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1. A evolução demográfica
Os sinais de recuperação da recessão demográfica, sensível no reino e noutras
regiões europeias na sequência da Peste Negra e de outros surtos que vitimaram as
populações ao longo do século XV, tornam-se nítidos por volta das décadas de
1480-1490. Admite-se que em 1500 a população portuguesa tivesse recuperado o
patamar de efetivos anterior às grandes epidemias do século XIV, isto é,
aproximadamente um milhão de almas. Confrontando este número, que não passa
de uma estimativa, com valores também eles reconstruídos para outros países
europeus, no início do século XVI Portugal surgia como um país de fracos
recursos humanos, só comparável em termos de efetivos com as Províncias Unidas
ou com os Países Baixos do Sul, concentrando no seu território menos de dois por
cento da população da Europa ocidental. No quadro ibérico, os Portugueses estavam
em franca minoria, representando pouco mais de 15% da população peninsular (cf.
Quadro n.° 3).
QUADRO N.° 3
A população europeia em 1500
Alemanha 12 000 000
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a sua substituição por outras doenças como o tifo e a difteria. Neste sentido, os
efeitos conjugados das crises de mortalidade e de escassez das últimas décadas
de Quinhentos levaram ao abrandamento da expansão secular, mas sem a
deter por completo.
Este padrão evolutivo estendeu-se a todo o país, não obstante os ritmos variáveis.
No Minho, as dificuldades demográficas na transição para o século XVII deram lugar a
uma fase de reorganização demográfica que se estendeu até 1638, com alguns
refluxos de curta duração nos anos anteriores. Em Coimbra, depois do retrocesso
inaugurado na década de 1590 que chegou a ceifar um quarto da população ativa, as
curvas de batismo sobrepuseram-se às da mortalidade até 1620-1621, podendo-se
falar de um crescimento a um ritmo moderado. Esse cenário não difere
substantivamente daquele detetado para o bispado de Viseu. Só o Sul do país parece
não se integrar nesta tendência de fundo. Em várias freguesias da raia alentejana, as
dificuldades demográficas já estão de volta em meados da década de 1610. E na
região de Évora a retoma dos nascimentos tendeu a perder força logo depois de
1606, travando, pois, um crescimento cumulativo da população que, por isso, não se
deteta até às vésperas da Restauração. Já no Algarve, a retoma subsequente à cava da
viragem para o século XVII, particularmente gravosa por uma conjuntura regional
específica que combina os efeitos da guerra, peste e fome, não foi suficiente para
reconstituir o número de fogos existentes em 1591, donde também aqui a imagem
regional que prevalece até ao final do período filipino é, verdadeiramente, a da
inércia demográfica.
No domínio dos comportamentos demográficos, o retrato que as fontes permitem
traçar a partir da segunda metade do século XVI é muito semelhante ao que tem
vindo a ser detetado na maioria dos países europeus: a coexistência de taxas
elevadas de natalidade e mortalidade, entre os 30 e 40 por cada mil habitantes
(embora os nascimentos superassem ligeiramente as mortes), uma mortalidade
infantil e adolescente muito elevada, que ceifava metade das crianças nascidas, e,
consequentemente, uma baixa esperança média de vida à nascença, que oscilava
entre os 25 e os 35 anos de idade. A mortalidade era dominada por causas exógenas,
posto que as doenças infeciosas, como a peste, o tifo, a varíola, determinavam a
maioria das mortes. Por seu turno, também em Portugal se encontram indícios da
prevalência de um padrão europeu de casamentos, um european marriage
pattern, que atua como regulador do crescimento populacional, pela sua ação sobre a
fecundidade. Embora não seja seguro afirmar que este padrão de casamento esteja já
estabelecido em 1500, é ao longo desta centúria que se vão definindo os seus traços
essenciais, aparecendo perfeitamente instituídos no século seguinte. Apesar das
variações, nas regiões a norte do Tejo as mulheres tendiam a casar mais tarde,
entre os 23 e os 26 anos, enquanto se constata também uma percentagem não
negligenciável de celibato definitivo, que afeta sobretudo as mulheres. Seguindo
um padrão mais próximo daquele detetado para o Mediterrâneo, no Alentejo e no
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Entre-Douro-e-Minho 5,5
2 16 1
Trás-os-Montes - -
Beira - -
Estremadura 3 41 1 19,9
Entre-Tejo-e-Guadiana 5,8
6 62 1
Algarve 64 -
2
Portugal 13 12,8 3 6,7
Fonte: Dias 1998: 18-20; Serrão 1996: 68; Rodrigues 2009: 193.
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QUADRO N.° 6
Urbanização na Europa (1500)
(% da população total)
> 5000 hab. > 10 000 hab.
pelos respetivos cursos fluviais que, nos dois primeiros casos, ainda se
complementavam com atividades portuárias e tratos comerciais com o exterior, fruto
da sua localização geográfica. Lisboa juntava a essas condições o estatuto de capital
do reino e do império, assim ditando a sua excecional capacidade de atração
demográfica que se iria acentuar nos séculos subsequentes. No Noroeste atlântico,
Guimarães deveu o seu crescimento à sua função de centro catalisador da produção
de uma região densamente povoada. Já na orla marítima algarvia, o estímulo para o
crescimento de Lagos e Tavira radicou na sua agitada vida portuária, muito
focalizada nas ligações comerciais com a Andaluzia e com os presídios do Norte de
África. No interior alentejano, a concentração urbana era, simultaneamente, a
expressão de uma tradição de povoamento herdada do urbanismo árabe, de uma
ação de fomento das ordens militares religiosas após a Reconquista e da riqueza
agrícola local, particularmente nas terras em torno de Beja e de Portalegre. Aqui,
mais do que os contactos com o litoral, as ligações comerciais a Castela imperavam,
pela proximidade de algumas cidades relativamente à raia.
Desequilibrado, portanto, este retrato da rede urbana portuguesa: uma capital,
a raiar os 100 000 habitantes nos meados do século, contrastava com aglomerados
urbanos bastante mais pequenos. Cidades de dimensão média, capazes de
catalisar os circuitos comerciais e de concentrar a capacidade de consumo,
constituíam as grandes ausências. Se o critério de aglomerado urbano for alargado
a núcleos de entre os 500 fogos e os mil fogos, isto é, considerando um patamar
mínimo para distinguir centros urbanos de aglomerados de cariz rural, a cartografia
da malha urbana portuguesa deixa entrever alguns «desertos» de ocupação,
particularmente evidentes no Baixo Alentejo, na Beira Interior e em Trás-os-Montes
(Mapa 4).
Ao longo do século XVI, a dinâmica de crescimento populacional introduziu algumas
alterações, embora não substantivas, neste cenário, já que, nos seus traços gerais, se
manteve a estrutura urbana aqui delineada. Apesar de tudo, algumas cidades
experimentaram desenvolvimentos mais positivos, motivados por fatores
económicos específicos. Assim, o número de fogos cresceu em cidades marítimas
como Aveiro e Viana do Castelo, fruto da intensificação das trocas comerciais
realizadas pelo Atlântico, sobretudo depois de meados do século XVI, com a
consolidação do povoamento no litoral brasileiro, assente na economia açucareira.
Também Braga conheceu uma dinâmica positiva, enquanto Lisboa continuou a
crescer a um ritmo acelerado, mercê da captação sistemática de fluxos migratórios. Já
o Porto viu os seus efetivos estabilizarem, ao mesmo tempo que as cidades marítimas
do Algarve perdiam residentes pelo arrefecimento dos contactos comerciais com o
império espanhol através de Sevilha. Destes exemplos, a percetível maior
concentração da população urbana em cidades marítimas permite que se fale
de um lento processo de litoralização ao longo do século XVI.
2. A expansão agrária
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autoconsumo.
A vinha, o segundo pilar da trilogia alimentar mediterrânica, revestiu-se de
características distintas. Também as vides se achavam disseminadas por todo o país
desde o período medieval, porém neste caso, e ao contrário do que sucedia com os
cereais, as condições edafo-climáticas de vastas áreas do reino eram claramente
favoráveis ao seu cultivo, assim permitindo uma produção abundante e com bons
níveis de produtividade. Não é, pois, de admirar que o vinho gozasse de um lugar
destacado entre as bebidas que se consumiam em todas as mesas e que fosse
facilmente identificado como uma das principais produções portuguesas,
entrando em circuitos de exportação. Por isso, o que distinguiu verdadeiramente a
vinha foi a sua precoce vocação de mercado. A produção de vinho orientou-se
desde cedo para a comercialização, quer no mercado urbano, quer no mercado
internacional. A sua inclusão regular nas exportações portuguesas dos tempos
medievais é disso exemplo. Tenha-se presente o panorama detetado para o Alto
Douro. Embora a verdadeira expansão da vinha ocorra no século XVII, já no
século XIII era visível uma orientação para a viticultura, fundada nas condições
climatéricas e na possibilidade de fazer escoar a produção pelo rio. Nesse sentido, e
devido também aos cuidados que exigia, a vinha desenvolvia-se habitualmente em
pequenos campos próximos dos núcleos populacionais, formando um aro em torno
das vilas. Essencial era igualmente a proximidade a cursos de água ou vias de
comunicação terrestres por onde se garantia o acesso aos mercados.
Na continuidade de uma expansão que se encetou nos finais da Idade Média, a cultura
da vinha manteve-se em progresso por quase todas as regiões portuguesas,
beneficiando do quadro macroeconómico favorável e da dinamização da vida urbana
expressa, como se viu, no crescimento do número de fogos de várias cidades, em
particular das marítimas. Mas será sobretudo nas últimas décadas do século XVI
que se multiplicaram os investimentos realizados por comerciantes na
exploração de vinhedos, tendência que continuará pelo século XVII.
A aliança mediterrânica completa-se com a oliveira. Se a isso juntarmos as múltiplas
utilizações do azeite, na alimentação, iluminação, medicina e preparação de lã, assim
se compreende a implantação desta árvore que, contudo, no período tardo-medieval
estava ainda longe de ostentar a cobertura que conheceu ao longo dos séculos XVI e
XVII. Na viragem para a modernidade, a oliveira protagonizava um movimento
multissecular de expansão que se espraiava a partir da sua área de implantação
tradicional, o Portugal mediterrânico, em direção ao norte. Depois de ultrapassada a
região de Coimbra e da Covilhã, seu limite setentrional no final da Idade Média,
durante o século XVI os olivais continuaram a expandir-se, insinuando-se no
Portugal transmontano e nalguns pontos do Entre-Douro-e-Minho, sinal de uma
generalização do seu consumo e da sua crescente importância nas exportações.
À propagação da oliveira também não será alheia a sua combinação com outras
culturas, uma vez que podiam surgir isoladas ou em olivais, em parelha com outras
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cerca de 10 200 porcos e 5100 marrãs num largo perímetro em torno da cidade de
Lamego. Na serra de Montemuro, não eram poucos os criadores que dispunham de
100, 120 ou 150 vacas e touros.
No território onde predominam os verões secos e os solos menos húmidos, como
sucedia a sul do Mondego, as pastagens naturais eram menos abundantes e tinham
uma qualidade globalmente inferior às do Norte do país e também da Europa. Apesar
disso, os animais eram necessários, pelo que havia que harmonizar cultura da terra e
criação de gado, na busca de um equilíbrio, habitualmente precário, em que ambas
beneficiassem. O compáscuo foi o regime que vigorou em grande parte do território
nacional e que pressupunha a utilização comunitária das terras de pasto: todos
os animais pertencentes aos vizinhos da povoação tinham entrada livre quer nos
bens concelhios (como baldios e maninhos), quer nas terras de apropriação
particular para pastar nos pousios ou nos restolhos. Aliás, é esta comunhão de
pastagens que, com algumas variantes, explica a prevalência dos campos abertos
no território.
O crescimento, em torno dos povoados, de culturas como a vinha, a oliveira e as
culturas de regadio, incluindo pomares e hortas - já para não falar dos avanços das
arroteias ou da introdução de leguminosas nas contrafolhas, em detrimento dos
pousios -, podia conduzir a tensões com a criação de gado. Por um lado, havia que
assegurar pastos em dimensão suficiente para o seu sustento, até para garantir a
produção de estrume para a fertilização das terras cerealíferas, e, por outro, era
imperioso afastá-los dos aros citadinos onde predominavam os cultivos mais
delicados (vinha, oliveira, legumes) que urgia proteger. E perante a necessidade de
compatibilizar as duas atividades que, desde o século XIV, no Centro e no Sul do país
se introduziram medidas destinadas a organizar o pastoreio coletivo e que se
irão aprofundando na viragem para o período moderno. Os bois de arado foram os
primeiros a ser agrupados em boiadas ou aduas, conduzidos em conjunto para as
pastagens reservadas para o efeito ou para os restolhos. Nenhum vizinho podia
excluir os seus animais do rebanho da coletividade, o que justifica a dimensão
alcançada pelas suas deslocações: para o século XV há notícias que dão conta da
movimentação organizada de várias centenas de bovinos às pastagens de Ourique,
provenientes do Alentejo e do Algarve, e que podiam chegar ao milhar de cabeças.
Também as ovelhas se agrupavam em grandes rebanhos que circulavam pelo
Alentejo, Beira Interior e Trás-os-Montes, em busca de pastagens numa transumância
organizada, com canadas, caminhos reservados para o efeito. Particular importância
assumia a serra da Estrela, enquanto destino de pastagem de verão. Em números
mais restritos, cabras, porcos e muares marcavam presença por todo o país. A
criação de aves de capoeira seria de todas a mais generalizada, por ser muito
pouco exigente em termos de espaço e de alimentos. Disso mesmo é expressão
sistemática a composição dos foros pagos aos senhorios que, não raras vezes,
incluíam galinhas e ovos.
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3. As manufaturas
Na Europa, a partir do terceiro quartel do século XV, as atividades industriais,
entendidas num sentido amplo, isto é, enquanto produção e transformação de bens
não agrícolas, deram também sinais inequívocos de dinamismo. É possível falar de
um crescimento da sua capacidade produtiva que, contudo, permanece por
quantificar, devido à insuficiência de dados empíricos. O aumento da procura nos
centros urbanos, a maior disponibilidade de trabalho, de capitais e matérias-
primas, e a animação dos circuitos comerciais forneceram as bases para esse
avanço industrial nas sociedades europeias, que se sucedeu à letargia que afetara o
sector durante a crise do século XIV.
O comportamento da indústria em Portugal insere-se nesta tendência geral
europeia. O ritmo de crescimento industrial, todavia, dificilmente terá superado o do
resto da atividade económica nacional, e o peso da indústria na economia não terá
aumentado. O predomínio da atividade agrícola refletia-se na dinâmica do sector
industrial, cuja evolução dependeria, assim, da evolução da configuração das
estruturas agrárias e dos seus reflexos nos níveis de consumo das populações ou na
oferta de trabalho e de matérias-primas. Embora tendo em conta outras variáveis, é
essa perspetiva que orienta o inquérito que se segue em torno da evolução das
atividades industriais e da sua distribuição no espaço nacional.
Na viragem para a Idade Moderna, um pouco por toda a Europa, e também em
Portugal, multiplicam-se os indicadores que apontam para um desenvolvimento
da produção manufatureira, realizada nos lares das famílias camponesas,
destinada já não apenas ao autoconsumo, mas também à satisfação da procura
em mercados distantes, locais, regionais, ou mais além. Aproveitando a
familiaridade da mão-de-obra com o processo produtivo, a abundância de matérias-
primas e a difusão dos instrumentos de fiação e de tecelagem, bem como os estímulos
da abertura de mercados, a emergência da indústria rural corresponde à
extensão de uma lógica empresarial ao trabalho doméstico realizado no campo.
Na verdade, a organização e a coordenação desse trabalho dependiam menos dos
produtores, cabendo antes a agentes económicos, oriundos seja do sector mercantil,
seja do sector industrial urbano, empresários que constituíam as redes que ligavam a
produção eminentemente dispersa. São estes agentes que, conhecendo a
configuração da procura, distribuíam as encomendas pelos lares dos produtores,
asseguravam a sua recolha e o seu encaminhamento para o mercado, num sistema
que a historiografia alemã classificou de Verlagssystem, ou putting out system, para
designar uma indústria doméstica coordenada pelo mercado.
Uma outra característica desta modalidade organizativa radicava na profunda
imbricação entre agricultura e indústria, sendo esta última uma atividade
secundária, realizada nos tempos mortos da faina agrícola com o intuito de obter
rendimentos complementares à sobrevivência do agregado doméstico. Nesses
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termos, tem sido reconhecido um papel crucial à configuração das estruturas socio
agrárias na proliferação da produção doméstica rural. Embora as relações
estabelecidas entre agricultura e indústria demonstrem uma forte complexidade,
eram as insuficiências da agricultura, derivadas da pobreza dos solos, de uma
desigual repartição do acesso à terra ou ainda de uma forte densidade populacional,
que criavam as condições para a oferta de uma mão-de-obra mais abundante e
relativamente mais barata, que encontrava nas tarefas artesanais o complemento
indispensável à sua subsistência.
Mas a cidade e campo, a oficina artesanal e a indústria rural não constituíam formas
concorrentes de produção industrial. Bem pelo contrário. Na relação entre a cidade
e o campo é visível uma complementaridade que resulta do estabelecimento de
uma divisão regional do trabalho, particularmente evidente no sector têxtil: às
indústrias rurais entregavam-se as etapas iniciais do processo de fabrico, a fiação e
tecelagem, enquanto as indústrias urbanas se centravam nas etapas de acabamento
e aperfeiçoamento dos tecidos que exigiam técnicas mais complexas e dispendiosas,
como a tinturaria e estampagem. Pela mão de mercadores ou de artesãos
especializados que coordenavam a produção do sistema doméstico, a influência das
cidades estendeu-se ao mundo rural, num movimento que tendeu a aprofundar-se ao
longo do século XVI. Assim sucedia com a produção de lã e de linho, dispersa pelos
campos mas coordenada por centros regionais, como Guimarães, Bragança,
Portalegre e Évora, onde se concentravam artesãos especializados que
transformavam os panos antes de serem redistribuídos pelo mercado urbano ou por
mercados mais longínquos. Também no fabrico de cordame, utilizado na Ribeira das
Naus na construção naval, se revelou esta articulação entre o mundo urbano e o
rural, já que a primeira fase de produção de fio, conduzida nos campos de Moncorvo
ou de Santarém, se combinava com a sua transformação em cordame na cordoaria de
Lisboa.
Quanto à distribuição sectorial da indústria portuguesa, a insuficiência de elementos
quantitativos relativos a este período cronológico dificulta a aproximação ao tema. O
mesmo é válido para a sua repartição geográfica. Mesmo sem números, uma coisa é
certa: à semelhança do que sucedia nas sociedades europeias da época, o sector
têxtil detinha a primazia na ocupação de trabalho em relação a todos os outros.
Satisfazendo uma necessidade básica das populações, a produção de têxteis, fossem
de lã, linho, seda ou algodão, era de longe aquela que ocupava um maior número de
pessoas e também a que se encontrava mais amplamente difundida por todo o país.
Aliás, é devido à extraordinária disseminação das rocas e dos teares nos lares e à
prática muito enraizada da produção de panos para satisfação do consumo doméstico
e local que a aferição do seu peso no conjunto da indústria se torna particularmente
difícil.
O linho representou um caso paradigmático dessa realidade. A fiação e a tecelagem
desta fibra, ocupações entregues habitualmente à mulher no seio da indústria
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doméstica, espalhavam-se por várias áreas do país. Onde quer que estivessem
reunidas as condições naturais favoráveis à sua cultura, aliadas à disponibilidade de
mão-de-obra local, como sucedia no Minho, na Beira, na Estremadura e também, em
menor grau, no Algarve. O sucesso e a vulgarização desta indústria radicavam
também na ampla utilização dada aos panos de linho, mais ou menos grosseiros,
deles se fazendo camisas, roupa interior e a maior parte da roupa de casa, como
lençóis e toalhas de mesa. Era seguramente a indústria mais popular e
disseminada da época, embora se tenha de destacar a região do Minho que, ainda
no século XVI, conheceu o seu desenvolvimento mais intenso. Aproveitando uma
matéria-prima de há muito inserida na rotação de culturas, aí se congregaram os
vetores essenciais que permitiram um forte desenvolvimento da produção, cujos
excedentes, depois de transformados, se escoavam nos mercados urbanos,
integrando também os circuitos mercantis de exportação. Exemplo disso encontrou-
se na produção de panos de vela, a serem exportados do porto de Vila do Conde.
A tradição do fabrico de panos de linho que caracterizava o território minhoto
assentava na relação entre uma ativa indústria rural dispersa e a indústria oficinal,
sedeada em centros regionais como Braga e Guimarães, capazes de polarizar a
produção rural que, na zona de Guimarães, ultrapassava as 100 mil varas por ano.
Esse fenómeno é indissociável da maior densidade populacional que caracterizava a
região, assim como do facto da pulverização das explorações que, embora baseadas
numa policultura intensiva, proporcionarem rendimentos insuficientes para
satisfazer as necessidades da sua população. Também para outras zonas do país,
como Guarda e Sever do Vouga, está documentada uma ligação entre pobreza e
tecelagem de panos de linho exercida a tempo inteiro por mulheres, sobretudo
viúvas e mulheres solteiras, a sugerir uma especialização. Por fim, condições
favoráveis à circulação, quer por via terrestre, quer fluvial, e a proximidade ao litoral
vieram consolidar a forte implantação regional da indústria do linho no Minho, que,
aliás, se iria intensificar nos séculos seguintes e responder à procura da indústria
naval para panos de vela.
Por razões semelhantes, também a produção de lanifícios se difundiu um pouco por
todo o reino, mercê de tradições seculares. Onde quer que a existência de gado ovino
o permitisse, fabricavam-se panos de lã em teares caseiros, destinados a confecionar
as mais variadas peças utilizadas no vestuário, desde os capotes e casacos às meias e
chapéus. Além desta produção caseira com destino a mercados locais, em algumas
áreas do país os lanifícios revelavam forte densidade produtiva, esboçando uma
regionalização da indústria, já desde o século XV. Ao contrário do linho, mais
concentrado em zonas próximas do litoral, as maiores aglomerações dos têxteis de
lã situavam-se no interior, repartidas numa faixa que se estendia do Norte da Beira
Baixa ao Baixo Alentejo. Em importantes núcleos de produção situados perto da
fronteira, como Arronches, Portalegre ou Castelo de Vide, e no perímetro da serra
da Estrela havia condições mais favoráveis de oferta de matéria-prima, pela forte
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interno. Por orçamentos do final do século XVI conhece-se a estrutura dos custos,
correspondendo ao casco, quase integralmente construído com madeiras nacionais,
68% (cf. Quadro n.° 7). Atendendo, ainda, ao facto de parte do aparelho utilizar
linhos, estopa e cordame produzidos com matérias-primas nacionais, parece certo
que a oferta interna respondeu a mais de dois terços das necessidades da indústria.
QUADRO N.° 7
Estrutura de custos de produção de um navio em Lisboa na primeira metade do século XVI
Itens da despesa % do total
Casco 68
Mastros 9
Poleame 1
Enxárcia 15
Velas 3
Âncoras 3
Montagem do aparelho 1
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1455 1600
1470 30 000
Aceitando a relação dos preços de uma e outra área de produção acima indicada
como constante, na qual o da Madeira era três vezes superior ao de São Tomé, é
plausível que as exportações de açúcar nos anos de 1515-1525 e de 1580 valessem,
respetivamente, 138,5 milhões e 312 milhões de réis, somas com interesse para
comparar com cargas específicas de outras partes do império.
Com efeito, além do açúcar, o ouro e os escravos formaram o tríptico de
mercadorias que definiu a importância do Atlântico no império português. O
trabalho escravo nas plantações contou com o tráfico organizado nas feitorias da
costa da Guiné. Diferentemente do que sucederia no século XVII com o Brasil, para o
qual as ligações a Angola foram indispensáveis, a fase da produção insular
estimulou o tráfico negreiro acima do equador, pondo Cabo Verde como placa
de redistribuição dos escravos trazidos da Guiné. Impulsionou, também, a
indústria cabo-verdiana de panos de algodão necessários às transações na costa.
Das escassas fontes quantitativas conhecidas, estima-se que em média passaram por
Cabo Verde 1400 escravos por ano na primeira metade do século XVI, a diversos
preços, em função da etnia, da idade e de oscilações de oferta e procura, variando
entre um mínimo de 3500 réis e a um máximo de 7000 réis. Embora os preços
máximos aumentassem em 1520 e l530, a moda esteve nos 5000 réis, aceitando-se
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como estimativa que esta mercadoria movia cerca de 7 milhões de réis anuais.
A participação portuguesa no comércio negreiro não se destinou somente aos
arquipélagos atlânticos, pois, com distribuição a partir de Cabo Verde, encetou-se um
circuito de abastecimento às índias de Castela de escravos da Guiné e outro, a
partir da costa do Congo, que se dirigiu aos próprios mercados indígenas mais
a sul. Na feitoria de São Jorge da Mina, a venda, e não a compra, de escravos era
realizada por portugueses para obtenção de ouro.
As informações sobre quantidades de ouro resgatado na Mina contam com
documentação oficial, sendo um negócio de monopólio régio. Os valores estimados a
partir da verificação de contas dos oficiais responsáveis figuram no Gráfico n.° 1.
GRÁFICO N.° 1
Remessas de Ouro da Mina (1487-1561)
GRÁFICO N.° 2
Pimenta descarregada na Casa da índia (1501-1600)
QUADRO N.° 10
Valor das cargas de pimenta na Casa da índia (1501-1600)
Média anual (réis) n.° de anos
Fontes: Godinho 1978:301-304; Godinho 1982-1983, vol. m: 17,21,24; Boyajian 1993, apêndice 2.
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Preço na origem Frete Custo total (frete e Preço no destino Custo total Preço no
preço na Ásia) destino
(Cochim)1 (Casa da índia)
1506 3 1 4 22 450%
1 Preço
do quintal em cruzados
Fonte: Godinho 1982-1983, vol. in: 17, 21 e 24.
O desempenho das embarcações na viagem foi sendo cada vez mais calamitoso
desde 1580, em parte, devido a sobrecarga, mas especialmente devido aos efeitos
dessa sobrecarga em embarcações de pior qualidade. Depois das primeiras décadas
do século XVI, em que o contributo dos estaleiros portugueses no provimento das
armadas da Ásia foi crucial, transferindo-se desde 1505 a 1520, 27 navios que não
eram supostos retornar, a regularização das comunicações refletiu-se numa
tendência para a redução das baixas de efetivos na rota (cf. Gráfico 3). Que se
inverteu criticamente a partir de 1580, tendo o número de perdas disparado.
Houve, assim, diversos sinais de que o circuito de bens asiáticos enfrentava
problemas endógenos, pois a opção da Coroa portuguesa nesta conjuntura de pior
prestação do transporte ancorou-se na encomenda de navios de grande tonelagem,
mais do que num aumento do número de efetivos de menor porte e que se acreditava
terem maiores qualidades náuticas. Ainda que tivessem economias de escala, as
embarcações com 600 e mais toneladas que circulavam sobrecarregadas pareciam
incrementar a probabilidade de naufrágio.
A EXPANSÃO, 1500-1621 - 30
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.
GRÁFICO N.° 3
Navegação da carreira da índia (1500-1629)
(percentagem de navios que não regressaram)
Os registos oficiais da feitoria régia naquela mesma cidade, por todo o reinado de D.
Manuel, confirmam a relevância das especiarias, destacando-se a pimenta, apesar
de o gosto por paladares condimentados abrir o mercado à malagueta africana. O
naipe das mercadorias exportadas por Portugal é aqui mais diversificado do que na
síntese de Cavali, porque se incluem matérias tintureiras, como o pastel açoriano, e
236 pipas de vinho (sem indicação de proveniência). Desconhecem-se os valores
implicados e as taxas de câmbio. A preços de Lisboa, a pimenta transacionada
pelos feitores do rei entre 1495 e 1521 ficava-se pelos 76 milhões de réis.
A EXPANSÃO, 1500-1621 - 35
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.
A EXPANSÃO, 1500-1621 - 36
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.
A EXPANSÃO, 1500-1621 - 37
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.
região, respetivamente, com 35% e 27,2% das perdas. A faixa costeira a sul do
Mondego compreendia outros 27%, embora fosse Lisboa o porto responsável pela
representatividade desta zona. A estrada marítima da Flandres dominou quer em
número de vítimas, quer em volume e valor dos capitais saqueados.
Quanto à tonelagem total ao serviço destas relações externas, as estimativas só
podem ser lacunares. As entradas em Antuérpia apreendem-se pela coleta de um
imposto de ancoragem e por ele se conhece a tonelagem total das embarcações aqui
envolvidas. Até 1547 a tendência foi para o aumento do volume, partindo de valores
próximos das 500 toneladas e atingindo um pico de 2400, em dez anos. O fecho da
feitoria régia parece ter afetado as relações com esta praça. Mas o mais significativo
nestes registos ocorre com a evidência de que a frota portuguesa se foi
retirando desta rota da Flandres quando deflagrou a guerra nos Países Baixos
(1568-1648).
GRÁFICO N.° 5
Exportações para Antuérpia (1535-1550)
Numa lista de 1586, contudo, Portugal tinha uma frota marítima considerável em
comparação com a Espanha. Na medida em que a população deste reino era cerca de
sete vezes a portuguesa, um rol de 304 efetivos para Portugal, contra 650 em
Espanha, matiza a imagem de um reino com uma força marítima em decadência.
Lisboa preenchia 29% da frota, seguida de Tavira com 20%. Os demais portos não
alcançaram representatividade superior a 9%, pela dispersão destes efetivos por
toda a faixa costeira.
O incremento da produção do açúcar no Brasil deu mais um novo impulso à
frota nacional e em 1605 a administração filipina reiterava o espírito da legislação
manuelina, interditando a entrada de navios estrangeiros nas comunicações do
Atlântico Sul.
Estas medidas, de cariz protecionista, encaminharam a marinha portuguesa
para uma especialização nos circuitos coloniais, o que, simultaneamente, abria
espaço à participação maioritária das marinhas europeias nos fluxos que
integravam Portugal na Europa. Nesse sentido, a dimensão pluricontinental da
economia portuguesa afeiçoou de várias formas as características da oferta de
transporte, expondo-se menos à concorrência europeia, mercê dos exclusivos nas
águas do império.
Por fim, a função de entreposto reverberou no sistema fiscal, dando primazia
às receitas aduaneiras. E se a fiscalidade representa uma forma redistributiva do
produto, o império teve outros impactos na estrutura da economia.
5. As raízes do Estado fiscal
As primeiras décadas do século XVI foram palco de mudanças, quer no tecido
organizativo vocacionado para a gestão dos recursos fiscais da Coroa, quer na
clarificação de uma parte da sua matriz fiscal. Inseridas num ciclo de reformas
que a historiografia considera de uniformização institucional mais do que de
verdadeira centralização política, os seus efeitos ultrapassam o corte cronológico
aqui em observação, perdurando até às reformas liberais do século XIX.
A EXPANSÃO, 1500-1621 - 39
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.
QUADRO N.° 16
Orçamentos do reino (1506-1607) (em milhões de réis)
Casa e naus da índia 51,3 117,6 s.i 252 s.i 245 397,5
A EXPANSÃO, 1500-1621 - 42
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.
A EXPANSÃO, 1500-1621 - 46
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.
tempo o tráfico que unia Amsterdão ao porto de Setúbal. Do mesmo modo, também a
interdição da permanência de mercadores holandeses nos portos portugueses
decretada em 1605 não impediu o relacionamento comercial com as Províncias
Unidas. É certo que, um pouco mais tarde, esta comunidade em Lisboa foi
efetivamente desestruturada, mas o vazio que deixou foi rapidamente preenchido
por mercadores portugueses com ligações a Amsterdão. Afinal de contas, o comércio
era suficientemente compensador para os agentes envolvidos, fossem portugueses,
fossem holandeses, justificarem tentativas sistemáticas de contornar as proibições.
Os holandeses precisavam da intermediação das produções do Báltico com o
mundo mediterrânico, enquanto os portugueses não dispensavam as
carregações de trigo. A Lisboa chegariam anualmente cerca de três mil navios
carregados de cereal, de acordo com Luís Mendes de Vasconcelos numa apreciação
de 1608, talvez exagerada, mas que diz bem da importância do «pão do mar». Sal,
açúcar e cereais polacos escoados por Dantzig eram produtos essenciais que
animavam estas rotas, aos quais se juntava a pimenta, que, pelo menos até ao início
da década de 1590, também circulava de Portugal para os portos da Holanda e
Zelândia.
Entretanto, as tréguas entre a Casa de Áustria e as Províncias Unidas em 1609, e que
durariam até 1621, dinamizaram estas ligações e envolveram os três principais
portos portugueses ligados ao tráfico com o Brasil. Lisboa, o maior porto do reino,
detinha igualmente uma posição cimeira nas ligações transatlânticas, secundada pelo
Porto e Viana do Castelo, outros nós de articulação dos portos brasileiros e das
praças europeias. Viana do Castelo, sobretudo, viveu nos primeiros quarenta anos de
União Ibérica um período de particular prosperidade, mercê do estabelecimento de
ligações diretas com o Brasil, conduzidas por cerca de setenta navios entre 1619 e
1629, ou como porto na rede de negócios de mercadores residentes em Lisboa. Na
vigência das tréguas, as Províncias Unidas conseguiram captar pelo menos metade do
açúcar brasileiro, do que foi sintomática a multiplicação das refinarias a laborar em
Amsterdão. Com três unidades de produção em 1594, vinte e cinco anos depois
albergava duas dezenas e meia. Nem mesmo a tendência em baixa dos preços do
açúcar, que começou em 1612, logo depois das tréguas assinadas, conseguiu suster as
ligações comerciais com as Províncias Unidas. Aquele ano encetou um período difícil
para o açúcar brasileiro, quer para os produtores, quer para os circuitos mercantis,
debatendo-se com margens cada vez mais curtas na intermediação. Os preços
desciam na Europa sem que tivessem igual comportamento na colónia. A conjuntura
depressiva agravou-se em 1618, com o início da Guerra dos Trinta Anos e
subsequente continuação da contração dos mercados centro-europeus. Mas
nem por isso as ligações holandesas aos portos da Península Ibérica, sobretudo a
Lisboa, deram prova desta conjuntura. Só em 1621, com o renovar das hostilidades
entre a Espanha e as Províncias Unidas, acompanhado de novo embargo à navegação
holandesa, este com uma administração e controlo bastante mais apertado do que os
A EXPANSÃO, 1500-1621 - 48
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.
anteriores, ficou em causa a inserção dos portos portugueses nas redes mercantis
europeias.
Assim, a integração económica de Portugal num feixe de rotas transatlânticas
reforçou-se com a União Dinástica, tempo em que se abriram aos mercadores
portugueses novas oportunidades de negócio na América Espanhola e na
própria Península. Embora no plano dos princípios os domínios ultramarinos
permanecessem separados, a sua unificação sob a pessoa do mesmo rei acabaria por
se refletir numa suspensão temporária da efetivação das fronteiras do Tratado
de Tordesilhas e, por isso, numa maior tolerância às infrações. Se anteriormente à
União Ibérica já os mercadores portugueses se infiltravam nas redes de comércio do
reino e do império vizinhos, depois de 1580 esse fenómeno intensificou-se.
Mercê do seu domínio sobre os mercados abastecedores de escravos da Guiné e
de Angola, os mercadores portugueses penetraram nas «Índias de Castela». O
negócio não só era controlado a montante, por grandes mercadores portugueses que
chamavam a si os asientos, contratos exclusivos de abastecimento de escravos à
América Espanhola, como a jusante, pela venda de licenças que estes assentistas
realizavam, disseminando os seus direitos de monopólio por uma miríade de
operadores. Também o transporte de escravos envolvia a participação de navios e
capitais portugueses numa rede que ligava entre si Lisboa, Sevilha, portos negreiros
e a América Espanhola. Esta triangulação agitou a vida portuária portuguesa, sendo
hoje reconhecida a resposta preferencial de Vila do Conde a estes investimentos
no transporte negreiro, enquanto outras localidades permaneceram mais
vocacionadas ao tráfego do açúcar, como aconteceu em Viana do Castelo. Donde
resulta clara a existência de uma efetiva complementaridade entre as
economias dos dois impérios, castelhano e português, operada por meio dos
escravos e da prata, da qual beneficiaram os agentes mercantis e os cofres do
erário. Aliás, quando experimentava o seu auge na segunda década do século XVII,
esta ingerência portuguesa no império espanhol causou mal-estar na comunidade
mercantil sevilhana, mostrando como estas redes mercantis portuguesas chegavam à
prata americana.
Para esta integração ainda contribuíram os fluxos migratórios portugueses. Em
primeiro lugar, considere-se a migração de Portugal para Castela, que transformou
Sevilha e Madrid nas cidades onde se encontravam as maiores comunidades
portuguesas no exterior. Fluxos justificados pela capacidade de atração económica
destes centros urbanos, mas também instigados pelas perseguições inquisitoriais. As
saídas de mercadores cristãos-novos do Algarve deveram-se, pelo menos em parte,
aos ritmos de repressão da Inquisição. Uma vez em Sevilha, muitos dos cerca de 2000
portugueses que aí residiram trabalhavam ativamente no tráfico da Carreira das
Índias, onde a sua participação chegou a representar um quinto do volume dos
negócios, mesmo sem ter em conta o contrabando e o tráfico de escravos. Em
segundo lugar, considerem-se os fluxos com destino na América Espanhola,
A EXPANSÃO, 1500-1621 - 49
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.
finais da União Dinástica foram pontificadas por tensões várias, e a fiscalidade pode
ter sido um bom pretexto para a restauração da autonomia política.
A EXPANSÃO, 1500-1621 - 52
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.
A RESTAURAÇÃO, 1621-1703 - 1
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.
particular, numa diferente estrutura dos sistemas de tributação. Um pouco por todo o
lado, o aumento das receitas trouxe a preponderância dos impostos indiretos
sobre os impostos diretos. Recentes abordagens de história fiscal descrevem esta
progressiva estatização das economias no século XVII. Com este enfoque,
alargou-se a inteligibilidade do que é há muito conhecido por mercantilismo, quer
pelo tipo de impostos, quer pelo sentido de medidas públicas de fomento às
manufaturas, ou de proteção a sectores considerados estratégicos para a afirmação
dos Estados na ordem internacional.
Portugal inscreveu-se neste cenário a vários níveis. A inserção do reino na
monarquia hispânica implicou a sua participação numa frente generalizada de
choques militares, na Europa, África, Ásia e no Novo Mundo. À autonomia
readquirida em 1640 seguiram-se 28 anos de Guerra da Restauração que reforçou
a aliança com a Inglaterra por meio dos tratados de 1654 e 1661. Depois de um
período de hesitação nos seus alinhamentos externos, a ratificação desta viragem
atlântica veio com a Guerra de Sucessão de Espanha, em 1703. A assinatura de
tratados entre os dois aliados, um deles com conteúdo exclusivamente económico e
conhecido por Tratado de Methuen, tornou-se o melhor símbolo dessa inserção
atlântica, no campo diplomático e também no campo económico.
Assim, Portugal fez parte do mapa de Estados em formação que, por diferentes
motivos, enfrentaram uma despesa crescente com a guerra, buscaram receitas em
bases alternativas de execução fiscal e entenderam a proteção aduaneira às
indústrias nacionais como um meio necessário à reputação política e económica.
Contudo, o trilho da construção de um Estado fiscal em Portugal seguiu uma
trajetória diversa da dos outros países europeus, nomeadamente das potências
emergentes, pois desde cedo os impostos indiretos preencheram a fatia mais
significativa das receitas coletadas no reino, com a sisa a constituir um dos
melhores exemplos, enquanto o império, por sua vez, acrescentara a base
incidente no movimento das alfândegas ou na criação de rendas de monopólio
concessionadas pelo Estado. A Guerra da Restauração ofereceu condições para a
mudança desta estrutura fiscal, com a introdução de um imposto direto sobre o
rendimento, cobrado pelo Estado, denominado de décima. Não obstante as
diferenças, o período final da União Dinástica, a Restauração e a posterior atuação do
Estado na criação de manufaturas foram etapas fundamentais de ingerência pública
na economia, caminho comum a outras experiências nacionais e uma das marcas
deste século de transformação da geografia económica europeia.
1. Fiscalidade, rebelião e Restauração
O termo das tréguas, em 1621, entre a monarquia hispânica e a Holanda inscreveu-se
numa fase de recessão do comércio internacional, com os preços em queda, à qual
A RESTAURAÇÃO, 1621-1703 - 2
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.
não foi alheia a contração dos mercados com o deflagrar da Guerra dos Trinta Anos.
Por sua vez, o retomar das armas entre os Habsburgo e os Países Baixos teve efeitos
na economia portuguesa, pois criou uma situação de rutura nas tradicionais
formas de financiamento das despesas públicas. Na base dessa rutura encontram-
se múltiplos fatores. Mas há que relevar os que dependeram das relações económicas
com o exterior, com reflexos na redução de receitas aduaneiras, pressionando a
busca de alternativas fiscais que haveriam de questionar os equilíbrios
constitucionais definidos desde 1581 nos estatutos de Tomar.
A proibição de comércio com a Holanda, decretado logo em 1621, e a apertada
fiscalização imposta pela administração do conde-duque de Olivares sobre os
portos deram uma outra eficácia a este embargo. A navegação holandesa e de outras
nações estrangeiras foi afastada dos portos nacionais. Lisboa foi a localidade que
mais perdeu. As receitas do consulado e das alfândegas ressentiram-se desta
conjuntura, a qual testemunhos contemporâneos não duvidaram tratar-se de uma
grave crise no comércio da cidade. Porém, os portos de Faro e Setúbal assistiram
igualmente a uma redução considerável na afluência de navios, enquanto em Viana
do Castelo, a brusca quebra de importação do açúcar foi consentânea com o
enfraquecimento da sua frota comercial. Com efeito, o cenário de crise nos fluxos
do império e de reexportação foi sensível na atividade destes portos
secundários, tal como em Vila do Conde desde 1620. A quebra das importações de
açúcar e das receitas aduaneiras das principais alfândegas do reino trouxe a perda
significativa de encaixes. Só o Porto beneficiou temporariamente destes embargos,
mercê de uma reorganização dos circuitos de financiamento do tráfego, transferindo-
se capitais de Lisboa destinados a manter o negócio brasileiro. Não foi apenas
afetada a redistribuição dos produtos coloniais. Na exportação de bens nacionais,
a venda do sal, tradicionalmente escoado para as Províncias Unidas, sofreu os
embates desta situação, pelo que a navegação entre Amsterdão e os portos de Aveiro
e Setúbal entrou num período de recessão que se estendeu, embora com uma ligeira
recuperação na década de 1630, até à Restauração.
O estiolamento do movimento portuário repercutiu-se na contração das receitas
aduaneiras e coincidiu com o aumento das despesas extraordinárias, potenciadas
pelos mais elevados custos da manutenção do império sob diferentes ameaças. Desde
logo, a fundação da Companhia Holandesa das índias Ocidentais (West Indische
Compagnie - WIC), em 1618, e a sua estratégia de afirmação no Atlântico desafiaram
os interesses portugueses. Começou com o ataque holandês e conquista da sede do
governo do Brasil, Salvador da Bahia, em 1624, acontecimento sentido como uma
humilhação e que teve uma resposta vigorosa por parte da monarquia hispânica.
Uma armada luso-castelhana conseguiu a libertação da cidade no ano seguinte. Este
episódio bem sucedido da cooperação militar entre os dois reinos ibéricos não
A RESTAURAÇÃO, 1621-1703 - 3
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.
voltaria a repetir-se, mesmo quando um novo ataque holandês, desta feita a Olinda,
em Pernambuco, originou uma guerra local prolongada. Uma armada de socorro
luso-castelhana enviada em 1631 não desalojou os adversários, que entretanto
logravam alargar a sua posição territorial no Brasil. Em 1634, com a conquista da
Paraíba, a WIC conseguiu chamar a si o controlo total da principal região produtora
de açúcar do Brasil, privando o Estado das receitas fiscais decorrentes da baldeação
desta mercadoria nos portos nacionais, e os negociantes, de um sector fulcral dos
negócios.
O esforço de congregação de fundos para resgatar o Nordeste brasileiro não alcançou
resultados, já que as sucessivas armadas luso-espanholas de socorro, de 1635 e de
1639, se revelaram inconsequentes. Em 1637, os holandeses tomaram a fortaleza
de São Jorge da Mina que, todavia, já se encontrava em acelerada perda de
influência comercial, em virtude de o exclusivo português na região estar há muito
ameaçado pela concorrência europeia.
Entretanto, na Ásia, os custos de defesa atingiam um novo patamar, dando
mostras de exceder as receitas ordinárias do Estado da Índia e a sua capacidade de
autofinanciamento que caracterizara o sistema no século XVI. É certo que as
dificuldades vinham de trás, após o confronto com ingleses ao largo de Surrate em
1611 e 1614. Mas a situação agudizou-se posteriormente. A colisão com os ingleses e
as alterações do relacionamento português com a Pérsia safávida atingiram o auge
em 1622, com a queda de Ormuz às mãos de uma aliança anglo-persa, assinalando o
início de um período crítico que se estenderia até 1641. Donde, não sendo
completamente novas, as dificuldades financeiras do Estado da Índia exacerbaram-se
nas décadas de 1620 e 1630 devido ao crescimento das despesas extraordinárias e à
perda da alfândega do porto de Ormuz, responsável por cerca de um quinto dos
encaixes do Estado da Índia.
Para enfrentar a situação crítica no império asiático recorreu-se a financiamentos
extraordinários, por meio dos expedientes disponíveis no quadro das monarquias
europeias. Um deles teve intenção de captar recursos locais, com a criação de novos
tributos sobre as populações, lançados entre 1617 e 1623: o chamado consulado,
imposto aduaneiro, e a coleta, incidente sobre as transações de carne e vinho. Além
disso, recorreu-se a crédito junto de particulares ou das misericórdias. O governo
de Filipe IV de Espanha deitou mão a um terceiro expediente, desta feita bulindo com
a população do reino, não mais poupada a tributações extraordinárias destinadas ao
envio regular, a partir de Lisboa, de subsídios financeiros, designados socorros sob a
forma de ouro ou prata. Nas armadas de 1622 e 1623 foram enviados 200 milhões de
réis, que corresponderam a cerca de 62% do total de receitas do Estado da Índia em
cada um desses anos.
Assim, uma conjuntura gravosa estigmatizou, indiscutivelmente, os vinte anos
de governo de Filipe IV em Portugal. Porém convém frisar que os meios de
A RESTAURAÇÃO, 1621-1703 - 4
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.
efetiva de uma renda no montante de 200 milhões de réis. Entre as vias de obtenção
desse montante conta-se o aumento do cabeção das sisas em 25%, decretado em
1635, vivamente contestado por, mais uma vez, tal como sucedera com os outros
subsídios, não ter sido salvaguardado o consentimento expresso dos povos. E, no
mesmo ano, Filipe IV ordenou a extensão a todo o reino do real-d’água, um direito
municipal lançado sobre a carne e o vinho vendidos a retalho. Este novo tributo não
admitia qualquer tipo de isenção, estendendo-se, pois, aos privilegiados. Só em
Lisboa, o real-d’água rendia aproximadamente 35 milhões de réis na década de 1640,
sendo praticamente impossível estimar os encaixes deste tributo à escala nacional.
A manutenção do império envolveu o sacrifício de todo o corpo da república, já que
os seus custos repousavam, nesta conjuntura, quer sobre os vassalos estantes no
império, quer sobre os do reino. À luz da ordem constitucional portuguesa, qualquer
uma destas iniciativas exigia o expresso consentimento do reino, reunido em Cortes,
mas nunca convocadas para o efeito.
Se houve levantamentos populares anteriores à pressão fiscal de Olivares, a
tributação extraordinária potenciou uma agitação social sem precedentes na
última década do período filipino. Comoções mais ou menos espontâneas eclodiram
por todo o país, culminando nas manifestações de 1637-1638, que começaram por
deflagrar em Évora e se estenderam por contágio ao resto do Alentejo e ao Algarve.
De cunho marcadamente urbano, orquestrados na maior parte dos casos pelas
autoridades municipais, os levantamentos populares insurgiam-se contra a
cobrança de impostos. Tendo como pano de fundo crises de produção cerealífera
que, efetivamente, coincidiram com esta maior pressão tributária, os levantamentos
populares acusaram os limites políticos e económicos da fiscalidade dos Habsburgo
em Portugal.
Esta instabilidade social e política suportou, oportunamente, as intenções
separatistas de frações da nobreza e da Igreja portuguesa. A 1 de Dezembro de
1640, um golpe palaciano, organizado pela nobreza titular em torno do duque
de Bragança, devolveu a autonomia política a Portugal, entronizando-o como D.
João IV, em cerimónia de 15 de Dezembro.
A propaganda legitimadora do golpe de Dezembro precisou de acusar o domínio
castelhano de espoliação de recursos do reino e de usurpação de poder, fosse pelas
levas de soldados deslocados para as frentes de combate fora de fronteiras, fosse
pelas imposições extraordinárias para custear a máquina de guerra. A introdução de
novos tributos sem a convocação de Cortes ofereceu argumentos à autonomia, que
assim surgia como solução para a tirania castelhana. Mas a aclamação de um rei
«natural» não prometia menos motivos de tensão e agitação social, pois haveria que
esperar a reação dos exércitos de Filipe IV.
Perante um descontentamento popular por alegada punção fiscal injustificada, e dada
a inevitabilidade de uma guerra no território, a Restauração não foi uma simples
A RESTAURAÇÃO, 1621-1703 - 6
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.
1643 14 996 269 928 000 4044 291 168 000 561 096 000
1652 15 671 282 078 000 3099 223 128 000 505 206 000
1666 30 000 540 000 000 7800 561 600 000 1 101 600 000
Na verdade, os anos de 1650 foram de impasse, pois nenhum dos lados da contenda
optou por uma tática ofensiva. O estacionamento das tropas pôs os soldados
ocupados na reparação das fortificações, além de algumas movimentações
esporádicas de saque, as chamadas entradas, de pequeno alcance militar, prática, de
resto, seguida por qualquer dos lados. O desgaste lento de recursos locais foi um
dos aspetos desta guerra. Mas o tratado de paz entre a Espanha e a França (1659)
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.
soube, por consulta dos livros dos respetivos corretores, que nos anos de 1647 e
1648 a frota em trânsito no Atlântico brasileiro tocava as 259 embarcações, das quais
se haviam perdido 35 em 1647 e 73 em 1648, totalizando 108 baixas. Pelo número de
baixas depreende-se que o ano de 1647 comportou uma perda de 30% dos capitais
em circulação, e o ano seguinte, 51%.
Uma parte destes montantes estava coberta por créditos cujas regras obedeciam à
lógica de uma aposta, o que sancionava taxas de juro aparentemente exorbitantes
mas que escondiam, quer custos de oportunidade do credor, aferidos pelo prémio de
arbitragem das mercadorias em circulação, quer o prémio de um seguro. Trata-se do
que era conhecido por créditos a risco, ou empréstimos de grossa aventura, e que
pressupunham que o emprestador apenas receberia o capital e o juro se a aventura
marítima tivesse um desfecho feliz. Caso contrário, o devedor ficava ilibado de
o --------- ———.. .................... .......... .......... ............... ....................
A Rio de Janeiro
1648 1653 1658
A RESTAURAÇÃO, 1621-1703 - 13
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.
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QUADRO N.° 21
Repartição da décima por províncias (1668)
Décima 1668 Décima (réis)/km2 População 1527 População 1700
Alentejo 22% 1367,4 17,3% 18,7%
Beira 25,2% 2101,0 23,9% 21,6%
O cálculo dos valores da décima por área pretende associar a tributação fiscal a um
indicador grosseiro dos recursos disponíveis, como a área cultivada, por exemplo. A
Estremadura liderou a coleta, seguida da Beira, Alentejo, Entre-Douro-e-Minho e, por
fim, Trás-os-Montes e Algarve, sugerindo que entre as três regiões de maior
contribuição estavam as que mais sofreram a guerra no território (Beira e Alentejo).
Em termos de coleta por km2, as províncias mais agravadas foram a Estremadura,
novamente, mas agora seguida por Entre-Douro-e-Minho, enquanto o Alentejo, dada
a sua maior extensão, foi mais poupado. Finalmente, o Quadro n.° 22 compara a
estrutura do lançamento da coleta e a da distribuição da população, antes e depois da
guerra, datas extremas em que as fontes demográficas são as menos polémicas.
A RESTAURAÇÃO, 1621-1703 - 18
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.
QUADRO N.° 22
Repartição da décima de 1668 por população
Distribuição da décima Distribuição da décima
Distribuição da Distribuição da
população (1527) população (1700)
Alentejo 1,3 1,1
Beira (*) 1 1,2
Trás-os-Montes 0,4 0,5
Douro-e-Minho 0,7 0,6
Qualquer dos censos populacionais e dos indicadores até agora observados leva à
conclusão de que a Estremadura foi a mais agravada das regiões, quer em
termos de área, quer em termos de capitação, apontando os elevados níveis de
concentração de rendimento e de recursos nesta província, onde se inscreve Lisboa.
Por analogia, o Alentejo seria, ainda no final da guerra, a segunda região do país
com maior potencial fiscal per capita, pese embora o facto de mais de 70% dos
contingentes mobilizados terem estacionado nesta região e de as grandes batalhas
decisivas terem tido lugar aqui. Donde, o Alentejo foi uma região duplamente
castigada nesta conjuntura, tanto porque suportou os efeitos da instabilidade dos
exércitos, como ainda lhe foi exigida uma carga fiscal superior a outras províncias
comparativamente mais poupadas. De resto, esta província revelou ao longo da
segunda metade do século XVII outras particularidades dignas de nota pelo
crescimento urbano que registou, constatação que requer uma análise centrada na
demografia do reino e no modo como a guerra questionou a evolução desta variável.
2. A recomposição demográfica
A guerra, se não foi causa única de saldos populacionais negativos, desenhou uma
conjuntura pouco favorável ao comportamento desta variável. Com efeito, a época da
aclamação inseriu-se num período de estagnação demográfica, problema que
ultrapassava as fronteiras de Portugal, sendo comum a outras regiões da bacia
mediterrânica, como Espanha e Itália. Globalmente, entre 1600 e 1650, a
população europeia perdeu cerca de 9% dos seus efetivos, perda só compensada
na segunda metade do mesmo século. Assim, importa frisar que no século XVII a
população europeia cresceu cerca de 5%, longe, portanto, dos 30% registados no
século anterior.
Houve, seguramente, uma interrupção do crescimento também em Portugal e
até à fase final da guerra de aclamação não houve condições para alterar este
quadro sombrio, embora as estimativas das baixas em combate sejam
necessariamente muito aproximadas. Ainda assim, a leitura da crónica do conde da
Ericeira oferece pistas a não descartar, já que nos seus minuciosos relatos de
A RESTAURAÇÃO, 1621-1703 - 19
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.
batalhas e razias constam números sobre perdas humanas. Os vinte e oito anos de
conflito terão sacrificado um total de 19 217 vidas de soldados. Recorde-se que as
grandes batalhas concentraram-se na década de 1660, pelo que as baixas mais
significativas ocorreriam então. As informações respeitantes ao arcebispado de Évora
confirmam que os óbitos dispararam entre 1655 e 1665, acompanhando-se esta
elevada mortalidade de um número muito reduzido de batismos. A relação entre
estas duas variáveis define a crise mais profunda de todas as observadas entre
1590 e 1815.
Desconhece-se se o ponto mais baixo da série, atribuído ao tempo da Restauração,
representou um recuo para os níveis próximos dos de 1527-1532 (cerca de 1 200
000). Alguns autores admitem essa possibilidade. Testemunhos de depressões
cíclicas nos nascimentos em várias freguesias do Norte, Centro e Sul concorrem para
a verosimilhança dessa hipótese. Para o caso do Alentejo, contudo, projeções feitas
com base nas contagens de 1527 e de 1720 mostram ter sido pouco provável uma
quebra de longa duração dessa magnitude. Partindo de pressupostos semelhantes,
numa outra proposta de reconstrução de uma série não se colhe a ideia de uma
contração de efetivos, observados na longa duração, antes se aceita uma estagnação
nas décadas de 1620 a 1660. As dúvidas subsistem. Em todo o caso, as dificuldades
demográficas, apesar da guerra, não tiveram em Portugal a mesma amplitude
que se conhece para Castela, onde se verificou um fenómeno intenso de
despovoamento.
Em síntese, abrandamento até 1620 e estagnação de 1620 a 1660 encerram o
essencial do comportamento demográfico português durante o domínio
filipino e as guerras da Restauração. Todavia, entre 1660 e o fim do século, todas
as propostas admitem que a população voltou a crescer. Chega-se a avançar com a
estimativa de uma taxa de variação na ordem dos 0,43%. Assim sendo, o último
quartel de Seiscentos revela-se excecional no que toca à evolução da
demografia portuguesa (cf. Quadro n.° 23), já que as feições dessa recuperação são
apreciáveis no confronto com outros espaços europeus.
Entre 1650-1660 e 1700, a população portuguesa teve um crescimento só
comparável com o da Alemanha, região europeia que nesta segunda metade do
século XVII recuperava igualmente de um conflito. Esta evolução singular não se
compagina com o padrão mediterrânico, o qual, embora crescendo também, variou a
uma taxa inferior a Portugal.
As duas tendências demográficas que cindem o século XVII têm causalidades
múltiplas. Na estagnação ou recessão, os fatores não se restringiram aos efeitos da
guerra ou a crises agrárias, embora estas entrem na explicação dos picos de
sobremortalidade em economias de Antigo Regime, os quais, segundo Thomas
Malthus, correspondiam a choques negativos inevitáveis para a reposição do
equilíbrio entre recursos inelásticos e a população. Estudos regionais não descartam
A RESTAURAÇÃO, 1621-1703 - 20
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.
Alemanha 0,45%
França 0,14%
Inglaterra -0,11%
Espanha 0,11%
Itália 0,33%
Portugal (1) 0,43%
Norte e Oeste 0,12%
Mediterrâneo
0,30%
movimento de recuperação depois dessa data, não foram as cidades que mais
contribuíram para a variação positiva dos valores da região.
QUADRO N.° 24
Distribuição da população por províncias (1527-1700)
Percentagem do n.° de fogos
1527 1700
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.
para os pagadores isso pudesse significar uma maior ou menor carga tributária, em
função de uma variação negativa ou positiva do rendimento por hectare. Em segundo
lugar, na execução desses direitos assistiu-se à gradual intervenção de um segmento
social estranho à posse da terra, tendencialmente coincidente com a ocupação
mercantil. Uma formação social específica, que acompanhou a mercantilização do
produto agrícola, destacou uma «classe de rendeiros» intermediários na cobrança de
rendas senhoriais e eclesiásticas. Se a cobrança não era realizada de forma direta
pelos detentores dos direitos, os respetivos rendimentos seriam condicionados pela
margem de lucro destes intermediários. Duas variáveis relevantes, ambas
dependentes do mercado, intrometiam-se na evolução das rendas reais destes grupos
e instituições: os preços dos bens de que dependia a renda e a capacidade negocial
de qualquer das partes num contrato. Épocas de inflação dariam vantagem a quem
controlasse a informação do mercado, pelo que nessas circunstâncias os detentores
dos direitos poderiam perder mais do que os arrematantes da cobrança dos mesmos.
Por fim, há para apreciar as rendas derivadas da alocação do fator terra, as quais
tinham variações de curto prazo mas que, na longa duração, seguramente, servem
como indicador das expectativas dos rendeiros na obtenção de um rendimento com a
exploração do domínio útil da terra.
Além destas diferentes interpretações da evolução do rendimento da terra, não deve
ser descurada a interferência de uma outra variável, aleatória, decorrente da
abundância ou escassez de registos contabilísticos. A disponibilidade de registos
retrata a resistência da documentação às vicissitudes dos arquivos ou a deliberada
intenção de os preservar por parte de certas instituições, das quais, por sua vez,
pouco se sabe sobre a representatividade para a economia no seu conjunto. É difícil
sopesar a margem de erro de uma extrapolação de casos particulares para o geral.
Independentemente destes constrangimentos, o melhor indicador da evolução do
produto colhe-se nos registos das instituições que cuidaram de uma
organização documental das suas receitas e despesas. Entra nesse capítulo o caso
da Igreja e das misericórdias, o que à partida augura bons resultados para a análise
pretendida, pois o domínio sobre a terra repartia-se em Portugal pela Igreja, a
Coroa e a nobreza. Contudo, não era na proporcionalidade da repartição deste fator
produtivo crucial que residida o poder socioeconómico da Igreja, detentora de
apenas 15% do mesmo. Portanto, qualquer notícia respeitante às formas de
exploração e técnicas agrícolas reportadas em documentação eclesiástica reflete o
que sucedeu num microuniverso. Diferentemente, os direitos que assistiam à Igreja
na cobrança universal do dízimo consubstanciavam a sua importância no tecido
produtivo, concorrendo com o Estado numa forma de punção tributária que se
mostrou útil aos cálculos de um imposto público sobre o rendimento, como
aconteceu com a décima em 1641. Se no rendimento global do clero regular a parte
que coube ao dízimo teve expressão muito diversificada porque havia outras fontes
de receita controladas pelas instituições monásticas, em certas regiões do país o clero
secular dependeu em 100% desta imposição, a qual deu à Igreja um lugar superior ao
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.
GRÁFICO N.° 8
índice de preços no reino* (1621-1704)
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.
orientada para garantir a diferenciação estatutária, mas antes para dar sustentação
a uma política económica.
A promulgação de pragmáticas cuidava da satisfação de um consumo exigente numa
certa relação preço-qualidade, o que implicou algumas tergiversações na legislação,
com promulgações depois revogadas, em casos particulares, quando se verificava a
incapacidade da indústria nacional para satisfazer a procura, como aconteceu com os
chapéus de castor. Esta específica atenção às características dos produtos e
respetivos mercados socialmente diferenciados tem relevância para compreender a
intervenção do Estado no desenvolvimento de certas indústrias que obrigaram à
adoção de técnicas estrangeiras. No que se referia à disponibilidade de fatores
produtivos e à relativa simplicidade dos processos de fabrico, Ribeiro de Macedo
entendia que os panos finos de lã, ditas sarjas e baetas, entravam no ramo das «artes
fáceis», em contraste com os brocados de seda e papel, sectores muito mais rigorosos
em termos técnicos. Apontava a adequação das medidas preconizadas à realidade
portuguesa, desde que direcionadas a retirar às baetas e sarjas inglesas a sua
supremacia no mercado português: sendo uma das principais causas da drenagem de
moeda, reportavam-se a técnicas mais fáceis de utilizar.
Como aconteceu mais tarde, no período pombalino, também a promoção de
manufaturas no final do século XVII tocou em atividades bem enraizadas em
certas áreas do território. Essa ação política não teve, por isso, a intenção de
«criar» indústria, mas sim reorganizá-la, ao menos em parte, segundo modelos
que pediam maior concentração de fatores produtivos, em manufatura, ou
segundo iniciativas protegidas por regime de monopólio. Não surpreende que os
têxteis fossem dos subsectores mais recetivos a este programa político. Eram uma
indústria muito disseminada, com forte inserção nos meios rurais. Desde o século
XVI, em virtude da expansão dos mercados urbanos e suprarregionais, unidades
domésticas, essencialmente vocacionadas para produzir para autoconsumo, foram
chamadas a participar num mercado regionalmente mais alargado, em virtude
de o capital mercantil intervir na organização da produção, como se viu em capítulo
anterior. O negociante-empresário pagava à tarefa e não raro fornecia as matérias-
primas a unidades rurais. O papel deste novo intermediário traduziu-se na
coordenação de várias microunidades transformadoras, espacialmente dispersas e
integradas no ciclo de produção agrícola.
A «deslocação» do capital mercantil, urbano, para os meios rurais tem como
explicação necessária, ainda que não suficiente, a disponibilidade do fator
trabalho. Além disso, descobre estratégias para escapar aos constrangimentos das
corporações oficinais urbanas, que impunham técnicas de fabrico e interferiam no
tabelamento de preços. Por seu lado, a recetividade dos agregados domésticos rurais
ao acréscimo de horas de esforço, isto é, a emergência de uma nova perspetiva da
utilização do tempo com trabalho à tarefa, prender-se-ia com expectativas de
obtenção de um rendimento complementar do que era proveniente do domínio útil
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.
panos de lã. Este tipo de contratos passou também a ser aplicado no sector das sedas,
vidros e ferrarias.
Na guerra económica movida contra as manufaturas inglesas, tudo indicava que
a capacidade produtiva do reino responderia aos intentos do vedor da Fazenda, ainda
que a produção necessária para substituir integralmente as importações tivesse de
atingir as 6000 peças por ano, tal era o consumo de baetas e sarjas no reino. Cada
peça media 33 metros, pelo que o total do consumo ascendia a 198 000 metros,
muito inferior ao que se estima ser a produção dos linhos que, em números do século
XVIII, tocaria os 5,4 milhões de metros. No ano de 1680, os 17 teares da Covilhã
asseguravam uma produção à volta das 3000 peças. Bastaria duplicar o
investimento, o que já se adivinhava com os quatro teares instalados em Manteigas,
para que se concretizassem os intentos de satisfazer a procura interna com os
recursos do reino.
Pese embora a diferença da dimensão dos mercados do linho e lã, as inovações da
manufatura da Covilhã acusavam produtividades superiores nas baetas e sarjas. Cada
tear operado por 23 pessoas produzia quatro peças por semana (132 m), o que
coloca a produtividade do trabalho nos 5,7 m, enquanto nos linhos foi estimada em
4,2 m/tear/homem. Em Lisboa, os panos custavam de 21 000 a 22 000 réis, ao passo
que os ingleses se vendiam a 27 000 réis, incluídos os custos de transporte e tarifas
aduaneiras nos dois países. A margem seria apenas aumentada se fossem ignorados
os direitos preferenciais de 23% garantidos pelo artigo secreto do tratado de 1654, o
que terá acontecido, pelas tensões constantes entre a feitoria inglesa e os provedores
da alfândega de Lisboa. A interdição de uso, prescrita nas pragmáticas, não
significou, portanto, a interdição de importação. De resto, se a importação -
mesmo sem a cobertura de contrabando - tivesse estancado, não haveria como
explicar que nas vésperas da assinatura de novo tratado com a Inglaterra, em 1703,
11% das exportações inglesas de panos de lã fossem dirigidos a Portugal.
Por sua vez, a produção de cada peça na Covilhã orçava os 15 000 réis, não estando
incluídos os custos fixos da fábrica neste cômputo, porque neles entram apenas as
matérias-primas e o trabalho, e não as despesas com a administração. O diferencial
de 4500 réis por peça, entre produção e venda em Lisboa, sobrestima os lucros dos
empresários, os quais careceriam sempre de um regime de monopólio para assegurar
margens confortáveis. Por essa altura a iniciativa tinha uma sustentação frágil,
porque qualquer abertura à concorrência reduziria as margens de lucro e
obrigaria a ganhos de produtividade de difícil alcance, vistos os
constrangimentos técnicos requererem a importação de mão-de-obra especializada.
Assim, as margens com que operava a manufatura da Covilhã e de Manteigas
relativamente à concorrência inglesa nas cidades portuárias eram estreitas.
Num balanço dos resultados económicos desta política, ou da sua longevidade,
poder-se-iam adivinhar os efeitos de qualquer alteração nas tarifas aduaneiras
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de cereais face ao que se estimou para o século XVI, tempo de maior dinamismo
demográfico.
Mais significativo se revelou, então, o aumento das importações de pescado.
Testemunhos do ano de 1689 avançaram com somas tão elevadas quanto 280
milhões de réis em bacalhau, que desde os meados da centúria ocupava a marinha
inglesa nas relações com Portugal. A tomar como verídica esta avaliação, cerca de
13% das importações estavam confinadas a este bem que, recorde-se, tinha ampla
saída no mercado brasileiro, tendo sido concedido à Companhia Geral do Comércio
do Brasil o monopólio da sua reexportação.
QUADRO N.° 26
Importações em Lisboa em 1685
Valor
em milhares %
de réis
Quanto às exportações, não é possível estimar com exatidão qual a parte das
reexportações de bens coloniais (açúcar e tabaco) relativamente a azeite e vinho que
perfaziam, no conjunto, 914 milhões de réis de tráfico liderado por Lisboa. Ora, em
1690 escoaram-se pela cidade 10 mil pipas de azeite e outras 5 mil pelo Porto, em
direção ao Norte da Europa. Quanto ao vinho, na mesma altura, para Inglaterra, já o
mercado do vinho nacional mais significativo, embarcaram apenas 1115 tonéis de
vinho (um tonel = duas pipas). Mais uma vez, constata-se que, entre os bens agrícolas
nacionais, o azeite preenchia uma fatia das exportações subestimada pela
historiografia, que se tem mantido atenta ao vinho, de certo a cultura com
incrementada representatividade nas exportações após 1703. Mas quer no século
XVI, quer ao longo de Seiscentos, a expansão dos olivais merece uma
reapreciação no entendimento da evolução da agricultura portuguesa e a sua
articulação com a abertura da economia ao exterior.
Além do vinho e do azeite, ainda pela capital saíram 27,5 milhões de réis em sal no
ano de 1685. Mas era Setúbal, e não Lisboa, o grande porto desta mercadoria. Entre
1680 e 1703 exportaram-se daqui, em média anual, 95 270 moios, sendo a moda do
preço 1500 réis o moio. Cerca de 143 milhões de réis de exportações anuais em sal de
Setúbal remetem a posição da capital para uma escala insignificante num fluxo
decisivo das relações externas nacionais, mas dizem também que entre os 1310
milhões de réis de total de exportações, Lisboa e Setúbal, em sal, contribuíram com
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Polacos 2 0,2%
Portugueses 1 0,1%
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e cuja falência teve como reverso a emigração, penalizadora do sector primário por
privá-lo de um fator essencial - o trabalho130.
O último quartel do século XVII emerge, portanto, como uma conjuntura especial, na
qual os atores e decisores políticos visionaram vulnerabilidade de Portugal no
sistema internacional, quando entraram em cena outras potências europeias a
disputar a sua função de entreposto. A menor abertura dos mercados europeus às
reexportações portuguesas contou para a avaliação dos custos e benefícios da política
fomentista de Ericeira. Mas convém ter presente que com ele coexistiram outras
opções políticas na corte que acabaram por vingar igualmente, e que não pareciam
ser contraditórias com a política de substituição de importações, antes concorriam
para a prossecução do mesmo fim, o qual era a superação da escassez de metal
amoedável no reino.
Qualquer expansão dos mercados, nacional ou colonial, exigiria um volume de
produção industrial que as estruturas produtivas nacionais teriam de estar
preparadas para atingir. Esse incremento da procura ocorreu quando foi fundado um
enclave português, na boca do rio da Prata, com a colónia do Sacramento. Abriram-
se as portas a um amplo mercado no extremo sul da América Espanhola por onde se
abastecia uma vasta região do império espanhol de fazendas muito procuradas e que
providenciavam pagamentos em prata. O contrabando perfilou-se, portanto, como
uma via complementar da substituição de importações para obtenção de prata, mas
significou igualmente um acréscimo da procura de fazendas que, por sua vez,
revitalizava os circuitos de reexportação de sarjas e baetas.
O império, deste modo, entra na equação das condições, não de uma
desindustrialização das regiões protoindustriais, que não aconteceu, mas da menor
competitividade da produção de regiões do interior de Portugal em mercados
longínquos, apenas acessíveis por mar. A expansão da economia colonial
redescobria as vantagens comparativas das manufaturas reexportáveis, ou seja, das
que apenas transitavam pelos portos para fins tarifários. E se as tarifas que sobre elas
impendiam fossem desagravadas, ou melhor, colocadas na taxa que os tratados de
1654 e l661 estipulavam, mais evidentes seriam os fatores que confinariam a
produção nacional aos circuitos internos, regionais.
A discreta expansão portuguesa no último quartel do século XVII dirigiu-se, assim,
aos limites extremos da colónia brasileira, enquanto as ligações à Ásia eram
esforçadamente mantidas pelo Estado através do regular envio anual de dois a três
navios em cada armada. Diante da crise das reexportações das mercadorias
tradicionalmente oferecidas pelo Brasil, os resíduos do Estado da Índia, após
décadas de capitulações às forças militares das companhias europeias, tiveram
alguma utilidade na absorção de tabaco brasileiro, enquanto escalas na Bahia de
Todos-os-Santos, no retorno da Índia, valorizaram a baldeação de têxteis de algodão
A RESTAURAÇÃO, 1621-1703 - 41
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.
asiáticos, de investimento particular, que seguia a bordo destes navios armados pelo
rei.
Um lento caminho de integração dos espaços do império operou-se nesta
conjuntura, mas o que melhor caracteriza a dinâmica colonial esclarece-se na
agonia da cultura do açúcar. Em valor, as exportações das décadas de 1670 a 1690
ficaram abaixo dos níveis atingidos em 1610-1630. É verdade que houve
compensação com o tabaco, negócio sob administração do Estado e com condições
para chorudos contratos, que asseguraram uma renda pela concessão a sindicatos de
contratadores da sua transformação e distribuição. Negócio, ainda, central na
dinamização das relações entre a costa brasileira e a costa africana dos escravos. Mas
a economia colonial descreve-se nesta época pela descentragem dos seus polos
económicos, do nordeste para o sul, onde áreas de ganadaria deram aos couros uma
importância desconhecida décadas antes. Este impulso no sentido de uma
meridionalização da economia brasileira, quase da inteira responsabilidade dos
próprios colonos, foi encarada por Lisboa como prometedora de resultados havia
longa data perseguidos: prospeção de minas e definição dos limites meridionais da
colónia, o que esbarrava com a resistência das missões jesuíticas do Paraná e
Uruguai. Gradualmente, novos povoados foram fundados, desde Curitiba (1668) até à
ilha de Santa Catarina (1677), ao mesmo tempo que a atribuição pontifícia da diocese
do Rio de Janeiro em 1676 consagrava o rio da Prata como seus limites.
A fundação de um enclave na margem norte da boca do rio da Prata concretizava a
aspiração portuguesa de defini-lo como fronteira entre os dois impérios ibéricos,
antevendo o seu potencial para trocas clandestinas de mercadorias com retorno em
prata, como comprovadamente acontecera no período em que as duas Coroas
estiveram sob governo habsburgo. Uma expedição organizada pelo governo do Rio de
Janeiro em 1679 reuniu 300 a 400 pessoas, num ano em que já decorria o contrato
com os cristãos-novos da Covilhã. Com efeito, a expansão no rio da Prata traçava uma
ação complementar, e não alternativa, da substituição de importações. A justaposição
das duas linhas de intervenção favoreceria a reexportação de panos ingleses, mas tal
dinâmica contraditória não seria percetível pelo monarca, que deu o apoio pessoal a
qualquer das formas de intervenção. Por instruções régias, o governador preparou a
construção de uma fortificação na margem norte do rio, fronteira à cidade de Buenos
Aires, de imediato assediada pelas armas do respetivo governador.
O contencioso poderia ter consequências mais onerosas, mas foi congelado por um
tratado provisional em 1681 que autorizou a presença portuguesa até que uma
avaliação deslindasse os direitos de cada uma das partes. As alegações portuguesas
não tinham clara demonstração cartográfica, no entanto, a incerteza derivada da
indefinição da linha de Tordesilhas deu tempo para a praça militar se transformar
num povoado, com governador próprio, que cuidaria de promover a colonização da
região envolvente e de iludir a vigilância espanhola sobre o contrabando. Em 1692, a
colónia tinha 1000 habitantes e contava com a vitalidade da comunidade mercantil
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.
sedeada no Rio de Janeiro, enviando notícias para Lisboa sobre as margens de lucro
excecionais obtidas nas fazendas pagas em prata e em couros, matéria-prima fulcral
para muitos dos bens transformados de consumo corrente.
Quando deflagrou o conflito internacional da Guerra de Sucessão de Espanha, era
já sabido em Portugal que o enclave do Sacramento tinha virtudes na captação dos
circuitos de prata peruana. A indefinição dos limites dos dois impérios ibéricos,
questão por resolver, poderia pôr em causa este esforço colonizador, a menos que o
alinhamento pela Espanha pudesse ser moeda de troca para sanar o problema a favor
de Portugal.
A guerra, como muitos dos conflitos internacionais anteriores e posteriores,
teve um pretexto dinástico e definiu dois blocos em confronto. De um lado as
potências marítimas, Inglaterra e Províncias Unidas, coligadas com o Sacro Império
Romano-Germânico; do outro, Espanha e França. O motivo residiu na crise
sucessória de Carlos II, um Habsburgo. Em testamento datado de 1700, o rei
moribundo designou como seu sucessor, um neto de Luís XIV, o duque de Anjou, com
a condição de este renunciar ao direito ao trono francês. Como segundo na linha
sucessória, confirmou um descendente do ramo austríaco dos Habsburgo, o
arquiduque Carlos, filho segundo do imperador Leopoldo. Após a morte de Carlos II, o
duque de Anjou tomou posse do trono como Filipe V. O cumprimento daquela
cláusula específica do testamento de Carlos II desencadeou a desconfiança das outras
potências, que nela anteciparam o perigo de uma poderosa unidade francesa na
Europa, exercendo influência sobre vastos territórios habsburgos, na Itália e nas
Américas. No conflito entre aqueles dois blocos, o candidato austríaco foi a peça
utilizada para contrariar as pretensões de Filipe V, numa guerra que teve como
protagonistas os dois Estados que disputariam a geopolítica europeia no século XVIII:
a França e a Inglaterra.
A neutralidade portuguesa foi aconselhada pelos diferentes embaixadores em
Haia, Paris e Londres, mas houve fações na corte que ajuizaram o apoio ao primeiro
na linha sucessória como uma utilidade para o reino. Em 1701 Portugal aderiu
formalmente à causa do duque de Anjou, assinando dois tratados de aliança,
respetivamente, com a Espanha e com a França. Por sua vez, nesse mesmo ano, a
Inglaterra, Províncias Unidas e o imperador do Sacro Império, Leopoldo I, formaram
a Grande Aliança de apoio à causa do arquiduque Carlos.
O lado surpreendente da história diplomática portuguesa provém da mudança
extemporânea dos alinhamentos em 1703, pondo Portugal numa guerra com
palco na Península Ibérica, inserido no bloco da Grande Aliança e implicando a
assinatura de dois tratados: um militar, de aliança defensiva e ofensiva, com data
de 17 de maio de 1703, com a Inglaterra, as Províncias Unidas e o Sacro Império.
Outro tratado, assinado a 27 de dezembro de 1703, entre o marquês de Alegrete e
John Methuen, embaixador extraordinário, continha duas cláusulas de âmbito
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Uma desagregação dos valores incluídos nestes orçamentos descobre, por sua vez, o
lugar dos novos tributos introduzidos com a guerra (Gráfico n.° 10), atendendo
aos seus efeitos na alteração da estrutura do sistema fiscal, com base numa
classificação dos impostos em diretos, indiretos e patrimoniais. Nesta categoria
constam os confiscos de propriedades de particulares - que revelam o lado coercitivo
destas receitas -, as rendas das ilhas, que compreendem tributação direta sobre o
produto agrícola, e os monopólios dos sabões, cartas de jogar e solimão. Estas rendas,
não sendo verdadeiramente patrimoniais, resultavam da negociação de um
monopólio por determinação real, aproximando-se, por isso, de um direito de
propriedade régia.
GRÁFICO N.° 10
Efeitos da guerra nas receitas do Estado (1619-1680)
Fontes: Godinho 1978; Hespanha 1994; Dias 1985; Biblioteca da Ajuda, Miscelâneas 51-VI-19, fols
127 e 359-365.
Não surpreende que a estrutura das receitas durante os anos do conflito se alterasse,
participando um imposto direto com 42% e 41% no total dos orçamentos, em 1641 e
1660, respetivamente. O ímpeto da mudança, contudo, perdeu-se, pois em 1680
representava apenas 16% das receitas fiscais, voltando o Estado a depender
sobretudo de impostos indiretos.
A proporção da décima, pouco expressiva em 1680, não lhe retirou utilidade em
futuras situações de conflito. A Guerra de Sucessão de Espanha autorizou a reposição
conjuntural da taxa de 10%. A legitimidade desta cobrança ficou, assim, assegurada.
Por isso, no período pombalino, novamente a propósito de um conflito internacional,
inscreveu-se definitivamente no sistema fiscal português essa taxa. Os orçamentos
da década de 1760 certificam, então, que o esforço de autonomia política entre
1640 e 1668 abriu uma oportunidade duradoura à intrusão do Estado no
rendimento dos particulares. É esta longevidade da décima que permite atribuir à
Restauração, ou à conjuntura de 1640, uma inovação fiscal com semelhanças à que as
guerras fernandinas com Castela induziram por meio da sisa.
A RESTAURAÇÃO, 1621-1703 - 47
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.
Fontes: Godinho 1978; Hespanha 1994; Dias 1985; Biblioteca da Ajuda, Miscelâneas 51-VI-19, fols
127 e 359-365.
1619 271388,2
1641 403010
1660 388031,4
1680 291743,3
Fontes: Godinho 1978; Hespanha 1994: 114, 156 e 158; Dias 1985; Biblioteca da Ajuda 51-VI-19,
fls. 127 e 359-365
A RESTAURAÇÃO, 1621-1703 - 49
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.
A RESTAURAÇÃO, 1621-1703 - 50
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.
A CONSOLIDAÇÃO, 1703-1807 - 1
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.
mudança no padrão das epidemias no século XVIII (tifo, cólera e febre-amarela) com
efeitos nas crises de mortalidade: os seus picos de eclosão tendem a tornar-se menos
gravosos e a concentrar-se em áreas de maior densidade populacional.
Na viragem para o século XIX, com perto de 3 milhões de habitantes, Portugal
continuava a fazer parte dos países menos populosos, porém vários indicadores dão
conta de alguns ganhos paulatinamente conquistados ao longo do período moderno.
À escala da população europeia, a variação é pouco significativa, mantendo-se a
proporção dos 2% do peso relativo dos Portugueses, mas é no confronto com a
vizinha Espanha que se deteta um progresso, com os efetivos lusos a representarem
agora perto de 28% da população ibérica, valor mais próximo da relação
contemporânea.
O aumento populacional em Portugal não foi uniforme ao longo do século XVIII, como
se depreende da análise das fontes disponíveis. Assim, depois do crescimento
registado a partir de sensivelmente 1670, a população diminuiu ao longo das três
primeiras décadas do novo século, tendência que contrasta com os demais países
europeus, onde os efetivos cresciam, embora a um ritmo moderado. Em Portugal, o
número de fogos decresceu até 1732 a um ritmo anual de -0,2%, mercê da atuação
conjunta de fatores externos que afetaram o comportamento das variáveis
demográficas. A atração exercida pelo ouro brasileiro, geradora de um forte impulso
emigratório para a América Portuguesa, é certamente um deles, ainda que seja difícil
avaliar a dimensão do fenómeno. Para as primeiras décadas do século, quando a
atração das minas era mais intensa, as estimativas oscilam entre um mínimo de três
mil a quatro mil e um máximo de oito mil a dez mil saídas anuais. Além disso, a
participação de Portugal na Guerra de Sucessão de Espanha e a eclosão de crises de
mortalidade intensas e devastadoras justificam também a tendência recessiva dos
primeiros anos do século.
Depois de 1732, o crescimento foi retomado e permaneceu até ao final do
século, um pouco à semelhança da maior parte dos países europeus, palcos de um
crescimento mais rápido após 1740. Contudo, na segunda metade do século XVIII em
Portugal, os efetivos cresceram a um ritmo menos acelerado. Como se demonstrou
para algumas regiões do país, incluindo a Beira, o Alentejo e o Algarve, a evolução
populacional nas décadas de 1760 e 1770 reflete os efeitos conjugados de
movimentações militares, recrutamento de soldados, abastecimento dos exércitos,
maus anos agrícolas e epidemias. Graças à recuperação dos últimos anos da centúria,
a dinâmica de crescimento secular acabaria por não ser interrompida (Quadro n.°
31). Em todo o caso, mercê destas hesitações, a população portuguesa sofreu uma
variação menos espetacular do que a média europeia.
A CONSOLIDAÇÃO, 1703-1807 - 3
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.
QUADRO N.° 31
Evolução da população (1700-1801)/Crescimento anual médio (%)
c. 1700/1732
-0,20
1732/1758 0,64
1758/1798 0,32
1758/1801 0,31
A CONSOLIDAÇÃO, 1703-1807 - 4
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.
A CONSOLIDAÇÃO, 1703-1807 - 5
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.
Não obstante a cautela exigida por estes valores, condicionados por fontes cujos
critérios de recenseamento estão longe de ser uniformes, outras observações ainda
se impõem. A estabilização secular da taxa de urbanização ao longo do século XVIII é
uma delas: entre 1706 e 1801 o peso relativo da população urbana permaneceu
praticamente idêntico, realidade que contrasta com a forte aceleração urbana
registada em Portugal entre 1527 e 1700. Tomando novamente os valores relativos
às cidades com mais de 10 mil habitantes, a taxa de urbanização passou dos 6,7% no
início de Quinhentos para os 10,3% estimados em 1706 (Quadro n.° 33). Observado
na longa duração, o crescimento da urbanização em Portugal esteve, pois, longe de se
fazer a um ritmo contínuo, fenómeno comum, aliás, ao resto da Europa, onde ao
crescimento rápido dos séculos XVI e XVII se seguiu uma fase de estabilização que
coincide com a primeira metade de Setecentos. Contudo, uma aceleração da dinâmica
urbana na segunda metade da centúria permitiria que se registasse globalmente um
aumento da importância percentual da população das cidades, quer na Europa
Ocidental, quer no Mediterrâneo, fenómeno que não se encontra replicado no
Portugal de Setecentos. Se é certo que os núcleos urbanos revelam uma maior
rapidez de crescimento na segunda metade da centúria, fenómeno atestado para
Lisboa, Porto e para as cidades do litoral, a taxa de urbanização ficou aquém da média
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.
A CONSOLIDAÇÃO, 1703-1807 - 8
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A CONSOLIDAÇÃO, 1703-1807 - 9
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azeite) eram menos onerosos, aligeirando aquele balanço aos rendeiros que
explorassem simultaneamente courelas não reservadas aos cereais. Ainda que assim
seja, parece certo que a rentabilidade das pequenas unidades de exploração
familiares era insuficiente para sustentar elevados investimentos.
Nos seus traços gerais, este retrato não difere muito do que se conhece para outros
contextos europeus. E, no entanto, uma análise mais aprofundada permite identificar
algumas especificidades das estruturas agrárias do Portugal setecentista, que,
embora partilhando de um enquadramento comum com a Península Ibérica, se
afastam de tendências que na mesma altura se afirmavam noutros países da Europa.
Esta asserção é sobretudo verdadeira quando se observa as instituições que
condicionavam o mercado fundiário, respetivamente as formas de amortização da
terra, a prevalência de sistemas de direitos de propriedade atenuados, derivadas
sobretudo do regime enfitêutico por um lado, e os comunitarismos agrários por
outro.
A amortização dos bens que entravam nas instituições eclesiásticas (por doações
testamentárias ou dotes) e a prática de vinculação que instituía os chamados
morgadios e capelas, amplamente prosseguida por todos os grupos sociais, com
particular destaque para a nobreza, contribuíram para a rigidez do mercado
fundiário. Em zonas de maior densidade demográfica como Entre-Douro-e-Minho,
os efeitos dessa rigidez eram particularmente sentidos, sendo certo que o dinamismo
macroeconómico que caracteriza globalmente o século XVIII agravou o problema. É
neste contexto que se deve entender a intervenção legislativa do consulado
pombalino (1750-1777). Tanto mais que o aumento da disponibilidade de capitais
privados em virtude da mineração do ouro brasileiro e o crescimento demográfico
fazem pressupor uma maior pressão sobre as terras, em particular daquelas mais
produtivas, cuja aquisição era sinónimo de investimento seguro e símbolo de
distinção social. As restrições introduzidas à amortização eclesiástica, a supressão
dos vínculos de baixo rendimento e a definição de regras mais apertadas para a
constituição de novos vínculos fazem parte de um conjunto de disposições
legislativas destinadas a suavizar alguns dos aspetos mais rígidos do sistema
institucional vigente e a assegurar maior acessibilidade à posse da terra. No
entanto os seus efeitos práticos foram muito limitados, tanto mais que não estava em
causa uma completa desestruturação do sistema. Os 15 mil vínculos de baixo valor
extintos na década de 1770 estiveram longe de libertar para o mercado uma massa
fundiária significativa. Provavelmente porque envolveriam prédios de baixo
rendimento agrícola. Em todo o caso, o seu elevado número constitui uma prova mais
do que evidente da ampla receção que a prática de vinculação de bens teve na
sociedade portuguesa, ultrapassando largamente as fronteiras da nobreza.
A CONSOLIDAÇÃO, 1703-1807 - 10
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.
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a evolução ocorrida na região de Évora nos finais do Antigo Regime serve igualmente
de exemplo de uma dinâmica que associa a enfiteuse à grande propriedade.
Entre os dois polos extremos representados pelo Norte e pelo Sul, a configuração das
estruturas agrárias da Estremadura merece uma referência especial, pelo seu
panorama variado e complexo. As casas senhoriais tinham aqui uma forte
implantação patrimonial, mas a propriedade eclesiástica estava igualmente bem
representada, designadamente nas lezírias do Tejo. Enfiteuse e contratos de
arrendamento coexistiam nesta zona, onde pontuavam explorações de tipo muito
diverso, entre quintas vedadas, ocupadas com culturas variadas (pomares, vinhas,
pecuária), e casais mais votados à cerealicultura. Note-se, por exemplo, que a ordem
dominicana explorava o seu património nas lezírias do Tejo por meio de contratos
enfitêuticos, enquanto as casas senhoriais preferiam recorrer a contratos de
arrendamento para explorar o património mais produtivo e de maior dimensão,
como sucedia nos campos de Muge, Golegã e Valada.
Para já, este retrato fragmentário remete para um intrincado sistema fundiário
que limitava o exercício de direitos plenos de propriedade a vários níveis: por
um lado, pela existência de vários senhorios sobre um mesmo bem (senhorio direto e
senhorio útil), o que servia, aliás, de fundamento a uma ampla repartição do produto
agrícola; e por outro, pelas restrições impostas aos proprietários quanto à livre
disposição dos seus bens fundiários decorrentes da vinculação de bens. Panorama
diferente vive-se já nos finais do século XVIII na generalidade dos países europeus,
onde se assistia a uma tendência contrária de redução de formas imperfeitas de
propriedade.
Contudo, cabe frisar que a prevalência destas formas imperfeitas de propriedade
abriu caminho para múltiplas apropriações económicas e sociais por parte de
diversos agentes, demonstrando, afinal de contas, a flexibilidade do instituto
enfitêutico. Não raras vezes, a enfiteuse era utilizada como forma de investimento,
destinado a captar uma parte da renda fundiária: tomava-se uma terra no mercado
enfitêutico, para a arrendar ou subenfeuticar a um cultivador direto, prática que se
deteta em quase todos os estratos da sociedade portuguesa, incluindo elites locais,
urbanas e negociantes. Este tipo de prática, que visava atribuir ao foreiro um
rendimento estável, derivado da mais-valia entre o foro e o subforo ou renda, traduz
indiscutivelmente a contaminação de atitudes rentistas típicas dos grupos
privilegiados da sociedade. As próprias casas senhoriais mostravam-se permeáveis a
este tipo de utilizações da enfiteuse, atendendo a que os seus patrimónios tanto
comportavam a propriedade direta sobre bens cedidos em aforamento, como o
domínio útil de parcelas tomadas a outros proprietários. Vale ainda a pena sublinhar
que no século XVIII a abertura do mercado fundiário se operou menos por via da
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.
A CONSOLIDAÇÃO, 1703-1807 - 13
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.
comprovado para regiões tão diversas como o Minho, Coimbra, Alentejo e Algarve.
Para esta mutação na sociedade rural também contribuiu a legislação
pombalina de 1766 e bem assim o ambiente reformista de finais da centúria,
que via nas modalidades de propriedade coletiva um obstáculo ao progresso da
agricultura. Os efeitos práticos do lançamento destas massas fundiárias no mercado
de aforamento estão ainda por avaliar. Por um lado, nem sempre contribuíram para
desestruturar a sua apropriação coletiva e, por outro, não é certo que pudessem ser
utilizadas em proveito da produção cerealífera. Em todo o caso, o processo tornou-se
irreversível, contribuindo para o recuo da mancha florestal, percetível já no século
XIX.
Globalmente, são estas as características fundiárias de raiz medieval que ainda
persistiam no século XVIII, condicionando a atividade agrícola e limitando a livre
atuação das dinâmicas de mercado. A prevalência de formas de propriedade
imperfeitas, a desigual repartição social do produto agrário, as restrições à
mobilidade do mercado fundiário e a descapitalização da grande maioria dos
foreiros ou rendeiros contam-se entre os seus efeitos mais visíveis. Este cenário
ainda é agravado pelo desinteresse que as grandes instituições portuguesas do
Antigo Regime - mais a Coroa e casas senhoriais do que a Igreja - votavam à
atividade agrícola em si. No que diz respeito à nobreza, as suas estratégias
económicas estavam sobretudo voltadas para o serviço à monarquia e para a
reprodução social, assim explicando os baixíssimos níveis de investimento
alocados para o sector agrícola. Aliás, a mesma lógica de gestão patrimonial
preside também a outras nobrezas e aristocracias europeias, como as de França,
Itália e Espanha, pelo menos, durante a primeira metade do século XVIII.
No entanto, o sector haveria de responder aos desafios colocados pelo aumento
populacional e ao crescimento da procura final, com mercados externos recetivos a
bens agrícolas nacionais. Para começar, o aumento populacional, sustentado depois
de 1732, veio fornecer à agricultura um duplo mercado, o da oferta de trabalho e o da
procura de bens alimentares, potenciando a extensão dos cultivos. Também o
crescimento demográfico das duas principais cidades, Lisboa e Porto, mais intenso do
que a média do país, deve ser levado em conta neste cenário de expansão do mercado
interno. A capital teve neste domínio uma imensa capacidade polarizadora, não só
por albergar cerca de 6% da população do reino, mas sobretudo porque aí se
concentrava uma parte substantiva da riqueza do país enquanto sede da monarquia e
das unidades domésticas mais ricas do país (aristocracia e elite mercantil).
Os efeitos das remessas de ouro brasileiro também não podem ser esquecidos,
mormente pelas suas repercussões sobre a oferta monetária e no consumo. A nível
interno, nalguns sectores da população, a riqueza privada aumentou e com ela
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QUADRO N.o 35
Produção nacional de vinho, aguardente e vinagre
(em pipas, 1782-1783)
média %
aumento. Tanto mais que não é possível saber se houve ganhos de produtividade
conquistados ao longo do século. Pelo menos no que respeita ao trigo, os dados
disponíveis situam-se numa linha de continuidade relativamente a períodos
anteriores. Como já se viu, no Minho, nas terras do Mosteiro de Tibães a
produtividade do trigo e do centeio não ia além dos 1:4, enquanto nas do Mosteiro de
Ganfei, entre 1731 e 1748, a relação sementeira/colheita oscilou entre os 1:5 e os 1:6.
No Alentejo, as rentabilidades para o trigo eram mais elevadas: em Montemor-o-
Novo a variação foi de 1:6 e 1:7 entre 1721 e 1723, valores que ainda no início do
século XIX eram considerados bons, uma vez que a média se situava entre as quatro e
seis sementes. Se estes valores divergem significativamente dos rendimentos médios
de 1:10 e 1:11 que os agricultores ingleses e holandeses retiravam das suas terras
por volta de 1800, vale a pena notar que não andavam longe das médias registadas
para o contexto mediterrânico, na ordem de 1 para 6.
Numa tentativa de fazer um balanço sobre a atividade agrícola no século XVIII,
importa saber se as mudanças que estiveram em curso, designadamente a
recomposição do produto agrícola, implicaram um retrocesso da lavoura de cereais,
tal como insistiam os discursos de finais do século XVIII em torno da falta de pão. Na
ausência de dados quantitativos, esta é uma questão de difícil resposta. Dos estudos
regionais colhe-se bons exemplos de que a extensão de antigas e novas produções se
concretizou, quer fazendo uso das novas terras resgatadas para a agricultura, quer à
custa de processos de substituição de culturas. Não se pense, todavia, que a
intensificação de certas culturas de vocação comercial se fez necessariamente em
detrimento da cerealicultura, como os alvarás pombalinos que alvejaram a cultura da
vinha em certas regiões do país podem levar a crer. A expansão dos vinhedos fez-se
sobretudo à custa do aproveitamento de novas terras - dos baldios e das encostas
escarpadas do Douro transformadas em socalcos, isto é, de terrenos impróprios para
o cultivo de cereais -, mas também de uma exploração mais intensiva do espaço
agrário, de que a condução da vinha em enforcado constitui um exemplo.
Acresce ainda que, exceção feita ao Douro e a algumas zonas circunscritas da
Estremadura onde a viticultura foi explorada quase em monocultura, no resto do país
a multiplicação das vinhas fez-se sempre em harmonia com outras culturas, como a
oliveira, árvores de fruto e os cereais.
Já quanto à pecuária, pelo menos para o Alentejo há dados que comprovam a
existência de movimentos de regressão dos cereais tradicionais, em particular do
centeio, e da reconversão das terras que lhe estavam dedicadas, caracteristicamente
as mais pobres, em pastagens. Contudo, na vigência da conjuntura favorável da
primeira metade do século XVIII, esses movimentos ainda foram compensados por
dinâmicas de expansão dos cereais noutras terras, porventura de maior aptidão
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.
com o impulso expansionista demográfico. A partir daí e até 1780 são visíveis
flutuações de maior instabilidade, em que os sinais de ligeira progressão coexistem
com a tendência recessiva. Particularmente críticos foram os anos da década de
1760, em que fenómenos de escassez e de instabilidade de preços derivados de uma
sucessão de maus anos agrícolas ainda foram potenciados pelo envolvimento de
Portugal na Guerra dos Sete Anos (1756-1763).
A constatação destas flutuações, seja de crescimento, seja de recessão, que ocorreram
ao longo da centúria remete-nos para a evolução secular da produção cerealífera,
questão crucial que captou a atenção dos memorialistas da Academia Real das
Ciências. Observaram uma agricultura enferma, na senda de uma produção
discursiva em torno da imagem de decadência, vinda já do século XVII. As reflexões
do final de Setecentos, sobre a situação nacional afetada por uma agricultura
frumentária em crise, selecionaram o Alentejo para tecer um conjunto de
diagnósticos e propostas corretivas, enumerando quer o abandono de cultivos, quer
os usos alternativos da terra (cerealicultura versus criação de gado) como causas de
uma situação económica que punha o reino na dependência de «estrangeiros».
Ora, como os historiadores do pensamento económico bem sublinharam, os
discursos agraristas coevos são uma reconstrução, não constituindo necessariamente
uma fonte documental isenta da interferência de influências exógenas aos problemas
elencados. Por um lado, estavam abertos à importação de ideias de outros países e,
nesse quadro, é percetível o contágio do agrarismo espanhol nas críticas à pecuária.
Por outro, a Academia Real das Ciências significou a institucionalização da
sociabilidade de elites intelectuais em busca de um reconhecimento político através
de textos com conteúdos propedêuticos, segundo uma lógica em tudo idêntica à dos
arbítrios que proliferavam desde o século XVII.
Ao procurar definir os contornos da economia alentejana nas vésperas das
revoluções liberais, e auscultando os reparos dos memorialistas, a historiografia
produziu leituras contrastantes: por um lado, a crise das estruturas produtivas
alentejanas, evidente a partir de 1760, com os preços em alta, espelhava os limites da
produtividade face à pressão de uma população em crescimento; por outro, a
escassez cerealífera seria o reverso de formas de exploração vocacionadas para o
mercado, promovendo-se a substituição de culturas e a recomposição da paisagem
agrícola. Nesta última leitura, a obtenção de retornos compensadores por parte dos
detentores do domínio útil determinaria a afetação do fator terra a diferentes
culturas, em função de custos do trabalho e do rendimento marginal decrescente das
áreas menos adequadas a cereais. Observadores coevos viram nesta racionalidade
económica uma causa da insuficiência produtiva nacional e do recurso crónico às
importações cerealíferas.
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.
1776-1777 2 274 351 9 602 296 532 263 5,5 152 075
1788-1795 2 833 187 9 916 155 686 416 6,9 196 119
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Não considerando alguns dos ofícios mais comuns (sapateiros e alfaiates), esta
enumeração não deixa margem para dúvidas sobre a estreita articulação da
produção oficinal com a atividade agrária, expressa na profusão de ferreiros, nível
mais elementar da produção metalúrgica. Do quadro sobressai também o elevado
número de atividades ligadas à indústria da seda - fabricantes ou tecelões e
torcedores de seda no seguimento de uma tendência de especialização da região,
esboçada já desde tempos medievais, vocacionada para o abastecimento de um
mercado suprarregional e mesmo supranacional. Depois de ter atravessado uma
grave crise de produção a partir dos anos de 1760, mercê de uma alteração da
geografia produtiva, devido ao desenvolvimento da indústria das sedas de Lisboa, o
elevado número de fabricantes em 1796 releva uma parcial recuperação deste ramo.
Estas e outras contagens de ofícios falam de um trabalho artesanal que corporizava
as indústrias rurais ou protoindústrias, forma de organização industrial dominante,
bem representada em Portugal pelo menos desde o século XVI, como já se viu.
Baseadas também no trabalho realizado em unidades domésticas, a sua marca
distintiva radica no facto de a produção final se destinar não à vida local, mas a
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Açúcar 2 2 2
Cerâmica 1 2 11
Chapelaria 1 4 15
Curtumes 1 3 24
Destilação 3
Metalurgia 4 20
Quinquilharia 3 18
Madeira/pedra 1
Papel 2 2 2
Química, gesso, pólvora 4
Têxteis (total 4 26 84
Algodão 1 5 4
Estamparia 1 18
Lanifícios 1 4 6
Linho 5
Seda 6
Tinturaria 13
Meias de seda 16 28
Fio e tecidos de ouro e prata 1 4
Vidros 1 1
Bijutaria/pentes 1 4 41
Outros 2 5 9
Total 15 56 234
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Fontes: Fisher 1971: 206-208; Godinho 1955:230; Labourdette 1988. Para os anos
1776,1777,1783,1789,1796-1807. Balanças Gerais do Comércio, AHMOP, Fundo Superintendência
Geral dos Contrabandos.
havia sido caracterizada por estabilidade das exportações e diferentes tendências nas
importações, razão principal da flutuação do défice (cf. Gráfico n.° 13). A redução
dos défices encetada no consulado pombalino não se deveu a um incremento
das exportações, mas sim a uma retração das importações, pois só no último
quartel as exportações descolaram.
GRÁFICO N.° 13
Importações e exportações (1720-1807)
Não há que duvidar que o comércio externo no final do século comportou feições
novas. Não extrapoláveis, por isso, à primeira metade ou, até, a todo o reinado de D.
José. Contudo sendo assente que a França e a Inglaterra eram parceiros com peso
no comportamento da balança comercial, seguramente, entre 1703 e 1775, estes dois
casos nacionais descortinam algumas razões da mudança que o sector experimentou.
Na evolução das trocas com estas duas economias, entre 1703-1716 e 1775, as
exportações oscilaram numa banda limitada a 1000 e 2000 milhões de réis. Já as
importações descreveram várias tendências dentro de uma flutuação com uma
amplitude de 3000 milhões de réis. A primeira conjuntura, de aumento considerável,
estendeu-se até finais dos anos de 1730. Seguiu-se uma estabilização à volta dos
5000 milhões de réis, com um pico na sequência do terramoto e, por fim, uma
marcada redução (Gráfico n.° 14). No desenho destas tendências contaram de
sobremaneira as relações anglo-portuguesas.
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.
GRÁFICO N.° 14
Importações de Inglaterra no comércio externo português (1720-1775)
Na intensificação das relações com estes dois parceiros, o peso das exportações
sobre as reexportações era diferente. Enquanto para a França os bens coloniais
contavam em mais de 50%, nomeadamente couros brasileiros, para a Inglaterra à
volta de 80% dos valores reportavam-se a vinho. Deste modo, as relações com a
Inglaterra continham sinais de distinção, tanto pela maior proporção de comércio
direto, como pela sua incidência nos défices para Portugal. Esses traços são um
sintoma de que na aproximação das duas economias jogou a exploração do
potencial dos respetivos recursos internos e não tanto o papel que ambas
desempenhavam num sistema internacional de distribuição de produtos
coloniais.
Nas exportações das duas economias, a ponderação que coube a cada um dos
mercados revelou diferenças sugestivas de que a posição portuguesa não foi
reciprocada. As exportações britânicas para Portugal chegaram a perfazer 19,1% do
total do comércio externo britânico, no quinquénio de 1736-1740. Desagregando os
valores por mercadorias, reconhece-se que os têxteis expedidos para Portugal
chegaram a representar 50% das exportações inglesas deste sector. Em
contrapartida, entre 1711 e 1770, as exportações portuguesas eram
esmagadoramente reportadas a vinhos. E se não é possível medir a preponderância
da Inglaterra no total das exportações portuguesas na primeira metade do século
XVIII, suspeita-se que preenchia uma parcela bem superior à que esta potência
detinha no final do século XVIII, quando então orientava cerca de 40% das relações
externas portuguesas. Num apuramento destas hierarquias para os princípios do
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.
século, informações esparsas sobre tráfego marítimo trazem dados que vale a pena
espreitar. Considerando Lisboa um bom estudo de caso, as gazetas do ano de 1718,
por exemplo, noticiavam que entre janeiro e abril haviam passado pelo porto 125
embarcações, das quais 65% com bandeira britânica, contra apenas 23% francesas,
informação que corrobora a do embaixador, segundo os quais o comércio francês
seria aproximadamente 35% do inglês. As décadas seguintes confirmaram a
subida da importância da navegação britânica no comércio português. Em 1720,
os pavilhões ingleses moviam 40% do tráfego de Lisboa; em 1725, 54,5%; e em 1732
atingiram os 74,8%119.
Por se admitir que a complementaridade entre as duas economias teve
consequências distintas, obras marcantes da ciência económica debruçaram-se sobre
as virtudes ou pecados da ingerência de negócios diplomáticos nos mecanismos de
especialização produtiva. As críticas de Adam Smith ao Tratado de Methuen
radicavam no facto de que penalizara o consumidor inglês, ao privá-lo do vinho
francês, mais barato e de melhor qualidade. Por outro lado, não acreditava que as
relações preferenciais com Portugal contassem significativamente para a prestação
da economia inglesa, embora admitisse que haviam dado acesso a meios de
pagamento que sustentavam o comércio de entreposto britânico com benefícios na
ampliação do cabaz de consumo do inglês médio. Mesmo subestimando a
importância das relações bilaterais, Adam Smith viu no acordo condições para a
obtenção de metal amoedado, o que, por sua vez, colocava as consequências do
tratado no seu devido contexto, dependente, portanto, de um aumento da procura
portuguesa graças à maior abundância de meios de pagamento providenciados pela
colónia brasileira. Assim, destacava o papel do Tratado de Methuen na integração dos
fluxos coloniais nas trocas intraeuropeias, recordando a relevância que o comércio
transitário alcançou na economia internacional no século XVIII. Todavia, cerca de um
século mais tarde, Frederic List apontou a desindustrialização portuguesa como
reverso da hegemonia britânica. O mesmo tipo de suspeitas se fizera ouvir em
Portugal, em pleno período mercantilista, na voz de D. Luís da Cunha e de Alexandre
de Gusmão, que entenderam o esforço fomentista do conde da Ericeira como
condenado.
Os juízos sobre o tratado seriam retomados pela historiografia do século XX para
sublinhar as suas consequências negativas em virtude de vantagens desiguais obtidas
numa dada especialização produtiva. Outras apreciações, devolvendo-o à sua
temporalidade própria, minimizaram as suas consequências na possível interrupção
do programa industrial de Ericeira. De qualquer forma, o Tratado de Methuen foi
indissociável da viragem atlântica da política nacional, e com ela veio a
transferência da defesa para uma potência externa, condições de manutenção
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.
promoção industrial, numa cópia do que sucedera no último quartel do século XVII,
quando a escassez de meios de pagamento obrigou a encontrar solução na
substituição de importações.
Mesmo que a política económica pombalina de promoção manufatureira não tivesse
ainda tempo de maturação para dar resultados na balança comercial nos anos de
1760-1770, também a ideia de uma retração nas disponibilidades de liquidez sobre o
exterior, que contrairia a procura portuguesa, carece de prova e, mesmo a ter-se
verificado, não esgotaria o feixe explicativo das transformações operadas na
estrutura do comércio anglo-português. A cronologia não é anódina, pois evoca os
impactos da Guerra dos Sete Anos na ordem internacional, para a qual pouco
interferiu a participação portuguesa no conflito. Mais importante foi a repartição
de domínios coloniais americanos entre a França e a Inglaterra, com
consequências na geografia do comércio internacional, fenómeno só em parte
dependente do que ia ocorrendo em Portugal, uma vez que os lucros na exportação
de manufaturas inglesas para as respetivas colónias seriam superiores aos da
exportação para os mercados europeus, incluindo Portugal.
Com efeito, a Guerra dos Sete Anos constituiu um marco decisivo na inserção da Grã-
Bretanha nas trocas mundiais e nas estratégias de negócio dos agentes ingleses. A
maior parte do Canadá francês e as quatro ilhas francesas das Caraíbas entraram no
seu exclusivo colonial. As exportações inglesas a partir da década de 1770
descrevem-se pela sobreposição esmagadora dos fluxos dirigidos às Américas, Ásia e
África. As exportações de produções domésticas para o conjunto das colónias
inglesas e de outras potências aumentaram de 5461 milhões de libras para 19 787
milhões de libras entre 1772-1775 e 1797-1812. Quanto ao comércio europeu, o
aumento foi de 6068 milhões para 11 306 milhões de libras, no mesmo período. Nas
balanças de pagamentos com cada uma destas áreas, as vantagens do comércio
extraeuropeu reafirmaram-se, subindo de 2085 milhões para 7793 milhões de libras.
Já no comércio europeu as variações são negativas, descendo de 336 milhões para -
4157 milhões de libras. Este desvio do comércio inglês relativamente ao sistema
europeu, com uma amplitude sem par noutras potências coloniais, encetou-se
depois da Guerra dos Sete Anos.
Quanto ao que faziam os negociantes ingleses em Portugal, uma monografia, única
em exemplo, dos negócios de uma casa de comércio envolvendo figuras da sociedade
inglesa demonstra, por seu turno, a coincidência com a década de 1760, ou talvez
não, de novas opções de negócios desta casa, quando deixou de importar têxteis para
se especializar no desconto de letras em Portugal e exportação de ouro. Diferentes
indícios, portanto, de que a importação de manufaturas para Portugal foi
garantindo prémios menores relativamente a outros mercados alternativos. Tal
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.
importações inglesas, o que tem sido interpretado como o efeito de uma crise
financeira, mas que não se confirma com os valores recolhidos na mais fidedigna
fonte fiscal incidente nestes fluxos, um imposto de 1% sobre todas as cargas de ouro.
QUADRO N.° 39
Remessas de ouro do Brasil (1720-1807)
Privados Variação Estado Variação anual
Período
(contos) anual média (contos) média
1720-1724 13 290 2118
1725-1729 18 807 0,42 6403 2,02
1730-1734 14 257 -0,24 6764 0,06
1735-1739 15 948 0,12 3456 -0,49
Apesar das interdições legais à livre exportação de metal precioso desde tempos
medievais, as práticas de negócio tornaram essas disposições letra-morta, com a
inevitável condescendência das autoridades. Durante o século XVIII, aliás, as ligações
entre Portugal e Inglaterra justificaram a vinda dos paquetes de Plymouth que
oficialmente garantiam os fluxos de informação entre os dois Estados. A imunidade
diplomática fez destes navios o melhor meio de acomodar o ouro e a moeda
exportada, em grande parte para compensar os saldos negativos da balança de
pagamentos de Portugal. Assim, a ideia de ouro em trânsito pelos portos
nacionais consagrou-se na historiografia, ou pelo menos avançou-se com a
estimativa de que três quartos se drenaram para o exterior. E é verdade que
praticamente toda a amoedação de ouro em Inglaterra correspondeu ao valor dos
saldos negativos de Portugal, revelando a dependência da amoedação inglesa da
oferta portuguesa de metal precioso.
Apesar desta saída de liquidez, as quantidades descarregadas foram
suficientemente elevadas para permitir acumulação no reino. O confronto dos
fluxos das chegadas com os saldos das balanças comerciais e de capitais permite
reconsiderar o contributo do império na economia do século XVIII atendendo à
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.
Esse stock de ouro teve uma progressão notável. E mais de 80% tomou a forma de
moeda. É verosímil que o remanescente fosse utilizado em bens de «ostentação»,
que deverão ser equacionados como reservas de valor (em baixelas e joalharia) e na
decoração de interiores que deu o tom dourado ao barroco e rococó português. Esse
consumo alternativo do ouro não coibiu o aumento da oferta de moeda. Se os anos
1755-1765 se revelam de facto singulares, não o foram por qualquer contração, mas
pela estabilização conjuntural na tendência de acumulação. Por sua vez, nos tempos
em que as remessas tocaram níveis muito baixos, os saldos positivos da balança
comercial impediram a delapidação deste stock. Não terá sido, portanto, falta de
ouro no reino a razão da contração das importações de têxteis ingleses desde
1765. Assim a indústria portuguesa terá tido um papel importante na
substituição das manufaturas que a Inglaterra divertiu para os seus espaços
coloniais. De resto, este reforço dos sistemas coloniais foi fenómeno comum a
Portugal.
O Brasil afigurou-se como o principal mercado ultramarino no século XVIII,
durante e depois da prosperidade mineira. Absorveu 80% a 90% do comércio
português, cujo padrão na primeira metade do século assentava na reexpedição de
produtos europeus, fundamentalmente têxteis, chapéus, quinquilharia, vestuário,
metais, e na exportação de alguns dos linhos minhotos, bens alimentares (azeite,
vinho e farinhas), além do bacalhau, que corporizava outro dos circuitos de
reexportação, pois a frota pesqueira portuguesa havia muito que não dominava as
águas da Terra Nova. Das estimativas precárias sobre a participação de mercadorias
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.
estrangeiras, os números apontam para que 60% respeitavam aos têxteis ingleses.
No retorno, as frotas mercantes transportavam couros, em quantidades
crescentes, açúcar, tabaco, pau-brasil e ouro.
Em meados do século, as cargas brasileiras diversificaram-se, entrando o arroz
do Maranhão, o café e o algodão, para o que contribuíram as companhias coloniais do
Grão-Pará e Maranhão e a de Pernambuco e Paraíba, fundadas no consulado
pombalino, cabendo-lhes o fomento agrícola das regiões nordestinas e do Norte. A
história destes institutos preenche uma das fases de política económica do reinado
de D. José que adiante se detalham. Agora pretende-se relevar o seu enquadramento
no crescimento da economia brasileira, apesar do relativo desinvestimento na
atividade aurífera posterior a 1760. Além da recuperação da economia dos engenhos
que a companhia de Pernambuco e Paraíba favoreceu, com o açúcar a ter escoamento
preferencial em Hamburgo, a Companhia do Grão-Pará e Maranhão incentivou por
várias modalidades creditícias a agricultura do Norte, não apenas para o cultivo de
plantas nativas, como cacau e café, mas também para a introdução do arroz. Os
valores, todavia, apontam o cacau como mercadoria mais representativa,
entrando com 34% das importações da companhia, logo seguido do algodão (18%) e
dos couros atanados (15%) (cf. Gráfico n.° 16).
GRÁFICO N.° 16
Importações da Companhia do Grão Pará e Maranhão (1758-1778)
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.
apenas um dos mercados a que a indústria inglesa recorria, mas chegou a ter uma
ponderação razoável de 11% no conjunto dos mercados abastecedores137.
Concomitantemente à exportação de algodão, assistiu-se a uma alteração nas
características dos panos desta fibra entrados na metrópole, cuja procura foi
incrementada pelo desenvolvimento da indústria de estamparia do reino. Até
1796, passavam pelas alfândegas portuguesas panos de algodão de origem asiática,
embora a maior parte dos têxteis ainda fosse de lã, perfazendo 20,3% das
importações. Em 1812 os panos de algodão ingleses tinham já uma ponderação de
14%, enquanto os lanifícios se quedavam pelos 12,5%.
Se uma nova complementaridade entre a economia brasileira e os circuitos
intraeuropeus veio com o algodão, no final da centúria, as balanças comerciais davam
sinais de que a expansão colonial extravasara em muito a resposta a essa revolução
na tecnologia europeia. Inerente à mudança esteve o reforço de um sistema
colonial que interditou o Brasil de acrescentar valor aos produtos primários
mas que foi a par de uma imensa diversificação de culturas com mercado na Europa.
A economia política da época repensou o sistema colonial, tendo em D. Rodrigo de
Sousa Coutinho um dos seus paladinos. Transpondo para o sistema colonial
português os pressupostos das vantagens de uma especialização internacional,
entendia o Brasil como mais uma das regiões integradas no espaço económico
português e que se verificava ser das mais determinantes para a criação de riqueza,
por providenciar matérias-primas e consumir bens transformados na metrópole.
Face a esta valorização da dimensão colonial da economia, a decrescente
importância do ouro no valor das cargas acompanhou a diversificação dos
investimentos no Brasil e consequente expansão deste mercado (Gráfico n.° 17).
No que respeitou às cargas que não o ouro, a uma tendência, primeiro, estacionária,
no tempo em que a exploração mineira prosperou, seguiu-se outra claramente
positiva, a partir de 1770.
GRÁFICO N.° 17
Exportações brasileiras para Portugal (século xvm)
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produtivo do Brasil alargou o tipo de bens primários com que Portugal abastecia a
Europa. Entre a produção nacional, ainda o vinho, sal, lã, azeite e frutas marcavam o
lugar primacial da agricultura nas relações económicas com o exterior.
QUADRO N." 40
Comércio externo (milhares de réis)
% das
Anos Importações Exportações
Produções do reexportações
reino exportadas
17 76 6 666 598 4 921 208 1 718 819 65,1
5. Reformas institucionais
Entre o património histórico português pontuam dois factos indissociáveis, até pela
sua coincidência temporal: a ascensão política de um dos ministros de D. José,
Sebastião José de Carvalho e Melo, e uma das maiores catástrofes naturais que
alguma vez assolaram a Europa, o terramoto de 1 de novembro de 1755.
A amplitude do sismo julga-se ter rondado os 8,5 a 9 graus da atual escala de Richter.
Depois, um tsunami inundou a costa e vários incêndios acabariam por destruir o que
o abalo deixara de pé em muitas das freguesias. O trágico acontecimento que
impressionou a Europa sentiu-se em várias partes do país, em Espanha e Norte de
África, mas o seu impacto em Lisboa não teve paralelo em nenhum outro local.
O número de mortos que as fontes coevas oferecem soa impreciso, especulativo,
chegando a apontar-se um máximo de 80 000 baixas, talvez implausível. Todavia, foi
certamente elevado em Lisboa, onde 16 000 a 18 000 pessoas, aproximadamente
12% dos habitantes, sucumbiram. Uma baixa só recobrada 25 anos depois. Na
contabilização dos custos a médio prazo deste primeiro dia de novembro, a
danificação de edifícios e perda de stocks e equipamentos importaram mais do que as
baixas humanas. O grau de destruição imobiliária foi vastíssimo, atingindo edifícios
do governo central, as várias alfândegas de Lisboa (Terreiro do Trigo, Alfândega
Geral, Alfândega do Tabaco, Casa dos Cinco, Paço da Madeira), salvando-se, no
entanto, a Casa da Moeda, recinto que acondicionava as cargas de ouro do Brasil, do
rei e dos particulares, para aqui ser tributado o 1% sobre o seu transporte. Do
património eclesiástico, calcula-se que 70% ficou arrasado. O imponente edifício da
Sé Patriarcal, recentemente edificado ao pé do Paço da Ribeira na Lisboa Ocidental e
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.
que, a par da Casa da Ópera, absorvera parte dos gastos públicos extraordinários do
reinado de D. João V, não escapou à violência do sismo.
Além de dezenas de palácios particulares, as mais de 12 000 casas de habitação em
ruínas transformaram o cenário urbano num monturo. A perda de existências em
armazéns, de lagares, moinhos e oficinas, que configuravam o tecido industrial da
cidade, computa-se entre os danos infligidos em bens de capital. É possível que 20%
do stock de capital físico tenham sido destruídos, ou o equivalente a 75% do produto
interno bruto. Tal nível de devastação significou, portanto, que nos anos seguintes o
investimento na recomposição de capital não reprodutivo traria a evicção de fatores
produtivos, estes afetos prioritariamente a uma indústria de bens não
transacionáveis no exterior. Pelo menos, os salários da construção civil dispararam e
o equilíbrio só foi retomado após alguns anos em que Lisboa assistiu à entrada de
contingentes de mão-de-obra originários de outras partes do reino.
A catástrofe natural e os embates da Guerra dos Sete Anos no tráfico
internacional surgem como a causa mais plausível de problemas na economia
notados na correspondência de embaixadores estrangeiros em 1764. A relativa
rapidez da recomposição, consentânea com um conjunto de iniciativas do Estado a
requerer disponibilidade de capital financeiro na mão de particulares, suporta a
hipótese de que surgiram novas oportunidades de aplicação do capital financeiro
acumulado, cuja progressão foi documentada nas páginas anteriores. Nesse âmbito, é
possível reconhecer no terramoto de 1755, ou nas guerras, os efeitos específicos de
choques externos, i.e., impactos a que por vezes as economias são submetidas e que
suscitam respostas que alteram as estruturas produtivas. O marquês de Pombal
surge como o agente da execução dessas respostas. Nas páginas anteriores houve
ocasião de inscrever algumas das suas medidas na evolução dos diferentes sectores
da economia. Se todos mereceram intervenção do Estado, cabe agora sistematizar as
principais componentes da moldura institucional criada e averiguar o alcance desse
legado, em certos campos com maior longevidade que outros, mas que
incontornavelmente fraturou o século XVIII num ante et post a governação
pombalina.
Sebastião José de Carvalho e Melo iniciou a sua carreira como diplomata, primeiro
em Londres, depois em Viena de Áustria. Como muitos outros, observou e refletiu o
país a partir de um ângulo externo, produzindo então importantes escritos que
denunciam o pendor mercantilista da sua formação e que reverberaram na política
dirigida a contornar o ascendente inglês nas relações externas do reino. A sua
integração na galeria dos atores que marcaram a história portuguesa careceu da
direta interferência do monarca. Com efeito, as medidas tomadas para repor a ordem
nos dias imediatos ao terramoto do 1 de novembro de 1755 já desvelavam os
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.
os sectores económicos e a gestão das contas públicas. Estas podem ser congregadas
em quatro conceitos-chaves: a) privilégios concedidos a certos grupos de
interesse; b) defesa do regime de monopólio e, consequentemente, c)
nacionalização das trocas coloniais; d) racionalização dos circuitos de
informação como condição de equilíbrio orçamental das contas públicas.
No campo económico, as medidas pombalinas beliscaram o ascendente inglês no
comércio externo do país, pelo policiamento do contrabando, tema que inspirou
muita da legislação durante a primeira década do seu consulado. Entre essa
preocupação com os descaminhos de receitas públicas, a reposição do quinto sobre
a produção de ouro em substituição da capitação, logo em 1750, se não é imputável
diretamente à figura de Pombal, coincidiu com as mudanças de presidência das
secretarias no início do reinado de D. José, que afastaram do centro político
Alexandre de Gusmão, outra figura de relevo na política e pensamento económico
setecentistas.
A tensão com os grupos ingleses instalados em Portugal não se prendeu
exclusivamente com a obsessiva vigilância sobre o contrabando, de ouro em
particular, mas também de todo o tráfico nas alfândegas. Ela passou sobretudo
pela atenção do ministro às virtudes da capitalização do comércio português,
considerando que só desta forma haveria meios para enfrentar a concorrência dos
forasteiros, ainda que estes não tivessem sido poupados ao embate do terramoto.
Com efeito, houve a debandada de muitos dos estrangeiros residentes em Lisboa,
crédulos de que as perdas sofridas nos seus capitais em armazém e em dívidas ativas
insolventes não mais justificavam a sua presença, em Portugal ou, pelo menos, em
Lisboa. No caso do grupo inglês, o cônsul relatou para Londres que os danos eram
elevados mas julgava que a solidez financeira da comunidade não ficara questionada.
Contudo, o perfil social do grupo alterou-se, assim como a natureza dos seus
negócios, aspetos já referidos acima. A política pombalina, que afrontou algumas das
formas da intermediação desta comunidade em Portugal, nomeadamente nos
circuitos do vinho, terá contribuído para essa mudança do perfil dos membros da
feitoria de Lisboa e do Porto, sendo percetível a sua menor participação nas relações
diretas com a colónia brasileira, entre 1751 e 1761.
Um dos pontos nevrálgicos da intervenção do ministro residiu, precisamente, na
«nacionalização» das relações económicas de Portugal com o império. Os
fundamentos dessa ação, explicitara-os Sebastião José de Carvalho e Melo enquanto
diplomata em Inglaterra entre 1739 e 1742. Com efeito, defendeu que as vantagens
inglesas no comércio internacional se operavam na preferência pelos bens de
baixo valor por volume, que exigiam, portanto, numerosas frotas. Considerava,
ainda, uma peça-chave da prosperidade britânica a legislação que fora atualizando os
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certos comércios; e por isso não falta em Inglaterra e na Holanda quem as reprove.
Mas os príncipes e as repúblicas as permitem quando veem que se nesta parte
prejudicam os vassalos, mas em outras lhes procuram maior utilidade». A dita maior
utilidade ficaria clara nas regiões nordestinas do Brasil, onde a questão da
escravização dos índios à revelia dos poderes secular e religioso, como em outras
áreas de fronteira, causava tensões entre as forças locais, o governo da colónia e as
ordens religiosas missionárias.
Donde, não surpreende que o governador do Maranhão, Mendonça Furtado, irmão de
Pombal, fosse um dos apoiantes da iniciativa que se propunha abastecer de mão-de-
obra escrava africana uma agricultura a fomentar com o cultivo de algumas das
espécies nativas. No entanto, o apoio de Mendonça Furtado em pouco se deveu, neste
caso, ao respeito pelas utilidades públicas das missões jesuíticas, pois este
governador é o mesmo que informou o ministro do contrabando que supostamente a
ordem realizava em conluio com agentes ingleses. Assim, se a cultura política
favorecia a criação de monopólios privados por diferentes razões, sacrificando
a livre circulação aos interesses de grupos restritos, nem a simpatia pombalina
pelas companhias, nem a repressão que exerceu sobre os opositores constituem
novidade. Muito mais inovadora é a associação deste modelo organizacional à criação
de condições para a consolidação de um grupo altamente capitalizado, o qual não
soçobrou com a queda do ministro, pensando-se ser uma das suas obras mais
duradouras.
Esta elite mercantil e industrial agarrou negócios exigentes em capitais e
desempenhou funções essenciais num sistema financeiro que continuou a não
conhecer a constituição de bancos ou, sequer, especialistas de crédito. Não
obstante o crédito permanecer uma prática altamente disseminada em termos
sociais, os grandes capitalistas pombalinos e pós-pombalinos agarraram a
intermediação financeira, constando dos seus patrimónios dívidas ativas de vulto, em
muitos casos originárias na sua principal ocupação mercantil, mas assinalando a
diversificação de investimentos na concessão de créditos às grandes Casas
aristocráticas que se apresentaram como grandes devedoras de homens de negócio.
Na intermediação financeira, no entanto, eram as rendas do Estado o que mais
importava e, de entre estas, o arrendamento dos monopólios. O contrato do
tabaco, no qual participaram muitos dos maiores negociantes da praça de Lisboa do
último quartel do século, foi um dos campos de maior afirmação do poder económico
e administrativo destes novos negociantes pombalinos. Neste negócio e no
arrendamento da execução das receitas alfandegárias medrou um campo de
rendimentos elevados. Quanto a este aspeto a atuação pombalina em nada inovou,
uma vez que reforçou a dependência das maiores receitas do Estado da intervenção
de rendeiros. Embora os contratos fossem sujeitos a leilões, o fecho da elite dos
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Entre 1757 e 1797, os preços variaram a uma taxa média anual acumulada de 1,6%.
Entre 1797 e 1810, variaram a 3,7% (Gráfico n.° 18).
GRÁFICO N.° 18
Preço de um cabaz de consumo em Lisboa (1750-1808)
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dos grupos acima analisados. As taxas de lucro podem ter declinado. Os negócios
mais sensíveis à recessão do mercado interno por quebra de salários, como seriam as
manufaturas, terão sofrido. Mas por isso mesmo, nesta conjuntura, maior seria a
vantagem relativa da aplicação de capitais nos contratos de arrematação das rendas.
Ainda assim, o Estado protegeu-se melhor do que as outras instituições dos efeitos da
inflação na quebra das receitas reais.
A evolução das rendas do império e das obtidas no rendimento gerado no reino,
entre Pombal e o fim do Antigo Regime, desvela algumas constantes e alterações.
Verificou-se uma variação nominal da receita a uma taxa de 2,5%. O movimento
alfandegário foi ainda mais decisivo que no período pombalino, passou de 29% para
42% em 1804. De qualquer modo, o tabaco registou uma variação menos espetacular
do que as alfândegas e viu reduzida a sua participação percentual. A prosperidade
mercantil que o Estado conseguiu melhor tributar centrou-se nas alfândegas, com
taxas ad valorem (Quadro n.° 42).
QUADRO N.° 42
Receitas públicas (1760-1804)
1762-1777 Em 1804 Em
Algumas rubricas (média anual percentagem (em
contos) percentagem
em contos)
Décima 623 11% 1221 11%
Sisa 350 6% 381 3%
Alfândegas* 1611 29% 4631 42%
Tabaco 887 16% 1129 10%
Pau-brasil 122 2% 162 1%
Quintos do ouro 615 11% 29 0%
Diamantes 259 5%
Casa da Moeda 2% 50 | 0%
118
Total do orçamento 5598 100% 11 045 100%
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 3 – A Estrutura Económica.
A CONSOLIDAÇÃO, 1703-1807 - 63