhorio direto e
senhorio útil), o que servia, aliás, de fundamento a uma ampla repartição do produto
agrícola; e por outro, pelas restrições impostas aos proprietários quanto à livre
disposição dos seus bens fundiários decorrentes da vinculação de bens. Panorama
diferente vive-se já nos finais do século XVIII na generalidade dos países europeus,
onde se assistia a uma tendência contrária de redução de formas imperfeitas de
propriedade.
Contudo, cabe frisar que a prevalência destas formas imperfeitas de propriedade
abriu caminho para múltiplas apropriações económicas e sociais por parte de
diversos agentes, demonstrando, afinal de contas, a flexibilidade do instituto
enfitêutico. Não raras vezes, a enfiteuse era utilizada como forma de investimento,
destinado a captar uma parte da renda fundiária: tomava-se uma terra no mercado
enfitêutico, para a arrendar ou subenfeuticar a um cultivador direto, prática que se
deteta em quase todos os estratos da sociedade portuguesa, incluindo elites locais,
urbanas e negociantes. Este tipo de prática, que visava atribuir ao foreiro um
rendimento estável, derivado da mais-valia entre o foro e o subforo ou renda, traduz
indiscutivelmente a contaminação de atitudes rentistas típicas dos grupos
privilegiados da sociedade. As próprias casas senhoriais mostravam-se permeáveis a
este tipo de utilizações da enfiteuse, atendendo a que os seus patrimónios tanto
comportavam a propriedade direta sobre bens cedidos em aforamento, como o
domínio útil de parcelas tomadas a outros proprietários. Vale ainda a pena sublinhar
que no século XVIII a abertura do mercado fundiário se operou menos por via da

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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

aquisição de propriedade plena, mas sobretudo pelo mercado enfitêutico. Uma


população em crescimento e a existência de capital disponível para novas
oportunidades de investimento justificam uma maior pressão sobre os recursos, que
encontrou no regime enfitêutico um instrumento para contornar a rigidez da
moldura institucional da posse da terra. No Alentejo, aproveitando o recuo da
propriedade plena dos senhorios aristocráticos, lavradores plebeus iniciaram um
movimento de concentração da lavoura por meio da aquisição de múltiplos domínios
úteis. Sem que o fenómeno tivesse a mesma dimensão, quintas no Douro alargaram-
se por meio do recurso ao mercado enfitêutico. Nesse sentido, formas imperfeitas
de propriedade, não obstaculizaram o mercado de terra, antes o serviram.
Este dinamismo do mercado fundiário não produziu, todavia, resultados que sugiram
mudanças nas estruturas agrárias e nos resultados, a avaliar pelas tendências
contraditórias reveladas em estudos regionais. A já referida concentração da
exploração no Alentejo deu início à emergência de uma nova estrutura
socioagrária, que só viria a consolidar-se no século XIX, e em que à grande
exploração corresponde também a grande propriedade. Pelo contrário, nas
terras da Estremadura Ocidental as transferências do domínio útil tenderam a
fragmentar a propriedade, contrariando qualquer tendência para a concentração
da exploração.
Por fim, no Antigo Regime agrário, tradições mais ou menos fortes de
comunitarismo agrário também condicionavam a exploração da terra, limitando
aquilo a que hoje chamaríamos de individualismo agrário. Se é certo que o uso
coletivo da terra não teve uma incidência homogénea sobre o território do país,
tendendo a rarefazer-se à medida que se avançava de norte para sul, no início de
Setecentos a apropriação coletiva de terras, geridas pelas coletividades locais (que
podiam ou não coincidir com as vereações camarárias), permanecia ainda uma
realidade a ter em conta em muitas regiões do país. Daí decorria a imposição de
uma disciplina coletiva em torno da organização de culturas e da pecuária que, entre
outros aspetos, pressupunha a existência de uma «bolsa» permanente de terrenos
maninhos e logradouros comuns, destinados a garantir pastagens aos rebanhos e o
fornecimento de lenha, Independentemente do seu papel social de sustentação e
reprodução da economia camponesa, regimes coletivos fortes e coesos tendiam a
acentuar o imobilismo agrário e a impedir tentativas individuais de reconversão
dos cultivos, vinculadas aos estímulos do mercado.
É justamente este quadro que sofreu algumas alterações no século XVIII. Sob a
pressão de uma população em crescimento e da atuação de lógicas capitalistas
dirigidas ao investimento fundiário, intensifica-se o movimento de apropriação
privada de baldios, concedidos geralmente por meio de contratos de aforamento,

A CONSOLIDAÇÃO, 1703-1807 - 13
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

comprovado para regiões tão diversas como o Minho, Coimbra, Alentejo e Algarve.
Para esta mutação na sociedade rural também contribuiu a legislação
pombalina de 1766 e bem assim o ambiente reformista de finais da centúria,
que via nas modalidades de propriedade coletiva um obstáculo ao progresso da
agricultura. Os efeitos práticos do lançamento destas massas fundiárias no mercado
de aforamento estão ainda por avaliar. Por um lado, nem sempre contribuíram para
desestruturar a sua apropriação coletiva e, por outro, não é certo que pudessem ser
utilizadas em proveito da produção cerealífera. Em todo o caso, o processo tornou-se
irreversível, contribuindo para o recuo da mancha florestal, percetível já no século
XIX.
Globalmente, são estas as características fundiárias de raiz medieval que ainda
persistiam no século XVIII, condicionando a atividade agrícola e limitando a livre
atuação das dinâmicas de mercado. A prevalência de formas de propriedade
imperfeitas, a desigual repartição social do produto agrário, as restrições à
mobilidade do mercado fundiário e a descapitalização da grande maioria dos
foreiros ou rendeiros contam-se entre os seus efeitos mais visíveis. Este cenário
ainda é agravado pelo desinteresse que as grandes instituições portuguesas do
Antigo Regime - mais a Coroa e casas senhoriais do que a Igreja - votavam à
atividade agrícola em si. No que diz respeito à nobreza, as suas estratégias
económicas estavam sobretudo voltadas para o serviço à monarquia e para a
reprodução social, assim explicando os baixíssimos níveis de investimento
alocados para o sector agrícola. Aliás, a mesma lógica de gestão patrimonial
preside também a outras nobrezas e aristocracias europeias, como as de França,
Itália e Espanha, pelo menos, durante a primeira metade do século XVIII.
No entanto, o sector haveria de responder aos desafios colocados pelo aumento
populacional e ao crescimento da procura final, com mercados externos recetivos a
bens agrícolas nacionais. Para começar, o aumento populacional, sustentado depois
de 1732, veio fornecer à agricultura um duplo mercado, o da oferta de trabalho e o da
procura de bens alimentares, potenciando a extensão dos cultivos. Também o
crescimento demográfico das duas principais cidades, Lisboa e Porto, mais intenso do
que a média do país, deve ser levado em conta neste cenário de expansão do mercado
interno. A capital teve neste domínio uma imensa capacidade polarizadora, não só
por albergar cerca de 6% da população do reino, mas sobretudo porque aí se
concentrava uma parte substantiva da riqueza do país enquanto sede da monarquia e
das unidades domésticas mais ricas do país (aristocracia e elite mercantil).
Os efeitos das remessas de ouro brasileiro também não podem ser esquecidos,
mormente pelas suas repercussões sobre a oferta monetária e no consumo. A nível
interno, nalguns sectores da população, a riqueza privada aumentou e com ela

A CONSOLIDAÇÃO, 1703-1807 - 14
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

alargou-se o mercado de procura de bens essenciais, bem como a disponibilidade de


capitais para investimento na agricultura. Igualmente animados pelo ouro, o mercado
ultramarino e o mercado externo tendem a dilatar-se neste recorte cronológico. O
primeiro aprofunda-se na sequência do acelerado crescimento económico e
populacional da América Portuguesa, enquanto o segundo demonstrou uma
significativa abertura às exportações agrícolas do reino, tendência que, no caso do
comércio com a Inglaterra, vinha já afirmando-se desde o último quartel do século
XVII.
Mercê da multiplicação destes estímulos, a agricultura setecentista acabaria por ser
palco de várias transformações, com efeitos no volume e na composição do produto
agrícola. Não se trata, é certo, de transformações radicais, mas antes de pequenos
ganhos conseguidos à custa da utilização extensiva de fatores produtivos e que
denunciam a adaptação de uma parte do sector aos mecanismos de mercado. Na
ausência de dados estatísticos que possibilitem a medição quantitativa dos avanços,
não faltam indicadores que permitem comprovar a flexibilidade do mundo rural
neste contexto favorável.
O alargamento da superfície cultivada é, sem dúvida, um deles. Fenómeno
atestado um pouco por todo o país, no Minho, Algarve, Alentejo e ao longo do Douro,
a conquista de novos terrenos para a agricultura operou-se sobretudo em
conjunturas favoráveis, como aquela que caracteriza os anos posteriores à Guerra de
Sucessão de Espanha. O afeiçoamento de novas terras tanto envolveu o arrotear de
terras marginais (como sucedeu no Algarve) e o aproveitamento de pauis, como a
apropriação privada de maninhos e logradouros comuns, fazendo-se mais por meio
de pequenos acréscimos do que por grandes arroteamentos.
Um segundo indicador favorável concretizou-se na tendência para uma
recomposição do padrão de cultivos, que obedece a um maior grau de orientação
para o mercado. A extensão das culturas de tipo mediterrânico com vocação
comercial é apenas uma das faces mais visíveis desse fenómeno, de que se encontram
inúmeros testemunhos no hinterland dos principais centros urbanos, em particular
daqueles servidos por portos marítimos e dotados de uma boa rede de
infraestruturas (fluviais e terrestres) que permitissem a articulação do tecido
produtivo com o sector comercial (como Lisboa e Porto). Neste quadro, a vinha foi a
cultura que mais se difundiu no século XVIII, prolongando, aliás, uma tendência que
provinha do período pós-Restauração em que se constituíram condições favoráveis à
colocação dos vinhos portugueses no mercado inglês, reforçadas pelo Tratado de
Methuen (1703).
Se não houve novidade nesta crescente especialização vinícola portuguesa, ela foi,
contudo, submetida a uma das mais apertadas formas de regulação pelo Estado,
A CONSOLIDAÇÃO, 1703-1807 - 15
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

através da instituição da Companhia das Vinhas do Alto Douro em 1756, com a


intenção de incrementar a reputação do produto, o que exigia qualidade. A
Companhia obteve o monopólio da distribuição a retalhistas na cidade do Porto e
teve a importante função de selecionar o vinho para exportação, que acumulou com o
tabelamento de preços. Pouco depois da sua instituição, foi-lhe concedido o
monopólio da destilação de aguardente, essencial ao envelhecimento do vinho que
ficaria com a designação de vinho do Porto.
As amplas atribuições de fiscalização da produção, fabrico, transporte e
comercialização da uva e do vinho pressupuseram a definição da primeira região
demarcada conhecida na história da vinicultura mundial. A demarcação, sujeita a
ajustamentos no período pombalino e a alargamentos no reinado de D. Maria,
abrangeu as comarcas da Beira, Trás-os-Montes e Minho, compreendendo 67
freguesias (cf. Mapa 7). A estrutura das propriedades incluídas na região demarcada
deu preponderância às quintas sobre as pequenas vinhas.
O protecionismo de Pombal não causou uma regressão na cultura da vinha fora da
região demarcada, apesar dos alvarás de 20 de outubro de 1765 e de 18 de fevereiro
de 1766 mandarem arrancar vinhas sob pretexto de, nas regiões visadas, haver
terras mais apropriadas ao cultivo de cereais. Alvejaram sobretudo as margens e
campinas do Tejo, Vouga e Mondego e terras da Estremadura, como Torres Vedras.
Esta tentativa de redução de áreas de vinicultura não invalidou o aumento da
produção extraduriense, que cresceu a uma taxa de 1,2% ao ano.
No final de Setecentos, a produção vinícola quase duplicara em relação ao início do
século, sendo o Douro apenas responsável por 13% dessa variação. Em 1782-1783,
uma fonte com dados incompletos quanto à totalidade da produção, mas válida para
a apreensão da estrutura das regiões produtivas, mostra a participação significativa
de outras áreas do país. Para um cômputo de 200 551 pipas, referentes a 74,9% da
produção nacional, à região demarcada cabiam 15,1%, ficando abaixo dos 21,1% de
Viana do Castelo, Guimarães e Porto (cf. Quadro n.° 35).
Assim, e pese embora a presença reguladora da Companhia, um pouco por todo o
país verificou-se um alastramento da cultura, seja no Minho, no Alentejo, no Algarve,
na Beira Litoral ou na Estremadura. Nesta última, polarizada por Lisboa, a produção
vinícola orientava-se não só para a procura da capital, mas também para o mercado
brasileiro, complementar do que era exportado pela Companhia a partir do Douro.
Tal como a vinha, a oliveira esteve também em expansão, beneficiando do ciclo
favorável proporcionado pelo crescimento do mercado brasileiro, ávido de replicar
na colónia o padrão alimentar mediterrânico. No final do século XVIII, as oliveiras
eram uma marca constante da paisagem rural portuguesa, desde o Minho ao Algarve.

A CONSOLIDAÇÃO, 1703-1807 - 16
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

QUADRO N.o 35
Produção nacional de vinho, aguardente e vinagre
(em pipas, 1782-1783)
média %

Viana, Guimarães e Porto 42 263 21,1

Miranda, Moncorvo 9020,3 4,5


Lamego, Viseu *
20 028 10

Região demarcada 30 250 15,1

Guarda, Castelo Branco 11 005 5,5


Aveiro, Coimbra 12 131 6

Leiria, Torres Vedras 25 161 12,5


Tomar, Santarém 18 089 9

Lisboa, Setúbal* 10 999 5,5

Alentejo 14 935 7,4


Algarve 6 668 3,3

Total* 200 551 74,9

* Dados incompletos. Fonte: Martins 1998: 216.

O mesmo sucedeu com os pomares, que se multiplicaram nos aros citadinos, em


resposta às solicitações do mercado urbano e da procura exercida pelo Norte da
Europa, concretizada, entre outros, no aumento dos citrinos. Enquanto exemplo de
um ajustamento das escolhas produtivas face aos estímulos de mercado, vale a pena
mencionar também o incremento da pecuária no Alentejo. Num cenário marcado
pela subida relativa dos preços de produtos pecuários (depois de 1710-1712), mercê
das solicitações da procura urbana regional e de Lisboa, a aposta na criação de suínos
e, sobretudo, de gado ovino representou nalgumas freguesias uma alternativa à
produção cerealífera.
Na recomposição da paisagem agrária merece ainda destaque o milho, que
continuou o seu alastramento a partir do Noroeste e afirmou a sua capacidade
expansiva na Beira Alta e Litoral e na Estremadura, cultivando-se em todas as
províncias do país no início do século XIX, incluindo o Algarve. Muito menor inserção
tinha o arroz, conhecido em Portugal desde o século XVI. Apesar dos sinais da sua
presença nos campos setecentistas, ainda se continuava a cultivar apenas de forma
esporádica e em zonas muito restritas, não tendo, por isso, grande expressão no
produto agrícola. Nestes termos, a única novidade no património agrário foi a batata,
introduzida em Portugal por volta da década de 1760. Embora havendo notícia do
seu cultivo em Trás-os-Montes e na Beira, seria só na centúria seguinte que haveria
de conhecer uma implantação mais decisiva.
Numa apreciação genérica do que se descreveu, mais terra e mais trabalho
refletiram-se certamente numa evolução positiva do produto agrícola. No entanto,
crescimento extensivo apenas sugere condições para a manutenção do produto per
capita, acompanhando a evolução da população, e não necessariamente o seu
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

aumento. Tanto mais que não é possível saber se houve ganhos de produtividade
conquistados ao longo do século. Pelo menos no que respeita ao trigo, os dados
disponíveis situam-se numa linha de continuidade relativamente a períodos
anteriores. Como já se viu, no Minho, nas terras do Mosteiro de Tibães a
produtividade do trigo e do centeio não ia além dos 1:4, enquanto nas do Mosteiro de
Ganfei, entre 1731 e 1748, a relação sementeira/colheita oscilou entre os 1:5 e os 1:6.
No Alentejo, as rentabilidades para o trigo eram mais elevadas: em Montemor-o-
Novo a variação foi de 1:6 e 1:7 entre 1721 e 1723, valores que ainda no início do
século XIX eram considerados bons, uma vez que a média se situava entre as quatro e
seis sementes. Se estes valores divergem significativamente dos rendimentos médios
de 1:10 e 1:11 que os agricultores ingleses e holandeses retiravam das suas terras
por volta de 1800, vale a pena notar que não andavam longe das médias registadas
para o contexto mediterrânico, na ordem de 1 para 6.
Numa tentativa de fazer um balanço sobre a atividade agrícola no século XVIII,
importa saber se as mudanças que estiveram em curso, designadamente a
recomposição do produto agrícola, implicaram um retrocesso da lavoura de cereais,
tal como insistiam os discursos de finais do século XVIII em torno da falta de pão. Na
ausência de dados quantitativos, esta é uma questão de difícil resposta. Dos estudos
regionais colhe-se bons exemplos de que a extensão de antigas e novas produções se
concretizou, quer fazendo uso das novas terras resgatadas para a agricultura, quer à
custa de processos de substituição de culturas. Não se pense, todavia, que a
intensificação de certas culturas de vocação comercial se fez necessariamente em
detrimento da cerealicultura, como os alvarás pombalinos que alvejaram a cultura da
vinha em certas regiões do país podem levar a crer. A expansão dos vinhedos fez-se
sobretudo à custa do aproveitamento de novas terras - dos baldios e das encostas
escarpadas do Douro transformadas em socalcos, isto é, de terrenos impróprios para
o cultivo de cereais -, mas também de uma exploração mais intensiva do espaço
agrário, de que a condução da vinha em enforcado constitui um exemplo.
Acresce ainda que, exceção feita ao Douro e a algumas zonas circunscritas da
Estremadura onde a viticultura foi explorada quase em monocultura, no resto do país
a multiplicação das vinhas fez-se sempre em harmonia com outras culturas, como a
oliveira, árvores de fruto e os cereais.
Já quanto à pecuária, pelo menos para o Alentejo há dados que comprovam a
existência de movimentos de regressão dos cereais tradicionais, em particular do
centeio, e da reconversão das terras que lhe estavam dedicadas, caracteristicamente
as mais pobres, em pastagens. Contudo, na vigência da conjuntura favorável da
primeira metade do século XVIII, esses movimentos ainda foram compensados por
dinâmicas de expansão dos cereais noutras terras, porventura de maior aptidão

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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

agrícola. A lógica de sobrevivência das comunidades rurais e o crescimento da


população impunham, afinal, que se continuasse a insistir no cultivo do pão, pelo que
o resgate de novas terras à agricultura serviu também de veículo à extensão
cerealífera e ao aumento da produção, pelo menos em conjunturas favoráveis.
Por fim, tenha-se em conta que a aposta em produções de vocação comercial exigia
investimentos de capital inacessíveis à maioria dos agricultores, o que também
impunha limites à sua capacidade expansiva. Dessa realidade é expressão a estrutura
de posse das quintas e vinhas no Douro em meados do século XVIII, centrada em
membros da nobreza local, militares, ordens religiosas e segmentos diferenciados da
população urbana, já para não falar do envolvimento de capitais ingleses na expansão
da viticultura.
Não obstante estas limitações estruturais, os sinais de adaptação do sector aos
novos estímulos do mercado são inequívocos. Nesse sentido, o século XVIII pôs
indubitavelmente em marcha algumas mudanças na paisagem agrícola. Em termos
relativos, os cereais tradicionais (trigo, cevada, centeio) tendem a recuar, mercê
da expansão das produções já referidas: o milho, de rendibilidade mais elevada que
o trigo, a vinha, a oliveira, a fruta, a horticultura e a pecuária. Longe de afetar todas as
regiões do país ou todos os sectores de forma indiferenciada, a atuação deste
fenómeno esteve dependente do grau de desenvolvimento regional e da existência de
boas redes de comunicação, capazes de conferir fluidez aos circuitos comerciais
internos e externos. Não é por acaso que os maiores níveis de subordinação do sector
agrícola ao mercado se fazem sentir nos campos de Lisboa, no Douro, no Minho, em
Setúbal, no Alentejo e no Algarve.
Esta apreciação globalmente positiva não pode ignorar que o sector continuava a
operar no quadro de uma matriz tecnológica que se situa numa linha de
continuidade proveniente de épocas passadas e que se revê nas rentabilidades
acima indicadas. Quer os sistemas de cultivo, quer as alfaias agrícolas não
registam neste período transformações dignas de nota. Incapaz de produzir
rendimentos marginais crescentes, o sector continuava a demonstrar uma grande
vulnerabilidade face à atuação de fatores acidentais (climáticos e político-
militares), sofrendo flutuações conjunturais mais ou menos agudas em que
situações de abundância alternavam com crises de escassez. Esta parece ser uma
constante, atestada por vários inquéritos regionais realizados em torno do Minho,
Beira Alta, Aveiro, Alentejo e Algarve, sobretudo para a produção cerealífera, graças a
contabilidades monásticas, séries de dízimos eclesiásticos ou dados sobre as rendas
agrícolas. Se é difícil identificar um padrão comum relativamente às tendências que
marcaram a centúria, mercê das especificidades regionais, vale a pena notar que o
ciclo mais favorável se registou entre 1720 e 1740/1750, décadas que coincidem

A CONSOLIDAÇÃO, 1703-1807 - 19
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

com o impulso expansionista demográfico. A partir daí e até 1780 são visíveis
flutuações de maior instabilidade, em que os sinais de ligeira progressão coexistem
com a tendência recessiva. Particularmente críticos foram os anos da década de
1760, em que fenómenos de escassez e de instabilidade de preços derivados de uma
sucessão de maus anos agrícolas ainda foram potenciados pelo envolvimento de
Portugal na Guerra dos Sete Anos (1756-1763).
A constatação destas flutuações, seja de crescimento, seja de recessão, que ocorreram
ao longo da centúria remete-nos para a evolução secular da produção cerealífera,
questão crucial que captou a atenção dos memorialistas da Academia Real das
Ciências. Observaram uma agricultura enferma, na senda de uma produção
discursiva em torno da imagem de decadência, vinda já do século XVII. As reflexões
do final de Setecentos, sobre a situação nacional afetada por uma agricultura
frumentária em crise, selecionaram o Alentejo para tecer um conjunto de
diagnósticos e propostas corretivas, enumerando quer o abandono de cultivos, quer
os usos alternativos da terra (cerealicultura versus criação de gado) como causas de
uma situação económica que punha o reino na dependência de «estrangeiros».
Ora, como os historiadores do pensamento económico bem sublinharam, os
discursos agraristas coevos são uma reconstrução, não constituindo necessariamente
uma fonte documental isenta da interferência de influências exógenas aos problemas
elencados. Por um lado, estavam abertos à importação de ideias de outros países e,
nesse quadro, é percetível o contágio do agrarismo espanhol nas críticas à pecuária.
Por outro, a Academia Real das Ciências significou a institucionalização da
sociabilidade de elites intelectuais em busca de um reconhecimento político através
de textos com conteúdos propedêuticos, segundo uma lógica em tudo idêntica à dos
arbítrios que proliferavam desde o século XVII.
Ao procurar definir os contornos da economia alentejana nas vésperas das
revoluções liberais, e auscultando os reparos dos memorialistas, a historiografia
produziu leituras contrastantes: por um lado, a crise das estruturas produtivas
alentejanas, evidente a partir de 1760, com os preços em alta, espelhava os limites da
produtividade face à pressão de uma população em crescimento; por outro, a
escassez cerealífera seria o reverso de formas de exploração vocacionadas para o
mercado, promovendo-se a substituição de culturas e a recomposição da paisagem
agrícola. Nesta última leitura, a obtenção de retornos compensadores por parte dos
detentores do domínio útil determinaria a afetação do fator terra a diferentes
culturas, em função de custos do trabalho e do rendimento marginal decrescente das
áreas menos adequadas a cereais. Observadores coevos viram nesta racionalidade
económica uma causa da insuficiência produtiva nacional e do recurso crónico às
importações cerealíferas.

A CONSOLIDAÇÃO, 1703-1807 - 20
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

Desprendendo-se dos juízos agraristas, Albert Silbert não corroborou a maior


dependência relativamente ao exterior no último quartel do século. José Serrão, em
parte indagando os fundamentos desta imagem decadentista desenvolvida pelos
memorialistas, centrou a sua atenção nas importações cerealíferas absorvidas por
Lisboa. Se a cidade sempre se alimentou de cereais do exterior, o contributo do
mercado interno para o seu abastecimento foi diminuindo. Numa relação de 45%
para o mercado interno e 55% para o externo em 1729, nos anos de 1778-1787, cada
um dos mercados participava com 28% e 72%, respetivamente, no
aprovisionamento da capital, o que parece confirmar o agravamento da dependência
frumentária do país em relação ao exterior nas últimas décadas do século. Contudo,
importa avaliar a representatividade dessas importações no conjunto da população
do reino, com base num consumo médio anual per capita estimado em 350 litros.
Mediante estes cálculos, José Serrão insistiu nas conclusões gerais de Albert Silbert.
Mesmo tendo em conta que, entre 1776 e 1795, a população crescia a uma taxa anual
de 0,24%, constata-se que as importações de cereais cobririam apenas entre 5,5% e
7% do consumo total (Quadro n.° 36). Embora existindo, a dependência
frumentária teria menor expressão no conjunto do país. Seria mais significativa
nas cidades do litoral, mercê das comunicações que tornavam o pão de mar mais
competitivo e de mais fácil acesso do que o pão do reino, como já acontecera desde o
século XVI. Dito de outra forma, a afetação alternativa da terra a explorações mais
submetidas ao mercado interno e externo, como vinho, gado ovino, e mesmo o
azeite, terá agravado a dependência cerealífera de Lisboa.
QUADRO N.° 36
Importação e consumo de cereais em Portugal (1776-1795)
Importações em N.° hab. por
Consumo Importações
Anos População (hl) % quantidades
(hl)
do consumo importadas

1776-1777 2 274 351 9 602 296 532 263 5,5 152 075

1778-1787 2 779 383 9 727 841 683 946 7 195 413

1788-1795 2 833 187 9 916 155 686 416 6,9 196 119

Fonte: Serrão 2005: 171.

Se os números não certificam um peso excessivo das importações de pão no quadro


do consumo agregado do reino, no balanço global que se pode traçar da evolução da
agricultura do século XVIII sobrelevam os aspetos positivos. Não houve
transformações radicais, é certo, e o sector continuou a operar no quadro de uma
moldura institucional e social que impunha restrições ao investimento na atividade e
à livre dinâmica do mercado fundiário. Ao mesmo tempo, limitações à
comercialização interna, derivadas de uma infraestrutura de transportes deficiente e
dos entraves colocados à livre circulação de bens, obstavam à formação e à

A CONSOLIDAÇÃO, 1703-1807 - 21
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

integração de mercados regionais. E, no entanto, os sinais positivos não podem ser


iludidos. O sector mostrou-se capaz de alimentar uma população em crescimento e a
diversificação de culturas assinala uma mudança qualitativa, não negligenciável,
específica de um sector dinâmico, a reagir aos estímulos da procura externa e
interna. No âmbito dessa realidade, há também que reconhecer que as alterações na
composição do produto agrícola terão permitido uma maior integração da
agricultura com a produção manufatureira. Disso mesmo é expressão o crescimento
dos lanifícios, um dos ramos que mais colaboraram no aumento do produto
industrial no século XVIII.
3. A expansão industrial
Entre os múltiplos indicadores que atribuem ao século XVIII europeu a ideia
unificadora de expansão conta-se também o dinamismo das atividades industriais,
que responderam positivamente aos estímulos gerados por um quadro
macroeconómico favorável. Contudo, na maior parte dos países europeus esse
crescimento fez-se à custa de uma utilização mais intensiva das técnicas existentes e
das modalidades já conhecidas de organização do trabalho manufatureiro. Na
verdade, as inovações tecnológicas que permitiram a transição para uma nova era
industrial só se começam a aplicar nas décadas de 1760 e 1770 na Grã-Bretanha e
seria necessário esperar pelo final da centúria para se assistir a uma difusão mais
alargada da sua utilização. Por conseguinte, e uma vez que a agricultura
permanecia o sector predominante, na esmagadora maioria das regiões europeias
a indústria continuou a ser uma atividade residual, dependendo do sector
primário, quer em termos da configuração da procura, quer da oferta de trabalho e
de matérias-primas.
Em Portugal, a evolução deste sector comporta marcas semelhantes à tendência
geral europeia. A procura de artigos transformados era largamente determinada
pela preponderância da sociedade rural, com fracos rendimentos e cujas
necessidades de consumo se centravam em vestuário, calçado, habitação, mobiliário,
utensílios domésticos e artefactos de metal para os instrumentos agrícolas. Pouco
diversificada e pouco exigente, a procura da sociedade rural continuava a
satisfazer-se por meio da produção manufatureira realizada no seio das próprias
unidades domésticas, tal como sucedia desde períodos recuados. A fiação e a
tecelagem (lã e linho), muitas vezes cometidas ao trabalho feminino, eram
largamente praticadas pela sociedade rural de norte a sul do país, enquanto as
tarefas de construção e de reparação das habitações ou de infraestruturas agrícolas
se procuravam também garantir, pelo menos em parte, por intermédio do recurso ao
trabalho familiar, devido a critérios de natureza económica.
Mas algumas necessidades específicas da sociedade rural ultrapassavam a
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

capacidade de produção própria, exigindo o recurso complementar ao trabalho


especializado realizado no quadro das oficinas profusamente dispersas pelo país,
não só nos centros urbanos mas também em povoações de menor dimensão. A
aquisição de calçado, de objetos de metal para as alfaias agrícolas ou de algum
vestuário mais fino justificou a ampla disseminação de artífices por vilas e
aldeias, como sapateiros, alfaiates, carpinteiros, ferradores e pedreiros. Nalgumas
localidades, a estrutura ocupacional da população aponta para proporções muito
diversas dos artífices, que podiam oscilar entre os 15% e os 25% do total. Não sendo
possível avaliar para o conjunto do país a atividade manufatureira conduzida pelas
oficinas e a sua distribuição sectorial, vale a pena reter a estrutura oficinal, ainda que
incompleta, que se conhece para Trás-os-Montes em 1796 (Quadro n.° 37).
QUADRO N.° 37
Estrutura oficinal em Trás-os-Montes (1796)
Ocupações Número Ocupações Número Ocupações Numero
Trabalho têxtil 1238 Trabalho de couro 327 Trabalho de Cera 18
Cardadores 273 Fabricantes de 301 Cerieiros
courama 18
Chapeleiros 40 Surradores 2 Trabalho de osso 11
Fabricantes de seda 498 Seleiros 24 Penteeiros 11
Fabricantes de lã 335 Olaria 125
Tintureiros 27 Louceiros 125
Torcedores de seda 65 Trabalho da madeira 52
Trabalho de metais comuns 575 Tanoeiros 17
Ferreiros 575 Soqueiros 35

Fonte: Macedo 1982a: 111.

Não considerando alguns dos ofícios mais comuns (sapateiros e alfaiates), esta
enumeração não deixa margem para dúvidas sobre a estreita articulação da
produção oficinal com a atividade agrária, expressa na profusão de ferreiros, nível
mais elementar da produção metalúrgica. Do quadro sobressai também o elevado
número de atividades ligadas à indústria da seda - fabricantes ou tecelões e
torcedores de seda no seguimento de uma tendência de especialização da região,
esboçada já desde tempos medievais, vocacionada para o abastecimento de um
mercado suprarregional e mesmo supranacional. Depois de ter atravessado uma
grave crise de produção a partir dos anos de 1760, mercê de uma alteração da
geografia produtiva, devido ao desenvolvimento da indústria das sedas de Lisboa, o
elevado número de fabricantes em 1796 releva uma parcial recuperação deste ramo.
Estas e outras contagens de ofícios falam de um trabalho artesanal que corporizava
as indústrias rurais ou protoindústrias, forma de organização industrial dominante,
bem representada em Portugal pelo menos desde o século XVI, como já se viu.
Baseadas também no trabalho realizado em unidades domésticas, a sua marca
distintiva radica no facto de a produção final se destinar não à vida local, mas a
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

mercados distantes, donde deriva também a sua dependência em relação ao capital


mercantil. Na continuidade do que se assinalou para épocas passadas, a dinâmica
favorável do século XVIII, do lado da oferta de trabalho e da procura final, criou
condições para o aprofundamento da atividade conduzida no quadro das indústrias
rurais, cujo sucesso assenta na combinação de variáveis distintas.
A observação da distribuição geográfica dos principais ramos do sector têxtil no
Portugal de Setecentos permite entrever as características gerais de um tecido
produtivo onde se combinavam as três formas de trabalho artesanal: doméstico,
protoindustrial e oficinal. A produção de panos de linho no Minho oferece um
exemplo paradigmático de uma indústria caseira e rural, vinculada à circulação
mercantil. Não sendo nova, de facto testemunhos do final do século XVIII e início do
XIX destacam a forte incidência da produção doméstica destes panos, colocados no
mercado interno, no Brasil e na Galiza. Exportações crescentes conduziram, aliás, à
necessidade de importação de matéria-prima do Báltico, tornada regular no último
quartel do século XVIII, devido à insuficiência do linho cultivado localmente. O peso
desta indústria caseira e a sua resistência expressam-se nos 6158 teares existentes
no distrito de Viana do Castelo e nos 2453 do Porto em meados de 1800. Tendo no
Noroeste a sua maior densidade, a indústria dos linhos disseminava-se ainda pela
Estremadura e até por zonas do interior, em Trás-os-Montes e até no Alentejo. Mas
era na Beira que a produção atingia de novo concentrações significativas. Para além
de Lamego, no distrito de Coimbra contabilizavam-se 1208 teares, ainda em meados
do século XIX. Recorrendo aos valores conhecidos das importações de matéria-prima
e a estimativas da sua produção nacional, admite-se que em finais do século XVIII
houvesse no país entre 120 000 e 200 000 teares ativos, concentrados sobretudo
no Minho e na Beira. Atendendo a que cada tear produzia 0,6 metros por dia,
haveria condições para uma produção anual de 18 000 000 metros por ano.
Tal como o linho, também a produção de lanifícios combinava as modalidades de
produção típicas de uma economia pré-industrial e as suas áreas de inserção
localizavam-se maioritariamente no interior, na sequência lógica de uma tradição
que remontava ao século XV. As maiores densidades produtivas encontravam-se na
Beira e no Alentejo.
Na primeira, a Covilhã destacava-se como grande centro coordenador da indústria
caseira dispersa pelos campos, onde se realizava a fiação, cabendo aos
estabelecimentos oficinais da cidade as tarefas mais exigentes de acabamento e
tinturaria dos tecidos. Quanto ao Alentejo, a geografia dos lanifícios distribuía-se pelo
Alto e Baixo Alentejo, com especial destaque para Portalegre e para a vila de
Redondo, onde as oficinas urbanas conseguiam polarizar a capacidade de trabalho de
um terço da população do seu termo.

A CONSOLIDAÇÃO, 1703-1807 - 24
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

Por meio destas manchas de especialização produtiva reconhece-se a capacidade de


atração e de consumo exercida pelos centros urbanos de maior dimensão, em
particular da cidade de Lisboa, para onde no início do século XVIII se encaminhavam
numerosos artigos produzidos um pouco por todo o país, com destaque para os
têxteis de seda, linho e lã. Mercê da sua condição de capital e sede de residência das
principais elites do reino, em Lisboa concentravam-se rendimentos elevados,
disponíveis para o consumo de artigos manufaturados, a justificar a organização de
circuitos comerciais que ligavam os centros de produção regional à capital. Para além
disso, cabe ainda notar que, no quadro artesanal já definido nos seus termos
genéricos para o país, Lisboa ocupava um lugar de exceção: na década de 1760,
quase 10 000 artífices distribuíam-se por mais de duzentos ofícios, para responder a
uma procura bem mais diversificada e exigente do que aquela que vigorava nos
meios rurais.
Assim, na disseminação do tecido empresarial industrial e, até, na geografia da
produção persiste uma fisionomia antiga. Mas um aspeto assume nesta centúria
particular relevância. Pelas políticas de fomento do sector, o Estado assumiu um
forte protagonismo. É este protagonismo que, aliás, tem fundamentado a cronologia
da industrialização portuguesa no Antigo Regime, vista como uma sucessão de
arranques e travagens, em movimentos correlacionados com as flutuações do
comércio externo. Depois da intervenção gizada por Duarte Ribeiro de Macedo e
implementada pelo conde da Ericeira, a historiografia reconheceu um novo impulso
fomentista, mais tímido que o seu antecedente, que coincide com as décadas de 1720
e 1740. Teve como linha orientadora a promoção de unidades fabris, isto é, de
manufaturas capazes de concentrar capital e trabalho em todas as fases de
transformação do produto, que à data eram escassas no tecido produtivo português.
Citem-se, como exemplo, o estabelecimento de uma fábrica de papel na Lousã, e as
fábricas de couros montadas em Alenquer e em Lisboa. Destinados a satisfazer uma
procura diferenciada, os vidros e as sedas conheceram um impulso significativo, que
se traduziu no estabelecimento de uma manufatura de vidraria em Coina que chegou
a empregar 44 artífices, e a Real Fábrica das Sedas do Rato, talvez a mais
emblemática das manufaturas do reinado de D. João V, estabelecida em meados de
1730, num edifício construído de raiz. Em qualquer destes casos, a iniciativa e o
investimento financeiro de particulares, entre técnicos estrangeiros e homens de
negócio nacionais, concretizava-se com a obtenção do apoio do Estado, expresso
sob a forma de isenções fiscais e exclusivos de fabrico.
Contudo, o balanço que se pode traçar do impulso manufatureiro joanino é
inconclusivo. Nas iniciativas de fomento não se entrevê uma política económica
estruturada e os seus resultados foram muito limitados. O mesmo já não se pode
dizer da política de fomento do conde de Oeiras, futuro marquês de Pombal, que
A CONSOLIDAÇÃO, 1703-1807 - 25
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

pôs em prática um programa mais alargado de intervenção. Tal como tinha


sucedido nos «surtos» anteriores, a intervenção de Pombal orientou-se para a
criação de novas fábricas, algumas administradas diretamente pelo Estado, outras
concessionadas a particulares, mas com o patrocínio estatal (as reais fábricas). O
sector alargou-se segundo este modelo de licenciamento que criava um estatuto
jurídico particular que cobria uma gama de possibilidades: a par das licenças para a
abertura de novas unidades fabris, concederam-se isenções fiscais e atribuíram-
se privilégios e exclusivos de fabrico. Esta política, que de algum modo era
discricionária, por implicar indeferimentos, visava fomentar a substituição de
importações, bem como a introdução de técnicas de produção inovadoras, em
geral dominadas por investidores estrangeiros. Assim sucedeu com a Real Fábrica
de Vidros da Marinha Grande dos irmãos Stephens, a maior unidade fabril do reino,
ou ainda com a fundação de fábricas de lanifícios em Portalegre e em Cascais que
envolveram a participação de técnicos franceses. Da concessão de exclusivos decorria
a imposição de preços máximos e uma monitorização por parte dos organismos
com estas atribuições: a Junta do Comércio e o seu sucedâneo, um tribunal régio
no período de D. Maria. Estas instituições responsabilizaram-se pela venda ou
transferência de exploração a particulares das fábricas que haviam contado com
fundos do Estado na sua fundação, como aconteceu, por exemplo, com a Real Fábrica
da Covilhã.
A profusão destes modelos organizativos mais complexos não contrariou de modo
algum investimentos privados noutras modalidades organizativas, continuando
a preferência por pequenas oficinas, urbanas ou domésticas rurais, até porque
ofereciam trabalho complementar às grandes unidades, mesmo as de investimento
do Estado. A Real Fábrica da Covilhã, laborando a lã reputada de fina e de boa
qualidade proveniente de Elvas e de outras regiões de transumância que se
estendiam do Alentejo à Guarda e Viseu, ilumina o significado económico dessa
complementaridade, seja porque unidades de grande dimensão não erradicaram
a oficina, seja pela participação desse trabalho oficinal ou doméstico no output
da fábrica, através do sistema de encomendas. Pelo exemplo do ano económico
1781-1782, sabe-se que 135 933 metros de pano foram encomendados pela fábrica
real a diferentes fabricantes na sua dependência, demonstrando quanto a escala fora
incrementada no espaço de um século. Recorde-se que as unidades do tempo do
conde da Ericeira, na Covilhã e em Manteigas, se projetavam, só elas, até atingir o teto
do consumo interno na ordem dos 198 000 metros, quantia quase igualada pelos
fabricantes dependentes das encomendas da Real Fábrica no final do século XVIII.
Não existe uma estimativa do total da produção desta unidade para aquele ano
económico de 1781-1782, mas, em confronto com a média da década anterior, os 19
267 metros anuais garantidos pelos teares da manufatura dizem o lugar das

A CONSOLIDAÇÃO, 1703-1807 - 26
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

encomendas no incremento da escala a que operava. No mesmo sentido, a Real


Fábrica de Lanifícios de Portalegre aproveitou a já antiga tradição de fiação existente
na região: das 1348 pessoas enquadradas pela fábrica, 979 correspondiam a
fiandeiras e tecelões, dispersos por uma vasta área em torno da cidade, que para ela
laboravam em regime de trabalho oficinal, doméstico. Esta lógica organizacional
tornava as fábricas em centros ordenadores e coordenadores de trabalho afetado a
pequenas unidades espacialmente dispersas. Nisso, em pouco se distinguiam do
modelo promovido pelo conde da Ericeira um século antes.
É possível que o condicionamento exercido pelos organismos públicos sobre as
iniciativas privadas tenha colaborado na importação de técnicas, mais do que numa
alteração da estrutura empresarial, que não se modificou substancialmente. Mesmo
entre os 200 estabelecimentos criados ou reformados na sequência deste impulso
fomentista, arrolados em 1777, as oficinas ou unidades de pequena dimensão eram
largamente preponderantes em relação às manufaturas. Mantendo-se a fábrica
uma forma residual de organização da produção, a seu tempo, esta estrutura
pulverizada contaria para a lentidão com que a indústria portuguesa incorporou os
novos equipamentos e maquinaria adaptados à energia mecânica do vapor. As
razões da preferência por unidades transformadoras de pequena dimensão
terão sido múltiplas. E não sendo o montante de investimento inicial a única, ela
deve ser ponderada. Pelo que se apura sobre casos pontuais em Portugal, nos finais
do século XVIII, as fábricas exigiriam investimentos elevados, até porque não raro
implicaram a construção das instalações de raiz, contrariamente a muitos dos
exemplos colhidos em Inglaterra, em que as unidades pioneiras da indústria
mecanizada não pugnavam por qualquer monumentalidade no edifício, pois a
adaptação de armazéns foi uma das soluções correntes. Em Portugal, encontram-se
exemplos de sociedades que reuniram capital entre 71 milhões e 96 milhões de réis,
somas sem dúvida muito elevadas.
Investimentos desta ordem progrediram sob um regime de proteção do Estado, que
não foi interrompido até ao final da centúria. Pautas protecionistas e interdições
de importação pontificam a política que deu seguimento à iniciativa pombalina,
mesmo que a administração direta e a assistência financeira do Estado às reais
manufaturas se retraíssem então, ficando muitas sob tutela única dos particulares
que as exploravam.
A adesão dos particulares a esta «privatização» de capital industrial fala da sua
expectativa de retornos, para o que não foi indiferente o mercado brasileiro. Por
alvará de 5 de janeiro de 1785, o reforço do pacto colonial interditou o
desenvolvimento de manufaturas na colónia, interdição que pela primeira vez na
história do império incluiu a refinação de açúcar. Contudo, tal preocupação dos

A CONSOLIDAÇÃO, 1703-1807 - 27
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

poderes em cercear atividades transformadoras na colónia já atravessara todo o


governo-geral do conde do Lavradio na década de 1770, ao mesmo tempo que se
pensava o fomento agrícola do Brasil nordestino.
Na falta de levantamentos pré-estatísticos, os resultados económicos deste regime
pressentem-se em levantamentos realizados na abertura do século XIX. Dos 11 180
operários da indústria recenseados, 5082 (43%) estavam empregados nos têxteis.
Neste subsector, os lanifícios compreendiam o maior número de unidades (sete) com
mais de 50 operários, entre as quais se achavam as manufaturas erigidas com
investimento do Estado, na Covilhã e Portalegre.
Tal como os lanifícios, a estamparia do algodão e da seda também captou o
investimento do Estado. A Real Fábrica do Rato, reformada no período pombalino,
constituiu-se como um polo de articulação de trabalho oficinal disperso pelo bairro
lisboeta das Águas Livres. Ainda que Lisboa se projetasse como um dos principais
centros de transformação da seda, não vale esquecer a consideração desta mesma
indústria na região transmontana, onde o surto manufatureiro no século XVIII não
atalhava a expedição de seda bruta para outros centros de consumo. Na verdade, a
comarca de Moncorvo, das regiões de maior abundância de matéria-prima adequada,
assistiu à atividade das fábricas de Cachim e de Freixo de Espada à Cinta. A primeira
vila alojava cinco unidades que em 1793-1794 ocupavam cerca de 75% da população
ativa local (479 homens e mulheres). A produção foi aqui promovida sob a inspeção
dos Arnaud, do Piemonte, na intenção de divulgar técnicas de fabrico inovadoras.
Também em Bragança, a vida económica da cidade dependia em larga medida desta
indústria, compreendendo uma fábrica de grandes dimensões, nela trabalhando 915
pessoas (407 homens e 508 mulheres), ou seja, cerca de 18% da população urbana.
Os veludos, tafetás e cetins saídos destas unidades tinham escoamento no reino, em
Espanha e no Brasil.
Este surto industrial foi ameaçado pelas guerras do final da centúria. Muitos
fabricantes abandonaram a cidade e o potencial tecnológico montado ficou
subaproveitado. A tentativa de recuperação partiu de um grupo de capitalistas do
Porto e de Lisboa que se associou aos Arnaud na constituição de uma companhia,
cujo alvará designa de «Real Companhia do novo estabelecimento para a fiação e
torcidos das sedas». Intentou perpetuar a divulgação de técnicas piemontesas,
promover as plantações de amoreiras, e atribuir prémios aos que se distinguissem na
criação de bicho-da-seda e fiação. Porém, tal episódio, em que negociantes das duas
grandes urbes portuárias controlaram a produção de uma região do interior
transmontano, soçobrou com as invasões francesas. A indústria não se extinguiria,
com novos ensaios de recuperação depois de 1810, mas a conjuntural prosperidade
vivida até 1797 não seria retomada.

A CONSOLIDAÇÃO, 1703-1807 - 28
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

Uma razoável liberalização das licenças para a fundação de fábricas no último


quartel do século, muitas vezes concedidas a iniciativas sem grande relevo
económico, reverbera na multiplicação de unidades. (Quadro n.° 38). Acompanha a
profusão de licenças, a participação da cidade do Porto. Entre 1766 e 1788 foram
licenciadas nesta cidade 41 fábricas, e três trespasses. Destas, 27 foram fundadas
entre 1778 e 1788. Importa ainda destacar a recetividade ao conhecimento alegada-
mente detido por agentes imigrados. Em 180 requerimentos entre 1757 e 1832, 114
(63%) foram submetidos por estrangeiros.
QUADRO N.° 38
Fundação de fábricas (1769-1788)
Ramos Até 1769 1770-1777 1777-1788

Açúcar 2 2 2
Cerâmica 1 2 11
Chapelaria 1 4 15
Curtumes 1 3 24
Destilação 3
Metalurgia 4 20
Quinquilharia 3 18
Madeira/pedra 1
Papel 2 2 2
Química, gesso, pólvora 4
Têxteis (total 4 26 84
Algodão 1 5 4
Estamparia 1 18
Lanifícios 1 4 6
Linho 5
Seda 6
Tinturaria 13
Meias de seda 16 28
Fio e tecidos de ouro e prata 1 4
Vidros 1 1
Bijutaria/pentes 1 4 41
Outros 2 5 9
Total 15 56 234

Fonte: Pedreira 1994: 59.

Sendo o têxtil o sector dominante em qualquer dos períodos compreendidos no


quadro acima, o avanço dos curtumes, chapelaria e bijutaria/pentes retirou
espaço percentual àquele sector. Em 1770-1777 perfazia 46% das licenças, já no
período seguinte desceu para 35%. Assinale-se, no entanto, o salto da estamparia e
das meias de seda. Qualquer destes ramos encontrou mercado protegido no
Brasil. A fase final do Antigo Regime económico em Portugal assistiu, pois, a uma
crescente participação de bens transformados no reino nas relações coloniais.
Esse foi, talvez, o maior alcance deste surto industrial que, a seu tempo, mitigou
a estrutura das relações externas muito moldadas pelas vantagens ditadas pelo
Tratado de Methuen durante a primeira metade da centúria.

A CONSOLIDAÇÃO, 1703-1807 - 29
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

4. O império e as relações com o exterior


Num quadro geral de intensificação das trocas internacionais que caracterizou o
século XVIII europeu, a estrutura do comércio externo português continuou a
demonstrar a relevância dos recursos coloniais. Significa que a reexportação
manteve uma importância globalmente superior ao comércio direto,
compensando-se as importações através da intermediação de uma gama de
produtos coloniais. A novidade, aqui, residiu na inclusão do ouro brasileiro.
Graças à explosão da economia mineira, entre 1700 e 1799, foram extraídas 856,5
toneladas de ouro. Se a produção total mundial rondou entre as 1400 e as 1620
toneladas, o Brasil ocupou a posição de maior produtor, garantindo entre 53% e 61%
da oferta do metal aurífero. Em virtude desta proeminência de uma colónia
portuguesa nos circuitos de metais amoedáveis, as grandes potências europeias
reconheceram particular vantagem na intensificação das trocas com o reino,
que assim se apresentou no sistema internacional como um dos maiores
exportadores de uma mercadoria essencial, com custos de transação inferiores a
qualquer outra mercadoria, visto ser mais rigorosamente submetido a
padronização quando fundido em barra ou moeda, e por servir de meio de
pagamento com aceitação internacional.
As importações nacionais continuaram marcadas pela ponderação dos bens
transformados, em parte para escoamento no Brasil, em parte para satisfação da
procura interna. A diversificação do consumo de bens finais nos grandes centros
urbanos permaneceu dependente de manufaturas estrangeiras, revelando-se uma
paulatina democratização do gosto por uma miríade de atavios de vestuário e de
objetos de uso doméstico, com eco em documentação coeva, indiciadora de
melhorias de níveis de vida, ao menos durante os três primeiros quartéis do século.
Nesta estrutura genericamente inalterada, ocorreram todavia modificações dignas
de nota nas mercadorias que corporizaram o comércio direto. A maior
visibilidade de bens intermédios importados, como sejam matérias-primas e
metais ferrosos e não ferrosos, sugere que o aumento da produção do reino
pressionou a procura de bens de capital, o que implicou uma gradual alteração na
geografia das relações externas, com os reinos escandinavos e o império russo,
fornecedores de bens semitransformados com aplicações em várias indústrias, a
conhecerem uma primazia sem precedentes na balança comercial portuguesa no final
do século XVIII.
Por outro lado, em consequência dos alinhamentos diplomáticos traçados na
Guerra de Sucessão de Espanha, em particular, pelo Tratado de Methuen, o vinho
português impôs-se num mercado europeu em crescimento. Se é certo que esta
especialização era já adivinhada nos séculos anteriores, quando, por ocasião das
A CONSOLIDAÇÃO, 1703-1807 - 30
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

guerras anglo-francesas, o vinho português concorreu com o produto congénere


francês, a moldura diplomática de Methuen libertou os ritmos da exportação dessa
contingência. Deu azo à extensão da vinha no território nacional, o que ao longo
da primeira metade de Setecentos causaria a redução do peso relativo do vinho do
Porto no conjunto das exportações, que em 1715 representavam dois terços de
todo o produto exportado.
Deste modo, a diplomacia foi condição para as transformações no tecido
produtivo nacional. Mas às consequências de Methuen na economia portuguesa
associa-se uma outra causa, fortuita, decorrente da descoberta de ouro na colónia.
Ora, ainda que a articulação dos dois fenómenos não seja inteiramente dependente
da disponibilidade de meios de pagamento em Portugal, a procura inglesa de vinho
português cresceu, em muito devido à abertura do mercado português às
manufaturas inglesas. Porém, os fluxos deste meio de pagamento, seja em fase de
expansão, seja em fase de recessão, não esgotam a clarificação das tendências nas
importações, percetíveis ao longo do século XVIII. No perfil das trocas entre Portugal
e a Inglaterra pressentiram-se igualmente transformações na ordem internacional,
na qual esta potência foi tendo um papel cada vez mais central. Por isso, as relações
anglo-portuguesas servem de barómetro da dinâmica do comércio externo e ilustram
o modo como se operou a integração dos circuitos coloniais nos circuitos
intraeuropeus ao longo da centúria.
Faltando balanças comerciais para os três primeiros quartéis do século, não é
possível avaliar com rigor a evolução do volume e dos valores do comércio com todos
os parceiros, mas informação sobre os saldos em certos anos permite uma primeira
caracterização do comportamento do sector. Nas primeiras décadas do século, os
saldos negativos eram já bastante mais pronunciados do que na década de
1680. Por essa altura, as informações que na corte foram recolhidas para
monitorizar os resultados da política de substituição de importações do conde da
Ericeira deram conta de um défice de 782 milhões de réis, resultado de exportações
orçadas em 1310 milhões de réis e de importações de 2092 milhões de réis. No ano
de 1729, um relatório elaborado por um próspero negociante inglês residente em
Portugal dirigido ao embaixador asseverava que o défice ascendia a 2964 milhões.
Convém sublinhar que tal agravamento não impediu o incremento do valor das
exportações relativamente ao final do século XVII. No entanto, estas apenas
cresceram 474,5 milhões de réis, enquanto o valor das importações se fixou, nesse
ano de 1729, em 4449 milhões de réis.
As relações entre Portugal e Inglaterra traduziam 67% desse saldo comercial
negativo do ano de 1729, ascendendo a 1994 milhões, e ao qual se juntava o défice de
670 milhões no comércio com a França. Admite-se que estas balanças bilaterais

A CONSOLIDAÇÃO, 1703-1807 - 31
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

tenham representatividade para descrever as tendências nas disponibilidades de


liquidez de Portugal sobre o exterior durante parte do século XVIII, por isso no
Gráfico n.° 12 elas foram integradas com as séries que compreendem todos os
parceiros comerciais (Gráfico n.° 12).
A observação dos saldos revela uma primeira metade da centúria em que as trocas
externas se caracterizaram por balanças comerciais negativas e por uma redução do
défice no consulado pombalino, depois de na década subsequente ao terramoto se ter
atingido um patamar inédito, tangente aos 6000 contos, logo nos dois anos de
1756 e 1757. Voltaram a registar-se picos em 1760 e 1761, anos em que Portugal
participou na Guerra dos Sete Anos, com 4180,6 milhões e 4316 milhões de réis,
respetivamente, de saldos negativos. Uma vez passada esta fase crítica, em que a
reconstrução dos danos do terramoto e a dependência externa de munições de
guerra justificaram estes booms nas importações, houve condições para mitigar o
comportamento desfavorável das balanças. O final do século exibiu uma mudança
significativa. Vários anos de saldos positivos ocorreram, mesmo com a Inglaterra. A
par desta mudança fundamental, verificou-se a diversificação dos parceiros, com
particular relevo para as economias escandinavas e a Rússia, que se tornou
responsável pelos défices mais pronunciados nas trocas externas.
GRÁFICO N.# 12
Saldos da balança comercial (1720-1807)

Fontes: Fisher 1971: 206-208; Godinho 1955:230; Labourdette 1988. Para os anos
1776,1777,1783,1789,1796-1807. Balanças Gerais do Comércio, AHMOP, Fundo Superintendência
Geral dos Contrabandos.

A alteração do comportamento da balança comercial no final do século foi


acompanhada de um salto significativo no valor das importações e exportações a
preços correntes, em parte porque a inflação iniciada na década de 1780 foi um
fenómeno comum à Europa e a Portugal. Em todo o caso, a variação dos valores não
teve apenas uma explicação nos preços, expressando a rutura com uma estrutura que
A CONSOLIDAÇÃO, 1703-1807 - 32
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

havia sido caracterizada por estabilidade das exportações e diferentes tendências nas
importações, razão principal da flutuação do défice (cf. Gráfico n.° 13). A redução
dos défices encetada no consulado pombalino não se deveu a um incremento
das exportações, mas sim a uma retração das importações, pois só no último
quartel as exportações descolaram.
GRÁFICO N.° 13
Importações e exportações (1720-1807)

Fontes: Fisher 1971:206-208; Godinho 1955:230; Labourdefte 1988. Para os anos


1776,1777,1783,1789,1796-1807. Balanças Gerais do Comércio, AHMOP, Fundo Superintendência
Geral dos Contrabandos.

Não há que duvidar que o comércio externo no final do século comportou feições
novas. Não extrapoláveis, por isso, à primeira metade ou, até, a todo o reinado de D.
José. Contudo sendo assente que a França e a Inglaterra eram parceiros com peso
no comportamento da balança comercial, seguramente, entre 1703 e 1775, estes dois
casos nacionais descortinam algumas razões da mudança que o sector experimentou.
Na evolução das trocas com estas duas economias, entre 1703-1716 e 1775, as
exportações oscilaram numa banda limitada a 1000 e 2000 milhões de réis. Já as
importações descreveram várias tendências dentro de uma flutuação com uma
amplitude de 3000 milhões de réis. A primeira conjuntura, de aumento considerável,
estendeu-se até finais dos anos de 1730. Seguiu-se uma estabilização à volta dos
5000 milhões de réis, com um pico na sequência do terramoto e, por fim, uma
marcada redução (Gráfico n.° 14). No desenho destas tendências contaram de
sobremaneira as relações anglo-portuguesas.

A CONSOLIDAÇÃO, 1703-1807 - 33
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

GRÁFICO N.° 14
Importações de Inglaterra no comércio externo português (1720-1775)

Na intensificação das relações com estes dois parceiros, o peso das exportações
sobre as reexportações era diferente. Enquanto para a França os bens coloniais
contavam em mais de 50%, nomeadamente couros brasileiros, para a Inglaterra à
volta de 80% dos valores reportavam-se a vinho. Deste modo, as relações com a
Inglaterra continham sinais de distinção, tanto pela maior proporção de comércio
direto, como pela sua incidência nos défices para Portugal. Esses traços são um
sintoma de que na aproximação das duas economias jogou a exploração do
potencial dos respetivos recursos internos e não tanto o papel que ambas
desempenhavam num sistema internacional de distribuição de produtos
coloniais.
Nas exportações das duas economias, a ponderação que coube a cada um dos
mercados revelou diferenças sugestivas de que a posição portuguesa não foi
reciprocada. As exportações britânicas para Portugal chegaram a perfazer 19,1% do
total do comércio externo britânico, no quinquénio de 1736-1740. Desagregando os
valores por mercadorias, reconhece-se que os têxteis expedidos para Portugal
chegaram a representar 50% das exportações inglesas deste sector. Em
contrapartida, entre 1711 e 1770, as exportações portuguesas eram
esmagadoramente reportadas a vinhos. E se não é possível medir a preponderância
da Inglaterra no total das exportações portuguesas na primeira metade do século
XVIII, suspeita-se que preenchia uma parcela bem superior à que esta potência
detinha no final do século XVIII, quando então orientava cerca de 40% das relações
externas portuguesas. Num apuramento destas hierarquias para os princípios do
A CONSOLIDAÇÃO, 1703-1807 - 34
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

século, informações esparsas sobre tráfego marítimo trazem dados que vale a pena
espreitar. Considerando Lisboa um bom estudo de caso, as gazetas do ano de 1718,
por exemplo, noticiavam que entre janeiro e abril haviam passado pelo porto 125
embarcações, das quais 65% com bandeira britânica, contra apenas 23% francesas,
informação que corrobora a do embaixador, segundo os quais o comércio francês
seria aproximadamente 35% do inglês. As décadas seguintes confirmaram a
subida da importância da navegação britânica no comércio português. Em 1720,
os pavilhões ingleses moviam 40% do tráfego de Lisboa; em 1725, 54,5%; e em 1732
atingiram os 74,8%119.
Por se admitir que a complementaridade entre as duas economias teve
consequências distintas, obras marcantes da ciência económica debruçaram-se sobre
as virtudes ou pecados da ingerência de negócios diplomáticos nos mecanismos de
especialização produtiva. As críticas de Adam Smith ao Tratado de Methuen
radicavam no facto de que penalizara o consumidor inglês, ao privá-lo do vinho
francês, mais barato e de melhor qualidade. Por outro lado, não acreditava que as
relações preferenciais com Portugal contassem significativamente para a prestação
da economia inglesa, embora admitisse que haviam dado acesso a meios de
pagamento que sustentavam o comércio de entreposto britânico com benefícios na
ampliação do cabaz de consumo do inglês médio. Mesmo subestimando a
importância das relações bilaterais, Adam Smith viu no acordo condições para a
obtenção de metal amoedado, o que, por sua vez, colocava as consequências do
tratado no seu devido contexto, dependente, portanto, de um aumento da procura
portuguesa graças à maior abundância de meios de pagamento providenciados pela
colónia brasileira. Assim, destacava o papel do Tratado de Methuen na integração dos
fluxos coloniais nas trocas intraeuropeias, recordando a relevância que o comércio
transitário alcançou na economia internacional no século XVIII. Todavia, cerca de um
século mais tarde, Frederic List apontou a desindustrialização portuguesa como
reverso da hegemonia britânica. O mesmo tipo de suspeitas se fizera ouvir em
Portugal, em pleno período mercantilista, na voz de D. Luís da Cunha e de Alexandre
de Gusmão, que entenderam o esforço fomentista do conde da Ericeira como
condenado.
Os juízos sobre o tratado seriam retomados pela historiografia do século XX para
sublinhar as suas consequências negativas em virtude de vantagens desiguais obtidas
numa dada especialização produtiva. Outras apreciações, devolvendo-o à sua
temporalidade própria, minimizaram as suas consequências na possível interrupção
do programa industrial de Ericeira. De qualquer forma, o Tratado de Methuen foi
indissociável da viragem atlântica da política nacional, e com ela veio a
transferência da defesa para uma potência externa, condições de manutenção

A CONSOLIDAÇÃO, 1703-1807 - 35
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

da soberania, com dividendos bem revelados no início do século XIX, aquando


das invasões francesas.
Pese embora a moldura diplomática se manter inalterada até 1810, as relações anglo-
portuguesas sofreram transformações, com efeitos na contração das importações a
partir de 1760, que prepararam a gradual redução dos défices da balança comercial.
Prova de que não era a moldura diplomática, per se, a razão única dos saldos
negativos portugueses. Uma descrição das mercadorias envolvidas clarifica os
caminhos da mudança. Anteriormente à contração das importações, 70% a 84% do
comércio inglês com Portugal respeitaram a têxteis de qualidade diversa, sendo as
baetas aquela categoria que experimentou maior incremento. No quinquénio 1706-
1710, ainda não estando em vigor o Tratado de Methuen, as importações de baetas
rondaram uma média anual de 159 000 libras (572,4 milhões de réis). No quinquénio
de 1736-1740, haviam disparado para os 1566 milhões de réis e ainda continuariam
a subir, em 1756-1760, para 1594,8 milhões de réis. Nem as perpetuanas e sarjas,
meias de lã, ou chapéus de feltro perfizeram montantes aproximados. Nas sarjas, por
exemplo, o máximo alcançado encontrou-se no quinquénio de 1736-1740, num
montante de 619,2 milhões de réis, enquanto as meias estambradas e chapéus
rondaram os 288 milhões de réis123.
Este tipo de bens manufaturados sofreu a maior contração depois de 1762, pois o
tráfico de trigos e farinhas, provenientes das colónias inglesas americanas, reanimou-
se após o terramoto de 1755 e não houve sinais de quebra nos circuitos dos metais,
como ferro e cobre, cujas importações tiveram uma variação percentual positiva de
5,4% ao ano, entre 1761 e 1775. Assim, metais destinados à produção de bens de
capital (ferro e cobre) e às indústrias pesadas - construção civil e naval -, tal como os
bens alimentares intermediados por agentes ingleses radicados em Portugal,
nomeadamente o trigo da Sicília e da Turquia, ou o bacalhau, o arroz e as farinhas
norte-americanas, continuaram a chamar aos portos do reino navios de bandeira
inglesa. Houve, portanto, uma redução da importação de manufaturas e uma
participação crescente de bens alimentares e matérias-primas, o que bulia com
valores inferiores aos dos têxteis. Simultaneamente, ocorreu um ligeiro aumento das
exportações portuguesas para Inglaterra.
A estrutura do comércio entre as duas nações modificou-se, o que invalida uma
explicação unicausal para redução dos défices da balança, apesar de a
historiografia ter confinado o problema à retração dos fluxos de ouro brasileiro e a
uma crise na economia portuguesa que, começando por ser financeira e do Estado em
virtude da redução do imposto sobre o ouro, se estendeu ao sector comercial, para
vir a afetar todo o tecido produtivo português, incluindo a agricultura. A crise teria
resposta na política económica pombalina da década de 1760, virada para a

A CONSOLIDAÇÃO, 1703-1807 - 36
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

promoção industrial, numa cópia do que sucedera no último quartel do século XVII,
quando a escassez de meios de pagamento obrigou a encontrar solução na
substituição de importações.
Mesmo que a política económica pombalina de promoção manufatureira não tivesse
ainda tempo de maturação para dar resultados na balança comercial nos anos de
1760-1770, também a ideia de uma retração nas disponibilidades de liquidez sobre o
exterior, que contrairia a procura portuguesa, carece de prova e, mesmo a ter-se
verificado, não esgotaria o feixe explicativo das transformações operadas na
estrutura do comércio anglo-português. A cronologia não é anódina, pois evoca os
impactos da Guerra dos Sete Anos na ordem internacional, para a qual pouco
interferiu a participação portuguesa no conflito. Mais importante foi a repartição
de domínios coloniais americanos entre a França e a Inglaterra, com
consequências na geografia do comércio internacional, fenómeno só em parte
dependente do que ia ocorrendo em Portugal, uma vez que os lucros na exportação
de manufaturas inglesas para as respetivas colónias seriam superiores aos da
exportação para os mercados europeus, incluindo Portugal.
Com efeito, a Guerra dos Sete Anos constituiu um marco decisivo na inserção da Grã-
Bretanha nas trocas mundiais e nas estratégias de negócio dos agentes ingleses. A
maior parte do Canadá francês e as quatro ilhas francesas das Caraíbas entraram no
seu exclusivo colonial. As exportações inglesas a partir da década de 1770
descrevem-se pela sobreposição esmagadora dos fluxos dirigidos às Américas, Ásia e
África. As exportações de produções domésticas para o conjunto das colónias
inglesas e de outras potências aumentaram de 5461 milhões de libras para 19 787
milhões de libras entre 1772-1775 e 1797-1812. Quanto ao comércio europeu, o
aumento foi de 6068 milhões para 11 306 milhões de libras, no mesmo período. Nas
balanças de pagamentos com cada uma destas áreas, as vantagens do comércio
extraeuropeu reafirmaram-se, subindo de 2085 milhões para 7793 milhões de libras.
Já no comércio europeu as variações são negativas, descendo de 336 milhões para -
4157 milhões de libras. Este desvio do comércio inglês relativamente ao sistema
europeu, com uma amplitude sem par noutras potências coloniais, encetou-se
depois da Guerra dos Sete Anos.
Quanto ao que faziam os negociantes ingleses em Portugal, uma monografia, única
em exemplo, dos negócios de uma casa de comércio envolvendo figuras da sociedade
inglesa demonstra, por seu turno, a coincidência com a década de 1760, ou talvez
não, de novas opções de negócios desta casa, quando deixou de importar têxteis para
se especializar no desconto de letras em Portugal e exportação de ouro. Diferentes
indícios, portanto, de que a importação de manufaturas para Portugal foi
garantindo prémios menores relativamente a outros mercados alternativos. Tal

A CONSOLIDAÇÃO, 1703-1807 - 37
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

situação convidou os agentes ingleses em Portugal a procurarem novos campos de


atividade, entre os quais o próprio tráfico de metal precioso, e a diversificarem os
seus investimentos no comércio transitário, assegurando os circuitos portugueses
com o Mediterrâneo (França e Itália) a partir de Lisboa, pelo que não era tanto o
movimento de mercadorias, mas sim os invisíveis obtidos na transferência de
capitais e nos serviços de transporte o que enriqueceu a carteira dos ativos da
comunidade inglesa em Lisboa.
A viragem que a Guerra dos Sete Anos introduziu no sistema colonial inglês
repercutiu-se na estrutura do comércio externo português, sendo relativamente
secundário o que sucedia com os fluxos de ouro, pois o que fora acumulado no reino
constituiria condição para diferir temporalmente os efeitos da retração da
exploração mineira no Brasil. A comparação entre as quantidades aportadas em
Lisboa e sua necessária exportação para compensação de saldos negativos da balança
comercial desmente a presumida e difundida ideia de que o ouro apenas passou
pelos portos nacionais, drenando-se pelas praças europeias, enquanto a parca
quantidade retida seria utilizada maioritariamente em bens de ostentação.
No desbravamento desta questão, antes de mais, as remessas entradas no reino
clarificam que houve distintas cronologias dos fluxos em função de duas
categorias institucionais de recetores: o Estado, em princípio coletor de um
quinto da produção, e os particulares, a quem coube a responsabilidade dos
restantes quatro quintos. Num total de 271 mil milhões de réis descarregados entre
1720 e 1807, 211 mil milhões transitaram por circuitos particulares e os demais 59
967 milhões de réis respeitaram a circuitos financeiros do Estado, correspondendo à
receita líquida de impostos cobrados na colónia. Ao longo do consulado pombalino,
tendendo as remessas públicas a incluir uma fiscalidade mais diversificada do que a
incidente na produção de ouro, a esta receita havia que retirar as despesas que
eventualmente lhe eram consignadas na administração colonial, nomeadamente com
a defesa da região meridional. Quanto aos envios particulares, se maioritariamente
referentes a pagamentos, englobavam ainda remessas de emigrantes, transferências
de capital e receitas auferidas por negociantes/contratadores dos contratos de
arrendamento de arrecadação de rendas públicas.
As flutuações revelaram, no entanto, diferentes dinâmicas, sendo que as taxas de
variação tiveram sinais contrários segundo as categorias de recetores até 1764 (cf.
Quadro n.° 39), Por seu lado, a contração dos montantes manipulados por agentes
particulares iniciou-se na década de 1750, agravou-se em 1760 e só assumiu valores
criticamente baixos depois de 1780. Todavia, importa salientar o período que
mais contribuiu para os cofres de Estado foram os anos de 1760, em pleno
consulado pombalino, precisamente quando se verificou a tendência descendente nas

A CONSOLIDAÇÃO, 1703-1807 - 38
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

importações inglesas, o que tem sido interpretado como o efeito de uma crise
financeira, mas que não se confirma com os valores recolhidos na mais fidedigna
fonte fiscal incidente nestes fluxos, um imposto de 1% sobre todas as cargas de ouro.
QUADRO N.° 39
Remessas de ouro do Brasil (1720-1807)
Privados Variação Estado Variação anual
Período
(contos) anual média (contos) média
1720-1724 13 290 2118
1725-1729 18 807 0,42 6403 2,02
1730-1734 14 257 -0,24 6764 0,06
1735-1739 15 948 0,12 3456 -0,49

1740-1744 23 621 0,48 5835 0,69


1745-1749 23 766 0,01 2397 -0,59

1750-1754 21 331 -0,10 4912 1,05


1755-1759 16 356 -0,23 4880 -0,01
1760-1764 12 212 -0,25 6192 0,27

1765-1769 13 306 0,09 6406 0,03


1770-1774 12 443 -0,06 3015 -0,53
1775-1779 9427 -0,24 1285 -0,57
1780-1784 4688 -0,50 2313 0,80
1785-1789 873 -0,81 780 -0,66

1790-1794 791 -0,09 519 -0,92


1795-1799 3661 3,60 1321 1,54
1800-1807 6303 0,72 1369 0,04

Fonte: Costa, Rocha e Sousa 2011.

Apesar das interdições legais à livre exportação de metal precioso desde tempos
medievais, as práticas de negócio tornaram essas disposições letra-morta, com a
inevitável condescendência das autoridades. Durante o século XVIII, aliás, as ligações
entre Portugal e Inglaterra justificaram a vinda dos paquetes de Plymouth que
oficialmente garantiam os fluxos de informação entre os dois Estados. A imunidade
diplomática fez destes navios o melhor meio de acomodar o ouro e a moeda
exportada, em grande parte para compensar os saldos negativos da balança de
pagamentos de Portugal. Assim, a ideia de ouro em trânsito pelos portos
nacionais consagrou-se na historiografia, ou pelo menos avançou-se com a
estimativa de que três quartos se drenaram para o exterior. E é verdade que
praticamente toda a amoedação de ouro em Inglaterra correspondeu ao valor dos
saldos negativos de Portugal, revelando a dependência da amoedação inglesa da
oferta portuguesa de metal precioso.
Apesar desta saída de liquidez, as quantidades descarregadas foram
suficientemente elevadas para permitir acumulação no reino. O confronto dos
fluxos das chegadas com os saldos das balanças comerciais e de capitais permite
reconsiderar o contributo do império na economia do século XVIII atendendo à
A CONSOLIDAÇÃO, 1703-1807 - 39
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

variável monetária. Por falta de informação sobre balança de capitais, a estimativa


apenas pode observar a saída de metal como meio de pagamento. Ora, se sem dúvida
a maior parte se derramou para o exterior, as quantidades entradas foram superiores
aos défices em muitos anos, possibilitando a formação de um stock (Gráfico n.° 15).
GRÁFICO N.° 15
Stock de ouro (1720-1807)

Esse stock de ouro teve uma progressão notável. E mais de 80% tomou a forma de
moeda. É verosímil que o remanescente fosse utilizado em bens de «ostentação»,
que deverão ser equacionados como reservas de valor (em baixelas e joalharia) e na
decoração de interiores que deu o tom dourado ao barroco e rococó português. Esse
consumo alternativo do ouro não coibiu o aumento da oferta de moeda. Se os anos
1755-1765 se revelam de facto singulares, não o foram por qualquer contração, mas
pela estabilização conjuntural na tendência de acumulação. Por sua vez, nos tempos
em que as remessas tocaram níveis muito baixos, os saldos positivos da balança
comercial impediram a delapidação deste stock. Não terá sido, portanto, falta de
ouro no reino a razão da contração das importações de têxteis ingleses desde
1765. Assim a indústria portuguesa terá tido um papel importante na
substituição das manufaturas que a Inglaterra divertiu para os seus espaços
coloniais. De resto, este reforço dos sistemas coloniais foi fenómeno comum a
Portugal.
O Brasil afigurou-se como o principal mercado ultramarino no século XVIII,
durante e depois da prosperidade mineira. Absorveu 80% a 90% do comércio
português, cujo padrão na primeira metade do século assentava na reexpedição de
produtos europeus, fundamentalmente têxteis, chapéus, quinquilharia, vestuário,
metais, e na exportação de alguns dos linhos minhotos, bens alimentares (azeite,
vinho e farinhas), além do bacalhau, que corporizava outro dos circuitos de
reexportação, pois a frota pesqueira portuguesa havia muito que não dominava as
águas da Terra Nova. Das estimativas precárias sobre a participação de mercadorias
A CONSOLIDAÇÃO, 1703-1807 - 40
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

estrangeiras, os números apontam para que 60% respeitavam aos têxteis ingleses.
No retorno, as frotas mercantes transportavam couros, em quantidades
crescentes, açúcar, tabaco, pau-brasil e ouro.
Em meados do século, as cargas brasileiras diversificaram-se, entrando o arroz
do Maranhão, o café e o algodão, para o que contribuíram as companhias coloniais do
Grão-Pará e Maranhão e a de Pernambuco e Paraíba, fundadas no consulado
pombalino, cabendo-lhes o fomento agrícola das regiões nordestinas e do Norte. A
história destes institutos preenche uma das fases de política económica do reinado
de D. José que adiante se detalham. Agora pretende-se relevar o seu enquadramento
no crescimento da economia brasileira, apesar do relativo desinvestimento na
atividade aurífera posterior a 1760. Além da recuperação da economia dos engenhos
que a companhia de Pernambuco e Paraíba favoreceu, com o açúcar a ter escoamento
preferencial em Hamburgo, a Companhia do Grão-Pará e Maranhão incentivou por
várias modalidades creditícias a agricultura do Norte, não apenas para o cultivo de
plantas nativas, como cacau e café, mas também para a introdução do arroz. Os
valores, todavia, apontam o cacau como mercadoria mais representativa,
entrando com 34% das importações da companhia, logo seguido do algodão (18%) e
dos couros atanados (15%) (cf. Gráfico n.° 16).
GRÁFICO N.° 16
Importações da Companhia do Grão Pará e Maranhão (1758-1778)

Qualquer das mercadorias cimeiras se inscrevia num quadro civilizacional europeu


em mutação, tornando o consumo destas bebidas menos específico das elites sociais.
No entanto, coube ao algodão a marca particular deste final de século, pelo seu
lugar na variação positiva das exportações, com a Grã-Bretanha a dar os primeiros
passos na difusão das inovações tecnológicas desta indústria. O Brasil era, no entanto,

A CONSOLIDAÇÃO, 1703-1807 - 41
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

apenas um dos mercados a que a indústria inglesa recorria, mas chegou a ter uma
ponderação razoável de 11% no conjunto dos mercados abastecedores137.
Concomitantemente à exportação de algodão, assistiu-se a uma alteração nas
características dos panos desta fibra entrados na metrópole, cuja procura foi
incrementada pelo desenvolvimento da indústria de estamparia do reino. Até
1796, passavam pelas alfândegas portuguesas panos de algodão de origem asiática,
embora a maior parte dos têxteis ainda fosse de lã, perfazendo 20,3% das
importações. Em 1812 os panos de algodão ingleses tinham já uma ponderação de
14%, enquanto os lanifícios se quedavam pelos 12,5%.
Se uma nova complementaridade entre a economia brasileira e os circuitos
intraeuropeus veio com o algodão, no final da centúria, as balanças comerciais davam
sinais de que a expansão colonial extravasara em muito a resposta a essa revolução
na tecnologia europeia. Inerente à mudança esteve o reforço de um sistema
colonial que interditou o Brasil de acrescentar valor aos produtos primários
mas que foi a par de uma imensa diversificação de culturas com mercado na Europa.
A economia política da época repensou o sistema colonial, tendo em D. Rodrigo de
Sousa Coutinho um dos seus paladinos. Transpondo para o sistema colonial
português os pressupostos das vantagens de uma especialização internacional,
entendia o Brasil como mais uma das regiões integradas no espaço económico
português e que se verificava ser das mais determinantes para a criação de riqueza,
por providenciar matérias-primas e consumir bens transformados na metrópole.
Face a esta valorização da dimensão colonial da economia, a decrescente
importância do ouro no valor das cargas acompanhou a diversificação dos
investimentos no Brasil e consequente expansão deste mercado (Gráfico n.° 17).
No que respeitou às cargas que não o ouro, a uma tendência, primeiro, estacionária,
no tempo em que a exploração mineira prosperou, seguiu-se outra claramente
positiva, a partir de 1770.
GRÁFICO N.° 17
Exportações brasileiras para Portugal (século xvm)

A CONSOLIDAÇÃO, 1703-1807 - 42
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

Entre o naipe das mercadorias coloniais, continuava a pontuar o tabaco como


promissor de lucros exorbitantes. Mantendo-se o regime de monopólio, o Estado
prosseguiu com o arrendamento da sua transformação e distribuição. Os valores do
contrato de arrendamento deste direito de monopólio reportam uma expansão
extraordinária, merecedora de uma regulação com novo regimento, novos direitos e
reorganização da Junta do Tabaco, que havia sido criada na regência de D. Pedro II
(1674). O valor do contrato atingiu no consulado pombalino 884 milhões de réis, e se
estabilizou não foi por retração do comércio e do consumo, mas porque a elite
mercantil que controlou o negócio de arrendamento teve influência política e
económica para o manter em valores estacionários. A par desta rigidez nos
montantes da renda do Estado, verificava-se o aumento do tráfico, externo e interno.
O consumo do reino, em torno dos 70 milhões de réis em 1756, atingiu os 220
milhões em 1778142.
Graças à expansão da colónia, o surto industrial anteriormente caracterizado
teve aqui um dos seus melhores mercados. Com efeito, «o desenvolvimento das
exportações de produtos industriais portugueses para o ultramar constitui
uma das dimensões mais visíveis da prosperidade mercantil de finais do século
XVIII e começos do século XIX». Entre 1776 e 1789 a percentagem do produto do
reino nos fluxos externos aumentou de 34,9% para 43,1%, ocorrendo,
consequentemente, uma redução das reexportações. No final do século, criadas
várias fábricas em diferentes pontos do país, o Brasil consumia 8 % do produto das
manufaturas de chapéus, um bem final com significado nas formas de distinção
social. Com idêntica extroversão, os curtumes, das raras manufaturas portuguesas
com procura em países europeus, maioritariamente Itália. Estes servem de mais um
exemplo da importância das relações com o Brasil para o surto industrial, desta vez
também pelo provimento de uma matéria-prima essencial à produção de bens de
consumo final e de capital, com ampla utilização nos arreios de animais e alfaias
agrícolas.
A participação crescente da produção do país nas exportações, fosse para a colónia,
fosse para a Europa, registou todavia uma inflexão na década de 1790 (Quadro n.°
40). Donde, a eliminação dos défices da balança comercial compaginou-se, mais uma
vez, com a maior representatividade do comércio transitário, com os termos de troca
a darem vantagem aos bens coloniais nos mercados europeus.
Quanto à Inglaterra, se o algodão enriquecera a gama dos bens importados de
Portugal, permanecia o melhor comprador do vinho, absorvendo 90% das
exportações. O reforço do pacto colonial na década de 1780 e a revolução na
tecnologia da indústria inglesa não vieram, portanto, alterar uma estrutural
subordinação do reino ao comércio indireto, tanto mais que a diversificação do tecido

A CONSOLIDAÇÃO, 1703-1807 - 43
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

produtivo do Brasil alargou o tipo de bens primários com que Portugal abastecia a
Europa. Entre a produção nacional, ainda o vinho, sal, lã, azeite e frutas marcavam o
lugar primacial da agricultura nas relações económicas com o exterior.
QUADRO N." 40
Comércio externo (milhares de réis)
% das
Anos Importações Exportações
Produções do reexportações
reino exportadas
17 76 6 666 598 4 921 208 1 718 819 65,1

1777 6 245 366 4 801 567 2 133 582 55,6


1783 7 102 476 5 743 421 2 473 303 56,9

1789 9 623 838 7 534 548 3 251 142 56,9


1796 12 557 144 16 013 356 3 911 778 75,6

1797 14 498 299 11 822 970 3 572 058 69,8

17 99 19 755 284 17 688 107 4 878 954 72,4


1800 20 031 347 20 684 802 4 077 677 80,3

Fonte: Macedo 1982: 202; Pedreira 1994: 53.

5. Reformas institucionais
Entre o património histórico português pontuam dois factos indissociáveis, até pela
sua coincidência temporal: a ascensão política de um dos ministros de D. José,
Sebastião José de Carvalho e Melo, e uma das maiores catástrofes naturais que
alguma vez assolaram a Europa, o terramoto de 1 de novembro de 1755.
A amplitude do sismo julga-se ter rondado os 8,5 a 9 graus da atual escala de Richter.
Depois, um tsunami inundou a costa e vários incêndios acabariam por destruir o que
o abalo deixara de pé em muitas das freguesias. O trágico acontecimento que
impressionou a Europa sentiu-se em várias partes do país, em Espanha e Norte de
África, mas o seu impacto em Lisboa não teve paralelo em nenhum outro local.
O número de mortos que as fontes coevas oferecem soa impreciso, especulativo,
chegando a apontar-se um máximo de 80 000 baixas, talvez implausível. Todavia, foi
certamente elevado em Lisboa, onde 16 000 a 18 000 pessoas, aproximadamente
12% dos habitantes, sucumbiram. Uma baixa só recobrada 25 anos depois. Na
contabilização dos custos a médio prazo deste primeiro dia de novembro, a
danificação de edifícios e perda de stocks e equipamentos importaram mais do que as
baixas humanas. O grau de destruição imobiliária foi vastíssimo, atingindo edifícios
do governo central, as várias alfândegas de Lisboa (Terreiro do Trigo, Alfândega
Geral, Alfândega do Tabaco, Casa dos Cinco, Paço da Madeira), salvando-se, no
entanto, a Casa da Moeda, recinto que acondicionava as cargas de ouro do Brasil, do
rei e dos particulares, para aqui ser tributado o 1% sobre o seu transporte. Do
património eclesiástico, calcula-se que 70% ficou arrasado. O imponente edifício da
Sé Patriarcal, recentemente edificado ao pé do Paço da Ribeira na Lisboa Ocidental e
A CONSOLIDAÇÃO, 1703-1807 - 44
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

que, a par da Casa da Ópera, absorvera parte dos gastos públicos extraordinários do
reinado de D. João V, não escapou à violência do sismo.
Além de dezenas de palácios particulares, as mais de 12 000 casas de habitação em
ruínas transformaram o cenário urbano num monturo. A perda de existências em
armazéns, de lagares, moinhos e oficinas, que configuravam o tecido industrial da
cidade, computa-se entre os danos infligidos em bens de capital. É possível que 20%
do stock de capital físico tenham sido destruídos, ou o equivalente a 75% do produto
interno bruto. Tal nível de devastação significou, portanto, que nos anos seguintes o
investimento na recomposição de capital não reprodutivo traria a evicção de fatores
produtivos, estes afetos prioritariamente a uma indústria de bens não
transacionáveis no exterior. Pelo menos, os salários da construção civil dispararam e
o equilíbrio só foi retomado após alguns anos em que Lisboa assistiu à entrada de
contingentes de mão-de-obra originários de outras partes do reino.
A catástrofe natural e os embates da Guerra dos Sete Anos no tráfico
internacional surgem como a causa mais plausível de problemas na economia
notados na correspondência de embaixadores estrangeiros em 1764. A relativa
rapidez da recomposição, consentânea com um conjunto de iniciativas do Estado a
requerer disponibilidade de capital financeiro na mão de particulares, suporta a
hipótese de que surgiram novas oportunidades de aplicação do capital financeiro
acumulado, cuja progressão foi documentada nas páginas anteriores. Nesse âmbito, é
possível reconhecer no terramoto de 1755, ou nas guerras, os efeitos específicos de
choques externos, i.e., impactos a que por vezes as economias são submetidas e que
suscitam respostas que alteram as estruturas produtivas. O marquês de Pombal
surge como o agente da execução dessas respostas. Nas páginas anteriores houve
ocasião de inscrever algumas das suas medidas na evolução dos diferentes sectores
da economia. Se todos mereceram intervenção do Estado, cabe agora sistematizar as
principais componentes da moldura institucional criada e averiguar o alcance desse
legado, em certos campos com maior longevidade que outros, mas que
incontornavelmente fraturou o século XVIII num ante et post a governação
pombalina.
Sebastião José de Carvalho e Melo iniciou a sua carreira como diplomata, primeiro
em Londres, depois em Viena de Áustria. Como muitos outros, observou e refletiu o
país a partir de um ângulo externo, produzindo então importantes escritos que
denunciam o pendor mercantilista da sua formação e que reverberaram na política
dirigida a contornar o ascendente inglês nas relações externas do reino. A sua
integração na galeria dos atores que marcaram a história portuguesa careceu da
direta interferência do monarca. Com efeito, as medidas tomadas para repor a ordem
nos dias imediatos ao terramoto do 1 de novembro de 1755 já desvelavam os

A CONSOLIDAÇÃO, 1703-1807 - 45
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

créditos que o ministro alcançara junto do rei, depois de as mudanças no governo


após a morte de D. João V lhe terem dado a Secretaria de Estado dos Negócios
Estrangeiros e da Guerra. Na sequência do trágico acontecimento, Carvalho e Melo
transitou para a Secretaria de Estado dos Negócios do Reino, numa clara
demonstração da prevalência que lhe concedia o rei. Esta secretaria tinha
proeminência sobre as restantes que compunham o governo, a da Marinha e
Domínios Ultramarinos e a dos Negócios Estrangeiros e de Guerra. Esta última foi
entregue a D. Luís da Cunha, que colhia a simpatia de Pombal e cujos escritos em
muito se conformam com testemunhos do punho do marquês. Quanto a Tomé
Joaquim da Costa Corte Real empossado na Secretaria da Marinha e Domínios
Ultramarinos, a hostilizada pombalina levou-o à demissão quatro meses mais tarde.
O novo detentor do cargo, António da Costa Corte-Real, caiu também em desgraça em
1760, entrando Francisco Xavier de Mendonça Furtado, nada mais que o irmão do
marquês, ex-governador do Estado do Maranhão, peça-chave para a informação
detida na corte sobre o contrabando inglês no Norte do Brasil e para a defesa de um
grupo interessado na constituição de uma companhia monopolista, projeto que se
concretizaria com a fundação da Companhia do Grão-Pará e Maranhão.
À frente de uma secretaria com centralidade na burocracia do Estado, incumbida de
todas as áreas do governo, cabendo-lhe todos os despachos de consultas dirigidas ao
rei, Pombal assumiu, por inerência do cargo, uma posição determinante para
propor medidas legislativas e executivas. Ao manobrar a instabilidade das
restantes secretarias, controlou-as indiretamente, assegurando assim que todos os
campos do governo passavam pela sua ingerência pessoal. Vale reconhecer que esta
ascensão política só foi possível porque se haviam processado alterações na
constituição dos poderes do centro no período de D. João V, consagrando às
secretarias de Estado funções executivas. Este modelo de governação, que perdurou
até ao final do Antigo Regime, esvaziara a capacidade interventiva dos Conselhos que
consubstanciaram as formas de governo no período da Restauração.
Por esta configuração política e pelo ascendente de Pombal ter espaço na sequência
do terramoto, pode-lhe ser atribuída a responsabilidade das reformas que se
operaram entre 1755 e 1777. Abrangeram vários campos da vida social, económica
e cultural. Tocaram nas relações do Estado com a Igreja e Inquisição. Atenderam à
formação de capital humano, pelo alargamento de uma rede de instrução básica, o
que pediu o lançamento de um imposto designado subsídio literário. A formalização
do ensino das elites nobiliárquica e mercantil levou à criação de institutos próprios,
como a Aula do Comércio e o Real Colégio dos Nobres. Traçaram-se os novos
estatutos da Universidade de Coimbra. De um complexo pacote de reformas, muitas
concretizadas como respostas pragmáticas a conjunturas, e não tanto como um
programa previamente definido, as que importa aqui sistematizar são as que tocaram
A CONSOLIDAÇÃO, 1703-1807 - 46
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

os sectores económicos e a gestão das contas públicas. Estas podem ser congregadas
em quatro conceitos-chaves: a) privilégios concedidos a certos grupos de
interesse; b) defesa do regime de monopólio e, consequentemente, c)
nacionalização das trocas coloniais; d) racionalização dos circuitos de
informação como condição de equilíbrio orçamental das contas públicas.
No campo económico, as medidas pombalinas beliscaram o ascendente inglês no
comércio externo do país, pelo policiamento do contrabando, tema que inspirou
muita da legislação durante a primeira década do seu consulado. Entre essa
preocupação com os descaminhos de receitas públicas, a reposição do quinto sobre
a produção de ouro em substituição da capitação, logo em 1750, se não é imputável
diretamente à figura de Pombal, coincidiu com as mudanças de presidência das
secretarias no início do reinado de D. José, que afastaram do centro político
Alexandre de Gusmão, outra figura de relevo na política e pensamento económico
setecentistas.
A tensão com os grupos ingleses instalados em Portugal não se prendeu
exclusivamente com a obsessiva vigilância sobre o contrabando, de ouro em
particular, mas também de todo o tráfico nas alfândegas. Ela passou sobretudo
pela atenção do ministro às virtudes da capitalização do comércio português,
considerando que só desta forma haveria meios para enfrentar a concorrência dos
forasteiros, ainda que estes não tivessem sido poupados ao embate do terramoto.
Com efeito, houve a debandada de muitos dos estrangeiros residentes em Lisboa,
crédulos de que as perdas sofridas nos seus capitais em armazém e em dívidas ativas
insolventes não mais justificavam a sua presença, em Portugal ou, pelo menos, em
Lisboa. No caso do grupo inglês, o cônsul relatou para Londres que os danos eram
elevados mas julgava que a solidez financeira da comunidade não ficara questionada.
Contudo, o perfil social do grupo alterou-se, assim como a natureza dos seus
negócios, aspetos já referidos acima. A política pombalina, que afrontou algumas das
formas da intermediação desta comunidade em Portugal, nomeadamente nos
circuitos do vinho, terá contribuído para essa mudança do perfil dos membros da
feitoria de Lisboa e do Porto, sendo percetível a sua menor participação nas relações
diretas com a colónia brasileira, entre 1751 e 1761.
Um dos pontos nevrálgicos da intervenção do ministro residiu, precisamente, na
«nacionalização» das relações económicas de Portugal com o império. Os
fundamentos dessa ação, explicitara-os Sebastião José de Carvalho e Melo enquanto
diplomata em Inglaterra entre 1739 e 1742. Com efeito, defendeu que as vantagens
inglesas no comércio internacional se operavam na preferência pelos bens de
baixo valor por volume, que exigiam, portanto, numerosas frotas. Considerava,
ainda, uma peça-chave da prosperidade britânica a legislação que fora atualizando os

A CONSOLIDAÇÃO, 1703-1807 - 47
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

Atos da Navegação, originariamente promulgados no tempo de Cromwell e que


reservavam a nacionais ingleses toda a navegação e intermediação do comércio
externo, a menos que as mercadorias importadas tivessem a mesma origem dos
navios que as transportavam.
A observação a partir de Londres das dificuldades portuguesas convenceu Pombal de
que a subalternidade portuguesa não resultava do Tratado de Methuen, pelo
que nunca questionaria esta aliança, estribada em tratados, entre os quais este, que
reforçava a especialização nacional, cujas potencialidades económicas eram
reconhecidas do ministro. De resto, acautelara que o vinho das suas propriedades,
sitas na região de Lisboa, em Carcavelos, fosse classificado como vinho de embarque,
dando-lhe as mesmas condições da região demarcada do Douro. A preocupação com
o ascendente inglês residia, portanto, na balança de serviços, nos chamados fluxos
de invisíveis em fretes e seguros, que impediam um comércio ativo português,
exposto aos mais diversos gravames. Deste diagnóstico, restava defender o
defensável: o exclusivo da marinha portuguesa e dos comerciantes nacionais
nas trocas com o império, e a substituição de algumas das importações.
A aceitação tácita de que a potência inglesa era um parceiro necessário não impedia a
intenção de «nacionalizar» as relações com a colónia, para a qual a
regulamentação do corpo do comércio se afigurava uma via possível, para
contrariar práticas correntes nas frotas brasileiras, favoráveis ao contrabando
e à manutenção de intermediários de baixos capitais. Donde, a atenuação do
ascendente inglês proviria do aumento do capital humano entre o corpo do comércio.
A fundação da Aula do Comércio foi um dos instrumentos deste processo. O
conhecimento de princípios gerais da economia política e de técnicas de
contabilidade em partidas dobradas apetrecharia os negociantes com uma
competência que reforçaria o seu poder negocial junto de pares estrangeiros. As
práticas adquiridas comummente por jovens caixeiros, durante anos de
aprendizagem junto de patronos, em geral familiares, apenas reproduziam o baixo
capital humano desta classe, uma pecha que estigmatizava o grupo ocupacional e não
apenas os comerciantes de parcos cabedais que operavam no vaivém das frotas,
designados comissários volantes, que Pombal entendeu serem o paradigma desta
mediocridade ao serviço da intromissão inglesa no comércio colonial português.
Análises das redes mercantis desmentem esta ideia de que o comissário volante era
apenas um peão a furar o exclusivo colonial. De resto, alguns nomes conhecidos como
inscritos na elite económica pombalina haviam sido comissários volantes158.
Os juízos mal fundados do ministro sobre os comissários volantes são aqui
secundários, porque antes cabe relevar que essa desclassificação de uma forma de
agência se enlaçava com um conjunto de atuações que afetaram a unidade interna da

A CONSOLIDAÇÃO, 1703-1807 - 48
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

classe mercantil. Os alvarás de interdição dos comissários volantes, se foi legislação


pouco eficaz, porque destituída de fundamento no contrabando, serviu a formal
distinção entre comércio por grosso e a retalho. Um intuito que o ministro julgava ter
os seus cúmplices entre o corpo do comércio. Afirmou que o donativo que o grupo se
prestara a pagar, por uma taxa de 4% sobre mercadorias importadas para a
reconstrução de Lisboa, se deveria «à boa opinião que o meu zelo ao bem comum me
tinha estabelecido na praça de Lisboa e no mesmo Brasil». O comentário, sendo do
próprio, esconde, porém, que a execução deste donativo dependeu das atribuições
conferidas à Junta do Comércio, organismo cuja fundação vinha no rescaldo da
repressão do Estado sobre uma das fações deste corpo social.
A origem deste organismo designado Junta do Comércio prende-se com a fundação
da Companhia do Grão-Pará e Maranhão, que obteve o exclusivo do tráfico de
escravos para esta região e funções administrativas na costa da Guiné. As
animosidades suscitadas pelo regime de monopólio, entregue a grandes companhias,
eram conhecidas de Sebastião José de Carvalho e Melo desde que estanciara em
Londres, onde tanto admirou este modelo empresarial quanto se apercebeu dos
múltiplos caminhos pelos quais os chamados «infiltrados» (comerciantes em atuação
concorrencial destas companhias) dificultavam a observação efetiva dos exclusivos
empresariais. Ainda assim, e sem dúvida em virtude do seu pragmatismo ao serviço
da revalorização do comércio como ocupação essencial ao bem comum, pugnou pela
constituição de grandes companhias monopolistas e eliminou, através de
atuações despóticas, o desconforto manifestado por uma miríade de agentes.
A informação de que o poder central contratava o monopólio do tráfico de escravos e
da distribuição de bens, de e para as capitanias do Norte do Brasil, causou o protesto
por parte de homens de negócio que tinham informal representação coletiva numa
organização designada Mesa do Bem Comum dos Homens de Negócio e que reunia
indistintamente comerciantes grossistas e retalhistas. Estava-se em setembro de
1755 e a oposição não ignorava que a companhia nascia na sequência de uma petição
assinada por alguns pares, dirigida ao rei, mas com a conivência do governador do
Maranhão, irmão do ministro. Pombal desagradou-se com os protestos, vendo neles
uma insurreição. Decretou a dissolução da Mesa do Bem Comum e degredou os
cabecilhas do movimento contrário à iniciativa.
O terramoto atrasou o arranque da Companhia e abonaria o gesto magnânimo de
perdão aos insurretos. Mas a criação da Junta do Comércio, que substituiu a Mesa do
Bem Comum, neutralizou a oposição. Contando com a presença de negociantes de
grosso trato nos seus quadros administrativos, o organismo teve importantes
atribuições fiscais e económicas. O alvará de 6 de dezembro de 1755, regulador da
Junta, formalizou a distinção ente comércio a retalho e por grosso. A junta

A CONSOLIDAÇÃO, 1703-1807 - 49
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

superintendia os vários ramos do comércio a retalho ao confirmar os seus


representantes e ao executar matrículas obrigatórias. Além desta explicitação de uma
hierarquia interna à classe mercantil, cabia-lhe disciplinar e condicionar as
atividades económicas, inclusive a indústria. Foi incumbida da supervisão da
administração das fábricas reais. Da sua intervenção resultava a concessão ou
indeferimento do licenciamento de unidades transformadoras, mesmo das já
instaladas, sendo a evolução do produto industrial um reflexo da intercedência dos
administradores desta Junta. Supervisionava a atividade portuária e o desembarque
de fazendas nas alfândegas, inclusivamente do ouro na Casa da Moeda, tinha o direito
de conceder autorização de entrada de matérias-primas para as fábricas do reino e
de deferimento de habilitação de estrangeiros à naturalização.
O imenso poder deste organismo facilitou a formação de uma clique, enquistada
nos seus quadros administrativos, transitando ou acumulando lugares diretivos nas
companhias coloniais e na administração das fábricas reais. A Junta do Comércio
retirou a uma parte dos comerciantes os meios de autorrepresentação, ou as
condições que lhes haviam facultado intervir como corpo social. Este organismo não
era, pois, um consulado segundo o modelo castelhano, nem estava próximo de uma
corporação ocupacional como tendeu a ser a Mesa do Bem Comum. Era um braço do
Estado, integrador da fação dos negociantes que pactuaram com o modelo
empresarial das companhias monopolistas inscritas no espaço do império. Nisso se
distinguiram estas empresas da outra que teve a mão de Pombal, a Companhia da
Agricultura e do Vinho do Alto Douro. Esta, à margem da clique mercantil que se
fortaleceu nos negócios lisboetas, era melhor representada pelos grandes
proprietários do Douro, mas foi, sem dúvida, um instrumento mais poderoso de
afronta direta à intermediação inglesa. Suscitou, como as outras companhias
coloniais, oposição. Que se julgou até instrumentalizada pelos ingleses no Porto,
suspeita que nunca impendeu sobre a oposição movida à Companhia do Grão-Pará e
Maranhão.
Com efeito, as companhias coloniais, pelo facto de as vicissitudes da sua fundação
se cruzarem com as da Junta do Comércio, eram mais um instrumento
disciplinador do comércio do que um meio de corroer a intermediação inglesa.
Mobilizaram, no entanto, investimentos de vários segmentos sociais. Na verdade, era
tal o montante de capitais que estas empresas deveriam mobilizar, que entre os seus
acionistas figuravam indivíduos sem extração mercantil. De facto, para acautelar a
venda das ações recorreu-se à promessa régia da concessão a futuros acionistas,
nomeadamente o hábito da Ordem de Cristo.
Estas sociedades anónimas de capitais, com as quais os poderes contratavam a
concessão de monopólios e, por vezes, a administração de territórios coloniais,

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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

integraram um tópico recorrente no pensamento económico mercantilista, pois não


captavam unanimidade sobre os seus benefícios. Os direitos de monopólio
justificavam-se, quer pela remuneração do risco inerente a estas iniciativas - que de
algum modo visavam a abertura de mercados e não raro se muniam de funções
militares -, quer pela forma implícita ou explícita com que o Estado se servia delas
para a obtenção de créditos extraordinários, estabelecendo-se entre os poderes
públicos e os seus dirigentes uma relação de favores recíproca. Tal proximidade ao
poder augurava, por sua vez, uma garantia adicional para os investidores.
Os exemplos inglês ou holandês, pioneiros na formação destas organizações que bem
ameaçaram a inserção portuguesa no Oriente, serviram para os decisores políticos ou
os formadores de opinião pública avaliarem as companhias como um instrumento
de concorrência internacional, que continuava a ser interpretada como um jogo de
soma nula: os ganhos de uns trariam a perda de outros. Os montantes elevados de
capital mobilizado por estas sociedades, no entanto, explicam por que razão o
assunto em Portugal sempre tocou na questão da deserção de grupos de elevado
capital não fundiário, sendo os cristãos-novos disso o paradigma. Se no estigma desta
identidade e diferenciação residiu sobretudo a repressão inquisitorial, mais do que
uma efetiva pureza linhagística dos descendentes de judeus imigrados de Castela no
reinado de D. Manuel, os discursos apologéticos destas empresas privilegiadas trazia
a inevitável crítica à Inquisição que se arrogava como um contrapoder, impeditivo da
afirmação internacional do reino.
A extinção da distinção social entre cristão-novo e cristão-velho no consulado
pombalino aparece, no entanto, como uma resolução já sem grandes consequências
sociais no último quartel do século XVIII. O grupo mercantil não era mais conotado
com a presença maioritária de criptojudeus. A profusão de habilitações à familiatura
do Santo Ofício por parte dos que reclamavam ocupação mercantil experimentou
uma extraordinária inflação ao longo do século XVIII. Assim, tanto se exibia a
ausência de mácula de cristão-novo que conferia reputação positiva, como se
demonstrava que esta ocupação se fora abrindo, cada vez mais, a gente «com limpeza
de sangue». Não estava mais em causa a exploração de confisco de bens como
caminho de obtenção de ingressos públicos extraordinários. O Estado adquirira
outros meios de se financiar, e os créditos exigidos às companhias coloniais para
injetar capital nas fábricas reais, como aconteceu com a das sedas, esclarecem as
múltiplas utilidades esperadas destas companhias.
A avaliação de custos-benefícios destes institutos é parte integrante da história da
sua própria profusão. Nos diferentes casos nacionais, e não apenas em Portugal,
geraram polémica. Nas palavras de D. Luís da Cunha, «as companhias não são mais
do que monopólios defendidos por leis; porque tiram ao povo a liberdade de fazer

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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

certos comércios; e por isso não falta em Inglaterra e na Holanda quem as reprove.
Mas os príncipes e as repúblicas as permitem quando veem que se nesta parte
prejudicam os vassalos, mas em outras lhes procuram maior utilidade». A dita maior
utilidade ficaria clara nas regiões nordestinas do Brasil, onde a questão da
escravização dos índios à revelia dos poderes secular e religioso, como em outras
áreas de fronteira, causava tensões entre as forças locais, o governo da colónia e as
ordens religiosas missionárias.
Donde, não surpreende que o governador do Maranhão, Mendonça Furtado, irmão de
Pombal, fosse um dos apoiantes da iniciativa que se propunha abastecer de mão-de-
obra escrava africana uma agricultura a fomentar com o cultivo de algumas das
espécies nativas. No entanto, o apoio de Mendonça Furtado em pouco se deveu, neste
caso, ao respeito pelas utilidades públicas das missões jesuíticas, pois este
governador é o mesmo que informou o ministro do contrabando que supostamente a
ordem realizava em conluio com agentes ingleses. Assim, se a cultura política
favorecia a criação de monopólios privados por diferentes razões, sacrificando
a livre circulação aos interesses de grupos restritos, nem a simpatia pombalina
pelas companhias, nem a repressão que exerceu sobre os opositores constituem
novidade. Muito mais inovadora é a associação deste modelo organizacional à criação
de condições para a consolidação de um grupo altamente capitalizado, o qual não
soçobrou com a queda do ministro, pensando-se ser uma das suas obras mais
duradouras.
Esta elite mercantil e industrial agarrou negócios exigentes em capitais e
desempenhou funções essenciais num sistema financeiro que continuou a não
conhecer a constituição de bancos ou, sequer, especialistas de crédito. Não
obstante o crédito permanecer uma prática altamente disseminada em termos
sociais, os grandes capitalistas pombalinos e pós-pombalinos agarraram a
intermediação financeira, constando dos seus patrimónios dívidas ativas de vulto, em
muitos casos originárias na sua principal ocupação mercantil, mas assinalando a
diversificação de investimentos na concessão de créditos às grandes Casas
aristocráticas que se apresentaram como grandes devedoras de homens de negócio.
Na intermediação financeira, no entanto, eram as rendas do Estado o que mais
importava e, de entre estas, o arrendamento dos monopólios. O contrato do
tabaco, no qual participaram muitos dos maiores negociantes da praça de Lisboa do
último quartel do século, foi um dos campos de maior afirmação do poder económico
e administrativo destes novos negociantes pombalinos. Neste negócio e no
arrendamento da execução das receitas alfandegárias medrou um campo de
rendimentos elevados. Quanto a este aspeto a atuação pombalina em nada inovou,
uma vez que reforçou a dependência das maiores receitas do Estado da intervenção
de rendeiros. Embora os contratos fossem sujeitos a leilões, o fecho da elite dos
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

rendeiros retirava poder negocial ao Estado, ao mesmo tempo que os contratadores


almejavam prorrogar os prazos dos contratos, vantagem iniludível em períodos de
inflação, como se verificou no final do século XVIII.
Mesmo assim, o consulado pombalino foi marcado por reformas relevantes na
administração financeira e no registo contabilístico dos dinheiros públicos,
sinais inequívocos da modernização do Estado, não tanto ao nível da
monopolização fiscal, que não ocorreu, mas ao nível da gestão de informação. Um
outro choque externo, a Guerra dos Sete Anos, pelo aumento da despesa, deu ocasião
a proceder-se a uma afinação dos registos das receitas, consubstanciando uma
importante reforma administrativo-financeira com a criação do Erário Régio. Por
duas cartas de lei de dezembro de 1761 instituiu-se um sistema centralizado de
arrecadação de receitas e despesas, o que permitiu ao Estado obter atualizada
informação e um maior controlo sobre as finanças. Recorde-se que o sistema, desde a
Idade Média, dependia de uma contabilidade descentralizada nos diferentes
almoxarifados, crendo-se que era causa de frequentes litígios. Por estas cartas de lei,
foi instituído um Tesouro Geral que extinguiu a Casa dos Contos, para onde deveria
ser remetido o produto de todas as rendas e do qual deveriam sair todos os fundos
destinados às despesas públicas. Compreendia quatro contadorias regionais, uma
para a Estremadura, outra para todas as demais províncias, outra para África
Ocidental, Maranhão e Bahia, outra para o Rio de Janeiro, Ásia e África Oriental. Para
a regularização dos registos, introduziu-se a técnica de partidas dobradas,
entendida como chave da modernização do Estado, emulando-se o que se procedia
nas nações ditas polidas, sendo este o sistema «mais breve e mais claro de reger as
grandes somas».
O Erário Régio assumiu-se como mais um dos baluartes da intervenção
pombalina no poder central. Adquiriu uma estrutura orgânica própria, com um
presidente/inspetor-geral, cargo ocupado pelo marquês. Na hierarquia, seguia-se um
tesoureiro-mor, responsável pelo Tesouro Geral, e quatro contadores-gerais, à frente
de cada uma das contadorias. Por altura da sua fundação, o Erário tinha ao seu
serviço 26 funcionários. Uma burocracia financeira que foi alargando o número dos
seus oficiais. Em 1823 abrangia 276 oficiais, embora 60% deles não exercessem
cargos, mas estivessem em regime de aprendizagem, sinal da especialização
crescente que as finanças públicas requereram.
Afastado do poder logo no início do reinado de D. Maria I, o todo-poderoso ministro
de D. José pôde evocar como obra sua o equilíbrio das contas públicas. Haveria a
acrescentar, na longevidade da sua obra, a afirmação de um vinho de qualidade, que
deu imagem externa a Portugal, e uma nova elite social, fortemente capitalizada,

A CONSOLIDAÇÃO, 1703-1807 - 53
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

com património não maioritariamente fundiário. Já o ascendente inglês, esse,


permaneceria, e teria novas utilidades nas guerras napoleónicas.
6. Finanças públicas e o fim do Antigo Regime
O todo-poderoso ministro de D. José vangloriou-se dos saldos positivos nas contas
públicas durante o seu governo. Tal disciplina orçamental teve pouca duração, mercê
de uma ordem internacional que desde 1789 colocou a Europa em estado de guerra.
O fim do Antigo Regime trouxe em Portugal, como em toda a Europa, um acréscimo
da despesa pública com efeitos inflacionistas que questionaram a estabilidade ou
crescimento dos rendimentos dependentes da terra e do trabalho.
Durante o governo de Carvalho e Melo, com efeito, entre 1762 e 1776, o Estado
arrecadou mais do que despendeu. A média anual das receitas ordinárias fixou-se
em 5596 milhões de réis. No único orçamento conhecido do reinado de D. João V,
datado de 1716, o total apontado quedou-se por 3828 milhões de réis. A primeira
metade do século proporcionou um crescimento médio anual de 0,8% das receitas
nominais do Estado, entre 1716 e 1766. Convém sublinhar que no orçamento do ano
de 1716, a única rubrica discriminada respeitante aos fluxos brasileiros reportou-se
aos quintos do ouro, computados em 345 milhões de réis, ou seja, 9% do total dos
réditos joaninos. Já nos orçamentos pombalinos, a média anual dos quintos, de
acordo com os Livros de Manifestos do 1% do ouro, foi de 615 contos, o que projeta
esta receita para os 11%. Desta forma, verifica-se que a renda do ouro no consulado
pombalino superou a ponderação atingida em 1716. Em segundo lugar, refira-se que
essa ponderação se equiparou à da décima, imposto sobre o rendimento cobrado no
reino. Por fim, uma outra renda brasileira, obtida no contrato do estanco do tabaco,
assumiu maior efeito financeiro que o ouro, perfazendo 16% da média da receita
anual do Estado. Acima desta rubrica só as alfândegas, com 29%.
Durante o governo de Carvalho e Melo a décima (único imposto sobre o rendimento)
retornou à taxa de 10%, para assim permanecer como o principal tributo direto
arrecadado pela administração central, receita mais expressiva do que o velho
imposto das sisas, que agora apenas entrava com 6% entre as receitas coletadas no
interior do território. Entre o quinto do ouro, os monopólios do tabaco e do pau-
brasil (arrematados por contratos a consórcios de negociantes) e o movimento
alfandegário, o essencial do financiamento do Estado assentava nas relações
externas, estando nelas imbrincadas as ligações ao império (62%).
Quanto à despesa, os encargos militares sobrelevavam-se a todas as demais
rubricas, totalizando 2568,3 milhões de réis, isto é, 49,2%, percentagem bastante
superior à que se colhe num orçamento de 1681. Por seu lado, o adensamento da
malha administrativa do Estado, nomeadamente ao nível do poder central, não se
repercutiu significativamente na despesa pública. O corpo de 600 oficiais da
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

administração central do reinado de D. Pedro II alargara-se a 2869, segundo


estimativas para 1820, época um tanto mais tardia, mas que deve ser vista como o
corolário da consolidação do aparelho do Estado, processo ocorrido ao longo da
segunda metade de Setecentos. Ainda assim, com ordenados, os orçamentos
pombalinos apontaram um gasto médio de 894,7 milhões de réis (17,2%). Da
evolução destas duas grandes categorias de despesas (gastos militares e
remunerações de oficiais da administração pública) constata-se que a modernização
do Estado passou sobretudo pela monopolização da defesa.
Quanto aos encargos com a dívida pública, pelo pagamento de juros, evidencia-se a
saúde das finanças públicas alegada por Pombal. Perfazendo, em 1681, 227 milhões
de réis (cerca de 25% da despesa), no consulado pombalino computou-se em 338,8
milhões de réis (6,45%). Mas vale recordar que a remissão dos padrões de dívida de
5% e o posterior lançamento de novos padrões a juro de 4,5% no reinado de D. João
V, mercê da liquidez disponível com as remessas de ouro que permitiram a
mobilização de 5 mil milhões de réis nesta operação financeira, ajudaram à
contenção da despesa com encargos da dívida pública.
Se houve entesouramento no consulado pombalino, a situação mudaria com as
campanhas militares do final do século. A entrada das tropas de Junot em 1807 foi
o culminar do apertado cerco diplomático em que as guerras napoleónicas colocaram
Portugal desde 1790, num cenário internacional que fez da Grã-Bretanha o baluarte
de resistência à política externa da França revolucionária. A participação portuguesa
numa campanha contra a França fez-se em coligação com as tropas espanholas nos
anos de 1793-1795, na chamada Guerra do Rossilhão. O desfecho, com a derrota luso-
espanhola, ditou as diferentes opções de alinhamento externo dos dois países
ibéricos. Enquanto a Espanha assinou a paz pouco depois, passando para a esfera de
influência francesa, Portugal atuou pelas vias diplomáticas para manter a
neutralidade de posições. As negociações não esconderam a divisão partidária no
governo entre os adeptos de um alinhamento pela França, com Napoleão no poder
desde 1799, e os que pugnavam pela manutenção da aliança com a Grã-Bretanha.
As mesmas indecisão e bipartição de visões político-estratégicas tinham-se já
evidenciado na Guerra de Sucessão de Espanha em 1703. Porém, enquanto na
abertura de Setecentos foi rápida a reviravolta de D. Pedro II, que determinou o
alinhamento pela Inglaterra, cerca de noventa anos mais tarde a irresolução do
regente D. João significou a constante ameaça de invasão espanhola, por pressão
francesa. Que acabou por acontecer em 1801. Na Guerra das Laranjas perdeu-se
parte do território na margem direita do Guadiana, ficando Olivença dentro da
fronteira espanhola. O episódio militar foi de curta duração, mas o risco de invasão
não se desvaneceu, uma vez que Portugal resistia ao bloqueio continental decretado à

A CONSOLIDAÇÃO, 1703-1807 - 55
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

Grã-Bretanha. Dentro da lógica da expansão imperial napoleónica, o país sofreria


finalmente a investida dos exércitos franceses em 1807. Deste modo, entre os anos da
campanha do Rossilhão e a primeira invasão francesa, a conjuntura obrigou o Estado
a afetar elevadas despesas à manutenção de exércitos mobilizados.
Se o enquadramento internacional foi favorecendo de algum modo os tráficos
ultramarinos, o habitual impacto desta vitalidade das trocas externas nas finanças do
Estado revelou-se insuficiente para acudir ao aumento da despesa. Os défices
atingiram proporções inéditas (cf. Quadro n.° 41). Os saldos negativos das contas
públicas empurraram o Estado para a emissão de títulos. A novidade residiu em dar a
estas obrigações um curso forçado, consubstanciando uma primeira experiência em
Portugal de emissão de papel-moeda.
QUADRO N.° 41
Despesas públicas (1800-1802)
(em contos)
1800 1801 1802
Receita efetiva 10 627 9859 9511
Despesa efetiva 11 967 13 011 10 082
Saldo -1340 -3152 -571
Despesa com a defesa 6880 9117 6025
Em % da despesa 55,8 70 59,7

Fonte: Silveira 1987.

A primeira emissão de títulos de dívida pública (o chamado primeiro empréstimo)


montou a 6367 contos, mas a amortização e juros justificaram novas emissões. Na
totalidade, em 1807, os títulos lançados montavam a 17 176 contos. Ao equiparar as
apólices a moeda, dando-lhe curso forçado, primeiro para pagamentos ao Estado e
depois para todas as transações correntes, sem oferecer garantias de
convertibilidade em moeda metálica, o Estado suscitou a desconfiança dos
detentores deste papel. Estes, por sua vez, contornaram o risco aumentando a taxa de
desconto deste papel-moeda. Começando em 1798 por ser de 4%, disparou para
18%-20% em 1800, e em 1801 as apólices só eram aceites em Lisboa com descontos
de 30%.
A emissão de papel-moeda, sem convertibilidade, seria prática de todos os
governos nesta conjuntura de guerra. Mas em Portugal o Estado não deu garantias
aos seus credores e a persistência dos défices só poderia aumentar a desconfiança,
não havendo um banco contratado com o Estado. Em 1812, a dívida pública
equivalia a 4,3 vezes um orçamento anual do Estado.
Se o empolamento da massa monetária e os défices públicos sempre comportam uma
tensão inflacionista, no final do século XVIII em Portugal verificou-se uma
variação inédita dos preços, que nem décadas de inundação de ouro causaram.
A CONSOLIDAÇÃO, 1703-1807 - 56
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

Entre 1757 e 1797, os preços variaram a uma taxa média anual acumulada de 1,6%.
Entre 1797 e 1810, variaram a 3,7% (Gráfico n.° 18).
GRÁFICO N.° 18
Preço de um cabaz de consumo em Lisboa (1750-1808)

Fonte: Reis 2008-2010.

O estado de guerra na Europa repercutiu-se no nível geral dos preços em todas


as economias com as quais Portugal tinha relações externas. Contudo, refira-se
que entre os bens alimentares importados, como o bacalhau, por exemplo, não se
encontra tendência idêntica à do trigo. Entre 1757 e 1797, o bacalhau subiu 0,9% e
entre 1797 e 1810 apenas aumentou 1,2%. Donde, a subida dos preços em
Portugal teve fatores internos específicos além dos decorrentes da inflação
verificada nas economias de onde importava bens essenciais.
A subida acentuada nos anos seguintes à emissão de papel-moeda responsabiliza esta
solução a que o Estado recorreu para fazer face ao seu endividamento.
Daqui resultou uma evolução negativa dos rendimentos reais. Houve perda de
poder de compra dos ingressos das casas aristocráticas, tanto mais que neste cabaz
estão sobretudo alimentos a preços de Lisboa, sendo a esmagadora parcela da
despesa afetada às iguarias servidas na mesa dos palácios que aqui habitavam.
Perderam entre 21% e 35% do seu rendimento real, à exceção da casa de Resende,
que sofreu quebra acentuada de 50% entre os anos de 1770 e 1810 (Gráfico n.° 19).
Os salários, no entanto, sofreram mais gravosa quebra. O trabalho qualificado
(mestres pedreiros e carpinteiros) foi penalizado com uma perda de 50%, e o
trabalho não qualificado em 66% (Gráfico n.° 20).

A CONSOLIDAÇÃO, 1703-1807 - 57
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

A inflação do final do século sacrificou sobretudo os grupos não detentores de


direitos sobre a terra e que tinham no trabalho a única fonte de rendimento.
Contudo, o poder económico da aristocracia também foi abalado, e para o seu
endividamento crónico sobressaíram os gastos com a alimentação e sustentação de
dependentes que orbitavam como criados na economia doméstica. A racionalidade
económica que explica o endividamento é parte integrante da liberalidade que
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

caracterizava o ethos de grupo. Todavia o problema a assinalar reside na extração


social dos seus credores. De início, a posição maioritária da Misericórdia de Lisboa
ao lado de confrarias e irmandades certifica a função creditícia destes institutos
protomutualistas. Os negociantes não só surgiram com maior frequência na lista dos
credores, como arremataram a arrecadação das rendas destas casas, por contratos de
longo prazo que não internalizavam as variações dos preços. Períodos de inflação
repercutiam-se negativamente nos detentores dos direitos sobre a renda e
favoravelmente nos que negociavam a arrecadação dos mesmos.
Estes rentistas, com capitais aplicados em outros negócios que não a estrita
intermediação financeira, atuaram com a aristocracia segundo práticas já
experimentadas com sucesso na fiscalidade do Estado, uma vez que uma fração
substantiva da massa tributária era executada por contratos com estes particulares.
Na esfera pública, porém, vingaram os contratos de curto prazo, de três anos, o que
minimizou os efeitos perniciosos da inflação nestas contratualizações de
transferência de soberania. Ora, importantes fontes de receita do Estado, como o
contrato do monopólio do tabaco e das saboarias, foram, todavia, negociados com
prazos estendidos a nove anos. A complexificação administrativa destes consórcios
de negociantes e contratadores do Estado, dos quais os tabaqueiros eram a face mais
visível da opulência destes negócios, desenvolveu uma rede paralela à do Estado
na administração fiscal, com superintendentes regionais. Só não se afirmaram
como uma organização concorrente porque coube-lhes desempenhar utilidades não
menos fundamentais, parabancárias e creditícias.
Deste modo, os escritos com intenção reformadora de final do século, pela voz da
Academia das Ciências, assinalaram os lucros exorbitantes destes contratadores
das rendas públicas, ao mesmo tempo que pugnavam pela rescisão destas formas de
transferência de soberania. Algumas estimativas dos lucros auferidos remetem o
contrato do tabaco para o que melhores remunerações prometia, na ordem dos 20%,
uma margem de lucro que colocava este negócio num plano equivalente à arbitragem
das mercadorias coloniais. Num e noutro investimento, de resto, participava a clique
dos grandes comerciantes que se afirmaram no consulado pombalino, como os
Caldas, Cruz e Bandeira. No entanto, a intervenção nos principais contratos de rendas
do Estado implicava níveis de investimento fabulosos, certamente superiores a
qualquer das operações no comércio colonial. Voltando ao exemplo do tabaco, foram
na época ventilados valores na ordem dos 1383 contos, note-se, uma maquia
equiparável ao total dos rendimentos concentrados nas grandes Casas aristocráticas.
O facto de não haver sinais da desmobilização dos habituais interessados no
investimento nos contratos do Estado no último quartel do século insinua que os
rendimentos destes intermediários não se terão depreciado da mesma forma que os

A CONSOLIDAÇÃO, 1703-1807 - 59
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

dos grupos acima analisados. As taxas de lucro podem ter declinado. Os negócios
mais sensíveis à recessão do mercado interno por quebra de salários, como seriam as
manufaturas, terão sofrido. Mas por isso mesmo, nesta conjuntura, maior seria a
vantagem relativa da aplicação de capitais nos contratos de arrematação das rendas.
Ainda assim, o Estado protegeu-se melhor do que as outras instituições dos efeitos da
inflação na quebra das receitas reais.
A evolução das rendas do império e das obtidas no rendimento gerado no reino,
entre Pombal e o fim do Antigo Regime, desvela algumas constantes e alterações.
Verificou-se uma variação nominal da receita a uma taxa de 2,5%. O movimento
alfandegário foi ainda mais decisivo que no período pombalino, passou de 29% para
42% em 1804. De qualquer modo, o tabaco registou uma variação menos espetacular
do que as alfândegas e viu reduzida a sua participação percentual. A prosperidade
mercantil que o Estado conseguiu melhor tributar centrou-se nas alfândegas, com
taxas ad valorem (Quadro n.° 42).
QUADRO N.° 42
Receitas públicas (1760-1804)
1762-1777 Em 1804 Em
Algumas rubricas (média anual percentagem (em
contos) percentagem
em contos)
Décima 623 11% 1221 11%
Sisa 350 6% 381 3%
Alfândegas* 1611 29% 4631 42%
Tabaco 887 16% 1129 10%
Pau-brasil 122 2% 162 1%
Quintos do ouro 615 11% 29 0%
Diamantes 259 5%
Casa da Moeda 2% 50 | 0%
118
Total do orçamento 5598 100% 11 045 100%

* Inclui Casas de Arrecadação do período pombalino.


Fontes: Thomaz 1988; e Macedo 1982a: 209-209n e respetivas notas.

Pela discriminação das rubricas em orçamento de 1804 é notável a estabilidade do


contributo da décima, que se manteve nos 11%. Na composição deste imposto, e tal
como nos anos pombalinos, a renda de prédios rústicos e/ou propriedades urbanas
perfazia mais de 60% do imposto, pelo que ordenados e juros apenas participavam
em 14%. O maneio (parte da décima referente à atividade artesanal, comercial e
doméstica - criados), que na décima pombalina entrava em 25%, nas contas do ano
de 1804 não está discriminado. Muito embora aí constem novidades tributárias da
década de 1790, que não pouparam nem o corpo eclesiástico e nem as rendas das
comendas doadas à nobreza, que passaram a pagar o quinto.
Em termos nominais, o imposto sobre o rendimento correspondia no período
pombalino a 258 réis per capita, e em 1804 a 419 réis. O cotejo destes valores com o
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.

preço de um bem essencial mede melhor a punção tributária. Na verdade, quer os


258 réis em 1766-1777, quer os 419 réis em 1804 comprariam os mesmos 0,53
alqueires de trigo em Lisboa, em qualquer destes períodos. O Estado protegeu-se da
inflação, mas a estável ponderação do contributo de um imposto sobre o rendimento
interno deveu-se ao alargamento da base social da sua incidência e não ao aumento
do rendimento dos grupos tradicionalmente tributados.
Deve notar-se que o Estado português nas vésperas das invasões francesas não
era a única instituição com legitimidade tributária. Em terras e povoados
pertencentes ao património régio, uma parte substancial das prestações devidas à
Coroa era efetivamente cobrada por entidades senhoriais laicas e eclesiásticas na
sequência de doações régias, destinadas a premiar serviços. Se a esta realidade ainda
juntarmos os concelhos, constata-se que muitos dos povoados do país pagavam
direitos de foral a Casas senhoriais ou a instituições eclesiásticas. Vinculada ao
movimento de ocupação do solo que se fez durante a Reconquista, a tributação
foraleira em Portugal revela uma diversidade regional assinalável, quer no que
se refere à sua tipologia, quer ao seu peso relativo no produto agrícola. Tomando
exemplos extremos, nalgumas regiões são preponderantes as prestações
enfitêuticas fixas (foros e rações), lançadas coletivamente sobre a comunidade,
como sucedia em Trás-os-Montes, ou diferenciadas por áreas de subdivisão interna
(por casal), como era usual no Minho, enquanto no Alentejo imperavam sobretudo os
direitos de portagem, expressão de um senhorio eminentemente jurisdicional.
Apesar destas diferenças, no final de Setecentos a tributação foraleira nestas regiões
era considerada pouco onerosa. O mesmo já não sucedia na maior parte dos
concelhos do Centro Litoral, onde a cobrança de direitos de tipo enfitêutico de
valor proporcional à colheita (entre um oitavo e um quarto dos frutos da terra) era
considerada vexante e opressiva e, por isso mesmo, fator de contestação senhorial.
Em virtude da reincorporação de poderes majestáticos na Coroa ao longo de séculos,
o senhorio foi esvaziado do seu significado jurisdicional, mas não da sua capacidade
de exação fiscal, domínio onde permanecia vivo e atuante. Expressão disso é o
agudizar de tensões e a erupção de manifestações antissenhoriais na segunda
metade do século XVIII.
Nestes termos, por meio de tributos muito diversos, e porque a matriz medieval
determinante da apropriação do excedente agrícola resistiu aos ventos de mudança,
uma parte fundamental do produto escapava à fiscalidade régia ainda em 1807.
Donde, nos finais do século XVIII, quer os dízimos eclesiásticos, quer os direitos de
foral, representavam uma punção fiscal em certas zonas do país muito superior à de
todos os impostos cobrados pelo Estado provenientes da economia interna, tanto por
via da sisa como da décima. No caso de Trás-os-Montes, região onde, por sinal, os
direitos foraleiros eram fixos e, em princípio, menos vexatórios para a população
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contribuinte, a repartição destes impostos é reveladora da limitada ingerência do


Estado na massa fiscal. Em 1792, os cofres públicos arrecadavam 130,3 milhões de
réis (dos quais, apenas 30 milhões de réis respeitavam à décima). As comendas das
ordens militares ascendiam a 148,7 milhões de réis. Os dízimos apercebidos
diretamente pela Igreja orçavam os 403,7 milhões de réis. Deste modo, em 682,7
milhões de réis de massa fiscal, o Estado arrecadava 19%, sendo apenas 4,3% sob a
forma de imposto da décima.
Assim sendo, os arbítrios que, antes e depois de Pombal, falavam da profusão de
direitos sobre o domínio útil da terra, vendo aí a origem de problemas da agricultura
em Portugal, não arremetiam contra um Estado que havia monopolizado a
fiscalidade, responsável por uma pesada carga tributária. Em 1743, um
desembargador anteciparia as ideias dominantes cerca de cem anos mais tarde com a
construção do Estado liberal, ao alvitrar que era imperioso aliviar-se a agricultura
das tantas prestações de que se achava onerada, «à exceção daquela que se deve a
Deus e daquela que pedisse a defesa do Estado».
Se a variação do produto agrícola, qualquer que seja o seu sinal - positivo ou negativo
-, não tem uma explicação universal fundada nestes direitos de apropriação do
produto da terra, a constituição fundiária e fiscal do Antigo Regime teve
consequência a outros níveis atendendo à natureza dos ingressos das elites. Na
verdade, a elite nobiliárquica é a que melhor se descreve como grupo coletor
de direitos fiscais do que de rendas fundiárias propriamente ditas, derivadas
da exploração direta ou da posse plena de prédios rústicos. Verdade para a
aristocracia de corte, verdade mesmo para as grandes ordens religiosas de origem
medieval, como crúzios, bentos ou bernardos, reconhecidamente detentoras de vasto
património. Para as ordens masculinas, apenas 18% dos rendimentos no final do
século XVIII tinham origem na propriedade rústica plena (isto é, não aforada). Para
ordens femininas esta proporção é ainda menor, fixando-se nos 9,3%. Dito isto, a
nobreza titulada em Portugal não se distinguia como grande proprietária, mas
sim como detentora de múltiplos direitos sobre o produto da terra (rendas e
foros) e de direitos de foral e dízimos eclesiásticos. Não surpreende, então, que as
doações de bens da Coroa e ordens constituíssem a fatia substantiva dos seus
ingressos (55% em média). No conjunto, 40 casas titulares concentravam 1200
contos de rendimento, equivalendo a cerca de 11% das receitas do Estado em 1804.
Num país que teria um rendimento per capita seguramente menor do que o da Grã-
Bretanha no final do século XVIII, a grande nobreza portuguesa detinha um
rendimento «capaz de ultrapassar a fasquia mínima exigida a entrarem no escalão
das 400 maiores fortunas britânicas». O trajeto de afirmação sociopolítica que o
Estado em Portugal conferiu à aristocracia foi diferente daquele que as restantes

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aristocracias europeias sofreram ao longo do século XVIII no sentido de alcançarem a


consolidação dos seus patrimónios sob a forma de propriedade plena.
A construção do Estado no Antigo Regime não terá sido tão condicionada pela
impossibilidade de garantir um monopólio fiscal, mas mais pela adaptação
institucional que consagrou a dependência de rendas do império, deixando
parte do produto interno como rendimento para outras instituições. Este mecanismo,
também com efeitos disciplinadores das elites nobiliárquicas, que de algum modo
poderiam afrontar a gradual centralização das funções públicas, mostrou-se eficaz na
eliminação de tensões internas.
A guerra e a inflação do último quartel do século XVIII, porém, colocaram
desafios a esta constelação de poderes, pela depreciação dos rendimentos da
aristocracia de corte e pela capacidade do Estado a tributar. No entanto, a parte
substantiva da lubrificação de uma cadeia de créditos privados e das receitas
públicas estribava-se na arbitragem de mercadorias, fonte de financiamento de uma
franja de negociantes/industriais/contratadores, com fortuna não maioritariamente
corporizada em bens de raiz, a quem o Estado concessionava a coleta das rendas
públicas. Assim, em última instância, e mau grado parte substantiva do produto
interno depender dos sectores produtivos, sobretudo da agricultura, o controlo
nacional do exclusivo das trocas com as colónias constituía-se como motor de
sustentação desta arquitetura financeira do Antigo Regime português.
Com as tropas francesas invadindo o território, a custo o rei concedeu em partir para
o Brasil, numa inédita inversão de papéis num sistema colonial. Anuiu aos conselhos
de todos os que asseveravam que a mudança da sede de governo seria a única
garantia para a soberania do reino de Portugal, justificando o alinhamento com o
velho aliado, agora a maior potência marítima do mundo. Na verdade, D. João VI
deixava um reino com mais de 1000 km de costa que tinha no mar, não um recurso
económico, ou razão para uma poderosa frota, mas sim uma via de acesso a recursos
ultramarinos, com custos e benefícios que diferiram em função dos vários impérios
que atravessaram quatro séculos de história.
Fosse ou não causa de bloqueio à modernização do Estado, o império atlântico-
brasileiro, de prosperidade mercantil, terminaria pouco depois de D. João VI navegar
rumo ao Rio de Janeiro.

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