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Editorial

Trabalho mediado por plataforma:


autonomia ou precariedade?
O Instituto Trabalho Digno tem a satisfação de lançar hoje a edição da Revista Laborare
que reúne artigos sobre trabalho para empresas que atuam utilizando plataformas digitais.
Um tema central. Afinal, como foi possível dimensionar durante a pandemia, é difícil
viver hoje sem recorrer a esses serviços.

As grandes empresas que os oferecem não os inventaram, por óbvio. Mas inauguraram,
de certa forma, um modo de exploração ainda mais radical da força de trabalho, a ponto
de legitimarem o uso do neologismo uberização do trabalho como sinônimo de
precarização. A exploração fora dos parâmetros constitucionais se dá sob o disfarce do
empreendedorismo, com um discurso a tal ponto sedutor que muitas trabalhadoras e
muitos trabalhadores nessas atividades acabam, sinceramente, aderindo à falsa ideia de
que seu trabalho é autônomo.

Os artigos aqui reunidos revelam a face nada oculta dessa exploração: jornadas extensas,
baixas remunerações, adoecimento, precariedade das condições de trabalho e, por
consequência, de vida. Convocam a pensar criticamente a necessidade de reconhecer direitos
trabalhistas. O mínimo de proteção social a essa parcela importante da classe trabalhadora.

Falar do trabalho uberizado é tratar da forma atual de exploração do trabalho pelo capital,
dessa quadra perversa da história. É simbólico que tal modo de exploração seja realizado
por grandes empresas e que tenha revolucionado a forma como tais serviços são oferecidos.
Mais simbólico, ainda, é o uso da tecnologia para acentuar a extração de mais-valia, em
lugar de tornar a vida melhor para quem depende do trabalho para sobreviver.

Laborare. Ano VI, Número 10, Jan-Jun/2023, pp. 3-6. ISSN 2595-847X. https://revistalaborare.org/
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Editorial: Trabalho mediado por plataforma: autonomia ou precariedade?

Que haja tanta discussão acerca de algo simples: a necessidade de reconhecer o vínculo
de emprego e, portanto, a integralidade dos direitos trabalhistas e previdenciários a
motoristas e entregadores, é sintoma de alienação. E, em certa medida, da insistência no
uso do direito para manter formas cada vez mais agudas de opressão. Mas o Direito é
também instrumento para tensionar e alterar condições de existência que promovem
sofrimento, como acontece com o trabalho uberizado. Os artigos aqui reunidos
demonstram essa potência.

Neste número da Laborare apresentamos o Dossiê “O trabalho em plataformas digitais no


Brasil”, sob a coordenação especial de Ricardo Festi, Bruna de Carvalho, Cícero Muniz e
Raphael Lapa, todos pesquisadores e pesquisadora vinculados à Universidade de Brasília.

Abrimos esta edição com dois artigos sobre segurança e saúde no trabalho. O primeiro,
assinado pelo trio de auditores-fiscais do trabalho Ana Luiza Horcades, Larissa Abreu e
Felipe Wittich, trata das questões formais e técnicas exigidas dos empregadores no
contexto da pandemia da Covid-19. Em análise técnica e legal, defendem a
obrigatoriedade da inclusão das medidas de prevenção relativas ao novo coronavírus nos
programas de saúde e segurança no trabalho desenvolvidos nas organizações, em especial
no Programa de Gerenciamento de Riscos (PGR) e no Programa de Controle Médico e
Saúde Ocupacional (PCMSO).

O segundo, que promove uma análise ergonômica da pintura de fachadas com o uso do
balancim individual elétrico, é de autoria de Matheus Caetano, Alessandra Tessaro,
Liliane Gomes, Flávia de Mattos, Jorge Nunes e Jorge Bandeira. A partir da
demonstração dos pontos que requerem atenção e medidas diferentes dos equipamentos
em termos de Ergonomia, listam propostas de melhorias e diminuição do risco ao
trabalhador da construção.

No texto que inaugura o dossiê, Ricardo Festi entrevista a liderança Abel Santos, que
discorre sobre a luta dos entregadores de aplicativos no Distrito Federal, em diferentes

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oportunidades e momentos, e a partir do discurso que defende a importância da


mobilização e atuação coletiva para a efetiva defesa de direitos e melhores condições de
trabalho para a categoria.

Em seguida, a pesquisa desenvolvida por Helena Martins, Jonas Valente, Marina Polo,
Mirele Rodrigues e Raissa Pacheco aponta que a mediação das plataformas viabiliza
aprofundamento da subsunção do trabalho intelectual e reduz a autonomia do trabalhador
mesmo que sob um discurso de independência destes na execução das tarefas.

Atentos à discussão entre a categorização dos trabalhadores como autônomos ou


empregados, Diogo Torres, João Magalhães, Silvia Gomes e Vanessa de Souza focam no
exame das condições de trabalho na plataforma digital Rappi. Analisam o perfil
majoritário dos entregadores quanto às horas semanais trabalhadas, remuneração
percebida, repasse dos riscos da atividade, aplicação de bloqueios ou punições e
percepção sobre o controle da plataforma e da caracterização como empregado.

Sob a perspectiva do salário por peça, Laura Gontijo estuda o trabalho em plataformas digitais.
A autora ressalta a importância da forma de remuneração para compreender a disposição dos
trabalhadores em perfazer longas jornadas e suportar precárias condições laborais.

A precarização do trabalho na era digital também é objeto de reflexão de Kethury dos


Santos, que denuncia as condições laborais dos entregadores por aplicativo no Distrito
Federal. A pesquisa destaca a predominância masculina, jovem e periférica em ocupações
precárias, e indica a persistência de desigualdades sociais e raciais.

Ao realizar uma “entrega destinada ao Poder Legislativo”, Aline Soares observa de que
modo o pleito da categoria dos entregadores por aplicativo e as respectivas condições de
trabalho foram tratadas durante a pandemia de Covid-19, em termos normativos. Entende
que a organização coletiva exerce importante papel de pressionar o poder público por
direitos e garantias básicas.

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A partir de uma abordagem relativa às debilidades da uberização do trabalho de a


subordinação do novo sujeito neoliberal, Thayuany Rodrigues apresenta resultados de
pesquisa empírica sobre a experiência dos entregadores por aplicativo, que revela um
quadro composto por discriminação, insegurança e riscos à saúde.

O estudo de Pedro Borges identifica a relevância dos espaços coletivos de descanso e


espera de entregadores por aplicativos (points) para a mobilização e construção de
consciência de classe.

Por último, com o intuito de afastar discursos infundados acerca do autogerenciamento


no trabalho em plataformas digitais, Sara de Araujo observa que a tecnologia pode ser
utilizada como ferramenta na manutenção do controle laboral, na medida em que
permitem o controle da produtividade, ocultam a imagem patronal, desvinculam o
indivíduo do processo de trabalho e investem na opacidade de dados relevantes sobre
atividades exercidas.

Mais do que saber, é preciso pensar criticamente o tema e enfrentá-lo na prática da atividade
social, acadêmica e jurídica, criando discursos que honrem toda a história de construção dos
direitos sociais. Esse é o convite que a mais nova edição da Laborare nos faz.

Boa leitura!

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Laborare. Ano VI, Número 10, Jan-Jun/2023, pp. 3-6. ISSN 2595-847X. https://revistalaborare.org/
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SEGURANÇA E SAÚDE NO TRABALHO

Questões formais e técnicas a serem observadas na


Nota Técnica SEI 14127/2021-ME no contexto da
pandemia da COVID-19
Formal and technical issues to be observed in technical note SEI
14127/2021-ME in the context of the COVID-19 pandemic

Ana Luiza Horcades


Auditora-Fiscal do Trabalho. Ministério do Trabalho e Emprego.
Graduada em Fisioterapia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Larissa Abreu
Auditora-Fiscal do Trabalho. Ministério do Trabalho e Emprego.
Graduada em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília
e Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Felipe Wittich
Auditor-Fiscal do Trabalho. Ministério do Trabalho e Emprego.
Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro (PUC-RJ).

RESUMO: Os desafios decorrentes da pandemia da COVID-19 exigiram diversas


adaptações em todas as esferas, na tentativa de reduzir os impactos da disseminação
do novo coronavírus. Grande número de normativos foram criados, com o intuito de
complementar os dispositivos vigentes e facilitar tanto a atuação da máquina pública,
quanto do administrado. A estrutura basilar da legislação de saúde e segurança no
trabalho encontra-se nas normas regulamentadoras, que já preveem metodologia de
análise de risco e a tomada de medidas com relação aos mais diversos riscos
decorrentes da atividade laboral. No entanto, entre os numerosos dispositivos
normativos editados visando o combate à pandemia, foi publicada a Nota Técnica
SEI 14.127/2021 em março de 2021, gerando grande conflito de entendimentos
acerca do risco de exposição ocupacional a este agente biológico, sob a alegação de
contrariar dispositivos presentes nas normas regulamentadoras. Tais conflitos foram
verificados tanto entre os administrados quanto entre os operadores do direito, em
especial com relação ao ponto de que não existiria obrigação legal que imponha a

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Questões formais e técnicas a serem observadas na Nota Técnica SEI 14127/2021-ME no contexto da
pandemia da COVID-19

inclusão das medidas para prevenção da COVID-19 no Programa de Controle Médico


de Saúde Ocupacional (PCMSO). Nesta seara foram publicadas numerosas
manifestações diametralmente distintas, por órgãos e veículos variados, motivo pelo
qual faz-se esta análise técnica e legal da obrigatoriedade da inclusão das medidas de
prevenção relativas ao novo coronavírus nos programas de saúde e segurança no
trabalho desenvolvidos nas organizações, em especial no que diz respeito ao
Programa de Gerenciamento de Riscos (PGR) e no Programa de Controle Médico e
Saúde Ocupacional (PCMSO).

Palavras-chave: COVID-19, Pandemia, Legislação Trabalhista, Programa de


Controle Médico e Saúde Ocupacional, Meio Ambiente de Trabalho.

ABSTRACT: The challenges arising from the COVID-19 pandemic required several
adaptations in all spheres, to reduce the impacts of the spread of the new coronavirus.
Many regulations were created, with the aim of complementing the current provisions
and facilitating the performance of both the public and the administrated machines. The
basic structure of health and safety at work legislation is found in the regulatory
standards, which already provide for risk analysis methodology and taking measures in
relation to the most diverse risks arising from work activity. However, among the
numerous normative provisions edited to combat the pandemic, the technical note SEI
14127/2021 was published in March 2021, generating a great conflict of
understandings about the risk of occupational exposure to this biological agent, under
the allegation of counteracting devices present in regulatory standards. Such conflicts
were verified both among the administrators and among the legal operators, especially
about the point that there would be no legal obligation that imposes the inclusion of
measures for the prevention of COVID-19 in the Occupational Health Medical Control
Program (PCMSO). In this field, numerous diametrically distinct manifestations were
published, by different organs and vehicles, which is why this technical and legal
analysis of the mandatory inclusion of prevention measures related to the new
coronavirus in the health and safety at work programs developed in organizations is
carried out, especially about the Risk Management Program (RMP) and the Medical
Control and Occupational Health Program (PCMSO).

Keywords: COVID-19, Pandemic, Labor Legislation, Medical Control and Occupational


Health Program, Work Environment.

Laborare. Ano VI, Número 10, Jan-Jun/2023, pp. 11-40. ISSN 2595-847X. https://revistalaborare.org/
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1. ANÁLISE DO CONTEXTO

A pandemia decorrente do novo coronavírus trouxe impactos significativos em todo o


mundo, das mais diversas ordens, especialmente na laboral. A nova realidade imposta pela
pandemia trouxe a exigência de processos adaptativos em todas as organizações, obrigando
que mesmo os procedimentos operacionais mais bem estabelecidos fossem revistos com o
objetivo de impedir a disseminação deste agente nos ambientes de trabalho, impondo
novas responsabilidades e obrigações para trabalhadores e empregadores.

Os coronavírus são uma família de vírus comuns em muitas espécies de animais,


incluindo o homem. Podem infectar pessoas e depois se espalhar entre seres
humanos, como já ocorreu com o MERS-CoV e o SARS-CoV-2. O SARS-CoV-2,
por sua vez, é um betacoronavírus descoberto em amostras de lavado broncoalveolar
obtidas de pacientes com pneumonia de causa desconhecida na cidade de Wuhan,
China, em dezembro de 2019, e pertence ao subgênero Sarbecovírus da família
Coronaviridae, sendo o sétimo coronavírus conhecido a infectar seres humanos.

Em março de 2020 a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou como


pandêmico o estado de contaminação pela Covid-19. Isto significa que tal vírus já
atingiu diversos países do mundo, incluindo o Brasil. Desde então, foi decretado
estado de calamidade pública1 no país, devido ao alto grau de contaminação da
doença, tendo sido declarado estado de transmissão comunitária em todo o território
nacional através da Portaria 454 de 20 de março de 2020, situação caracterizada pela
impossibilidade em rastrear o paciente originário das cadeias de infecção, ou quando
esta cadeia envolve mais de cinco gerações de pessoas. De fato, a gravidade da
situação se traduz em números quando, em fevereiro de 2022, registram-se quase 700
mil mortes ocasionadas pelo referido agente no Brasil.

O Sars-Cov-2 é um agente biológico que pode estar presente em qualquer ambiente,


cabendo às empresas a adoção de medidas preventivas à contaminação de seus
empregados no local de trabalho. Considerando que nem todos os portadores do vírus
apresentam sintomas e que mesmo os assintomáticos podem transmitir tal agente, é
imprescindível que medidas de prevenção rígidas sejam tomadas de forma e impedir
a ocorrência de surtos nos ambientes de trabalho.

Após mais de dois anos de circulação do vírus SARS CoV-2, a comunidade científica
já acumula evidências de que este agente pode se espalhar principalmente por meio
do contato direto ou por via aérea, através de gotículas respiratórias ou aerossóis que

1 Decreto Legislativo n. 6 de 20 de março de 2020.

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são expelidos quando uma pessoa contaminada espirra, fala ou respira


(REINHARDT, 2022). Desta forma, as principais medidas de prevenção não
farmacológicas são aquelas reconhecidamente indicadas à prevenção da
contaminação por via aérea, dentre estas o distanciamento social, renovação do ar
ambiente, as medidas de toalete respiratória e o uso de máscaras (cirúrgicas ou de
tecido), para que haja a redução da dispersão destas gotículas ou aerossóis
potencialmente contaminados nos ambientes de trabalho.

Nesse sentido, em resposta aos avanços científicos e visando imprimir efetivas


adequações nos locais de trabalho para evitar a disseminação da doença em território
nacional, em 18 junho de 2020 foram publicadas as Portarias Conjuntas n. 19 e 20 2
dos Ministérios da Economia e da Saúde, a primeira específica para atividades de
frigoríficos e, a segunda, para as demais atividades, à exceção de serviços de saúde.
Estes instrumentos normativos estabelecem diversas medidas a serem observadas na
prevenção, controle e mitigação dos riscos de transmissão da doença Covid-19, com
enfoque no distanciamento social, no uso de máscaras não profissionais, na
otimização da ventilação natural, dentre outros.

Estas portarias representam um marco no combate à disseminação do referido agente


nos ambientes de trabalho em território nacional, uma vez que balizaram a tomada de
medidas pelos gestores das organizações, positivando o conhecimento científico
acumulado até o momento. Trouxeram a previsão da aplicação de medidas já
previstas nas normas regulamentadoras e indicadas para o controle da exposição dos
trabalhadores aos riscos ocupacionais, direcionadas à mitigação da disseminação da
COVID-19 nos locais de trabalho em geral.

No entanto, não havia previsão de qualquer sanção específica em caso de


descumprimento. Tal inexistência de sanção faz total sentido quando entendemos que
as normas regulamentadoras já existentes, por si só, já forneciam todos os instrumentos
necessários para a gestão das questões de saúde e segurança no meio ambiente de
trabalho, e que o cumprimento atento das normas direciona exatamente para a tomada
das medidas previstas na portaria conjunta número vinte, como veremos a seguir,
tratando estas portarias tão somente de um detalhamento técnico do atendimento das
questões de saúde e segurança no trabalho aplicado ao cenário pandêmico, ou melhor,
um auxílio na implementação das normas no cenário peculiar apresentado.

De acordo com o sítio eletrônico do então Ministério da Economia, as portarias n. 19 e


20 tratavam-se de dispositivos normativos que buscavam trazer “orientações” para

2 Portaria Conjunta n. 20, de 18 de junho de 2020.

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ambientes de trabalho durante a pandemia. As referidas portarias traziam medidas


genéricas, que por si só não são auto implementáveis em qualquer ambiente de
trabalho, demandando que cada organização individualmente e de forma customizada
planeje a metodologia de implementação de acordo com as características da atividade
econômica desenvolvida, do porte da empresa, da presença ou não de público externo,
da região do Brasil, entre outros fatores. E tal observação vale tanto para a portaria 20,
que é voltada para atividades variadas, quanto para a 19, específica para a indústria de
abate e processamento de carnes e derivados destinados ao consumo humano e
laticínios, visto que a efetivação da implementação das referidas medidas será
absolutamente distinta a depender das características de cada organização.

A Auditoria Fiscal do Trabalho no Brasil, que é a instituição responsável pela


fiscalização do atendimento da legislação trabalhista, iniciou o combate à pandemia
tão logo o vírus adentrou o território nacional. As superintendências, nos Estados da
federação, foram desenvolvendo metodologias individualizadas de combate à
disseminação do novo coronavírus, de acordo com as características das atividades
econômicas mais atingidas, perfil demográfico, ocupação de leitos hospitalares, entre
outros, e capacitando o corpo de auditores fiscais de forma a promover a fiscalização
das empresas, sem deixar de resguardar a saúde e a segurança do próprio auditor
fiscal, que também é um trabalhador exposto ao referido agente.

Inicialmente foram priorizadas ações fiscais indiretas, de forma que o alcance da


fiscalização foi otimizado em todo o território nacional e diversas empresas em
atividade há longos períodos, que nunca haviam sido alvo de ação fiscal, puderam ser
alcançadas. E para aumentar a segurança do corpo de fiscalização que estava nas
ações dirigidas, ou seja, que impõem a presença do Auditor-Fiscal no local de
trabalho, foi desenvolvido um Procedimento Operacional Padrão na superintendência
do Rio de Janeiro, e posteriormente divulgado às demais unidades da federação,
visando dar agilidade à ação fiscal e trazendo mecanismos de redundância na
verificação da segurança do próprio Auditor, o que também possibilitou aumentar o
alcance das referidas ações, conforme demonstrado por HORCADES (2020).

Este cenário de novos desafios à fiscalização possibilitou um acúmulo de


conhecimento e tornou evidente a importância dos mecanismos de gestão em Saúde e
Segurança no Trabalho nas organizações, a começar pelos programas consagrados
pela legislação. A prioridade das ações fiscais passou então a ser a análise da resposta
das empresas à inserção do novo agente no ambiente de trabalho. Os documentos de
saúde e segurança no trabalho ganharam definitivo protagonismo, pois qualquer
gestão em Saúde e Segurança exige que métodos sejam implementados e registrados.

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Questões formais e técnicas a serem observadas na Nota Técnica SEI 14127/2021-ME no contexto da
pandemia da COVID-19

No entanto, em abril de 2021, após pouco mais de um ano de trabalho da fiscalização


no combate à pandemia, o então Ministério da Economia publicou a Nota Técnica
SEI n. 14.127/2021/ME3, cujo assunto trata de “Orientações sobre a elaboração de
documentos e adoção de medidas de segurança e saúde no trabalho, frente ao risco de
contaminação por coronavírus no ambiente laboral. Portaria Conjunta SEPRT/MS n.
20, de 18 de junho de 2020, Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional
(PCMSO), exames médicos ocupacionais, afastamento de trabalhadores,
Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT) e COVID-19”. A nota técnica em
análise trazia diversas orientações que não encontravam lastro na legislação vigente,
em especial o disposto no item 22, transcrito a seguir com grifo nosso:

22. Dessa maneira, as medidas de prevenção, controle e mitigação dos


riscos de transmissão da COVID-19 em ambientes de trabalho se
encontram determinadas na Portaria Conjunta SEPRT/MS n. 20/2020, não
havendo obrigação legal que imponha a inclusão das medidas para
prevenção da COVID-19 no Programa de Controle Médico de Saúde
Ocupacional (PCMSO). Essas medidas devem ser descritas em
orientações ou protocolos específicos nos termos da referida portaria.
(grifo nosso)

Pelos motivos expostos, realizaremos a análise objetiva da impertinência da matéria


tratada pelo documento em tela, assim como do equívoco do conteúdo técnico
abordado, de forma a justificar a impossibilidade de aplicação da nota técnica citada,
mesmo decorridos mais de dois anos de presença do SARS-Cov2 nos ambientes de
trabalho e da disponibilidade de vacinação específica.

2. EMBASAMENTO JURÍDICO

A Nota Técnica n. 14.127/2021/ME expede orientações que contrariam princípios e conceitos


basilares da melhor doutrina e da técnica administrativista, seja da vertente conservadora, da
legalidade como vinculação positiva à lei, seja da vertente moderna, oxigenada pela
constitucionalização do direito e adepta do princípio da juridicidade administrativa.

A presente avaliação da Nota Técnica parte dos ensinamentos do administrativista


José Cretella Júnior, que, em um artigo bastante didático, publicado na Revista de
Direito Administrativo, nos idos anos 70, discutia qual o valor jurídico de uma
portaria. Na realidade, discute-se também, indiretamente, o valor jurídico de outros

3 Nota Técnica SEI n. 14127/2021/ME, de 31 de março de 2021.

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atos administrativos – atos emanados do poder executivo, sejam eles gerais ou


especiais, voltados a funcionários ou administrados.

Explica-nos o administrativista que, “no mundo direito, cabe à lei o primeiro lugar
dentre as várias ordens emanadas do Estado. A lei é o rochedo de bronze contra o
qual se quebra qualquer outra disposição que lhe seja contrária” (CRETELLA
JUNIOR, 1974, p. 447). “Não existe um só ato administrativo que se sobreponha à
lei” (CRETELLA JUNIOR, 1974, p. 459). Quando o jurista fala em lei, ele está se
referindo aos atos emanados do poder legislativo e do poder constituinte. Inclusive,
esclarece que “entre os vários tipos de leis ocupa lugar de realce a lei das leis, a
Constituição, detentora do mais alto posto no escalonamento da pirâmide
mandamental” (CRETELLA JUNIOR, 1974, p. 447).

A lei e o regulamento são atos de caráter geral, sendo o primeiro do Legislativo e o


segundo do Executivo. Os regulamentos são atos administrativos. A Constituição está
acima da lei. E a lei está acima do regulamento. “Se a lei conflita com disposição
expressa do texto constitucional, é lei inválida; se o regulamento ofende o texto legal
regulamentado, o valor que deveria ter desaparece. A hierarquia descendente é clara:
dispositivo constitucional, dispositivo legal, dispositivo regulamentar” (CRETELLA
JUNIOR, 1974, p. 447-448).

E o que uma portaria pode fazer? “Em primeiro lugar, a portaria atua secundum
legem. Interpreta o texto legal com fins executivos. Desce a minúcias não explicitadas
em lei” (CRETELLA JUNIOR, 1974, p. 454). E o mais importante (grifos nossos):

Delineado o regime global de um instituto, o administrador faz uso da


portaria para dosar cada um dos pontos caracterizadores desse instituto, na
gradação plástica exigida pela imprevisibilidade da vida. Cabe à
portaria flexionar um ou alguns pontos de um instituto, desde que em
harmonia com a configuração global do delineamento, na letra e no
espírito. (CRETELLA JUNIOR, 1974, p. 454-455, grifos nossos)

E o que uma portaria não pode fazer (grifos nossos)?

A portaria não pode contrariar princípios gerais do direito, como o da


igualdade de todo perante a lei; não pode criar situações de privilégio entre
aqueles aos quais se dirige, funcionários ou administrados; não pode
encerrar qualquer dispositivo de caráter particular, conflitante com
dispositivo paralelo do diploma anterior ao qual se refere; não pode ab-
rogar ou modificar normas contidas no texto básico dinamizado; não

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Questões formais e técnicas a serem observadas na Nota Técnica SEI 14127/2021-ME no contexto da
pandemia da COVID-19

pode criar direitos novos ou obrigação novas, não estabelecidos no


texto básico; não pode ordenar ou proibir o que o texto fundamental
ordena, ou não proíbe; não pode facultar, ou proibir diversamente do
que que o texto básico estabelece. A portaria limita-se a desenvolver
os princípios e a completar a sua dedução, a fim de facilitar o
cumprimento dos dispositivos, muitas vezes genéricos, dos textos
básicos. (CRETELLA JUNIOR, 1974, p. 455, grifos nossos)

Em síntese, a portaria subordina-se à lei e à Constituição. As disposições nela


contidas não podem contrariar princípios gerais de direito, nem ab-rogar ou modificar
normas contidas no texto básico, ou criar direitos ou obrigações novas, ou facultar ou
proibir diversamente do que o texto básico estabelece.

De forma análoga4, a nota técnica não pode expedir orientações que contrariem
princípios gerais de direito, que conduzam à ab-rogação ou modificação de normas
contidas no texto básico, ou à criação de direitos ou obrigações novas, ou à facultação
ou proibição diversa do que o texto básico da portaria estabelece. No entanto, a Nota
Técnica n. 14.127/2021/ME apresenta dispositivos que vão de encontro a este
entendimento, o que compromete o próprio sistema normativo pelo desrespeito à
hierarquia das normas.

A Portaria Conjunta n. 20 estabelece medidas a serem observadas visando a prevenção,


controle e mitigação dos riscos de transmissão da COVID-19 nos ambientes de
trabalho. Ela, de fato, representa a dosagem do administrador na “gradação plástica
exigida pela imprevisibilidade da vida” – no caso, imprevisibilidade decorrente da
pandemia, que demandou a tomada de medidas mais céleres e em coordenação com
outros órgãos, no caso em apreço, o Ministério da Saúde.

A portaria preocupa-se em fixar em seu artigo 2º, inciso I, que não autoriza o
descumprimento das normas regulamentadoras de segurança e saúde no trabalho.
Como não poderia deixar de ser, a importância da Portaria Conjunta n. 20 é
observada pela Nota Técnica n. 14.127/2021/ME logo em sua introdução ao afirmar
que “No Brasil, a aplicação das medidas para prevenção e controle da transmissão da
COVID-19 nos ambientes laborais encontra-se estabelecida na Portaria Conjunta
SEPRT/MS n. 20, de 18 de junho de 2020”. E que:

4 O autor lança o questionamento: “Que vale mais? A portaria ou o aviso? A resolução ou a portaria? Decreto
ou portaria? Instrução ou circular? Poderá estabelecer-se uma graduação entre os vários atos administrativos?”
(p. 448). E deixa para a doutrina definir, mas, em síntese, valem as regras gerais de aplicação dos princípios da
especialidade, anterioridade, além da análise de forma e competência em função da matéria ( ratione
materiae) ou da pessoa, da “autoridade” que edita (ratione personae).

Laborare. Ano VI, Número 10, Jan-Jun/2023, pp. 11-40. ISSN 2595-847X. https://revistalaborare.org/
DOI: https://doi.org/10.33637/2595-847x.2023-150
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Ana Luiza Horcades / Larissa Abreu / Felipe Wittich

(...) a Portaria Conjunta SEPRT/MS n. 20/2020 é a norma que determina


as medidas necessárias a serem observadas pelas organizações visando
prevenção, controle e mitigação dos riscos de transmissão da COVID-19
nos ambientes de trabalho.

(…) não havendo obrigação legal que imponha a inclusão das medidas
para prevenção da COVID-19 no Programa de Controle Médico de Saúde
Ocupacional (PCMSO)

Muito embora a Nota Técnica n. 14.127/2021/ME destaque o respeito às disposições


da Portaria Conjunta n. 20 e, por conseguinte, às normas que a fundamentam, esta
mesma Nota Técnica chega a uma conclusão apressada – que já introduz em seu
primeiro parágrafo – diametralmente oposta ao comando do dispositivo introdutório
da própria portaria. E ela o faz a partir de uma leitura equivocada da legalidade que
desconsidera – e, portanto, contraria – princípios gerais do direito e princípios do
direito ambiental do trabalho.

Um exemplo é o trecho da Nota Técnica que trata da inclusão de medidas preventivas da


COVID-19 no PCMSO, explicitado em capítulo intitulado “1. PROGRAMA DE
CONTROLE MÉDICO DE SAÚDE OCUPACIONAL (PCMSO)”, no Parágrafo 22 do
texto: “(…) não havendo obrigação legal que imponha a inclusão das medidas para prevenção
da COVID-19 no Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional (PCMSO)”.

Neste capítulo, como se observa em sua conclusão, a Nota Técnica n.


14.127/2021/ME procura justificar a desnecessidade de inclusão das medidas para
prevenção da COVID-19 no PCMSO. Para tanto, a Nota Técnica utiliza dois
argumentos: inicialmente, destaca que as medidas definidas na Portaria
Complementar n. 20 seriam complementares ao PCMSO, a exemplo de outros
programas como o PCA e o PPR; posteriormente, aponta a harmonia entre a Portaria
Conjunta n. 20 e as orientações da OMS, da OIT. Na sequência, a Nota Técnica
conclui que a Portaria Conjunta n. 20 já determina as medidas de prevenção à
COVID-19 e que isso conduziria à ausência de obrigação legal para inclusão destas
medidas no PCMSO. Neste ponto, a Nota Técnica n. 14.127/2021/ME falha não só
no entendimento da definição normativa do PCMSO quanto no entendimento de sua
obrigatoriedade legal.

Com isso, a Nota Técnica pretende facultar o cumprimento de obrigações


estabelecidas no texto básico, no caso, os textos das normas regulamentadoras,
extrapolando seus limites normativos. E ela o faz a partir de uma leitura equivocada

Laborare. Ano VI, Número 10, Jan-Jun/2023, pp. 11-40. ISSN 2595-847X. https://revistalaborare.org/
DOI: https://doi.org/10.33637/2595-847x.2023-150
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Questões formais e técnicas a serem observadas na Nota Técnica SEI 14127/2021-ME no contexto da
pandemia da COVID-19

da legalidade, que desconsidera – e, portanto, contraria – princípios gerais do direito e


princípios do direito ambiental do trabalho.

Em seus itens 4 a 12, a Nota Técnica procura fixar a competência do órgão emissor
do ato administrativo de modo a comprovar sua autoridade na regulamentação das
matérias referentes à saúde e segurança ocupacional, o que, por si só, não é suficiente
para fundamentar as conclusões propostas ao longo do documento, visto que estas
conclusões confrontam o ordenamento jurídico vigente. Não atentaram os signatários
do referido documento para necessidade de “harmonia com a configuração global do
delineamento, na letra e no espírito”.

Devemos ainda destacar que a organização tem a responsabilidade sobre o meio


ambiente de trabalho e a responsabilidade sobre o desenvolvimento do PGR, que se
trata de um programa de melhoria contínua que precisa estar, a qualquer tempo,
atualizado, uma vez que avaliação de riscos deve constituir um processo contínuo
(conforme determinado no item 1.5.4.4.6).

A identificação do perigo no PGR será discutida adiante, e nos conduz à


obrigatoriedade da inclusão de medidas para prevenção à COVID-19 no Programa de
Controle Médico de Saúde Ocupacional (PCMSO), tendo em vista que este é parte
integrante do conjunto mais amplo de iniciativas da empresa no campo da saúde dos
trabalhadores, devendo estar articulado com o disposto nas demais NR (item 7.3.1),
identificando entre as diretrizes do PCMSO a de rastrear e detectar precocemente os
agravos à saúde relacionados ao trabalho, subsidiar a implantação e o monitoramento
da eficácia das medidas de prevenção adotadas na organização; subsidiar análises
epidemiológicas e estatísticas sobre os agravos à saúde e sua relação com os riscos
ocupacionais, e ainda acompanhar de forma diferenciada o empregado cujo estado de
saúde possa ser especialmente afetado pelos riscos ocupacionais, entre outras.

De acordo com o item 7.3.2.1, o PCMSO deve incluir ações de vigilância passiva da
saúde ocupacional, a partir de informações sobre a demanda espontânea de empregados
que procurem serviços médicos e também de vigilância ativa da saúde ocupacional, por
meio de exames médicos dirigidos que incluam, além dos exames previstos naquela
NR, a coleta de dados sobre sinais e sintomas de agravos à saúde relacionados aos
riscos ocupacionais, sendo esta fundamental para que se evite a entrada de pessoas
possivelmente contaminadas no ambiente de trabalho, por meio da identificação de
possíveis contactantes de pessoas doentes, de forma sistematizada pela organização.

Tal obrigação toma corpo no momento em que as obrigações legais de uso de


máscaras começam a cair, tal como no município do Rio de Janeiro, que desde 7 de
Laborare. Ano VI, Número 10, Jan-Jun/2023, pp. 11-40. ISSN 2595-847X. https://revistalaborare.org/
DOI: https://doi.org/10.33637/2595-847x.2023-150
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Ana Luiza Horcades / Larissa Abreu / Felipe Wittich

março de 2022, mediante Decreto Rio n. 50.308/2022 desobriga o uso de máscaras


faciais para o acesso e a permanência de indivíduos nas dependências nos
estabelecimentos industriais, comerciais e de prestação de serviços, bem como nos
órgãos públicos municipais e os demais locais, ambientes e veículos de uso público
restrito ou controlado, transferindo esta obrigação de vigilância exclusivamente para
as mãos do empregador.

Por fim, devemos destacar que o item 7.5.1 determina, com toda clareza, que o
PCMSO deve ser elaborado considerando os riscos ocupacionais identificados e
classificados pelo PGR, o que faz total sentido quando compreendemos que as ações
em saúde e segurança no trabalho devem ser coerentes e harmonizadas, objetivo do
disposto no item 1.5.3.1.3 da NR-01, que frisa que “O PGR deve contemplar ou estar
integrado com planos, programas e outros documentos previstos na legislação de
segurança e saúde no trabalho.”.

Além de contrariar a Portaria Conjunta n. 20 (artigo 2º, inciso I), as inúmeras


obrigações previstas nos textos das Normas Regulamentadoras, que também são
publicadas por intermédio de portarias, mas têm fundamento legal (artigos 155 e 200,
CLT), a Nota Técnica n. 14127/2021/ME também contraria dispositivos
constitucionais, dentre os quais, podemos citar, o caput do artigo 7º e o inciso XXII
do mesmo artigo.

Relembramos que o caput do artigo 7º da Constituição Federal estabelece que “são direitos
dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição
social”, os direitos listados nos incisos subsequentes. A melhor doutrina entende que o
dispositivo transcrito contém o princípio da norma mais favorável ao trabalhador5.

O inciso XXII do mesmo artigo, a seu turno, estabelece o direito à “redução dos
riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança” e
institui o princípio do risco mínimo regressivo, cunhado por Sebastião Geraldo de
Oliveira, que FELICIANO (2020, p. 199) denomina princípio jurídico-ambiental da
melhoria contínua.

Note-se o caráter mais que afirmativo do princípio, da diretriz constitucional: a


melhoria é contínua; o risco é mínimo e regressivo, ou seja, é mínimo – e cada vez
menor. Não basta manter as condições existentes: é necessário sempre buscar a
5 “Note-se que esse princípio, embora antigo no Direito do Trabalho, foi incorporado pelo art. 7º, caput, da
Constituição de 1988 (“Art. 7º. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à
melhoria de sua condição social: ....” — grifos acrescidos). Essa incorporação se deu em vista da harmonia do
antigo princípio justrabalhista com a dimensão humanística, social, democrática e inclusiva da Constituição da
República” (GODINHO, 2019, p. 213).

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Questões formais e técnicas a serem observadas na Nota Técnica SEI 14127/2021-ME no contexto da
pandemia da COVID-19

redução dos riscos, ou seja, mover-se sempre no sentido de aumentar a proteção –


obviamente, sem extrapolar os limites interpretativos e regulamentares de uma
portaria ou de uma nota técnica.

No entanto, a Nota Técnica n. 14127/2021/ME interpretou o campo de aplicação da


Portaria Conjunta n. 20 de modo a reduzir a proteção, na medida em que dispensou as
organizações do cumprimento de obrigações previstas em normas regulamentadoras por
entender que a portaria seria instrumento suficiente e bastante, no qual estariam previstas
todas as medidas necessárias à prevenção e ao controle da transmissão da COVID-19.

Em seu item 22, assevera que inexiste obrigação legal que imponha a inclusão das
medidas de prevenção da COVID-19 no PCMSO. Na realidade, inexiste disposição
legal que dispense a inclusão dessas medidas de prevenção no PCMSO. O raciocínio
deve ser justamente o inverso. A lógica que deve prevalecer quando o que está em
análise é a proteção do meio ambiente, no qual está incluído o do trabalho 6, é a lógica
da precaução-prevenção, ou prevenção-precaução.

Os princípios da prevenção e da precaução são basilares do Direito Ambiental do


Trabalho, disciplina relativamente nova e pouco conhecida dos operadores do Direito,
inobservada quando da elaboração da Nota Técnica sub examine, a julgar por seu teor.

A disciplina representa um “novo paradigma em matéria de proteção jurídica à saúde


do trabalhador” (ROCHA, 2002, p. 118), que privilegia a prevenção ao dano e a
precaução, em detrimento da “cultura do improviso” e da mera monetização dos riscos.

Essa inflexão, por sua vez, decorre da percepção de que, para que a dignidade da
pessoa humana e o valor social do trabalho (artigo 1º, III e IV, CF), fundamentos da
República, sejam preservados, “o trabalhador deve estar colocado em ordem de
prioridade, acima e antes, dos meios de produção” (PADILHA, 2011, p. 236).

O princípio da prevenção visa “inibir ou limitar a possibilidade de criação de danos


ambientais, implica em manter-se o risco residual para a população e para o ambiente
nos patamares mínimos” (PADILHA, 2011, p. 18). O princípio da precaução foi
definido na Declaração de Princípios da Conferência das Nações Unidas sobre meio
ambiente e desenvolvimento do Rio de Janeiro, realizada em 19 92 (ECO 92):

6 O Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento do Recurso Extraordinário nº 664.335/SC, em 12/02/2015,


de relatoria do Ministro Luiz Fux, reconheceu que “(...) a existência digna (...) perpassa necessariamente pela
defesa do meio ambiente (art. 170, VI, da CRFB/88), nele compreendido o meio ambiente de trabalho (art.
200, VIII, da CRFB/88” (FELICIANO, 2020, p. 199).

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Princípio 15: Com a finalidade de proteger o meio ambiente, os Estados


deverão aplicar amplamente o critério de precaução conforme suas
capacidades. Quando houver perigo de dano grave ou irreversível, a
falta de certeza científica absoluta não deverá ser utilizada como razão
para que seja adiada a adoção de medidas eficazes em função dos custos
para impedir a degradação ambiental. (grifos nossos)

O princípio da precaução estabelece, portanto, o dever de agir preventivamente, ou


seja, antecipando-se ao risco, ainda quando faltar certeza científica quanto à natureza
e à extensão do dano. Esse dever decorre de um exame de probabilidade que se
justifica pela irreversibilidade do dano.

Consectário do princípio da precaução, o in dubio pro ambiente-operario, estabelece


o dever de agir, mesmo diante de incerteza científica, para se proteger o meio
ambiente do trabalho. Assim, “indícios de poluição e contaminação em ambientes de
trabalho devem ensejar imediata reação da fiscalização do trabalho,
independentemente de certeza científica absoluta sobre o incidente” (ROCHA, 2002,
p. 131, grifo nosso).

Os princípios da prevenção e da precaução estão presentes em inúmeros dispositivos das


normas regulamentadoras de saúde e segurança do trabalho. O caráter prevencionista
dessas normas é de fácil visualização. Inclusive, a NR-1 se refere a medidas de
prevenção que devem ser adotadas pelo empregador (item 1.4.1, alínea “g”), cuja ordem
de prioridade segue a lógica ambiental da eliminação de riscos na fonte.

1.4.1 Cabe ao empregador:

g) implementar medidas de prevenção, ouvidos os trabalhadores, de


acordo com a seguinte ordem de prioridade:

I. eliminação dos fatores de risco;

II. minimização e controle dos fatores de risco, com a adoção de medidas


de proteção coletiva;

III. minimização e controle dos fatores de risco, com a adoção de medidas


administrativas ou de organização do trabalho; e

IV. adoção de medidas de proteção individual.

Laborare. Ano VI, Número 10, Jan-Jun/2023, pp. 11-40. ISSN 2595-847X. https://revistalaborare.org/
DOI: https://doi.org/10.33637/2595-847x.2023-150
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Questões formais e técnicas a serem observadas na Nota Técnica SEI 14127/2021-ME no contexto da
pandemia da COVID-19

A medida de maior prioridade é a que visa eliminar o risco. Não sendo possível eliminar,
deve-se minimizar e controlar o risco, prioritariamente com medidas de proteção coletiva
e subsidiariamente com a adoção de medidas administrativas e de organização do
trabalho. Em último lugar, é que se deve adotar medidas de proteção individual. Portanto,
a lógica subjacente ao texto normativo é a de não permitir que o risco alcance o
trabalhador. Idealmente, ele deve ser controlado na fonte. Apenas em último caso,
quando o risco alcançar o trabalhador é que este deverá receber proteção individual.

O atual “estado de degradação labor-ambiental” causado pelo novo coronavírus é de


base antrópica, ou seja, o vírus SARS-COV-2 é um agente biológico disseminado
pelo ser humano (FELICIANO, 2020, p. 197). E, declarada a transmissão
comunitária, todo ser humano, trabalhador ou não, empregado ou não, é uma possível
fonte de risco. Portanto, as organizações devem levar isso em consideração e avaliar
os riscos nos ambientes de trabalho de acordo com sua realidade: se há circulação de
pessoas, estudo de frequência e qualidade de contactantes, se existe contato com
clientes ou demais indivíduos externos à organização (e que, portanto, não possuem
subordinação e controle por parte da organização, o que se constitui em um aspecto
bastante peculiar e que demanda medidas de controle ainda mais rígidas), se há
aglomeração de pessoas em locais fechados ou com pouca circulação de ar ou
ventilação, qual o tipo e vazão da renovação de ar, quantas horas o trabalhador fica
exposto; quais as medidas de proteção existentes, se há sanitizantes disponíveis e se
estes são utilizados corretamente, se há máscaras adequadas, higienizadas e
adequadamente utilizadas, dentre muitas outras medidas de prevenção, além de
mecanismos e critérios de monitoramento da eficácia das medidas adotadas.

Cada ambiente de trabalho tem suas especificidades e, por isso, a exposição efetiva
laboral será distinta da exposição comunitária a que se submete o trabalhador e
dependerá das medidas de prevenção adotadas pela organização. Discutiremos essa
questão mais detalhadamente em tópico específico, mais adiante.

Introduzimos essas questões apenas superficialmente para sustentar nossa posição de


que a Nota Técnica n. 14127/2021/ME, ao afirmar que não há obrigação legal que
imponha a inclusão das medidas para a prevenção da COVID-19 no PCMSO, ela está:
(i) contrariando o artigo 2º, inciso I, da Portaria Conjunta n. 20; (ii) autorizando o
descumprimento de normas regulamentadoras de segurança de saúde e segurança no
trabalho, que têm fundamento legal, e, consequentemente; (iii) reduzindo a proteção
dos trabalhadores e aumentando os riscos inerentes ao trabalho; (iv) violando normas
constitucionais e princípios basilares do direito ambiental do trabalho.

Laborare. Ano VI, Número 10, Jan-Jun/2023, pp. 11-40. ISSN 2595-847X. https://revistalaborare.org/
DOI: https://doi.org/10.33637/2595-847x.2023-150
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Ana Luiza Horcades / Larissa Abreu / Felipe Wittich

Finalmente, é importante superar a noção de que a Administração Pública é mera


aplicadora de leis7, ou de que basta apontar os dispositivos legais que conferem a
competência da autoridade para expedir um ato e isso basta para sustentar o conteúdo
desse ato, ou de que, como ensinado tradicionais manuais de Direito Administrativo,
“na administração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, mas na
Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza” (BINENBOJM,
2014, p. 34)8. Essa noção “é tão anacrônica e ultrapassada quanto a de que o direito
seria apenas um limite para o administrador” (SILVA, 1990, p. 53).

Pelo princípio da juridicidade, não pode o agente público agir sob a tradicional estrita
legalidade, cumprindo ordens imediatas, notas técnicas, portarias, ofícios-circulares,
quaisquer atos administrativos ou legislativos, sem examinar a consonância destes ao
ordenamento jurídico, à Constituição Federal e aos direitos fundamentais. Esse
mesmo dever recai sobre chefes e gestores que emitem ordens e atos administrativos,
quando da elaboração desses atos. “Deve ser a Constituição, seus princípios e
especialmente seu sistema de direitos fundamentais, o elo de unidade a costurar todo
o arcabouço normativo que compõe o regime jurídico administrativo”
(BINENBOJM, 2014, p. 147).

A juridicidade administrativa abrange a legalidade, mas não se limita a ela. A


atividade secundum legem continua sendo a regra, desde que constitucional. Contudo,
a juridicidade admite ainda duas hipóteses de atividade administrativa: a atividade
praeter legem e a atividade contra legem. Naquela, a atividade administrativa
encontra fundamento direto na Constituição, independente ou para além da lei
(praeter legem); nesta, a atividade administrativa legitima-se perante o direito, ainda
que contra a lei (contra legem), com fulcro na ponderação da legalidade com outros
princípios constitucionais (BINENBOJM, 2014, p. 148).

Assim, a juridicidade é o princípio que visa mitigar os efeitos de uma recorrente e


inadequada realidade da Administração Pública: o cumprimento irrestrito de ordens e
de instrumentos normativos infralegais (elaborados a partir de uma leitura cartesiana e
limitada do ordenamento jurídico) em nome de uma estrita legalidade; ordens e

7 Neste sentido, também Medauar (2018, p. 118): “O terceiro significado – somente são permitidos atos cujo
conteúdo seja conforme a uma hipótese abstrata fixada explicitamente por norma legislativa – traduz uma
concepção rígida do princípio da legalidade e corresponde à ideia de Administração somente executora da lei.
Hoje não mais se pode conceber que a Administração tenha só esse encargo. Esse significado do princípio da
legalidade não predomina na maioria das atividades administrativas, embora no exercício do poder vinculado
possa haver decisões similares a atos concretizadores de hipóteses normativas abstratas”.
8 “O último significado – a Administração só pode realizar atos ou medidas que a lei ordena –, se
predominasse como significado geral do princípio da legalidade, paralisaria a Administração, porque seria
necessário um comando legal específico para cada ato ou medida editados pela Administração, o que é
inviável” (MEDAUAR, 2018, p. 118).

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Questões formais e técnicas a serem observadas na Nota Técnica SEI 14127/2021-ME no contexto da
pandemia da COVID-19

instrumentos que muito comumente violam normas constitucionais e convencionais –


ou mesmo violam leis ou outros instrumentos infralegais hierarquicamente superiores.

Na prática, em nome da legalidade, cumpre-se qualquer ordem que esteja escrita e


que seja emanada da autoridade competente. Nesta linha, a Nota Técnica n.
14127/2021/ME busca se preocupar apenas de fixar sua competência. Entretanto, isso
não é o bastante em um Estado Democrático de Direito.

Portanto, uma vez que a nota técnica em comento além de ter sido emanada com
propósito incompatível com tal dispositivo, apresenta evidentes elementos
antijurídicos, as orientações nela constantes, no que confrontarem o ordenamento
jurídico, em especial o sistema de direitos fundamentais, não devem ser observadas
pelos operadores de direito. Outrossim, pelo princípio da autotutela, a Secretaria de
Inspeção do Trabalho tem o dever de rever de ofício qualquer ato ilegal (artigo 63, §
2º, Lei n. 9.784/1999).

3. GESTÃO DE SAÚDE E SEGURANÇA OCUPACIONAL NA PANDEMIA E


O PAPEL DOS PROGRAMAS DE SAÚDE E SEGURANÇA NO TRABALHO

3.1. A SEGURANÇA DO TRABALHO E O NOVO CORONAVÍRUS

A Segurança do Trabalho abrange o conjunto de medidas adotadas visando minimizar


a ocorrência de acidentes de trabalho, doenças ocupacionais, bem como proteger a
integridade física, a vida e garantir a capacidade laboral do trabalhador.

Seu delineamento se revela por meio de um extenso conjunto normativo que se


origina/fundamenta desde a Constituição Federal e Tratados e Convenções
Internacionais, mas que encontra a maior parte de seu detalhamento nas Normas
Regulamentadoras de Saúde e Segurança no Trabalho. A Segurança no Trabalho é
um direito fundamental, resguardado constitucionalmente a todos os que trabalham,
independente de adjetivos caracterizadores da natureza jurídica do vínculo 9. Logo, as
normas de saúde e segurança no trabalho são de cumprimento obrigatório por
empregadores e empregados, urbanos e rurais e, nos termos previstos em lei, aplicam-
se a outras relações jurídicas.

Mesmo em organizações com sistemas de gestão em saúde e segurança do trabalho


bem definidos, precisamos compreender que com a transmissão comunitária do vírus

9 Segurança do trabalho e gestão ambiental / Safety and environmental management. Barbosa Filho, Antonio
Nunes. São Paulo; Atlas; 2001. 158 p. ilus, tab, graf.

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Ana Luiza Horcades / Larissa Abreu / Felipe Wittich

SARS CoV-2 em todo o território nacional houve a modificação do perfil de


exposição microbiológico nos ambientes de trabalho, o que demanda seu
conhecimento particular e estudo para que as medidas de controle adequadas sejam
tomadas pelo responsável pelo meio ambiente de trabalho com a finalidade de se
mitigar o risco de contaminação ocupacional pelo agente.

Impende destacar que a exposição ocupacional é absolutamente distinta da exposição


comunitária por fatores diversos10, 11, 12, dentre eles: a) O trabalhador expõe-se ao risco
em função da necessidade de prover a subsistência familiar, visto que depende da
contraprestação salarial para garantir moradia, alimentos e os demais itens básicos de
sobrevivência; b) O trabalhador não possui gestão sobre o meio ambiente de trabalho,
não pode definir as medidas de distanciamento, higienização ou de ventilação do
ambiente, assim como não pode ditar as medidas preventivas a serem adotadas pelos
demais ocupantes dos recintos, tais como o uso de máscaras, que depende de diversos
detalhes para que atinjam a plenitude de seu objetivo, como serem confeccionadas em
tripla camada, com tecido que possua trama adequada e uso por no máximo três
horas; e c) A exposição do trabalhador se dá por período prolongado em decorrência
da jornada de trabalho, favorecendo o acúmulo de carga viral.

Assim, a exposição ocupacional favorece a transmissão do novo coronavírus nos


ambientes de trabalho, e as medidas a serem tomadas na prevenção do contágio
ocupacional são absolutamente distintas daquelas a serem tomadas em caso de
exposição comunitária, dadas as diferenças entre a exposição comunitária e a
exposição ocupacional, sendo imprescindível que sejam adotados mecanismos
efetivos de gestão do risco ambiental.

3.2. IDENTIFICAÇÃO DO AGENTE SARS CoV-2 COMO UM PERIGO NO


MEIO AMBIENTE DE TRABALHO

O Gerenciamento de Riscos Ocupacionais diz respeito a todos os macroprocessos


relativos à prevenção de acidentes e doenças decorrentes da prestação laboral. Estes
macroprocessos dividem-se em três etapas, sendo a primeira a identificação dos
perigos ou fontes de risco que podem acometer o trabalhador, seguida pela avaliação
do risco decorrente da exposição do trabalhador ao perigo, com o objetivo de que

10 Covid-19: Por que a proteção de trabalhadores e trabalhadoras da saúde é prioritária no combate à


pandemia? Helioterio, MC; et al. Trab. educ. saúde vol.18 no.3 Rio de Janeiro 2020 Epub July 31, 2020.
11 A saúde do trabalhador em tempos de COVID-19: reflexões sobre saúde, segurança e terapia ocupacional.
Barroso, BIL, et al. Cad. Bras. Ter. Ocup. vol.28 no.3 São Carlos July/Sept. 2020 Epub Sep 21, 2020.
12 Prevention related to the occupational exposure of health professionals workers in the COVID-19 scenario.
Gallasch CH, Cunha ML, Pereira LAS, Silva-Junior JS. Rev enferm UERJ, Rio de Janeiro, 2020; 28:e49596.

Laborare. Ano VI, Número 10, Jan-Jun/2023, pp. 11-40. ISSN 2595-847X. https://revistalaborare.org/
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Questões formais e técnicas a serem observadas na Nota Técnica SEI 14127/2021-ME no contexto da
pandemia da COVID-19

sejam implementadas medidas de controle precisamente indicadas à mitigação do


risco em análise.

Estes processos estão determinados na Norma Regulamentadora 01 - Disposições


Gerais e Gerenciamento de Riscos Ocupacionais, publicada em 12 de março de 2020,
tendo entrado em vigor em 03 de janeiro de 2022.

Esta norma, em seu item 1.5, aborda as obrigações da organização para fins de
prevenção e gerenciamento dos riscos ocupacionais, e determina que este seja
implementado por estabelecimento, constituindo o Programa de Gerenciamento de
Riscos. O item 1.5.3.2 determina as obrigações da organização em matéria de
gerenciamento dos riscos, conforme transcrito a seguir, com grifos nossos:

1.5.3.2 A organização deve:

a) evitar os riscos ocupacionais que possam ser originados no trabalho;

b) identificar os perigos e possíveis lesões ou agravos à saúde;

c) avaliar os riscos ocupacionais indicando o nível de risco;

d) classificar os riscos ocupacionais para determinar a necessidade de


adoção de medidas de prevenção;

e) implementar medidas de prevenção, de acordo com a classificação de


risco e na ordem de prioridade estabelecida na alínea “g” do subitem 1.4.1;
e

f) acompanhar o controle dos riscos ocupacionais.

Da leitura dos referidos itens, fica claro que a organização tem a obrigação de
identificar os perigos e possíveis lesões ou agravos à saúde, e uma vez que o item não
restringe quais perigos deveriam ser identificados, resta determinada a obrigação de
que todos os perigos, independentemente de suas “espécies”, sejam identificados para
fins de gerenciamento. Para melhor compreensão do dispositivo, cabe a avaliação da
definição de alguns vocábulos ou conceitos, a partir da seção de “Termos e
Definições” da mesma norma regulamentadora:

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Ana Luiza Horcades / Larissa Abreu / Felipe Wittich

Perigo ou fator de risco ocupacional/ Perigo ou fonte de risco


ocupacional: Fonte com o potencial de causar lesões ou agravos à saúde.
Elemento que isoladamente ou em combinação com outros tem o
potencial intrínseco de dar origem a lesões ou agravos à saúde.

Agente biológico: Microrganismos, parasitas ou materiais originados de


organismos que, em função de sua natureza e do tipo de exposição, são capazes
de acarretar lesão ou agravo à saúde do trabalhador. Exemplos: bactéria
Bacillus anthracis, vírus linfotrópico da célula T humana, príon agente de
doença de Creutzfeldt-Jakob, fungo Coccidioides immitis. (grifo nosso)

Mais uma vez, cabe destacar que pela própria definição de perigo, o item 1.5.3.2, em
sua alínea “b” deixa claro que devem ser identificados quaisquer agentes que
possuam o potencial intrínseco de causar agravos à saúde do trabalhador. E, apesar de
óbvio, cabe destacar que o vírus SARS CoV-2 trata-se de um agente biológico que
pode causar um agravo à saúde do trabalhador (a doença COVID-19), devendo-se
compreender a necessidade de identificação do mesmo para o sucesso dos processos
de gerenciamento de riscos ocupacionais.

3.3. CARACTERÍSTICAS DO NOVO AGENTE BIOLÓGICO PRESENTE NO


MEIO AMBIENTE DE TRABALHO E O AGRAVO À SAÚDE RELACIONADO
À EXPOSIÇÃO AO AGENTE SARS-CoV2

A avaliação de risco incorpora ações que objetivam o reconhecimento ou a


identificação dos agentes biológicos e da probabilidade dos danos provenientes destes.

A virulência do agente biológico para o homem e para os animais é um dos critérios de maior
importância. Uma das formas de mensurá-la é a taxa de fatalidade do agravo causado pelo
agente patogênico, que pode vir a causar morte ou incapacidade em longo prazo.

Conforme o documento “Classificação de Risco dos Agentes Biológicos”, do


Ministério da Saúde, os agentes biológicos são distribuídos em classes de risco de
acordo com diversos critérios, dentre eles a virulência, modo de transmissão,
estabilidade, disponibilidade de medidas profiláticas, entre outros.

Os agentes biológicos são distribuídos em classes de risco assim definidas13:

13 Classificação de risco dos agentes biológicos - 3a edição. Ministério da Saúde, 2017. Disponível em
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/classificacao_risco_agentes_biologicos_3ed.pdf.

Laborare. Ano VI, Número 10, Jan-Jun/2023, pp. 11-40. ISSN 2595-847X. https://revistalaborare.org/
DOI: https://doi.org/10.33637/2595-847x.2023-150
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pandemia da COVID-19

• Classe de risco 1 (baixo risco individual e para a comunidade): inclui os agentes


biológicos conhecidos por não causarem doenças no homem ou nos animais
adultos sadios.

• Classe de risco 2 (moderado risco individual e limitado risco para a


comunidade): inclui os agentes biológicos que provocam infecções no homem
ou nos animais, cujo potencial de propagação na comunidade e de disseminação
no meio ambiente é limitado, e para os quais existem medidas terapêuticas e
profiláticas eficazes.

• Classe de risco 3 (alto risco individual e moderado risco para a comunidade):


inclui os agentes biológicos que possuem capacidade de transmissão por via
respiratória e que causam patologias humanas ou animais, potencialmente
letais, para as quais existem usualmente medidas de tratamento e/ou de
prevenção. Representam risco se disseminados na comunidade e no meio
ambiente, podendo se propagar de pessoa a pessoa.

• Classe de risco 4 (alto risco individual e para a comunidade): inclui os agentes


biológicos com grande poder de transmissibilidade por via respiratória ou de
transmissão desconhecida. Até o momento não há nenhuma medida profilática
ou terapêutica eficaz contra infecções ocasionadas por estes. Causam doenças
humanas e animais de alta gravidade, com alta capacidade de disseminação na
comunidade e no meio ambiente. Esta classe inclui principalmente os vírus.

Os Coronavírus, com exceção de SARS-CoV, são classificados na classe de risco 2,


sendo o SARS-CoV classificado na classe de risco 3, assim como o SARS-CoV2 14, o
que significa que existe um alto risco individual e moderado risco para a comunidade,
e desta forma é imprescindível que sejam tomadas todas as medidas de prevenção de
forma a evitar a contaminação do trabalhador em função da atividade laboral.

A doença causada pela contaminação pelo agente SARS-CoV-2 é chamada de


COVID-19 e se trata de uma doença sistêmica de expressão predominantemente
respiratória. Com a disseminação do agente em todo o planeta e as altas taxas de
circulação do vírus, o desenvolvimento de novas cepas, a evolução da vacinação e a
retomada das atividades econômicas, as características e o impacto da contaminação
pelo SARS-CoV2 vêm sendo constantemente estudados e reavaliados, de forma que

14 Nota Técnica DIVS N° 002/2020: Orienta sobre as boas práticas no gerenciamento dos resíduos de serviço de
saúde na atenção à saúde de indivíduos suspeitos ou confirmados pelo novo coronavírus (COVID-19).
Disponível em https://www.saude.sc.gov.br/coronavirus/arquivos/Nota-Tecnica-DIVS-N_002_2020.pdf.

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as medidas de controle mantenham-se eficazes e a doença siga tendo seus impactos


sobre a saúde pública reduzidos.

Fartas evidências científicas, conforme indicado por BOWE 2022, sugerem que
infecções por SARS-CoV-2 estão associadas a um elevado risco de morte aguda e
pós aguda, sequelas pulmonares e a uma ampla gama de lesões em órgãos e sistemas
extrapulmonares. Enquanto inicialmente eram estudados os agravos à saúde a curto,
médio e longo prazo ocasionados pela infecção pelo agente citado, os estudos
científicos vêm agora se voltando aos efeitos decorrentes de reinfecções e seus
impactos para a saúde pública, sendo necessárias maiores informações científicas
para que tal impacto seja conhecido.

A partir desta avaliação, cabe a compreensão de que o referido agente é capaz de


acarretar lesão ou agravo à saúde do trabalhador, motivo pelo qual deve constar da
etapa de identificação de perigos do PGR.

3.4. O PAPEL DO PGR E DO PCMSO NA MITIGAÇÃO DO RISCO DE


CONTAMINAÇÃO PELO NOVO CORONAVÍRUS NAS ATIVIDADES
LABORAIS.

As normas regulamentadoras número 01 e 07 tratam, especificamente, de Disposições


Gerais e Gerenciamento de Riscos Ocupacionais e do Programa de Controle Médico
e Saúde Ocupacional.

O Programa de Gerenciamento de Riscos se trata dos registros relativos aos processos


de gerenciamento de riscos ocupacionais e é composto por seus documentos
mínimos, o Inventário de Riscos, que sintetiza as etapas de identificação e avaliação
dos riscos, e Plano de Ação, cujos registros tratam das medidas de controle indicadas
para a mitigação dos riscos.

Com relação à identificação de perigos, resta consignado que a organização deve


descrever os perigos e possíveis lesões ou agravos à saúde, identificar suas fontes e
indicar os grupos de trabalhadores sujeitos aos riscos destes decorrentes. abordando
ainda os perigos externos previsíveis relacionados ao trabalho que possam afetar a
saúde e segurança no trabalho.

Desta forma, fica claro que o documento não se trata de um pedaço de papel inerte,
mas de um programa de gestão dinâmico cujo objetivo principal é o resguardo da
integridade física do obreiro, e que deve acompanhar a dinâmica da realidade do meio
ambiente de trabalho, sendo prevista a possibilidade de inserção de novos riscos.
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pandemia da COVID-19

Uma vez que a NR-01 determina a obrigatoriedade de que sejam identificados os


PERIGOS (em gênero, sem restrições), e que não há nada em qualquer dispositivo
técnico que exclua da identificação de perigos um agente em função de haver
transmissão comunitária, não é possível deduzir que por qualquer motivo haja a
dispensa da identificação do agente SARS-CoV-2 quando as características da
atividade determinarem uma exposição ocupacional, distinta da exposição comunitária.

Aqueles perigos que não são identificados nesta fundamental etapa do gerenciamento
de riscos são excluídos das demais etapas do gerenciamento de riscos, e por este
motivo seguem causando seus efeitos deletérios aos trabalhadores expostos e,
consequentemente, a toda a sociedade.

Após a identificação do perigo, segue-se para a avaliação do risco. Nesta etapa,


determina-se a severidade e a probabilidade para que se conheça o nível de risco
ocupacional relacionado a cada perigo identificado, sendo que é a partir da adequada
avaliação do risco que se possibilita a construção de um plano de ação eficiente.

Cabe aqui destacar que no gerenciamento de riscos ocupacionais, a avaliação do risco


conta com a determinação da magnitude da consequência do evento (no caso, a
contaminação pelo agente SARS-CoV-2), o número de trabalhadores potencialmente
atingidos e as medidas de controle implementadas.

Com relação à magnitude do evento, devemos avaliar o potencial de dano da


exposição ao agente. Atualmente, apesar do desenvolvimento das vacinas e da
ampliação da vacinação em território nacional, ainda existe o potencial de morte
associado à COVID-19, mesmo em pessoas previamente hígidas, especialmente
quando avaliadas exposições a elevadas cargas virais (presentes em atividades
laborais de alto risco, como serviços de saúde) o que implica em elevada severidade
associada. Com relação ao número de trabalhadores atingidos, deve-se considerar a
transmissão por via aérea, que implica na possibilidade de contaminação de todas as
pessoas presentes no ambiente, elevando a magnitude potencial do agravo.

Para a determinação da probabilidade de ocorrência do evento, aprofunda-se o estudo


das medidas de controle efetivamente implementadas no meio ambiente de trabalho.
Os controles devem ser desenvolvidos a partir das características das atividades, e
contam também com medidas administrativas como a capacitação dos expostos na
mitigação da disseminação do agente nos locais de trabalho.

Passando à análise do texto vigente da NR-07, destacamos os seguintes itens:

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7.3.2.1 O PCMSO deve incluir ações de:

a) vigilância passiva da saúde ocupacional, a partir de informações sobre a


demanda espontânea de empregados que procurem serviços médicos;

b) vigilância ativa da saúde ocupacional, por meio de exames médicos dirigidos


que incluam, além dos exames previstos nesta NR, a coleta de dados sobre
sinais e sintomas de agravos à saúde relacionados aos riscos ocupacionais.

Da leitura do item transcrito, depreende-se que o PCMSO precisa contar com ações tanto
de vigilância médica ativa quanto passiva, o que demanda o conhecimento dos agravos à
saúde que impactam os expostos na organização, devendo ser coletados dados sobre
sinais e sintomas de acordo com os riscos ocupacionais característicos da atividade
desenvolvida, não cabendo aqui a exclusão de um ou outro agente por haver transmissão
comunitária ou qualquer outro critério de julgamento pessoal do médico do trabalho.

A obrigatoriedade de inclusão no PCMSO de atuação sobre todos os perigos


presentes na organização é destacada ainda no item 7.5.4, transcrito a seguir com
grifos nossos: “7.5.4 A organização deve garantir que o PCMSO: a) descreva os
possíveis agravos à saúde relacionados aos riscos ocupacionais identificados e
classificados no PGR”.

Assim, uma vez identificado o perigo no âmbito do Programa de Gerenciamento de


Riscos, resta consignada a obrigação e responsabilidade do médico responsável pelo
PCMSO de descrever os possíveis agravos à saúde relacionados ao risco de exposição
ao agente em comento, não havendo dispensa legal ou tecnicamente justificada para
sua exclusão do Programa de Controle Médico e Saúde Ocupacional e não cabendo,
portanto, a uma mera nota técnica autorizar a exclusão da análise de um risco
ocupacional dos programas que se prestam justamente a este fim.

A NR-07, acertadamente, impõe à organização obrigações no caso de constatada a


ocorrência ou agravamento de doença relacionada ao trabalho, em consonância com o
disposto na Consolidação das Leis do Trabalho, conforme transcrito a seguir com
grifos nossos:

7.5.19.5 Constatada ocorrência ou agravamento de doença relacionada ao


trabalho ou alteração que revele disfunção orgânica por meio dos exames
complementares do Quadro 2 do Anexo I, dos demais Anexos desta NR ou
dos exames complementares incluídos com base no subitem 7.5.18 da

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pandemia da COVID-19

presente NR, caberá à organização, após informada pelo médico


responsável pelo PCMSO:

a) emitir a Comunicação de Acidente do Trabalho - CAT;

b) afastar o empregado da situação, ou do trabalho, quando necessário;

c) encaminhar o empregado à Previdência Social, quando houver


afastamento do trabalho superior a 15 (quinze) dias, para avaliação de
incapacidade e definição da conduta previdenciária;

d) reavaliar os riscos ocupacionais e as medidas de prevenção pertinentes no PGR.

Já a Consolidação das Leis do Trabalho determina o que se segue em seu artigo 169:

Art. 169 - Será obrigatória a notificação das doenças profissionais e das


produzidas em virtude de condições especiais de trabalho, comprovadas
ou objeto de suspeita, de conformidade com as instruções expedidas pelo
Ministério do Trabalho.

Daí se depreende que, uma vez que a prestação da atividade laboral concorreu para o
adoecimento do trabalhador (mesmo não sendo a exposição exclusiva decorrente da
atividade), é preciso buscar a reparação da saúde do mesmo, além de avaliar as
medidas de controle existentes com a finalidade de conquistar o refinamento da
gestão e a melhoria de desempenho em saúde e segurança no trabalho na organização.
E ainda que, independentemente da transmissão comunitária, quando a exposição se
dá em virtude das condições de desenvolvimento da atividade, mesmo quando há
apenas a suspeita (ou seja, quando não é possível excluir a existência de nexo com a
atividade desenvolvida), torna-se obrigatória a notificação do agravo. No caso da
COVID-19, cabe mais uma vez ressaltar que a carga viral é decisiva à contaminação
e desenvolvimento de sintomas, assim como da gravidade da COVID-19, e que o fato
de serem desenvolvidas atividades que favorecem o aumento da carga viral a que o
indivíduo é exposto pode ser determinante para a manifestação clínica da doença.

Com relação às obrigações do empregador no que diz respeito a um agente endêmico,


a Lei n. 8.213/1991 deixa claro que deve ser considerado acidente de trabalho o caso
da contaminação por doença endêmica quando é resultante das condições especiais
em que o trabalho ou atividade é desenvolvida. Desta forma, fica imputada ao

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empregador a obrigação de tomar medidas preventivas e combater a disseminação de


doenças endêmicas no local de trabalho.

Ilustrando nossa exposição, imaginemos, hipoteticamente, um ambiente de trabalho –


a construção de uma linha de transmissão de energia p. ex. - localizado em região
onde a malária, doença transmitida pela picada de fêmeas do mosquito Anopheles
infectadas pelo protozoário Plasmodium, é endêmica. Para a malária não existe
vacina disponível, e ela pode causar uma série de sequelas graves, cursando com
déficit neurológico persistente e disfunções graves do sistema cardiovascular e morte,
como ensina CARDOZO-TRUJILLO, K (2012). Todas as formas de prevenção são
estabelecidas, e consistem principalmente em evitar a proliferação do mosquito
responsável pela transmissão. Muito embora os conceitos de endemia e pandemia
sejam distintos, podemos pressupor a possibilidade de que a COVID-19 venha a ser
uma doença endêmica no futuro.

Independentemente de ser doença endêmica, existem meios eficazes de enfrentamento


para eliminar ou minimizar a possibilidade de contágio. Cumpre ao empregador o
reconhecimento do risco e a implementação de medidas efetivas para preservar a vida e
a saúde dos trabalhadores. A eliminação de focos de criadouros de mosquitos (água
parada), assim como a adoção de medidas de alteração do ambiente de trabalho
(instalação de telas nas janelas dos alojamentos) ou medidas administrativas (jornada
de trabalho em períodos de menor atividade do vetor) são vitais para uma atuação
efetiva em prol da saúde do trabalhador. Caso o gestor não adote as medidas
necessárias, resultando em infestação de mosquitos e adoecimentos em massa dos
trabalhadores, resta claro o nexo entre a omissão do empregador e o resultado ocorrido,
aplicando-se a literalidade do § 1º do inciso II do artigo 20 da Lei n. 8213/91.

Assim, é mandatório na gestão em saúde e segurança no trabalho considerar a


realidade local e evitar que condições favoráveis à disseminação de doenças, sejam
elas endêmicas ou não, estejam presentes na organização. Se é conhecido que a
malária é endêmica em determinada região e a atividade pode expor de forma
potencializada o trabalhador, é evidente a obrigação do PGR de identificar este
perigo, avaliar o risco e consequentemente indicar medidas de controle respeitando a
hierarquia das medidas de controle para este agente. De forma integrada, em função
do disposto no item 7.5.4 da NR-07, já discutido, é também mandatório o
desenvolvimento de ações de saúde, no escopo do PCMSO.

Com a COVID-19 não poderia ser diferente. Uma vez que é identificada exposição ao
agente em função das características da atividade, não há qualquer aspecto técnico ou

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Questões formais e técnicas a serem observadas na Nota Técnica SEI 14127/2021-ME no contexto da
pandemia da COVID-19

legal que permita a exclusão deste agente da etapa de identificação de perigos, o que
implica nas obrigações subsequentes.

Não havendo norma hierarquicamente superior em nosso ordenamento jurídico que


respalde o posicionamento adotado pela Secretaria de Inspeção do Trabalho, não cabe
a uma nota técnica autorizar a exclusão da análise de um risco ocupacional dos
programas que se prestam justamente a este fim.

É fundamental entender a importância da metodologia estabelecida pelo PGR e pelo


PCMSO no combate à disseminação de doenças ocupacionais nos locais de trabalho.
Os referidos programas existem para que cumpram seu fim precípuo e devem ser
implementados nas organizações. O simples cumprimento das etapas do PGR e das
diretrizes do PCMSO seriam medidas suficientes para que o controle do meio
ambiente de trabalho e a vigilância médica dos trabalhadores impedissem a
ocorrência de surtos nos ambientes de trabalho.

Portanto, o fato de existir uma portaria que aborda o tema da prevenção da


disseminação do novo coronavírus nos ambientes de trabalho não pode ser
fundamento, em hipótese alguma, para a exclusão deste agente das medidas de
prevenção implementadas a partir do PCMSO, conforme disposto no texto publicado.

4. CONCLUSÃO

A relação entre o trabalho e a contaminação pelo agente Sars-Cov2 é estreita e fica


clara, mais de dois anos depois da entrada do referido agente em território nacional,
quando comparamos a incidência de casos em determinadas populações laborais com
as estatísticas nacionais. Trabalhadores que exercem funções em ambientes
climatizados, ou em contato com maior número de pessoas (motoristas, frentistas,
caixas de supermercado, trabalhadores em frigoríficos etc.), encontram-se em
exposição mais crítica do que aqueles que desenvolvem tarefas intelectuais e que
podem atuar em teletrabalho.

A Nota Técnica n. 14.127, emitida em abril de 2021, trouxe grandes prejuízos para a
saúde do trabalhador brasileiro, pois sinaliza a não obrigatoriedade do programa de
controle médico e saúde ocupacional abordar as questões referentes à COVID-19,
subtraindo conteúdo obrigatório e dificultando a integração entre os programas de
saúde do trabalhador; prejudica a gestão de saúde e segurança no trabalho nas
organizações, e impõe barreiras à fiscalização para o cumprimento de seu dever legal.
Desta forma, a existência da referida nota técnica no ordenamento jurídico brasileiro

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Ana Luiza Horcades / Larissa Abreu / Felipe Wittich

fornece subsídios para a má gestão do ambiente de trabalho e assim possibilita que


mais trabalhadores brasileiros se infectem no exercício laboral.

REFERÊNCIAS

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Laborare. Ano VI, Número 10, Jan-Jun/2023, pp. 11-40. ISSN 2595-847X. https://revistalaborare.org/
DOI: https://doi.org/10.33637/2595-847x.2023-150
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Data de submissão: 31/03/2022


Data de aprovação: 13/02/2023

Este trabalho está licenciado sob uma licença Creative Commons Attribution-
NonCommercial-ShareAlike 4.0 International License.

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SEGURANÇA E SAÚDE NO TRABALHO

Análise ergonômica da pintura de fachadas com o uso


do balancim individual elétrico
Ergonomic analysis of facade painting with the use
of the electric individual balancin

Matheus Schaun Caetano


Engenheiro Civil pela Universidade Federal do Rio Grande.
http://lattes.cnpq.br/7197431339855032

Alessandra Buss Tessaro


Doutorado em Ciência e Engenharia de Materiais pela Universidade
Federal de Pelotas (2017). Professora adjunto, da Universidade
Federal do Rio Grande. https://orcid.org/0000-0002-8193-6286

Liliane Ferreira Gomes


Mestrado em Engenharia Oceânica pela Universidade Federal do Rio
Grande. Professora de Segurança do Trabalho da Universidade Federal
do Rio Grande. http://lattes.cnpq.br/3715059061160181

Flávia Costa de Mattos


Doutora em Ciência e Engenharia de Materiais pela Universidade
Federal de Pelotas. Professora adjunto na Universidade Federal do Rio
Grande. https://orcid.org/0000-0002-9281-5893

Jorge Luiz Oleinik Nunes


Doutor em Ciência e Engenharia de Materiais pela Universidade
Federal de Pelotas. https://orcid.org/0000-0002-6212-4231

Jorge Luiz Saes Bandeira


Mestrado em Engenharia Oceânica, com ênfase em durabilidade do
concreto, pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG).
https://orcid.org/0000-0002-8840-4899

RESUMO: A atividade escolhida para a análise ergonômica foi a pintura externa


realizada em fachadas prediais, devido ao trabalho em altura. A prevenção e
diminuição do risco ergonômico podem ser alcançada por meio da conscientização
das empresas construtoras, mas também pela aplicação de medidas gerenciais e de
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Análise ergonômica da pintura de fachadas com o uso do balancim individual elétrico

diagnóstico de situações de risco nos postos de trabalho. O presente trabalho utilizou


como método de análise ergonômica a visita in loco e entrevista com os
trabalhadores. A coleta de dados ocorreu em um edifício vertical situado na cidade de
Rio Grande/RS. Esta pesquisa tem como objetivo geral analisar os fatores de risco de
sobrecarga biomecânica na atividade de pintura externa em fachadas prediais. A
análise da demanda demonstrou os pontos que requerem atenção e medidas diferentes
dos equipamentos. As propostas de melhorias e diminuição do risco possibilitarão
melhor qualidade de vida ao trabalhador, assim como melhor entendimento da
importância da Ergonomia para o setor da construção.

Palavras-chave: balancim elétrico, ergonomia, segurança do trabalho.

ABSTRACT: The chosen activity for the ergonomic analysis was the external painting
carried out on building facades, due to the work at height. The prevention and reduction
of ergonomic risk can be achieved by raising awareness among construction
companies, but also by applying management measures and diagnosing risk situations
in the workplace. The present work used as an ergonomic analysis method, the on-site
visit and interview with the workers. Data collection took place in a vertical building
located in the city of Rio Grande / RS. This research has as general objective to analyze
the risk factors of biomechanical overload in the external painting activity in building
facades. The demand analysis showed the points that require attention and measures
different from the equipment. The proposals for improvements and risk reduction will
allow a better quality of life for the worker, as well as a better understanding of the
importance of Ergonomics for the construction sector.

Keywords: electric rocker, ergonomics, workplace safety.

1. INTRODUÇÃO

A Associação Brasileira de Ergonomia (ABERGO)1 define que ergonomia visa à


modificação de sistemas de trabalho para adequação das atividades às características,
habilidades e limitações das pessoas visando o desempenho eficiente, confortável e
seguro. Os objetivos da ergonomia no trabalho são: segurança, conforto e
desempenho eficiente. Aplicando essas definições, conclui-se que a ergonomia é
voltada para resolver problemas, de forma a adaptar o trabalho ao trabalhador, de
maneira mais sucinta, afirmar que uma postura ergonômica relaciona praticidade com
viabilidade (VIDAL, 2008). Dessa forma, esse trabalho de análise ergonômica da
pintura de fachadas com o uso do balancim individual elétrico terá esse princípio.

1 Associação Brasileia de Ergonomia. Disponível em: http://www.abergo.org.br/. Acesso em: 20/06/2020.

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Matheus Schaun Caetano / Alessandra Buss Tessaro / Liliane Ferreira Gomes /
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O processo de pintura em residências e condomínios é importante em termos


técnicos, visto que a tinta possui propriedades que contribuem para a proteção da
superfície da parede, independentemente do material ou método construtivo
empregado. Com uma breve análise social, apenas com o senso empírico, é possível
verificar que quanto maior as condições econômicas de uma determinada região, os
acabamentos das residências são melhores e mais bonitos, utilizando diversas
técnicas, inclusive a pintura (VILLAR, 2005).

Em relação à pintura (técnico, financeiro, estético e ambiental), aplica-se essa técnica


em grandes fachadas, com o uso de balancim individual elétrico, independente do
layout do prédio, pois é um equipamento de manuseio ágil e prático. Em um caso
específico na cidade do Rio Grande, cidade mais antiga do Estado do Rio Grande do
Sul, a perspectiva arquitetônica é um fator que contribui para a manutenção e
preservação da história. Mesmo que muitos edifícios não sejam históricos, apesar de
terem certa idade, eles estão dentro de um cenário histórico, ou seja, também são
importantes considerando o meio em que estão. Mantê-los em boas condições
contribui para um positivo aspecto visual da cidade.

Por ser uma prestação de serviço que demanda equipamentos específicos e mão de obra
especializada, requer atenção em termos de segurança, saúde, conforto e produtividade
no desenvolver das atividades. O balancim individual elétrico zela por esses quatro
princípios, visto que possui todo um sistema de segurança, não traz problemas a saúde
do profissional, em termos gerais é confortável (com pequenos pontos que poderiam
ser um pouco mais desenvolvidos em termo ergonômicos) e é um equipamento de
permite o operário produzir em uma escala muito maior comparando com a produção
sem a existência desse equipamento (BARBOSA, 2000).

Na Figura 1, nota-se que esse equipamento é projetado para utilização individual,


sendo que esse trabalhará sentado em uma cadeira e com alcance de uma faixa
vertical, abrangida com os braços abertos e com o uso de outras ferramentas, tais
como o extensor de pincel ou rolos para pintura. Essa cadeirinha é içada por cabos de
aço, que por sua vez são amarrados em alguma estrutura superior do prédio,
normalmente na estrutura do reservatório superior, com o uso de clipes próprios para
esse tipo de trabalho, sob orientação do fabricante do equipamento. Para manter o
cabo sempre tensionado, a fim de evitar problemas no momento que passará pelas
engrenagens, deve-se instalar contrapeso de, aproximadamente, 10 kg sob o
balancim. Tal contrapeso também contribui para a estabilidade do operário.

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Análise ergonômica da pintura de fachadas com o uso do balancim individual elétrico

Figura 1 - Operário trabalhando no balancim individual no Edifício Le Grand, Rio Grande.

Créditos: Autor.

O balancim individual elétrico possui uma trava de segurança e ainda uma central de
comandos que o movimenta. Paralelamente à trava de segurança, o operário também
está preso por trava queda em linha de vida própria, fixada no topo do edifício, assim
como exposto na Figura 2, onde é possível verificar essa linha de vida (cabo
individual e paralelo, sem relação com o balancim, com o único objetivo de dar a
segurança ao profissional).

Figura 2 - Operário trabalhando no balancim individual com linha de vida própria.

Fonte: http://fixoequipamentos.com.br/produtos/balancim-individual. Acesso em: 5 abr. 2020.

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Flávia Costa de Mattos / Jorge Luiz Oleinik Nunes / Jorge Luiz Saes Bandeira

Para facilitar o afastamento do profissional da superfície a ser trabalhada, no topo


(platibanda) do edifício é instalado o afastador. Mesmo assim não é suficiente, tendo
o profissional que se afastar da superfície a ser trabalhada com os pés ou joelhos,
dependendo da situação. Para que os cabos não corram no sentido horizontal, em
função do movimento do operário, nas platibandas também são instalados
chumbadores parabout com uma porca olhal, e os cabos de aço passam por ela.

2. METODOLOGIA

O estudo foi realizado com dados coletados por meio de pesquisa de campo em uma
obra vertical na cidade de Rio Grande/RS e entrevistas com os funcionários.

Os objetivos da pesquisa de campo são a busca de informações acerca de um


problema, ou a comprovação de uma hipótese, visando descobrir novos fenômenos
ou as relações entre esses fenômenos. Para isso, é necessário observar os fatos e
fenômenos tal como ocorrem na realidade (MARCONI; LAKATOS, 2002). Por isso
a importância da visita in loco, de coletar dados referentes a eles e do registro das
variáveis que se pressupõem para análise (OLIVEIRA, 2002; IIDA, 2005).

Considera-se trabalho em altura toda atividade executada acima de 2,00 m (dois


metros) do nível inferior, onde haja risco de queda. Adotou-se esta altura como
referência por ser a altura de desnível consagrada em várias normas, inclusive
internacionais, facilitando a compreensão, eliminando dúvidas de interpretação da
Norma e as medidas de proteção que deverão ser implantadas (Norma
Regulamentadora – NR n. 35).

Para os serviços em altura em fachadas é necessária uma estrutura, andaime fachadeiro


ou balancim, para segurança e conforto para os trabalhadores, também é necessário que
se proteja os níveis inferiores, bandejas primária e secundária, com o objetivo de evitar
quedas acidentais de objetos nas pessoas no solo ou acidentes materiais.

3. RESULTADOS E DISCUSSÃO

3.1 ASPECTOS ANTROPOMÉTRICOS

A antropometria estuda as medidas do corpo, particularmente o tamanho e a forma.


Aplicando a definição apresentada à análise ergonômica da pintura de fachadas com o
uso do balancim individual elétrico em termos antropométricos, é importante definir

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Análise ergonômica da pintura de fachadas com o uso do balancim individual elétrico

as partes do corpo que terão influência, bem como suas medidas, visto que o
equipamento possui dimensões que devem ser levadas em consideração (AÑES,
2009). Dessas medidas, precisam-se definir as máximas, médias e mínimas. Será
preciso traçar um perfil baseado no sexo.

3.1.1 Partes corpóreas

Não tem como excluir alguma parte do corpo no desenvolver da tarefa, visto que,
mesmo sem movimento, compõe a estabilidade geral do corpo. As principais partes
corpóreas envolvidas são os membros superiores, inferiores, quadril, pescoço e cabeça.

Os membros superiores (ombro, braço, antebraço e mão) são importantes na


movimentação do balancim para ambas as direções – cima e baixo – com o
acionamento da central de comando e na gesticulação do ato de pintar –
movimentações na horizontal, vertical e diagonal, no sentido de vai e vem. Os
membros inferiores (coxa, perna e pé) são importantes para ajudar a afastar o
profissional da superfície a ser trabalhada, mesmo que pouco solicitado, e para
mantê-lo estático, inibindo as rotações do balancim. Pelo fato de o operário trabalhar
sentado, o quadril e coluna também são bastantes exigidos.

3.1.2 Medidas máximas, médias e mínimas

Definir as dimensões do corpo humano no caso específico do uso do balancim individual


não é uma tarefa fácil. Para tal, será utilizada uma aproximação considerando posições
semelhantes às desenvolvidas no ato de pintar usando o balancim individual
(OLIVEIRA, 2002) baseada na norma alemã DIN 33402 (DIN, 1981).

Na Figura 3, é possível verificar parte do esquema apresentado pela referida norma


alemã (foram selecionadas posições semelhantes, para que a análise seja aplicada à
situação em questão). Serão consideradas apenas as medidas 1,7 (movimento
semelhante ao uso do rolo/pincel), 2,4 (para definir a altura do encosto que o balancim
deverá ter, com o objetivo de ser confortável na coluna), 2,8 (para definir a dimensão
máxima do assento que o balancim deverá ter, com o objetivo de não atrapalhar a
gesticulação do joelho) e 2,13 (para definir a dimensão do assento do balancim).

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Figura 3 - Posições a serem consideradas, baseada na norma alemã DIN 33402.

Fonte: Iida (2005), p.117.

Na Tabela 1 serão apresentados os resultados das posições mostradas na Figura 3. Os


resultados são apresentados em percentuais de 5%, 50% e 95% da população de
homens e mulheres, para 19 faixas etárias, de 3 a 65 anos de idade, e a média para
adultos, de 16 a 60 anos (OLIVEIRA, 2002).

Tabela 1 - Resultados das posições mostradas na Figura 3.

Mulheres Homens
Medidas (cm)
5,0% 50,0% 95,0% 5,0% 50,0% 95,0%
1.7. Comprimento do braço, na
61,6 69,0 76,2 66,2 72,2 78,7
horizontal, até o centro da mão.
2.4. Altura do cotovelo, a partir
19,1 23,3 27,8 19,3 23,0 28,0
do assento, tronco ereto.
2.8. Comprimento nádega-
42,6 48,4 53,2 45,2 50,0 55,2
poplítea.
2.13. Largura dos quadris,
34,0 38,7 45,1 32,5 36,2 39,1
sentado.
Fonte: Iida (2005), p.118.

Tendo como base os dados apresentados por Iida (IIDA, 2005), fica mais fácil
determinar as medidas do corpo quando se analisa no uso do balancim individual

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Análise ergonômica da pintura de fachadas com o uso do balancim individual elétrico

elétrico. Na Tabela 2 são expostas as medidas do balancim, medidas in loco


(considerar possíveis erros de medida, visto que não foi baseada em nenhum manual
técnico). Com esses dados, pode-se traçar um paralelo com as medidas do
equipamento e as medidas do corpo humano, propondo melhorias no equipamento,
tendo em mente a ideia de torná-lo mais ergonômico.

Tabela 2 - Medidas do balancim individual elétrico.

Partes do equipamento Medidas (cm)


Distância do encosto à central de comandos 57,0
Altura do encosto 31,0
Profundidade do assento 41,0
Largura do assento 38,5

Fonte: Criação própria - medição in loco.

Sabe-se que, em termos estatísticos, valores de P extremos (de 0,0% a 5,0% e de


95,0% a 100,0%), considerando uma distribuição normal, são de baixa relevância,
pois são dados pouco comuns. Analisando as Tabelas 1 e 2, pode-se concluir que:

 A distância do encosto à central de comandos (57,0 cm) está própria, tanto para
homens quanto para mulheres. A menor medida apresentada é de 61,6 cm; ou
seja, o profissional não precisa esticar para acionar a central de comandos, visto
que está dentro da sua área de movimentação.

 A altura do encosto (31,0 cm) está própria, tanto para homens quanto para
mulheres, visto que é superior a todas as medidas; isto é, independentemente do
tamanho da pessoa, o encosto chegará, no mínimo, na posição mostrada na
Figura 2.

 A profundidade do assento (41,0 cm) não está apropriada. Para que a perna e o
pé do profissional não fiquem “caindo”, a profundidade do assento deveria ser
próxima da medida da nádega-poplítea. Apenas para primeira classificação das
mulheres que se encontra apropriada.

 A largura do assento (38,5 cm) não está própria, visto que alguns homens e uma
grande parte das mulheres, especialmente por terem mais volume nos membros
inferiores, não poderiam utilizar, visto que o equipamento seria pequeno.

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Em entrevista, dois profissionais que usam rotineiramente o equipamento opinaram


melhorias nas mesmas partes onde foi provado que as medidas não estão de acordo.
Foi sugerido aumentar a profundidade do assento (cerca de 5,0 cm), para que a perna
e o pé não fiquem “soltos”, “caindo”, dando uma maior estabilidade à região próxima
do joelho, consequentemente para todo o corpo.

Precisa-se ponderar sobre a largura do assento, que poderia ser maior (cerca de 6,0
cm), quando analisado para que mulheres usufruam desse equipamento. Em termos
gerais, segundo eles mesmos, o equipamento é bom e confortável, ergonômico,
podendo melhorar em nesses aspectos apresentados.

Outro aspecto que pode ser otimizado, a fim de tornar o balancim individual mais
ergonômico, é que o encosto poderia ser para todas as costas, não somente para a
parte inferior da lombar, feito de esponja revestida de material impermeável.

3.1.3 Sexo

O equipamento possui características que permitem ambos os sexos operarem, porém


ele deveria ser maior na parte do quadril quando pensado no uso pelas mulheres.
Caso seja verificada essa questão, não há limitações no quesito sexo para o uso do
equipamento. Não é necessário fazer esforço físico para operar o balancim, pois ele é
elétrico. Um fator limitador, que não se enquadra em antropometria, é o psicológico,
devido ao medo de altura.

3.2 Aspectos biomecânicos

O objetivo central da biomecânica é o estudo do movimento humano (AMADIO;


SERRÃO, 2011). Aplicando a definição apresentada à análise ergonômica da pintura
de fachadas com o uso do balancim individual elétrico em termos biomecânicos, é
importante detalhar a operação para poder definir quais são as partes corpóreas
sujeitas a cargas, bem como a definição das cargas, expondo a intensidade, frequência
e tempo e classificando-as em estática ou dinâmica. Foi realizada a análise da
postura, bem como a criação de um perfil baseado na faixa etária.

3.2.1 Detalhes da operação

Desde a Idade da Pedra a pintura acompanha a humanidade. Com o avanço do tempo,


da tecnologia e da ciência, perceberam-se as vantagens de utilizar dessa técnica.
Como é uma prática muito comum na atualidade, é uma técnica que todos possuem

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um senso empírico, mesmo que básico. A análise feita para expor os detalhes da
operação foi em termos biomecânicos, visando apenas os movimentos do corpo
humano. Como citado anteriormente, tais movimentos do corpo humano são
mínimos, visto que o operário trabalha sentado e que o manuseio do equipamento é
elétrico. Os únicos movimentos executados são as ações de pintar.

3.2.2 Partes corpóreas sujeitas a cargas

Os únicos movimentos que o operário irá realizar serão os do ato de pintar


(movimentações na horizontal, vertical e diagonal, no sentido de vai e vem). Sendo
assim, as partes do corpo sujeitas a cargas são:

 Ombro: peso do EPI (cinto de amarração), que possui partes de metal, com
peso aproximado de 1kg. Recebe uma pequena vibração, decorrente da ação do
motor do equipamento. Parte fundamental na gesticulação do ato de pintar.

 Braço e antebraço: não sofrem ação de carga decorrente do uso do


equipamento, porém são fundamentais na gesticulação do ato de pintar.
Recebem pequena vibração, decorrente da ação do motor do equipamento.

 Mão: acionamento da central de comando. Recebe pequena vibração,


decorrente da ação do motor do equipamento. Parte fundamental na
gesticulação do ato de pintar. Manuseio de todas as ferramentas (peso máximo
aproximado de 2kg).

 Coxa: parte utilizada no afastamento do profissional da superfície a ser


trabalhada, mesmo que seja pouco solicitada. Parte fundamental para a
estabilidade do profissional. Recebe pequena vibração, decorrente da ação do
motor do equipamento.

 Perna: parte utilizada no afastamento do profissional da superfície a ser


trabalhada, mesmo que seja pouco solicitada. Parte fundamental para a
estabilidade do profissional. Recebe pequena vibração, decorrente da ação do
motor do equipamento.

 Pé: parte utilizada no afastamento do profissional da superfície a ser trabalhada,


mesmo que seja pouco solicitada. Parte fundamental para a estabilidade do
profissional. Recebe pequena vibração, decorrente da ação do motor do
equipamento.

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 Quadril: recebe o peso do corpo da parte superior, bem como dos


equipamentos utilizados para a execução do serviço e o EPI, e transfere para a
cadeirinha. Pelo fato de o operário trabalhar sentado, essa é a parte do corpo
que mais está sujeita a carga, carga do peso próprio, na sua grande maioria.
Recebe pequena vibração, decorrente da ação do motor do equipamento.

 Coluna: pela configuração geral do equipamento, bem como da tarefa a ser


desenvolvida, a coluna acaba sendo bastante solicitada, recebendo as cargas da
postura das partes do corpo citadas anteriormente. Parte fundamental para a
estabilidade do profissional. Recebe pequena vibração, decorrente da ação do
motor do equipamento.

3.2.3 Definição da carga

Para cada partes do corpo será definido a intensidade, frequência e tempo. Seguem as
devidas classificações:

 Ombro: média intensidade (EPI mais a execução do serviço), frequência diária


(de segunda-feira a sexta-feira) por aproximadamente 6 horas.

 Braço: média intensidade (execução do serviço, movimentos repetitivos),


frequência diária (de segunda-feira a sexta-feira) por aproximadamente 6 horas.

 Antebraço: média intensidade (execução do serviço, movimentos repetitivos),


frequência diária (de segunda-feira a sexta-feira) por aproximadamente 6 horas.

 Mão: alta intensidade (execução do serviço, movimentos repetitivos, manuseio


das ferramentas), frequência diária (de segunda-feira a sexta-feira) por
aproximadamente 6 horas.

 Coxa: baixa intensidade (pouco solicitada no afastamento da parede,


fundamental para a estabilidade), frequência diária (de segunda-feira a sexta-
feira) por aproximadamente 6 horas.

 Perna: baixa intensidade (pouco solicitada no afastamento da parede,


fundamental para a estabilidade), frequência diária (de segunda-feira a sexta-
feira) por aproximadamente 6 horas.

Laborare. Ano VI, Número 10, Jan-Jun/2023, pp. 41-56. ISSN 2595-847X. https://revistalaborare.org/
DOI: https://doi.org/10.33637/2595-847x.2023-191
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Análise ergonômica da pintura de fachadas com o uso do balancim individual elétrico

 Pé: baixa intensidade (pouco solicitada no afastamento da parede, fundamental


para a estabilidade), frequência diária (de segunda-feira a sexta-feira) por
aproximadamente 6 horas.

 Quadril: alta intensidade (recebe o peso da parte superior do corpo e EPIs e


distribui para o equipamento, operário trabalha sentado), frequência diária (de
segunda-feira a sexta-feira) por aproximadamente 6 horas.

 Coluna: alta intensidade (recebe as cargas da postura das partes do corpo),


frequência diária (de segunda-feira a sexta-feira) por aproximadamente 8 horas.

3.2.4 Classificação das medidas

Neste tópico serão classificadas as medidas em estática ou dinâmica, analisando o


emprego de cada uma das partes. Serão expostas as partes do corpo, para que possam
ser feitas das devidas classificações.

 Ombro: dinâmica (requisitado no ato de pintar).

 Braço: dinâmica (requisitado no ato de pintar).

 Antebraço: dinâmica (requisitado no ato de pintar).

 Mão: dinâmica (requisitado no ato de pintar).

 Coxa: estática (é praticamente não solicitada, visto que apenas auxilia no


afastamento da parede, bem como na estabilidade do corpo).

 Perna: estática (é praticamente não solicitada, visto que apenas auxilia no


afastamento da parede, bem como na estabilidade do corpo).

 Pé: estática (é praticamente não solicitada, visto que apenas auxilia no


afastamento da parede, bem como na estabilidade do corpo).

 Quadril: estática (apesar de ser bastante solicitada através das cargas, não
executa nenhum movimento no desenvolvimento das tarefas).

 Coluna: estática (apesar de ser bastante solicitada, não executa movimento no


desenvolvimento das tarefas).

Laborare. Ano VI, Número 10, Jan-Jun/2023, pp. 41-56. ISSN 2595-847X. https://revistalaborare.org/
DOI: https://doi.org/10.33637/2595-847x.2023-191
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Matheus Schaun Caetano / Alessandra Buss Tessaro / Liliane Ferreira Gomes /
Flávia Costa de Mattos / Jorge Luiz Oleinik Nunes / Jorge Luiz Saes Bandeira

3.2.5 Postura

A postura é algo que deve ser considerado em todos os aspectos, tanto no uso do
equipamento em questão, como no serviço a ser executado, devido a sua importância
e as consequências que a ausência dela pode trazer ao corpo do operário. A postura
não é ditada apenas pela coluna vertebral. Ela também influencia a posição dos
braços, pernas e cabeça durante as atividades diárias. Dormir, trabalhar, caminhar,
assistir televisão, ler, dirigir, usar o computador e limpar a casa movimentando-se de
forma errada leva a desvios nas articulações e desequilíbrios entre os músculos,
causando tendinites, bursites, lombalgias e outras alterações crônicas no corpo
(GONÇALVES, 2020).

A seguir serão expostas as partes do corpo, para que possam ser feitas as devidas
ponderações no quesito postura:

 Ombro: no tocante ao manuseio do equipamento, não será uma parte do corpo


muito exigida. No desenvolver do serviço, será mais solicitado, devendo-se
manter alinhado um com o outro, dentro do possível e evitar esforço de
“esticar” para alcançar uma região mais difícil (nesse caso, subir ou descer o
equipamento e utilizar o extensor, caso ainda não resolva, deve-se instalar o
equipamento em outra posição a fim de poder realizar o serviço).

 Braço: no manuseio do equipamento, não será uma parte do corpo muito


exigida, visto que a central de comando está dentro do alcance do braço e
antebraço. Deve-se manter o braço levemente inclinado para frente, para a
execução do serviço, fazendo leves movimentos de vai e vem, para favorecer a
correta posição dos ombros. Deve-se evitar o esforço de “esticar” para alcançar
uma região (movimentar o equipamento e utilizar o extensor e, caso não seja
resolvido, montar em outra posição).

 Antebraço: muito semelhante ao braço. Pouco exigido no manuseio do


equipamento. Manter o braço inclinado para frente, fazendo leves movimentos de vai
e vem, para favorecer a correta posição dos ombros. Evitar o esforço de “esticar”.

 Mão: evitar a rotação do punho (quando fizer algum movimento, buscar o


acionamento do ombro, braço e antebraço). Fazer leves movimentos de vai e vem.

Laborare. Ano VI, Número 10, Jan-Jun/2023, pp. 41-56. ISSN 2595-847X. https://revistalaborare.org/
DOI: https://doi.org/10.33637/2595-847x.2023-191
53
Análise ergonômica da pintura de fachadas com o uso do balancim individual elétrico

 Coxa: não exigida no manuseio do equipamento, somente no afastamento da


superfície da parede. Mantê-las paralelas dentro da medida do possível, pois
favorece na posição correta da coluna.

 Perna: muito semelhante à coxa. Não exigida no manuseio do equipamento.


Mantê-las paralelas dentro do possível, para favorecer a posição correta da coluna.

 Pé: não exigido no manuseio do equipamento. Mantê-los paralelos dentro do


possível, para favorecer a posição correta da coluna.

 Quadril: não exigido no manuseio do equipamento. Manter o mais próximo do


encosto, a fim de favorecer a posição correta da coluna. Distribuir o peso do
corpo de forma igualitária para ambas as nádegas, de forma a não exigir mais de
uma que de outra.

 Coluna: não exigida no manuseio do equipamento. Mantê-la o mais ereta


possível, para não acarretar problemas futuros na coluna. Para que a correta
posição da coluna seja de fato executada, o equipamento deveria ter um encosto
para toda as costas, como antes exposto.

3.2.6 Faixa etária

O equipamento possui características que permitem a operação por pessoas de


diferentes idades, visto que não é feito esforço físico para a movimentação do
balancim. É importante considerar que o operário seja alguém consciente de suas ações
e com as devidas orientações técnicas, pois o serviço será feito em considerável altura.

Por envolver serviço de pintura, com movimentos repetitivos, não é prudente para
pessoas com idade avançada (mais de 45 - 50 anos de idade), considerando que as
articulações estão mais gastas, podendo a execução do serviço trazer à tona problemas
de saúde, não por conta do equipamento utilizado, mas sim pelo serviço executado.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Construção Civil difere dos demais setores da indústria pela variabilidade das
condições de trabalho. A execução de serviços externos em fachada de prédios, além
dos riscos normais de um trabalho em altura, também apresenta os danos à saúde
atribuídos ao setor da construção civil, como lesões na coluna e no pescoço e em
membros inferiores.

Laborare. Ano VI, Número 10, Jan-Jun/2023, pp. 41-56. ISSN 2595-847X. https://revistalaborare.org/
DOI: https://doi.org/10.33637/2595-847x.2023-191
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Matheus Schaun Caetano / Alessandra Buss Tessaro / Liliane Ferreira Gomes /
Flávia Costa de Mattos / Jorge Luiz Oleinik Nunes / Jorge Luiz Saes Bandeira

O local de trabalho necessita de ajustes. Estes ajustes oscilam entre modificações de


equipamentos, modificações na equipe num nível de intervenção de média
complexidade e principalmente uma mudança de cultura nas empresas em geral.

Para as empresas da Construção Civil, recomenda-se uma política de boas práticas de


segurança do trabalho em altura, que consista na contratação de projetos
arquitetônicos e complementares que valorizem métodos e processos construtivos
voltados à segurança e saúde do trabalhador, a manutenção periódica dos
equipamentos de proteção, em especial os usados para os serviços em altura nas
fachadas, devido ao risco constante de queda e manutenção das proteções coletivas.
Todas essas sugestões poderão influenciar num melhor desempenho na produção da
obra e consequentemente uma melhoria na saúde dos trabalhadores.

REFERÊNCIAS

AMADIO, A. C. SERRÃO, J. C. A Biomecânica em Educação Física e Esporte.


Revista Brasileira de Educação Física e Esporte. São Paulo. v. 25. n. esp. p.15-24.
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AÑES, C. R. R. A antropometria e sua aplicação na ergonomia. Revista Brasileira
de Cineantropometria & Desempenho Humano. Curitiba. v.03. n.01. p.102-108.
2001.
BARBOSA, M. A. P. Análise dos serviços de manutenção de máquinas e
equipamentos a partir de uma abordagem ergonômica. Dissertação. Universidade
Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2000.
DIN. DIN-33402. Human Body Dimensions: Values. Berlin, DIN, 1981.
GONÇALVES, X. A. Fisioterapia e cuidados com a postura. Secretaria Municipal
de Saúde de Tijucas. Centro Municipal de Promoção a Saúde. p.1. 2015. Disponível
em: <http://www.tijucas.sc.gov.br/conteudo/site_paginas/32/a-importancia-da-boa-
postura.pdf>. Acesso em: 11 abr. 2020.
IIDA, Í. Ergonomia projeto e produção. São Paulo: Edgar Blucher, 2005. 614p.
MARCONI, M. A.; LAKATOS, E. Técnicas de pesquisa. 5. ed. São Paulo: Atlas,
2002.
OLIVEIRA, P. A. B. Ergonomia. In: CATTANI, A. D. (Org.). Trabalho e
tecnologia: dicionário crítico. Petrópolis/ Porto Alegre: Vozes/Editora da
Universidade, 2002.

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Análise ergonômica da pintura de fachadas com o uso do balancim individual elétrico

SENAI-RS. Centro Nacional de Tecnologias Limpas. Série Manuais de Produção


mais Limpa. Questões Ambientais e Produção mais Limpa. Porto Alegre, 2003.
VIDAL, Mario Cesar. Introdução a Ergonomia. Curso de Especialização em
Ergonomia Contemporânea do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2008.
VILLAR, F. H. R. Alternativas de sistemas construtivos para condomínios
residenciais horizontais – estudo de caso. (Dissertação) Universidade Federal de São
Carlos. São Carlos, 2005.

Data de submissão: 18/10/2022


Data de aprovação: 10/02/2023

Este trabalho está licenciado sob uma licença Creative Commons Attribution-
NonCommercial-ShareAlike 4.0 International License.

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O TRABALHO EM PLATAFORMAS DIGITAIS NO BRASIL

Entrevista com Abel Santos:


a luta dos entregadores de aplicativos no DF
Interview with Abel Santos:
The struggle of app delivery people in DF, Brazil

Ricardo Festi
Professor do Departamento de Sociologia (SOL) e do Programa de
Pós-graduação em Sociologia (PPGSOL) da Universidade de
Brasília (UnB). http://lattes.cnpq.br/2554127568377372 /
https://orcid.org/0000-0001-6360-2875

Pedro Burity Borges


Graduado em Ciência Política na Universidade de Brasília, com estudos
nas áreas de Direito à Cidade e Plataformas Digitais. Membro do grupo
de pesquisa Mundo do Trabalho e Teoria Social.

Nicolas Eyck van Dyck Araújo de Oliveira


Mestrando em Psicologia pela Universidade de Coimbra, Portugal.

Em meio a uma das piores crises sanitárias da história moderna, os entregadores por
aplicativos emergiram como um emblema do cuidado e do sacrifício, trabalhando em
sua linha de frente. Concomitantemente, porém, tornam-se um expoente do trabalho
precarizado, perigoso e incerto, sobretudo após o clímax da pandemia de COVID-19,
a divulgação das precárias condições laborais e a exígua remuneração, que, somados
à vulnerabilidade e ao desamparo, foram o mote para as grandes manifestações que
promoveram a partir de 2020 no Brasil e fora dele.

Abel Santos, entregador motofretista, membro fundador da Associação dos Motoboys


Autônomos e Entregadores do Distrito Federal (AMAE-DF) e, mais recentemente, da
Associação dos Trabalhadores por Aplicativo e Motociclistas do Distrito Federal e
Entorno (ATAM-DF), se tornou um nome conhecido nos círculos de debate e
reivindicação por melhores condições de trabalho para sua categoria profissional.
Líder atuante, consolidou-se como um personagem importante à compreensão do

Laborare. Ano VI, Número 10, Jan-Jun/2023, pp. 57-78. ISSN 2595-847X. https://revistalaborare.org/
DOI: https://doi.org/10.33637/2595-847x.2023-195
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Entrevista com Abel Santos: a luta dos entregadores de aplicativos no DF

percurso histórico, da organização do trabalho e das estratégias utilizadas pelos


entregadores para garantir sua saúde, voz e direitos.

É nesse âmbito que o presente artigo veicula excertos de duas entrevistas realizadas em
distintas ocasiões pelo Grupo de Pesquisa Mundo do Trabalho e Teoria Social da UnB:
a primeira, em 20 de novembro de 2020, perfaz uma breve apresentação sobre a vida
pessoal de Abel, a estruturação da AMAE-DF, a organização dos Breques dos Apps e a
articulação da categoria para a ação coletiva. Já a segunda, realizada em 16 de agosto
de 2021, percorre os meandros da elaboração e fundação da ATAM-DF. Ambas
lançam luz sobre a trajetória do trabalho e dos trabalhadores mediados por plataformas
digitais no Distrito Federal e no Brasil, enriquecendo a compreensão e munindo o
debate crítico acerca da evolução do emblemático ofício de entregador por aplicativo1.

***

ENTREVISTA DE 20 DE NOVEMBRO DE 2020

Entrevistadores: Abel, você poderia nos contar um pouco sobre a sua trajetória de
vida. Onde você nasceu, onde cresceu, quem foram seus pais, sua formação
educacional, trabalhos...

Abel Santos: Eu nasci em 1991, em Taguatinga, Distrito Federal. Fiz graduação na


UNIP, em Recursos Humanos. E estou finalizando [em 2020] minha segunda
graduação, em administração no IESB [Instituto de Ensino Superior de Brasília]. Sou
pós-graduado em Gestão de Pessoas. Trabalhei na iFood, na 99Food e na Bardy. Minha
companheira é formada em gestão também e trabalha com estética. Temos dois filhos
juntos e moramos no Recanto das Emas, também no DF. Minha mãe era empregada
doméstica e, meu pai, eu não conheci. Sei que meu pai é do Ceará. Minha mãe veio do
Piauí pra cá pra trabalhar, em 1960, conheceu ele e gerou a minha pessoa, que nasceu e
foi criada em Brasília. Minha mãe sempre trabalhou com limpeza, sempre foi
empregada doméstica. Teve meu irmão, de outro pai que veio também do Piauí. Meu
pai, eu nunca tive contato, nunca tive convivência, abandonou minha mãe quando ela
ainda estava grávida de mim. Sempre quem [me] cuidou e criou foi minha mãe. A
gente morou em Samambaia, e, com 7 anos, eu mudei pro Recanto e desde então eu tô
aqui. Tem 20 anos que eu moro no Recanto, né? E eu fui crescido aqui, periferia.
Recanto das Emas antes era bem precário em relação a tudo, hoje tá desenvolvendo
mais, isso porque eu faço parte de uma liderança comunitária aqui do Recanto, onde a
gente cobra pelo menos o básico que o Estado deveria atender: educação, segurança,

1 As entrevistas duraram, respectivamente, 1h18’ e 47’, sendo que esta publicação é uma seleção das partes
consideradas as mais relevantes para os/as leitores/as.

Laborare. Ano VI, Número 10, Jan-Jun/2023, pp. 57-78. ISSN 2595-847X. https://revistalaborare.org/
DOI: https://doi.org/10.33637/2595-847x.2023-195
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Ricardo Festi / Pedro Burity Borges / Nicolas Eyck van Dyck Araújo de Oliveira

saúde, moradia, transporte público. Então, a gente tá sempre na luta, tanto aqui pela
cidade quanto pela categoria. Eu vim me tornar motoboy há 10 anos, em 2010 pra
2011. Quando eu fiz meus 18 anos, tirei minha habilitação e iniciei a minha faculdade.
Aí, pra pagar minha faculdade, eu já trabalhava de carteira assinada como motoboy,
entregador. Aí a gente fazia entrega de ofício, recolhimento de documento, entrega de
cartão, de convite, tudo aquilo que envolvesse com papel era o trabalho que a empresa
prestava na época. Desde então, eu nunca saí desse segmento. Quando não era
motoboy, fui motorista de Uber. Quando o Uber precarizou de forma extrema, surgiu o
iFood, e aí a gente já foi migrando, porque pagava mais. E, hoje, a gente vive a
precarização nas duas vertentes, tanto motorista quanto entregador. Aí hoje trabalho só
no iFood, no caso, tô lutando pra terminar essa segunda graduação, bacharel em
Administração, pra poder tentar seguir essa linha, de administrar, gerir pessoas,
planejamento estratégico, plano e projeto. Aqui, no Recanto, também tem um instituto,
Instituto Rueira, que a gente cuida de crianças e jovens dos 9 até os 21 anos, e aí com o
instituto a gente tenta cobrar o Estado dessas questões básicas, né? Então eu tô sempre
envolvido em alguma luta, né? Se não é pela cidade, é pelos entregadores. E esse é o
resumo da vida, né?

Entrevistadores: E você sempre trabalhou aí no Recanto das Emas? Como entregador, ou...

Abel Santos: Não, no caso, aqui em Brasília onde dá dinheiro é o Plano Piloto. Asa
Sul, [Asa] Norte, Sudoeste, Cruzeiro, Plano Piloto, ali do centro do que é Brasília. E
Águas Claras, que é uma cidade que tem um poder econômico muito alto. Então
sempre que, tanto como motorista, quanto como entregador de aplicativo, a gente
sempre busca trabalhar nessas mediações, sempre ali no centro de Brasília. As
“satélites”, como a gente chama aqui, que são as cidades periféricas, elas não são
boas de trabalhar nem com a vertente motorista, [pois a] insegurança [é] muito alta e
[há o] risco de assalto – tanto que eu sofri um e, por isso que eu saí dessa parte de
motorista de aplicativo –, nem como entregador, que não tem demanda. Nas cidades
satélites é mais lucrativo pro restaurante ter o seu entregador fixo do que trabalhar
com os entregadores do aplicativo. Porque ali ele vai pagar só aquela demanda dele, e
se fosse pra ter o aplicativo, como o aplicativo cobra de 25% a 33% da parte bruta
que o restaurante vende, não compensa pro restaurante. Usando o entregador do
aplicativo fica mais caro do que ele pagar um entregador ali na diária pra ele pagar as
taxas das entregas que ele for fazendo. Porque ele é micro, né? Ele é uma pequena
empresa, então ele não dá conta de sustentar um aplicativo da forma que lá no Plano,
uma Asa Norte da vida, que tem um poder econômico muito maior. Eles conseguem
pagar tranquilamente e ter um retorno de forma que eles conseguem obter lucro, né?

Entrevistadores: Então como você trabalha nas partes mais centrais, você leva quanto
tempo pra chegar ao trabalho?
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Entrevista com Abel Santos: a luta dos entregadores de aplicativos no DF

Abel Santos: De moto, como a gente não se prende a engarrafamento, é cerca de 30


minutos. Mas na época que eu usava o carro, chegava até 40 minutos, dependendo do
engarrafamento.

Entrevistadores: Vou entrar um pouco na questão da luta política. Queríamos saber se


você também se engajou ou está engajado em outras lutas. Você já nos citou pelo
menos duas, envolvendo bairro, a questão das crianças. O que te motivou a começar a
se engajar politicamente nessas lutas?

Abel Santos: Aqui, no Recanto, como eu tive a minha infância aqui, né? Estudei toda
a parte do meu Ensino Fundamental, Médio, infelizmente 80% dos meus colegas que
eu tive esse contato na época de escola ou estão mortos ou estão presos, devido ao
envolvimento com o tráfico de drogas, com a criminalidade da região... E aqui teve
uma guerra muito sangrenta na minha adolescência que era uma quadra versus a
outra, e eu morei numa dessas quadras, a 804, que tinha uma guerra muito grande
com a 802, 803. E aí eu vi muitos amigos morrerem no meio dessa guerra e, às vezes,
sem ter feito nada, né? Não por ser vítima, mas porque se envolveram com a pessoa
errada. E aí, tava na hora, um lado veio matar aquela pessoa, e ele tava junto e morreu
ali simplesmente por estar do lado daquela pessoa. E aí eu vi que o Recanto das
Emas, infelizmente, é esquecido pelas autoridades competentes, que poderiam estar
resolvendo muitos desses problemas, e, na medida que eu fui crescendo, fui me
envolvendo aos poucos com pessoas, lideranças dentro do Recanto que cuidavam de
reivindicar algumas melhorias. Ano passado, no final do ano, eu resolvi montar esse
instituto. Os amigos vizinhos de quadra que a gente jogava futsal, golzinho, a gente já
tinha esse nome, Rueira, que era o nome do nosso time. Então eu sentei com eles e
conversei sobre o instituto que eu queria montar para amparar as crianças, e todo
mundo concordou, e acabamos montando. Nessa trajetória de um ano, diversas
pessoas com competências acadêmicas que conhecemos resolveram somar, dando seu
trabalho voluntário a isso. E desde que eu comecei nisso, a gente já teve muitos
resultados dentro do Recanto das Emas, de amparo a mulheres que sofreram
violências domésticas, de amparo às próprias crianças com professores que estão
disponíveis a dar reforço escolar, pra inserir ali os direitos básicos, antropologia,
filosofia pra essas crianças, a parte da cultura, que nós já temos duas grandes pessoas
que estão desenvolvendo projetos pra combater o racismo, a homofobia, a questão de
promover o respeito entre essas crianças. E o objetivo do Instituto hoje é poder
construir nessas crianças um cidadão crítico pensante, respeitador e tolerante, em
questão dele viver dentro da sociedade. Eu acho que, como a gente ajudou muito
nessa parte da pandemia em ajudar as famílias dessas crianças, que muitas dessas
passam fome, a gente tem um reconhecimento grande, um agradecimento, as famílias
procuram para parabenizar e isso é um retorno muito satisfatório. Com os
entregadores não foi muito diferente. Eu sempre tava envolvido nas manifestações, eu
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Ricardo Festi / Pedro Burity Borges / Nicolas Eyck van Dyck Araújo de Oliveira

sempre quis tá ali, sabendo o que tava acontecendo em relação às leis que regem o
trabalho. Quando os aplicativos chegaram, cercando o mercado, a gente viu que tinha
uma necessidade de regulamentação, mas a primeiro momento, como eles estavam
pagando muito bem, fazendo aquele chamariz financeiro muito forte, não se teve
nenhum tipo de atenção em relação a isso, mas já era visto que se iria precisar num
futuro bem próximo. E aí chegou antes do que qualquer entregador esperava, porque
a Uber começou a precarizar, se tornar inviável em 5 anos, no caso de motorista de
aplicativo. Já os entregadores não, foi coisa de 2 anos. [Em] 2 anos a precarização já
começou, e nesse último ano que foi onde ela se intensificou e demonstrou que não
tem nenhum tipo de condição de você trabalhar por essa nova relação de trabalho.
Então só veio se intensificando essa necessidade de regulamentação, de
reconhecimento trabalhista, de a gente ter algum tipo de lei que traga um seguro pra
pelo menos as necessidades básicas do trabalhador que tem essa relação de trabalho.
Me envolvi nisso há 3 anos atrás com alguns amigos, mas não teve um desencadeio
forte como teve agora. No ano passado, mais ou menos no meio do ano, se teve dois
fatos atípicos no DF. Um fato foi a discriminação racial e questão de classe de um
entregador com uma cliente em Águas Claras, onde a gente foi pras ruas reivindicar,
e o outro foi uma agressão de um Policial Militar a um entregador em Taguatinga, e
nós também fomos pras ruas reivindicar. E essas duas foram um marco. Eu realmente
vi que queria estar lá dentro, brigando pela categoria. Desde então, veio a ideia de
formar associação, teve a parceria com outros entregadores que também tinham a
mesma finalidade, então nós nos unimos e criamos a AMAE-DF, que hoje estamos
engajados pra poder lutar por esses direitos básicos pra categoria.

Entrevistadores: Então o processo de organização da AMAE-DF começa por esses


dois conflitos, que reuniram pessoas, isso foi em 2018?

Abel Santos: Foi no início de 2019 no caso, né? E aí esses dois ocorridos marcaram
pra mim: aquele grupo de entregadores estavam no momento da presença, como eu
me destaquei pra cobrar ali, aquele grupo meio que me reconheceu como liderança, e
teve o início. Daquela trajetória pra cá, no início desse ano, em janeiro, nós tivemos
uma manifestação em frente ao Palácio do Buriti, que é a casa do governador, pra
reivindicar algumas questões em relação à representatividade dos entregadores, e nós
fomos recebidos pelo Secretário de Comunicações dele, o Cajazeiras, e no que foi
discutido dentro da pauta, nós vimos a necessidade da AMAE-DF, porque o sindicato
e a cooperativa não estavam tendo representatividade, eles não estavam buscando
pelos anseios da categoria de entregadores em si. Eles estavam ali tentando trazer pra
eles o direito de representar essa nova categoria pra que eles pudessem crescer em
cima dessa nova vertente. Então não era isso que a gente queria. Nós, daquele grupo
que estava nessa manifestação no início desse ano, vimos a necessidade dessa
associação. Aí pouco tempo depois, no início de fevereiro, foi uma manifestação mais
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Entrevista com Abel Santos: a luta dos entregadores de aplicativos no DF

específica, contra o aplicativo da Loggi em específico. Aqui, em Brasília, eles


trabalham da mesma forma que eu creio que é em São Paulo e que é no Rio de
Janeiro, aquele galpão que destina pros entregadores em geral fazer as entregas em
determinados lugares. Eles [os entregadores] saem com sacas e, ao finalizar a rota,
eles voltam pra pegar outra saca. Nisso, eles estavam reivindicando por conta do
valor da saca que tinha diminuído bastante. Continuava a mesma rota, mas pagando
menos na saca. Então se teve essa manifestação, e quem estava à frente da
manifestação era o Alessandro Sorriso, hoje o presidente da AMAE-DF. Então ele
teve um bom contato com os entregadores da Loggi, pouco tempo depois eu o
conheci. Eu já tava com essa ideia de montar a associação, ele compactuou da ideia, e
a gente alinhou ali os pensamentos e começou a batalhar pra construir o estatuto, pra
poder formalizar, pra poder ter a AMAE-DF. Aí veio a pandemia, teve uma
dificuldade muito maior. Nós tivemos um escritório de advocacia que apoiou, e aí a
gente conseguiu constituir a AMAE-DF. Aí ela foi constituída realmente em julho
deste ano, de 2020. Então, só temos aí 4 meses de atuação de forma, de
reconhecimento do Estado como instituição, né? E aí nós já conquistamos muitas
coisas, mas devido ao trabalho que sempre foi feito voltado pra categoria em si, não
pra inflar ego ou pra ganho pessoal. Sempre foi buscando o melhor pra categoria.

Entrevistadores: Muito interessante, deixa eu só entender alguns detalhes desse


percurso. Essas diversas manifestações fizeram com que as pessoas se
conhecessem. A organização dessas manifestações era espontânea? Era algo que
surgia ali do coletivo dos trabalhadores, utilizando pra se organizar o Whatsapp?
Como que foi a comunicação entre vocês?

Abel Santos: Foi mais assim: foi uma época que os aplicativos não tinham tanta
disseminação, que foi antes da pandemia, né? Realmente o aplicativo cresceu e
disseminou entre os restaurantes na pandemia, porque eles tinham a necessidade de
vender à distância, mas, na época, não. Eram mais restaurantes de grande porte,
McDonald’s, os shoppings, que tinham aquela concentração de lanchonete, alguns
restaurantes como a gente tem aqui, Potiguar Caldos, Rei do Camarão, Xique Xique.
São restaurantes já grandes e que viram que essa oportunidade era boa pra se ter um
ganho, né? E aí a gente meio que se concentrava sempre próximos desses
restaurantes. O próprio trabalhador, nós firmamos alguns pontos pra que pudéssemos
esperar aquela chamada [demanda do aplicativo] ali em conjunto, até mesmo pra
fazer a prevenção de um possível roubo. Às vezes, porque um levava um café, o outro
levava um pão de queijo, aí um levava uma garrafa d’água, entendeu? Era próximo de
algum restaurante que deixava a gente usar o banheiro, tomar uma água. E aí tinham
aquelas concentrações, né? Que eram os pontos que nós mesmos determinávamos na
cidade, que era pra fazer aquela espera mediante onde você estivesse pra trabalhar. E
ali a gente começava a conversar um com o outro, trocar aquela ideia, passar pra ele o
Laborare. Ano VI, Número 10, Jan-Jun/2023, pp. 57-78. ISSN 2595-847X. https://revistalaborare.org/
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Ricardo Festi / Pedro Burity Borges / Nicolas Eyck van Dyck Araújo de Oliveira

que era necessário. Formavam-se grupos que até hoje existem. Tem um grupo de
Whatsapp que é o “Acelerados da 405”, porque o pessoal se reunia na 405 Sul. Tem o
pessoal que se reúne no Terraço (Shopping), aí tem o grupo lá do Terraço. Então,
tanto que quando sai pra trabalhar, a gente manda no grupo “Como é que tá hoje?”, aí
o pessoal acaba respondendo: “Hoje tá fraco, só fiz dois pedidos”, “hoje tá bom,
corre”, e tal. E aí foi se formando esses grupos, e na medida do tempo, eu me via em
80% dos grupos de Brasília. Pessoal me colocava nos grupos e acabava direcionando
essa responsabilidade de organizar manifestação, ponto de encontro, conversar com
Secretaria de Segurança Pública, fazer os pedidos informativos pra mim. E aí a gente
começou a fazer essas manifestações dessa forma. Aquele grupo que era mais cabeça
falava: “vamos fazer tal dia, tal hora em tal lugar”. E aí a gente mandava nos grupos.
Na hora que ia trabalhar, saía falando pro pessoal “tal dia, tal hora e tal lugar vai ter
manifestação, a gente vai tentar reivindicar isso, isso e aquilo, então vamos pra luta”.
Então, quando o Sorriso chegou, que ele também fazia parte de mais de 80% dos
grupos do DF, só se intensificou mais. [Por]Que aí eu divulgava, ele divulgava, o
pessoal que me seguia já estava divulgando, o pessoal que seguia ele já estava
divulgando, e, quando a gente via, já tinha uma grande massa mobilizada pra fazer as
manifestações. A princípio foi bem espontâneo mesmo. Às vezes, vinha um anseio da
própria categoria em pedir manifestação, em pedir uma luta por determinada causa, e
aí de acordo com o que foi desenvolvendo, passando o tempo, que a gente foi
realmente estruturando essa entidade pra poder estar sempre à frente e começar a
criar conteúdo pra que os entregadores acordem, pra que os entregadores vejam que
[a realidade] não é dessa forma que os aplicativos divulgam, e tudo mais. Então a
gente conseguiu fazer uma referência pro pessoal na hora de buscar orientação e até
mesmo na hora de a gente fazer algum tipo de reivindicação.

Entrevistadores: Só um detalhe também, essa divulgação, ela era por Whatsapp ou


Instagram? Você falou o pessoal que te segue, né.

Abel Santos: É, a gente fala “segue” porque é aquele cara que tem mais ou menos o
mesmo pensamento, mas tudo iniciou no Whastapp mesmo, né? Que tinha ali uma
capacidade de alcance maior. O Instagram só surgiu quando veio a AMAE-DF, né?
Que aí a gente dissemina algumas coisas no Instagram. Mas nós vimos que, se eu
quiser atingir o entregador, é o Whatsapp. O Instagram não tem o efeito de atingir o
entregador, né? Agora, o Instagram dá uma visibilidade pra UnB, que acaba
conhecendo, pra desembargadores, pro pessoal do MP, pra político, pra parlamentar,
essas coisas assim. E aí a gente consegue uma visibilidade, e eles acabam procurando
quem tem interesse de ajudar na luta, né? Agora, pra você conversar com os
entregadores, tem que ser Whatsapp, é só Whatsapp.

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Entrevista com Abel Santos: a luta dos entregadores de aplicativos no DF

Entrevistadores: Abel, pelo que tu falaste, eu entendi que foi pra você um processo
muito natural de ir se colocando como uma liderança nesse processo. E aí, sobre o
que tu estavas falando agora, eu queria perguntar se para os outros entregadores foi
um processo de adesão fácil, foi um processo rápido. Como é que foi esse processo
dos outros para aderir à AMAE-DF?

Abel Santos: No caso, quando era só a minha pessoa, vamos dizer, né? Quando eu
mesmo usava só a minha cara, só o meu nome, e a gente estava ali no meio do bolo
doido gritando, era uma coisa mais fácil de adesão, porque a gente tinha aqueles
grupos, né? Como se fossem aquelas panelas que tivessem mais ou menos o mesmo
pensamento. E fazia aquela união daquelas panelinhas ali e ia reivindicar. E aí o Sorriso
veio. Ele alinhou ali os pensamentos, ele tinha a panela dele. Só que não tem só a gente
nesse meio, nesse cenário, e nós, eu mesmo junto com o Sorriso, nosso objetivo com a
AMAE sempre foi ajudar os entregadores, porque meu irmão é entregador, eu tenho
amigos que são entregadores, amigos que cresceram comigo de infância, então eu
quero ver as pessoas bem, tendo ali um retorno bacana. Da parte dele, [é] da mesma
forma. Só que, infelizmente, quando se cria uma associação, essa parte política ela
meio que vem obrigatória, meio que vem junto. A colocação política dentro da
sociedade em relação àquela categoria em específico, ela surge naturalmente. E aí nós
nos tornamos inimigos das outras entidades dentro do Distrito Federal que buscam
mais a questão política. O Sindicato dos Motoboys, a cooperativa, que é a
Coopermotos. Hoje eles têm mais essa atuação no Distrito Federal, que eles querem
fazer política. Nós não entramos com esse intuito. E aí nós começamos a ter inimigos, e
esses inimigos começaram... Por terem mais tempo, por ter contatos, uma base muito
mais sólida, do que a gente, [que] tá iniciando, esses inimigos se levantaram, eles
falaram contra a associação. Até hoje é assim. Se a gente divulga alguma coisa, eles
divulgam o contrário, eles batem contra. E os entregadores, querendo ou não, tem o
pessoal que é das antiga, né? Que é o pessoal que era motoboy, que tinha salário fixo,
que tinha ali o aluguel, que era CTPS, que hoje teve que passar pros aplicativos, mas
eles não gostam dessa nova dinâmica de aplicativo porque não tem segurança. E aí eles
querem que voltem ao que era antes, em relação à relação de trabalho. E aí eles apoiam
o sindicato, a Coopermotos, porque quem fundou o sindicato e a Coopermotos já são
50 anos, 40 anos dentro do DF, brigando por essa questão do motoboy. E aí nós
estamos com uma dificuldade de adesão muito grande em relação a isso, por mais que
nós estivéssemos alí, liderando o DF frente ao Breque, que foi uma movimentação
nacional. Hoje, eu, em particular, tenho reuniões periódicas com o IWGB [The
Independent Workers' Union of Great Britain], que é o sindicato dos entregadores em
Londres, e a gente fez ponte com a Guatemala, México, Argentina, Itália, e sempre
tamos aí à frente de buscar melhorias pra categoria. A AMAE-DF já tem uma Lei
Distrital aí, que é dos pontos de apoio, que foi pensada e construída junto com o
[deputado distrital] Fábio Félix, nós temos alguns outros pontos de reivindicação dentro
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Ricardo Festi / Pedro Burity Borges / Nicolas Eyck van Dyck Araújo de Oliveira

da Câmara Distrital, que é pra regulamentar a atividade. Os entregadores novos têm


facilidade de aderir à AMAE-DF, porque é um pensamento mais ou menos igual, mas
os entregadores que eram CTPS, mais antigos, estão mais ali alinhados com a
Sindimotos e a Coopermotos. E são dois inimigos que se uniram pra vir contra a
AMAE-DF. E aí a gente tem que lutar de uma forma que não seja contra eles, porque
não tem lógica a gente ficar nessa briga, né? Mas a gente tem que representar a
categoria perante o poder público, perante o Estado, de uma forma que vá abranger a
todos, e não só esse pessoal que nos abraça, mas que venha trazer o benefício pra todos,
então a gente acaba escutando todos. “Qual a sua reivindicação?”, “Qual a sua dor?”,
“Qual a sua necessidade?”, “Como a AMAE-DF pode estar ajudando?”, “No caso de
regulamentação, qual sua opinião?”, “O que que você acha que deveria ter na relação
de trabalho entre você e os aplicativos?”. A gente vai tentando construir algo que seja
de senso comum, porque o objetivo é ajudar a categoria, não é de ter um autobenefício
em relação à AMAE-DF.

Entrevistadores: Abel, como que é a dinâmica cotidiana da AMAE-DF? Vocês, para


conseguir, por exemplo, pensar a política, os próximos passos, vocês têm reunião,
têm assembleia, buscam fazer reunião nos locais onde os trabalhadores estão? Como
se dá essa dinâmica?

Abel Santos: Então, a dinâmica se limitou muito por conta da pandemia. Nós não
conseguimos fazer reuniões onde tivesse uma participação maior dos entregadores
por conta de aglomeração, mas nós tentamos fazer reuniões periódicas. Nós tentamos
fazer ali um corpo a corpo com os entregadores, até mesmo não só pra apresentar o
trabalho da AMAE-DF, mas também pra chamar os entregadores pra fazer parte
dessa luta, pra tá junto. Também buscamos tá demonstrando que não é só o motoboy,
mas também o bikeboy, que é o cara que entrega com bicicleta, o cara que entrega
com carro, independente do meio que ele usa pra fazer a entrega, ele é entregador. A
AMAE-DF tá pelos entregadores, não só pelo motoboy. Nós tentamos buscar, nós
buscamos que eles entendam isso e nós tentamos fazer com que eles tenham esse
pensamento e de virem somar, de fazer uma união. E aí nós temos as reuniões do
pessoal que é da diretoria, alguma coisa mais periódica para pensar estratégias de se
comunicar com todos os entregadores de forma geral, de como vamos apresentar
algum projeto ou alguma possível, que venha virar alguma possível PL pra ajudar os
entregadores, de uma forma que leve realmente a voz do entregador ao poder público.
Nós buscamos fazer essas reuniões estratégicas pra tentar dar a voz pro entregador. E
nós buscamos tá sempre ali, no meio dos entregadores, falando da AMAE-DF,
pedindo apoio, pedindo pra que eles venham somar na luta e tudo mais. Por mais que
seja difícil, a gente sabe que é o trabalho de formiguinha: se conquistou um, esse cara
conquista mais um, que conquista mais um, e assim a gente vai crescendo aos poucos.

Laborare. Ano VI, Número 10, Jan-Jun/2023, pp. 57-78. ISSN 2595-847X. https://revistalaborare.org/
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Entrevista com Abel Santos: a luta dos entregadores de aplicativos no DF

Entrevistadores: E vocês chegaram em algum momento a pensar na possibilidade de


criar, ao invés de uma associação, um sindicato?

Abel Santos: É, nós criamos, mas, meio que, dentro dos [núcleos dos] próprios
entregadores, essa palavra “sindicato” já cria uma aversão dos entregadores e,
principalmente, os que estão entrando agora. Aqui, no DF, o Sindimotos, quando
começou, que era outro presidente na época que chegou aqui em Brasília, teve uma
adesão muito grande. E aí o presidente responsável, na época, que eu não lembro o
nome agora, ele fez meio que uma campanha, que era para arrecadar fundos no meio
dos motoboys. E no final ele voltou para São Paulo com o dinheiro de todo mundo e
não teve respaldo algum pelo dinheiro empregado. Aí começou uma aversão. Depois,
esse novo presidente assumiu e tentou levantar. Aí o Sindimotos ajudou algumas
pessoas, mas não faz o trabalho que os entregadores esperam pra categoria em si. E aí
a gente viu que se a gente fosse constituir o sindicato para ter carta sindical, nós não
teríamos a mesma força nem contra as empresas, nem no meio dos entregadores que
nós temos hoje. Então nós [nos] desvinculamos [d]essa questão de sindicato. O que a
gente quer é ter uma central de organização desses trabalhadores, que eles possam ter
voz através da associação, mas que não seja algo que venha a prender o entregador,
que venha a cobrar o entregador, que queira alguma coisa em relação monetária do
entregador. A gente sabe que o reconhecimento por parte da categoria e essas
questões monetárias vêm com o bom trabalho. Querendo ou não, quando você é
associação, se nós desenvolvemos um bom trabalho com a categoria, vai ter empresa
querendo fazer parceria, vai vir órgão público querendo patrocinar projeto, pode vir
emenda parlamentar para patrocinar projeto que seja destinado aos entregadores, e
nisso o corpo que tem lá na frente tem algum tipo de ganho. Mas colocar esse ganho
nas costas do entregador nem é justo, porque muitos deles nem almoçam, nem tomam
café pra economizar e levar pra casa. Aí se for cobrar alguma coisa do entregador é
algo sem capacidade, porque a gente sabe que não tem como eu exigir que ele tire ali
50, 100 reais no mês pra destinar pra associação, sabendo que esses 50, 100 reais vão
fazer falta na alimentação da casa dele, pra pagar o aluguel, pra ele comer um café da
manhã, pra ele almoçar. Então a gente faz o trabalho buscando o reconhecimento da
categoria pra que a gente possa retornar ao entregador mais benefícios com as
empresas privadas, mais qualidade de vida com as parceiras públicas, que venham
trazer algum tipo de benefício em ação pra eles, e que isso vai acabar remunerando o
pessoal que tá à frente, de uma forma ou outra, entendeu?

Entrevistadores: Entendi. E nesse caso, você falou das atitudes dos sindicatos que
organizam os motoboys, os motofretistas. Mas também falou que têm constituído
uma relação com sindicatos internacionais. Como é que se dá isso? Há relação com
outros sindicatos aqui no Brasil? Vocês buscam partidos políticos, buscam
estabelecer essas parcerias?
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Ricardo Festi / Pedro Burity Borges / Nicolas Eyck van Dyck Araújo de Oliveira

Abel Santos: Bom, com partidos políticos não, porque a associação é apartidária. Nós
buscamos, no caso, estabelecer parcerias com o parlamentar em si, com o político em si.
Igual foi com o Fábio Félix [deputado distrital pelo PSOL]. Nós não abraçamos o PSOL
em si, como partido, mas nós abraçamos o deputado [distrital] Fábio Félix, como pessoa
física mesmo. Ele contribuiu, ele apresentou projeto, ele lutou pelo projeto. A AMAE-
DF deu o reconhecimento dessa luta para ele, porque foi mais que merecido, o cara
realmente é excelente. A AMAE-DF leva o nome dele com muito orgulho, porque nós
vemos nele um bom profissional no que ele faz, mas nós não abraçamos o partido
político em si. Em relação ao sindicato, no início, nós tivemos bem abertos, sempre
escutávamos a todos. Nós tivemos contato do sindicato de São Paulo [...]. Quando passou
a primeira luta, que foi o [dia] primeiro de julho, eles [sindicato de São Paulo] decidiram
se desvincular, até mesmo pra matar o movimento, e fizeram um movimento ali voltado
somente pra eles, usando o nome do movimento nacional, e não colou. Não se teve uma
adesão muito forte, eles não tiveram nenhum tipo de conquista em relação ao
movimento, ele [o presidente do sindicato de São Paulo] conseguiu uma reunião no TRT,
que não teve nenhum resultado. Enquanto isso, nós mesmos, que estávamos à frente do
movimento, nós tivemos reunião com o Rodrigo Maia, com frentes parlamentares dentro
da Câmara como o PSOL, o PT, o DEM, o MDB, o PP e outras bancadas pra mostrar o
que nós precisávamos, e tivemos a origem do PL 1665/2020 2, que hoje ainda tá na
Câmara lá em tramitação, mas a gente crê que vai ter um êxito pelo menos em alguns
pontos, que vão trazer benefício pra categoria. Essa luta ele [sindicato de São Paulo]
continuou do lado dele sozinho, e nós continuamos de forma conjunta até hoje, que nós
buscamos e brigamos até hoje. O sindicato de Londres, pelo que eu entendi, [pelo] que
foi explicado, eles funcionam mais como uma associação, que é aqui no Brasil, do que
com o sindicato brasileiro. Só que lá, eles têm que se formar como sindicato. E aí eles
têm uma representatividade, mas os pensamentos são bem alinhados com a AMAE-DF.
São mais ou menos as mesmas coisas. E, lá em Londres, 60% dos entregadores são
brasileiros. Eles têm uma dificuldade de comunicação com os brasileiros em Londres
porque a maioria desses brasileiros estão lá de uma forma irregular, sem o aval do país
para poder exercer uma atividade econômica e tudo mais. Então eles querem se
comunicar com esses entregadores para que eles ajudem com a luta deles lá, mas não
indo pra manifestação, e sim desligando o aplicativo, porque lá eles têm uma
conversação mais direta com a plataforma. O Estado, ele não intervém tanto. Eles não
têm como procurar o Estado pra poder brigar com as plataformas ou chegar a um meio
comum entre plataforma e entregador, como é aqui, como é o que a gente busca no
Brasil, né? Aqui é totalmente o contrário, nós não temos nenhum tipo de diálogo com as
empresas, nós buscamos o poder público para poder intervir nessa injustiça que está
acontecendo para que se tenha um equilíbrio entre entregador e empresa. Acaba que a
gente aprende muito com eles em relação de diálogo, em como fazer boicotes e atingir a
2 O Projeto de Lei nº 1.665/2020, de autoria do Deputado Federal Ivan Valente, foi aprovado como Lei nº
14.297/2022.

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Entrevista com Abel Santos: a luta dos entregadores de aplicativos no DF

empresa, de como se organizar pra dar prejuízo, pra que a empresa veja que os
entregadores não estão satisfeitos com a maneira atual. E nós passamos pra eles essa
questão de relação com o entregador pra tentar buscar que o entregador venha amparar a
luta, que, aqui no Brasil, é uma coisa mais fácil, [por] que a gente busca o poder público.
E aí a gente vai trocando essas experiências pra tentar alinhar os dois lados em relação
aos objetivos e tudo mais, pra tá conseguindo trilhar o caminho pra se alcançar o
objetivo, que é o mesmo: melhoria pra categoria.

Entrevistadores: Como vocês chegaram até eles? Como foi o contato com eles?

Abel Santos: Cara, eu tive um convite pessoal para participar de uma reunião com o
presidente e o vice-presidente do IWGB, que são os dois representantes. E através
dessa reunião que eu participei, tivemos uma troca de contatos onde ele entrou em
contato comigo e se colocou... Se demonstrou muito interessado no trabalho que
fizemos, que acabou tendo repercussão internacional. Daí a gente começou a ter
conversas periódicas pra trocar essas experiências, né? E aí até hoje a gente está com
essas conversas. Já saíram alguns projetos em comum, principalmente [o] de colocar
a AMAE-DF como uma representação dos entregadores brasileiros em Londres e [de]
trazer a IWGB pra dentro do Brasil, pra que eles possam mostrar que não é só o
Brasil que tem essas injustiças, mas pra que o entregador daqui entenda que isso é
uma questão mundial e que nós não estamos sozinhos, né? Nós podemos contar com
mais pessoas, mais personagens nessa história pra poder lutar pelos entregadores.

Entrevistadores: Interessante. E agora deixa eu mudar o assunto, né? A gente tem uma
curiosidade de saber como é que foi essa aproximação de vocês com o Fábio Félix.

Abel Santos: Então, o Fábio [Félix] já estava abraçando a categoria anteriormente da


minha pessoa ou do Sorriso conhecer ele. Ele já tinha algumas conversas com os
entregadores em paralelo nas ruas. E, no episódio onde o PM agrediu o entregador em
Taguatinga, eu ia ter a oportunidade de conhecer ele e fazer uma entrevista em
conjunto com ele a uma rádio aqui de Brasília pra falar sobre o ocorrido, que aí não
se desenvolveu. No futuro, ele teve contato com o Sorriso, que hoje é o presidente [da
AMAE-DF], e aí nós tivemos uma reunião com a assessoria dele e o próprio Fábio
Félix. E aí nós alinhamos, né? Passamos pra ele as demandas que tínhamos em
relação ao cenário, à categoria, e ele resolveu abraçar. Aí ele apresentou algumas
ideias que ele tinha já pra poder fazer como PLs, e nós só complementamos e
trouxemos a ideia dele à realidade, amadurecemos aquela ideia de acordo com a
realidade da rua, dos entregadores. Aí surgiu o PL 937/2020 3, que eram os pontos de
apoio e fizemos um que ainda não foi a plenário, que é em questão da fixação da
3 O Projeto de Lei nº 937/2020 da Câmara Legislativa do Distrito Federal foi aprovado como Lei n°
6.677/2020 do Distrito Federal, publicada em 22/09/2020.

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Ricardo Festi / Pedro Burity Borges / Nicolas Eyck van Dyck Araújo de Oliveira

tabela de preços mais a regulamentação da atividade desenvolvida entre entregador e


plataforma. Nós esperamos que suba ao plenário ano que vem.

Entrevistadores: E esse PL dos Pontos de Apoio, vocês fizeram muitas discussões e


debates? Porque a conquista dela é uma novidade no país, não sei se
internacionalmente também. Você que teve contato com o sindicato da Inglaterra,
sabe se tem algo parecido por lá?

Abel Santos: Lá eles estão tentando fazer a mesma luta, a mesma reivindicação em
conseguir pontos de apoio. Só que lá eles têm uma relação mais tranquila com os
restaurantes. Eles têm até um canal mais tranquilo com os restaurantes em relação a
brigar com os aplicativos e tudo mais. E eu creio que eles tenham mais facilidade em
usar um banheiro, tomar uma água e tudo mais, né? E aqui no Brasil a gente não estava
tendo isso. Muitas das vezes os restaurantes não queriam permitir a entrada do
entregador com a bag, porque é entregador e tudo mais. Por mais que a gente tenha
feito algumas alianças com o Sindicato dos Bares e Restaurantes, a Associação dos
Bares e Restaurantes e tudo mais, só um minutinho [...]. Mesmo tendo esse
alinhamento com o sindicato e a associação, nós não tínhamos essa liberdade de estar
usando o banheiro, tomando uma água e tudo mais. E, quando o Fábio [Félix] falou –
foi ele quem deu essa ideia da questão do ponto de apoio-, nós da AMAE-DF tivemos
o primeiro pensamento em relação ao pessoal que era das bicicletas, os bikeboys.
Porque aqui, no DF, a gente fez um corpo-a-corpo com os entregadores, e nós vimos
que os entregadores que moram no entorno têm que pegar entre 40 e 50 km pra chegar
no centro, lá em Brasília. Eles têm que chegar pedalando, porque o motorista de ônibus
não aceita que ele leva a bicicleta dentro do ônibus, ele vai pedalando, chega lá e tem
que passar o dia inteiro pedalando, trabalhando, e depois ele tem que voltar pra casa
pedalando os 40, 50 km de novo pra chegar em casa. Ele não tem um espaço pra sentar,
pra descansar, e quantas e quantas vezes essas ações de corpo-a-corpo nós vimos os
entregadores almoçar sentado em meio-fio, estacionamento, embaixo de árvores, né? E
sem condições de poder usar banheiro, tomar água, porque às vezes ele leva a água,
mas a garrafa de água esquenta, não tem onde trocar essa água, tem que beber água
quente. Aí se viu essa necessidade. E a ideia do Fábio Félix era fazer esses pontos de
apoio, e a AMAE-DF trouxe pra dentro da realidade, aí foi onde [a AMAE-DF
registrou que] o ponto de apoio precisa de uma área de descanso, de uma copa pra que
ele possa esquentar o alimento dele, com água potável, banheiro, chuveiro, pontos de
tomada pra carregar o celular, porque a gente não tem onde carregar e, se tiver uma
pane, se acontecer alguma coisa, tem que voltar pra casa pra poder resolver esse
problema, e depois voltar novamente pra pista pra trabalhar. E aí ter um wi-fi, no caso
de você ficar sem internet, você ter que contratar um novo pacote, contatar alguém,
conversar com alguém pra pegar um dinheiro, colocar um crédito, alguma coisa do
tipo, com wi-fi você tem essa possibilidade. Aí foram discutidos esses pontos, e foi pra
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Entrevista com Abel Santos: a luta dos entregadores de aplicativos no DF

parte da regulamentação, onde também foi chamada a AMAE-DF pra discutir a parte
da regulamentação. Por parte da GDF, quem regulamentou foi a Secretaria da Casa
Civil. Então a gente participou de diversas reuniões lá pra discutir qual a melhor forma,
e tudo mais, pra que venha amparar o entregador. Teve mais participação do Fábio, que
ajudou conversando com o Secretário, fazendo pressão e tudo mais. E tivemos essa
conquista, que é inédita, né? Só no DF que tem essa lei. Nós esperamos que essa lei se
torne federal valha pra todo o país.

Entrevistadores: E tem outros deputados distritais que apoiam e ajudam nas


demandas de vocês?

Abel Santos: Nós chegamos a procurar outros, mas quem se colocou mais solícito
em relação a isso foi o Fábio Félix, né? Mas a gente só teve um deputado que foi
contra a nossa votação do PL 937, que foi a Júlia Lucy, do NOVO. A gente sabe
como é que é, né? Eles querem que seja novo só pras empresas, pra quem é
trabalhador se fica o velho, né? Infelizmente essa é a realidade. Os outros partidos
todos tiveram adesão, com votos muito bem vencido dentro da câmara, dentro do
parlamento distrital, e nós temos alguns outros parlamentares que se identificam com
a luta, que é o Leandro Grass, do REDE, a Arlete Sampaio, do PT, o pessoal que é
mais centro-esquerda, esquerda, que solidariza e se sensibiliza em relação aos
trabalhadores, né? Tão sempre aí lutando pela classe social que é menor, né? Os mais
injustiçados e desfavorecidos. O pessoal que é mais pró-empresa prefere ficar mais aí
adepto ao lobby, fazendo o que as empresas querem, e não amparar o trabalhador.
Mas, nessa mesmo, foi uma questão dos entregadores, o [PL] 937, no dia de votação
só teve um voto contra. E quando a gente precisa de alguma demanda a gente sempre
vai tá buscando, sempre busca o apoio, pra ligar e entrar em contato com os
parlamentares que são de esquerda, centro-esquerda, que sempre amparam, dão boas
ideias, buscam conversar com outros parlamentares, lutam, pressionam pra que saia
alguma coisa em benefício dos entregadores e dos trabalhadores em geral.
Geralmente o pessoal de direita, eles não são muito fã não.

Entrevistadores: E como é que foi? Como é que surgiu a ideia dos Breques e como foi
a organização nacional disso? Porque os dois primeiros breques foram organizados
nacionalmente, né?

Abel Santos: O Breque foi o seguinte: na realidade, [em] Brasília ia fazer uma
manifestação no final de maio, estava previsto ali pro dia 12 a 14 de maio. Nós
organizamos aqui em Brasília que ia ser uma manifestação pra gente pressionar o
governador a dar alguma resposta em relação ao que a gente precisava. Só que aí nós
tivemos alguns contatos de liderança de outros estados, como São Paulo, Rio de

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Janeiro, Espírito Santo, Bahia e alguns outros entraram em contato pra perguntar
como foi as manifestações passadas. Teve a de janeiro, que teve uma repercussão
bacana, e como estava sendo criado um movimento maior aqui em Brasília. E aí nós
começamos a conversar com essas lideranças e a propor essa questão de uma
manifestação nacional, nós possamos parar as principais capitais. E alguns grupos
entraram em contato com alguns grupos, o Tretas [no Trampo], o Nossas, que a gente
tem muito a agradecer, que ajudaram bastante, outros grupos que sempre foram
consolidados na internet, nós conseguimos atingir os entregadores dos outros estados.
Aí se foi feito uma enquete no Whatsapp mesmo, pra essas lideranças estarem
divulgando em seus estados de dia e hora de manifestação, e foi decidido dia primeiro
de julho e começou às 9h da manhã. E aí esse primeiro de julho foi histórico, porque
o pessoal da Argentina entrou em contato dando apoio, Guatemala, Itália, a própria
Inglaterra, México, e eles também meio que paralisaram, fizeram algum tipo de
boicote, alguma ação pra tá apoiando o Brasil no dia primeiro de julho. E aí os jornais
cobriram, os parlamentares entraram em contato, e tudo mais. E o primeiro de julho
foi pra rua muito forte, muito forte. E aí despertou, né, os olhares dos parlamentares
federais, e foi aonde a gente entrou através do PSOL, da bancada do PSOL, com o
pedido da [PL] 1665. Aí, [n]o dia 25, já tinha aquelas lideranças, mas alguns já
tinham desistido, ou saído por alguma coisa, por algum benefício que fosse somente a
eles, igual o Sindicato de São Paulo, fez dia 14. Alguns outros movimentos que
estavam juntos que acabaram saindo, mas em compensação entraram outros
movimentos pra apoiar, entraram outras lideranças do Rio, Curitiba, pra apoiar, e aí a
gente fez o 25 [a paralisação do dia 25]. Não teve o retorno esperado porque, na
minha opinião, eu vi que foi algo muito prematuro, foi uma coisa que o pessoal
queria já pressionar, fazer uma cobrança de resultados, sendo que não tinha dado um
tempo hábil pro resultado, mas teve o 25 [a paralisação do dia 25]. Aí quando foi [o
dia] 15 de setembro, quando a gente viu que teve tempo hábil, não teve uma resposta
do Estado em relação às reivindicações, nós trouxemos as principais lideranças de
vários estados, inclusive de Curitiba, Rio Grande do Sul e Acre, que faz ali os pontos
mais distantes de Brasília. Teve aqui [as lideranças] em Brasília, em reuniões
parlamentares onde algumas bancadas receberam as lideranças pra escutar as
demandas. Aí nós tivemos um manifesto na frente da casa do Rodrigo Maia. Nós
fomos escutados no dia lá dentro pelo interino, que tava no lugar do Rodrigo,
enquanto ele não estava ali em exercício, e aí se teve alguns resultados. Foi
determinado o relator do [PL] 1665, que foi o... Agora não vou lembrar o nome dele,
mas se teve reunião com ele, a gente expôs o que precisava. Foi o Trad, né? Fábio
Trad. E aí nós tivemos reunião com ele. Nós colocamos pra ele o que era necessário,
a forma que nós achávamos o que iria amparar melhor o entregador nas ruas, e, desde
então, tá nas mãos dele lá e a gente tá esperando ir pra votação pra que a gente possa
ter essas melhorias aí o mais rápido possível.

Laborare. Ano VI, Número 10, Jan-Jun/2023, pp. 57-78. ISSN 2595-847X. https://revistalaborare.org/
DOI: https://doi.org/10.33637/2595-847x.2023-195
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Entrevista com Abel Santos: a luta dos entregadores de aplicativos no DF

Entrevistador: Vocês deram um salto fazendo essas articulações, fazendo contato com
o Congresso Nacional etc. E agora nós temos várias PLs tramitando no parlamento
em relação aos entregadores. Como é que está essa relação com o Congresso, os
partidos, os deputados?

Abel Santos: Eles querem amarrar, sabe? Os pró-Bolsonaro querem apoiar, mas com
interesse dentro do movimento em reeleição do próprio presidente. Quem é contra o
Bolsonaro quer apoiar pra ter mais um braço pra ir contra, e os entregadores, nós,
estamos à parte dessa polarização. Se a gente não lutar pelas necessidades da
categoria em si, da categoria, e ficar abraçando outras bandeiras, desvirtua o
movimento e a gente quer que ele fique o mais puro possível em relação aos
trabalhadores. Então, foram poucos parlamentares que realmente abraçaram a causa
ali, de acordo com a fonte, de buscar a melhoria para a classe dos entregadores. Então
hoje se tem muitas coisas, em boa parte [...]. Eu pessoalmente não concordo com o
que está sendo proposto, mas tem alguns pontos que a gente pode aproveitar pra
trazer benefício real pro entregador na rua, e têm alguns textos que são realmente
bons, que vai trazer benefício, que vai amparar esse entregador na rua. Porque eu não
concordo muito com aquela política “somente pra você ver”, pra falar assim: “Eu,
como parlamentar, tô fazendo alguma coisa, olha aqui ó”, sabe? Eu concordo com
aquela política que é feita, que vai dar o resultado real, o cara vai falar “Poxa, tô
tendo esse benefício graças a fulano, que colocou o projeto, que brigou e que
passou”. Eu sou a favor disso. Tanto que, pra mim, foi um pouco frustrante essa
questão de ir para ponto federal, que eu me afastei um pouco mais. Hoje eu brigo
mais dentro do DF, mais com a Câmara Distrital, dentro da Câmara Distrital, que é
onde a gente tem um retorno maior. E aí a gente espera que esses retornos que nós
temos dentro da Câmara Distrital possa virar exemplo para outros estados, e esses
estados começarem a brigar, e o poder federal se sentir obrigado a fazer algo em
relação a isso, e tornar isso federal. Eu vejo que isso aqui é mais fácil do que você
querer brigar lá dentro da Câmara Federal. Lá é briga pra cachorro grande. Não tem
como a gente, que é pequeno, que tá iniciando, que não tem tanta força, querer
disputar rinha lá dentro. Eu pelo menos, particularmente, vi isso. Não deixamos de
atuar, atuamos no que é preciso, mas eu deixei de empregar tanto esforço, energia e
tempo dentro do âmbito federal, e empregar mais no âmbito distrital porque tá tendo
muito mais retorno. E esse âmbito federal a gente vai lá e alfineta quando tem que
alfinetar e conversa e tenta pressionar quando realmente vai dar um retorno pro
entregador na rua. A política no Brasil, infelizmente, ainda é uma política que é em
benefício próprio ou partidário, e não da população que realmente necessita.

Entrevistadores: Quais são as principais, na sua opinião, dificuldades que vocês


enfrentam hoje para organizar os entregadores?

Laborare. Ano VI, Número 10, Jan-Jun/2023, pp. 57-78. ISSN 2595-847X. https://revistalaborare.org/
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Ricardo Festi / Pedro Burity Borges / Nicolas Eyck van Dyck Araújo de Oliveira

Abel Santos: É disposição dos próprios entregadores. É o problema do país:


informação, educação em si. Porque os entregadores hoje não sabem que, se eles
forem trabalhar da forma que eles estão trabalhando, eles estão ganhando menos do
que se fossem celetistas. Porque, se eles forem colocar na ponta do lápis, que eles têm
que tirar para contribuir como se fosse um INSS da vida, uma poupança pra ele se
aposentar, o resguardo da moto, que é aquela manutenção, que é gasolina, o gasto que
ele tem com alimentação, com o próprio deslocamento dele de casa para área de
trabalho e da área de trabalho pra casa... No final, se ele for colocar tudo certinho na
ponta do lápis, ele vai tá ganhando menos do que um salário mínimo, sendo que hoje,
o salário da categoria é R$ 1.446,00. E ele tá tirando menos, colocando real no bolso,
menos que um salário-mínimo. Então, assim, se ele fosse celetista, ele estaria
ganhando muitas das vezes o dobro do que ele ganha hoje sendo autônomo sem
autonomia. Essa falta de informação, essa falta de escolaridade mesmo dos próprios
entregadores, e isso a gente sabe que a culpa é do Estado, que não investe em
educação, nem básica, nem média e nem superior em relação ao povo da periferia. A
gente vê que dificulta muito, porque muitas das vezes eu tenho que pegar no braço
mesmo, falar “vem cá coleguinha, vamos trocar uma ideia aqui mais fechada”, e aí
tenho que colocar lá na ponta do lápis pra eles e explicar passo a passo pra ele
entender que a luta é justa e válida. Para ele entender que o vigilante, que faz o curso,
que é necessário e obrigatório o curso para ele exercer a profissão, não tem como
ninguém fazer bico de vigilante. Mas o entregador que tem um custo quatro vezes
maior que o vigilante para se tornar entregador, de acordo com a lei de 2009, que é [a
lei nº] 12.009 de 2009, hoje ele é tão desrespeitado e tão desvalorizado que qualquer
pessoa pode fazer a profissão dele. E ele, que investiu pra ser um profissional
qualificado no trânsito e nas formas de atender o cliente, ele acabou jogando dinheiro
fora em relação a esse, que mal... com uma moto e uma mochila nas costas, faz o
cadastro no aplicativo. Hoje o maior desafio é passar, com clareza e objetividade,
essas informações para que o entregador entenda que a luta que nós estamos travando
é importante, porque vai trazer reconhecimento e valorização pro trabalho dele.

Entrevistadores: E qual que você acha que é a principal resistência dos entregadores
para participar e se mobilizar?

Abel Santos: É justamente a falta de informação. E a informação errônea, porque têm


muitas outras entidades dentro do DF que acaba propagando informações que vem de
confronto com a informação que a gente passa. E os próprios aplicativos que tem
poder econômico. Eles divulgam, fazem propaganda e marketing pesadíssimos para
ludibriar o entregador, que ele vai tirar cinco mil no mês, seis mil, oito mil no mês. E
aí tem muitos youtubers e influencers que são pagos por esses aplicativos e compram
essa ideia, propagam essa ideia, e acaba enganando muito entregador na rua. Porque
eu falo pra você e garanto: eu já fiz essa conta diversas vezes e você, ganhando
Laborare. Ano VI, Número 10, Jan-Jun/2023, pp. 57-78. ISSN 2595-847X. https://revistalaborare.org/
DOI: https://doi.org/10.33637/2595-847x.2023-195
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Entrevista com Abel Santos: a luta dos entregadores de aplicativos no DF

sessenta e cinco centavos por quilômetro rodado e não ter nenhuma taxa a mais pelo
pacote que está sendo entregue, você ganha menos do que um salário mínimo hoje,
que é de mil e quarenta e cinco reais. Isso é o que você põe no bolso, depois que você
tira todos os custos da operação que é do entregador, principalmente a desvalorização
do bem, no caso a motocicleta ou até mesmo bicicleta. Então, quando você joga a
desvalorização daquele bem que ele tá pagando, financia, paga juros em cima daquele
bem… Ele tá tirando menos do que um salário mínimo.

Entrevistadores: Entendi. Estamos terminando, Abel... Tem uma questão que apareceu
muito nos breques que é uma certa, parecia uma certa polarização, da bandeira dos...
sobre a CLT ou da autonomia. Como é que você vê isso? Como é que tá isso na
categoria? Me parece que essa discussão foi feita. Como é que você vê pós-breques?

Abel Santos: Essa discussão pós-breque se esfriou porque aqui em Brasília... Devido
a uma questão judicial que teve. Uma decisão judicial [em que] as OLs, que é o iFood
terceirizando o serviço do iFood, que já terceirizado pelo restaurante, eles [as OLs]
tinham que fazer a contratação via CLT. Aí [os entregadores] tão contra muito grande
por conta da carga horária obrigatória. Aí acabou que essa decisão caiu e, agora, estão
investindo na questão do MEI. E agora ele [entregador] tem que ser MEI pra virar
OL. Mas ele vai ter as mesmas obrigações: vai ter que trabalhar nos dias que a OL
mandar, ele vai ter a subordinação, ele vai ter que cumprir aquelas metas e vai tá
ganhando menos do mesmo jeito. Então a galera faz essa briga por falta de
conhecimento em si do que cada formalização é. Você é autônomo: você tem
obrigações com o Estado, tem que pagar ISS, tem que [ter] cadernetinha ali que vem
da previdência social, você tem alguns encargos. Se você é MEI, vai pagar encargo
pro Estado da mesma forma, por mais que seja um valor menor, mas você tá pagando.
Se você é celetista, você não paga isso, mas a empresa vai ter pagar esses impostos, e
você meio que compartilha de uma porcentagem desses impostos, mas você tem um
ganho maior. Você ganha o aluguel da moto, você ganha periculosidade, que hoje não
é pago nem pra autônomo e nem pra MEI, você tem o salário de acordo com a
categoria, que é maior que o salário-mínimo. Então, na minha visão hoje, o melhor
seria enquadrar todo mundo na CLT, existe um ganho maior. Se a galera não quer, a
minha visão é que seja feita um contrato de prestação de serviço de PJ para PJ, que
seria o MEI, dando real autonomia, principalmente na cobrança das taxas. Eu, que
sou entregador, e eu que sei o custo da operação, então eu vou colocar o preço que
vai cobrir o custo e traga retorno pro meu bolso. Isso não acontece hoje e o retorno só
tá sendo para as plataformas. Os entregadores são explorados e continuam sendo
explorados por falta dessa informação, e quando a gente tenta propagar essa
informação, o marketing da plataforma, como eles têm poder econômico para isso,
vem de contra essas informações, e o entregador acaba acreditado na plataforma, no
lobo, invés de acreditar no pastor, que somos nós, que estamos tentando fazer com
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Ricardo Festi / Pedro Burity Borges / Nicolas Eyck van Dyck Araújo de Oliveira

que ele tenha um reconhecimento, uma valorização maior. Então é muito difícil,
muito difícil. Uma coisa que a gente não tem muito poder em relação a isso. A gente
tenta da forma que a gente consegue e, aos poucos, aquele trabalho de formiguinha, a
gente vai tentando ganhar espaço na categoria pra que um dia a gente consiga vitórias
expressivas no reconhecimento e na valorização desses entregadores. Mas eu falo pra
você, eu não sou religioso, mas tem uma palavra dentro da bíblia que ela se
concretiza: “por falta de informação, meus filhos vão perecer”. Isso é pra tudo, por
falta de informação e por falta de conhecimento, muitas pessoas perecem e acabam
não tendo êxito naquilo que tá lutando.

Entrevistadores: Essa rejeição à CLT, a ser contratado como CLT, me parece que é muito
grande na categoria, o essencial é só a falta de informação ou teriam outros elementos?

Abel Santos: Cara, a meu ver, é só a falta de informação, porque o que ele vai está
perdendo? Hoje se você não trabalhar de 10 a 15 horas, você não traz o mínimo pra
dentro de casa. Na CLT, é previsto oito horas diárias, então ele estaria ganhando.
Hoje se você não trabalhar todos os dias, inclusive feriados, sábados e domingos, e
não ter férias, você não tem ganho nem pra pagar suas contas, moto, manutenção de
moto e gasolina e tudo mais. Na CLT, ele teria pelo menos uma folga, que seria
remunerada na semana, ele teria direito a férias e o 13º dele. No final do ano, se o
cara realmente não dobrar a carga de trabalho, ele não consegue juntar um dinheiro
pra que ele pague as contas de dezembro e de janeiro, pra que em janeiro ele
possivelmente venha trabalhar menos ou não trabalhar, o que é muito difícil. No
máximo o que ele vai fazer é trabalhar menos, mas vai continuar trabalhando. Na
CLT, ele teria as férias dele garantida, passaria aquele mês mais tranquilo, pelo
menos descansando em casa ele estaria. Então, assim, eu não vejo um prejuízo. O
prejuízo maior da CLT seria pra empresa, que teria que pagar esses impostos, que são
os oito por cento pro FGTS, fazer as informações pro Estado, né? Para aquela questão
do INSS, que deveria ser pago, e tudo mais. Então, eu vejo as plataformas, elas
realizaram o sonho dos restaurantes, que era o quê? Ter funcionários sem ter vínculo
e responsabilidade. Aí eles entram no mercado burlando a própria lei que se dizem
empresas de tecnologia, e não de prestação de serviço. E tira o vínculo delas com os
entregadores. Os empresários, felizes, explorando a classe trabalhadora. É isso que eu
vejo, porque se eu faço um contrato de prestação de serviço com você em qualquer
outra categoria, marcenaria, serralheria ou qualquer coisa que eu preste um serviço
pra você, eu vou cobrar um valor que vai cobrir o meu custo e que vá trazer um
retorno pro meu bolso. E, hoje, eu não consigo fazer isso como entregador. Eu não
posso chegar pra você e ligar “Olha cidadão, eu vou entregar seu lanche aí, mas a
entrega ao invés de ser seis reais que você vai pagar pro aplicativo, você vai ter que
me pagar 15, porque eu tenho um custo de manutenção de moto e gasolina e os outro
50 por cima eu vou ter que colocar no bolso”. Não tem como eu fazer isso, eu tenho
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Entrevista com Abel Santos: a luta dos entregadores de aplicativos no DF

que rodar, ganhar o que o aplicativo dá e me virar pra pagar os custos da operação e
sobrar pra comer dentro de casa. Eu vejo que, hoje, se fosse pra quebrar essa relação
de emprego, teria que ser uma CLT, que aí esses aplicativos teriam que desistir do
mercado e realmente se extinguir ou se enquadrar. Em [que] pelo menos ele [o
entregador] estaria garantido com o mínimo, que hoje não se tem, e é ludibriado [com
a informação falsa de] que põe cinco mil no bolso, e essa não é a realidade.

Entrevistadores: Na sua opinião, quais são as próximas perspectivas das lutas dos
entregadores e, em particular, da AMAE-DF?

Abel Santos: É uma pergunta muito difícil, viu? Porque, ao longo desse tempo, que a
gente vem lutando, a gente viu que a dificuldade aumentou a cada dia. A resistência,
os aplicativos investiram muito para os encontros dos movimentos, e a gente pouco
reforço, pouco braço pra fazer esse trabalho. Mas, assim, na minha visão, é de muita
luta. E isso sempre vai ser. É de poucas vitórias, mas que serão vitórias importantes,
que vá pelo menos trazer uma certa visão diferenciada. E eu acho que uma arma que
AMAE-DF vai tá usando nos seguintes é capacitar esses entregadores, usando a
educação em si. Então, a gente tá tentando firmar parcerias para fazer canal no
YouTube para propagar essas informações, páginas no Insta pra propagar essas
informações, pra mostrar pro entregador na ponta do lápis pra ele ver que não é uma
ilusão, que não é esse conto de fadas que o aplicativo passa pra ele, de fazer cursos,
realmente cursos, que ele vá ganhar o e-book dele pra ler, que ele vai ter os vídeos
baseado em cima do e-book, para que ele [tenha] ali um conhecimento. A gente tá
tentando conscientizar e apostando nessa conscientização pra ter mais retorno de luta,
pra ter mais amparo, pra ter mais adesão pro entregador acordar e ver que esse mar de
rosas que contam pra ele é só conto de fadas, só ficção cientifica, só dá certo nos
filmes que é essa nova relação de trabalho só tá vindo realmente somente pra
explorar, qualquer categoria, não é só a parte entrega e motorista de aplicativo então
assim a próxima linha que nós vamos tentar fazer é essa. Agora se vai ter êxito ou não
é só com o tempo e ver o resultado do trabalho que vai ser feito.

***

ENTREVISTA DE 16 DE AGOSTO DE 2021

Entrevistadores: A ideia desta nova entrevista é que você possa nos atualizar sobre o
que aconteceu desde a nossa última conversa na luta dos entregadores4.

4 A pergunta a seguir compõe a entrevista realizada em 16/08/2021.

Laborare. Ano VI, Número 10, Jan-Jun/2023, pp. 57-78. ISSN 2595-847X. https://revistalaborare.org/
DOI: https://doi.org/10.33637/2595-847x.2023-195
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Ricardo Festi / Pedro Burity Borges / Nicolas Eyck van Dyck Araújo de Oliveira

Abel Santos: Então, quando a AMAE-DF se fundou em maio do ano passado, só


tinha eu e o Sorriso de entregador. O restante dos cargos foi ocupado pelo pessoal do
escritório de advocacia, que fez a parceria para a associação não parar. O escritório
entrou com o objetivo de ganhar causas. Tivemos 68 processos por conta de
bloqueios injustos, sendo que 58 tiveram resultado vitorioso. Os entregadores tiveram
a sua volta ao aplicativo, mas tiveram que pagar um salário-mínimo para os
advogados. E aí o intuito do escritório era este. Quando foi se passando o tempo, de
maio até dezembro, foi se vendo aquilo que prevíamos no início: a categoria do DF é
uma categoria desgastada com entidades que vêm recolher um valor para que possa
fazer algo para a categoria. Em 2008, se não me engano, o Sindimoto tinha feito algo
parecido e sumiu com o valor da galera, o que deixou todos bem cabreiros. A
Coopermotos, que surgiu do interior do sindicato como cooperativa para poder ajudar
a galera, teve o mesmo intuito, falando que iria juntar o pessoal para poder financiar
algum tipo de trabalho que desse retorno para a categoria e, ao final, não foi isso o
que aconteceu. Então, eu falei “olha, é muito difícil”. O que os entregadores por
aplicativo hoje, o que eles fazem no dia é pra pagar o custo da operação, e o restante é
para colocar dentro de casa. “Ah, mas são só 15 Reais!”. Mas faz muita diferença, no
final do mês, para este entregador. E, assim, foi se concretizando ao longo do tempo.
Como eles viram que realmente não iria sair dinheiro desta organização e eles não
iam ter este ganho, eles deixaram à margem. “Vamos trabalhar no que estiver dando
dinheiro para nós e deixar isso aí para o dia que der frutos!”. E aí foi quando eu juntei
com mais dois colegas, o Rodinei e a Júlia, que estavam me ajudando a construir o
Instituto Rueira, aqui em Recanto das Emas, que a gente trabalha com crianças e
jovens e adolescentes. Poxa, lá a gente tem uma instituição que era para estar fazendo
o mesmo trabalho pela categoria. E não está, por quê? Porque as pessoas que
fundaram esta instituição tiveram a visão de arrecadar dinheiro. E aí eu chamei os
dois que estavam trabalhando comigo, e ali a gente começou a desenvolver um
trabalho paralelo. Tinha-se a AMAE-DF, que é a entidade, e tinha o nosso grupo
fazendo o trabalho usando apenas o nome. Mas era um trabalho paralelo, que não
seguia aquilo que foi proposto na criação da AMAE-DF. E aí com o tempo, foi
dialogando, foi fazendo aquele jogo de cintura com o pessoal que estava dentro da
AMAE-DF, e a gente foi ganhando espaço aos poucos, até que se concretizou a
abertura para se transformar realmente a ATAM-DF. E o intuito real foi o quê? Foi
trazer melhorias para a categoria, sem depender tanto do Estado, para poder
promulgar leis, e sem depender exclusivamente de nenhum aplicativo, pois a gente
nunca teve um canal aberto com nenhum aplicativo para poder tratar melhor esta
categoria. Então, vimos que tentar fazer isso é um gasto de energia e uma perda de
tempo. Então, qual é a ideia com a ATAM-DF? É abranger todos os profissionais que
estão plataformizados, que estão sendo uberizados, e lutar por eles em duas frentes: a
frente com o Estado, por uma regulamentação justa e própria para cada categoria,
pois cada uma tem a sua especificidade bem diferentes, pois o entregador não é o
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Entrevista com Abel Santos: a luta dos entregadores de aplicativos no DF

mesmo que o motorista, e olha que estamos fazendo um trabalho próximo, mas
completamente diferente do enfermeiro, assim como o do turismo... Então a ideia é
que a gente possa unificar este trabalhadores em busca de uma regulamentação que
garanta os seus direitos trabalhistas. A ideia secundária é um trabalho voltado para
Brasília, é fazer com que a ATAM-DF se torne um instituto que permita trazer
projetos que vão amparar estes trabalhadores e dar resultados de forma mais direta.
Então, podemos trazer projetos de capacitação, projetos como a Oficina Mecânica
Social, para tirar aquele peso financeiro da operação, que é a manutenção da moto.
Então, assim, vamos começar a articular meios para dar resultados para esta
categoria, enquanto o Estado anda em ritmo lento. Temos um grande exemplo nesta
lei dos pontos de apoio. Foi uma lei que saiu de dentro da Associação. Eu ajudei a
escrever, com mais nove entregadores. Aí entregamos para o Deputado Fábio [Félix].
Eles fizeram os tramites. Subiu a Plenário. Passou no primeiro turno, apenas com um
voto contra. Passou em segundo turno, com este mesmo voto contrário, que é de uma
deputada do Novo, a Júlia Lucia. E aí foi para a regulamentação. A associação atuou
ali bem perto, fizemos articulação, conversamos com o Gustavo, que é o Secretário
da Casa Civil, e o Ricardo, que é o Vice-Secretário, que foi onde sancionou a lei dos
pontos de apoio. Mas hoje, ela não se tornou realidade. E quando um aplicativo
procurou a gente, a Brasil Delivery, que está chegando agora em Brasília, eles são de
São Paulo, eles nos disseram que queriam chegar podendo promover esta lei: “para
que os entregadores vejam que estamos do lado deles”. Mas, o que aconteceu? A lei
colocou como exclusividade de sua aplicação para os aplicativos. E, quando foi
proposto, na regulamentação da lei, para que o GDF destinasse áreas para efetivar os
pontos de apoio com mobiliário urbano que estão desativados ou abandonados e áreas
para poder fazer a construção, o próprio governador Ibaneis Rocha assinalou positivo.
E aí passou para a SEMOB5. Mas quando chegou aí, o Secretário disse que
deveríamos buscar as administrações das RAs6 para viabilizar o projeto. Mas, ao
buscá-los, encontramos uma gigantesca burocracia e pessoas que não estão
interessadas em fazer. Porque a gente vai já com projeto montado, com a área que
precisaria e a indicação desta área, pois nó sabemos que são áreas que estão lá, ou
paradas ou abandonadas, que pode colocar uma estrutura para o entregador.

Este trabalho está licenciado sob uma licença Creative Commons Attribution-
NonCommercial-ShareAlike 4.0 International License.

5 Secretaria de Transporte e Mobilidade do DF.


6 Região Administrativa de Brasília (aquilo que antigamente se denominava de Cidade Satélite).

Laborare. Ano VI, Número 10, Jan-Jun/2023, pp. 57-78. ISSN 2595-847X. https://revistalaborare.org/
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O TRABALHO EM PLATAFORMAS DIGITAIS NO BRASIL

A mediação do trabalho por plataformas digitais e seus


impactos para a autonomia dos trabalhadores
The mediation of work by digital platforms and its impacts
on the autonomy of workers

Helena Martins
Professora da Universidade Federal do Ceará. Doutora em
Comunicação Social. https://orcid.org/0000-0002-3210-4969

Jonas C. L. Valente
Pesquisador de pós-doutorado, Oxford Internet Institute.
https://orcid.org/0000-0002-2201-6930

Marina Polo
Doutora em Estudos de Comunicação: Tecnologia, Cultura e
Sociedade, Universidade do Minho. https://orcid.org/0000-0003-
4536-0539

Mirele Rodrigues
Graduanda em Sociologia na Universidade Federal do Ceará.

Raissa Pacheco
Graduada em Comunicação Social-Publicidade e Propaganda na
Universidade Federal do Ceará.

RESUMO: O texto analisa as múltiplas mediações do trabalho por plataformas


digitais, interrogando os impactos dessas dinâmicas de mediação sobre a autonomia
dos trabalhadores nesses espaços. A investigação se deteve sobre dez plataformas
digitais de trabalho “freelancer”: Workana, Freelaweb.com.br, 99 Freelas, Get Ninjas,
Freelas, Comunica Freelancer, Wedologos, Vintepila, Vinteconto e Rockcontent Talent
Network. São examinadas as múltiplas mediações do trabalho pelas plataformas
digitais, que se dão em relação ao capital em geral, no emprego do trabalho para
viabilização de atividades sociais e no agenciamento específico da contratação a força
de trabalho. O trabalho analisa as estratégias de controle dos trabalhadores por parte

Laborare. Ano VI, Número 10, Jan-Jun/2023, pp. 79-102. ISSN 2595-847X. https://revistalaborare.org/
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A mediação do trabalho por plataformas digitais e seus impactos para a autonomia dos trabalhadores

das plataformas e os modos de limitação de sua autonomia. Essas restrições são


impostas de diversas formas. No caso das plataformas, elas incluem regras das
plataformas sobre acesso aos trabalhos, mecanismo de remuneração e procedimentos
para a seleção, execução e avaliação das tarefas executadas. Parte delas prevê formatos
e conteúdos pré-estabelecidos. Outra dimensão do controle e limitação das autonomias
ocorre pelos contratantes, que estabelecem conteúdos, parâmetros e prazos, bem como
controla o processo produtivo intelectual. A análise aponta como a mediação das
plataformas viabiliza aprofundamento da subsunção do trabalho intelectual e reduz a
autonomia do trabalhador mesmo que sob um discurso de “independência” destes na
execução das tarefas.

Palavras-Chave: plataformas digitais, trabalho, mediação.

ABSTRACT: The text analyzes the multiple mediations of work by digital platforms,
questioning the impacts of these mediation dynamics on the autonomy of workers in
these spaces. The research focused on ten digital platforms for freelance work:
Workana, Freelaweb.com.br, 99 Freelas, Get Ninjas, Freelas, Comunica Freelancer,
Wedologos, Vintepila, Vinteconto and Rockcontent Talent Network. The multiple
mediations of work by digital platforms are examined, which occur in relation to
capital in general, in the employment of work to enable social activities and in the
specific agency of hiring the workforce. The work analyses the strategies of control
of workers by the platforms and the ways in which their autonomy is limited. These
restrictions are imposed in various ways. In the case of platforms, they include
platform rules on access to jobs, remuneration mechanisms and procedures for the
selection, execution and evaluation of tasks performed. Some of them provide for
pre-established formats and contents. Another dimension of control and limitation of
autonomies occurs by the contractors, who establish contents, parameters, and
deadlines, as well as control the intellectual production process. The analysis points
to how the mediation of the platforms makes it possible to deepen the subsumption of
intellectual labour and reduce the autonomy of the worker, even if under a discourse
of "independence" in the execution of tasks.

Keywords: digital platforms, labour, mediation.

1. INTRODUÇÃO

O presente artigo tem como objetivo analisar as dinâmicas de mediação operadas por
plataformas digitais de trabalho. O trabalho tem como foco os impactos dessas
mediações sobre a autonomia dos trabalhadores, o que inclui os graus de liberdade
para escolher que tarefas realizar e o conteúdo do trabalho, traduzido nos resultados

Laborare. Ano VI, Número 10, Jan-Jun/2023, pp. 79-102. ISSN 2595-847X. https://revistalaborare.org/
DOI: https://doi.org/10.33637/2595-847x.2023-180
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Helena Martins / Jonas C. L. Valente / Marina Polo / Mirele Rodrigues / Raissa Pacheco

em cada bem ou serviço produzido. O recorte escolhido foi o de plataformas baseadas


na Internet que agenciam a contratação de força de trabalho em serviços pontuais em
diferentes setores de atividade, também conhecidas como “freelancer”. O tema tem
relevância, dado o fato de que as plataformas digitais de trabalho vêm crescendo e se
tornando uma alternativa para trabalhadores no mundo e no Brasil, tanto como forma
de compensar a perda de postos de trabalho quanto como complementação de renda
em um cenário de crise econômica que marcava o país no início dos anos 2020
(Pinheiro-Machado and Freixo, 2019). Em 2022, havia cerca de 1,5 milhão de
trabalhadores em plataforma no país (Machado and Zanoni, 2022).

Em âmbito internacional, o número de trabalhadoras e trabalhadores que recorrem a


plataformas de trabalho online tem crescido desde 2015. É o que indica a pesquisa de
Kässi, Lehdonvirta and Stephany (2021), que estima a existência de 163 milhões de
perfis de trabalhadores em 351 plataformas mapeadas em todo o mundo,
considerando apenas aquelas onde o trabalho freelancer é entregue e pago de forma
remota, ou seja, não incluindo aplicativos de delivery e mobilidade. O estudo aponta
ainda que 14 milhões dos trabalhadores(as) obtiveram trabalho por meio de
plataforma pelo menos uma vez, ao passo que 3,3 milhões completaram pelo menos
10 projetos ou ganharam pelo menos US$ 1.000, portanto já trabalharam
“significativamente” por esse meio, segundo a definição dos autores. Quando
considerados os múltiplos cadastros em plataformas por trabalhador, o número cai
para 9,3 milhões. O descompasso entre os perfis e aqueles que realmente trabalharam
sinaliza, na visão dos autores, que o crescimento de registros do que chamam de
freelancer online não é acompanhado pelo aumento da quantidade de trabalho.

Em que pesem os desafios de categorização, quantificação e mensuração do impacto


desse tipo de trabalho, sua importância se revela em preocupações institucionais.
Publicado em 2021, o relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT)
(Rani et al., 2021) sobre plataformas digitais de trabalho é exemplo disso. O
documento aponta que a introdução dessas plataformas consiste em uma das
principais transformações no mundo do trabalho na última década. A pesquisa, de
abrangência global, verifica que complementar renda e trabalhar em casa são os
principais motivos para que as pessoas recorram às plataformas de microtarefas 1,
sendo que, para as mulheres, o segundo motivo é mais recorrente.

Nos últimos anos, a possibilidade de trabalhar por meio de uma plataforma online
cresceu, acompanhando o maior acesso à internet banda larga e a disseminação de

1 A OIT define esse tipo de plataforma como “plataforma de trabalho baseada na web, que fornece às
empresas e a outros clientes acesso a uma mão-de-obra vasta e flexível” (2018, p. XV). Difere, assim, das
aplicações baseadas numa localização específica, como a partir de aplicativos de corridas e entregas. A
discussão sobre a tipologia será feita ao longo deste texto.

Laborare. Ano VI, Número 10, Jan-Jun/2023, pp. 79-102. ISSN 2595-847X. https://revistalaborare.org/
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A mediação do trabalho por plataformas digitais e seus impactos para a autonomia dos trabalhadores

dispositivos digitais, notadamente computadores pessoais e smartphones, que


permitiram fluxos informacionais em maior volume e velocidade. A pandemia do
coronavírus também ampliou a mediação digital do trabalho. No Brasil, 76% das
pessoas com acesso à internet que trabalharam na pandemia venderam algum produto
ou serviço por meio de plataformas digitais – incluindo aplicativos e redes sociais
(CGI.br/NIC.br, 2020).

Essas plataformas digitais acentuam mudanças no capitalismo desde os anos 1970.


Estas afetam as mais diversas relações sociais, acompanhando a reconfiguração
viabilizada pelas tecnologias. Aqui, optamos por operar um recorte nesta realidade
multifacetada para aprofundar seu impacto no mundo do trabalho, tendo como
pressuposto que o novo metabolismo social que emerge da reestruturação produtiva
tem como bases a “precarização do trabalho, a intensificação (e ampliação) da
exploração (e espoliação) da força de trabalho, o desmonte de coletivos de trabalho e
de resistência sindical-corporativa; assim como a fragmentação social nas cidades em
virtude do crescimento exacerbado do desemprego em massa” (Alves, 2009, p. 188).

Com essa pesquisa, pretendemos contribuir com os esforços de observar de forma


transdisciplinar o trabalho em plataformas digitais, mapeando os mecanismos de
mediação e os impactos sobre os trabalhadores, especialmente no tocante a sua
autonomia. O trabalho está organizado em duas seções. Na primeira, descrevemos os
métodos empregados para a pesquisa. Na segunda, procedemos uma contextualização
teórica acerca das transformações do capitalismo e da ascensão das plataformas digitais,
em especial aquelas voltadas à mediação da venda e compra da força-de-trabalho.

2. MÉTODOS

Para verificar o impacto dessa mediação na autonomia dos trabalhadores/as,


particularmente de comunicadores(as), analisamos dez plataformas digitais
freelancers: Workana, Freelaweb.com.br, 99 Freelas, Get Ninjas, Freelas, Comunica
Freelancer, Wedologos, Vintepila, Vinteconto e Rockcontent Talent Network, cujas
regras, informações e dados foram coletados entre o 2º semestre de 2021 e o 1º
semestre de 2022. Essas plataformas podem ser enquadradas nas modalidades de
plataformas baseadas na Internet, diferentemente daquelas vinculadas a uma
localidade, como as de transporte, entrega ou cuidado.

O recorte selecionado, de caráter qualitativo, compreende plataformas nas quais: 1) as


atividades são, em geral, pontuais e resultam de trabalho majoritariamente intelectual;
2) a plataforma exerce uma mediação entre contratantes e trabalhadores,
disponibilizando uma massa de “força de trabalho” em diferentes territórios; 3) a

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plataforma define as regras do “mecanismo de mediação” e as condições de acesso


aos serviços e demandas. Além disso, aplicamos questionário junto a 34
trabalhadores(as), em novembro de 2021. A costura entre premissas teóricas e
investigação empírica nos permite verificar e descrever formas contemporâneas de
subsunção do trabalho.

3. AS TRANSFORMAÇÕES RECENTES NO CAPITALISMO E A


EMERGÊNCIA DAS PLATAFORMAS DIGITAIS

Ainda que este seja um fenômeno em processo, aberto, portanto, às lutas em torno de
sua configuração, é possível apontar que a relação entre tecnologia digital e trabalho
consiste em uma tendência. Esta resulta da reestruturação produtiva, que transformou
as tecnologias da informação e da comunicação em base técnica do sistema na etapa
atual, e foi viabilizada pelo aumento do acesso à internet banda larga, pelas
possibilidades de captura e tratamento de dados e pelo desenvolvimento de outras
tecnologias, como sistemas de aprendizagem de máquina.

Associados às mudanças até aqui mencionadas estão os processos de mundialização e


financeirização do capital, que permitiram uma economia globalizada, com a
deslocalização de empresas e maior circulação de pessoas e de valores a partir da
desregulamentação dos mercados financeiros - ainda que, em geral, de forma desigual
e combinada, com a centralização da riqueza e do poder em poucos países.
Corroborou para esse conjunto de mutações a constituição do Estado neoliberal, que
viabiliza condições para a continuidade da acumulação do capital. Exemplos disso,
sob a égide neoliberal houve a privatização das telecomunicações e a retirada de
direitos trabalhistas e previdenciários, fenômenos que permitiram maior exploração
comercial da internet e a flexibilização das relações de trabalho.

Ursula Huws (2016) argumenta que, a partir da crise 2007-2008, um novo padrão de
organização do trabalho foi forjado, o qual ela intitula como “logged labour”. A
codificação das atividades, o acúmulo de tarefas burocráticas e a subordinação ao
produtivismo são marcas do impacto do neoliberalismo que, por uma combinação de
fatores tecnológicos, políticos e econômicos, conformam esse padrão, que se reflete,
segundo a autora, na corrosão do padrão de contrato entre empregador e empregado.
Conforme Louçã (2018, p. 95), “o que assistimos é a uma luta de classes para
reconfigurar o mundo, de modo que as tecnologias possam ser o centro de um
relançamento da acumulação de capital, com uma exploração mais intensa”.

O uso de tecnologias para intensificar a exploração da força de trabalho não é novo,


como os exemplos do fordismo e do toyotismo mostram. Não obstante, neste

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contexto de crise, as novas tecnologias são utilizadas para a radicalização desse


processo, por meio, por exemplo, do que Abílio (2019) define como gerenciamento
algorítmico. Algoritmos, “em seu sentido mais amplo, são procedimentos codificados
que, com base em cálculos específicos, transformam dados em resultados desejados”
(Gillespie, 2018, p. 97). Nesse gerenciamento, o trabalhador está disponível, mas não
tem qualquer possibilidade de negociação ou influência na determinação da
distribuição de seu próprio trabalho nem sobre o valor do mesmo” (Abílio, 2019, p.
03). Um processo que se vale da constante coleta e do tratamento de dados, o que,
segundo Van Dijck (2014), permite monitoramento em tempo real e análise preditiva
dos comportamentos, afetando as mais diversas práticas sociais, para além do
ambiente digital.

Tal configuração reforça a desigualdade de poder no mundo do trabalho e a


desumanização das relações sociais. Embora seja essencial considerar que resultam
de trabalho humano, como modelos matemáticos, os algoritmos permitem “uma
representação abstrata de algum processo que tem como objetivo prever os possíveis
resultados de acordo com as variáveis”, sendo que, “nesta capacidade de
decomposição de um conjunto de decisões e de sua posterior recomposição, gerando
um produto ou serviço como resultado, está o poder dos algoritmos em ampliar o
processo de subsunção do trabalho e de refinar estratégias de vigilância e controle tão
caras ao capital” (Figueiredo, 2019, p. 162), em prejuízo dos trabalhadores, que se
tornam mais alienados do processo e do resultado do trabalho.

Desde a Escola de Frankfurt e com a Economia Política da Comunicação, sabemos


que há limites para a subsunção do trabalho intelectual na produção cultural
especificamente. Bolaño (2002) destaca que o trabalhador cultural é um mediador da
maior importância para traduzir as determinações mais gerais do sistema e as
demandas do público no produto. Em função do desenvolvimento das relações sociais
e pela forma conferida à tecnologia - que permite a codificação de conhecimentos, o
controle dos trabalhadores, a descartabilidade e a intensificação da exploração da
força de trabalho, inversão da relação entre sujeito e máquina - a incorporação que
levou à perda de autonomia do trabalhador manual na fábrica amplia-se para outras
áreas, inclusive aquelas em que predomina o trabalho intelectual. Nos últimos anos,
com o desenvolvimento de técnicas de captura e processamento de dados, estes
passaram a ser usados também para a coordenação e terceirização de trabalhadores,
além de contribuírem para a flexibilização dos processos produtivos, entre outros
usos, configurando vantagens concorrenciais importantes em meio à dispersão da
produção e à constituição de cadeias globais de valor (Srnicek, 2017).

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É preciso, pois, situar essa relação entre capitalismo e tecnologia para compreender o
mundo do trabalho hoje. Nas últimas décadas do século XX, uma interpretação de
que o centro dinâmico do capitalismo se deslocou para além da produção e do
trabalho na indústria ganhou lastro. Financeirização, redução do número de
trabalhadores formais, fechamento de fábricas e crescimento dos chamados serviços
seriam indícios disso. As explicações partiram da ideia da “economia do
conhecimento” como uma nova forma de produção e de sociabilidade. Essa visão
animou o pensamento autonomista italiano e ganhou ampla repercussão a partir do
trabalho de Hardt e Negri (2005), para os quais a possibilidade de circulação na
sociedade traria contradições profundas para o capitalismo, libertando os
trabalhadores. Se acertaram na percepção da importância das tecnologias, deixaram
de ver que, na verdade, o conhecimento estava sendo mais absorvido pelo capital, em
uma radicalização de um largo processo histórico, pois:

Na verdade, o progresso tecnológico que então se descortina seguirá uma


linha de crescente distanciamento do pensamento em relação à realidade
imediatamente perceptível, construindo-se conexões cada vez mais sutis,
mais invisíveis, a ponto de justificar, na aparência, a ideologia da
imaterialidade, ou da virtualidade, a partir do momento em que, com a
revolução da microeletrônica, a máquina passa a ser concebida como uma
união de elementos opostos: hardware e software. Com isso, a separação
entre trabalho manual e intelectual de que falava Sohn-Rethel se reproduz
no próprio equipamento, facilitando a subsunção do trabalho intelectual
que caracteriza a Terceira Revolução Industrial (Bolaño, 2016, p. 14).

Amorim (2014, p. 32) explica que a perspectiva da imaterialidade “pressupõe também


que, nesse longo período, que vai do século XVIII aos anos 1960, a produção teria se
baseado particularmente na classe operária, que executava um trabalho manual”, e que
agora haveria o trabalhador polivalente responsável pelo funcionamento e pela
manutenção de várias máquinas robotizadas, com qualificações predominantemente
intelectuais, o que geraria também contradições praticamente insolúveis para o próprio
capital. “Nessa aspiração revolucionária das forças produtivas, sob o signo de que o
conhecimento não poderia ser fonte do valor, dada a sua imensurabilidade, a relação
entre tempo de trabalho e tempo livre foi apresentada como chave para descrever o
esgotamento da produção industrial.” (Amorim, 2014, p. 33).

Há diversos equívocos no que tange à apreciação dessa corrente teórica acerca do


sentido de produção industrial, da distinção entre trabalho intelectual e manual, da
suposta materialidade das mercadorias, entre outras questões. Tendo em vista os
limites deste artigo, o fundamental é ter em vista que as tecnologias da informação e
da comunicação são tomadas como forças produtivas radicalmente inovadoras e

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A mediação do trabalho por plataformas digitais e seus impactos para a autonomia dos trabalhadores

conformadoras de outra sociedade. Essa noção aparece em Fuchs (2018, p. 83),


quando aponta que “no nível das forças produtivas, ele se desenvolveu das forças
produtivas industriais para as forças produtivas informacionais”.

Se não deixa de reconhecer que “a emergência do capitalismo informacional não


tornou a produção virtual ou a tornou sem peso ou imaterial” (Fuchs, 2018, p. 83), ele
considera que termos como “sociedade da informação” qualificam a forma específica
de organização das forças produtivas hoje. Todavia, forças produtivas não são um
objeto, mas relações. É por isso que “forças produtivas e relações de produção são os
dois aspectos do processo pelo qual os seres humanos produzem e reproduzem suas
condições de existência” (Bensaid, 1999, p. 74). Nosso esforço deve nos levar à
compreensão das forças produtivas e do processo material da produção,
considerando-as como parte das relações sociais, estas, sim, centrais.

Assim, de um ponto de vista sociológico, pode ter sentido promover esse tipo de
qualificação, mas ao tomar o “digital” ou mesmo a “plataforma” como qualificadores
centrais, ainda que em visões mais críticas como no caso do “capitalismo digital”, de
Schiller (1999), e “capitalismo de plataforma”, de Snircek (2017), coopera-se com
uma visão que pode derivar em uma abordagem fetichista, invertendo a relação
causal entre tecnologia e sociedade. Aqui, buscamos, no sentido de Marx, enfatizar as
relações sociais que ocorrem no capitalismo e que são incorporadas na tecnologia.
Trata-se, afinal, de um sistema revolucionário, que promove mudanças para aplacar
suas contradições, mas que se mantém sobre os processos identificados
essencialmente pela crítica da economia política.

De acordo com a interpretação de Bolaño (2002), com a qual concordamos, o que


marca a transformação no mundo do trabalho em curso desde os anos 1970 é a
subsunção do trabalho intelectual. Marx define subsunção como um processo de
subordinação do trabalho que, em sua forma geral, inicia-se como subsunção formal,
quando o “trabalho se converte no instrumento do processo de valorização, do
processo de autovalorização do capital: de criação de mais valor” (Marx, 1996, p.
54), sendo o capitalista transformado em seu dirigente. No desenvolvimento histórico
do capitalismo, essa relação vai se aprofundando. Na manufatura, o trabalhador é
expropriado do controle sobre todo o processo produtivo e, com a apropriação pelos
capitalistas dos conhecimentos tácitos dele, torna-se dependente da máquina, da qual
passa a ser mero apêndice. Este é o momento da subsunção real, característica da
grande indústria. Então, o fundamental é o emprego da ciência e da maquinaria,
alterando o meio de produção, a produtividade do trabalho e a relação entre o
capitalista e o operário. Não à toa a forma típica aqui é o do mais valor relativo, fruto
das alterações tecnológicas e da reorganização do trabalho, ainda que haja a produção

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de mais valor via expansão da jornada de trabalho. É o aprofundamento desse


processo que está em curso.

Esse avanço da subsunção real do trabalho potencializada pelas tecnologias digitais


tem no trabalho em plataforma uma frente de expansão importante. Para explicar o
fenômeno, autores vêm apresentando distintas abordagens. Woodcock and Graham
(2019, online) discutem o já bastante comentado termo “economia de bicos” (gig
economy), caracterizando-o a partir da centralidade da mediação das plataformas
digitais. Para os autores, essa economia compreende “mercados de trabalho
caracterizados por contratações independentes que acontecem por meio e em
plataformas digitais”.

Daugareilh, Degryse and Pochet (2019, p. 22) discutem a dinâmica do trabalho no


“capitalismo de plataforma”, caracterizando a economia de plataforma “como um
espaço (virtual) tecnológico reunindo grupos de pessoas que, de um jeito ou outro,
precisam umas das outras”. Com menos custos de transação, a plataforma está entre
uma firma e um mercado, com uma força de trabalho global disponível. Segundo
Drahokoupil and Piasna (2017), as plataformas de trabalho operam um agenciamento,
conectando oferta e demanda de força de trabalho. Elas desenvolvem este tipo de
atividade de acordo com os princípios de mercado e reduzindo fricções, atuando
sobre as falhas de mercado e diminuindo os custos de transação.

Van Doorn (2017) classifica “trabalho de plataforma” como trabalho de serviços


digitalmente mediados por intermediários, entendidos como “agentes
infraestruturais”, em um processo de reconstituição das relações de trabalho
intensificada nos anos 2010 em fenômenos como a economia sob demanda, ou de
bicos. O autor vai em sentido semelhante a Woodcock e Graham ao equivaler o
trabalho de plataforma à chamada gig economy.

Howcroft and Bergvall-Kareborn (2019) optam pelo termo “crowdwork”. Segundo as


autoras, esta modalidade permite que “microempreendedores” participem de relações
de trabalho flexíveis por meio de uma plataforma. Esse tipo funciona como um
mercado para a mediação de diversos tipos de serviços e tarefas, sejam operados
digitalmente ou fisicamente. Tal arranjo conforma uma força-de-trabalho sob
demanda, que utiliza dispositivos conectados para ofertar sua força-de-trabalho, obter
contratações e muitas vezes entregar os serviços contratados. As autoras igualam o
termo a outros como economia do compartilhamento.

Braz et al. (2020, p. 03) adotam a terminologia da “turkerização”, em referência à


plataforma Amazon Mechanical Turk, definindo-a como “todo microtrabalho que serve
à preparação e à produção de inteligência artificial”. Este seria o arquétipo de novas
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A mediação do trabalho por plataformas digitais e seus impactos para a autonomia dos trabalhadores

configurações que traduzem formas radicais de precarização das relações de trabalho.


O autor e as autoras apontam características como a transformação crescente das tarefas
em serviço, a exacerbação da competição e a ampliação da gestão algorítmica.

Abílio (2020, online) usa o termo “uberização”, referência à empresa Uber, embora
se refira “a processos que não se restringem a essa empresa nem se iniciam com ela, e
que culminam em uma nova forma de controle, gerenciamento e organização do
trabalho”. O fenômeno consistiria na ascensão de uma massa de trabalhadores
“autogerenciada subordinada disponível” desprovida de direitos, um trabalhador
“just-in-time”. A autora cita frágeis fronteiras entre o que é e o que não é tempo de
trabalho e entre o espaço doméstico e o do labor como suas características.

Grohmann (2020, p. 112) prefere a perspectiva da plataformização do trabalho, lida


“como a dependência que trabalhadores e consumidores passam a ter das plataformas
digitais – com suas lógicas algorítmicas, dataficadas e financeirizada”, processo que,
para o autor, envolve diferentes formas de apropriação do mais valor, a depender das
características das plataformas de trabalho e de clivagens de gênero, raça e território.

Nesse resumo de abordagens acerca do fenômeno, fica explícita a polissemia


concernente às novas formas de trabalho. Para situar a proposição de um trabalho
mediado por plataformas, cumpre distinguir algumas questões. Primeiro, não se trata
de um trabalho “digital”, termo que enfatiza o tipo de força produtiva. Outras
proposições trazem elementos mais interessantes e parcialmente corretos. Por
exemplo, a ideia de trabalho de plataformas incorpora a dimensão da mediação ativa,
mas o autor considera ser essencialmente “trabalho de produção de dados e
treinamento de algoritmos” (Van Door, 2017), o que é limitado. Sua extensão, aliás,
não é bem capturada a partir da nomeação de um tipo de experiência, como em
“uberização”, pois há vários modelos e empresas implicadas nessa mediação, que
tende a se espraiar. Também não está restrito à exploração de tarefas parciais, como é
destacado com o termo “turkerização, embora estas sejam comuns, o que pode ser
lido como uma parcialização. Por fim, não se trata de uma dependência, mas do
estímulo à ampliação de uma forma de exploração em consonância com as
necessidades do capital.

Ao propormos a perspectiva da mediação do trabalho por plataformas digitais,


partimos do reconhecimento das plataformas2 como “mediadores ativos de interações,
comunicações e transações entre indivíduos e organizações” (Valente, 2020, p. 73).

2 Entre as características dessas plataformas, estão, segundo Valente (2020): a operação sobre uma base
tecnológica digital conectada, o provimento de serviços calcados nessas conexões e lastreados na coleta e
processamento de dados, bem como de efeitos de rede, características que se apresentam nas relações de
trabalho constituídas por e em associação com elas.

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As plataformas não são espaços de interconexão simplesmente, muito menos neutras.


São corporações que operam uma mediação que é portadora de valores, propositora
de vínculos e articuladora de práticas, como as práticas algorítmicas de gestão e
controle dos trabalhadores. A outra mediação que ajudam a executar é a do próprio
modo de regulação que, seguindo Aglietta (2001, p. 19), entendemos como “um
conjunto de mediações que asseguram que as distorções criadas pela acumulação de
capital se mantenham dentro de limites compatíveis com a coesão social dentro de
cada nação”. Isso ocorre por meio da adoção de mecanismos de mediação que
reproduzem relações sociais fundamentais e sustentam certo regime de acumulação.

Ao definir a convergência audiovisual-telecomunicações-informática, base para a


configuração das plataformas, Bolaño (1999) afirmou que ela remete, em um plano
teórico mais geral, à aproximação entre informação, comunicação e cultura, em face
da constituição da indústria cultural, elemento de mediação entre mundo da vida e
sistema. Em segundo plano, mais concreto, aponta para a aproximação daqueles
setores, a reestruturação dos mercados e das relações de poder, tendo como base
mudanças tecnológicas. Assim como a indústria cultural opera a mediação no sentido
de ampliar a subsunção do trabalho cultural, as plataformas medeiam um conjunto de
outras formas de trabalho intelectual, ajustando-as às determinações do capital. Essa
mediação impacta a cultura dos trabalhadores, seja na forma como se veem, como se
relacionam com os demais e com o próprio ambiente e conteúdo do trabalho, e
constitui novas formas de gerenciamento algorítmico e vigilância, tudo com vistas à
ampliação da exploração, em um cenário de crise sistêmica.

A proposição de um trabalho mediado por plataformas, portanto, reconhece a


especificidade histórica da interação entre plataformas digitais e mundo do trabalho
na etapa atual e busca compreender as mediações existentes entre os agentes da
relação laboral e em relação ao capital, percebendo o fenômeno de forma abrangente.
Um segundo esforço consiste na apreensão das especificidades no interior desse
fenômeno amplo. Esta preocupação tem levado a uma série de tipologias e
classificações. De Stefano and Aloisi (2018) veem o “trabalho de plataforma”
formados por dois grandes grupos: crowdwork e trabalho sob demanda via apps. O
primeiro seria caracterizado pela oferta e contratação de tarefas a partir da mediação
de plataformas online, que colocam em contato organizações, empresas e empregados
utilizando a Internet, podendo adquirir uma escala global de conexões. O “trabalho
sob demanda via apps”, por sua vez, ocorre em atividades como transporte, entregas,
limpeza, sendo ofertados por meio de plataformas de tecnologia da informação como
Uber, Deliveroo e Taskrabbit.

Wood, Graham, Lehdonvirta and Hjorth (2019, p. 57) adotam uma tipologia baseada
na vinculação territorial das tarefas desenvolvidas. A especificidade que conformaria
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A mediação do trabalho por plataformas digitais e seus impactos para a autonomia dos trabalhadores

um determinado grupo de práticas estaria na separação sobre o local a partir do qual o


trabalhador pode realizar e entregar o produto do trabalho contratado, empregando as
modalidades de “gig work local” e “gig work remoto”. “O gig work local inclui
entrega de comida, entrega de mensagens, transporte e trabalho manual. O gig work
remoto, por contraste, consiste na provisão remota de uma ampla variedade de
serviços digitais, de entrada de dados à programação de software”.

Grohmann (2020, p. 113), por sua vez, divide-as em: i) plataformas que requerem o
trabalhador em uma localização específica; ii) plataformas de microtrabalho ou
crowdwork; e iii) plataformas freelance, de cloudwork ou macrotrabalho. Ocorre que
a distinção baseada em localização é pouco explicativa, bem como as diferenças entre
micro e macro. Isto porque trata-se de uma forma de parcialização do trabalho. A
linha de montagem não é visível, mas o que ocorre é a fragmentação do trabalho em
tarefas, ampliando a divisão do trabalho e a alienação. Há, a nosso ver, plataformas
que operam a produção de mercadoria ou serviço diretamente (caso dos aplicativos de
transporte ou limpeza) e outras que medeiam a venda da força de trabalho (a exemplo
das plataformas de “freelas”). O foco desta pesquisa é este segundo tipo.

4. RESULTADOS E DISCUSSÃO

Passemos, então, à análise das plataformas selecionadas. Em um primeiro momento


da pesquisa, que este trabalho reflete, as plataformas foram analisadas tendo em vista
55 questões. Aqui, destacamos os aspectos relativos à contratação, remuneração,
conteúdo do trabalho e autonomia dos trabalhadores. Foram analisadas: Workana,
Freelaweb.com.br, 99 Freelas, Get Ninjas, Freelas, Comunica Freelancer, Wedologos,
Vintepila, Vinteconto e Rockcontent Talent Network (Quadro 1).

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Quadro 1 - Relações entre plataformas digitais e trabalhadores

Plataforma Contrato e remuneração Conteúdo do trabalho


Conteúdo preestabelecido. O
Trabalhador recebe por serviço prestado.
serviço é publicado, e o
O tempo de contratação depende do
“comprador” solicita aquele
Freelaweb acordo entre o trabalhador e o
serviço que pode ter um valor
contratante, mas pode ser definido pelo
fixo ou não, definido por parte
contratante.
do trabalhador.
Conteúdo preestabelecido, mas
Trabalhador recebe por serviço prestado. passível de discussão. O
99 Freelas Para obter benefícios, deve pagar plano “cliente” publica o projeto,
de assinatura. estabelece o que deseja e o
trabalhador envia uma proposta.
Conteúdo preestabelecido.
O cliente anuncia na plataforma
o serviço, o tempo de entrega e
Trabalhador recebe por serviço prestado.
fica a critério do profissional
O trabalhador precisa comprar pacotes de
liberar essa tarefa ou não.
moedas para liberar acesso a demandas.
Os pedidos são específicos, com
O valor que será pago é sempre
título, modalidade (online ou
combinado posteriormente.
Get Ninjas presencial), área, data de entrega
Não há possibilidade de contratação
e alguma informação adicional.
perene na plataforma, mas o(a)
O cliente avalia qual dos quatro
trabalhador(as) pode estabelecer um
profissionais irá contratar para
contato com o cliente, sem mediação da
fazer o serviço. Trabalhador
GetNinjas.
pode não ser escolhido, mesmo
tendo usado moedas para liberar
pedido.
O contrato pode ser por um preço fixo
pelo trabalho finalizado ou por horas.
É possível trabalhar com o mesmo Conteúdo preestabelecido.
contratado/contratante. Recomenda maior detalhamento
Prevê contratação a longo prazo, mas do projeto para evitar
limita contato e cobra taxa para liberação. desacordos.
Workana
O trabalhador paga taxa à plataforma, que Informa que apenas após o
é escalonada de acordo com a relação que contratante estar “satisfeito” é
ele tenha com o cliente (se pontual ou que o contratado recebe o
prolongada). pagamento.
Para obter benefícios, deve pagar plano
de assinatura.
Comunica Não ocorre transação de dinheiro pela Conteúdo não é preestabelecido.
Freelancer plataforma. A ser acordado entre as partes.

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A mediação do trabalho por plataformas digitais e seus impactos para a autonomia dos trabalhadores

Contratação e acordos entre contratante e


trabalhador são de exclusiva
responsabilidade das partes envolvidas.
Para obter benefícios, deve pagar plano
de assinatura.
Não há cobrança pelo cadastro.
Conteúdo não é preestabelecido.
Freelas Paga taxa de intermediação a cada
A ser acordado entre as partes.
serviço prestado (10%).
Utiliza modelo de “concorrência
criativa”.
Só há remuneração para o profissional
Conteúdo é preestabelecido. Há
vencedor e quando o cliente declara estar
um briefing preenchido pelo
satisfeito.
cliente que limita o estilo de
O trabalhador pode optar pela venda em
criação.
loja virtual (hospedada na We Lancer
Wedologos Na loja virtual, o trabalhador
através do contato direto entre o
deve descrever o serviço que vai
contratante e o trabalhador em um canal
entregar, inclusive o formato em
privado). Neste modelo, o prêmio é
que será entregue a arte final,
liberado pelo serviço prestado ("escolha
que é predefinido.
quanto quer ganhar e para quem quer
trabalhar"; "faça um projeto privado com
este criativo")
Conteúdo preestabelecido.
Anúncio deve conter título,
Trabalhador recebe por serviço prestado.
descrição e imagem dos bens,
O trabalhador paga taxa à plataforma a
preço, categoria, quantidade,
Vinteconto cada trabalho realizado (20%).
condições de venda, forma e
Para obter benefícios, deve pagar plano
prazo de entrega, além da forma
de assinatura.
de pagamento.

Trabalhador recebe por serviço prestado.


Transfere a parte devida ao vendedor 15
dias após realizado o serviço.
O usuário pode tanto ofertar o serviço de Conteúdo não é preestabelecido.
sua escolha com um preço estipulado por Negociação se dá entre
si à espera de compradores, quanto vendedores e compradores.
Vintepila
aceitar a demanda de uma tarefa ou
projeto cadastrado por compradores que
estipulam o preço que estão dispostos a
pagar.
O trabalhador paga taxa a cada trabalho
realizado (20%).
Rockcontent O conteúdo é revisado e avaliado por Conteúdo preestabelecido.
Talent equipes da plataforma para que seja dado Termos de uso explicitam que o

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trabalhador tem que respeitar os


como entregue ao contratante. modelos e tamanhos
O trabalhador paga taxa a cada trabalho estabelecidos. Pode entregar a
realizado. mais, mas não receberá por isso.
Há um “guia de estilo” da
empresa.
Elaboração: Própria.

Vemos que as plataformas medeiam a relação entre usuários cadastrados como


clientes (com variações como parceiros e compradores), que buscam a força de
trabalho para determinados serviços, e usuários cadastrados como freelancers
(chamados profissionais, frequentemente, produtor de conteúdo independente ou
termo associado à categoria, como designer) se apresentarem para realizá-los. Na
Freelaweb, Vinteconto e Vintepila, os trabalhadores são apresentados como
compradores e os que usam seu trabalho como clientes, invertendo a relação. Na
Freelas, plataforma voltada exclusivamente para mulheres, tanto contratantes como
contratadas, as trabalhadoras são apresentadas como “Colaboradoras”. A Wedologos
reúne os trabalhadores em uma plataforma associada a partir de onde são nomeados
como "WeLancers", estabelecendo uma comunicação que é bastante distinta entre a
plataforma e os trabalhadores e a plataforma e os clientes. Em geral, todas reforçam a
ideia de desvinculação da relação laboral e empreendedorismo.

Os impactos das formas de mediação verificado nas plataformas digitais analisadas


sobre a autonomia dos trabalhadores se materializam em sentido mais geral pelos
modos de controle por meio das regras e estabelecimento das dinâmicas de
concorrência e realização dos trabalhos. A despeito de distintos modelos de acesso
aos trabalhos ou de remuneração, em todos os casos o grau de autonomia do
trabalhador para questionar ou incidir sobre as regras é mínimo. Os contratos não
existem de forma individualizada, configurando-se na forma de termos e condições
cuja única possibilidade do trabalhador é aceitar. O que nem sempre é feito, uma vez
que os trabalhadores podem acessar a plataforma e atuar por meio dela sem
necessariamente ler os termos e políticas internas.

A maior parte das plataformas controla intensamente pagamentos e comunicação


entre compradores e usuários (plataformas como Workana proíbem e punem o
contato direto por outras vias entre eles), assim como as transações financeiras. A
Freelas, por exemplo, tem uma aba onde as contratantes podem acessar o “perfil” das
trabalhadoras e contratá-las a partir das informações fornecidas por elas e diretamente
no perfil, no entanto, é a plataforma que entra em contato com a trabalhadora e firma
o contrato. A exceção aqui é a GetNinjas, que não medeia comunicação e pagamento.
A Comunica Freelancer não medeia pagamento e disponibiliza um chat online que

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A mediação do trabalho por plataformas digitais e seus impactos para a autonomia dos trabalhadores

pode ser sempre iniciado pelo cliente – para o trabalhador, é um recurso exclusivo
para aqueles que compram o plano de assinatura. As plataformas expõem a avaliação
e ranqueamento dos profissionais, adotando mecanismos de gamificação. São
estratégias que visam tornar as atividades dentro das plataformas mais estimulantes
para os usuários e que podem ir além dos rankings e premiações. Ficam em evidência
nos selos que são atribuídos pela Wedologos, como o de “coruja” que procura
estimular o trabalhador a ser produtivo entre o período de 0h às 06h. Ao coletar estes
e outros selos, o trabalhador ganha reconhecimento e destaque na plataforma.

A Wedologos se apresenta em distintas plataformas: Wedologos, voltada para os


clientes; a Welancer, que reúne os trabalhadores; e a WDL Club, para clientes
assinantes. A companhia estabelece obrigações como pagamento de taxas, e regras
estabelecidas em termos de uso, embora nenhum vínculo seja reconhecido. Apenas a
Workana afirma explicitamente que garante o pagamento ao trabalhador pelo serviço
prestado, caso o contratante falte com o compromisso.

As relações são definidas de forma unilateral em muitos casos, da aprovação do


cadastro ao desligamento. VintePila diz que os trabalhadores podem ser desligados
sem aviso prévio caso constatado que “não trazem retorno significativo à
plataforma”. A maior parte das plataformas se coloca como árbitra de conflitos. A
plataforma 99freelas define a discordância entre trabalhador e contratante numa
possibilidade de as partes não chegarem a um acordo como serviço “em disputa”,
impondo que as mesmas comprovem qual lado deve ser ressarcido das taxas cobradas
sob o serviço prestado ou não. Caso não ocorra, a plataforma se responsabiliza por
escolher um “vencedor” por meio de uma moderação própria, a qual é passível de
punir os usuários. Durante a análise das plataformas, mostrou-se comum a falta de
transparência dessas moderações.

Quanto à remuneração, os trabalhadores recebem por serviço prestado, em geral após


a realização do trabalho, reproduzindo o modelo de salário por peça descrito por
Marx, no qual:

A qualidade do trabalho é aqui controlada mediante o próprio produto, que


tem de possuir qualidade média se o preço por peça deve ser pago
integralmente. Desse modo, o salário por peça se torna fonte mais fecunda
de descontos salariais e de fraudes capitalistas. Ele proporciona ao
capitalista uma medida inteiramente determinada para a intensidade do
trabalho. (Marx, 1996, p. 183)

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Interessante notar que Marx antecipa que o salário por peça facilita “a interposição de
parasitas entre o capitalista e o trabalhador assalariado, o subarrendamento do
trabalho. O ganho dos intermediários decorre exclusivamente da diferença entre o
preço do trabalho que o capitalista paga e a parte desse preço que eles realmente
deixam chegar ao trabalhador.”. O trabalhador, por sua vez, como depende de cada
produção para receber o salário, acaba por “aplicar sua força de trabalho o mais
intensamente possível, o que facilita ao capitalista elevar o grau normal de
intensidade. Do mesmo modo, é interesse pessoal do trabalhador prolongar a jornada
de trabalho, pois com isso sobe seu salário diário ou semanal” (Marx, 1996, p. 184).

Com a lógica do salário por peça, as plataformas promovem a internalização de


custos pelos trabalhadores (pagam equipamentos para a elaboração de um conteúdo,
pacote de Internet, localidade, energia, formação etc.), além de assinaturas ou
pagamento direto por recursos e funcionalidades. Desta maneira, em muitos casos os
cadastrados acabam pagando para trabalhar, com um “investimento” na sua
visibilidade sem qualquer perspectiva de retorno. Outros aspectos notados por Marx
(1996) são a aparente liberdade, o autocontrole dos trabalhadores e a concorrência
entre eles e de uns contra os outros. Algumas plataformas avançam para situações
cruéis, como na lógica de “leilões de trabalho” (ou concorrência criativa, no termo
empregado na tentativa de aliviar o procedimento) em que trabalhadores não entram
em concorrência pelas suas forças de trabalho, mas pelo trabalho elaborado,
potencializando sobremaneira a exploração e a massa de trabalho não-pago.

É o caso da Wedologos e 99Freelas. Nelas, os trabalhadores elaboram trabalhos em


resposta a uma determinada demanda, mas só são remunerados se vencerem a
concorrência e tiverem o seu trabalho escolhido pelo contratante, em detrimento dos
demais trabalhadores, que aparecem, nessa relação, como competidores. Nesse caso,
há trabalho não pago, que, além de prejudicar diretamente o trabalhador, rebaixa o
valor da força de trabalho em geral. Ele chega a ser definido no caso de Vinteconto e
Vintepila, onde o pagamento para cada serviço, qualquer que seja, é de R$ 20.

Se por um lado as plataformas analisadas apresentam em geral intensas formas de


controle sobre a compra e venda da força de trabalho que medeiam, elas se
desresponsabilizam pelos problemas ocorridos no âmbito de suas atividades. Todas as
plataformas afirmam que são isentas de responsabilidades. Os termos trazem
informações como: “O Freelancer reconhece que não é empregado da plataforma
99Freelas e que prestará o serviço como profissional autônomo, sem vínculo
empregatício, em caráter eventual, não exclusivo, sem subordinação e mediante
recebimento de remuneração previamente ajustada única e exclusivamente pelo
serviço prestado”, afirma a 99Freelas, que acrescenta que “A plataforma apenas

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A mediação do trabalho por plataformas digitais e seus impactos para a autonomia dos trabalhadores

intermedeia relações entre contratantes e prestadores de serviços, não garantindo a


satisfação do usuário quanto à conduta do outro participante”.

Quanto ao conteúdo do trabalho, as plataformas apresentam modelos de diferentes


graus de controle prévio. Comunica Freelancer e Vintepila não estabelecem
previamente como o produto deve ser feito. As demais utilizam indicações mais
detalhadas, mas há margem para discussão. Interessante notar que Rock Content
Talent, embora se apresente como uma plataforma para trabalhadores criativos,
estabelece e dispõe de um manual que orienta a produção. Para além disso, a
plataforma tem um rígido processo de entrada, em que o “candidato” precisa fazer
uma prova e apresentar um teste de conteúdo para ser admitido pela equipe. Com
uma dinâmica constante de retornos, a equipe da plataforma “adequa” a produção de
conteúdo dos trabalhadores às diretrizes, estilos e padrões de qualidade estabelecidos.

Os casos em que não há formatos ou conteúdos preestabelecidos, contudo, não


querem dizer necessariamente uma maior autonomia do trabalhador. Isso porque este
segue dependente das diretrizes e validações do contratante do serviço. Sem limites
para a solicitação de ajustes ou correções, os modelos analisados abrem espaço para
um controle profundo do trabalho intelectual criativo por meio de extensivos
requerimentos de alteração. Como os trabalhadores dependem da aceitação do
trabalho para o recebimento do pagamento, a margem de discussão ou
questionamento do trabalhador reduz sobremaneira. Ainda que haja em alguns casos
procedimentos para solução de disputas, esses não necessariamente são favoráveis ou
estruturados para assegurar a proteção de trabalhadores contra práticas abusivas de
contratantes.

Na Wedologos, os clientes podem demandar ilimitadas alterações - e o freelancer se


submete aos pedidos. Há exceções, como a plataforma Vinteconto, onde é cobrada
taxa de R$ 5 para revisão da tarefa. Mas, em geral, o poder de aprovação do trabalho
está com o contratante, seja no modelo da Workana, que se coloca inclusive como
árbitra de possíveis conflitos, ou no caso do GetNinjas, em que há o risco de liberar
tarefa e não ser efetivado o contrato, perdendo moedas que foram compradas pelos
trabalhadores.

O conjunto de tecnologias também desempenha um papel chave. Trabalhadores


precisam dispor de aparelhos e conectividade, devem dominar e navegar as
aplicações e interfaces internas às plataformas e essas jogam um papel de definição
dos modos de materialização, armazenamento e compartilhamento do produto
intelectual contratado, bem como os mecanismos de avaliação e de interação com
contratantes e com os gestores da própria plataforma. Isso expressa o processo

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dialético que Valente (2020) chama de Regulação Tecnológica, como um movimento


em que a sociedade influencia os modos como a tecnologia é produzida e se
desenvolve e como esses aparatos influenciam as relações sociais.

Outro elemento chave da restrição da autonomia dos trabalhadores é o sistema de


avaliação e ranqueamento dos trabalhadores pelos contratantes, em um “sistema de
reputação”. Uma vez que este sistema em geral condiciona ou afeta a visibilidade dos
trabalhadores no acesso a tarefas, os trabalhadores ficam reféns tanto das próprias
plataformas (uma vez que eventuais violações ou questionamentos podem contar
negativamente na atribuição de pontos ou ranqueamento) quanto dos contratantes, a
quem não basta apenas a validação do resultado do trabalho, mas uma “boa
impressão” que renda uma avaliação não somente positiva, como alta na escala de
pontos. Esses sistemas reforçam as assimetrias de poder e de imposição das
demandas sobre o trabalho criativo, potencializando a subsunção do trabalho
intelectual.

Em uma sistematização esquemática, poderíamos compreender as formas de controle


com limitação da autonomia dos trabalhadores nas plataformas digitais de freelancing
online nos seguintes eixos:

 Gerais (organização das relações e trabalho) – plataformas

o A definição das regras gerais em termos, condições e outras políticas.

o O ambiente tecnológico da plataforma e seus sistemas e interfaces


(incluindo algoritmos, Inteligência Artificial e outros sistemas
automatizados ou não).

o A organização do processo produtivo por meio de regras documentadas


ou não acerca dos tipos de bens e serviços agenciados, incluindo as
condições de acesso, os parâmetros de qualidade e os procedimentos de
avaliação.

 Específicos (quanto ao trabalho contratado e executado) – plataformas e


contrantates

o O estabelecimento de parâmetros, estilos e orientações para a execução


dos trabalhos pela plataforma.

o As exigências e demandas para o trabalho contratado.

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A mediação do trabalho por plataformas digitais e seus impactos para a autonomia dos trabalhadores

o A modulação do resultado do trabalho executado até os interesses dos


contratantes.

o O adestramento por meio dos sistemas de avaliação e ranqueamento.

Em que pese o caráter esquemático dessa categorização, entendemos que ela organiza
diversas condutas das plataformas analisadas ao longo do trabalho e, ao mesmo
tempo, pode servir como elementos a serem desenvolvidos em trabalhos posteriores
para seu exame em outros casos e para a qualificação do quadro.

5. CONCLUSÃO

Em um contexto de crise e transformações no mundo do trabalho e de crise


econômica global, que no Brasil se reflete na existência de 13 milhões de pessoas
desempregadas em 2021, despontam como agentes importantes as plataformas
digitais, que exercem múltiplas mediações, em relação ao capital em geral, em
relação à distintas atividades e, no caso daquelas voltadas ao trabalho, entre as partes
da relação laboral. Enfatizamos a ideia de mediação pelo intuito de compreender
como as transformações mais amplas são processadas paulatinamente, por meio da
intervenção de agentes e em áreas diversas.

Em um plano menos abstrato, vimos, a partir da análise de dez plataformas, que,


diferentemente da noção de “intermediários” neutros, promovem mediações ao
definirem regras, lógicas de funcionamento e parâmetros de conduta. Nessa
mediação, a autonomia de criação e produção dos trabalhadores é subordinada
duplamente: aos formatos e regras da plataforma, de um lado, e aos ditames do
contratante, de outro. Os trabalhadores são impelidos a entregar as tarefas solicitadas,
sendo submetidos a um modelo de salário por peça que amplia a exploração. Na outra
ponta, há uma segurança total para o comprador da força de trabalho, que vai ter o
produto que ele quer diretamente, sob encomenda, no prazo determinado. Há,
portanto, maior desigualdade de poder, o que é intensificado pela fragilidade de
vínculos e organização.

Embora a dificuldade de subsumir a atividade criativa permaneça, como demonstram


os exemplos de plataformas que abrem margem para negociação do conteúdo do
trabalho, a mediação de plataformas amplia este processo e pode ser identificada
como uma nova etapa da subsunção real do trabalho, na qual o uso da ciência e da
maquinaria é fundamental, mudando os meios de produção, a produtividade do
trabalho e a relação entre o capitalista e o trabalhador, e dificultando a organização da
classe trabalhadora de hoje. As plataformas estudadas, para tanto, usam mecanismos

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de definição da demanda, controle da produção, aceleração, avaliação e


condicionamento do pagamento à aprovação pelo cliente, os quais vão aprofundando
a subsunção do trabalho intelectual.

Na seção de análise, discutimos esses diversos métodos empregados pelas plataformas


e apresentamos uma sistematização esquemática acerca de formas de controle da
autonomia dos trabalhadores. Por meio dessas práticas, as plataformas exercem poder
por meio da mediação das contratações da força-de-trabalho para tarefas específicas.
Mas, ao mesmo tempo, as mediações exercidas pelas plataformas se relacionam com a
totalidade da reprodução do sistema capitalista ao oferecer alternativas de reduzir os
custos da força de trabalho, especialmente com a amplificação do modelo do salário
por peça. Se por um lado a contratação direta do trabalhador em modelos considerados
“padrão” calcados em um vínculo podem indicar formas de controle mais efetivas e
intensas uma vez que o trabalhador está submetido ao empregador, por outro o modelo
de trabalho em plataformas online de freelancing reduz, como destacado no trabalho, a
autonomia do trabalhador em diversos aspectos pontuados, especialmente ao minar
condições de organização e resistência.

A costura entre as premissas teóricas e a análise empírica nos permite, pois, verificar
e descrever formas contemporâneas de amplificação da precarização do trabalho. Um
processo acelerado na pandemia, que facilitou a introdução de tecnologias devido ao
isolamento social e estimulou a demanda pelo desenvolvimento de microtarefas
remuneradas. Em um contexto de precarização das relações laborais e de fragilização
da legislação trabalhista no Sul global, é possível vislumbrar uma maior abertura para
a adoção de tais plataformas, como forma de ampliar o processo de exploração.

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DOI: https://doi.org/10.33637/2595-847x.2023-180
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A mediação do trabalho por plataformas digitais e seus impactos para a autonomia dos trabalhadores

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Data de submissão: 30/09/2022
Data de aprovação: 07/12/2022

Este trabalho está licenciado sob uma licença Creative Commons Attribution-
NonCommercial-ShareAlike 4.0 International License.

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O TRABALHO EM PLATAFORMAS DIGITAIS NO BRASIL

Autônomos ou empregados? Exame das condições de


trabalho na plataforma digital Rappi
Self-employed or employees?
An examination of working conditions at the digital platform Rappi

Diogo Torres
Graduado no Bacharelado Interdisciplinar em Humanidades (UFBA),
Graduando em Direito (UFBA), bolsista PIBIC/CNPQ do projeto de
pesquisa: Plataformas digitais de trabalho: análise crítica e comparada
sobre a regulação legislativa e negociada - UFBA. Participante no
grupo de pesquisa Transformações do Trabalho, Direito e Proteção
Social (TTDPS/UFBA). https://orcid.org/0000-0002-7766-4329

João Pedro Oliveira Magalhães


Graduando em Direito (UFBA), bolsista PIBIC/FAPESB do projeto de
pesquisa: Plataformas digitais de trabalho: análise crítica e comparada
sobre a regulação legislativa e negociada - UFBA. Participante no
grupo de pesquisa Transformações do Trabalho, Direito e Proteção
Social (TTDPS/UFBA). https://orcid.org/0000-0002-3451-4929

Silvia Helena Coelho Gomes


Graduanda em Direito (UFBA), bolsista PIBIC/CNPQ (UFBA), membro
do grupo de pesquisa Transformações do Trabalho, Direito e Proteção
Social (TTDPS/UFBA). https://orcid.org/0000-0002-4398-3161

Vanessa Cunha de Souza


Graduanda em Direito (UFBA), bolsista PIBIC/CNPq 2021-2022,
monitora na disciplina Direito Sindical e Coletivo do Trabalho, aluna
especial na disciplina de mestrado Sociologia do Trabalho (UFBA),
membro do grupo de Pesquisa Transformações do Trabalho, Direito
e Proteção Social (TTDPS/UFBA), pesquisadora voluntária do
projeto de extensão Caminhos do Trabalho (UFBA).
https://orcid.org/0000-0001-6563-837X

RESUMO: O artigo objetiva analisar as condições de trabalho dos entregadores da


Rappi em âmbito nacional ao averiguar qual a natureza jurídica da prestação de
serviço realizada pelos entregadores no bojo da plataforma. O texto examina 102
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Autônomos ou empregados? Exame das condições de trabalho na plataforma digital Rappi

questionários de trabalhadores colhidas no Projeto PIBIC na UFBA, sobre as


condições de trabalho na plataforma Rappi. Para realizar tal exame, este trabalho
apresenta um panorama teórico sobre a plataformização do trabalho, que servirá de
base para a análise da realidade observada. A partir disso, investiga-se as
contradições presentes entre os termos de uso da plataforma e os relatos dos
entregadores sobre seu trabalho. Dessa forma, o trabalho faz um estudo da Rappi
como plataforma digital, analisa os termos de uso e o funcionamento da plataforma,
apresenta os dados da pesquisa da empírica e, por fim, realiza a análise sobre o
enquadramento trabalhista dos entregadores. Os resultados parciais dessa pesquisa
indicam que o perfil majoritário dos entregadores corresponde ao entregador que
labora mais de 44 (quarenta e quatro) horas semanais, ganha valor aproximado a dois
salários-mínimos/hora, não faz o cálculo de abatimento dos custos para
desenvolvimento da atividade, sofreu algum tipo de bloqueio ou punição e reconhece
que há controle da plataforma, todavia, não se considera empregado.

Palavras-chave: Rappi, plataforma digital, perfil dos entregadores, vínculo de


emprego.

ABSTRACT: The article aims to analyze the working conditions of Rappi's delivery
workers at a national level by investigating the legal nature of the service provided by
the deliverers of the platform. The paper examines 102 interviews with workers
collected during the PIBIC project at UFBA, about working conditions on the Rappi
platform. In order to carry out such an examination, this paper presents a theoretical
background on the platformization of work, which will serve as a basis for the
analysis of the observed reality. Based on that, it investigates the contradictions found
between the platform's terms of use and the delivery drivers' reports about their work.
In this way, the paper conducts a study of Rappi as a digital platform, analyzes the
terms of use and the platform's operation, presents the data from the empirical
research and, lastly, analyzes the labor regulation framework that better suits the
delivery drivers. The partial results of these interviews indicates that the majority
profile of the delivery drivers corresponds to the courier who works more than 44
(forty-four) hours a week, earns approximately two minimum wages/hour, does not
calculate deductions of costs for the development of the activity, has suffered some
kind of blocking or punishment and recognizes that there is control by the platform,
but does not consider himself an employee.

Keywords: Rappi, digital platform, worker´s profile, employment bond.

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Diogo Torres / João Pedro Oliveira Magalhães / Silvia Helena Coelho Gomes / Vanessa Cunha de
Souza

1. INTRODUÇÃO

As tecnologias da informação e da comunicação (TICs) promoveram mudanças


significativas nas relações de trabalho e ofereceram a esse mercado ferramentas de
gerenciamento, controle e contratação de trabalhadores mais eficientes. Essas
ferramentas vêm ditando o ritmo e a forma de trabalho de milhões de brasileiros e
têm possibilitado a criação dos verdadeiros monopólios que vem dominando os
serviços de transporte de mercadorias e de passageiros no Brasil.

Um estudo (MACHADO, ZANONI, 2022) realizado em 2021 pela Clínica de Direito


do Trabalho da Universidade Federal do Paraná (CDT/UFPR) apontou que, no Brasil,
aproximadamente 1,5 milhão de pessoas prestam serviços controlados por plataformas
digitais de trabalho, em aproximadamente 1,5 mil aplicativos em operação no território.
Esses trabalhadores atuam principalmente no ramo de transporte e prestam serviço
majoritariamente às plataformas Uber, 99, iFood e Rappi.

No caso da Rappi, ou Rappi Brasil Intermediação de Negócios LTDA, trata-se de uma


empresa colombiana, fundada em 2015, atuante em nove países da América Latina,
dentre eles o Brasil (PEQUENAS EMPRESAS GRANDES NEGÓCIOS, 2022;
RAPPI, 2022b). Ela aposta em um modelo chamado “delivery de tudo”, que engloba
tanto o serviço tradicional de entregas - entrega de supermercados, farmácias,
restaurantes, shoppings, entre outros estabelecimentos dentro da rede credenciada na
plataforma; mas também, envolve um serviço de entregas diferenciado, em
estabelecimentos fora da rede credenciada (Função Rappi Antojo), a entrega de favores
(Função Rappi Favor) e até o delivery de dinheiro (Função Rappi Cash) (ALDANA,
ARROYO, CORTÉS, 2022, p.34; CUNHA, 2022, p. 33-38; RAPPI, 2022a).

A plataforma se apresenta como uma intermediadora no serviço de entregas e deixa


claro, em seus termos de uso (RAPPI, 2022c), que não se reconhece como empregadora,
ressaltando que considera que os entregadores são parceiros e que o contrato de prestação
de serviços é feito diretamente entre entregadores e consumidores1.

1 No “Item 1” dos termos de uso, de título “Considerações Iniciais”, a alínea “e” estabelece que “o contrato será
firmado exclusivamente entre o ENTREGADOR e o CONSUMIDOR, sem qualquer responsabilidade da
OPERADORA inclusive pela inexecução ou execução defeituosa do serviço de frete”. O “Item 2”, por sua vez,
estabelece as definições e afirma que entende por entregador “a pessoa física (maior de idade e com capacidade
civil) ou eventualmente jurídica que se cadastra na PLATAFORMA e tendo seu cadastro aprovado se habilita a
realizar entregas dos FORNECEDORES aos CONSUMIDORES conforme a sua disponibilidade, viabilidade ou
desejo, de forma completamente autônoma, acessando um dispositivo específico da PLATAFORMA. O
Entregador pode realizar a entrega por moto ou bicicleta, dependendo da logística da operação.

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Autônomos ou empregados? Exame das condições de trabalho na plataforma digital Rappi

Dessa forma, este artigo se destina a apresentar os dados coletados a partir de uma
pesquisa empírica realizada com entregadores da plataforma Rappi através do projeto
de pesquisa do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica - PIBIC-
UFBA, financiado pelo CNPq, intitulado “O trabalho na plataforma Rappi”, que se
desenvolveu sob orientação do Professor Murilo Carvalho Sampaio Oliveira e por
uma das autoras do presente trabalho.

A pesquisa, do tipo exploratória-descritiva, teve instrumento de coleta híbrido, tendo


por método principal a aplicação de dois questionários Google Forms respondidos
pelos entregadores da plataforma, um aplicado pelos pesquisadores, de modo
presencial, e outro autoaplicável, de forma online, o que possibilitou a propagação da
pesquisa em grupos de Facebook, páginas de Instagram e grupos de Whatsapp de
entregadores. Como método auxiliar, se fez uso da observação semiestruturada sem
intervenção, contando-se com roteiro de observação que norteou as anotações quanto a:

Descrição do ambiente estrutura, existência de assento para os


entregadores, ventilação:

Descrição da quantidade de vezes em que o mesmo entregador foi visto ir


e voltar entre entregas, enquanto o questionário estava sendo aplicado:

Descrição da forma como os entregadores fazem suas refeições e sobre


necessidades básicas (ex.: se no chão, em assentos, sobre seus veículos,
onde armazenam seus alimentos, forma de acesso à água e banheiro):

Descrição da ocorrência de algum "pedido inusitado" (ex.: compras de mês


em mercado para um entregador de moto, doze caixas de cerveja, corridas
combo em que o entregador tem dificuldade por conta do peso, etc):

Descrição das falas relacionadas à percepção dos sujeitos inquiridos e


anotações de percepções de contradições entre as falas e o contexto
analisado (CUNHA, 2022):

Como intuito principal, o artigo se destina a apresentar as condições de trabalho de


entregadores da plataforma Rappi, dando ênfase nos eixos jornada e remuneração,
transparência e formas de punição da plataforma, e controle e vínculo de trabalho
entre os sujeitos dessa relação. No primeiro tópico, é feito um enquadramento
conceitual e classificatório da Rappi enquanto plataforma digital; o segundo tópico
apresenta uma análise dos termos de uso da Rappi voltados aos trabalhadores, com os
quais, obrigatoriamente, os entregadores da plataforma devem concordar antes de

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prestar qualquer serviço; e, por fim, são apresentados os dados da pesquisa realizada,
que demonstram as condições de serviço desses trabalhadores a partir da análise dos
eixos de enfoque.

2. ENQUADRAMENTO DA RAPPI COMO PLATAFORMA DIGITAL

Uma plataforma digital pode ser definida, em seu aspecto mais essencial, enquanto
uma infraestrutura digital que permite a interação entre diferentes grupos (SRNICEK,
2018, p, 45). Assim as define Srnicek, ao apresentar aquilo que ele chama de
capitalismo de plataformas. Este fenômeno nada mais é do que a gradativa adoção,
por empresas dos mais variados ramos econômicos, do modelo de plataformas
digitais para a gestão de seus negócios.

Desde a tradicional General Electric às recém criadas Google e Meta, diferentes


empresas se engajam no modelo de plataformas digitais, calcado, dentre outros
pontos chave, no processo de dataficação (SRNICEK, 2018). Este, apresentado como
fenômeno mediante o qual a atual capacidade tecnológica de se produzir, armazenar e
analisar quantidades massivas de dados os tornou uma valiosa mercadoria.

Em uma visão ampla da temática, Abílio (2017) aborda o fenômeno da plataformização


dos trabalhos utilizando o termo “uberização” para apontar que se trata de uma forma
de transferência feita pelas empresas dos custos do trabalho para o trabalhador, sem que
se perca o controle sobre a produção e sobre os ganhos. Entregadores são responsáveis
por custos como seguro, gasolina, alimentação e as empresas não precisam se
preocupar sequer com os locais utilizados para a espera de um pedido.

Esse é o fenômeno que permite o modelo de empresa enxuta que pode ser observado
nas autodenominadas startups de sucesso. Também, é nesse momento em que se
evidencia a passagem da figura do trabalhador empregado para a do “homem
empresarial”, apontado por Dardot e Laval (2016), sujeito moldado pela lógica
neoliberal e que concebe o empreendedorismo como uma nova dimensão do homem.
O homem empresarial é o sujeito visto como uma empresa, se responsabilizando pelo
seu próprio gerenciamento, e como um capital que deve ser capaz de se frutificar
(DARDOT; LAVAL, 2016).

O discurso da Rappi é de que o entregador gerencia seu trabalho, é livre para


gerenciar o seu tempo e, portanto, deve ser identificado como sujeito autônomo,
dessa forma, o “homem empresarial entregador por aplicativo” não só abre mão de

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Autônomos ou empregados? Exame das condições de trabalho na plataforma digital Rappi

direitos trabalhistas, como toma para si os riscos da concorrência e da falta de


rendimentos, estando em uma constante competição com seus colegas de aplicativo.

Dentre tantas empresas que empregam o modelo de plataformas digitais, muito se debate
sobre como classificar tais plataformas. O próprio Srnicek apresenta em seu livro cinco
categorias, baseadas majoritariamente na observação de como os dados são utilizados
para alcançar os fins de cada atividade econômica. Contudo, o debate sobre tipologias de
plataformas é amplo e diversas são as propostas de classificação. (SCHMIDT, 2017;
SCHOR, 2014; CODAGNONE et. al, 2016; ALOISI, STEFANO, 2018).

Por diferentes caminhos, surge no debate acerca de uma taxonomia das plataformas
digitais a possibilidade de classificá-las, também, a partir de um critério que avalia a
participação do trabalho no fornecimento do serviço prestado. Assim, Aloisi e De
Stefano (2018), Codagnone et. al (2016), a Eurofound (DE GROEN, et. al, 2018)
apresentam também suas propostas de critérios específicos para a classificação das
plataformas digitais de trabalho.

Um panorama de toda essa produção, assim como um debate acerca de seus limites e
seus potenciais, é feito por Carelli e Oliveira (2021). Após a análise desse debate,
propõe-se uma síntese tanto conceitual quanto de proposição de critérios a partir dos
quais se pode classificar as plataformas digitais de trabalho. Em razão de sua
capacidade de sistematizar os eixos centrais para o direito do trabalho presentes nas
outras proposições, compreendendo seus limites, este artigo se valerá desse aporte
teórico para classificar a empresa Rappi.

Critérios de classificação são de suma importância para o estudo do trabalho em


plataformas digitais, e, nesse sentido, Carelli e Oliveira (2021) apresentam quatro
critérios considerados mais profícuos para a regulação do trabalho, quais sejam: 1)
Pela presença ou ausência de controle relevante das plataformas sobre a interação
entre os negociantes e os serviços prestados (marketplace puro e plataformas
dirigentes); 2) Por ramo ou setor de prestação de serviço, de particular interesse para
a regulação do trabalho; 3) Pelo local de entrega do resultado do serviço (online ou
local), relevante para debates sobre conflito de leis no espaço; 4) Pelo caráter da
tarefa exigida ao trabalhador: microtarefas entregues à multidão, ou tarefas completas
entregues a indivíduos.

No que tange ao primeiro critério, o principal fator de diferenciação entre as


plataformas de marketplace puro e plataformas dirigentes é o grau de interferência na
relação entre as partes conectadas na plataforma. Assim, nas primeiras a interferência
é diminuta, vez que a plataforma propõe a atividade “pura” de conexão entre as partes

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Diogo Torres / João Pedro Oliveira Magalhães / Silvia Helena Coelho Gomes / Vanessa Cunha de
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prestadora e tomadora de serviço, não exercendo controle sobre a atividade objeto da


contratação, de forma que o objeto da atividade empresarial é apenas o de viabilizar
um ambiente para interação negocial e os termos da contratação são estabelecidos
entre as partes. A título exemplificativo, toma-se a GetNinjas, empresas gestoras de
plataformas de “freelancer” que não exercem atividade de precificação, rankeamento
com base em performance ou demais formas de controle sobre a prestação do serviço.

Por outro lado, nas plataformas dirigentes, é maior o grau de interferência na relação
entre tomador e prestador de serviço, exercendo-se controle sobre a atividade
negocial. Esse controle se constata, sobretudo, na precificação, disposição acerca das
regras e condições de trabalho e avaliação deste. Logo, o objeto da atividade
empresarial consiste apenas em propiciar uma plataforma que promova uma interação
negocial. Ao contrário, plataforma é meio de organização e gerência para a prestação
de um serviço personalizado que, no caso da Uber, é serviço de transporte de
passageiros, no caso da Ifood é o delivery de comida e, no caso da Rappi, o “delivery
de qualquer coisa”, em utilização a própria expressão que a empresa faz referência.
Nestas plataformas, a relação negocial não ocorre entre as partes conectadas, mas sim
de cada uma individualmente com a plataforma.

Após a análise dos dados de pesquisa empírica, termos de uso do aplicativo e leituras
do blog e sítio oficiais da própria empresa, não se pode chegar a outra conclusão
contrária à de que a Rappi tem modelo de negócio dirigente.

A Rappi, conforme observado em sua forma de operação e de se relacionar com os


entregadores, pode ser classificada como uma plataforma digital de trabalho dirigente
(ou mista) (CARELLI; OLIVEIRA 2021), haja vista que a forma empresarial é um
meio para a prestação do serviço autodenominado de “delivery de qualquer coisa” e
que os usuários realizam um negócio com a própria plataforma, sob as determinações
unilaterais dela, e não através de um acordo mútuo entre si.

Nela, se verifica a precificação, uma série de diretivas nos termos de uso acerca do
trabalho que são de observância obrigatória, sob pena de desligamento do
trabalhador, além do controle do tempo de entrega. Ademais, a própria empresa
assume, em seu sítio eletrônico oficial que indica a localidade onde o serviço deve ser
prestado e que isso interfere na quantidade de demandas que o trabalhador irá
receber. Verificou-se, também, no relato dos entregadores, a existência de punições
como bloqueios temporários para dias não logados ou para o caso de extrapolar o
tempo de entrega2. Os entregadores relataram, ainda, que a empresa exige envio de
2 Ao ser indagado porque se considera empregado da empresa, o entregador Jean respondeu o seguinte “vai
ficar sem logar no final de semana, ou por dois ou três dias seguidos para ver o que acontece. A pontuação

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Autônomos ou empregados? Exame das condições de trabalho na plataforma digital Rappi

documentos como atestado médico, boletim de ocorrência, notas fiscais de oficina


mecânica, afim de comprovar o motivo de ausência ao trabalho se houver grande
quantidade de dias consecutivos não logados na plataforma3.

Além disso, a Rappi atua em um ramo particular, em que o serviço típico de entregas é
conjugado com a prestação de pequenos serviços variados. De toda maneira, o resultado
do serviço é entregue localmente com base em tarefas completas que são entregues
individualmente a cada trabalhador - tendo em vista que o entregador recebe a tarefa
através de um aplicativo vinculado à plataforma, mas ela se consuma presencialmente4.

O local em que a atividade é executada é relevante também por conta do potencial


que essas plataformas têm de interferirem nas legislações aplicáveis ao redor do
mundo, como aponta De Stefano (2016). O autor ainda observa que a via contrária
também pode ser identificada, qual seja a de alterações na estrutura dos contratos
celebrados por essas empresas em decorrência da legislação local acerca do tema.
Desse modo, é possível que em um local a empresa assuma responsabilidades
determinadas contratualmente e em um outro local essa mesma empresa se perceba
isenta de assumir tais responsabilidades.

Por outro lado, um aspecto que pouco se distingue nessas plataformas a depender da
sua localidade é o fato de que em qualquer localidade elas criaram um mercado de
serviços que podem ser ofertados 24h por dia, 7 dias por semana, como identifica
Kalil (2019). A viabilidade desse modelo, evidentemente, depende fortemente da
conexão possibilitada pela internet, mas também da permanência online de uma onda
de trabalhadores em contratos precários movidos pela expectativa de garantirem mais
trabalhos. As jornadas semanais de trabalho, que ultrapassam as 70h, relatadas por
diversos entregadores5, evidenciam essa realidade.

abaixa logo, aparece bloqueio do nada, fica um tempão sem aparecer pedido”. Também afirmou que a
empresa exerce controle do trajeto que o entregador faz. Segundo ele, sempre que o entregador toma outro
caminho que não o indicado pelo “aplicativo”, a Rappi envia mensagem indicando que não está seguindo a
Rota orientada pela empresa. Afirmou, ainda, que a empresa controla o tempo de entrega e os aceites,
porque se negar muitos pedidos ou extrapolar o tempo de entrega, recebe bloqueios curtos que variam entre
15 min a 2h. Se negar pedidos for uma conduta constante, os bloqueios podem ser definitivos.
3 Danilo esclareceu que sofreu bloqueio definitivo após passar 15 dias consecutivos sem logar, por conta de um
acidente com sua motocicleta durante seu trabalho com entregador. Ao comparecer na Central física da
empresa em Salvador - que fica na Igreja Batista Filadélfia, no bairro da Caixa d’Água, Danilo foi orientado
pelo representante da Rappi a enviar e-mail para a empresa com toda documentação comprobatória de que
esteve acidentado e que sua moto estava danificada, para que tivesse seu cadastro reativado (CUNHA, 2022).
4 A descrição do funcionamento da plataforma apresentada se baseia na leitura dos termos de uso e dos
relatos dos trabalhadores.
5 Relatos colhidos no relatório de observação, no campo pesquisado.

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Diogo Torres / João Pedro Oliveira Magalhães / Silvia Helena Coelho Gomes / Vanessa Cunha de
Souza

3. APRESENTAÇÃO DA PLATAFORMA RAPPI E ANÁLISE DOS SEUS


TERMOS DE USO

A compreensão do modelo de negócio da Rappi se inicia pelo exame das regras de


funcionamento formalmente definidas por esta empresa, de modo que convém
examinar, criticamente, os termos e uso que guiam a relação prática entre a empresa e
os trabalhadores. Os termos e condições de uso da Rappi, disciplinam, em tese, as
condutas operacionais da plataforma, contendo de forma detalhada como essa
“parceria” entre ela e o entregador será realizada e quais serão seus aspectos legais.

Os termos e condições de uso possuíam em 02 de maio de 2022 características de


contrato de adesão, com 23 cláusulas fechadas e um total de 18 páginas A4. Assim,
resta ao entregador nenhuma autonomia sobre a construção deste instrumento, sendo
o prosseguimento do cadastro condicionado à sua aceitação.

Em suas considerações iniciais, os termos de uso da Rappi definem as funções de cada


partícipe em sua relação contratual, que são: A) A própria, classificada como Operadora,
responsável somente por disponibilizar uma plataforma virtual, exibindo os produtos e
serviços fornecidos pelos seus parceiros. B) Consumidores, pessoas que acessam o
aplicativo para consumo de serviços e produtos dos fornecedores. C) Entregadores,
pessoa física, maior de idade com capacidade civil, que de forma autônoma e de acordo
com a demanda e pedidos realizados no aplicativo, se disponibilizam a realizar pedidos
(encargos) solicitados pelos clientes. D) Fornecedores, pessoas jurídicas que através da
plataforma oferecem seus serviços e produtos.

Ademais, os termos de contratação estabelecem cláusula de pessoalidade na prestação


do serviço, proibindo de forma expressa que o entregador transfira, autorize ou
forneça a terceiros, qualquer senha ou forma de acesso à plataforma.

Ao ler os termos, constata-se a afirmação de trabalho autônomo, no sentido de que o


trabalhador poderia gerir seu trabalho de forma livre, logar a qualquer momento, ficar
disponível quanto tempo quiser e aceitar ou recusar de forma livre as corridas de
acordo com a sua capacidade ou até mesmo vontade.

Na prática, percebeu-se, através dos relatos dos entregadores6, que o trabalho precisa
ser previamente agendado, com local e horário, indicados pela plataforma, tendo em
vista que essas vagas são limitadas e, caso o obreiro não permaneça o tempo mínimo
de 70% da carga horária previamente agendada, ou iniciar as atividades fora do local

6 Relatos colhidos no relatório de observação, no campo pesquisado.

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Autônomos ou empregados? Exame das condições de trabalho na plataforma digital Rappi

pré-determinado perderá a vaga. Aliás, a própria empresa também assume tal


intervenção na prestação do serviço quando esclarece o funcionamento do sistema de
agendamento e vagas por níveis (SOU RAPPI, 2021).

Após iniciar o trabalho, se porventura não aceitar todas as corridas, o entregador


passa a sofrer sanções. Frisa-se que o item 5. ii dos termos de uso da Rappi (RAPPI,
2022c) aponta que é encargo do entregador aceitar ou não a corrida, todavia, na
hipótese de rejeição de um número elevado de corridas, o direcionamento de pedidos
a esse profissional será reduzido. Esse é um mecanismo utilizado pelo aplicativo
como assédio para que o colaborador ative a funcionalidade do auto aceite, em que
qualquer corrida será aceita de forma automática, sujeitando o entregador a bloqueios
caso queira cancelá-la.

No exercício das atividades, o entregador depende diretamente da operadora, já que


ela direciona as demandas a serem realizadas, além de ser a ponte entre o cliente,
fornecedor e o profissional, mas nos seus termos ela realiza todas a isenções possíveis
de suas responsabilidades, a exemplo das penais, civis, acidentes no percurso
destinado ou mesmo na falha de comunicação com o destinatário, deixando encargos
e condenações sob a responsabilidade do entregador.

No exercício das atividades, o entregador depende diretamente da operadora, já que


ela direciona as demandas a serem realizadas, além de ser a ponte entre o cliente,
fornecedor e o profissional. Nos seus termos (RAPPI, 2022c), ela se isenta de
responsabilidades penais, civis, por acidentes de percurso ou mesmo pela falha de
comunicação com o destinatário, deixando encargos e condenações7 sob a
responsabilidade do entregador.

No item 11, “Autonomia”, há especificamente a descrição sobre o tipo de natureza da


relação contratual, esclarecendo que não se submete a regras trabalhistas, não
havendo relação de hierarquia. Destaca, inclusive, que qualquer ação a ser proposta
na justiça tem que ser protocolada na esfera civil (RAPPI, 2022c). Há de se observar
a contradição que ocorre na prática com sua forma abusiva de agir com os
entregadores, já que a mesma estipula inúmeras obrigações para o polo mais fraco da
relação, coagindo o entregador a trabalhar de acordo com suas estipulações através de
ameaças constantes de banimento da plataforma.

Embora nos termos de uso a empresa afirme que não há hierarquia, no blog Sou
Rappi (2021), destinado a esclarecimento de dúvidas aos entregadores, a Rappi

7 Conforme tópico 16, item XV dos termos de uso (RAPPI, 2022c).

Laborare. Ano VI, Número 10, Jan-Jun/2023, pp. 103-127. ISSN 2595-847X. https://revistalaborare.org/
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Souza

estabelece que o entregador precisa agendar o turno de trabalho e que o sistema de


avaliação dos entregadores impacta na possibilidade de agendamento de turno.

A empresa estabelece um sistema de avaliação dos trabalhadores nos níveis Alerta,


Bronze, Prata e Diamante. Apenas os dois níveis mais avançados possuem prioridade
na reserva de horário ou turno de trabalho. Além disso, quanto mais alto o nível
alcançado, maior o número de cotas disponíveis para trabalhar no turno em diferentes
localidades (SOU RAPPI, 2021).

Conforme a própria Rappi explica em seu blog, voltado para entregadores (SOU
RAPPI, 2021), além de prioridade na reserva e mais vagas, o entregador diamante
recebe incentivos financeiros diferenciados, tem maior facilidade para entrar no
programa Rappi Goleada, prioridade no acesso a cursos e novos benefícios.

Ademais, a Rappi lista as “dicas” que, em verdade, consistem em uma série de


instruções empresariais que o entregador precisa obedecer à risca para melhorar seu
desempenho e conseguir entregas:

Ative a auto-aceitação de pedidos: A auto aceitação te ajuda a não perder


tempo entre um pedido e outro. Com isso, quanto mais pedidos você
aceitar e concluir, mais alto será o seu nível na plataforma.

Ative o Rappi Goleada: depois de um certo número de entregas com a auto-


aceitação ativada, você libera o Rappi Goleada, que te permite fazer mais
entregas e melhorar ainda mais seu nível, suas pontuações e seus ganhos.

Faça entregas durante os horários de alta demanda: lembre-se de sempre


estar ativo nos horários com maior número de pedidos na sua região,
recebendo mais pedidos e aumentando seus ganhos.

Cumpra com suas reservas: se na sua cidade o sistema de reservas já está


ativo, fique ativo nos horários que você reservou. Desta forma, você mostra
que de fato consegue cumprir com suas reservas (SOU RAPPI, 2021).

Depreende-se da análise dos termos e condições de uso da plataforma que a relação


de trabalho em questão é regulada por um contrato de caráter leonino. O polo da
Rappi se beneficia com a atividade realizada, sem arcar com os ônus que deveria caso
contratasse entregadores em um regime celetista. A realidade apontada pelos
entregadores demonstra a fragilidade da narrativa recorrente da Rappi - e também de
outras plataformas digitais - sobre autonomia. Na medida em que se investiga a

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Autônomos ou empregados? Exame das condições de trabalho na plataforma digital Rappi

relação de trabalho como ocorre de fato, são encontrados os indícios da subordinação


trabalhista que a permeia.

4. CONDIÇÕES DE TRABALHO NA RAPPI E CONFIGURAÇÃO DA


RELAÇÃO EMPREGATÍCIA

A presente seção se destina à apresentação dos dados obtidos a partir da pesquisa


empírica e se estrutura em quatro subseções que visam a apresentação das respostas
aos questionários e relatos dos entregadores colhidos pela observação, relativos,
respectivamente, à jornada e remuneração auferida pelos trabalhadores; quantidade de
vínculos (formais ou não) que possuem, e a importância do trabalho como entregador
para o sustento de suas famílias; transparência, mecanismos de meta e punição da
plataforma, na visão dos entregadores; bem como a opinião dos entregadores acerca
da existência de controle e vínculo empregatício em sua relação com a Rappi.

A exegese dos arts. 2º e 3º da Consolidação das Leis de Trabalho (CLT) é de que os


elementos caracterizadores de relação empregatícia são a prestação de serviço por
pessoa física, com onerosidade, pessoalidade, subordinação e não eventualidade.
Satisfeitos estes requisitos, a relação é de emprego, ainda que a prestação do serviço
não seja contínua e ocorra com alternância de períodos de prestação de serviços e de
inatividade, conforme o Art 443, § 3º.8

A discussão quando a classificação da Rappi como uma plataforma dirigente, na


subseção 2 permite a verificação da existência da dependência econômica dos
entregadores em plataforma para seu trabalho, pois a própria atividade empresarial se
confunde com o serviço prestado através da plataforma e, sem esta, é impossível ao
trabalhador realizar o mesmo número entregas que a plataforma lhe proporciona.

Por outro lado, a análise dos termos de uso no tópico supra, evidenciou que o trabalho
deve ser desenvolvido por pessoa física e que a obrigação contratual é de natureza
personalíssima, satisfazendo os requisitos do trabalho prestado por pessoa física e da
pessoalidade. Ademais, verificou-se nos termos de uso uma série de comandos sobre
o trabalho dos entregadores, como atividades diretivas, regulamentadoras,
fiscalizatórias, investigativas e disciplinares do serviço, situações que comportam as

8 Art. 443. O contrato individual de trabalho poderá ser acordado tácita ou expressamente, verbalmente ou
por escrito, por prazo determinado ou indeterminado, ou para prestação de trabalho intermitente.
[...]
§ 3o Considera-se como intermitente o contrato de trabalho no qual a prestação de serviços, com
subordinação, não é contínua, ocorrendo com alternância de períodos de prestação de serviços e de
inatividade, determinados em horas, dias ou meses, independentemente do tipo de atividade do
empregado e do empregador, exceto para os aeronautas, regidos por legislação própria.

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dimensões do poder empregatício, (DELGADO, 2019, p.790), consubstanciando a


ausência de autonomia no trabalho e a consequente subordinação jurídica.

A presente seção reforça a existência desses elementos, sobretudo no que tange à


subordinação jurídica, que é verificada em vários momentos dos relatos dos
entregadores, como na necessidade de envio de documentação comprovando justo
motivo para ausência prolongada, controle de rota e tempo de entrega.

É evidente, também, a presença da onerosidade, que se perfaz como requisito da


relação empregatícia na medida em que o preço das entregas é ajustado de forma
unilateral pela empresa. O requisito da não eventualidade é visível na medida em que
se verifica, por exemplo, a extrapolação da duração normal de trabalho do Art. 7º,
XIII9, CF, que inclusive é exercida sem repouso semanal remunerado. A baixa
remuneração, decidida unilateralmente pela plataforma, cria uma necessidade de se
praticar jornadas excessivas, e deságua na habitualidade do serviço.

4.1 JORNADA, REMUNERAÇÃO E DEPENDÊNCIA ECONÔMICA

No que tange a jornada, esclarece-se que o elemento “até 25h e 44h” abarcou todas as
faixas de tempo superiores a 10h até o limite de 44h. A ausência de uma faixa que
avaliasse quantos entregadores trabalham até 30h prejudicou a análise de quantos
entregadores trabalham em tempo parcial, nos termos do art. 58-A da Consolidação
das Leis de Trabalho (CLT).

9 Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição
social:
XIII - duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a
compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho;

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Autônomos ou empregados? Exame das condições de trabalho na plataforma digital Rappi

Figura 1: Quantidade de horas trabalhadas no aplicativo – questionário presencial.

Elaboração: Própria.

Figura 2: Quantidade de horas trabalhadas no aplicativo – questionário online.

Elaboração: Própria.

A pesquisa constatou que 54,6% (somando 20,8%, 9,1% e 24,7%) dos entregadores
no questionário presencial declararam que laboram na Rappi por período superior ao
limite legal de 44h semanais, considerando a jornada normal de 8h diárias, conforme
art. 58 da CLT.

No questionário online, 52% dos inquiridos (somando 20%, 20% e 12%) laboram por
mais de 44h semanais.

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Souza

Desta forma, é legítimo concluir que 53,46% dos profissionais laboram por mais de
quarenta e quatro horas semanais. Isso significa que mais da metade destes
entregadores não apenas trabalham por quantidade de horas semanais suficientes para
seu enquadramento como trabalhador integral, como também ultrapassam o limite
legal, inclusive atingindo jornadas superiores a 70 horas semanais.

Muitos entregadores não tinham noção de quantas horas trabalham semanalmente,


eles só sabiam informar a quantidade de horas que trabalhavam por dia. Por conta
disso, a maioria das respostas foi marcada a partir do cálculo de horas diárias
informadas por eles, multiplicadas pela quantidade de dias trabalhados. O cálculo foi
feito pela calculadora dos celulares dos pesquisadores. A maior parte dos
trabalhadores declararam trabalhar de domingo a domingo.

Aliás, essa é a condição da maior parte dos entregadores. A maioria dos pontos que
agregam entregadores em Salvador não possui qualquer estrutura para acomodação
destes. A descrição dos relatos dos entregadores nos apresenta uma jornada que
exorbita o limite de 44h semanais, que varia em períodos jogado ao relento à espera
de um toque do aplicativo e períodos de alta rotatividade sobre uma moto, com uma
mochila, por vezes com sobrepeso, que traz instabilidade e dificulta o equilíbrio,
correndo riscos no trânsito.

Nos dias de alta rotatividade, é possível que o entregador passe o período integral do
dia de trabalho sobre duas rodas, se expondo a lombalgias e outros riscos ergonômicos
(DINIZ, 2003). Com a viseira do capacete aberta, o sol incide diretamente sobre o rosto
e arde a pele como brasa. Conforme relatado pelo entregador Diogo, o conjunto
capacete e viseira, se fechados, aquecidos pelo sol, funcionam como uma estufa e
causam sensação de falta de ar após algumas horas de trabalho.

Vários entregadores disseram que nos dias de alta rotatividade sequer chegam a fazer
refeições e evitam o máximo possível ir ao banheiro. Isto porque é preciso aproveitar
quando se tem muitas demandas, pois, segundo os relatos, aquele pode ser o dia
definitivo para compor sua renda semanal. Usualmente, não se sabe se no dia
seguinte haverá a mesma oferta de pedidos10.

10 Um exemplo desse relato nesse sentido, foi o do entregador Jean afirmou que no dia da aplicação do
questionário ele teve sorte, pois recebeu uma quantidade razoável de demandas, mas que tem dias que fica
horas à espera de algum dos aplicativos tocar. Explica que acredita que isso é alternado entre os entregadores,
pois naquele dia em que ele recebia muitos pedidos, era seu colega que estava sem demandas. Ele chamou
um colega entregador e perguntou “tá aqui desde que horas?” Ele responde que desde 10h. Era 15h 45 min
quando a pesquisa estava sendo aplicada. Então o Jean perguntou para seu amigo quantas entregas ele fez o
dia todo e ele respondeu que apenas uma, nesse intervalo de 5h e 45 min em que esteve sentado no chão da
calçada esperando por uma demanda.

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Em relação a remuneração auferida pelos entregadores, percebe-se que a maior parte


dos trabalhadores declara receber até R$20,00 por hora de trabalho, considerando um
dia em que recebem pedidos.

Figura 3: Rendimento por hora dos entregadores do aplicativo – questionário presencial.

Elaboração: Própria.

Figura 4: Rendimento por hora dos entregadores do aplicativo – questionário online.

Elaboração: Própria.

Muitos trabalhadores tiveram dificuldade em responder a essa pergunta, pois afirmam


nunca terem parado para refletir quanto conseguem ganhar por hora. Eles sabem o
quanto ganham por entrega, não por hora. Outra dificuldade que eles tiveram foi em
relação às horas sem demandas. Diversas vezes ao aplicar essa pergunta sobre a
remuneração por hora trabalhada, obtinha-se resposta próxima a esse padrão “nem
toda hora tem pedidos, se eu digo o quanto eu ganho por hora, vai parecer que eu
ganho isso toda hora”.

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Souza

Assim, a maior parte dos colaboradores optou por indicar o valor aproximado que
ganha por horas, com base na quantidade de entregas que conseguiam fazer em uma
hora, nos dias em que havia pedidos. Grande parte dos que responderam as faixas
“até R$ 10,00” e “entre R$ 11,00 e R$ 20,00” declararam que fazem de duas a quatro
entregas por hora, com valor aproximado de R$ 3,50 a R$ 5,00 por entrega.

Em relação à remuneração semanal, não foi encontrada nenhuma dificuldade nas


respostas. Isso porque, ao contrário da regra no mercado formal de trabalho de
pagamento mensal ou quinzenal, os entregadores da Rappi podem fazer saques por
semana. Segundo relatos dos entregadores, em alguns momentos há discordâncias por
parte deles com os valores disponíveis para saques semanais. Aduzem que a empresa,
por vezes, altera o valor da entrega que é informado antes da aceitação, ou repassa ao
entregador valor inferior ao registrado.

Esse foi o único quesito em que os questionários trabalharam com faixas diferentes.
Inicialmente ambos os questionários tinham as mesmas faixas de valores. Contudo,
ao ir a campo, percebeu-se que uma parcela relevante de entregadores relatava
receber valores na faixa de R$600,00 e R$700,00, o que culminaria na percepção de
dois salários mínimos por mês em termos brutos.

No entanto, esses valores declarados não correspondem ao salário líquido que


auferem com a atividade, tendo em vista que a resposta majoritária dos entregadores é
de que não abateram desses rendimentos os custos de desenvolvimento da atividade
como seguro, gasolina, depreciação do veículo, limpeza, emplacamento, internet,
alimentação e celular.

Na aplicação presencial do questionário, 92,2% responderam não fazer esse


abatimento, enquanto nas respostas ao questionário online foram 80%.

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Figura 5: Rendimento semanal dos entregadores do aplicativo – questionário presencial.

Elaboração: Própria.

Figura 6: Rendimento por hora dos entregadores do aplicativo – questionário online.

Elaboração: Própria.

Mais da metade dos inquiridos - 54,5% na no questionário presencial e 52% no


questionário online - declaram que não exercem outra atividade remunerada além de
ser entregador.

É importante a verificação de que a maioria absoluta desses entregadores - 70,1% no


questionário presencial e 88% no questionário online declaram ser o principal
responsável pelo sustento de sua família.

4.2 TRANSPARÊNCIA, MECANISMOS DE METAS E PUNIÇÕES

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Os entregadores - 84,4% no questionário presencial e 87,5%, na revista online -


acreditam que a Rappi não é transparente no compartilhamento de informações.

Os entregadores entendem que a Rappi é a plataforma menos transparente em relação


a diversas outras em que eles trabalham e, dentre os motivos da resposta foram
apontados a forma de cálculo das taxas, que, para eles, é um grande mistério. Eles
afirmam que não sabem o valor do quilômetro rodado, não sabem se a Rappi opera
com um sistema de taxa mínima, qual valor de entrega foi ofertado ao cliente nem
qual o percentual sobre o serviço a empresa retém.

Os entregadores também pontuaram como motivo de não considerarem que a


plataforma é transparente o fato de ela não repassar para o trabalhador as avaliações
dos clientes e, às vezes, repassar pagamento inferior ao que os entregadores entendem
realmente devido, porque o valor é alterado depois que eles aceitam o pedido.

A maior parte dos trabalhadores, também, apontou desconhecer as razões de punições


que recebem e entendem isso como um problema na transparência de
compartilhamento de informações.

A pergunta “você já sofreu alguma punição ou teve sua conta bloqueada?” também foi
de resposta dualista, em campo afirmativo ou negativo, sem abrir margem para
indecisões. A maior parte dos entregadores – 76,6% no questionário presencial e 87,5%
na online responderam ter sofrido alguma punição ou que tiveram a conta bloqueada.

A pergunta “você já sofreu punição por” conteve as opções infra relacionadas. Dentre
os motivos das punições, os entregadores apontam o fato de:

1. recusar corridas (43 respostas presenciais e 18 online) – se refere à hipótese de o


entregador não aceitar uma demanda e julgar que sofreu punição por isso;

2. Atrasar entregas (17 respostas presenciais e 04 online) – se refere a hipótese de o


entregador extrapolar o tempo que a plataforma calcula para uma entrega e julgar
que sofreu punição por isso;

3. Manter o aplicativo desligado (12 respostas presenciais e 02 online) – refere-se à


hipótese de o entregador manter o aplicativo desligado por um período durante o
turno de trabalho e julgar que sofreu punição por isso;11

11 Por conta da pandemia - que acentuou a crise de desemprego e intensificou o serviço delivery em
consequência do distanciamento social - desde 2020, o entregador precisa agendar previamente o turno em
que ele escolhe trabalhar. Nessa alternativa, o entregador entende que sofreu punição por ter desligado o

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Autônomos ou empregados? Exame das condições de trabalho na plataforma digital Rappi

4. Ficar desconectado por dias seguidos, inclusive aos finais de semana (18
respostas presenciais e 04 online) – refere-se à hipótese de o entregador manter o
aplicativo desligado por dias seguidos ou durante os finais de semana e julgar que
sofreu punição por isso;

5. Bloqueio por dívida (20 respostas presenciais, conforme relatório de observação,


e 11 online) – se refere à hipótese em que a plataforma abre uma dívida em nome
do entregador, tornando-se credora de um saldo devedor dele. Nesse caso, a
plataforma instaura o valor do saldo negativo e o entregador é bloqueado e
impedido de sacar os resultados de seu trabalho até que quite a dívida imposta.

Embora não tivesse esses itens na pergunta, os entregadores também pontuaram como
motivo de punição o fato de ser identificado como liderança do movimento “breque dos
apps” ou de não trabalhar no dia de paralisação de entregadores. Também foi pontuado
pelos trabalhadores o bloqueio e total apagamento do histórico da plataforma após
informar a ocorrência de acidente de trânsito durante o trajeto de entrega.

4.3 CONTROLE E VÍNCULO EMPREGATÍCIO

A maior parte dos entregadores permanece nos locais indicados pela plataforma –
66,2% no questionário presencial e 66,7% no online. Alguns deles relataram não
existir um significativo aumento de entregas em relação a outras localidades, mas que
preferem ficar à espera de um pedido onde a empresa indica para manter boa
pontuação. Outros alegaram que há aumento expressivo de demandas por ficar nos
locais que a empresa indica.

Um total de 24,7% daqueles inquiridos presencialmente e de 16,7% dos questionados por


meio virtual responderam ficar no local de sua livre escolha, mesmo com a plataforma
indicando seu local de trabalho. Dentre os motivos da resposta foram citados o fato de ser
um trabalho livre e flexível, portanto a plataforma não pode “mandar” neles. Também, o
fato de a Rappi não ser a principal plataforma de trabalho deles e a escolha do local ser
em função da maior rotatividade de demandas em outras plataformas. Outro fato citado
foi o de ser entregador OL – sob controle de um operador logístico – da Ifood e precisar
ficar no setor do OL12. Houve também entregadores que contaram que não acreditam que
ficar no local de sua livre escolha impacte em sua avaliação. Para estes a indicação do

aplicativo durante o turno escolhido.


12 Todas as informações trazidas neste tópico referentes a jornada, remuneração, mecanismos de
transparências e punição, etc, são exclusivamente relativas ao trabalho na Rappi. Os entregadores foram
devidamente esclarecidos de que deveriam informar o tempo que trabalham exclusivamente nesta
plataforma, não sendo computado o tempo de trabalho em outras plataformas de entrega como Ifood.

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local é feita pelo “aplicativo” de forma meramente sugestiva e a não observância a essa
sugestão não gera qualquer prejuízo.

Nenhum obreiro negou o fato de que a plataforma indica o local onde o entregador
deve ficar, mesmo aqueles que afirmaram ficar no local de sua livre escolha.

Em menor número – 9,1% no questionário presencial e 16,7% no online, alguns


entregadores explicaram que além do aumento do número de entregas também
recebiam promoções diferenciadas e benefícios exclusivos, como recebimento de
prêmios, valores extras e escolha de seu perfil pelo aplicativo para participação de
sorteios exclusivos, por sempre se manter nos locais que a empresa indica.

Os quesitos “você considera que o seu trabalho é controlado pela RAPPI?” e “VOCÊ
SE CONSIDERA: empregado da Plataforma Rappi [ou] Trabalhador autônomo”
tiveram por objetivo analisar a percepção dos entregadores sobre o fenômeno da
subordinação jurídica e ao fato de se verem ou não como empregados.

Não obstante a resposta majoritária dos entregadores – 66,2% no questionário


presencial e 79,2% na online, seja de que consideram que a plataforma controla seu
trabalho através do sistema de avaliações e vigilância, a maior parte deles – 68,8% no
questionário presencial e 70,8% na online, disseram não se considerar empregado.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Analisadas as condições de trabalho na plataforma Rappi em face do discurso


apresentado pela empresa, embasado na lógica neoliberal de atuação "disruptiva" no
mercado a partir da externalização da incidência da regulação trabalhista, emerge-se a
problemática levantada pelo artigo. Seria a relação jurídica criada entre a Rappi e os
entregadores que laboram através de sua plataforma digital, uma relação de emprego?

As contradições manifestas entre as condições de trabalho apresentadas pelos


entregadores que responderam aos questionários e o discurso da Rappi de que estes
seriam meros parceiros de seu empreendimento nos ajuda a responder a questão.

Os termos e condições de uso e funcionamento da plataforma evidenciam um


contrato de caráter leonino, em que a empresa detém mais benefícios do que ônus
sobre a atividade de realizada, mesmo a empresa em a todo momento falando da
autonomia, ao longo dele isso não se mantém, o que ocorre é uma subordinação
trabalhista em toda a relação.

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Autônomos ou empregados? Exame das condições de trabalho na plataforma digital Rappi

Observa-se que a empresa exerce controle significativo sobre a forma da prestação de


serviço, com controle do tempo de entrega, de rota e da localização onde deve ficar
para receber pedidos. Percebe-se, também, a existência de punições por períodos de
inatividade, bem como a existência de metas, o que evidencia a existência de poder
diretivo exercido através da plataforma Rappi. Seja influenciando os locais de
trabalho, definindo o preço da mão de obra, cobrando assiduidade pelo rastreio dos
“logins” de cada entregador, são várias as ferramentas de gerenciamento do trabalho
das quais a empresa dispõe.

Destrinchando um pouco mais os métodos de controle utilizados pela Rappi, em


conjunção com os requisitos legais para caracterização de uma relação de emprego,
podemos encontrar paralelos esclarecedores.

O elemento da pessoalidade se encontra na própria lógica da plataforma de exigir conta


pessoal e intransferível, além de realizar classificação e pontuação dos entregadores, o
que concede a cada conta um caráter pessoal vinculado à maneira como aquele
trabalhador lida com e é classificado pelo sistema de ranking da empresa.

A jornada de trabalho e o elemento da habitualidade são derivados diretos da


precificação unilateral que a empresa faz do serviço prestado. Por consequência
lógica, se o valor de cada entrega é definido pela empresa, cabe ao empregador
realizar tantas entregas quantas forem necessárias para satisfazer suas necessidades
materiais e espirituais - o que acarreta nas exaustivas jornadas, como apresentadas,
em virtude do baixo preço da mão de obra.

Ademais, não é controverso que há uma contraprestação percebida pelos entregadores


pelos serviços prestados, a qual é gerenciada pela plataforma, fato que possui o condão
de caracterizar a onerosidade objetiva do contrato. Aliás, não é qualquer onerosidade
que se coloca em discussão. Observa-se que o trabalho na Rappi não confere poder de
negociabilidade e de precificação do serviço pelo prestador, visto que sequer existe
contato entre o consumidor final, tampouco entre o estabelecimento comercial e
entregador até que este aceite o serviço com o preço preestabelecido pela empresa.

Por fim, dadas essas considerações, e todas as outras maneiras apresentadas de


intervenção da plataforma no trabalho e na vida dos entregadores, considera-se clara,
também, a subordinação destes em face da Rappi.

Levando em conta o arcabouço teórico analisado e a pesquisa empírica de campo


examinada, conclui-se que os termos de uso e as condições de trabalho dos
entregadores evidenciam a configuração de vínculo empregatício.

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Souza

REFERÊNCIAS

ABÍLIO, L. C. Uberização do trabalho: subsunção real da viração. Blog da Boitempo,


22 de fev. 2017. Disponível em: <https://passapalavra.info/2017/02/110685/>.
Acesso em: 07 de ago. de 2022.
ALDANA, Dangelly Charlotte; ARROYO, Jorge Alfredo Vargas; CORTÉS, Oscar
Andrés López. La relación laboral en los trabajadores vinculados a la plataforma
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Data de submissão: 27/09/2022


Data de aprovação: 23/01/2023

Este trabalho está licenciado sob uma licença Creative Commons Attribution-
NonCommercial-ShareAlike 4.0 International License.

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O TRABALHO EM PLATAFORMAS DIGITAIS NO BRASIL

O trabalho em plataformas digitais


e o salário por peça
Platform work and piece rate

Laura Valle Gontijo


Doutoranda em Sociologia na Universidade de Brasília.
https://orcid.org/0000-0003-2821-4986

RESUMO: Este artigo tem como objetivo oferecer contribuições à compreensão do


trabalho em plataformas digitais a partir da sua forma de remuneração. O salário por
peça é identificado, na teoria do valor de Marx, como uma forma de remuneração que
permite o aumento da produtividade e da intensidade do trabalho, assim como o
prolongamento da jornada de trabalho, com particular incidência sobre a subjetividade
dos trabalhadores. Foi realizada uma revisão bibliográfica da literatura mais recente
sobre o trabalho em plataformas digitais e da literatura acerca do conceito de salário
por peça, tendo como principal referência o volume I do livro “O Capital”, de Marx.
Em seguida, foram construídas categorias a partir das características do salário por peça
identificadas na revisão de literatura, que nortearam a elaboração de um questionário. O
questionário foi aplicado entre maio e julho de 2021 com 87 entregadores em
plataformas digitais, em 19 estados do país. A hipótese que norteou esse estudo é a de
que o trabalho em plataformas digitais promove um retorno do salário por peça. Os
resultados da aplicação do questionário confirmaram a hipótese e colocaram em
destaque a importância que possui a forma de remuneração para compreender a
disposição desses trabalhadores em perfazer longas jornadas e suportar péssimas
condições de trabalho. Sugere-se a realização de mais estudos para um melhor
entendimento da relação entre salário por peça e trabalho em plataformas digitais.

Palavras-chave: trabalho em plataformas digitais, tipo de remuneração, salário por peça.

ABSTRACT: The study aims to contribute to the understanding of platform work


from the perspective of its form of remuneration. Piece rate pay may boost
productivity and increase the speed and intensity of work, furthermore, it can promote
a lengthening of the working day and act in the subjectivity of workers. A review of
recent literature about platform work and piece rate pay presented in the first volume

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O trabalho em plataformas digitais e o salário por peça

of Karl Marx's “Capital” was made. Some categories were constructed from the
characteristics of piece rate pay identified in the literature review and a survey was
applied with 87 workers on digital platforms, in 19 States in Brazil, between May and
July 2021. This outcome was discussed in the light of the theory of value of Marx.
The findings supported the hypothesis that platform work promotes a return of piece
rate pay. These results highlighted the importance of how workers are paid in
platform work to understanding the willingness to work long hours in poor working
conditions in a non-regulation job. More research is needed to better understand the
relationship between piece rate pay and platform work.

Keywords: platform work, type of payment, piece rate.

1. INTRODUÇÃO

O trabalho em plataformas digitais é classificado de distintas maneiras por diferentes


autores. Casilli (2019) propõe sua classificação em três tipos. O primeiro é aquele
exercido em plataformas como Uber, iFood, Rappi por trabalhadores que realizam
tarefas manuais em tempo real para garantir serviços de transporte, alojamento e
entrega. O segundo é aquele exercido nas plataformas numéricas de microtrabalho,
no qual os trabalhadores realizam atividades padronizadas e pouco qualificadas,
como anotar vídeos, ordenar tweets, transcrever documentos digitalizados ou corrigir
valores em um banco de dados. E há ainda o terceiro tipo, segundo o autor, mais
controverso, que é aquele exercido pelos usuários, de forma lúdica e gratuita, ao
alimentar com seus dados pessoais suas redes sociais, como o Facebook e Instagram.

No que diz respeito à forma de remuneração predominante nesses três tipos de trabalho,
Casilli (2019) observa que o microtrabalho, ou cloudwork, inequivocamente adota o salário
por peça como forma de remuneração. Apesar de não afirmar o mesmo com relação aos
demais, o autor defende a hipótese de que há uma tendência de generalização do salário por
peça como forma ideal de remuneração do trabalho em plataformas digitais.

Úrsula Huws (2017), uma das primeiras teóricas a estudar o tema, afirma que “apesar de
algumas formas de pagamento por resultados (ou por peça) serem aplicadas quando esses
trabalhos são casuais, geralmente (esses trabalhadores) são remunerados por hora”
(HUWS, 2017, p. 186). Alkhatib, Bernstein e Levi (2017), Dubal (2020) e Pires (2020)
afirmam categoricamente que o trabalho em plataformas digitais é uma forma de
remuneração por peça. Segundo Alkhatib, Bernstein e Levi (2017, p. 4.606), “o trabalho
sob demanda não é novo, mas uma aplicação contemporânea do salário por peça”.

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Para corroborar com as análises que partem da mesma hipótese deste trabalho, fez-se um
paralelo entre o trabalho em plataformas digitais e o salário por peça e por hora, descritos
por Marx no volume I, de “O Capital”. Marx (1984) afirma que o salário é parte do
capital variável, ou seja, a parte do capital convertida em força de trabalho e, portanto,
base do processo de produção de mais-valia. O autor afirma que o trabalhador precisa
trabalhar uma média de horas por dia para receber um salário diário que corresponda ao
valor da sua força de trabalho ou aos meios de subsistência necessários para sua
reprodução. Como a força de trabalho é vendida por determinado espaço de tempo, a
forma em que se apresenta o seu valor diário ou semanal é a de salário por tempo.

No entanto, Marx esclarece que há uma forma de remuneração na qual o salário por
tempo é praticado sem considerar uma jornada de trabalho: o salário por hora. Essa
forma de remuneração permite que seu valor seja fixado de modo que o capitalista
pague apenas as horas em que lhe foi conveniente empregar o trabalhador, podendo
extrair trabalho excedente ou mais valia sem proporcionar o tempo necessário à
própria reprodução do trabalhador. Essa forma de remuneração permite destruir a
regularidade da ocupação e fazer alternarem-se “o mais monstruoso trabalho
excessivo com a desocupação relativa ou absoluta” (MARX, 1984, p. 630).

Como parte do mesmo fenômeno do salário por hora, ou seja, da tentativa de


remunerar o trabalhador apenas nas horas em foi conveniente ao capitalista empregá-
lo, há o salário por peça, no qual só é pago trabalho efetivamente materializado em
determinada mercadoria. Esse tipo de remuneração dá ao trabalhador a impressão de
que o valor de uso vendido por este não é em função da sua força de trabalho, mas do
trabalho já materializado na mercadoria, ou seja, em função da capacidade de
produção do trabalhador, incidindo de forma perversa na sua subjetividade.

Enquanto no regime de salário por tempo, com exceção do salário por hora conforme
dito acima, a remuneração é igual para todos os trabalhadores, com poucas exceções,
no salário por peça, esta pode variar com as diferenças individuais dos trabalhadores,
sua habilidade, força, energia e persistência. Assim explica Marx (1984):

[...] a maior margem de ação proporcionada pelo salário por peça influi no sentido de
desenvolver, de um lado, a individualidade dos trabalhadores e com ela o sentimento
de liberdade, a independência e o autocontrole, e, do outro, a concorrência e a
emulação entre eles. Por isso o salário por peça tende a baixar o nível médio dos
salários, elevando salários individuais [...] (MARX, 1984, p. 641-642).

Essa forma de remuneração torna interesse pessoal do trabalhador prolongar e


intensificar seu trabalho de modo a receber um salário maior, no entanto, ao
prolongar sua jornada de trabalho e intensificar seu trabalho a tendência é que haja
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O trabalho em plataformas digitais e o salário por peça

uma redução no preço do trabalho contido em cada peça e consequentemente no valor


dos salários. O salário por peça também permite ao capitalista uma medida precisa da
intensidade do trabalho. Permite ainda que apenas parte do trabalho seja remunerado,
sendo um instrumento de descontos salariais, pois “só se considera (...) tempo de
trabalho socialmente necessário, sendo como tal pago, o tempo de trabalho que se
corporifica numa determinada quantidade de mercadorias previamente determinada e
fixada pela experiência” (MARX, 1984, p. 639). Essa característica do salário por
peça é confirmada pelo relatório mais recente do projeto Fairwork, realizado pela
Universidade de Oxford, e pelo Centro de Ciências Sociais de Berlim, que concluiu
que os trabalhadores em “cloudwork” realizam em média oito horas e trinta minutos
por semana do seu trabalho sem serem remunerados (FAIRWORK, 2022).

O autor afirma ainda que nessa forma de remuneração a qualidade do trabalho é


controlada pelo próprio resultado, que tem que possuir uma qualidade média para que
o salário seja pago integralmente. Sendo a qualidade e a intensidade controladas pela
forma de salário, torna-se desnecessário o trabalho de inspeção e ainda se permite que
se insiram intermediários entre o capitalista e o trabalhador, como é o caso da
modalidade Operador Logístico do iFood, conforme será visto no decorrer do artigo.

A hipótese que norteou esse estudo é a de que a crise do capital a partir dos anos 1970
(FRANK, 1979) impeliu os capitalistas a promover um retorno do salário por peça e
por hora, como forma de aumentar a produtividade do trabalho, utilizar a mão de obra
apenas nos momentos convenientes e reduzir os salários, em uma tentativa de conter
a queda da taxa de lucro. O trabalho em plataformas digitais surge e promove um
retorno da forma de remuneração por peça, expressando de forma mais nítida essa
tendência. Trata-se de um retorno, porque a limitação da jornada de trabalho, no
século XIX, pôs fim a esse abuso dos capitalistas, qual seja, o de utilizar o salário por
peça e por hora como forma de remuneração predominante dos trabalhadores
(MARX, 1984), tendo se restringido, no século XX, a algumas categorias. Os
cortadores de cana, os trabalhadores têxteis e da construção civil são as categorias
que historicamente sempre receberam por peça, com destaque para os dois primeiros.
Professores e profissionais de saúde da rede privada também usualmente têm seus
salários calculados por hora (ALVES, 2006; DUBAL, 2020; DAL ROSSO, 2017;
GUASNAIS, 2018). No entanto, a esmagadora maioria dos trabalhadores brasileiros
sempre receberam e recebem um salário por tempo, ou seja, por jornada de trabalho.
Essas formas de remuneração mencionadas acima são apropriadas para o contexto de
crise econômica, uma vez que permite o uso da força de trabalho apenas e
estritamente nos momentos que convém ao capitalista.

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Laura Valle Gontijo

Apesar de fazer parte da mesma tendência, o salário por hora, qual seja, aquele que
pode ser pago sem se considerar para tanto uma jornada de trabalho, mas apenas as
horas nas quais apraz ao capitalista utilizar a força de trabalho, não possui as mesmas
características do salário por peça. Características estas que tornam esta forma de
remuneração mais propícia à ocorrência de acidentes de trabalho e de problemas de
saúde devido ao desgaste físico que promove nos trabalhadores. A partir das
características do salário por peça descritas acima, foi elaborado um questionário com
entregadores em plataformas digitais no intuito de confirmar ou refutar a hipótese.

2. MÉTODO

Para a realização desta pesquisa foi feita uma revisão na literatura contemporânea sobre
salário por peça e trabalho em plataformas digitais, bem como foram construídas categorias
para análise do salário por peça a partir da leitura do volume I de “O Capital”, de Marx
(1984). As categorias construídas para identificação dessa forma de remuneração foram:
sentimentos de liberdade, autossuficiência, autonomia e concorrência; falta de
transparência; fraudes e descontos salariais; indeterminação de renda; sensação de
vigilância; existência de intermediários; disposição em intensificar e prolongar o trabalho.

A partir dessas categorias foram elaboradas 20 perguntas e aplicado um


questionário via Google Forms que foi respondido de forma anônima 1. Um
informante chave 2 permitiu o acesso a grupos de conversas no Whatsapp e
Telegram de entregadores de moto. No corpo do texto da mensagem de disparo do
questionário foi esclarecido que a pesquisa era anônima. Tendo em vista a
existência da modalidade Operador Logístico na plataforma iFood, o fato de que a
esmagadora maioria dos entregadores que responderam ao questionário trabalham
nesta plataforma e ainda que esta é hoje a maior plataforma de entrega de comida da
América Latina (FRANGIONE, 2021), decidiu-se por fazer um recorte por
categoria para verificar se haveria diferença nas respostas dos trabalhadores.

O questionário consistiu em verificar a possibilidade de comparar o salário por peça e o


trabalho em plataformas digitais com relação principalmente aos aspectos que incidem
sobre a subjetividade dos trabalhadores. Também foi possível observar características da
jornada e intensidade do trabalho nesse tipo de trabalho, bem como a presença marcante
do sentimento nos trabalhadores de indeterminação com relação à sua remuneração.

1 Optou-se por não exigir nenhuma forma de identificação dos entregadores, sequer e-mail foi exigido para
preenchimento do formulário. Essa precaução foi adotada como forma de garantir o total anonimato dos
respondentes. Foi possível perceber na conversa com alguns entregadores, durante a realização do pré-teste do
questionário, uma extrema desconfiança e medo de algum tipo de retaliação por parte das plataformas.
2 O informante-chave é uma pessoa que faz parte do grupo que se deseja pesquisar e age como facilitador
para aproximação do pesquisador aos demais membros do grupo.

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O trabalho em plataformas digitais e o salário por peça

3. RESULTADOS E DISCUSSÃO

Na introdução, apontamos para algumas das características do salário por peça e


como, apesar de ser ainda motivo de controvérsia, alguns autores da literatura recente
sobre trabalho em plataformas digitais as observam nesse tipo de trabalho. Neste
tópico do artigo, pretende-se fornecer mais elementos para embasar a hipótese deste
estudo e apresentar os resultados da pesquisa realizada.

Os autores contemporâneos analisam que, entre as principais características do trabalho em


plataformas digitais, destacam-se as longas jornadas de trabalho (DUBAL, 2020; ABÍLIO et
al, 2020; FESTI et al, 2021; FAIRWORK, 2021); a gestão e monitoramento do trabalho por
algoritmos, a gamificação do trabalho, baseada em bonificações e desafios (ABÍLIO, 2019);
a não remuneração de parte do trabalho; a falta de representação sindical e a ausência de
clareza sobre as condições estabelecidas no contrato de trabalho (FAIRWORK, 2022).

Segundo Marx (1984) ainda, o salário por peça consiste em um “sistema


hierarquicamente organizado de exploração e opressão” (MARX, 1984, p. 640), com
duas formas fundamentais, uma na qual se inserem parasitas que subalugam o
trabalho, e outra na qual o trabalhador recruta outros trabalhadores explorando-os.
Um fato que aponta para essa questão da subcontratação ou intermediação de mão de
obra exercida pelas plataformas é a mais recente inovação do iFood. A plataforma
introduziu a categoria Operador Logístico. Em seu site, a plataforma afirma que o
Operador Logístico é "uma empresa contratada pelo iFood para administrar grupos de
entregadores disponíveis em dias e horários pré-estabelecidos. Todos os valores de
rotas e gorjetas são repassados para este e este é responsável pelos valores devidos
aos seus entregadores” (IFOOD, 2020). Essas empresas atendem regiões específicas e
complementam a frota em determinados dias e horários (MACHADO, 2020).

Os entregadores chamam aqueles que trabalham nessas subsidiárias de Entregador OL ou


simplesmente OL, e os gerentes dessas empresas de Líderes de Praça ou Chefe OL. O
entregador precisa cumprir um horário fixo todos os dias, com direito a uma folga por
semana, desde que negociada com antecedência com o Chefe OL, e não pode se desligar
do aplicativo quando quiser, nem decidir ficar em casa em determinado dia. Esse
trabalhador não possui direito a um salário fixo, férias ou folga remunerada e recebe como
o trabalhador Nuvem, como são denominados os demais entregadores, ou seja, por entrega
concluída (MACHADO, 2020). Pode-se afirmar que se trata de uma subcontratação.

A seguir, serão analisados os gráficos que resultaram do questionário aplicado com 87


entregadores de moto em plataformas digitais, em 19 estados do país e comparados seus
resultados com as características do salário por peça apresentados pela literatura especializada.

Laborare. Ano VI, Número 10, Jan-Jun/2023, pp. 128-149. ISSN 2595-847X. https://revistalaborare.org/
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Laura Valle Gontijo

Gráfico 1 - Em qual estado você mora?

Elaboração: Própria.

Conforme Gráfico 1, obteve-se resposta de entregadores de 19 estados de 04 regiões do


país (não obtivemos representantes da região norte do país), prevalecendo respondentes
das cidades de Rio de Janeiro (16), São Paulo (15), Rio Grande do Sul (11), Paraná (9)
e Pernambuco (9). 48% declararam possuir entre 25 anos e 34 anos, 22% entre 35 anos
e 44 anos e 21% até 24 anos. 93% (81 respondentes) declararam ser do sexo masculino
e 6% (5 respondentes) feminino, 1% (1 respondente) preferiu não responder à pergunta.

Gráfico 2 - Trabalha para qual (is) dos aplicativos abaixo?

Trabalha para qual (is) dos aplicativos abaixo ?


0 10 20 30 40 50 60 70 80

iFood 75

Rappi 30

Uber Eats 33

Loggi 14

99 Food 20

Outros 29

Elaboração: Própria.

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O trabalho em plataformas digitais e o salário por peça

De acordo com o Gráfico 2, todos os trabalhadores que responderam à pesquisa


trabalham para mais de uma plataforma. O iFood é a plataforma na qual a maioria
dos entregadores trabalham, seguida das plataformas Uber Eats, Rappi, Loggi e 99
Food. O que é corroborado por outras pesquisas, como a de Festi et al (2021) e Abilio
(2019). Há também plataformas menores para as quais os entregadores declaram
trabalhar, como James, Ame Flash, Ibolt, Bee Delivery, Commis, Box Delivery, Lala
Move, Click Entrega, Delivery Center, Indriver e Americanas.

Segundo demonstra o Gráfico 3, 60% (52 entregadores) declararam ser Nuvem, 36% (31
entregadores) OL e 5% (4 entregadores) responderam a opção “Outros”. Nenhum Chefe OL
respondeu ao questionário. Entre aqueles que responderam “Outros”, as respostas variaram
entre dois que responderam que não trabalhavam para o iFood, um que respondeu que estava
bloqueado e outro que simplesmente não respondeu à pergunta. Dessa forma, nas perguntas
que diferenciam OL e Nuvem foram considerados 83 questionários.

Gráfico 3 – No iFood, você é:

No iFood, você é
5%

36%

60%

Entregador “nuvem” Entregador “OL” (Operador Logístico)


Chefe “OL” (Operador Logístico) Outros
Elaboração: Própria.

A primeira seção do questionário continha a seguinte pergunta: “Sobre o trabalho em


aplicativo, numa escala de 1 (discordo totalmente) a 5 (concordo integralmente), dê
sua opinião sobre as frases abaixo”. Os resultados são explicitados a seguir.

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Laura Valle Gontijo

Gráfico 4 – Os critérios que definem a pontuação dos entregadores não são claros

45%
Os critérios que definem a pontuação dos entregadores não são cla-
ros 38%
40% 37%
34%
35%
30% 28%
24%
25%
20%
15% 13%

10% 7% 8% 7%
5% 4%

0%
e rdo tro do nte
ent co Neu cor lme
totalm Dis Con egra
o int
co rd do
Dis o ncor
C
OL Nuvem
Elaboração: Própria.

Com relação a este aspecto apontado pela literatura, os dados confirmam, conforme
Gráfico 4 acima, que, para os entregadores, os critérios que definem sua pontuação
não são claros. A pontuação faz parte do sistema de gamificação, que permite “criar
rankings, classificações e níveis de engajamento dos entregadores” (FESTI et al,
2021, p. 44). Quanto maior a pontuação, mais chances de receber mais e melhores
entregas. As regras que estabelecem, no entanto, as perdas e ganhos dos trabalhadores
não são compartilhadas com eles (FESTI et al, 2021). Entre os Nuvem, 38% e outros
37% responderam que concordam integralmente ou simplesmente concordam com a
afirmação de que os critérios que definem a pontuação dos entregadores não são
claros. Entre os OL, esse percentual foi de 28% e 34%.

É possível supor a existência de descontos salariais por parte das plataformas digitais.
Marx (1984) afirma que a grande vantagem desse tipo de remuneração é permitir a
possibilidade de descontos nos salários dos trabalhadores sem que eles percebam ou o
que ele chama de “trapaça capitalista”. Na literatura sobre o trabalho dos cortadores
de cana, categoria por excelência do trabalho por peça, a principal causa da
sobrecarga de trabalho está no fato de que os trabalhadores não controlam nem a
medida do seu trabalho nem o valor do seu trabalho (GUANAIS, 2018; ALVES,
2006; SILVA, 1999). A indeterminação da renda aparece também nas entrevistas
com trabalhadores “cloudwork” (DUBAL, 2020).

Laborare. Ano VI, Número 10, Jan-Jun/2023, pp. 128-149. ISSN 2595-847X. https://revistalaborare.org/
DOI: https://doi.org/10.33637/2595-847x.2023-165
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O trabalho em plataformas digitais e o salário por peça

Gráfico 5 – Eu recebo por entrega concluída

70%
Eu recebo por entrega concluída
60%
60%

50%
40%
40%
30%
30% 27%

20%
13%
10% 12%
10% 7%
2% 0%
0%
e do tro o nte
ent cor Neu cor
d
lme
talm Dis Con ra
o to teg
co rd d o in
Dis cor
Con
OL Nuvem
Elaboração: Própria.

Conforme Gráfico 5 acima, 60% e 27% dos trabalhadores classificados como Nuvem
responderam que concordam integralmente ou simplesmente concordam que recebem
por entrega concluída, enquanto, entre os OL, esse percentual foi respectivamente de
30% e 40%. Ou seja, a maioria dos entregadores sente que seu salário é determinado
pela quantidade de entregas realizadas, ou seja, pela tarefa executada. Trata-se de um
pagamento por produção, uma modalidade do salário por peça, assim como o salário
por empreita ou tarefa (GUANAIS, 2018; SILVA, 1999).

A característica mais importante do salário por peça, que é visível no trabalho em


plataformas digitais, é a ilusão de liberdade e autonomia proporcionadas por essa
forma de remuneração. É o que está por trás da disposição do trabalhador em
prolongar sua jornada de trabalho e intensificar o seu trabalho ao máximo a fim de
aumentar sua remuneração.

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Laura Valle Gontijo

Gráfico 6 – Sinto que tenho liberdade para trabalhar quando, onde e quanto tempo eu quiser

Sinto que tenho liberdade para trabalhar quando, onde e quanto tempo eu
50% 47% quiser
45%
40%
35%
30% 27%
25% 23% 23%
21%
20%
15%
15% 13% 13%
10%
10% 7%
5%
0%
e rdo tro o e
ent co Neu cor
d ent
talm Dis Con ralm
o t o teg
co rd d o in
Dis cor
Con
OL Nuvem

Elaboração: Própria.

A ilusão de liberdade é maior entre os trabalhadores Nuvem e menor entre os entregadores


OL. Somando as colunas discordo totalmente e discordo, 70% dos OL afirmam não sentir
liberdade para trabalhar quando, onde e quanto tempo quiserem, enquanto entre os Nuvem
esse percentual foi de 28%. Entre os Nuvem, ainda, 44% concordaram e concordaram
integralmente com a afirmativa. Uma possível interpretação se deve ao fato de que o
entregador OL trabalha em horários e dias fixos por semana e possui um chefe que
supervisiona seu trabalho. Apesar da sua remuneração continuar sendo por peça, esse
trabalhador aparenta ter menos autonomia e liberdade que o Nuvem.

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O trabalho em plataformas digitais e o salário por peça

Gráfico 7 – Meu salário, ao final do mês, só depende de mim

40% Meu salário, ao final do mês, só depende de mim


37%
35%
30% 27%
25%
25%
20% 20%
20% 17% 17%
15% 13% 13%
10%
10%
5%
0%
e do tro do e
ent cor Neu cor ent
t o talm Dis Con eg ralm
do t
cor d o in
Dis cor
OL Nuvem Con
Elaboração: Própria.

No salário por peça, “o pagamento auferido pelos trabalhadores é decorrente da sua


produção: quanto maior a produção mais eles recebem” (ALVES, 2006, p. 93), no
entanto, como explica Marx, o prolongamento da jornada de trabalho tende a reduzir o
preço do trabalho contido em cada peça e consequentemente os salários. O trabalhador
ainda “toma a sério a aparência do salário por peça, acreditando que lhe pagam o que
produziu e não sua força trabalho” (MARX, 1984, p. 645). Por ser uma remuneração
por peça, ele só recebe se realizar uma quantidade determinada de entregas. Acidentes
e problemas de saúde repercutem negativamente no score ou pontuação do entregador
na plataforma e podem impactar na sua remuneração (FESTI et al, 2021).

Conforme Gráfico 7, ambas as categorias OL e Nuvem tiveram uma tendência maior


a concordar que a discordar da afirmação. 47% entre os OL e 52% entre os Nuvem
concordaram ou concordaram integralmente com a afirmativa. O que corrobora com
o apontado pela literatura acerca do salário por peça.

O Gráfico 8 teve como objetivo mensurar mais uma característica do salário por peça, a
indeterminação da remuneração mensal (DUBAL, 2020; ALVES, 2006; GUANAIS,
2018). 46% entre os OL concordaram e concordaram totalmente com essa afirmação,
outros 30% discordaram totalmente e discordaram da afirmação e outros 23% ficaram
neutros. Entre os Nuvem, 62% concordaram integralmente e concordaram com a
afirmação e 19% discordaram ou discordaram totalmente. Ambas as categorias OL e
Nuvem tiveram uma tendência maior a concordar que a discordar da afirmação. Observa-
se, no entanto, que entre os OL há uma divergência grande de opiniões entre os

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139
Laura Valle Gontijo

trabalhadores. Uma possível explicação é o fato de que esta categoria possui horários e
dias fixos de trabalho e um chefe que supervisiona seu trabalho, o que pode implicar em
uma maior regularidade na jornada de trabalho e na sua remuneração ao final do mês.

Gráfico 8 – Não consigo determinar quanto vou receber ao final do mês

40%
Não consigo determinar quanto vou receber no final do mês
35%
35% 33%

30% 27%
25% 23% 23%
19%
20%
15%
15% 13%

10%
7%
5% 4%

0%
e o tro do e
ent cor
d
Neu cor ent
o talm Dis Con gralm
d ot inte
cor cor
do
Dis
Con
OL Nuvem
Elaboração: Própria.

A dificuldade em calcular o valor do salário por parte dos entregadores foi abordada pela
literatura especializada sobre trabalho em plataformas digitais (FESTI et al, 2021;
DUBAL, 2020). De Stefano e Aloisi (2018) afirmam também que as plataformas digitais
oscilam a todo o momento o valor das tarifas. Uma vez que partimos na hipótese de ser a
forma de remuneração um aspecto importante para entender esse tipo de trabalho, é
possível fazer um paralelo com as usinas de cana de açúcar que estabelecem uma forma
de medição da cana que dificulta seu controle por parte do trabalhador obrigando-o a
manter um ritmo alucinante de trabalho (ALVES, 2006; GUASNAIS, 2018).

Sendo a qualidade e a intensidade do trabalho controladas pela forma de remuneração,


torna-se desnecessária grande parte da supervisão do trabalho. O controle do trabalho
fica relacionado à superação da resistência do trabalhador sendo feito pela própria
forma de remuneração. Mais uma vez utiliza-se aqui a literatura sobre o trabalho no
setor sucroalcooleiro como referência para a discussão sobre o salário por peça. Nesse
tipo de trabalho, são frequentes as mortes por exaustão (ALVES, 2006). Há ainda, no
trabalho em plataformas digitais, uma grande vigilância sobre o trabalhador que é feita
por meio de algoritmos, no intuito de aumentar ainda mais sua produtividade
(GIOVANAZ, 2021; WOODCOCK, 2020). No Gráfico 9, acima, somando os

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140
O trabalho em plataformas digitais e o salário por peça

extremos, é possível concluir que a maioria dos entregadores concorda que se sente
vigiado o tempo todo pela plataforma. 57% entre os OL concordaram e concordaram
integralmente com a afirmação, enquanto, entre os Nuvem, esse percentual foi de 50%.
Observa-se que mesmo o trabalhador Nuvem não possuindo a figura física de um chefe
que supervisiona seu trabalho a maioria se sente vigiado.

Gráfico 9 – Me sinto vigiado o tempo todo

45%
Me sinto vigiado o tempo todo
40%
40%
35%
30%
25% 25%
25% 23%
19%
20% 17% 17%
15% 13%
10% 10%
10%
5%
0%
e rdo tro o e
ent co Neu cor
d ent
o talm Dis Con gralm
ot te
co rd d o in
Dis cor
OL Nuvem Con

Elaboração: Própria.

A segunda parte do questionário buscou verificar questões relacionadas à


remuneração, à jornada e intensidade do trabalho. Uma vez que a remuneração é
medida pela quantidade de entregas realizadas ou pela quilometragem percorrida,
perde-se a noção do tempo total trabalhado no dia ou na semana. Assim buscou-se
realizar perguntas focando o dia ou a semana de trabalho.

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Laura Valle Gontijo

Gráfico 10 – Na semana passada, quantos dias você trabalhou?

Na semana passada, quantos dias você trabalhou?


50% 47%
45% 42%
40% 37%
35%
30% 27%
25%
20%
15%
10%10%
10% 8% 8%
5% 3% 2% 3% 4%
0% 0% 0% 0%
0%
1 dia 2 dias 3 dias 4 dias 5 dias 6 dias 7 dias Não sei
responder

OL Nuvem

Elaboração: Própria.

Conforme Gráfico 10, a maioria dos entregadores (84% entre os OL e 69% entre os
Nuvem) declarou que trabalhou entre 6 e 7 dias na semana anterior ao preenchimento
do questionário. 37% entre os OL e 42% entre os Nuvem declararam que trabalharam
os 7 dias da semana, ou seja, não tiveram nenhum dia de folga. Aqui fica evidente que
mesmo os OL tendo horários fixos de trabalho, eles também realizam longas jornadas.

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O trabalho em plataformas digitais e o salário por peça

Gráfico 11 – Na semana passada, quantas horas você trabalhou?

Na semana passada, quantas horas você trabalhou ?


35% 33%

30% 29%
27%
25% 23%
20% 20%
20%
15%
15%
10%
10% 8% 8%
5% 3% 4%
0% 0%
0%
Até 14 horas 15 a 39 horas 40 a 44 horas 45 a 48 horas 49 a 53 horas 54 horas ou Não sei
mais responder

OL Nuvem
Elaboração: Própria.

De acordo com o Gráfico 11, é bastante expressivo o número daqueles que não
souberam responder à pergunta sobre as horas trabalhadas (20% entre os OL e 29%
entre os Nuvem). É bastante expressivo também o percentual daqueles que afirmaram
ter trabalhado 54 horas ou mais (33% entre os OL e 27% entre os Nuvem), seguidos
pelos que afirmaram ter trabalhado na semana anterior entre 49 e 53 horas (23% entre
os OL e 8% entre os Nuvem). Considerando uma jornada de cinco dias na semana é o
equivalente a 9 e 10 horas diárias. Observa-se uma tendência à prevalência de jornadas
excessivas de trabalho, muito superior às 44 horas semanais previstas na legislação
trabalhista brasileira. Outras pesquisas corroboram com esse achado. Em Abílio et al
(2020), constatou-se que 54,1% trabalhavam entre nove e quatorze horas diárias e 7,8%
mais que quinze horas diárias. Em Festi et al (2021), a média da jornada semanal dos
entregadores da amostra foi de 65,72 horas. No trabalho por peça, as jornadas são
excessivas devido à própria forma de remuneração que torna “interesse pessoal do
trabalhador prolongar a jornada de trabalho” (MARX, 1984, p. 624, grifo nosso).

Laborare. Ano VI, Número 10, Jan-Jun/2023, pp. 128-149. ISSN 2595-847X. https://revistalaborare.org/
DOI: https://doi.org/10.33637/2595-847x.2023-165
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Laura Valle Gontijo

Gráfico 12 – Teve algum mês em que você trabalhou nesse trabalho todos os dias da
semana, sem nenhum dia de folga?

Teve algum mês em que você trabalhou nesse trabalho todos


os dias da semana, sem nenhum dia de folga?
70%
59,42%
60%
50%
40% 33,00%
30%
20% 15,94%
8,60%
10% 1,44% 0,00%
0%
Sim Não Não sei responder

OL Nuvem
Elaboração: Própria.

Segundo consta no Gráfico 12, 77% entre os OL e 79% entre os Nuvem responderam
que já trabalharam todos os dias da semana em um determinado mês. Esse dado
demonstra o grau de superexploração a que estão expostos esses trabalhadores e o
quão prejudicial é essa forma de remuneração, que incentiva o trabalhador a trabalhar
até o limite da sua capacidade física. Nesse item, um trabalhador acrescentou: “teve
sim, por opção minha, já que não tinha alcançado minha meta nos dias anteriores e
precisava cobrir essa falha” (José3), confirmando a incidência do tipo de salário na
subjetividade, no sentido de o próprio trabalhador se responsabilizar por ter realizado
uma jornada tão longa de trabalho.

3 Os nomes dos entregadores utilizados neste artigo são fictícios, uma vez que o questionário foi aplicado de
forma anônima.

Laborare. Ano VI, Número 10, Jan-Jun/2023, pp. 128-149. ISSN 2595-847X. https://revistalaborare.org/
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O trabalho em plataformas digitais e o salário por peça

Gráfico 13 – Se o aplicativo te oferecer uma entrega seguida da outra, sem pausa, o que você faz?

Se o aplicativo te oferecer uma entrega seguida da outra,


sem pausa, o que você faz?
70,00%
63,51%
60,00%

50,00%

40,00%
31,08%
30,00%

20,00%

10,00% 5,40% 4,05% 5,40%


1,35%
0,00%
Aceito Não Aceito Outros

OL Nuvem
Elaboração: Própria.

O Gráfico 13 demonstra que a maioria dos trabalhadores afirma estar disposta a


intensificar o trabalho. Obtivemos respostas interessantes na opção “Outros”, tais
como: “ele já faz isso a todo momento, e não existe isso de escolher as corridas que
você quer, nós temos que fazer todas, pois existem penalizações (...), penalizações
severas que vão de ficar sem receber pedidos por horas até bloqueio na plataforma”
(Roberto). João afirmou:

Eu sou entregador OL, meu aplicativo até tem a função de pausa, mas
raramente consigo acioná-la quando quero. (...) Aparece a mensagem:
‘estamos com alta demanda no momento, deixa a pausa para mais tarde e
aproveite para fazer mais entregas agora’...só falta um termo pejorativo
como escravo ou otário no final da frase, pois, às vezes, mesmo após sete
horas trabalhadas sem pausa, quando tento acionar a pausa, a tal
mensagem aparece (João).

Conforme afirma Marx (1984, p. 483), “O capital assegura mediante o método de


pagamento que o trabalhador efetivamente movimente mais força de trabalho”.
Conforme afirma Alves (2006, p. 93), “o pagamento por produção transfere ao
trabalhador a responsabilidade pelo ritmo de trabalho, que é atribuição do capitalista”.

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Laura Valle Gontijo

Gráfico 14 – Qual foi sua remuneração bruta no trabalho em aplicativos na semana passada?

Qual foi sua remuneração bruta no trabalho em aplicativos na semana


passada?
25% 23% 23%
19% 19% 20%
20%
17%
15% 13%
12%
10% 10%
10%
7% 7% 6%
5% 4% 4% 3%
2% 2%
0% 0%0% 0%
0%
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10
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R$ 1. 1.
n tre n tre n tre n tre re R$ R$
E E E E t re re
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En En

OL Nuvem
Elaboração: Própria.

Como é possível observar no Gráfico 14, a maioria declarou ter recebido entre R$
101,00 e R$ 600,00 semanais, entre os Nuvem (61%), e entre R$ 201,00 e R$ 800,00,
entre os OL (60%). Estamos falando de uma renda mensal estimada entre R$ 454,50 e
R$ 2.700,00 (média de R$ 1.804,50) entre os Nuvem e entre R$ 900,00 e R$ 3.600,00
(média de R$ 2.700,00) entre os OL. Outras pesquisas realizadas com entregadores
brasileiros chegaram a resultados semelhantes com relação à renda mensal, como R$
2.400 em FESTI et al (2021) e R$ 2.925,00 em ABILIO et al (2020).

4. CONCLUSÃO

Há uma dificuldade muito grande entre os trabalhadores de estimar a remuneração


recebida e as horas trabalhadas. Também foi possível perceber que há uma disposição
grande entre eles em intensificar e prolongar seu trabalho até o limite da sua
capacidade física, além da forte presença de um sentimento de responsabilização
individual pelos rendimentos do trabalho.

O estudo revelou que esses trabalhadores perfazem longas jornadas de trabalho,


ultrapassando facilmente as 54 horas semanais. É bastante expressiva a porcentagem -
variando entre um terço e 59% - daqueles que afirmaram já ter trabalhado o mês

Laborare. Ano VI, Número 10, Jan-Jun/2023, pp. 128-149. ISSN 2595-847X. https://revistalaborare.org/
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O trabalho em plataformas digitais e o salário por peça

inteiro, sem nenhum dia de descanso. A jornada excessiva é a característica por


excelência do salário por peça. Como o trabalhador recebe por produção, ele prefere
prolongar ao máximo seu trabalho. Para este trabalhador, tempo de descanso é
“tempo morto”, no qual ele não ganha nada (GUASNAIS, 2018). Considerando que
todos os custos e riscos do trabalho estão sob sua responsabilidade, a remuneração é
baixa e varia entre um terço e três salários mínimos4.

Sugere-se que o tipo de salário seja utilizado pelas plataformas digitais como uma maneira
de evitar que o trabalhador tenha controle sobre o seu pagamento. As tarifas oscilam muito
e os critérios que definem a pontuação dos trabalhadores não são claros. Dessa forma, há
uma dificuldade entre os entregadores de calcular sua remuneração mensal. Essas duas
características são bastante presentes no trabalho dos cortadores de cana de açúcar,
trabalhadores por peça por excelência (ALVES, 2006; GUASNAIS, 2018).

Há ainda uma grande insatisfação dos trabalhadores com as plataformas digitais.


Apesar de cultivarem sentimentos de liberdade e autonomia, a maioria declarou que se
sente vigiado o tempo todo no seu trabalho. Um dos trabalhadores afirmou, em um dos
campos em aberto do formulário, que se sente como um escravo. A supervisão do
trabalho é feita por algoritmos e pela própria forma de remuneração. Essas são
características marcadamente presentes do salário por peça, uma vez que, nessa
modalidade, o salário varia de acordo com as diferenças individuais dos trabalhadores,
provocando diferenças nos seus rendimentos e estabelecendo uma concorrência e
emulação entre eles, o que tende a promover um aumento na produtividade.

Em um momento de crescimento medíocre e fraca produtividade, como é a etapa


atual do capitalismo, de financeirização (HUSSON, 2010), uma forma de
remuneração que permite extrair o máximo de mais valia absoluta (por meio da
extensão da jornada de trabalho) e relativa (por meio do aumento na intensidade do
trabalho) e reduzir salários parece ser a forma ideal. Os resultados dos questionários
aplicados com os entregadores também confirmam essa hipótese. Conclui-se,
portanto, que a categoria salário por peça permite definir de forma bastante
apropriada a forma de remuneração no trabalho em plataformas digitais, no entanto,
sugere-se mais estudos para um melhor entendimento da relação entre essa forma de
pagamento e essa forma contemporânea de trabalho.

REFERÊNCIAS

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subordinado. Psicoperspectivas: individuo y sociedade, 18, n. 3, nov 2019.

4 Utilizou-se como referência o salário mínimo de janeiro de 2022, no valor de R$ 1.212,00 (BRASIL, 2022).

Laborare. Ano VI, Número 10, Jan-Jun/2023, pp. 128-149. ISSN 2595-847X. https://revistalaborare.org/
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O trabalho em plataformas digitais e o salário por peça

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Data de submissão: 28/08/2022


Data de aprovação: 22/01/2023

Este trabalho está licenciado sob uma licença Creative Commons Attribution-
NonCommercial-ShareAlike 4.0 International License.

Laborare. Ano VI, Número 10, Jan-Jun/2023, pp. 128-149. ISSN 2595-847X. https://revistalaborare.org/
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O TRABALHO EM PLATAFORMAS DIGITAIS NO BRASIL

“O nosso sofrimento é maior do que a gente expressa”:


As condições laborais dos entregadores por aplicativo
no Distrito Federal
“Our suffering is greater than what we express”: The working conditions of
delivery workers by app in the Federal District

Kethury Magalhães dos Santos


Mestranda em Sociologia do Trabalho pelo Programa de Pós-
Graduação em Sociologia da Universidade de Brasília (PPGSol-UnB).
Graduada em Ciências Sociais pela UnB. Bolsista CAPES. Participante
dos Grupos de Pesquisa CNPq “Mundo do Trabalho e Teoria Social” e
“Grupo de Estudos e Pesquisas sobre o Trabalho”.
https://orcid.org/0000-0002-1877-9118

RESUMO: O presente estudo tem como objetivo verificar quais são as condições
laborais dos entregadores por aplicativos na capital do país e, também, refletir sobre a
precarização do trabalho na era digital. Para conhecer o perfil e compreender as
especificidades da categoria, realizou-se entrevistas através de questionário
semiestruturado. Neste sentido, a conclusão da pesquisa aponta para a predominância
masculina, jovem e periférica em ocupações precárias e indica a persistência das
desigualdades sociais e raciais no Distrito Federal.

Palavras-chave: Plataformização do trabalho, uberização, trabalho digital.

ABSTRACT: The present study aims to verify the working conditions of app
delivery workers in the country's capital and to reflect on the precariousness of work
in the digital age. To know the profile and understand the specifics of this category,
through semi-structured questionnaires-based interviews were carried out. So, the
conclusion of the search shows the predominance of young, males and peripheral in
precarious occupations and indicates the persistence of social and racial inequalities
in the Federal District.

Keywords: Work platforms, uberization, digital work.

Laborare. Ano VI, Número 10, Jan-Jun/2023, pp. 150-163. ISSN 2595-847X. https://revistalaborare.org/
DOI: https://doi.org/10.33637/2595-847x.2023-189
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“O nosso sofrimento é maior do que a gente expressa”: As condições laborais dos entregadores por
aplicativo no Distrito Federal

1. INTRODUÇÃO

Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2020, havia


cerca de 37 milhões de trabalhadores ocupados no setor informal no Brasil (PNAD
Contínua, 2021). Este setor, composto pelas categorias de empregados sem carteira e
trabalhadores por conta própria, foi o mais prejudicado durante a crise sanitária, social e
econômica que atingiu país em decorrência da pandemia do COVID-19 (Síntese de
Indicadores Sociais, 2021). A situação de precariedade a que o trabalhador informal está
sujeito se traduz pela omissão de direitos trabalhistas previstos em lei para trabalhadores
com vínculo formal, ausência de ganhos mínimos e imprevisibilidade da duração da
jornada de trabalho, falta de garantias de segurança e salubridade no ambiente de
trabalho, subnotificação de acidentes de trabalho, entre outros.

Dentre as modalidades de trabalho informal, o trabalho por meio de plataformas


digitais e aplicativos ascendeu com notável intensidade nos últimos anos, tornando-se
rapidamente símbolo da precarização das relações de trabalho na era do algoritmo.
Esses trabalhadores atuam principalmente no setor de transporte de pessoas e de
mercadorias, e já compõem 31% do total de ocupação do setor, mais de 1,4 milhões de
pessoas (IPEA, 2021). A busca por essa modalidade laboral no país pode se justificar,
por um lado, pela fragilidade que o mercado de trabalho formal tem enfrentado nos
últimos anos, com altas taxas de desemprego (PNAD Contínua, 2021), e, por outro,
pelas mudanças no horizonte do trabalho associadas aos avanços das tecnologias de
comunicação (TICs). Uma vez que não existe vínculo empregatício reconhecido entre
as plataformas digitais e os motoristas e entregadores a elas associados, estes estão
sujeitos a todos os supracitados problemas que assolam o trabalhador informal.

Há uma escassez de dados que permitam delinear com exatidão o perfil destes
trabalhadores. A PNAD-Covid-19 oferece alguns indícios: segundo uma análise mais
recente elaborada por Lapa (2021) sobre o perfil dos trabalhadores por meio de
plataformas digitais no Brasil, 94,94% dos respondentes se declararam homens, e
apenas 5,06% se declararam mulheres. Quanto ao nível de instrução, 30,22% tem
nível fundamental completo; 8,93% não concluiu o ensino médio; 39,39% concluiu o
ensino médio; 16,87 possui nível superior incompleto e inexistem índices sobre os
concluintes dos estudos no ensino superior.

Neste trabalho, pretendo voltar minha atenção para a investigação dos perfis dos que
compõem a categoria no Distrito Federal, levando em consideração o fato de que a maior
parte dos estudos sobre o trabalho em plataformas têm se concentrado nas grandes
cidades do Brasil e há poucos trabalhos produzidos sobre o tema na capital. E ainda, me

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Kethury Magalhães dos Santos

debruçar sobre as jornadas laborais, segurança e proteção no trabalho e verificar se há


ocorrências de discriminação de gênero, racial e social durante o exercício da atividade
laboral. O objetivo desta pesquisa é, portanto, examinar e problematizar as condições de
trabalho dos entregadores por meio de plataformas digitais no DF.

2. MÉTODOS

Esta é uma pesquisa qualitativa com características da pesquisa netnográfica. A escolha


pela netnografia em uma pesquisa sociológica se deu como forma de driblar as
limitações impostas pelo cenário pandêmico, possibilitando o contato por meio do
ambiente virtual. Este recurso metodológico, desenvolvido por Kozinets (2014),
consiste em um conjunto de técnicas inspiradas pela etnografia clássica, desenvolvidas
para adaptar a pesquisa aos modos de comunicações mediadas por computador.
Segundo Martins (2012), ela funciona por meio da “imersão do pesquisador no grupo a
ser estudado e sua convivência com a cultura local para entender, ou melhor, mergulhar
no modo de ver e pensar o mundo daquele grupo, a fim de poder falar sobre ele”.

Quanto ao acesso aos interlocutores, foi possível expandir a rede de atores por meio do
método snowball sampling (amostragem “bola de neve”). Este pode ser definido como
um método amostragem não probabilístico, que consiste na indicação sucessiva de novos
participantes por participantes antigos da pesquisa (MUNHOZ e BALDIN, 2011: p.
332). Este método pode ser combinado com a abordagem netnográfica para alcançar os
trabalhadores por meio do ambiente virtual, evitando, assim, o contato face-a-face para
preservar a saúde das partes envolvidas, por restrições ligadas à pandemia do Covid-19.

A coleta de dados ocorreu por meio de entrevistas realizadas através da plataforma de


videoconferências Google Meet, entre os meses de novembro de 2020 e março de
2021. A população selecionada consistiu em motociclistas e bikers que trabalham
para as principais plataformas de entregas que atuam no Distrito Federal (DF), elas
são: Ifood, Uber Eats, Rappi e 99food. No total, foram aplicados 39 questionários
semiestruturados, com perguntas de cunho qualitativo e quantitativo, elaboradas
(coletivamente) a partir do aplicativo Google Forms, junto aos demais membros do
Grupo de Pesquisa Mundo do Trabalho e Teoria Social (GPMTTS – UnB). Com o
objetivo de preservar o anonimato dos entrevistados, optou-se por identificá-los pela
letra “E” de entrevistado(a), seguido de um número aleatório e o gênero.

3. PERFIL SOCIODEMOGRÁFICO

Como foi dito, a pandemia da Covid-19 resultou no agravamento da crise econômica


e política já instaurada no país. Assim como nos demais estados, o governador do

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“O nosso sofrimento é maior do que a gente expressa”: As condições laborais dos entregadores por
aplicativo no Distrito Federal

Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB), adotou o posicionamento diante do cenário


pandêmico que alternava entre a rigidez e a flexibilização das medidas restritivas.
Logo no início da propagação da doença, em março de 2020, foi publicado o Decreto
nº 40.528 no Diário Oficial do Distrito Federal (DODF) que vetou as atividades no
comércio e aulas presenciais. Com isso, houve o fechamento de bares, restaurantes,
cinemas, escolas públicas e privadas e o mesmo não se aplicou às atividades
consideradas essenciais nos setores da saúde, segurança pública, vigilância sanitária
entre outros. Após um ano, a transmissão do vírus ainda estava fora de controle e o
Decreto nº 41.874 veio a público em 8 de março de 2021, e com ele mais um
lockdown (“bloqueio total” ou “confinamento”) se estabeleceu como protocolo de
isolamento para preservar a segurança sanitária da população.

O fechamento dos bares e restaurantes abriu margem para o encaixe das entregas de
alimentos como uma atividade essencial. Com efeito, houve aumento significativo
nos pedidos para as residências realizados por motoboys e bikers, principalmente.

A pesquisa possibilitou conhecer o perfil dos que predominam uma das profissões
que se tornaram atividades essenciais durante a pandemia da Covid-19 a nível
nacional e regional. Foi graças ao trabalho realizado pelos entregadores por aplicativo
que muitas pessoas puderam manter-se isoladas em seus domicílios.

Em se tratando do gênero dos trabalhadores, 92,3% dos entrevistados assumiram ser


do gênero masculino e apenas 7,7% compõe o gênero feminino. No que abarca a
questão sobre o estado civil, 51,3% se declararam solteiros(as), 38,5% estão
casados(as) ou em uniões estáveis, seguidos por 10,3% de divorciados(as). Quanto ao
nível de instrução, 10,3% tem nível fundamental incompleto; 10,3% não completou o
ensino médio; 35,9% concluiu o ensino médio; 30,8% possui nível superior
incompleto e 10,3% concluiu os estudos no ensino superior. Destes, 61,5% ainda
estuda (em cursos técnicos, profissionalizantes ou de nível superior) e 38,5% parou
de estudar. Sobre as raças/etnias dos respondentes, 68% se identificam como negros
ou pardos; 23,7% como brancos e 8% como sendo indígenas ou amarelos.

No que se refere às regiões do DF onde os entregadores vivem, a maioria habita


cidades administrativas como: Ceilândia, Santa Maria, Cidades do Entorno,
Taguatinga, Guará e Paranoá. Quanto as regiões onde os entrevistados costumam
trabalhar, por concentrar maior número de demandas, as que mais os atraem são
regiões com a maior concentração de renda como o Plano Piloto, seguido por Águas
Claras, Guará, Taguatinga, Lago Sul e Lago Norte, Sudoeste e Park Way. Logo,
pode-se afirmar que o perfil que predomina o ramo do delivery na capital do país é

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Kethury Magalhães dos Santos

masculino, majoritariamente jovem, negro ou pardo, que vive em lugares de menor


rendimento e se deslocam para as regiões centrais do Distrito Federal.

3.1 JORNADAS DE TRABALHO

Foi feito o cálculo da média de horas despendidas semanalmente, e o resultado obtido


foi de 65,72 horas semanais de trabalho, considerando que os trabalhadores laboram
até 10 horas por dia. Por isso, buscou-se extrair outro elemento importante, já que os
entregadores possuem longas jornadas para cumprir as demandas. Houve
questionamento sobre a ocorrência de pausas durante o trabalho para descanso ou
alimentação. 71% responderam que fazem pausas para aguardar o próximo pedido,
54,8% respondeu que faz pausas para esperar o pico de pedidos, 51,6% respondeu
que faz pausas para se alimentar e 3,2% não faz qualquer tipo de pausa. Partindo do
questionamento anterior, procuramos saber onde eram realizados esses intervalos. As
respostas foram as mais diversas, já que 82% dos entregadores afirmaram não possuir
pontos de apoio concedidos pelas empresas. Sendo assim, eles procuram por praças,
ficam perto dos restaurantes, em locais arborizados etc. As descrições a seguir dão
conta de melhor ilustrar este ponto:

Entrevistador: Onde normalmente você realiza esse tipo de descanso ou


pausa?

Ah, eu sento numa calçada, se tiver uma praça eu sento no banco da praça.
Se tiver uma árvore, eu sento debaixo da árvore. Não tem um local
específico, sempre é onde eu conseguir fazer uma pausa eu vou procurar
um lugar mais aconchegante que eu possa está ficando mais à vontade para
almoçar. (E14, homem)

Geralmente, a gente para no meio das residências, nos banquinhos da


quadra. O aplicativo não dá nenhuma tenda, nenhum lugar para carregar o
celular. Se for na chuva, a gente fica embaixo de prédio. Nossa vida é
assim. (E27, mulher)

As jornadas figuram como um elemento importante capaz de indicar o nível de


autonomia dos indivíduos e a intensidade do trabalho. Por isso, procuramos investigar
os efeitos destas sobre a vida pessoal dos participantes. Obtivemos os seguintes relatos:

A vida social e a vida familiar se anulam por completo. Você não tem
mais aquele almoço de domingo com a sogra, com os cunhados...Essa
relação social, essa interação familiar acaba. Nem é por má vontade, é
físico mesmo porque está exausto. Você passa 14h em uma moto

Laborare. Ano VI, Número 10, Jan-Jun/2023, pp. 150-163. ISSN 2595-847X. https://revistalaborare.org/
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“O nosso sofrimento é maior do que a gente expressa”: As condições laborais dos entregadores por
aplicativo no Distrito Federal

aguentando trânsito terrível, clientes mal-humorados, comerciantes que


debocham da sua cara. (E29, homem)

Toma sim um certo tempo, mas eu fico, às vezes, me acho injustiçado


porque as outras pessoas... enquanto estou servindo as outras pessoas lá a
maior parte do tempo estão no conforto da casa delas. E eu a maior parte do
tempo estou no serviço. Então acho um pouco injusto isso. Pessoas que tem
sua carteira assinada, suas 8h de jornada de trabalho, enquanto eu tenho 4h a
mais porque eu preciso complementar a renda. Como falei por mais que eu
fique as 14h por lá, dessas 14h eu fico 2h-3h parado. (E22, homem)

Grande parte das angústias e desabafos dos entregadores se direcionam tanto no


sentido da exaustão quanto no da pobreza de tempo que culmina na ausência de
descanso e prejudica as interações com familiares e amigos. Desse modo, a
experiência prática dos trabalhadores por meio de plataformas entra em contradição
com a retórica amplamente difundida pelas empresas de que é possível ter controle
sobre o tempo de trabalho e “ser seu próprio chefe”.

3.2 DISCRIMINAÇÕES NO TRABALHO

Neste eixo, o intuito era descobrir se os entregadores sofrem discriminação no


trabalho e por quais motivos, em caso afirmativo. Os relatos mais frequentes foram
sobre discriminação sofrida pelo estabelecimento/restaurante seguida por clientes,
pela plataforma e outros (trânsito, polícia militar, demais motoristas etc). Quanto às
motivações, as mais apontadas foram atraso na entrega, qualidade da entrega,
aparência física, discriminação de classe, profissão, discriminação de gênero,
discriminação sexual etc. Conforme os relatos separados a seguir:

Entrevistador: Você já sofreu alguma discriminação ou ofensa? Por quais


motivos?

[...] É muito comum no Lago Sul, principalmente por mulheres que fazem o pedido
e recebem, te observar dos pés à cabeça, te pedir para aguardar...A discriminação
social é maior que a religiosa, maior que a ideológica, é maior do que qualquer
outro grupo. A discriminação social é a maior de todas. (E29, homem)

[...] Teve um comentário maior chato, porque a minha moto é bem grande e eu
tenho 1,50/1,55m. E a minha moto é alta. Então, nem os motoboys nem os
entregadores tem uma moto igual a minha, sempre as motos deles são pequenas, são
menores... CG na verdade. Aí eles falam: “Ah, mas você é mulher e pequenininha,
por que você tem uma moto desse tamanho?”, aí eu falo: “Uai, porque eu tenho

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dinheiro pra comprar” (risos). Eu dou uma resposta bem grossa logo, no tom de
grosseria mesmo pra não prolongar. Geralmente, é isso. Eles comentam muito da
minha moto. Pelo fato de ser mulher, mesmo. Até os donos de restaurante
comentam: “nossa essa moto não é muito grande pra você não?” É mais por eu ser
mulher mesmo, pois se fosse um homem ninguém ia falar isso. (E41, mulher)

Você não pode entrar na loja. Você tem que esperar num canto, do lado de
fora, na chuva. Não tem uma cadeira para você sentar, que o motoboy é lixo,
que o motoboy é aquilo [...] todo dia a gente escuta isso. (E27, mulher).

Nos relatos acima, destaca-se a concatenação das mais diversas opressões. Fica nítido
que a experiência dos trabalhadores nesta modalidade laboral é atravessada,
fundamentalmente, por preconceitos e estereótipos de classe, raça e gênero.

3.3 SEGURANÇA E PROTEÇÃO NO TRABALHO

Empenhamo-nos em descobrir quais eram os riscos mais frequentes que permeiam a


categoria de modo geral e, especificamente, durante o período da pandemia. Os riscos
gerais que os respondentes apontaram como sendo os mais recorrentes foram os
relacionados ao trânsito e assaltos. Já os específicos, no cenário pandêmico, foram as
contaminações. Com isso, temos os seguintes relatos:

Entrevistador: O seu trabalho oferece algum tipo de risco?

Eu costumo falar que o entregador é a profissão que mais corre risco. Mais
do que policial, mais do que bombeiro, mais do que enfermeiro, mais do
que médico. Por que entregador? Primeiro, o estresse emocional que ele
tem no trânsito. Ele está sujeito a várias intempéries ele pode cometer um
acidente por erro, por estresse. Ele pode ter um desmaio, está sujeito a ser
atropelado por terceiros. Ele está sujeito a pegar uma infecção. É uma
profissão que deveria ter insalubridade e ter periculosidade. É a categoria,
hoje, mais suscetível a ter problemas físicos e emocionais. São 13h20min
num banco de uma moto” (E29, homem)

[...] Tá com dois meses que eu caí aí fiquei uns dias... uns dias não,
continuei trabalhando, meu joelho infeccionou, aí eu tive que ir pro
médico fazer uma drenagem. Porque eu caí e achei que não era nada, mas
aí infeccionou e eu tive que fazer uma drenagem. [...] Eu continuei
trabalhando e o joelho ficou ruim mesmo. Aí foi o tempo que eu saí de
férias, tirei o mês de férias, aí sarou. [...] Eu fiquei foi 20 dias trabalhando
com esse joelho, mas aí é o risco: cair. Se você não quebrar nada você tem
que continuar trabalhando, senão você não ganha. (E41, mulher)

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“O nosso sofrimento é maior do que a gente expressa”: As condições laborais dos entregadores por
aplicativo no Distrito Federal

Já peguei Covid. Já peguei alguns vírus... né... de água. Às vezes a gente pede
em um estabelecimento a água e eles colocam da própria torneira, não tem
aquele cuidado, a gente não sabe a procedência. Já tive infecção estomacal...
Ah, tanta coisa [risos]... Já sofri acidente, também... (E48, homem)

Caso os entregadores se envolvam em acidentes ou se recusem a realizar entregas em


áreas com risco de assalto, a providência padrão dos aplicativos é bloquear o
entregador. Existe a possibilidade de comunicar a plataforma a respeito de regiões
perigosas, mas os trabalhadores ficam acuados pela possibilidade de não receberem
mais demandas. Os participantes disseram:

Entrevistadora: Os apps adotam alguma estratégia para que os


entregadores não sejam assaltados?

[...] Eles dão a opção de você não pegar uma corrida para um lugar que é
área de risco, mas se você for e tiver algum problema eles não acionam
automaticamente a polícia. Porque eles têm acesso a nossa localização
(E27, mulher)

Entrevistadora: Você considera que isso é eficaz?

Não, porque se a gente cancela um pedido porque o lugar é uma área de


risco, corre o risco de a gente não pegar mais pedido, pois eles podem
bloquear a gente, pois eles não vão mandar mais demanda para a gente.
(E27, mulher)

Acabei me acidentando e não comuniquei o suporte, tentei comunicar o suporte,


mas não deu pra comunicar e acabei me acidentando, tive que me deslocar do
local do acidente, pegar meus prejuízos e tal [...] resolver a situação. E acabei
não chegando pra pegar o pedido e fui bloqueado. (E14, homem)

Entrevistador: Você já sofreu algum tipo de bloqueio? Poderia nos


informar algum que você já sofreu?

[...] Bloqueiam. Bloqueiam. Eles bloqueiam a gente da plataforma se a


gente não entregar o pedido. O pedido de qualquer forma ele tem que sair
das nossas mãos e ser entregue pro cliente. Eu posso cair da bicicleta e me
machucar e eu tenho que ter alguma forma de entregar pro cliente. (E10)

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Os participantes alegaram que após começarem a prestar serviços para as plataformas


apresentaram alguns problemas de saúde devido às condições de trabalho ao qual são
submetidos. Os problemas mais comuns são problemas na coluna, estresse, lesão
física por conta de acidentes e ansiedade. Eles descreveram:

Entrevistador: Depois de ter começado a trabalhar com entregas por app,


você apresentou problemas de saúde relacionados ao trabalho?

Lesão física por conta de acidente, problema na coluna, no caso eu já tinha


um problema na coluna e ele se agravou e eu vou ter que passar por outra
cirurgia. Tive há 1 ano e meio, 2 anos, um problema na coluna passei por
uma cirurgia e recuperei bem e voltei a trabalhar, mas nem tanto, o
problema foi se agravando novamente, surgiu novamente e eu vou ter que
passar por outra cirurgia. (E14, homem).

(dor na coluna?) Sim, tive. Bastante dor no joelho e nas costas. (E10,
homem)

Entrevistador: Para algum desses que você citou (dor na coluna, dor no
joelho, estresse, ansiedade) você teve diagnóstico médico?

E10: Eu fui na doutora né, expliquei pra ela o que tava acontecendo (sobre
ansiedade né) e ela falou que eu tava com transtorno depressivo
persistente. E ela falou que para esse caso eu deveria é tomar remédio,
então hoje eu faço uso de um remédio para ansiedade e é isso. Mas assim
pra joelho e pras costas não, pra essas dores assim não. (E10, homem).

Como vimos, existem os riscos que a categoria reconhece como comuns à profissão e
há aqueles que são potencializados pelo gerenciamento algorítmico. Os acidentes
fatais, lesões físicas e roubos são os mais frequentes, porém eles podem se
intensificar no trabalho para as plataformas, haja vista que as entregas possuem prazo
para serem efetivadas, e a não realização dentro do período proposto normalmente
implica em baixa avaliação por parte dos clientes e restaurantes, bloqueios e
banimentos. O tempo de trabalho despendido diariamente e semanalmente sem
pausas em locais de descanso adequados, culmina na exaustão e compromete o tempo
dedicado ao lazer, à família e ao autocuidado do trabalhador. Isto, sem contar com os
danos à saúde física e psíquica, a curto e médio prazo, que já fazem parte de suas
realidades cotidianas como foi relatado.

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aplicativo no Distrito Federal

4. DISCUSSÃO

Os resultados deste estudo descreveram o perfil de pessoas que integram a categoria dos
entregadores por meio de plataformas digitais na região do Distrito Federal. Apesar de a
pesquisa ter traçado o perfil demográfico dos atores, optamos por não acrescentar a
variável idade à pesquisa, uma vez que as variáveis “estado civil” e “nível de instrução”
são capazes de sugerir a faixa etária dos participantes. Pela análise dos resultados, é
possível perceber uma prevalência maior dos indivíduos do sexo masculino, 92,3%, o
que corrobora com o padrão encontrado no estudo de Abílio et al. (2020).

Os níveis educacionais na capital, que foram 35,6% para concluintes do ensino médio
e 10,3% para concluintes do ensino superior, destoam dos achados pela Associação
Brasileira do Setor de Bicicletas (Aliança Bike, 2019), já que eles apontam as taxas
de 53% e 4%, respetivamente. Outro fator que merece destaque, é a identificação
étnico-racial dos entrevistados. No DF, a maior parte dos entrevistados, 68%, se
identifica como negro ou pardo, e 23,7% como sendo brancos, indo de encontro com
a relação dos resultados da pesquisa anteriormente citada, com cerca de 71% dos
entregadores negros ou pardos, e 26% sendo brancos.

No que tange as jornadas de trabalho, pode-se concluir que os trabalhadores possuem


jornadas diárias e semanais extenuantes, que podem chegar até 65,72 horas de trabalho
(por semana). Dal Rosso (2017), em seu estudo sobre a flexibilização das horas
laborais a nível mundial, determinou que as jornadas que ultrapassam as 45 horas
semanais se encaixam como jornadas excessivas, que podem trazer danos à saúde do
trabalhador. Em consonância, Brandão (2009) argumenta que a fadiga causada pelo
excesso de jornada é capaz de reduzir o desempenho e a atenção necessária para a
execução das atividades laborais. Deste modo, o alargamento do tempo se converte em
um elemento facilitador de acidentes de trabalho. Ainda segundo o autor, as pausas
realizadas durante as jornadas são capazes de propiciar o repouso necessário para que o
indivíduo se recupere dos desgastes físicos e mentais ocasionados pela ocupação.

Tais intervalos, como vimos, ocorrem em sua maioria em praças ou debaixo da


sombra das árvores, pois inexistem lugares adequados para o descanso dos
trabalhadores. E essas pausas são feitas com o objetivo de aguardar os pedidos, 71%,
ou para esperar o aumento da demanda 54,8%. É importante nos atentarmos que os
percentuais de pessoas que direcionam seus hiatos à disposição da plataforma são
superiores ao índice de pessoas que realizam os intervalos para se alimentar, que é
por volta de 51,6% dos respondentes. Portanto, é visível que a realização do trabalho
é priorizada em detrimento da própria alimentação dos entregadores.

Laborare. Ano VI, Número 10, Jan-Jun/2023, pp. 150-163. ISSN 2595-847X. https://revistalaborare.org/
DOI: https://doi.org/10.33637/2595-847x.2023-189
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Kethury Magalhães dos Santos

No que diz respeito às discriminações sofridas no trabalho, as respostas comprovaram


a existência dos mais variados tipos, sejam elas de raça, classe ou gênero. Em sua
maioria, são proferidas pelos donos dos estabelecimentos e pelos clientes. Nas
descrições escolhidas para integrar a presente investigação, temos a discriminação de
classe, seguida pela discriminação de gênero. No entanto, não se pode deixar de
mencionar as práticas racistas frequentes no cotidiano dos e das entregadoras por
meio de plataformas digitais. Segundo Alencar e Silva (2021), o processo de exclusão
e subvalorização de pessoas negras no mercado de trabalho repercutem, diretamente,
na autoestima destes agentes causando sérios danos psíquicos.

Outro elemento crucial é a forma como as mulheres integram a categoria. Constatamos


no estudo que apenas 7,7% de mulheres participam de tal ocupação no Distrito Federal,
pouco mais que os 5,4% encontrados na pesquisa de Abílio et al. (2020). A hipótese,
aqui, é que neste tipo de trabalho existem alguns fatores que repelem a participação
feminina. São eles: os riscos (assédio, assaltos e acidentes de trânsito), a baixa
qualificação profissional (as mulheres costumam ter maiores níveis de instrução) e as
longas jornadas. Este último ponto se apresenta como um dos maiores obstáculos para
a população feminina. Por elas serem as mais afetadas pela pobreza de tempo,
geralmente, ocupam os lugares de principais ou únicas responsáveis pelas atividades de
cuidado e afazeres domésticos em seus núcleos familiares.

Estas assimetrias existentes entre os gêneros resultam da divisão sexual do trabalho.


Hirata e Kergoat (2008) conceituam-na como uma forma de divisão do trabalho
social que resulta das relações sociais entre homens e mulheres. Elas elencam que a
participação masculina é lançada na esfera produtiva e se apropria das funções de
maior prestígio social. Isto se deve a uma diferenciação socialmente construída dentro
de uma lógica biologizante dos papéis sociais direcionados aos gêneros. Desta forma,
destaca-se o fato de que na realidade brasileira, considerando os elevados índices de
informalização do trabalho feminino (ROSAS; SCHINCARIOL; SARAIVA, 2019)
que decorrem das desigualdades no mercado de trabalho e da divisão das tarefas de
cuidado nos domicílios, a desigualdade estrutural no âmbito laboral assola, sobretudo
as mais desfavorecidas economicamente, já que até mesmo o acesso aos postos de
trabalho mais precários e inseguros são dificultados

Os autores Alves e Bezerra (2021) concluíram que, atualmente, esta modalidade de


trabalho se converte em “um dos vetores do fenômeno das desigualdades de raça e
gênero existentes no mercado de trabalho” (p.182) e que o avanço da precarização possui
efeitos mais drásticos para a população negra e para a população feminina, sendo estes
dois grupos os que ocupam as posições mais rebaixadas no mercado de trabalho formal.

Laborare. Ano VI, Número 10, Jan-Jun/2023, pp. 150-163. ISSN 2595-847X. https://revistalaborare.org/
DOI: https://doi.org/10.33637/2595-847x.2023-189
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“O nosso sofrimento é maior do que a gente expressa”: As condições laborais dos entregadores por
aplicativo no Distrito Federal

Por fim, em se tratando da segurança e proteção no trabalho, os participantes


elencaram o estresse emocional, a imprevisibilidade dos riscos (como cair de moto,
ser atropelado, desmaios etc.) como fatores que corroboram para a ocupação ser
considerada de alta periculosidade. Isto, sem contar com os altos riscos de
contaminações e de assaltos, no último caso, a providência padrão das plataformas é
bloquear os entregadores. Conforme Brandão (2009), o excesso laboral em condições
insalubres corrobora e potencializa o desgaste dos trabalhadores. É comum se
acidentar no trabalho continuar as atividades após sofrer um acidente de moto ou de
bicicleta, pois o trabalho por meio das plataformas se configura como única ou
principal fonte de renda da maior parte dos que integram a categoria.

5. CONCLUSÃO

Em síntese, foi possível concluir que a crise econômica, política, sanitária e social que
acometeu o Brasil nos últimos anos, concatenada com uma miríade de ataques aos
direitos trabalhistas fertilizou o terreno para o avanço e efetivação da plataformização
do trabalho como regra no país. A falta de amparo do Estado, combinada com os novos
padrões de exploração do trabalho se propagam através de um discurso empreendedor
que seduz os trabalhadores com uma falsa promessa de autonomia e controle sobre o
tempo de trabalho. Trabalhadores estes que, historicamente, desconhecem uma forma
de ocupação remunerada que não seja informal e insegura.

Dito isso, o trabalho por meio das plataformas acaba por se firmar como mais um
campo reprodutor de desigualdades sociais, raciais e de gênero no mundo do trabalho.
Há certo desencantamento em relação às promessas de controle sobre o tempo e do
falacioso discurso empreendedor que permeia o trabalho mediado por plataformas. A
prova disso é a conscientização dos entregadores sobre as suas condições de trabalho
e a tentativa de reverter esse cenário através da luta que estes vêm travando por meio
de organizações coletivas e paralisações desde o ano de 2020, reivindicando melhores
condições de trabalho e direitos mínimos para a categoria.

REFERÊNCIAS

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desocupação e informalidades maiores e rendimento menor, mostra IBGE. São
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<https://valor.globo.com/brasil/noticia/2019/11/06/mulheres-tem-maiores-
desocupacao-e-informalidade-e-menores-rendimentos-mostra-ibge.ghtml>. Acesso
em: 19/10/2022.

Data de submissão: 30/09/2022


Data de aprovação: 22/01/2023

Este trabalho está licenciado sob uma licença Creative Commons Attribution-
NonCommercial-ShareAlike 4.0 International License.

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O TRABALHO EM PLATAFORMAS DIGITAIS NO BRASIL

Entregadores por aplicativo e a Covid-19:


Uma entrega destinada ao Poder Legislativo
Couriers and Covid-19: A delivery to the Legislative Power

Aline Gil Pereira Soares


Licenciada em Ciências Sociais e graduanda em Sociologia pela UnB.
Realizou mobilidade acadêmica na University of Warsaw. Integra o
Grupo de Pesquisa Mundo do Trabalho e Teoria Social.
https://orcid.org/0000-0003-3075-6418

RESUMO: Enquanto muitas formas de trabalho se reinventaram durante a pandemia


decorrente da Covid-19, o trabalho de entrega por aplicativo aumentou
consideravelmente devido às medidas de restrição comercial e isolamento social. A
situação de calamidade pública, somada à precariedade do trabalho por plataforma e a
ausência de uma regulação da profissão desencadearam os chamados “Breques dos
Apps”. A organização coletiva dos entregadores exerceu papel importante no exercício
de pressão ao poder público por garantias básicas e direitos à categoria que durante a
pandemia evidenciou ainda mais sua essencialidade. O presente artigo é fruto de uma
pesquisa documental realizada nas principais casas legislativas localizadas no Distrito
Federal, junto a entrevistas com os principais atores na luta dos entregadores por
aplicativo identificados no processo de monitoramento. O objetivo da pesquisa é
observar de que forma o pleito da categoria dos entregadores por aplicativo, bem como
suas condições de trabalho foram abordadas pelo Poder Legislativo durante a pandemia.

Palavras-chave: plataformas digitais, breque dos apps, uberização, pandemia.

ABSTRACT: While many categories of work have reinvented themselves during the
Covid-19 pandemic, app delivery work has increased considerably their demands due
to commercial restrictions and social isolation. The state of public calamity, added to
the precariousness of work by platform and the absence of a regulation of the
profession, triggered the so-called “Breque dos Apps”. The collective organization of
delivery workers played an important role in putting pressure on the public sphere for
basic guarantees and rights for those workers who during the pandemic have further

Laborare. Ano VI, Número 10, Jan-Jun/2023, pp. 164-177. ISSN 2595-847X. https://revistalaborare.org/
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Entregadores por aplicativo e a Covid-19: Uma entrega destinada ao Poder Legislativo

highlighted their essentiality. This paper is the result of a documentary research


carried out in the main legislative houses headquartered in Federal District, along
with interviews with the main stakeholders identified in the courier’s fight. The
objective of the research is to observe how the claim of the couriers, as well as their
working conditions were addressed by the legislative power during the pandemic.

Keywords: digital platforms, breque dos apps, uberization, pandemic.

1. INTRODUÇÃO

Os entregadores por aplicativo, desde o início da pandemia, foram reconhecidos


como categoria essencial por meio do Decreto nº 10.282, de 20 de março de 2020.
Contudo, apesar de sua essencialidade, eles sofreram, entre outras dificuldades, o
aumento da jornada de trabalho desacompanhada de um aumento nos rendimentos,
além da alta exposição ao risco de contaminação pelo coronavírus.

Nesse sentido, a pandemia evidenciou o quanto essa categoria carece de um


enquadramento jurídico que garanta o mínimo de direitos e garantias, pois o trabalho
por plataforma não é contemplado pela Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT),
em razão do não reconhecimento de vínculo trabalhista pelas empresas. Isto abre
brecha para a extração máxima de mais valor desses trabalhadores, baixas
remunerações e quase nenhuma assistência jurídica.

Diante desse cenário, ocorreram, de maneira inédita em todo o país, no dia 1º de julho
de 2020, as manifestações denominadas “Breque dos Apps”, que demonstrou a
organização coletiva dos trabalhadores e denunciou a insustentabilidade das
condições de trabalho a que vinham sendo expostos, bem como o agravamento da
precariedade do trabalho em razão da pandemia.

Este trabalho investiga de que forma o pleito da categoria foi contemplado durante o
período de pandemia no Poder Legislativo a nível federal e distrital. Para alcançar tal
finalidade, foi realizada uma pesquisa documental, no período entre 18 de março de
2020 e 13 agosto de 2021, a fim de mapear todos os projetos de lei que apresentavam
relação com a categoria aqui analisada no Senado Federal, na Câmara dos Deputados
e na Câmara Legislativa do Distrito Federal. Além da pesquisa documental, também
foram realizadas entrevistas semiestruturadas com stakeholders identificados como
relevantes na articulação do pleito dos entregadores com o poder público, no âmbito
do Distrito Federal, sendo eles o deputado distrital Fábio Félix (PSOL/DF) e a
liderança da Organização Associativa de Profissionais por Plataforma Digital.

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Aline Gil Pereira Soares

A partir da pesquisa desenvolvida, foi possível identificar um aumento expressivo de


projetos de lei que contemplavam o pleito dos entregadores por aplicativo durante o
período das paralisações, o que demonstrou a força coletiva como grupo de pressão
sobre o poder público na formulação de políticas públicas voltadas à categoria. A
maioria das proposições apresentadas buscavam trazer direitos e garantias aos
entregadores durante a pandemia, o que foi de suma importância dada a emergência
vivenciada. Contudo, é importante observar que os direitos previstos nos projetos
voltados ao contexto da pandemia de covid-19 colocam uma data de validade às
garantias estabelecidas, discutindo pouco soluções e regulações a longo prazo para os
problemas já antes enfrentados e agravados durante a pandemia. Desse modo,
observou-se que diante do cenário pandêmico, somado às mobilizações realizadas
pelos entregadores, como o Breque dos Apps, fomentou-se um debate sobre o
trabalho por plataforma que tem raízes profundas e que demandam soluções
complexas e a longo prazo, mas que diante da emergência de saúde pública, a
discussão acabou ficando centrada em medidas a curto prazo.

Destarte, o artigo está dividido em uma breve contextualização da situação dos


entregadores durante a pandemia; em seguida, a metodologia utilizada no decorrer da
pesquisa; posteriormente, uma análise dos resultados obtidos na Câmara dos
Deputados, no Senado Federal e na Câmara Legislativa do Distrito Federal. Por fim,
são apresentadas as considerações finais do trabalho.

2. CONDIÇÕES DO TRABALHO DE ENTREGA DURANTE A PANDEMIA

No final do ano de 2019, em 31 de dezembro, foi emitido o primeiro alerta do governo


da República Popular da China a respeito do surgimento do novo coronavírus (ALVES,
2020). Não levou muito tempo para o vírus se disseminar por outros países e chegar ao
Brasil, tendo sido confirmado, no dia 26 de fevereiro de 2020, o primeiro caso da
covid-19 em território nacional (ALVES, 2020). No dia 11 de março de 2020, a
Organização Mundial da Saúde declarou como pandemia a situação de calamidade
pública internacional decorrente do novo coronavírus (MOREIRA; PINHEIRO, 2020).

Ainda no primeiro trimestre de 2020, no dia 17 de março, o Ministério da Saúde do


Brasil confirmou a primeira morte por coronavírus no país e, logo em seguida, no dia
20 de março, foi decretado estado de calamidade pública em todo território nacional
(BRASIL, 2020). A partir daí, para além da implementação das normas sanitárias a
serem seguidas a fim de evitar a proliferação do vírus, também foi definido o rol de
atividades essenciais, que não seriam suspensas durante o período de calamidade
citado, no qual o trabalho dos entregadores por aplicativo pôde ser contemplado através
dos incisos XII e XXII do Decreto nº 10.282, de 20 de março de 2020. Em adição às

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Entregadores por aplicativo e a Covid-19: Uma entrega destinada ao Poder Legislativo

medidas citadas, o Governo do Distrito Federal também determinou, a partir do dia 18


de março de 2020, o fechamento de shoppings, parques, boates, casas noturnas, feiras,
clubes recreativos e zoológicos, restringindo a circulação de pessoas nesses espaços.

Em pesquisa realizada em Brasília, organizada pela Central Única dos Trabalhadores,


com os entregadores por aplicativo, foi relatado que após a instauração do cenário de
pandemia no país somada à deterioração da economia nacional e seus reflexos no
aumento do desemprego e da informalidade, houve um aumento do contingente de
trabalhadores cadastrados nessas plataformas digitais de entrega (CUT, 2021). Além
do aumento do número de trabalhadores via tais plataformas digitais, a startup
colombiana Rappi calculou um aumento de aproximadamente 30% no número de
pedidos em toda a América Latina, demonstrando, assim, um aumento significativo
da demanda no continente como reflexo das normas implementadas que restringiram
a circulação de pessoas e funcionamento dos comércios (REUTERS, 2020). No
Distrito Federal, foi constatado ainda um aumento da jornada de trabalho
acompanhada de uma queda relativa nos rendimentos dos entregadores, em relação ao
período anterior à pandemia. Essa mesma relação pôde ser observada em outros
estados brasileiros através da pesquisa realizada pela Rede de Estudos e
Monitoramento da Reforma Trabalhista (REMIR), em 2020, que entrevistou 298
entregadores em 29 cidades do Brasil (ABÍLIO, 2020).

Além dos riscos intrínsecos ao exercício da profissão, tais como os acidentes de


trânsito, a violência urbana, desgaste físico, entre outros, adiciona-se à categoria a
exposição diária ao coronavírus. Além dos riscos apresentados, vale destacar as
condições de trabalho precárias sob as quais os entregadores já estavam submetidos e
que pioraram no decorrer da pandemia. Entre elas, salienta-se a forma de
assalariamento dos motoristas, baseado no pagamento por peça ou tarefa e o
desprovimento de qualquer seguro ou garantia mínima (AMORIM; MODA, 2020).

Diante desse cenário, ocorreram de maneira inédita, no dia 1º de julho de 2020, as


mobilizações coletivas desses trabalhadores por todo país, sendo tais paralisações
denominadas por eles mesmos como “Breque dos Apps”. Em seguida, no dia 25 de
julho de 2020 foram realizadas novas manifestações. Estes movimentos tiveram
como principais demandas o aumento dos valores mínimos por entrega, fim de
bloqueios indevidos, entrega de equipamentos de proteção individual (EPIs),
concessão de seguro contra roubo e seguro de vida, criação de pontos de apoio e
garantia de uma renda mínima, por exemplo.

Tendo em vista as manifestações ocorridas, foi possível observar algumas


repercussões políticas nas principais casas legislativas localizadas no Distrito Federal:

Laborare. Ano VI, Número 10, Jan-Jun/2023, pp. 164-177. ISSN 2595-847X. https://revistalaborare.org/
DOI: https://doi.org/10.33637/2595-847x.2023-188
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Aline Gil Pereira Soares

Câmara dos Deputados, Senado Federal e Câmara Legislativa do Distrito Federal em


decorrência do cenário de calamidade pública, bem como das paralisações.

3. METODOLOGIA

Durante o período compreendido entre 18 de março de 2020 e 13 de agosto de 2021,


foi realizada uma pesquisa documental na Câmara dos Deputados, no Senado Federal
e na Câmara Legislativa do Distrito Federal. O monitoramento consistiu em
acompanhar e compilar em uma planilha Excel todas as proposições apresentadas
nestas casas legislativas a respeito dos entregadores por aplicativo no período citado.

A planilha de monitoramento utilizada no decorrer da pesquisa foi dividida em oito


colunas: data de apresentação; casa legislativa de origem; identificação; autor;
partido; ementa; tramitação e temática. Para a última coluna citada, foram
estabelecidos nove eixos temáticos:

1. Trabalhista - apresenta a implementação de direitos trabalhistas básicos, tais


como seguro de vida, afastamento remunerado e previdência;

2. Regulação - apresenta um marco regulatório para o setor e/ou alteração na


Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT);

3. Pontos de apoio - criação de espaços contendo banheiro, espaço para refeição,


internet e ponto de recarga de celular;

4. Tributação - concede isenção de impostos sobre a aquisição de veículos


destinados ao trabalho por plataforma;

5. Dados - dispõe sobre o gerenciamento e fornecimento dos dados dos entregadores;

6. Desligamento - institui regras para o desligamento de trabalhadores vinculados às


plataformas;

7. Tarifa - dispõe sobre o percentual retido pelas empresas;

8. Saúde - inclusão dos entregadores entre os grupos prioritários na vacinação contra a gripe;

9. Covid-19 - contempla propostas de direitos, garantias, distribuição de EPI’s, renda


mínima, pensão especial, entre outras.

Laborare. Ano VI, Número 10, Jan-Jun/2023, pp. 164-177. ISSN 2595-847X. https://revistalaborare.org/
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Entregadores por aplicativo e a Covid-19: Uma entrega destinada ao Poder Legislativo

No Congresso Nacional, foram monitorados um total de 61 projetos de lei. Destes,


88,5% são de origem da Câmara dos Deputados e 11,5% de origem do Senado Federal.
Já na Câmara Legislativa do Distrito Federal, foram monitoradas seis proposições,
seguindo as mesmas configurações da planilha utilizada pelo Poder Legislativo federal.

4. REPERCUSSÃO DO BREQUE DOS APPS NO PODER LEGISLATIVO

A começar pela análise da pesquisa documental na Câmara dos Deputados e no


Senado Federal, observa-se no gráfico abaixo que os temas de maior protagonismo
foram a situação dos entregadores por aplicativo durante a pandemia corrente da
Covid-19, a necessidade de uma regulação adequada para o exercício da profissão e a
implementação de direitos trabalhistas básicos para a categoria.

Vale destacar que dos 61 projetos monitorados, cerca de 26% foram apresentados apenas
na semana do primeiro Breque dos Apps, realizado no dia 1º de julho de 2020. A partir
disso, é possível observar a repercussão da manifestação e da pressão popular sobre o
Congresso Nacional. Nota-se também, a partir dos temas de maior percentual, como
Covid-19, Trabalhista e Regulação, as tentativas de contemplar as reivindicações
apresentadas pelos entregadores no âmbito legislativo federal. Contudo, é importante se
atentar à íntegra do que está sendo apresentado para não cair em armadilhas que
aparentam, pela curta ementa mostrada, atender aos interesses do trabalhador. Nesse
sentido, três projetos merecem destaque: PL 3748/2020, PL 3754/2020 e PL 1665/2020.

Laborare. Ano VI, Número 10, Jan-Jun/2023, pp. 164-177. ISSN 2595-847X. https://revistalaborare.org/
DOI: https://doi.org/10.33637/2595-847x.2023-188
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Aline Gil Pereira Soares

Figura 1 - Eixos temáticos no Congresso Nacional

Fonte: Elaborado pela autora a partir do levantamento de novas proposições apresentadas na Câmara
dos Deputados e no Senado Federal no período compreendido entre março de 2020 e agosto de 2021.

De autoria da deputada Tabata Amaral (PDT/SP) e outro coautores, o PL 3748/2020


“Institui e dispõe sobre o regime de trabalho sob demanda”. Protocolado na agitação do
1º Breque dos Apps, o mesmo projeto de autoria da deputada foi apresentado, no
Senado Federal, pelo senador Alessandro Vieira (Cidadania/SE), tendo sido enumerado
como PL 3754/2020. Ao analisar o conteúdo das proposições, os projetos colocam a
relação que se constitui entre trabalhadores e empresas globais que administram os
aplicativos, estabelecendo uma modalidade que se encontra entre a CLT e o trabalho
autônomo (OTTATI, 2020). A ementa estipula um valor por hora, que não pode ser
inferior ao piso da categoria ou ao salário-mínimo, e incorpora à remuneração total um
pagamento proporcional de férias e décimo-terceiro. Além disso, aborda o fim dos
bloqueios arbitrários, seguro-desemprego e salário-maternidade.

Embora aparentemente contemplem as pautas dos entregadores, os projetos apresentam


algumas contradições que devem ser colocadas em evidência. A primeira delas diz
respeito ao texto. Tanto a matéria apresentada na Câmara dos Deputados, quanto o que
foi apresentado no Senado Federal possuem exatamente o mesmo texto, o que leva o
leitor a questionar quem de fato foi autor primário da proposição ou quem redigiu o
projeto e enviou para os gabinetes mencionados. Outros riscos relativos à elaboração das

Laborare. Ano VI, Número 10, Jan-Jun/2023, pp. 164-177. ISSN 2595-847X. https://revistalaborare.org/
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Entregadores por aplicativo e a Covid-19: Uma entrega destinada ao Poder Legislativo

propostas citadas também foram pontuados por Ricardo Festi e Renata Dutra em artigo
publicado no jornal Correio Braziliense, tais como a construção de uma legislação
pautada na agenda neoliberal, que não se alinha com as demandas dos trabalhadores e a
institucionalização de situações precárias (DUTRA; FESTI, 2020). O PL, em suma,
mantém o sistema de uberização do trabalho, porém, fornecendo alguns direitos.

No tocante ao PL 1665/2020, de autoria do deputado Ivan Valente (PSOL/SP), que


“dispõe sobre os direitos dos entregadores que prestam serviços a aplicativos de
entrega durante o estado de calamidade pública decorrente da pandemia do
coronavírus (Covid-19)” é interessante analisar dois pontos: o teor da matéria e o
processo de tramitação. Na íntegra, o texto propõe que as empresas contratem seguro
contra acidentes e por doença contagiosa aos entregadores, bem como afastamento
remunerado em caso de contaminação. Além disso, as plataformas deverão
providenciar aos seus entregadores EPIs, pontos de apoio, entre outros, prevendo,
inclusive, multa às empresas que descumprirem com a lei. O projeto tramitou em
regime de urgência e foi um dos únicos, dentro dos projetos apresentados na temática
do Covid-19, a ser transformado em lei.

A matéria foi apresentada em abril de 2020 e teve sua urgência aprovada em agosto
do mesmo ano. No dia 22 de dezembro, foi realizado acordo entre o PSOL e o
presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia (DEM/RJ), durante a última sessão
deliberativa do ano de 2020, para aprovar o texto-base deste PL e deixar os destaques
em 2021. Assim, a matéria entrou como extra pauta na sessão plenária, mas após
mobilização entre os partidos do centrão, o governo e o Partido Novo, a deliberação
da matéria foi obstruída. O projeto ainda entrou em pauta de Plenário três outras
vezes em 2021, durante o período da realização da pesquisa, em agosto e em
setembro, contudo, não foi apreciado.

Em janeiro de 2022 o projeto foi sancionado pelo Poder Executivo, com dois vetos,
resultando na publicação da Lei 14.297/2022. O primeiro veto se refere ao
fornecimento de alimentação aos entregadores pelas plataformas e o segundo diz
respeito ao contato físico na entrega. Isto é, por instrução do Ministério da Economia
o primeiro veto foi realizado por entender que as plataformas digitais de entrega
funcionam à base de programas que permitem dedução do lucro tributável das
empresas. Nesse sentido, ao providenciar alimentação para seus colaboradores, ficaria
caracterizada renúncia de receita, sem que haja estimativa e compensação do impacto
financeiro, de modo a contrariar a Lei de Responsabilidade Fiscal e a Lei de
Diretrizes Orçamentárias (RAMOS, 2022).

Laborare. Ano VI, Número 10, Jan-Jun/2023, pp. 164-177. ISSN 2595-847X. https://revistalaborare.org/
DOI: https://doi.org/10.33637/2595-847x.2023-188
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Aline Gil Pereira Soares

Já o segundo veto foi instruído a partir de manifestação do Ministério do Trabalho,


que considera que a responsabilidade de prevenir o contato físico entre o entregador e
o cliente foge do controle das plataformas e, portanto, não podem ser
responsabilizadas (RAMOS, 2022). Nesse sentido, caberia às empresas fornecer
orientações de prevenção do contágio aos entregadores, disponibilizar equipamentos
de proteção e oferecer a possibilidade de pagamento via internet, o que a lei
sancionada já prevê (RAMOS, 2022).

Sobretudo, nota-se que projeto, entre outros da categoria “Covid-19”, por possuir
caráter emergencial, possuem um prazo de validade para as garantias e direitos
previstos bem delimitados: o fim do período de calamidade pública, conforme
decretado por meio da Portaria GM/MS nº 913 de 22 de abril de 2022. Nesse sentido,
embora o tema “Regulação” também tenha sido amplamente discutido para mudanças a
longo prazo, não chegou a representar um volume tão expressivo de matérias
direcionadas à Covid-19. Isto leva a refletir sobre o caráter populista que determinadas
políticas assumiram durante o cenário de calamidade pública em detrimento aos
debates profundos necessários a uma regulação que proponha soluções a longo prazo.

No âmbito distrital, foram monitorados, na Câmara Legislativa do Distrito Federal,


seis proposições, seguindo as mesmas configurações da planilha utilizada pelo Poder
Legislativo federal.

Figura 2 - Eixos temáticos na Câmara Legislativa do Distrito Federal

Fonte: Elaborado pela autora a partir do levantamento de novas proposições apresentadas na Câmara
Legislativa do Distrital Federal no período compreendido entre março de 2020 e agosto de 2021.

Nota-se que os três principais eixos temáticos apontados no gráfico do Congresso


Nacional também se destacam no âmbito distrital, somando-se a esses o tema dos pontos

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Entregadores por aplicativo e a Covid-19: Uma entrega destinada ao Poder Legislativo

de apoio. Embora em menor quantidade, o debate na Câmara Legislativa do Distrito


Federal se torna bastante proveitoso, haja vista o andamento mais significativo das
tramitações, bem como a forte presença de um stakeholder em favor dos interesses dos
entregadores, o deputado Fábio Félix (PSOL), autor de metade dos projetos monitorados.

Entre eles, vale destacar o PL 937/2020 1, de autoria do deputado Fábio Félix, único
projeto de interesse sancionado no período do monitoramento. O projeto prevê a
criação de pontos de apoio no Distrito Federal contendo banheiros, acesso à internet,
espaço para descanso e para refeições, entre outros. A matéria foi transformada na Lei
n° 6.677/2020, porém, teve o artigo 5º vetado, que dispunha sobre as dotações
orçamentárias. Atualmente a criação dos pontos de apoio ainda não foi de fato
implementada e enfrenta longos debates na Secretaria de Transporte e Mobilidade do
Distrito Federal (SEMOB-DF), tendo sido inaugurado, oficialmente, apenas um ponto
em 2022 no Distrito Federal, pela própria Central Única dos Trabalhadores (CUT).
Sobretudo, vale ressaltar que o projeto além de sair em defesa dos entregadores por
aplicativo também foi construído em conjunto com a categoria, conforme mencionado
nas seguintes entrevistas realizadas pelo professor Ricardo Festi e participantes do
Grupo Pesquisa Mundo do Trabalho e Teoria Social (GPMTTS- UnB).

Na verdade, o projeto foi construído muito com a orientação deles. Eles


falaram que o principal problema era o dos pontos de apoio e depois desse
brainstorming vimos que a gente precisava pegar algo que fosse viável
para regulamentar em nível distrital. Era basicamente isso porque a gente
sabia que as outras regulamentações elas podiam cair em vista de
iniciativa. (Fábio Félix, deputado distrital pelo PSOL, 2020).

Hoje, a AMAE-DF, ela não é PSOL, nós não abraçamos o PSOL em si


como partido, mas nós abraçamos o deputado Fábio Félix, como pessoa
física mesmo. Ele contribuiu, ele apresentou projeto, ele lutou pelo projeto,
a AMAE-DF deu o reconhecimento dessa luta pra ele, porque foi mais que
merecido, o cara realmente é excelente, e a AMAE-DF leva o nome dele
com muito orgulho porque nós vemos nele um bom profissional no que ele
faz, mas nós não abraçamos o partido político em si. (Abel Santos, liderança
da Organização Associativa de Profissionais por Plataforma Digital, 2020)

Ainda no tocante a construção do projeto dos pontos de apoio, quando questionado


sobre os desdobramentos do Breque dos Apps na Câmara Legislativa do Distrito
Federal, o deputado do PSOL relatou a seguinte análise:

1 O projeto foi apresentado em período anterior ao monitoramento aqui delimitado, porém, devido à sua
repercussão e sua relevância, foi acrescentado à planilha e acompanhado nos meses subsequentes entre março
de 2020 e agosto de 2021.

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Aline Gil Pereira Soares

Olha, primeiro a [ruído] Câmara [ruído] deputado, o povo brinca que o


deputado e feijão é só panela de pressão, só pressão para poder dar uma
movimentada, sabe. Então, querendo ou não, as mobilizações
movimentam muito eles. Segundo, que é uma temática muito
territorializada. Então, como aqui o DF tem um perfil meio municipal, os
deputados são meio que vereadores e são distribuídos em distritos e
distritos não formais. Então deputado de Ceilândia, deputado do Núcleo
Bandeirante, deputado de Planaltina, todo mundo conhece algum
entregador. E os entregadores não tinham boas histórias para contar.
Então a base social desses deputados contava as histórias. Então quando
a gente chegava no Plenário ou quando chegávamos na articulação
individual contando as histórias, eles já sabiam das histórias e eles ‘não,
lá na minha cidade, tem um cara que tá vivendo isso’, algum parente,
algum familiar porque é muito enraizado nos territórios a questão dos
entregadores. E muita gente está, especialmente na pandemia, passou a
trabalhar como entregador. Todo mundo conhece alguém e as histórias
são todas negativas. Então isso ajudou muito na sensibilidade
parlamentar em relação ao tema. Existe hoje uma visão geral de que as
empresas são abusivas, mesmo para os parlamentares de direita. Para os
parlamentares que têm uma concepção de menos intervenção na política
na economia, existe uma visão que há abusos. E os pontos de apoio
parecia assim, gente estamos falando do mínimo razoável, não estamos
falando de nada, não estamos falando de impostos. Não estamos falando
de regulamentação, de transformar eles em celetistas. Estamos falando
de um lugar para carregarem o celular. Então, era um projeto que era
muito razoável. Então, só quem conseguiu ficar contra foi a deputada do
NOVO. O resto não conseguiu e até sensibilizou minimamente com a
pauta. (Fábio Félix, deputado distrital pelo PSOL, 2020)

Nota-se, portanto, que, a nível legislativo distrital, as pautas dos entregadores são
apresentadas com a forte presença de um stakeholder, que promove articulação e
construção das matérias em conjunto com porta-vozes da categoria. Observa-se,
ainda, na fala do deputado Fábio Félix em entrevista, uma sensibilidade maior devido
ao caráter local da temática, que tende a chegar nos parlamentares que os representam
através de relatos e até mesmo conversas íntimas dos próprios trabalhadores.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pandemia contribuiu para colocar em evidência a categoria dos trabalhadores por


aplicativo devido à sua essencialidade. No cenário de calamidade pública urge cada

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Entregadores por aplicativo e a Covid-19: Uma entrega destinada ao Poder Legislativo

vez mais a necessidade de garantir o mínimo de direitos a uma gama de trabalhadores


desprovidos de assistência e regulação específica da profissão.

A partir da pesquisa realizada, vale ressaltar, é inegável a importância da elaboração


de projetos que protegessem a categoria dos entregadores por aplicativo no cenário de
alta exposição de riscos durante a pandemia, conforme ocorreu de maneira expressiva
nas casas legislativas monitoradas. Contudo, o contexto poderia ter provocado
debates mais profundos em relação à regulação e a medidas a longo prazo, visto que
as garantias mínimas previstas nos projetos apresentados contemplavam medidas
básicas de saúde e segurança, por exemplo, que poderiam não ter se restringido a um
período tão delimitado de tempo como a pandemia.

Compreende-se, ainda, que as manifestações coletivas e a paralisação de um serviço tão


essencial geraram pressão sobre os parlamentares para voltarem suas pautas aos
acontecimentos populares. Nesse sentido, conclui-se que a atividade legislativa requer
contínua pressão dos interessados sobre a pauta de interesses a serem defendidos. Isto
demanda que, para além das manifestações organizadas, também haja uma boa
interlocução dos entregadores com os parlamentares, para que a categoria possa vingar
seus interesses no poder público por meio de políticas que os protejam. A Câmara
Legislativa do Distrito Federal mostrou-se um exemplo positivo na construção conjunta
de um projeto que de fato contemplasse o pleito da categoria e avançasse na tramitação.

REFERÊNCIAS

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KALIL, R. and MACHADO, S. (2020) Condições de trabalho de entregadores via
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Desenvolvimento Humano. Vol 3, pp. 1-21; doi: 10.33239/rjtdh.v.74
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Minas, 27 fev. 2020. Disponível em:
<https://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2020/02/27/interna_nacional,1124795/tudo-sobre-
o-coronavirus-covid-19-da-origem-a-chegada-ao-brasil.shtml>. Acesso em: 19 out. 2021.
AMORIM, H.; MODA, F. B. (2020) Trabalho por aplicativo: gerenciamento
algorítmico e condições de trabalho dos motoristas da Uber. Revista Fronteiras -
estudos midiáticos, vol 22, no. 1; doi: 10.4013/fem.2020.221.06
BRASIL. Decreto Legislativo Nº 6, de 2020. Reconhece, para os fins do art. 65 da
Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, a ocorrência do estado de
calamidade pública, nos termos da solicitação do Presidente da República

Laborare. Ano VI, Número 10, Jan-Jun/2023, pp. 164-177. ISSN 2595-847X. https://revistalaborare.org/
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Aline Gil Pereira Soares

encaminhada por meio da Mensagem nº 93, de 18 de março de 2020. Diário Oficial


da União, Brasília, DF. Ed. 55-C. 20 mar 2020. Seção 1, p. 1.
BRASIL. Decreto Nº 10.282, de 20 de março de 2020. Regulamenta a Lei nº 13.979,
de 6 de fevereiro de 2020, para definir os serviços públicos e as atividades essenciais.
Diário Oficial da União, Brasília, DF. Ed. 55-H. 21 mar 2020. Seção 1, p. 1.
BRASIL. Portaria GM/MS Nº 913, DE 22 DE ABRIL DE 2022. Declara o
encerramento da Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN) em
decorrência da infecção humana pelo novo coronavírus (2019-nCoV) e revoga a
Portaria GM/MS nº 188, de 3 de fevereiro de 2020. Diário Oficial da União, Brasília,
DF. Ed. 75-E. 22 abr 2022. Seção 1 - Extra E - p. 1
BRASIL. Projeto de Lei nº 1.665, de 7 de abril de 2020. Dispõe sobre os direitos
dos entregadores que prestam serviços a aplicativos de entrega durante o estado de
calamidade pública decorrente da pandemia do coronavírus (Covid-19). Brasília:
Câmara dos Deputados, 2020. Disponível em:
<https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?
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idProposicao=2257468>. Acesso em: 10 jul. 2020.
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DOI: https://doi.org/10.33637/2595-847x.2023-188
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Entregadores por aplicativo e a Covid-19: Uma entrega destinada ao Poder Legislativo

Disponível em: <https://legislacao.cl.df.gov.br/Legislacao/buscarLeiPeloLegis-31565!


buscarNormaJuridicaPeloLegis.action;jsessionid=549C13F3ECC1C49297AE5E055E928D66
DUTRA, R; FESTI, R. O segundo breque dos Apps. Correio Braziliense, 24 jul.
2020. Disponível em:
<https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/opiniao/2020/07/24/
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Digital: plataformas digitais [11 de novembro de 2020]. Entrevistadores: Ricardo
Festi, Aline Gil e Pedro Burity. Brasília, DF, 2020. Gravada digitalmente, 47’11’’
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Acesso em: 19 jul 2022.
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Exame, 17 mar. 2020. Disponível em: <https://exame.com/negocios/crise-do-
coronavirus-impulsiona-aplicativos-de-entregas-no-brasil/> . Acesso em: 19 out. 2021.
SANTOS, Abel. Entrevista concedida ao projeto: O mundo do trabalho na Era
Digital: plataformas digitais [28 de novembro de 2020]. Entrevistador: Ricardo
Festi. Brasília, DF, 2020. Gravada digitalmente, 1h18’50”.

Data de submissão: 30/09/2022


Data de aprovação: 07/12/2022

Este trabalho está licenciado sob uma licença Creative Commons Attribution-
NonCommercial-ShareAlike 4.0 International License.

Laborare. Ano VI, Número 10, Jan-Jun/2023, pp. 164-177. ISSN 2595-847X. https://revistalaborare.org/
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O TRABALHO EM PLATAFORMAS DIGITAIS NO BRASIL

Quilômetros da fome: As debilidades da uberização do


trabalho e a subordinação do novo sujeito neoliberal
Kilometers of hunger: The weaknesses of the uberization of work and the
subordination of the new neoliberal subject

Thayuany de Jesus Rodrigues


Graduada em Ciência Sociais - Licenciatura, Universidade de Brasília.
https://orcid.org/0000-0001-9323-6466

RESUMO: O presente artigo busca analisar as debilidades da uberização do trabalho,


incluindo a discriminação, escassez de segurança e as dificuldades alimentícias de
Motoboys/girls e Bike boys/ girls. Apresenta resultados de pesquisa empírica a partir
de experiência dos próprios entregadores por aplicativo, no Distrito Federal. Para
tanto, os resultados levantados revelam as contradições da flexibilização, da
colaboração e da autonomia presente nas retóricas de empresas por plataformas
digitais. A gestão, organização e o controle, fazem parte de um combo de políticas
neoliberais, baseado na mão de obra de “colaboradores”. Dentro deste combo está a
discriminação, a insegurança e os riscos à saúde. Por fim, considera-se a necessidade
de políticas que introduzem a segurança e os direitos dos entregadores, nos
parâmetros das empresas por aplicativo.

Palavras-chaves: neoliberalismo, entregadores por aplicativo, discriminação,


segurança, alimentação.

ABSTRACT: This article analyzes the weaknesses of the uberization of work,


including discrimination, lack of security and food difficulties of Motoboys/girls e
Bike boys/ girls. It presents results of empirical research based on the experience of
app delivery drivers themselves, in the Federal District. To this end, the results raised
show the contradictions of flexibility, collaboration, and autonomy present in the
rhetoric of companies through digital platforms. Management, organization, and
control are part of a combo of neoliberal policies, based on the labor of
“collaborators”. This combo covers discrimination, insecurity, and health risks.

Laborare. Ano VI, Número 10, Jan-Jun/2023, pp. 178-190. ISSN 2595-847X. https://revistalaborare.org/
DOI: https://doi.org/10.33637/2595-847x.2023-187
178
Quilômetros da fome: As debilidades da uberização do trabalho e a subordinação do novo sujeito
neoliberal

Finally, this article considers the need for policies that introduce security and rights
for the couriers in the parameters of the app companies.

Keywords: neoliberalism, application workers, discrimination, security, alimentation.

1. INTRODUÇÃO

A idealização de “trabalhar para si mesmo”, de ter conquistas pessoais e ascender


financeiramente, reforçam as dores em prol da conquista. A dor do trabalho árduo,
das péssimas condições trabalhistas, das cargas horárias abusivas, da especialização e
da quantificação no mundo do trabalho (DARDOT; LAVAL, 2016). A nova
estratégia de ascensão do poder neoliberal apresenta outra maneira de gestão: o
desejo pessoal do slogan “chefe de si mesmo”. A gestão, a organização, a
intensificação capitalista e as relações objetivas ganharam melodias complexas,
tocadas pelas empresas. Um dos mais nítidos exemplos é a interdependência entre o
sujeito e o desenvolvimento de softwares, sendo este último uma das alternativas de
domínio das empresas sobre os primeiros. A atual forma de gerenciamento engloba
três aspectos: sujeito, emprego e aplicativos.

A nova forma de gerir, organizar e controlar o trabalho, é definida como uberização


(ABÍLIO, 2019). Sobre essa perspectiva, as instituições privadas utilizam-se dos
aplicativos para controlar e administrar seus “colaboradores”. Esse mecanismo
permitiu a ampliação de mão de obra sem o comprometimento de direitos contratuais.
Nesse contexto, o trabalhador não é chamado de empregado, por esse motivo enfrenta
sozinho os custos e riscos de sua função. Ao aderir aos serviços por aplicativos, os
entregadores, sem nenhum contrato formal de emprego com a empresa, distanciam-se
dos direitos regidos pela CLT (Abílio, 2019).

O primeiro eixo a ser abordado trata do perfil sociodemográfico e da insegurança


feminina no trabalho por aplicativos. Pode-se pensar no aspecto “assédio” como um
ativo de desempoderamento que, somado à falta de segurança, serve como
mecanismo para o afastamento de mulheres em trabalhos predominantemente
masculinos, como o trabalho por aplicativos (Crenshaw, 2002).

O segundo eixo refere-se às discriminações, as ofensas e os riscos no trabalho. Neste aspecto,


duas vias de saúde são comprometidas a física e a emocional, levando em consideração os
riscos durante a realização de entregas, formas de discriminação e a não responsabilização
das empresas. Por último, discorre-se sobre a alimentação dos entregadores e os impactos na
manutenção do trabalho, tendo em vista o afastamento das empresas por aplicativo.

Laborare. Ano VI, Número 10, Jan-Jun/2023, pp. 178-190. ISSN 2595-847X. https://revistalaborare.org/
DOI: https://doi.org/10.33637/2595-847x.2023-187
179
Thayuany de Jesus Rodrigues

A partir dessas frentes, este artigo busca situar as debilidades da organização de


trabalho uberizado e as contradições vivenciadas pelo novo sujeito neoliberal, ou
seja, os entregadores. Ademais, procura identificar os principais eixos de
precarização e o lucro sem responsabilidade usufruído pelas instituições.

2. METODOLOGIAS E RESULTADOS PRELIMINARES

A pesquisa de dados empíricos, neste estudo, se concentrou nas experiências vivenciadas


de 39 entregadores ativos no trabalho por plataforma. 1 O objetivo é esclarecer os
problemas que afetam a segurança, a alimentação e a saúde desses(as) entregadores(as) na
nova organização do trabalho. Os dados coletados partiram de entrevistas semiestruturadas,
buscando identificar dados qualitativos e quantitativos. Além do levantamento de dados,
foi realizado um estudo de literatura acadêmica sobre a uberização, a informalidade e o
trabalho por aplicativo e suas consequências para o sujeito neoliberal.

3. A UBERIZAÇÃO

O desenvolvimento e o modelo administrativo da pioneira uber, despertou não apenas


a transformação, mas uma via estratégica do uso de ferramentas digitais, em
sociedades dependentes do uso da internet e de computadores (Franco; Ferraz, 2019).
A junção entre o uso das tecnologias e o transporte urbano ganhou destaque e forma
em outros segmentos, permitindo um boom da uberização. Diante das transformações
no mundo do trabalho e as crises permanentes do desemprego, as narrativas
neoliberais de flexibilização e redução de direitos pareceram ser suficientes para
resolver os problemas sociais atrelados ao trabalho. Entretanto, o “velho” apenas
tomou a aparência de “novo”. “Há fartas evidências, ao longo dos últimos quarenta
anos, de que essas receitas das ‘novidades’ não entregam o prometido e, mais do que
isso, buscam e efetivamente promovem o ‘velho’.” (Filgueiras, 2021).

O empreendimento “inovador” da Uber, serviu como atrativo às empresas


tradicionais que eram envolvidas pelo cumprimento das leis trabalhistas. Esse
movimento, rodeado pelas propostas neoliberais de soluções para crise do
desemprego, ressuscitou princípios que não são novos, mas que são vistos desde o
século XIX, como, por exemplo, as ganhadoras e os ganhadores no Brasil nos
diferentes setores2. A organização dos serviços das ganhadoras e dos ganhadores 3
1 Os dados coletados foram obtidos por pesquisa coordenada por Dr. Ricardo Festi com equipe de
pesquisadores para OIT: Aline Gil Pereira Soares, Bruna Vasconcelos de Carvalho, Diego Rodrigues de Loiola,
Kethury Magalhães dos Santos, Nicolas Eyck Van Dyck Araújo de Oliveira, Raphael Santos Lapa, Thayuany de
Jesus Rodrigues e Vinícius Torres Araújo Dourado.
2 Ver João José Reis, Ganhadores: a greve negra de 1857 na Bahia (São Paulo, Companhia de Letras, 2019).
3 “Em 1857, grande parte dos negros de Salvador, escravizados ou não, trabalhava nas ruas. Eram responsáveis,
sobretudo, pela circulação de objetos e pessoas através da cidade. Carregavam de tudo: pacotes grandes e

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neoliberal

propiciava ao patrão o lucro que seu escravo recebesse nas diferentes categorias
como: lavadeira, carregadores, faxineiras. Em todos esses serviços, os patrões não
pagavam os instrumentos que eram utilizados e tampouco se importavam que se
tirasse esse custo dos 30% que os ganhadores recebiam (Reis, 2019). Apesar de
contextos diferentes, essa analogia faz transparecer que não há nada de novo, a não
ser um novo nome, a Uberização. Os entregadores por aplicativo continuam sendo
responsáveis pela subsistência do seu trabalho, além de sua vida, enquanto os donos
das instituições recebem o maior lucro.

Segundo Antonio Casilli: “A uberização do trabalho é pautada por um novo design de


organização, o qual é executado através de aplicativos conectados na internet. Esta
organização do trabalho é elaborada por um algoritmo” (Casilli, 2018 apud Areosa,
2021, p. 52). Essa nova configuração não está livre de controle, as narrativas
neoliberais de “empreendedor de si”, serviram de gás para expandir uma ilusão de
liberdade e flexibilidade. Assim, a uberização não está livre de controle, mas se trata
de uma “nova forma de gerir, organizar e controlar o trabalho” (Abílio, 2019).

O sonho de autorrealização é impulsionado pelas promessas de solução para o


desemprego e para a autonomia do entregador, promessas que não foram cumpridas,
mas ainda são adicionadas aos discursos de instituições e trabalhadores, e, por esse
motivo, continuam sendo reproduzidas, como enfatiza Vitor Filgueiras (2021, p. 18):

Para isso, as narrativas exageram, distorcem ou mesmo invertem a


natureza ou as consequências das transformações abordadas. Mesmo
padecendo dessas inconsistências, elas são assimiladas por parcela
importante de trabalhadores e instituições, ajudando a criar uma espécie de
profecia autorrealizável na medida em que são reproduzidas.

É importante deixar claro que, de fato, aconteceram novidades, afinal de contas o


mundo do trabalho passou por transformações, mas é necessário entender que muito
dessas narrativas são postas para a maximização de lucros das empresas que, diante
da flexibilização dos contratos de trabalho, fazem o movimento de transferência de
encargos aos trabalhadores. “As empresas buscam garantir seus altos lucros exigindo
e transferindo aos trabalhadores e trabalhadoras a pressão pela maximização do
tempo, pelas altas taxas de produtividade, pela redução dos custos” (Antunes, 2018).

pequenos, do envelope de carta a pesadas caixas de açúcar e barris de aguardente, tinas de água potável e
de gasto para abastecer as casas, tonéis de fezes a serem lançadas ao mar; e transportavam gente em saveiros,
alvarengas, canoas e cadeiras de arruar. Os negros também circulavam pelas ruas em demanda a seus
empregos como oficiais mecânicos (pedreiro, ferreiro, tanoeiro, sapateiro, alfaiate etc.)”. Ibidem, p. 19.

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O caminho construído pela uberização tornou-se uma estrada difícil de retornar. A


tendência à flexibilização de contratos traz uma reflexão de como será o futuro: “Tudo
indica que o futuro do trabalho será, cada vez mais, caracterizado pela flexibilização”
(Areosa, 2021). Dentro do contexto da uberização, a ideia de contrato de emprego se
afasta, ou seja, os trabalhadores uberizados aderiram a esse tipo de trabalho informal.
Nessa condição, ocorre a transferência da responsabilidade das empresas para os
trabalhadores e, como consequência, riscos, custos, falta de garantias e direitos (Abílio,
2019). Evidentemente, que, nesse contexto, “aderir” não se trata apenas de uma escolha,
mas da sobrevivência desses entregadores. Por isso, este artigo busca apresentar reflexões
sobre o trabalho uberizado e as experiências dos próprios trabalhadores.

3.1. PERFIL SOCIODEMOGRÁFICO

Para compreender o perfil dos entrevistados, os dados coletados em relação ao gênero


mostram que 92% dos respondentes se definem como homens e 8% como mulheres.
Sobre o estado civil, 51% são solteiros(as), 39% casados(as)/ união estável e 10%
separados(as)/ divorciados(as). A partir dos dados inicialmente apresentados, é
notória a pouca adesão de mulheres ao exercício de entregas por aplicativos, no
Distrito Federal. Esse fato pode ocorrer por diversos motivos, mas se podem destacar
dois eixos em específico: a falta de segurança e o assédio. Ao tratar das
oportunidades que os aplicativos oferecem para homens e mulheres, não houve
comprovação de discriminação nítida por parte dos aplicativos, mas, em
contraposição, constatou-se a existência de assédio por parte dos entregadores
homens. Levando em consideração o número elevado de homens e o número baixo de
mulheres, a ausência de respeito no exercício da função, pode acarretar, a elas, o
abandono do trabalho. Ao perguntar à E414 sobre a existência de oportunidades iguais
para homens e mulheres nos aplicativos, em sua narrativa pôde-se verificar o assédio
dos entregadores masculinos:

O que acontece... O app dá oportunidade igual, não tem uma


discriminação se você é homem ou mulher. A discriminação é entre os
entregadores, pelo fato de não ter muita mulher, tipo... Aqui eu conheço o
que... três na minha região aqui no Guará. Então, é muito complicado.
Inclusive, ontem, eu tava fazendo uma retirada e um entregador falou
assim: “Ah, minha mulher parou de fazer entrega”. Aí eu perguntei: “Por
que?”. “Por que os homens não respeitam”. Os homens entregadores que
eu tô falando (E41, mulher, parda, 31 anos).

4 O grupo Mundo do Trabalho e Teoria Social - (UnB) optou por identificar os entrevistados com a letra E,
seguida de numeração.

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A narrativa de E41 evidencia uma diferença de oportunidade, mesmo não sendo


direcionada às empresas. Podemos pensar no aspecto assédio como um ativo de
desempoderamento que, somado à falta de segurança, serve como mecanismo para o
afastamento de mulheres em trabalhos predominantemente masculinos, como o
trabalho por aplicativos. Levando em consideração o medo de assaltos e assédios,
E41 continua sua narrativa:

É, afasta. Inclusive, ontem, eu fui fazer uma entrega numa mansão, aí a


mulher foi receber o pedido, aí ela falou: “nossa, eu nunca tinha visto uma
mulher fazendo entrega ou então vindo aqui porque é muito longe e
afastado. Nossa eu acho tão legal, queria ver mais mulheres”. Geralmente as
mulheres não vão por medo mesmo, e ainda tem os assaltos. Pode roubar a
moto, tudo isso, né? Não a plataforma, mas as pessoas mesmo... Assalto,
assédio, o assédio é constante. São poucas mulheres, acho que não tem 10
mulheres fazendo entrega aqui em Brasília. (E41, mulher, parda, 31 anos).

Ao questionar entregadores masculinos, sobre a existência de oportunidades iguais para


homens e mulheres nos aplicativos, alguns relataram diferenças na aprovação da plataforma
em relação ao gênero masculino e feminino. Os relatos, retratam o aspecto de desigualdade:

Iguais eu acredito que não, né! São muitas, de gênero, né, é uma profissão
predominantemente masculina, né? Você vê que chega em um lugar assim,
cara, são 15 motoboys em média para 1 mulher que é entregadora também.
15 entregadores para uma 1 entregadora, vamos colocar assim, mais ou
menos (E10, homem, negro, 24 anos).

A experiência de mulheres com o aplicativo, revelam que as aprovações de cadastros


femininos são lentas, em comparação com a aprovação de cadastros de homens,
mesmo que o aplicativo não faça “aparentemente” uma seleção direta:

Olha... eu não acredito nisso não. Eles falam que tem, mas eu não acredito
não, porque você tem pouca mulher trabalhando em aplicativo. Eu já vi, e
a gente conversa muito e já conversei com mulheres que trabalham em
aplicativo, e a diferença de um homem que fez um cadastro no aplicativo e
de uma mulher que fez o cadastro no aplicativo pra aprovação, pro homem
foi bem mais rápido do que a aprovação pra mulher. Eu não vejo essa
igualdade não (E14, homem, pardo, 34 anos).

As narrativas de E10 e de E14, indicam relações de segregamento de entregadoras por


parte dos aplicativos, ou seja, os 8% indicados anteriormente retratam uma realidade de

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exclusão direta e não direta, objetificação da mulher, assédio, medo e riscos de assalto,
que, consequentemente, afastam as mulheres do trabalho por aplicativo.

Ainda sobre o perfil dos(as) entregadores(as), acerca da religião: 33% católica, 28%
evangélica, 26% sem religião, 5% outra, 5% é agnóstico/ ateu e 3% espírita. Sobre raça
e cor: 52% parda, 24% branca, 16% negra, 5% amarela e 3% indígena. Ao analisar
esses últimos dados, 68% dos entrevistados se definem como pardos e negros, sendo o
maior número de entregadores e, sobre a religião, a maioria se considera católico.

3.2. DISCRIMINAÇÃO E OFENSAS

Partindo das próprias experiências de motociclistas e ciclistas entregadores, 81%


constataram ter sofrido discriminação e/ou ofensa, durante o trabalho de entregas. Na
bag dos entregadores, duas violências são carregadas, a física e a emocional. Nas
duas condições, não há a existência de respaldo ou responsabilização das empresas,
aos chamados “colaboradores”:

A partir do momento que eles alegam que não somos entregadores, mas
sim colaboradores, a gente está ali para colaborar, para ser parceiros, mas
que parceria é essa que só eles ganham dinheiro? Que parceria é essa que a
gente não tem um banheiro para usar, não temos um lugar para carregar
nosso celular? E eles bloqueiam a gente, se a gente tiver com 15% do
celular eles não mandam mais entrega para a gente. Então porque que eles
bloqueiam a gente se eles não dão um suporte para a gente carregar o
celular? Não tem uma tenda com um espaço para recarregar o celular dele
(E27, mulher, amarela, 29 anos).

Para além dos dados apresentados, alguns relatos expressam de fato, as experiências
de discriminação e/ou ofensa aos motoboys/girls e Bike boys/ girls:

Já sofri pelo estabelecimento, também. Ofensa assim, eles já reclamaram que


o pedido demorou chegar, alguma coisa assim, ou então pra eu tomar cuidado
com o pedido, mas no tom de como se eu tivesse trabalhando pra eles. Pelos
entregadores também, já teve algum comentário machista, mas eu respondo
na mesma hora. Ou tipo, até pela minha moto. Teve um comentário maior
chato, porque a minha moto é bem grande e eu tenho 1, 50/1,55m. E a minha
moto é alta. Então, nem os motoboys nem os entregadores tem uma moto
igual a minha, sempre as motos deles são pequenas, são menores... CG (City
General) na verdade. Aí eles falam: “Ah, mas você é mulher e pequenininha,
por que você tem uma moto desse tamanho?”, aí eu falo: “Uai, porque eu
tenho dinheiro pra comprar (risos) (E41, mulher, parda, 31 anos).

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Os trabalhadores uberizados são colocados à margem, ou seja, a dignidade do seu


trabalho não é reconhecida de forma legal e social, por esse motivo, são
marginalizados nos ambientes que frequentam com tipos de abordagens ofensivas:

É, às vezes quando a gente vai fazer entrega em algum determinado lugar


eles pedem pra que a gente tire nossos itens da bolsa para que eles possam
olhar, entendeu? Eles barram a gente pra saber se tem alguma coisa de
ilícito, pede pra que a gente tire os itens da bolsa, já aconteceu comigo
também (E10, homem, negro, 24 anos).

As narrativas apresentadas evidenciam a marginalização por questões de gênero,


raça/cor e classe social, realizadas por clientes e estabelecimentos. A falta de
responsabilidades contratuais das empresas, permite a utilização da mão de obra de
motoboys/girls e Bike boys/ girls sem que ofereçam pontos de apoio, alimentação,
segurança e cuidados com a saúde emocional e física. Quando perguntados se
comunicaram ao aplicativo as discriminações/e ou ofensas sofridas, os relatos foram:

Não, porque a gente sempre é culpado. O culpado pode ser qualquer um,
pode ser o cara que traz a entrega pra gente lá de dentro do restaurante, o
cliente, pode ser o porteiro. Mas a culpa é sempre do entregador. O único
culpado é sempre o entregador. E as vias, os canais de e-mail pra você
relatar o que de fato aconteceu na entrega é limitada, e é um processo
burocrático. Então pra falar com suporte de aplicativo eu não tenho
paciência (E08, homem, negro, 35 anos).

A pouca interação dos aplicativos com os entregadores, caracteriza não apenas a


redução do diálogo, mas a redução de responsabilidade para as empresas, ou seja, o
aumento de riscos para o próprio entregador. Nesse contexto, como visto nas narrativas
anteriores, não há expectativa com o suporte disponibilizados pelas empresas, seja em
casos de discriminação ou em casos de acidente como será visto posteriormente.

3.3. RISCOS NO TRABALHO

No ofício de entrega por aplicativo, os principais instrumentos utilizados pelos


motociclistas e ciclistas são as motos e as bicicletas, com isso, os principais riscos são
relacionados ao trânsito e assaltos. Se tratando de acidentes, os(as) entregadores(as)
estão totalmente vulneráveis, não apenas pelo acidente em si, mas também pela
escassez de apoio das plataformas de entrega. Como relatado anteriormente, as
empresas não oferecem qualquer tipo de auxílio além da remuneração, seja no

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contexto de acidentes, assaltos, apoio psicológico ou jurídico. Quando questionados


sobre os riscos no trabalho, os relatos foram:

Cara, eu posso nunca mais ver a minha família quando eu vou trabalhar. Eu
posso nunca mais andar. Eu posso não ter mais a minha mente quando eu
vou trabalhar [...] Entre os entregadores não tem conflito. A gente é uma
família. Os perigos são mais com assalto e trânsito. Por exemplo, eu tenho o
meu pé direito fraturado, a mão fraturada, eu tenho um problema na cabeça,
no nervo do pescoço, que foi fruto de uma pancada. Tenho problema no
tórax. Eu já tive uns 10 acidentes (E52, homem, indígena, 41 anos).

Os trajetos dos entregadores para realizar as atividades uberizadas, compõem uma


série de riscos, a possibilidade de queda e de atropelamento são altas e, quando
ocorrem, podem ocasionar graves acidentes. Ademais, esses trabalhadores não serão
remunerados caso precisem se afastar para recuperação:

Sim, né, muitos (risos). Atropelamento, o risco de cair... Tá com dois


meses que eu caí aí fiquei uns dias... uns dias não, continuei trabalhando,
meu joelho infeccionou, aí eu tive que ir pro médico fazer uma drenagem.
Porque eu caí e achei que não era nada, mas aí infeccionou e eu tive que
fazer uma drenagem. Ficou cheio de pus o joelho e ficou saindo um monte
de líquido, eu tive que ficar tirando todo dia. Eu continuei trabalhando e o
joelho ficou ruim mesmo. Aí foi o tempo que eu saí de férias, tirei o mês
de férias, aí sarou. Tem um mês e pouco que eu voltei e já voltei sarada.
Eu fiquei foi 20 dias trabalhando com esse joelho, mas aí é o risco: cair. Se
você não quebrar nada você tem que continuar trabalhando, senão você
não ganha (E41, mulher, parda, 31 anos).

Além dos riscos com trânsito e assaltos, o atual contexto de crise sanitária (pandemia
do Coronavírus) trouxe novas problematizações as questões de saúde:

Eu acho que falta muito reconhecimento, né. Se para pensar, quem tá


dando a cara a bater nessa pandemia somos nós. Foi uma das categorias
que não parou nessa pandemia. A gente sai de casa correndo o risco de não
voltar mais, podendo pegar doença, acidente, ou algo do tipo. A gente
corre o risco de trazer doença para a nossa família quando a gente chega
em casa, mas ninguém reconhece isso (E27, mulher, amarela, 29 anos).

Os perigos na pandemia (para alguns entregadores), são traduzidos em alguns


aspectos, a subida aos prédios, onde muitos não tem elevador, as possibilidades de
violência verbal e física, além das chances de contrair o vírus:

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neoliberal

Eu acho um absurdo em plena a pandemia e agora voltando mais forte


com essas novas cepas do vírus, o entregador ter que subir no prédio para
fazer entrega. Quando ele deveria deixar na portaria. Além das violências
comuns do dia a dia, ele ainda é vulnerável as infecções que tem que subir
em elevador, tem que subir no prédio porque o cliente pede para entregar,
porque o cliente não desce. Nas quadras 400 da Asa Sul e da Asa Norte
não tem elevadores, você tem que subir três, quatro andares para fazer
entrega (E29, homem, branco, 44 anos).

Em caso de acidentes ou impossibilidade de efetuar entregas, os(as) motociclistas e


ciclistas entregadores(as) recebem uma espécie de bloqueio nos aplicativos, ou seja,
não recebem solicitações e consequentemente, nenhum tipo de remuneração. Diante
dos casos de contaminação pela Covid, a alternativa efetuada pelas empresas, foi o
fornecimento de remuneração de acordo com o lucro do mês anterior:

[com relação ao auxílio], eles pegam a base dos últimos trinta dias
trabalhados. Se nos últimos trinta dias eu tiver feito cinco mil, eu recebo
cinco mil. Então, a base deles é a dos últimos trinta dias. Aí, vamos dizer:
se eu trabalhei quinze dias e deu cinco mil, eles vão dividir aqueles quinze
dias por trinta, então, no caso, ao invés de cinco, vou receber só dois [mil]
e quinhentos. Então é uma média dos últimos trinta dias. Aí é todo um
processo, porque quando você contrai a doença, você reporta lá no
aplicativo; quando você reporta lá no aplicativo, automaticamente você já
é bloqueado, você não pode fazer entregas (E48, homem, branco, 23 anos).

3.4. QUILÔMETROS DA FOME

As precárias conjunturas laborais dos aplicativos: risco de acidentes, assaltos e


contaminações pela Covid, não estão encerradas apenas nesses aspectos. Levando em
consideração, a alimentação dos próprios entregadores(as) de delivery, as evidências
demonstram que esses(as) trabalhadores(as) não se alimentam de forma adequada,
seja pelos horários ou pelo próprio consumo. Os gastos com alimentação fora de casa,
subsidiados pelos próprios motoboys/girls e bike boys/girls, são calculados em média
R$ 250,00 reais mensais. Dentro dessa análise, pode-se evidenciar a contradição que
a sistematização uberizada produz: os entregadores de aplicativos, particularmente de
delivery, prestam serviço de entrega de alimentos, mas não conseguem ter uma
alimentação digna e/ou pausas adequadas durante o período de trabalho.

Cara, eu não cheguei a calcular, mas assim, ele chega a ser alto né? E a
gente tenta economizar o máximo, por exemplo: eu compro uma marmita no

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almoço e aí eu como a metade e deixo metade pra jantar, a outra metade da


marmita. E uma marmita hoje em dia, se você para pra pensar, não é menos
de 15 reais. Então, se for parar pra pensar, eu tenho um gasto de mais ou
menos 400 reais com alimentação fora de casa, e assim é o que eu gasto em
médio, porque às vezes eu deixo de comprar marmita para comprar um
biscoito, um refrigerante ou um salgado que, às vezes, sai um pouco mais
em conta do que a própria marmita. (E10, homem, negro, 24 anos).

Quando se retira uma pausa, ao menos de vinte minutos, existe um receio em “perder
entregas”. Assim, as alimentações são feitas da maneira que for possível, ou seja, de
forma “parcelada” nos períodos de espera dos pedidos:

Não, pois não compensa. 20 minutos apenas, você não faz nada. Se você tirar
pausa, você irá diminuir as suas entregas. Não é que eu não queira tirar
pausas, eu gostaria de almoçar tranquilo, sabe? Mas, se eu fizer isso, eu
receberei menos entregas. Aí eu prefiro comprar a minha marmita, botar no
baú e, quando vou pegar um pedido que demora para fazer, aí eu almoço. Ou
então, esperando pedido eu vou almoçando ali. Eu como a minha marmita o
dia todo, digamos assim, eu como por prestação: umas 10 gramas agora,
depois duas colheradas e assim vai.... (E52, homem, indígena, 41 anos).

Os custos com alimentação é a parte onde existe um maior movimento de tentativa de


economia, com isso, as marmitas podem ser facilmente substituídas por lanches mais
baratos. Quando existe a possibilidade de encontrar marmitas mais acessíveis, as
refeições são feitas de uma forma mais robusta:

Alimentação é coisa séria, viu? Porque é uma parte que eu tento


economizar mais assim, sabe? Eu sempre como uma besteirinha aqui e ali.
Isso que é o que me incomoda também, porque a gente trabalha justo
nesse horário. Tem algumas empresas que são legais que, se você chega
pra fazer um freelancer, antes de começar a trabalhar, você já come, já faz
seu almoço...já janta aí depois que você vai trabalhar. Já tem umas que não
oferece isso pra gente...eu procuro uns restaurantes assim que estão mais
em conta. Onde tiver uma marmita de R$10,00. Acho que eu gasto em
média uns R$ 300,00 (E8, homem).

Diante das narrativas citadas anteriormente, é possível compreender a dualidade do


termo “quilômetros da fome”. O primeiro sentido, está na própria função de entregador
de delivery enquanto um indivíduo que leva alimento a outro. A segunda interpretação,
está na fome que esses(as) entregadores(as) passam para saciar a fome de outrem. A
partir disso, se observa a grande contradição permitida pela uberização. Os altos custos

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com alimento causam o efeito de redução da qualidade de alimentação, ou seja, a


tendência por comidas mais rápidas, baratas, não saudáveis, ou mesmo o ato de não se
alimentar podem ser comuns no cotidiano dos trabalhadores uberizados.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

No Brasil, diversos trabalhadores vivem à margem do serviço formal, com baixa


remuneração e sem vínculo contratual de emprego. A crise do desemprego tem
obrigado grande parte dos indivíduos a abrir mão de direitos em prol da sobrevivência.
O empreendedorismo começa a ser utilizado como saída de emergência para homens e
mulheres sem oportunidades no trabalho formal, a partir disso, cria-se nas sociedades a
tendência à precarização e a informalidade (ANTUNES, 2018). A moldura do
empreendedorismo, sob a lógica da uberização do trabalho, assume no uso de
aplicativos uma condição de aderência, mas não significa a inexistência de uma relação
contratual, em outras palavras, a relação entre patrão e empregado se torna
“aparentemente” independente, diferente do modelo de contrato formal.

Frente as novas formas de gerir, organizar e controlar o trabalho, a subordinação se


alastra em uma só via, a via do entregador. Neste sentido, o novo sujeito neoliberal
passa a se deparar com uma nova forma de controle através das programações
algorítmicas. Dentro dessa lógica não há uma independência totalizante dos(as)
entregadores(as) por aplicativo, frente aos chamados chefes, a grande diferença está
na ausência das instituições nos direitos trabalhistas. Novos meios de gerenciar e
controlar por meio de softwares, permitem através da uberização uma condição
contratual, onde os trabalhadores são desprovidos de direitos, segurança e cheios de
custos de manutenção de seu trabalho.

As debilidades da uberização do trabalho, principalmente no que tange as


discriminações, a fragilidade da segurança e alimentação, induz nitidamente o
estabelecimento de uma moda empresarial superficial e subordinada de trabalho. A
tendência na redução de direitos e o agravamento de discriminação direta e indireta
dos(as) entregadores(as), principalmente as mulheres, revelam a vulnerabilidade e a
exposição ao assédio. Em um contexto geral é apresentado diante dos dados o
segregamento, a desigualdade, o medo de assaltos, a discriminação, a ofensa e a falta
de recursos básicos que demonstram a apatia do trabalho uberizado que, mesmo
diante das comprovações de controle escondido, insiste no lucro sem
responsabilidade, produzindo não apenas quilômetros da fome, mas da insegurança.
Neste sentido é necessário retomar as exigências de direitos que respaldam essa
categoria crescente e assim retomar a responsabilização das empresas.

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REFERÊNCIAS

ABILIO, Ludmila Costhek. Uberização: Do empreendedorismo para o


gerenciamento subordinado. Psicoperspectivas, Valparaíso, v. 18, n. 3, p.1-12. nov.
2019. Disponível em: <https://scielo.conicyt.cl/scielo.php?pid=S0718-
69242019000300041&script=sci_arttext> Acesso em: 12 de julho de 2021.
ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: O novo proletariado de serviços
na era digital. Ed: Boitempo, pg: 50, 2018.Disponível
em:<https://br1lib.org/book/3701576/204e15> Acesso em: 16 de julho de 2021.
AREOSA, J. (2021). O meu chefe é um algoritmo – Reflexões preliminares sobre
a uberização do trabalho. Revista Segurança Comportamental, 14, 51-56.
Disponível em: https://segurancacomportamental.com/en/magazines/item/839-o-meu-
chefe-e-um-algoritmo-reflexoes-preliminares-sobre-a-uberizacao-do-trabalho Acesso
em: 12 de janeiro de 2023.
CRENSHAW, Kimberlé. Documento para encontro de especialistas em aspectos
da discriminação racial relativos ao gênero. Estudos feministas, pg: 177, 2002.
DARDOT, Pierre; LAVAL, Cristian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a
sociedade neoliberal. Tradução Mariana Echalar - 1ª ed- São Paulo: Boitempo, pg:
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Data de submissão: 30/09/2022


Data de aprovação: 22/01/2023

Este trabalho está licenciado sob uma licença Creative Commons Attribution-
NonCommercial-ShareAlike 4.0 International License.

Laborare. Ano VI, Número 10, Jan-Jun/2023, pp. 178-190. ISSN 2595-847X. https://revistalaborare.org/
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O TRABALHO EM PLATAFORMAS DIGITAIS NO BRASIL

A relação entre points e consciência de classe para os


entregadores por aplicativo
Relation between points and class consciousness for delivery app workers

Pedro Burity Borges


Graduado em Ciência Política na Universidade de Brasília, com estudos
nas áreas de Direito à Cidade e Plataformas Digitais. Membro do grupo
de pesquisa Mundo do Trabalho e Teoria Social.

RESUMO: O artigo faz uma análise dos espaços coletivos de descanso e espera de
entregadores por aplicativos, conhecidos como points, observando se há neles um
processo de construção de uma consciência de classe por parte da categoria. Para
isso, foram analisadas as rotinas dos entregadores nesses locais, através de
entrevistas, notícias de jornais e dos dados e reflexões da pesquisa de campo que
originaram o relatório “Condições de trabalho, direitos e diálogo social para
trabalhadoras/es do setor de entrega por apps em Brasília e Recife”, organizado pela
CUT-OIT, que investigou os entregadores por aplicativo no Distrito Federal, durante
o primeiro semestre de 2021. Através de um enfoque lukacsiano e de uma análise
descritiva das paralisações, conhecidas como Breque dos Apps, foi possível
identificar a relevância dos points para a mobilização e para a construção de
consciência de classe entre entregadores por aplicativo.

Palavras-chave: plataformas digitais, Breque dos Apps, trabalho plataformizado.

ABSTRACT: The article makes an analysis of collective spaces of rest and waiting
for delivery app workers, known as points, observing whether there is a construction
of class consciousness in the category. For this, the routines of delivery workers in
these places were analyzed through interviews, news, and reflections of the field
research that originated the report "Working conditions, rights and social dialogue for
workers in the delivery sector by apps in Brasília and Recife”, organized by Central
Única dos Trabalhadores (CUT), which investigated app couriers in the Federal
District, during the first half of 2021. Through a lukacsian approach and a descriptive
analysis of the stoppages known as “Breque dos Apps”, it was possible to identify the

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A relação entre points e consciência de classe para os entregadores por aplicativo

relevance of these points for the mobilization and for the construction of class
consciousness among delivery app workers.

Keywords: digital platforms, Breque dos Apps, platform work.

1. INTRODUÇÃO

No fim do segundo trimestre de 2021, o volume de trabalhadores informais chegou a


48,7% da população, segundo levantamento da consultoria iDados com base na
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua Trimestral, um dos
picos históricos do índice.1 Em meio ao notório crescimento do trabalho informal,
durante a pandemia de COVID-19, e com a necessidade da manutenção do
isolamento social, os aplicativos de entrega de comida se tornaram comuns na rotina
dos centros urbanos. Com isso, dezenas de milhares de brasileiros passaram a ocupar
as ruas e outros espaços das cidades com suas motos e bicicletas. 2 A categoria de
motociclistas de entrega rápida (CBO 5191-10) sofre um drástico impacto, visto que
as plataformas de entrega, em seus termos de uso e de cadastro, eliminam qualquer
tipo de vínculo formal de trabalho com os novos entregadores.

O trabalho de entrega rápida de alimentos e produtos envolve riscos diários em meio


ao intenso tráfego das cidades e aos constantes deslocamentos realizados. Na maior
parte do tempo eles se encontram em seus veículos realizando suas entregas, com
poucas pausas durante a jornada, seja para descanso ou alimentação. Quando têm a
oportunidade, os entregadores fazem suas pausas em frente a restaurantes ou em
qualquer lugar que caiba suas motos. Esse é um fenômeno que despertou a atenção da
população e da mídia, sendo tema reiterado de notícias recentes.

Nos últimos anos, especialmente em 2020, um dos períodos mais críticos da


pandemia, entregadores por aplicativo realizaram grandes mobilizações no Distrito
Federal e em todo o país reivindicando a garantia de direitos e melhores condições de
trabalho. Ciente dos riscos de sua profissão e da importância que tiveram durante os
momentos de rígido isolamento social, milhares de trabalhadores paralisaram suas
atividades, exigindo garantias contra bloqueios injustos nas plataformas,
equipamentos de proteção individual, pontos de apoio, entre outras várias demandas.3
1 GOMBATA, Marsília. Trabalho informal bate recorde e deve continuar a crescer. Valor Econômico. Disponível
em: <https://valor.globo.com/brasil/noticia/2021/11/10/trabalho-informal-bate-recorde-e-deve-continuar-a-
crescer.ghtml>. Acesso em: 29 set. 2022.
2 DEBORAH HANA CARDOSO. Motoristas e entregadores por aplicativo crescem quase 1.000% em 5 anos.
Correio Brasiliense. Disponível em: <https://www.correiobraziliense.com.br/economia/2022/04/5002752-
motoristas-e-entregadores-por-aplicativo-crescem-quase-1-000-em-5-anos.html>. Acesso em: 29 set. 2022.
3 SUDRÉ, Lu. “A guerra continua”, prometem entregadores dos breques contra apps. Brasil de Fato. Disponível
em: <https://www.brasildefato.com.br/2020/07/30/a-guerra-continua-prometem-entregadores-dos-breques-
contra-apps>. Acesso em: 29 set. 2022.

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Pedro Burity Borges

Interessante notar que muitas dessas mobilizações parecem apontar para a


importância dos espaços de convivência, sociabilidade e organização da categoria de
motoboys, os points. Ora articulados no espaço urbano, ora constituídos nos meios
digitais das redes sociais, como no WhatsApp, esses espaços delineiam trilhas por
onde parece ser possível compreender as formas de organização dessa categoria, que
até o momento não contam com espaços, órgãos e rotinas institucionalizadas. Assim,
qual seria a relação desses points com a criação de uma espécie de “consciência de
classe” dos entregadores por aplicativos?

O objetivo do presente trabalho é identificar, através da análise das rotinas dos


entregadores do Distrito Federal, especialmente durante os encontros da categoria em
espaços improvisados de descanso ou espera de pedidos (points), os processos de
construção de uma consciência de classe por uma perspectiva lukacsiana, os quais se
associam à construção das mobilizações que ocorreram no país.

Para o desenvolvimento deste trabalho, analisaram-se os resultados da pesquisa de


campo que embasou o estudo sobre entregadores por aplicativo, organizada pelo
Instituto Observatório Social (IOS) em parceria com a Central Única dos Trabalhadores
(CUT), a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e pesquisadores da
Universidade de Brasília (UnB), que entrevistaram e coletaram relatos de entregadores
do Distrito Federal durante o segundo semestre de 2020 (CUT; OIT, 2021). A amostra
utilizada foi baseada nos dados da PNAD COVID-19, que trouxe informações mais
precisas sobre a categoria de entregadores por plataformas digitais.

Na primeira seção, o texto apresenta o fenômeno das empresas-aplicativo e do trabalho por


plataforma, introduzindo a construção de uma subjetividade individualista neoliberal como
uma das consequências da atividade para entregadores. Em seguida, o artigo traz o contexto
do trabalho por aplicativo no Distrito Federal, apresentando a rotina dos entregadores através
de relatos e entrevistas, e conceituando os points, espaços coletivos criados pela categoria
para descanso e espera de pedidos, como um contraponto à subjetividade pregada pelos
aplicativos. Num terceiro momento, é apresentado um debate lukacsiano a respeito do
desenvolvimento da consciência de classe dos entregadores, que pode ser observado na
rotina da categoria. Por último, são apresentadas mobilizações políticas de entregadores de
aplicativo no Distrito Federal e em outros lugares, enfatizando a importância dos points e de
outros espaços coletivos para a construção destes movimentos.

2. PLATAFORMIZAÇÃO DO TRABALHO E A CONSTRUÇÃO DO SUJEITO NEOLIBERAL

A tecnologia, inserida no capitalismo, tem desempenhado um drástico impacto nos


processos laborais e nas relações de trabalho em nossa sociedade. É através do

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A relação entre points e consciência de classe para os entregadores por aplicativo

desenvolvimento das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) e de seus


desdobramentos, como big datas4 e inteligências artificiais 5, que se possibilitou que
máquinas consigam tomar decisões e solucionar problemas com grande eficácia -
num processo denominado automatização, possibilitando ao capital conseguir evoluir
as formas de extração de lucro e, consequentemente, de exploração do trabalho
(FAGNANI e PREVITALI, 2020).

Como fruto desse processo, surge o fenômeno conhecido por “trabalho subordinado por
plataformas digitais” (ABÍLIO, 2020). Uma das possíveis definições de plataformas
digitais faz referência a “empresas que controlam infraestruturas digitais alimentadas por
dados e organizadas por algoritmos” (ABÍLIO, AMORIM e GROHMANN, 2021),
também conhecidas como empresas-aplicativo, que utilizam dessas ferramentas para
gerir um enorme contingente de trabalhadores sem vínculos formais através de um
modelo just-in-time de trabalho (ABÍLIO, 2020). Um dos exemplos mais populares em
nossos cotidianos dessas plataformas são os aplicativos de entrega.

Os principais aplicativos de entrega são gerenciados por empresas de porte


multimilionário, como a iFood, a Uber6 e a Rappi. Eles funcionam da seguinte forma: o
trabalhador, aceitando determinados termos e condições construídos unilateralmente pela
empresa, se cadastra na plataforma, recebendo uma caixa-mochila, conhecida como bag.
Seu meio de locomoção, celular e conexão à internet são de responsabilidade unicamente
própria,7 portanto não da empresa. Em seguida, aguarda que um algoritmo, construído e
manipulado pela empresa, escolha ele entre vários entregadores disponíveis na
plataforma para realizar a entrega do pedido de um cliente, no caso, um outro usuário do
aplicativo. Em troca, recebe uma recompensa em dinheiro, também definida pelo mesmo
algoritmo, que varia de acordo com a distância, número de pedidos e entregadores ativos,
entre outros fatores alegados pelas plataformas.

4 Segundo a multinacional de tecnologia de computação Oracle, Big data é o termo utilizado para se
referenciar a volumosos conjuntos de dados complexos, alimentados em grande velocidade, não sendo
processados por softwares tradicionais ou convencionais.
5 Segundo a multinacional de tecnologia de computação Oracle, inteligência artificial se refere a sistemas que
mimetizam a inteligência humana para realizar tarefas.
6 A Uber encerrou as atividades do aplicativo Uber Eats, de intermédio de entregas de comidas, em março de
2022. No entanto, a empresa lançou o substituto Cornershop, utilizado para pedidos de compras em
supermercados e similares.
7 Segundo a iFood, a empresa realiza eventos especiais para a distribuição gratuita de jaquetas e bags,
estrategicamente estampadas com sua logomarca, e convida entregadores para receberem os produtos. Sem
critério específico para o convite, afirma que os “parceiros” receberão um aviso nos canais oficiais do aplicativo
e recomenda a utilização frequente do iFood para Entregador (app diferenciado para utilização dos
trabalhadores) para aumentar as chances de ser chamado. A empresa ressalta que o entregador deverá
possuir o próprio equipamento para começar a trabalhar com entregas pelo aplicativo.
Informações disponíveis em <https://entregador.ifood.com.br/quero-fazer-parte/conheca-o-ifood/como-
conseguir-o-kit-ifood/>. Acesso em 22 de maio de 2022.

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É possível distinguir algumas especificidades do trabalho por aplicativo, como apontam


Amorim e Moda (2020): o acionamento próprio do aplicativo para realização do
trabalho, a posse parcial ou total das ferramentas de trabalho pelo entregador e um
“contrato” marcado por flutuações da demanda e oferta, sem nenhum tipo de garantia
de renda ou mesmo de trabalho. Não há subordinação direta por algum empregador e as
empresas buscam deixar isso bem explícito em seus termos e condições de uso dos
aplicativos e em suas estratégias de comunicação. Todavia, elas são os maiores
“empregadores” do Brasil, com 4 milhões de brasileiros trabalhando através dos
principais aplicativos, de acordo com levantamento de 2019 (PUTTI, 2019).

As plataformas afirmam que esses trabalhadores apenas utilizam seu serviço,


funcionando como um intermédio entre restaurantes e usuários, onde o entregador
parceiro escolhe dia, horário e onde entregar 8. Ainda assim, essas empresas controlam as
entregas em todos os aspectos, desde o cadastro do restaurante que oferece o pedido até a
avaliação do serviço após a corrida. Bloqueios de entregadores da plataforma por
supostas violações dos termos acordados no cadastro, muitas vezes classificados como
injustos pelos próprios entregadores, são recorrentes, e uma das principais reivindicações
da categoria. As plataformas têm a capacidade de dispersar e, ao mesmo tempo, controlar
o trabalho realizado por milhões, sem precisar oferecer qualquer garantia ou direito,
enquanto sustentam o falso discurso de liberdade e independência (ABÍLIO, 2017).

Essa nova modalidade de trabalho por aplicativo é oriunda de uma expansão significativa
do processo de precarização estrutural do trabalho (ANTUNES, 2018), que se desenha
desde os princípios da década de 1970 e que se agravou com a crise de 2008. Com isso,
houve o crescimento da superexploração do trabalho, com uma ampliação global da
informalidade, da terceirização e da flexibilização dela. Através das mais diversas
formas, garantias e direitos trabalhistas foram precarizados, junto a crescentes taxas de
desemprego, subemprego e da população excedente de trabalhadores e trabalhadoras, a
qual Marx denominava “exército de reserva” ou “superpopulação relativa” (ibid.).

Surge desse contexto a classe do precariado: criada por Guy Standing para definir uma classe
de proletários distinta do operariado europeu tradicional, representando trabalhadores mais
jovens, predominantemente do setor de serviços, realizando trabalhos muitas vezes
temporários e intermitentes, sob regimes flexíveis e abusivos (ANTUNES, 2018).

Colaborando para a intensa precarização do trabalho, as TICs e suas empresas


aproveitam desse exército de desempregados ou de subempregados para vincular a
suas plataformas milhões de motoristas, cuidadores, maridos de aluguel ou

8 Segundo os termos de uso para entregadores do iFood, presentes no site do aplicativo.


<https://entregador.ifood.com.br/termos-e-condicoes-de-uso/>. Acesso em 22 de maio de 2022.

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A relação entre points e consciência de classe para os entregadores por aplicativo

entregadores. E é o caso das empresas já mencionadas Uber e iFood, como também


da GetNinjas9 e de outras multinacionais.

Para além da dinâmica de trabalho, esse sistema tem a capacidade de isolar os


trabalhadores, ao mesmo tempo em que constrói uma ideologia neoliberal que prega o
empreendedorismo e tenta mascarar a precarização acometida por esses trabalhadores.
Há uma tentativa de inserir no indivíduo a ideia de que ele é inteiramente responsável
pelo próprio trabalho e que a plataforma deveria ser isenta de responsabilidades, agindo
apenas como um intermédio para pessoas que querem empreender. Dardot e Laval
(2016) apontam nesse processo a tentativa de construção do sujeito neoliberal.

Para Marilena Chauí (2014), ideologia é um conjunto lógico de ideias, valores e de


normas que visam regulamentar a conduta social, através de explicações racionais
para diferenças sociais, ignorando tais diferenças como uma consequência direta das
divisões na esfera da produção econômica. Na leitura de Oviedo e Misoscky (2017)
sobre a concepção de Lukács, ideologia é uma forma de consciência que, através de
implicações práticas sobre o mundo concreto, busca mascarar os conflitos de
interesse presentes na sociedade (CARMO, LUANA JÉSSICA OLIVEIRA et al,
2021). Dessa forma, o discurso empresarial utiliza a ideologia neoliberal como
ferramenta para blindar os próprios interesses, através da influência sobre a
subjetividade e a consciência dos trabalhadores.

Sob a ideologia neoliberal, o indivíduo é colocado numa posição de empresa,


desenvolvendo-se na sociedade capitalista a ideia utilitarista de que o sujeito é
movido por interesses e que a satisfação está relacionada à maximização dos ganhos.
A suposta liberdade de escolha, concebida a partir de termos essencialmente
racionais, fica condicionada à busca pela própria satisfação, traduzida na
amplificação dos ganhos capitalistas. Do contrário, quaisquer atividades que não
busquem o lucro podem causar sofrimento psíquico, o sentimento de fracasso, a
depressão (FRANCO et al., 2021). Para o entregador, a suposta autonomia oferecida
pelo aplicativo compete com a ociosidade ou com outros serviços informais que
tenderiam a gerar menos ou nenhuma satisfação, na concepção neoliberal.

Criado para atender as demandas do capitalismo, o sujeito neoliberal é um


empreendedor “cuja subjetividade deve estar inteiramente envolvida na atividade que
se exige que ele cumpra” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 322). O indivíduo é
estimulado à extensa competição e à maximização de seus resultados em busca do
bem-estar material e da realização profissional, idealizações construídas pela
valorização ideológica do modelo empresarial. Ao mesmo tempo, é colocado como o
9 GetNinjas é uma empresa brasileira criada em 2011, que gerencia uma plataforma que gerencia
trabalhadores de várias categorias, desde serviços domésticos e reformas a fotógrafos e designers.

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único responsável pelos riscos e pelos fracassos, muitas vezes consequência das
condições de trabalho dadas pelo aplicativo. Assim, ele é instado a agir como uma
empresa em meio a uma vasta concorrência: o sujeito deve ter capacidade de
adaptação às flutuações do mercado, gestão de crises e espírito empreendedor, ou
então, encontrará a falência. O homem bem-sucedido, na visão neoliberal, é aquele
que conquista seus objetivos por si próprio, mesmo que isso signifique passar por
cima de seus próximos ou trabalhar incansavelmente (ibid.).

Logo, é possível identificar no discurso e nas práticas por trás dos aplicativos a
tentativa da imposição da subjetividade neoliberal ao entregador, a partir da sua
responsabilização exclusiva sobre o equipamento, do isolamento perante outros
trabalhadores, do discurso de autonomia, entre outras ações características da ideologia
neoliberal. No entanto, ao contrário do que é pregado pelos aplicativos, a rotina dos
entregadores apresenta alguns aspectos de coletividade e cooperação entre a categoria.

3. A ROTINA DO ENTREGADOR NO DISTRITO FEDERAL

Segundo o Sindicato de Motociclistas Profissionais (Sindmoto-DF), havia cerca de 10


a 15 mil motoboys circulando pelas ruas do Distrito Federal em 2020. Por sua vez, a
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios PNAD COVID-19, organizada pelo
IBGE em novembro do mesmo ano, registrou um número aproximado de 7.504
entregadores (CUT; OIT, 2021). Em uma rotina que se repete para milhares de
brasileiros, estes trabalhadores se deslocam de suas casas para as ruas em suas
bicicletas ou motos, geralmente para regiões mais centrais das cidades com
movimentos mais intensos de pedidos, e iniciam suas entregas. Nas ruas,
permanecem durante toda sua jornada diária de trabalho, com nenhuma ou poucas
pausas para uso do banheiro ou realização de refeições.

Nesse sentido, há diversos casos e relatos de entregadores que tiveram acesso negado
a shoppings e restaurantes, espaços de uso comum ao público, mesmo durante suas
corridas, ou então foram constrangidos, no exercício de suas funções nesses
estabelecimentos, por donos de restaurantes, seguranças ou clientes. 10 Em
contraposição a essa situação, esses trabalhadores costumam se reunir em volta de

10 Entre os casos de maior repercussão, em julho de 2021, o sócio de um restaurante localizado no Park
Shopping, um dos maiores do Distrito Federal, destratou um entregador que aguardava um pedido sentado
nas dependências do shopping enquanto carregava seu celular. O empresário chegou a pedir aos seguranças
do local que impedissem o homem de permanecer onde estava e proibiu seu retorno ao estabelecimento. A
ação, gravada e publicada nas mídias sociais, gerou protestos dos entregadores em frente ao restaurante e
repercutiu em jornais e outros espaços, inclusive na Câmara Distrital.
<https://www.opovo.com.br/noticias/brasil/2021/07/19/dono-de-restaurante-no-df-humilha-motoboy-que-
carregava-celular-em-shopping.html>

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A relação entre points e consciência de classe para os entregadores por aplicativo

lugares com bastante fluxo de pedidos, mas de forma improvisada e precária. Esses
espaços adotados pela categoria são popularmente conhecidos como points.

Os points são espaços com pouca ou nenhuma infraestrutura, frequentemente


localizados em estacionamentos de restaurantes, de shoppings ou outros espaços
similares. Quando possível, próximos de árvores ou em torno de mesas e outros
equipamentos públicos. Eles estão presentes em vários locais espalhados pelo Distrito
Federal, assim como em outros conglomerados urbanos, e podem surgir ou
desaparecer em pouco tempo, já que acompanham a lógica de constante trânsito dos
trabalhadores por aplicativo e os algoritmos da plataforma, majoritariamente
responsáveis pelo controle do fluxo de pedidos e, consequentemente, de
entregadores11. Também podem ser mais ou menos estruturados, a depender das ações
dos próprios motoboys e da constância de pedidos.

Estes points também costumam ficar perto de estabelecimentos considerados


parceiros, que permitem o acesso ao banheiro e disponibilizam água, descontos e
outras formas de apoio. Alguns desses espaços, geralmente os mais consolidados e
estruturados, também contam com grupos de WhatsApp, espaços virtuais onde as
conversas continuam e auxiliam na rotina dos entregadores como uma forma de
indicar em quais regiões o fluxo de pedidos está mais favorável ou de alertar sobre
questões de trânsito e de segurança.

Figura 1: Point ao lado do Metrópoles Shopping, Figura 2: Point em quiosque ao lado do Boulevard
Águas Claras – Distrito Federal. Shopping, na Asa Norte, Brasília – Distrito Federal.

Fonte: Acervo do autor. Fonte: Acervo do autor.

11 Os algoritmos não são, necessariamente, o único fator responsável pelo fluxo de pedidos, que também
depende da disponibilidade dos restaurantes e dos entregadores, dos horários de pico, entre outros.

Laborare. Ano VI, Número 10, Jan-Jun/2023, pp. 191-211. ISSN 2595-847X. https://revistalaborare.org/
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A partir do processo de consolidação e formação desses locais, é perceptível a


existência de um senso de comunidade e de colaboração entre estes trabalhadores, que
se reconhecem por estarem sujeitos à mesma rotina de trabalho, aos mesmos perigos e
problemas. Ainda que possuam características e vivências destoantes, estes indivíduos
constroem laços através da profissão que exercem e é este fenômeno que abordaremos
como “consciência de classe dos entregadores por aplicativo”, mais a frente.

Os locais improvisados para descanso e espera são bastante variados. São calçadas e
estacionamentos de restaurantes e shoppings (quando os estabelecimentos permitem),
sombras de árvores em gramados, praças e outros espaços que contenham
equipamentos públicos. Os entregadores costumam tirar de 10 a 20 minutos de pausa
fora dos horários de pico, momento em que comem um lanche ou uma marmita fria
trazida na mochila. Outras vezes, comem durante os poucos minutos entre entregas
ou na espera de um pedido. Há no relatório produzido pela CUT-OIT trecho de relato
de entregadora, amarela, de 29 anos, que diz que:

Geralmente a gente para no meio das residências, nos banquinhos da


quadra. O aplicativo não dá nenhuma tenda, nenhum lugar para carregar o
celular. Se for na chuva, a gente fica embaixo de prédio. Nossa vida é
assim. (CUT, 2021, p. 84).

Os relatos dos entregadores coletados no relatório (ibid.) foram quase unânimes na não
disponibilização de pontos de apoio oficiais por parte das empresas. Na grande maioria dos
locais de descanso dos entregadores, não há nenhum tipo de estrutura oferecida que
contenha as demandas e reivindicações básicas da categoria: espaço para descanso,
banheiro e vestiário, conexão com a internet, copa com água e microondas, estacionamento
e bicicletário. Alguns poucos restaurantes oferecem algumas cadeiras e acesso a sanitários
para os motoboys, mas ainda não atendem às exigências mínimas (ibid, p. 84).

Com o tempo, alguns desses espaços que possuem maior fluxo e estrutura se
consolidam como points, na medida em que ficam mais conhecidos - e frequentados.
Logo, viram palco de interações, construções de laços e recebem maior atenção dos
entregadores. Nestes espaços, iniciam amizades, conversam sobre os restaurantes,
locais com maior movimento de pedidos ou mesmo questões da vida pessoal. Parte
desses points ainda possuem grupos nas redes sociais, especialmente no WhatsApp,
criados e vinculados aos espaços físicos.

São nestes grupos de WhatsApp, originados e alavancados pelos points, que há a


continuidade do diálogo entre a categoria. Em constante deslocamento nas cidades e com
curtas pausas, é através das redes sociais que os entregadores continuam as conversas
começadas nos espaços físicos. Ainda, são canais onde conseguem compartilhar o fluxo
Laborare. Ano VI, Número 10, Jan-Jun/2023, pp. 191-211. ISSN 2595-847X. https://revistalaborare.org/
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A relação entre points e consciência de classe para os entregadores por aplicativo

de entrega das regiões, acompanhar blitz e acidentes nas pistas, comentar sobre
atualizações e taxas dos aplicativos e outros conteúdos não necessariamente ligados ao
trabalho. Compartilham também memes, correntes, mensagens sobre política, futebol e
religião, entre outros assuntos que também fazem parte do cotidiano. Frutos das
interações físicas, os grupos nas redes sociais se mostraram importantes para a
propagação das mobilizações da categoria, como será mostrado posteriormente.

Para além dos relatos sobre points e pontos de apoio, os dados e análises apresentados
pela Central Única dos Trabalhadores (2021) ajudam a ilustrar a rotina dos
entregadores no Distrito Federal e a visão que a categoria tem sobre o trabalho
exercido. Para a construção do relatório, foram entrevistados 39 entregadores entre
janeiro e março de 2021, engajados para a pesquisa através de grupos de Whatsapp,
Telegram e Facebook, estes divulgados com o auxílio de dirigentes sindicais e dos
próprios entregadores participantes, através da técnica “bola de neve” (CENTRAL
ÚNICA DOS TRABALHADORES, 2021, pp. 250-252). A amostra escolhida para a
entrevista foi pensada numa tentativa de se aproximar com o perfil sociodemográfico
dos entregadores segundo a PNAD COVID-19.

Assim, a CUT (2021) aponta que 92% dos entrevistados são homens e 68% se
autodeclararam pretos (negros ou pardos). O nível de escolaridade dos participantes
também foi próximo à pesquisa nacional, mas o alto número de entrevistados que
declarou possuir superior completo e incompleto (respectivamente, 10% e 31% no
DF comparado a 3,24% e 7,99% no Brasil) evidenciou as dificuldades de os
trabalhadores conseguirem oportunidade de trabalho em suas respectivas áreas,
característica marcante do trabalho por aplicativo (ibid., pp. 63-65).

Quanto aos locais de residência, 90% disseram morar dentro do Distrito Federal,
sendo que 57% deles habitavam Regiões Administrativas com renda domiciliar
inferior a R$1.329,00. Já em relação aos locais de trabalho, 84% responderam que
realizam entregas no Plano Piloto, seguida de Regiões Administrativas de maior
renda per capita, Águas Claras e Guará (ibid., p. 66).

Questionados sobre o nível de satisfação com o trabalho dos aplicativos, 40% dos
entrevistados consideraram “regular” e outros 40% responderam “boa”. Em relação às
desvantagens dessa forma de trabalho, as opções mais escolhidas foram a respeito dos riscos
sofridos pelo entregador (87% dos entrevistados), a falta de direitos (77%) e a humilhação
passada no trabalho (59%). As vantagens com maior número de seleções foram a respeito da
liberdade e autonomia no trabalho e da complementação de renda (62% cada). A grande
maioria trabalha em mais de um aplicativo de entrega, sendo o iFood o mais mencionado,

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em 90% dos casos. A respeito da utilização das redes sociais para realização do trabalho,
51% afirmaram utilizar sempre, 13% às vezes e 36% disseram não utilizar.

Foram feitos relatos de péssimas condições de trabalho, relacionados à longa e


exaustiva jornada: “O dia de folga não resolve os meus problemas. Eu não tenho
tempo para nada [...] Tento resolver questões burocráticas nos dias de folga [...] Eu
nunca tenho dia livre, né?!” (CUT, 2021, p. 83).

Relacionados à ausência de amparo por parte das empresas:

Não tem valor. A gente é tratado como um lixo. Por exemplo, a gente sempre
pega uma chuva danada e não tem um abrigo para ficar embaixo. Tem que
ficar no meio da rua, muita chuva pegando em vocês. E o teu guarda-chuva é
o capacete. Tem que ficar preso dentro de um capacete (ibid., p. 90).

Entre outras críticas em diversos aspectos. A maior parte (69%) também reconheceu
a necessidade de algum tipo de regulamentação do trabalho e a existência de vínculo
entre o entregador e o aplicativo através da CLT (CUT, 2021). As críticas aos
aplicativos foram mais intensas por parte dos entrevistados que mencionaram
trabalhar na profissão anteriormente:

Eu falo para os caras que eu tenho saudade daquela época em que não
tinha aplicativo, porque era os clientes que ligavam na loja e pedia a pizza,
falava o endereço certinho. Aí você pega uma entrega de aplicativo e os
caras mandam o endereço pela metade faltando o bloco, faltando a quadra.
Aí a gente chega atrasado no cliente, o cliente acha ruim e bota nota ruim,
aí a gente é bloqueado, sem nem saber o porquê (ibid., p. 86).

Outro entrevistado, um homem indígena de 41 anos, afirmou que o aplicativo trouxe


facilidade para os lojistas, ao mesmo tempo em que piorou para os entregadores, que
passaram a trabalhar para as mesmas empresas, mas agora sem um emprego formal e
trabalhando nas plataformas (CUT, 2021, p. 70).

Segundo o relatório, os entregadores por aplicativo no Distrito Federal são


majoritariamente homens, pretos, jovens e moradores de Regiões Administrativas
periféricas, apesar de realizarem entregas principalmente nas zonas centrais do Distrito
Federal. São também marcados por algumas características do sujeito neoliberal, a
exemplo da autonomia e liberdade como a opção mais escolhida entre as vantagens do
trabalho por aplicativo. No entanto, ainda que digam estar regularmente satisfeitos com
o trabalho, reconhecem os riscos, as dificuldades e os problemas de atuar com as
plataformas. Mesmo que de forma destoante, os entrevistados também evidenciam a
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A relação entre points e consciência de classe para os entregadores por aplicativo

necessidade de regulamentação da atividade e de vínculo trabalhista com o aplicativo, o


que parece indicar que a concepção do sujeito neoliberal e o discurso pregado pelas
empresas não são completamente absorvidos pelos trabalhadores. Ainda, a maior parte
dos entregadores utiliza as redes sociais para o trabalho e atua nas áreas centrais de
Brasília, o que favorece interações entre os próprios entregadores. Essas interações,
sejam elas presenciais nos points ou virtuais por mensagens, para uma categoria imersa
no trabalho e com poucos momentos de contato com seus colegas, podem ser
importantes para o potencial de organização como classe (CUT, 2021, p. 61) e para
desenvolvimento de uma consciência de classe, argumento apresentado a seguir.

4. CLASSE E CONSCIÊNCIA DE CLASSE PARA ENTREGADORES

Um dos pontos de maior destaque na relação entre entregadores, points e grupos de WhatsApp
diz respeito às formas de engendramento de uma certa “tomada de consciência” acerca de suas
condições de trabalho e, por conseguinte, das relações de trabalho às quais estão sujeitos. Nesse
sentido, a partir de uma perspectiva lukacsiana (LUKACS, 2018), nos debruçaremos agora
sobre a questão da classe e da consciência de classe entre os entregadores.

Podemos considerar, grosso modo, o conceito de classe em dois diferentes aspectos: classe
em si, onde a condição material que determina o posicionamento de um indivíduo ou um
grupo na sociedade (proletariado ou burguesia, por ex.), e classe para si, que considera
classe intrinsecamente ligada à consciência da luta entre grupos dominantes e dominados
em seus mais variados períodos históricos, contextos e subjetividades (LUKÁCS, 2018).

Nessa mesma perspectiva, a classe como posição (classe em si), representa um ponto
comum entre os trabalhadores: a submissão ao modo de produção e às relações de
trabalho capitalistas. É uma perspectiva objetiva que engloba e reúne as mais amplas
categorias, todos aqueles que vendem sua força de trabalho (ANDRADE, 2018).
Inclui o motofretista celetista, o motoboy do iFood e o bikeboy da Rappi,
considerando o fato de eles compartilharem o mesmo papel na sociedade de classes.

Já a classe como movimento (classe para si), tem como critério a indissociável relação
com a luta de classes e o reconhecimento de sua existência. Na figura do proletariado, é
representado pelo reconhecimento da relação de dominação com o capital e seus
representantes e o inevitável conflito consequente dessa relação (ANDRADE, 2018).

Na interpretação de Sobrinho (2016), ambos os aspectos das classes se mostram


indissociáveis e complementares, na medida em que se precisa de uma definição
objetiva para entender quem compõe as classes, mas o conflito em si é característica
fundamental delas. Logo, a própria existência da classe, um conceito objetivo e

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material, está pressuposta à luta de classes. Tal interpretação dialoga com a ideia
lukacsiana de Andrade (2018) ao afirmar que, na medida em que surgem classes
sociais com interesses antagônicos, as circunstâncias levam as pessoas inseridas na
sociedade de classes a agir de determinado modo e, reconhecidos os conflitos de
classes manifestados por suas contradições, essas pessoas tornam-se conscientes de
sua posição na luta. Ainda, “[...] no caso da ideologia dominante, produzir a
mistificação da realidade e manutenção da dominação'' (ANDRADE, 2018, p. 112).

Seguindo esta perspectiva, a tentativa de manutenção da dominação através de aspectos


ideológicos por parte das plataformas se dá nos contínuos esforços de negação de relações de
trabalho com os entregadores e de construção de uma subjetividade neoliberal, como
evidenciado anteriormente. Nesse sentido, é deveras ilustrativa a mobilização de mecanismos e
aparatos ideológicos pelas plataformas para sustentar essa situação. Em abril de 2022, a
Agência Pública publicou reportagem denunciando agências de publicidade contratadas pela
iFood para criar perfis falsos em redes sociais e se infiltrar em canais e grupos de entregadores,
com o objetivo de desmobilizar movimentos da categoria. 12 As empresas constroem ou se
utilizam também de outros métodos para dificultar a organização de entregadores, a exemplo
da “existência de poucos locais físicos de encontro dos trabalhadores e trabalhadoras das
empresas plataformas” (GONSALES, 2020, p. 133), reforçados por uma intensa atuação frente
ao Congresso Nacional e outras instituições governamentais.13

Retomando, a consciência de classe implica no conhecimento da existência de um grupo


dominante, um grupo dominado e um conflito entre eles, interpretado nos diversos contextos da
sociedade (ANDRADE, 2018). No que diz respeito à relação entre entregadores e aplicativos,
ainda que o entregador não necessariamente reconheça o aplicativo ou o dono do restaurante
enquanto figuras da classe dominante, há, de alguma forma, a ciência do conflito entre seus
interesses e os limites e abusos impostos. Apesar da suposta autonomia do entregador parceiro
pregada pelas plataformas, há por parte deles a consciência de que as empresas não se importam
com as condições de trabalho fornecidas ou trabalham ativamente para torná-las o pior possível,
vide relatos de entregadores que alegam punições injustas e a falta de apoio e amparo em caso de
acidentes ou outros problemas (CUT, 2021, pp. 84-86). Há também a consciência de que isso
ocorre deliberadamente para maximizar os lucros, pois o entregador conhece a diferença do valor
repassado para ele, para o estabelecimento e para a empresa.

Como já dito, os entregadores de aplicativo compartilham de rotinas de trabalho e de


estilos de vida semelhantes, como também interesses: conseguir entregas, sobreviver
ao trânsito, conquistar melhores condições de trabalho. Podem ainda compartilhar do
mesmo processo de construção identitária, definido por Kathrin Woodward (2000)
como um processo cultural que os posiciona como sujeitos através de sistemas
12 https://apublica.org/2022/04/a-maquina-oculta-de-propaganda-do-ifood/
13 https://theintercept.com/2021/11/25/google-e-ifood-montam-bancada-do-lie/

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A relação entre points e consciência de classe para os entregadores por aplicativo

simbólicos e práticas de significação, que dialogam com suas próprias subjetividades,


responsáveis pelo reconhecimento dessas posições (FIALHO; MIRANDA, 2014). No
entanto, tais características não são necessariamente suficientes para a construção de
uma identidade coletiva ou de uma coesão da classe. Para isso, há a necessidade do
compartilhamento das experiências individuais, especialmente aqueles referentes às
condições precárias de trabalho, de forma a torná-las uma experiência coletiva. Dela,
surge a reivindicação coletiva e, junto, a revolta, aflora nesse coletivo a necessidade
da luta por melhorias, o aspecto revolucionário de Marx (SOBRINHO, 2016).

O compartilhamento de tais experiências pode ocorrer de diversas formas, mas a


principal delas é o contato dentro de suas rotinas e jornadas de trabalho. Para
entregadores, esse contato costuma ocorrer justamente nos points, os espaços
improvisados onde aguardam pedidos, e que crescem na medida em que aumenta o
número de trabalhadores e as interações entre eles. Segundo Sobrinho (2016),

A possibilidade de resistência de classe está associada à condição


contraditória em comum de existência dos trabalhadores, combinada com
o aspecto da quantidade de trabalhadores e com a aglomeração dos
trabalhadores no mesmo espaço, ante a mesma forma personificada do
capital, ou somente em um mesmo território urbano. (p. 7).

Ainda, a coesão de classe que surge com o fenômeno dos points colabora com a negação
do ideal liberal da conquista de riqueza individual através do trabalho. O argumento do
empreendedorismo pode ser derrubado quando, no compartilhamento de histórias do
cotidiano, percebem que o padrão de exploração e a limitação dos rendimentos são
semelhantes para todos. No entanto, vale ressaltar que o compartilhamento ideologizado
de experiências, impregnado de uma perspectiva neoliberal do trabalho por aplicativo,
pode também influenciar pares à lógica pregada pelas empresas.

Através dessa perspectiva, a consciência de classe se insere no contexto dos


entregadores por aplicativo na medida em que as críticas dos trabalhadores às
empresas e às condições de trabalho, evidenciadas na seção anterior, são
compartilhadas e circulam entre a categoria, por meio dos points e de outras
interações na rotina de trabalho ou então por meio de redes sociais, alavancadas e
originadas pelas interações nestes espaços físicos.

5. BREQUE DOS APPS, AMAE-DF E OUTRAS MOBILIZAÇÕES POLÍTICAS

Para falar sobre a luta dos entregadores por aplicativo, é essencial ressaltar que a
categoria dos motofretistas é muito anterior aos aplicativos. A atividade do motoboy no

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Brasil já nasceu como um ofício precarizado, popularizado num contexto de expansão


da flexibilização das relações de trabalho agravado na década de 1990. Semelhante aos
processos que levaram trabalhadores a migrarem para os aplicativos, os altos índices de
desemprego, o crescimento da terceirização, a crescente demanda por entregas e
serviços em curto período de tempo e a pouca exigência de qualificação profissional
levaram muitas pessoas a trabalharem com o motofrete (FIALHO; MIRANDA, 2014,
pp. 5-6). Da mesma forma, a luta dos motofretistas por melhores condições de trabalho
é muito anterior aos aplicativos. O Sindicato dos Mensageiros Motociclistas, Ciclistas e
Mototaxista Intermunicipal do Estado de São Paulo (SindimotoSP), foi fundado em
1991 e registra importantes movimentos e avanços para a categoria.

A popularização dos aplicativos de entrega e a maior facilidade de cadastro propiciou a


entrada de pessoas que nunca haviam trabalhado com o motofrete, muito menos tido
contato com cooperativas, sindicatos e outras organizações da categoria. Com a exceção
de antigos motofretistas que tiveram que migrar para as plataformas, os entregadores por
aplicativo não possuem as mesmas estruturas de mobilização que os motofretistas
celetistas ou mesmo terceirizados. Ainda, a dinâmica do trabalho por aplicativo é
diferente e carregada da ideologia neoliberal, pregando o empreendedorismo e o
individualismo. Por isso, as mobilizações dessa “nova” categoria se destacam de alguma
forma dos motofretistas, apesar de serem próximas em vários aspectos.

As principais mobilizações dos entregadores por aplicativo foram os Breques dos


Apps, paralisações de caráter nacional que aconteceram nos dias 1º de julho e 25 de
julho de 2020. Durante todo o dia, os trabalhadores desligaram as plataformas e
construíram piquetes ao redor de grandes restaurantes das maiores capitais, bem
como organizaram “motociatas” nas principais avenidas. Entre as reivindicações, a
grande maioria convergia pelo fim dos bloqueios injustos, pelo aumento das taxas
mínimas por pedido, por um maior rendimento por corrida e pela distribuição de
equipamentos de proteção individual (EPIs). As paralisações contaram com a adesão
de parte de usuários, que não fizeram pedidos e avaliaram negativamente os
aplicativos em plataformas como o Google Play e a App Store, e tiveram ampla
cobertura midiática, com matérias nos maiores jornais do Brasil.14

No entanto, mesmo antes das grandes paralisações que aconteceram em meados de


2020, entregadores por aplicativo já se mobilizavam em casos de racismo, assédios e
acidentes sofridos por colegas, com rápidos protestos localizados próximos aos
ocorridos e organizados geralmente através dos grupos da categoria nas redes
sociais15 (SANTOS, 2020). As mobilizações passaram a ser mais recorrentes e a

14 Folha de São Paulo: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/07/protesto-de-entregadores-comeca-


com-cerca-de-1000-motoboys-na-marginal-pinheiros.shtml

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A relação entre points e consciência de classe para os entregadores por aplicativo

situação precária do trabalho de entregas em meio à pandemia fortaleceu a pauta dos


aplicativos na mídia e na opinião pública.

Com a crescente precarização do trabalho e a gradual consolidação de uma categoria


nova de trabalho, surgiram as primeiras organizações voltadas para os
plataformizados. No Distrito Federal, ainda no início de 2019, entregadores por
aplicativo sensibilizados com um caso de racismo contra um colega de trabalho se
aproximaram para construir uma forma de unir a categoria, posteriormente criando a
Associação dos Motoboys Autônomos e Entregadores do Distrito Federal (AMAE-
DF).16 Segundo Abel Santos (2020), um dos fundadores da AMAE-DF, os sindicatos
e cooperativas tradicionais da categoria dos motofretistas não representavam os
interesses de quem trabalha através dos aplicativos.

Já em janeiro de 2020, foi organizada uma nova manifestação contra a Loggi, um


aplicativo focado em entregas de produtos menores, que presta serviço a grandes
corporações como a Amazon. O protesto aconteceu ao redor de um dos galpões da
empresa, espaço de distribuição dos produtos com um alto fluxo de entregadores
(evidenciando a importância das interações cotidianas para a organização de
mobilizações), e reivindicava um aumento do valor das entregas, que havia sido
reduzido. “Ton da 160”, como é conhecido em seu canal no YouTube com quase 3
mil inscritos e vídeos a respeito do cotidiano dos entregadores, registrou a ação e
publicou na internet. O vídeo possui pouco menos de 500 visualizações, com 23
comentários, entre apoios, dúvidas sobre o ocorrido e relatos de outros entregadores.17
A partir desse ato, entregadores mais engajados e presentes em manifestações
anteriores decidiram criar em definitivo a AMAE-DF, associação importante para o
avanço das mobilizações que estavam por vir (SANTOS, 2020).

A organização desses atos anteriores ao Breque dos Apps e a própria criação da


AMAE-DF tiveram influência da dinâmica dos points e do trabalho por aplicativo antes
do coronavírus, que chegou ao Brasil em março de 2020 e teve como uma das
consequências uma popularização ainda maior dos aplicativos entre restaurantes
pequenos e consumidores, dada a situação do isolamento social. Com um menor
número de usuários, as plataformas contavam principalmente com estabelecimentos de
maior porte, como grandes redes de fast-food e restaurantes localizados em shoppings.
Com menos entregadores, os points eram menos comuns, mas os poucos que existiam

15 Motoboys alegam perseguição da PMDF após briga em condomínio. Metrópoles. Disponível em:
<https://www.metropoles.com/distrito-federal/motoboys-alegam-perseguicao-da-pmdf-apos-briga-em-
condominio>. Acesso em: 22 set. 2022.
16 Segundo entrevista de Abel Santos, um dos principais articuladores da organização, realizada em 28/11/20 e
mediada pelo professor Ricardo Colturato Festi.
17 Manifestação dos Mensageiros da Loggi!! Brasília DF. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?
v=gsLlnKQlDdI>. Acesso em 11 de setembro de 2022.

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concentravam um maior número de pessoas e pedidos e, consequentemente,


promoviam uma maior interação entre a recente categoria de motofretistas. Esses
pontos mais antigos foram consolidados e firmados através de grupos nas redes sociais.
Segundo Abel Santos (2020), foram através desses espaços que uma cultura de
entregadores começou a surgir, e grupos de WhatsApp como o “Acelerados da 405”,
em referência ao point da CLS 405 do Plano Piloto foram criados, com a intenção de
compartilhar informações a respeito do trabalho e auxiliar os colegas em suas rotinas.

Dentro desses espaços e das conexões nas redes sociais que estes propiciaram, a
categoria de entregadores por aplicativo começou a se fortalecer. A pandemia fez
com que o número de trabalhadores nas ruas crescesse consideravelmente e assim os
points se consolidavam cada vez mais como locais de referência para a categoria,
agora mais dispersos e em maior número, já que grande parte dos restaurantes
precisaram aderir às plataformas para se adequar à realidade do isolamento social.
Mesmo com essa dispersão, os grupos de WhatsApp, a AMAE-DF, YouTubers
entregadores e a categoria como um todo já haviam estabelecido canais concretos de
comunicação e de solidariedade (SANTOS, 2020).

O Breque dos Apps no Distrito Federal seguiu um modelo muito semelhante ao


movimento nacional. Segundo suas lideranças, a AMAE-DF buscava uma grande
paralisação da categoria ainda em maio, mas o contato com entidades de outros
estados e a repercussão da data do 1º de julho nas redes sociais fez com que a
associação optasse por unir a mobilização local com todo o Brasil. Em espaços
físicos, o engajamento dos entregadores se deu principalmente através da colocação
de cartazes nas bags de trabalhadores, envolvidos ou não com associações e
sindicatos, e nos points em locais de fácil visualização. A AMAE-DF e seus
associados também panfletaram a respeito da mobilização em locais de maior
movimento de entregadores (SANTOS, 2020).

De toda a forma, os points foram fundamentais para o engajamento da categoria e


culminou numa paralisação bem-sucedida, ao menos na visão da AMAE-DF. O
Breque fortaleceu o vínculo da associação e da categoria com parlamentares da
Câmara Legislativa do Distrito Federal, em especial com o Fábio Félix (PSOL) que,
em conjunto com a AMAE-DF, articulou a criação da Lei Distrital 6.677, de 22 de
setembro de 202018, que dispõe sobre os pontos de apoio para trabalhadores de
aplicativos de entrega e de transporte individual privado de passageiros nas regiões
administrativas do Distrito Federal. O projeto que originou a lei foi aprovado com
apenas um voto contrário e foi bastante celebrado pela categoria, que trouxe em suas
mobilizações a necessidade de criação de pontos de apoio que pudessem atender as

18 Íntegra disponível em <https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=401717>. Acesso em 22 de setembro de 2022.

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A relação entre points e consciência de classe para os entregadores por aplicativo

condições mínimas de trabalho, como a presença de banheiros e vestiários, copa,


estacionamento e tomadas para carregar o celular. Passados dois anos da publicação,
a lei ainda não foi efetivamente cumprida pelas empresas e pelo poder público.

Seguindo a linha dos points, há outros exemplos internacionais que mostram a importância
de espaços físicos para a mobilização da categoria. Na Espanha, onde atua a empresa
Deliveroo, os centroids, galpões onde as entregas eram organizadas e os entregadores se
encontravam foram fechados. O fechamento ocorreu após as primeiras manifestações de
motoboys e bikeboys contra o aplicativo, organizadas nesses espaços. A porta-voz do
coletivo de entregadores espanhol RidersxDerechos, um dos principais grupos contra a
precarização do trabalho no país, alegou que os centroids foram locais chave para a
construção do coletivo e de outras mobilizações, e que sem eles há uma maior dificuldade
de manter contato com a categoria (FERNANDEZ; BARREIRO, 2020).

Seja nos Breques dos App, seja em manifestações menores, exemplos nacionais e
internacionais de mobilizações de entregadores por aplicativo evidenciam a importância
dos encontros em espaços físicos para a articulação da categoria. São destes espaços que
surgem convocações de luta e até mesmo organizações, contrariando o discurso
individualista pregado aos trabalhadores. E as empresas estão cientes dessa
potencialidade: a decisão da Deliveroo contra os centroids, o descumprimento das
plataformas à Lei Distrital 6.677/2020 e as tentativas de desmobilização denunciadas
pela reportagem da Agência Pública são alguns dos exemplos que mostram a posição
real dos aplicativos quanto aos points, pontos de apoio e iniciativas semelhantes.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os points possuem grande relevância para a rotina dos entregadores, como espaços de
descanso e intervalo entre corridas. Aqueles mais estruturados, que contam com
algum tipo de ação da categoria para promoção de um maior conforto, são uma
espécie de refúgio, ainda que por um curto período, de uma jornada de trabalho
intensa, em constante trânsito. Não obstante, a construção e manutenção de pontos de
apoio, onde os entregadores possam efetivamente descansar, comer, carregar seus
aparelhos eletrônicos e suprir necessidades básicas, foram e são uma das principais
demandas da categoria, conforme expressaram os Breques dos Apps. Ainda, é
possível afirmar que uma parte considerável das interações presenciais da categoria
ocorrem nos points, visto que durante a maior parte da jornada os entregadores estão
em trânsito, tendo muitas vezes esses espaços como opção de parada.

Nesta trilha, vimos que esses espaços contrariam a lógica individualista construída
pelas plataformas, que isola os entregadores dos demais e os coloca na posição de

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Pedro Burity Borges

uma empresa, com interações limitadas ao aplicativo com o cliente e com o


restaurante. Ao propiciar o contato e o convívio mais frequente, mesmo que em
espaços não institucionais, os points possibilitam a convivência e o compartilhamento
das condições objetivas e subjetivas vividas pelos entregadores em seus processos de
trabalho, cotidianamente. Com isso, eles possibilitam o vicejar de um reconhecimento
comum e partilhado, que pode vir a ser traduzido no fomento a uma consciência de
classe. Por fim, também esses espaços possuem características similares a locais que
propiciaram a construção de lutas da categoria, como o caso dos centroids na
Espanha, fundamentais para o surgimento do coletivo RidersxDerechos.

Dessa mesma forma, os points colaboraram para a propagação e ampliação das


mobilizações da categoria de entregadores de Apps, como foi o caso dos principais
Breques dos Apps, na medida em que entregadores mais engajados compartilhavam
com colegas presentes nesses locais informações e objetivos da luta, promovendo o
debate e a construção de um movimento mais organizado. As redes sociais, que
também foram importantes para o desenvolvimento dos Breques, também possuem
ligações diretas e indiretas com os espaços, ao passo em que muitos grupos surgem
através das interações dos entregadores nos seus momentos de descanso.

Pelas características de efemeridade e alta rotatividade desses points, o artigo se


propõe a argumentar a potencialidade destes espaços para a construção de uma
consciência de classe e sua influência direta e indireta, através das interações digitais
oriundas destes e de outros espaços físicos, reconhecendo suas limitações - mas
também seu papel como ponto de partida para novas pesquisas - em mapear estes
espaços no Distrito Federal e em outros territórios, ou então se aprofundar em seus
processos de formação e consolidação, explorando ainda mais suas possibilidades.

Por fim, fica evidente a necessidade da consolidação de pontos de apoio estruturados conforme
as necessidades materiais da categoria, reivindicação tão presente em suas mobilizações, como
uma forma de melhoria robusta das condições de trabalho. A consolidação destes espaços
significa também um contraponto à lógica individualista do trabalho plataformizado, criando
um espaço de identificação e interação para a categoria crucial para o desenvolvimento de uma
consciência de classe, da forma como foi evidenciada neste artigo.

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Data de submissão: 30/09/2022


Data de aprovação: 22/01/2023

Este trabalho está licenciado sob uma licença Creative Commons Attribution-
NonCommercial-ShareAlike 4.0 International License.

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O TRABALHO EM PLATAFORMAS DIGITAIS NO BRASIL

A desmistificação do autogerenciamento no trabalho


em plataformas digitais
The demystification of self-management at work in digital platforms

Sara Nogueira de Araujo


Graduanda em Ciências Sociais pela Universidade de Brasília.
https://orcid.org/0000-0002-2003-0536

RESUMO: A ampliação do uso das tecnologias de informação e de comunicação


possibilitou novos modelos de gestão do trabalho. Com isso, esse artigo tem como
objetivo analisar os principais processos que têm contribuído para construção desse
novo modelo de gestão e como ele se dá na esfera do trabalho em plataformas
digitais, que apesar de se considerarem somente mediadoras, em verdade, têm
domínio sobre as ofertas, premiações e horários de cada um de seus “parceiros”. Esse
estudo foi desenvolvido a partir de uma abordagem qualitativa baseada em pesquisa
bibliográfica e aplicação de questionários survey, por meio de entrevistas. A partir
das informações levantadas, foi possível observar que a tecnologia pode ser utilizada
como ferramenta na manutenção do controle de uma organização sobre os(as)
trabalhadores(as), ao gerir a produtividade que simultaneamente possibilitam a
ocultação da imagem patronal, além de desvincular o indivíduo do processo de
trabalho e manter a opacidade em relação aos dados relevantes sobre as atividades
exercidas. Vale o ressalvo que o intuito dessa pesquisa não foi trazer uma perspectiva
tecnofóbica em relação ao trabalho em plataformas digitais, mas dar ênfase aos
fenômenos que favorecem o controle nesse modelo de gestão do trabalho.

Palavras-chave: plataformas digitais; autogestão; algoritmos; trabalho por aplicativo.

ABSTRACT: The expansion of the use of information and communication


technologies enabled new models of work management. Thus, this article aims to
analyse the main processes that have contributed to the construction of this new
management model and how it takes place in the sphere of work on digital platforms,
which, despite being considered only mediators, in fact, have mastery over the offers,
awards and schedules of each of their "partners". This study was developed from a

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A desmistificação do autogerenciamento no trabalho em plataformas digitais

qualitative approach based on bibliographic research and application of Survey


questionnaires through interviews. From the information collected, it was possible to
observe that the technology can be used as a tool in maintaining the control of an
organization on the workers, while managing the productivity that simultaneously
allow the concealment of the employer image, the individual from the work process
and maintain the opacity in relation to the relevant data on the activities performed. It
is worth noting that the purpose of this research was not to bring a technophobic
perspective in relation to work on digital platforms, but to emphasize the phenomena
that favour control in this model of work management.

Keywords: digital platforms; self-management; algorithms; app work.

1. INTRODUÇÃO

A Quarta Revolução Industrial trouxe consigo elementos importantes para


compreender as mudanças morfológicas no mundo do trabalho. Com o objetivo de
buscar melhorias nos processos de trabalho, como a aceleração e o aumento da
produtividade, essa revolução integrou a automação industrial a diferentes elementos
tecnológicos como big data1, computação em nuvem2, inteligência artificial3, internet
das coisas4 e robótica5. Como consequência deste processo, na Feira de Hannover, em
2011, o governo alemão apresentou a Indústria 4.0 com a finalidade de propor de forma
estratégica a inserção da alta tecnologia no mundo produtivo (ANTUNES, 2020).

Se antes as grandes corporações estavam limitadas ao tempo e espaço (GRAHAM;


ANWAR, 2020), esse fenômeno as beneficiou de modo que suas relações se tornaram
mais flexíveis e em alcance global, produzindo assim novos tipos de modelo de negócios.
A ampliação do uso das tecnologias de informação e da comunicação (TICs)
possibilitaram as grandes corporações passarem a adotar o estilo de “empresa enxuta” 6 e
1 “grande volume de dados, base para a produção de informações não estruturadas e estruturadas, produzidos
de maneira exponencial na contemporaneidade” (PIMENTA, 2013, p.02).
2 “um novo modelo de computação que permite a distribuição dos seus serviços de computação, incluindo
servidores, armazenamento, banco de dados e software seja feito de forma remota em qualquer lugar e
independentemente da plataforma utilizada e sem a necessidade de instalar os programas” (MOÇO;
CUNHA, 2020, p.46).
3“é um ramo da ciência da computação que usando algoritmos definidos por especialistas é capaz de
reconhecer um problema, ou uma tarefa a ser realizada, analisar dados e tomar decisões, simulando a
capacidade humana” (LOBO, 2018, p.04).
4 “refere-se à conexão em rede de objetos do cotidiano, permitindo a comunicação entre eles”(MOÇO;
CUNHA, 2020, p.46).
5 “é um ramo da tecnologia que engloba mecânica, eletrônica e computação, que atualmente trata de
sistemas compostos por máquinas e partes mecânicas automáticas e controladas por circuitos integrados,
tornando sistemas mecânicos motorizados, controlados manualmente ou automaticamente por circuitos
elétricos” (OTTONI, 2010, p.01).
6 “consiste na eliminação do desperdício que possa existir ao longo da cadeia de valor da organização”
(DURAN; BATOCCHIO, 2003, p.10).

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Sara Nogueira de Araujo

novas formas de trabalho se destacarem, como por exemplo, o trabalho em plataformas


digitais ou por aplicativos, que têm se tornado cada vez mais constantes e presentes no
cotidiano dos(as) trabalhadores(as), principalmente aqueles inseridos na informalidade.

A questão de pesquisa que este artigo se depara é a seguinte: em um mundo do trabalho


permeado por tecnologia e celeridade produtiva, como as grandes corporações mantêm
sob controle toda uma multidão de trabalhadores(as)? Assim, este artigo tem como
objetivo analisar os principais processos que têm contribuído para construção desse
novo modelo de gestão e como ele se dá na esfera do trabalho em plataformas digitais,
que apesar de se considerarem somente mediadoras, em verdade têm domínio sobre as
ofertas, premiações e horários de cada um de seus “parceiros”.

Essa investigação está baseada na perspectiva crítica de Dardot e Laval (2016) sobre
a racionalidade neoliberal e ao debate sobre o fenômeno de uberização no mundo do
trabalho de Abílio (2019) e Antunes (2020). Busca-se analisar, a partir desses
processos históricos, a construção da gestão de domínio e controle sobre os
trabalhadores/as nas plataformas digitais. Esse estudo foi desenvolvido a partir de
uma abordagem qualitativa baseada em pesquisa bibliográfica e aplicação de
questionários survey, por meio de entrevistas.

O artigo está organizado em três partes. A primeira parte apresenta o processo


histórico do neoliberalismo e como ele se afirma ao se tornar um influenciador
ideológico do discurso de um sujeito autônomo. Já a segunda parte traz explicação
sobre o que são as plataformas digitais e a discussão de como a tecnologia inserida na
funcionalidade dessas plataformas permite uma gestão de dominação tendo como
principal ferramenta os algoritmos. Por fim, a terceira parte aborda a ambiguidade
entre a autonomia e controle dentro do trabalho em plataformas digitais, baseado nos
relatos sobre a rotina de trabalho de entregadores por aplicativos.

2. NEOLIBERALISMO, GESTÃO E SUJEITO

Para compreender como a subjetividade neoliberal construída ao longo dos anos


propicia um cenário ideal para a fomentação do discurso de sujeito autônomo, antes é
necessário compreender como o neoliberalismo se afirma como influenciador
ideológico em escala global. É a partir dos anos 1970 que ocorrem mudanças
relevantes no âmbito político econômico que trazem um direcionamento para melhor
compreensão do contexto em que o neoliberalismo alcançou a hegemonia ideológica,
como coloca Harvey (2013). Nesta década, ocorre uma nova etapa de percepção do
espaço-tempo no modo de organização capitalista, devido a uma série de fatores, os
quais serão revisitados a seguir.

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A desmistificação do autogerenciamento no trabalho em plataformas digitais

Em 1973, a crise no mercado mobiliário somada à guerra árabe-israelense com


aumento na exportação de petróleo ao Ocidente desencadeou uma estagnação nas
economias capitalistas. Diante deste entrave, o sistema econômico capitalista buscou,
por meio do regime de acumulação flexível 7, soluções para lidar com as novas
possibilidades na organização industrial e do trabalho. Por exemplo, uma estratégia
de sobrevivência das corporações foi acelerar o tempo de giro do capital, já que elas
se encontravam com excedente inutilizável. Outro ponto de destaque foi que a
concorrência proporcionou constantes avanços tecnológicos, a automação, novas
linhas de produtos e os nichos de mercado. Repercussão que vai reestruturar a divisão
em escala global do trabalho, bem como a mobilidade de capital.

Com essas transformações, a “rigidez fordista” foi dando lugar a uma experiência
tempo-espaço que toma novos rumos, tornando-se mais dispersas e de maneira que o
controle sobre o trabalho flua com mais facilidade. No que tange às relações de
trabalho, a subcontratação acabou levando à flexibilização contratual, e essa, por sua
vez, levou à inviabilidade de vínculo direto com os(as) trabalhadores(as), facilitando,
desse modo, a dispensação dos(as) trabalhadores(as) conforme é interpretado por
Harvey (2013). A flexibilidade, nesse sentido, funciona como um meio de satisfazer as
necessidades específicas da empresa voltadas ao distanciamento da imagem patronal.

A implementação do processo de reestruturação a fim de recuperar o giro do capital,


propicia a transição da crise do fordismo para o surgimento da acumulação flexível.
Enquanto no modelo fordista o potencial de produção estava diretamente relacionado
ao número de funcionários, na acumulação flexível o objetivo é produzir mais com o
menor número possível de funcionários. Para os(as) trabalhadores(as) há uma
necessidade maior de qualificação, participação e intensificação no processo de
trabalho. Assim, qualquer lugar que tenha atividades industriais ou serviços é
atravessado pela fragmentação e precarização no mundo do trabalho (ANTUNES,
2002). Com equipes menores na produção, as indústrias desmantelam as forças de
mobilização coletiva dos(as) trabalhadores(as), recuperando mecanismos de controle
social. A intervenção do Estado de Bem-Estar Social8, ao enfrentar a crise econômica
de 1970, depara-se com um nível de gastos que gera um expressivo ônus econômico. A
atuação do Estado sobre o poder se fragiliza e as suas bases ideológicas passam a ser
questionadas. Surge assim a necessidade de um modelo de gestão social que engloba as

7 A Acumulação flexível caracteriza um conjunto de práticas que tem como objetivo confrontar e desconstruir
a rigidez relacionada ao fordismo. Tem como base a flexibilização dos processos voltados ao consumo,
produtos, mercado e trabalho. “Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos,
novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente
intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional” (HARVEY, 2013, p.140).
8 O Estado de Bem-Estar Social surge na Europa Ocidental e passa a ser adotado significativamente por outras
regiões na década de 1960. Torna-se responsável por assegurar a minimização das desigualdades sociais como
direito político para além da ideologia de liberdade e igualdade do liberalismo (BUFFON; COSTA, 2014).

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Sara Nogueira de Araujo

necessidades político-econômicas. Como alternativa para solucionar as questões


econômicas vigentes no período, o mercado passa a assumir o papel de regulador, tanto
das relações econômicas quanto das relações sociais (BUFFON; COSTA, 2014).
Assim o neoliberalismo9 é gestado com um discurso de que a não intervenção do
Estado traria crescimento econômico e, consequentemente, desenvolvimento social.

Diante disso se indaga: como os sujeitos que vivenciaram o Estado de Bem-Estar se


inclinaram às condições de trabalhos precários e ao aumento do desemprego? É nesse
contexto de processo histórico que o neoliberalismo vem se afirmar como um
influenciador ideológico sob a forma de uma racionalidade, ou seja, uma conduta que
quando introjetada pelo sujeito o faz ampliar a diferentes aspectos de existência
diretrizes de uma lógica governamental, como expõe Christian Laval:

O neoliberalismo é uma racionalidade que associa aspectos particulares: o


fato de ser conduzida pelo Estado, mas que supõe uma transformação do
Estado, as políticas neoliberais para transformar a sociedade são obrigadas
a transformar o próprio Estado (LAVAL, 2018, TV BOITEMPO).

O neoliberalismo diz respeito à forma como os interesses privados vão se traduzindo


em norma para as políticas públicas e estatais. Neste aspecto, com o objetivo de
compreender como essa nova gestão da sociedade capitalista influencia o sujeito,
Dardot e Laval (2016, p. 326) mostram como o interesse público se alinha cada vez
mais ao interesse do setor privado, tendo como consequência uma alteração do sujeito
político. Essa racionalidade faz a sociedade passar a ser vista como uma “empresa”, e
o sujeito produtivo se torna “ultrapassado”, e manifesta-se a necessidade de “uma
nova norma subjetiva”. A construção de um “sujeito empresarial”, “sujeito
neoliberal” ou “neossujeito” então surge no horizonte, um sujeito que não se refere
mais às técnicas de adestramento humano, tal qual aquele oriundo do período em que
o binômio taylorista-fordista havia se tornado hegemônico.

Busca-se refinadamente tomar domínio da subjetividade desse sujeito, para que ele se
envolva inteiramente ao que lhe for atribuído cumprir. É, portanto, um sujeito do
“envolvimento total de si mesmo”, com condutas direcionadas a fim de que passe a
trabalhar para empresa como se fosse trabalhar para si. Marx (2004) traz que a
intenção nesse caso é substituir a alienação com o trabalho pelo envolvimento com o
trabalho, ou seja, o engajamento aqui é a tentativa de suprimir a própria alienação
através de técnicas que envolvem motivação, estímulo e incentivo. Cada indivíduo
deve aprender a ser “ativo” e “autônomo”, operando a si mesmo para desenvolver
estratégias que aumentem seu próprio capital humano.
9 “O neoliberalismo pode ser definido como o conjunto de discursos, práticas e dispositivos que determinam um
novo modo de governo dos homens segundo o princípio universal da concorrência” (DARDOT; LAVAL, 2016, P.17)

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A desmistificação do autogerenciamento no trabalho em plataformas digitais

Com isso, a violência aqui também acaba se reconfigurando, por transformar as


pessoas em sujeitos egoístas, e, em comparação a isso, Dardot e Laval (2016, p. 36)
apontam que o “eu e minhas competências”, “eu e minha maneira de agir”, “eu e meu
cenário de sucesso” é um processo de individualização em que o egoísmo se torna
uma das consequências psíquicas nesse formato de gestão no trabalho. Essa
individualização acaba por enfraquecer as lutas coletivas por melhores condições,
mesmo em um cenário do mundo do trabalho mais complexo e diversificado.

O desgaste dos direitos trabalhistas, a reprodução de insegurança frente às novas


formas de emprego e a dependência dos(as) empregados(as) aos(às)
empregadores(as) acabam facilitando a instalação da neogestão nas organizações. A
novidade da neogestão reside no modelo que permite que os indivíduos sejam mais
expostos a riscos, com o comportamento de quem está disposto(a) a enfrentar
situações cada vez mais duras em sua rotina. A proposta desse novo modo de governo
é que a empresa deixe de ser um espaço de comunidade ou realização pessoal e passe
a ser um espaço de competição, das inovações, das mudanças e adaptação contínua ao
mercado, da excelência e “falha zero”. Produz, assim, um sujeito orientado pela
lógica de mercado que o torna competitivo, além de fomentar a concorrência entre os
trabalhadores(as), enfraquecendo laços de solidariedade e coletividade.

3. AS PLATAFORMAS DIGITAIS

Além da racionalidade neoliberal transformar o sujeito no “empreendedor de si


mesmo”10 para alimentar a lógica de competição do mercado, essa competição, por
consequência, também demandou constantes avanços tecnológicos, novas linhas de
produtos e nichos de atuação. A proposta da Indústria 4.0 de inserção da alta
tecnologia no mundo produtivo possibilitou que as grandes corporações adotassem o
estilo de “empresa enxuta”, pois agora não há mais necessidade de se limitar ao
tempo e espaço, como outrora. Assim, esse fenômeno beneficiou as empresas ao
tornarem suas relações mais flexíveis e com alcance global, produzindo assim novos
tipos de modelo de negócios, como as plataformas digitais.

D’andrea (2020) traz que as plataformas digitais são constituídas a partir de uma
arquitetura computacional, por meio da conexão e trocas de dados. Na definição de
Srnicek (2016, p.91), “são estruturas digitais que possibilitam a interação entre dois ou
mais grupos” e que permitem, por meio de dispositivos, uma interação entre usuários,
elaborando, a partir delas, seus produtos e serviços. Assim, é defendido que o modelo
10 O empreendedor de si mesmo deriva da concepção foucaultiana do HOMO ECONOMICUS. Sujeito que tem
sua subjetivação atravessada por valores empresariais. “A empresa é promovida como modelo de
subjetivação: cada indivíduo é uma empresa que deve se gerir e um capital que se deve fazer frutificar”
(DARDOT; LAVAL, 2016, p. 378).

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de negócio das plataformas digitais é ser essa estrutura responsável por intermediar a
prestação de serviços e a demanda dos clientes supostamente de forma neutra.

Por serem estruturas que carregam em suas arquiteturas normas inscritas, não há
neutralidade, pois, as plataformas se sustentam por meio de trocas de dados e são
organizadas através de algoritmos. Além de serem formalizadas como propriedade, as
plataformas são “guiadas por modelos de negócios e governadas por meio de termos de
acordo dos usuários” (GROHMANN, 2020, p. 95). Os principais componentes dessas
plataformas estão envolvidos em capturar e selecionar dados (dataficação) e personalizar
seus conteúdos com base na vigilância e no controle sobre os trabalhadores(as).

Sabe-se que por um longo período o indivíduo esteve ligado diretamente ao seu local
de trabalho. O que exigia, por seu turno, que suas atividades, objetos de trabalho e
resultados que também estivessem ligados a este local. Inclusive, no período
taylorista, havia uma obsessão e toda uma mensuração mais sistemática do trabalho,
cabendo ao gestor assumir a função de reunir todo conhecimento, antes detido pelos
trabalhadores, o que, segundo Woodcock (2020, p. 25), tinha por objetivo “classificá-
lo, tabulá-lo e reduzi-lo a regras, leis e fórmula”.

Com as plataformas digitais, o trabalho pode ser realizado fora do espaço físico das
empresas e suas ferramentas passam a ser dispositivos tecnológicos, como um
smartphone. Os(As) trabalhadores(as) podem exercer sua atividade a qualquer tempo
e de qualquer lugar, e, consequentemente, nesse fluxo a ligação entre os(as)
trabalhadores(as) e o objeto de trabalho é rompida. Como alternativa de superar a
dificuldade em estabelecer objetivos e avaliar as performances dos(as)
trabalhadores(as) de plataformas digitais foram aplicadas tecnologias no processo
prático dessa categoria de trabalho.

Nas plataformas digitais, o(a) gestor(a) é substituído(a) pelos algoritmos 11. A gestão
algorítmica é responsável por vigiar, premiar, cronometrar a execução da tarefa,
mensurar desempenho e até mesmo demitir os trabalhadores(as), como será exposto na
terceira seção deste artigo. As informações coletadas por meio desse novo modelo de
gestão possui uma motivação que até então não é explícita aos(às) trabalhadores(as).
Ao contrário de períodos e modelos anteriores, aqui há mais opacidade e ausência de
informação na relação gerencia-trabalhador. É dessa maneira que essas grandes
corporações mantêm sob controle toda uma multidão de trabalhadores(as).

Os(as) trabalhadores(as), por exemplo, não têm acesso aos algoritmos, que ainda se
modificam – ou são modificados – conforme a necessidade das plataformas digitais.

11 De acordo com Bhargava (2017, p. 19), “Algoritmo é um conjunto de instruções que realizam uma tarefa”.

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Além disso, eles também servem como ferramenta de controle e avaliação dessa
categoria de trabalhadores(as), principalmente quando calculam a mensuração de
produtividade dos(as) entregadores(as). Destaca-se, assim, que os algoritmos surgem
como elemento central para pensar a gestão nesse modelo de negócio.

Para melhor compreender o que foi exposto até aqui, analisaremos uma empresa de
plataforma digital que conseguiu pôr em prática os elementos da ideologia da
subjetividade neoliberal em compasso à gestão algorítmica. Essa fusão entre
tecnologia e neoliberalismo, no mundo do trabalho, resultou na concretização do
processo de precarização do trabalho que já ocorria ao longo dos anos, um fenômeno
conhecido como uberização.

4. A UBERIZAÇÃO

Segundo Bhargava (2017, p.19), a Uber12 é uma empresa fundada em 2010, no estado
da Califórnia, Estados Unidos, por Garrett Camp e Travis Kalanick. A empresa
surgiu em 2009, a partir da necessidade de facilitar as solicitações de serviço de
viagem. Ela é responsável por administrar a plataforma digital de mesmo nome que
faz a conexão entre motoristas parceiros da empresa e passageiros consumidores.
Nesse fluxo, os(as) passageiros(as) são atraídos(as) pela possibilidade de uma
prestação de serviços confortável e de fácil acesso, enquanto os(as) motoristas
parceiros(as) já se voltam pelas oportunidades de maior ganho e flexibilidade de
horário de trabalho. Em cenários com alto índice de desemprego, o trabalho de
entregas também se torna uma possibilidade para complementação de renda.

A imagem da Uber está fortemente baseada no uso da tecnologia que, segundo a


mensagem transmitida, faz com que as pessoas acreditem que esse modelo de serviço
seja um “futuro inevitável”, chamando assim a atenção dos acionistas de mercado de
risco. A necessidade de se atrelar a imagem de inovação tecnológica contribui para a
justificativa de se isentar de alguns compromissos como, por exemplo, o de não ser
responsável pela segurança durante as viagens, nem arcar com os custos gerados pelo
veículo e impostos. Ocorre que toda a prosperidade de empresas como a Uber, que
atuam em plataformas digitais e se dizem intermediadoras entre clientes e
trabalhadores(as), está relacionada à descentralização de suas responsabilidades
legais e risco que agora são transferidos a uma multidão de trabalhadores(as).

Moda (2020) coloca que para que os motoristas possam atuar, é necessário que os
países adotem políticas de flexibilidade. Enquanto a flexibilidade para o motorista

12 UBER. Fatos e dados sobre a Uber. 2020. Disponível em:< https://www.uber.com/pt- BR/newsroom/fatos-e-
dados-sobre-uber/>. Acesso em 17 jan..2021.

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Sara Nogueira de Araujo

está relacionada à autonomia no horário que vai exercer suas atividades de trabalho,
para a empresa a flexibilidade diz respeito diretamente a interferência nas legislações
de Estado. Para Abílio (2019) e Antunes (2020), a Uber é, nesse sentido, uma das
principais representantes desse movimento de desregulação de legislações, sobretudo
trabalhistas, que vem ocorrendo ao longo dos últimos anos.

Por isso, e apoiando-se nesse exemplo paradigmático, que um conjunto de


investigações passou a denominar como “uberização” esse fenômeno que envolve
plataformas digitais, trabalho por aplicativos e/ou outros meios digitais ou
digitalizados – do qual não está restrito apenas a empresa Uber. Com isso, Abílio e
Antunes, expoem em suas produções que na prática, a tecnologia tem sido usada
como ferramenta de controle pelo capital que vai desde o incentivo ao
autogerenciamento até o distanciamento da legislação trabalhista.

Para Ricardo Antunes (2020, p. 11), a uberização “é um processo no qual as relações


de trabalho são crescentemente individualizadas e invisibilizadas, assumindo, assim,
a aparência de ‘prestação de serviços’ e obliterando as relações de assalariamento e
de exploração do trabalho”. Cabe aqui a comparação com Abílio (2019), que aborda a
uberização como um novo estágio de exploração do trabalho que influencia de
maneira qualitativa tanto a legislação trabalhista, quanto a forma em que as empresas
passam a gerenciar e controlar o trabalho, de modo também a expropriá-lo.

Por outro lado, Grohmann (2020) defende o uso do termo “plataformização do trabalho”
ao invés de “uberização”, por acreditar que seja mais heterogêneo e complexo para se
compreender a financeirização, a dataficação e a racionalidade neoliberal.

Se observada com cuidado, a uberização, na perspectiva de Abílio (2019) e Antunes


(2020), fomenta uma discussão que envolve os processos históricos de precarização
relacionados à morfologia do trabalho, que transpassam uma nova ambientação
tecnológica como um novo modelo de negócio. Com isso, pode ser questionado o que
a empresa Uber tem a ver com isso? Foi através do modelo de negócio dessa empresa
que se pôde observar o intercruzamento – ou até a combinação – entre a terceirização,
a informalidade e a flexibilidade, algo que Ricardo Antunes (2020) designa como a
“trípode destrutiva” prosperada na prática.

A influência direta de grandes empresas direciona as ações do Estado frente à


flexibilização legislativa que afetam diretamente os direitos que resguardam os
trabalhadores(as). Baseado em uma racionalidade neoliberal que volta aos (às)
trabalhadores(as) toda a responsabilização do fracasso. A tecnologia em si é só uma
ferramenta, mas quando regida aos interesses do capital, torna-se uma ferramenta de
manutenção do controle sobre os trabalhadores(as). Em suma, a uberização afirma o
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A desmistificação do autogerenciamento no trabalho em plataformas digitais

insucesso da ideologia neoliberal ao pregar que o crescimento econômico gera


desenvolvimento social. Desse modo, tornou-se urgente apresentar a perspectiva dos
trabalhadores(as) sobre sua rotina de trabalho em plataformas digitais, mas antes é
necessário compreender a metodologia utilizada neste estudo.

5. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS DA PESQUISA EMPÍRICA

Em um primeiro momento, adotamos por procedimentos metodológicos uma


sistemática revisão na literatura especializada – em livros, artigos e reportagens –,
com autores e autoras que investigaram o tema proposto. A revisão se baseia em
fontes de produção que dão ênfase à perspectiva e experiências nas atividades dos
trabalhadores(as) que atuam nas plataformas digitais, como o laboratório de pesquisa
DigiLabour13. Os principais descritores utilizados na busca foram: autogestão,
trabalho em plataformas, uberização, algoritmos e outros termos distribuídos e
devidamente conceituados neste artigo.

Além disso, utilizou-se a ferramenta de aplicação de questionários do tipo survey,


elaborado em conjunto com o grupo de pesquisa “Mundo do Trabalho e Teoria
Social”14, aplicados no período de 2020 a 2021, via Google Meet, devido ao contexto
de pandemia do Covid-19. A aplicação do questionário se deu pela autora deste artigo
e demais membros do grupo de pesquisa, e o instrumento possuía questões que
versavam sobre o perfil dos(as) trabalhadores(as), rotina de trabalho e perspectiva de
organização política da categoria.

Como critérios de seleção dos entrevistados, a técnica usada foi a de amostragem bola
de neve (Dewes, 2021). Essa técnica se baseia nos primeiros indivíduos que
compõem a amostra, chamados de sementes, indicarem novos indivíduos que
possuem as características similares e necessárias para análise do estudo. Geralmente,
é aplicada em grupos de difícil acesso e demonstra resultados positivos
principalmente em pesquisas qualitativas.

Foram entrevistados 39 motociclistas de Brasília e do entorno, com o objetivo de


abarcar as perspectivas e experiências dos(as) trabalhadores(as) que desempenham
atividades profissionais nas plataformas digitais. Para nossos fins, utilizamos trechos
13 Coordenado por Rafael Grohmann, DigiLabour é um laboratório de pesquisa que sistematiza informações e
produções relacionadas a plataformização, trabalho digital, autogestão, entre outros. Disponível
em:<https://digilabour.com.br/>. Acesso em 12 de fev. de 2023.
14 Grupo de pesquisa liderado por Ricardo Colturato Festi vinculado à Universidade de Brasília (UnB), tem
como um de seus principais objetivos refletir sobre os novos desafios que o mundo do trabalho impõe à teoria
social. Seus estudos e pesquisas atuais buscam dar conta de três eixos temáticos: (1) O mundo do trabalho na
Era Digital, (2) Sociologia da sociologia do trabalho e (3) Mutações e crises do capital. Disponível em:
<dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/5458347222787004>. Acesso em 12 de fev. de 2023.

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Sara Nogueira de Araujo

transcritos das falas de 04 dos 39 motociclistas entrevistados, tendo em vista que os


quatro entrevistados selecionados trazem em suas falas ricos detalhes sobre conteúdos
que versam sobre a rotina de suas atividades de trabalho como delivery, assim como
suas impressões acerca de tudo que vivenciam em seu cotidiano.

Em se tratando do perfil sociodemográfico15: 92% dos entrevistados são do sexo


masculino e 8% do sexo feminino. No que diz respeito à idade, a maior concentração é
de 48% dos entregadores estarem na faixa etária entre 19 e 30 anos. Outro ponto
relevante no levantamento de dados é que 68% dos entregadores se reconhecem como
pretos, sendo 52% pardos e 16% negros. Quanto às empresas de atuação, 90% realizam
entregas para o IFood, seguido de 46% (UberEats), 41% (99food), 30% (Rappi), 12%
(Loggi) e 3% (James). 57% moram no Distrito Federal, em sua maioria, nas regiões
administrativas de Ceilândia, Taguatinga, Santa Maria e Guará. No entanto, 84% dos
entregadores atendem demandas no Plano Piloto. Assim, o maior tempo de deslocamento
de residência até a região de entrega dura em média de 30 a 40 minutos (CUT, 2021).

Devido aos desafios de pesquisa referentes ao acesso aos dados sobre trabalho e
gestão das empresas de plataformas, essas informações serão mobilizadas a partir dos
depoimentos dos(as) trabalhadores(as) de aplicativos entrevistados, aqui apresentados
sob a forma de trechos transcritos. Ressalta-se que outros estudos mobilizaram
semelhantes aportes metodológicos, como Moda (2020) e Castro (2020).

6. O TRABALHO EM PLATAFORMAS E SUAS CONTRADIÇÕES

A gestão por meio dos algoritmos se apoia em dados do prestador e em um perfil


previamente elaborado por ele, junto à plataforma. Neste sentido, as empresas de
plataforma fazem algumas exigências e são responsáveis por aprovar, ou não, o
cadastro de seus parceiros. Com exemplificação, tem-se as informações disponíveis nos
sites do Ifood16, Loggi17, 99food18 e Uber Eats19. Para ser um entregador “parceiro” é
necessário, em geral, baixar o aplicativo, fazer um cadastro, selecionar meio de entrega
(a pé ou veículos), anexar documentos solicitados e aguardar aprovação. Ao optar por
15 O grupo de pesquisa “Mundo do Trabalho e Teoria Social” foi responsável pelos resultados parciais quanto
aos(às) trabalhadores(as) do Distrito Federal e podem ser melhor consultados no relatório “Condições de
trabalho, direitos e diálogo social para trabalhadoras/es do setor de entrega por APP em Brasília e Recife”. O
período pesquisado compreendeu a produção publicada entre os anos de 2019 e 2021 – ou seja, o período pré
e pós-pandemia do Covid-19.
16 Sobre o processo de cadastro para se tornar um entregador. Disponível em:<
https://institucional.ifood.com.br/abrindo-a-cozinha/ifood-entregadores>. Acesso em: 20.08.2021
17 Sobre o processo de cadastro para se tornar um entregador. Disponível em: < https://www.loggi.com/fazer-
entregas/>. Acesso em: 20.08.2021.
18 Sobre as opções de categoria do entregador. Disponível em: <https://food.99app.com/pt-BR/entregador>.
Acesso em: 17.01.2021.
19 Sobre o processo de cadastro para se tornar um entregador. Disponível em:< www.ubereats.com>. Acesso em
17.01.2021.

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A desmistificação do autogerenciamento no trabalho em plataformas digitais

fazer entregas de moto na Uber Eats, por exemplo, é necessário anexar fotos da carteira
nacional de habilitação (CNH) e certificado de registro e veículo (CVL).

O Ifood oferece ao entregador duas opções de categoria para elaborar seu perfil: a nuvem
e o fixo. Na primeira, o operador não está vinculado a nenhum Operador Logístico (OL)
e não trabalha com horários ou local estabelecidos, enquanto na segunda o entregador
fixo está vinculado a um operador logístico (OL). Segundo IFOOD (2021), “O OL é uma
empresa contratada pelo Ifood para administrar grupos de entregadores disponíveis em
dias e horários pré-estabelecidos”. Diante do apontado, percebe-se assim que cada
plataforma possui uma política e burocracia mínima de exercício:

Nós temos duas categorias de entregadores. Nós temos a Nuvem e os OLs.


Os Operadores Logísticos têm um vínculo com uma empresa terceirizada
pelo Ifood. No meu caso, eu tinha um vínculo, mas não tinha direitos
trabalhistas. (E29, homem, 44 anos).

Eles têm duas categorias de entregadores os nuvens – o nuvem é aquele


cara que ele pode trabalhar na hora que ele quiser, liga aqui e pode
desligar daqui meia hora; e tem a outra classe, que é a classe dos OL. Esse
aí detém, tipo 80% da demanda da entrega (E08, homem, 35 anos).

A divisão entre duas categorias para os(as,) entregadores(as) é apresentada como


possibilidade de escolha, no entanto, conforme exposto acima, a preferência para volume
de entregas tende a ser reservada a quem escolhe ter vínculo com as empresas terceirizadas
pelo Ifood. Dessa forma, a empresa de plataforma se distancia como responsável pelo
entregador e acaba por terceirizar a gestão e logística das demandas de entrega.

Outro ponto a ser observado é que nessas empresas, no caso do delivery, em sua
maioria, a prestação de serviço de entregas de alimentos comporta a maior demanda
dos clientes. O aplicativo seleciona, através de algoritmos, quem vai fazer a entrega,
onde será a entrega, e decidem o valor da taxa a ser recebida pelo serviço, além de
pressionarem os(as) entregadores(as) a não negarem as demandas que são
constantemente atribuídas pela plataforma:

Nós não temos a liberdade de escolher se fazemos ou não fazemos uma


entrega. Tem entregas de 40km para te pagar aí R$19,00, saí menos de R$
0,50 por quilômetro. Apesar de eu não ter vínculo trabalhista, apesar de eu
ser autônomo, eu não posso rejeitar a entrega. Eu sou obrigado a aceitar a
entrega. Eu sou obrigado a estar logado às 10h da manhã, eu sou obrigado
a ficar até 24h, e intervalo eu só tenho 40min. Eu não posso falar eu vou
folgar amanhã, vou viajar amanhã e quero ficar dez dias sem trabalhar, eu

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não tenho essa autonomia. Eu sou um autônomo, e não tenho autonomia


sobre minha carga de trabalho, sobre o valor que quero receber das
entregas, sobre eu fazer ou não as entregas. Sou obrigado a fazer a entrega
e aceitar o valor que eles querem me pagar (E29, homem, 44 anos).

O aplicativo exige tempo pra você chegar em um determinado lugar. Se


ele está te exigindo tempo pra chegar em determinado lugar, você vai
correr. Se você correr, o risco aumenta...(E08, homem, 35 anos).

Logo, constata-se que é ao longo da rotina de entregas que os(as) trabalhadores(as)


pode identificar a ausência da autonomia prometida no convite de parceria com as
empresas de plataforma de entrega, é nesse momento que a desmistificação do
autogerenciamento passa a acontecer. Além, é claro, dos riscos assumidos no trajeto
de entregas incentivados pela própria racionalidade neoliberal que dentro do contexto
de empresas como o Ifood, buscam sujeitos que visam alcançar suas metas
independentemente dos riscos.

No decorrer de seu funcionamento, os algoritmos cruzam os dados de desempenho


dos entregadores com os dados de avaliação do(s) cliente(s), gerando uma espécie de
ranqueamento que serve, por sua vez, como um método de seleção dos entregadores.
Vejamos as falas a seguir:

São dois tempos: o tempo que chega ao restaurante, a primeira avaliação, e


o tempo do restaurante ao cliente. A abordagem ao cliente...Se a senhora faz
um pedido e eu entrego dentro da hora, com educação, formalidade, bom
trato e a senhora colocar lá que o entregador foi grosso, mal educado e
atrasou, o aplicativo vai contar sua fala. Aí eu vou receber uma advertência
só que eu não vou saber porque eu fui punido. O entregador nuvem não tem
esse acesso. Então é comum o entregador ficar dois dias bloqueado ou trinta
dias bloqueado, mas não sabe porque foi bloqueado (E29, homem, 44 anos)

Eles avaliam a rapidez, gentileza...(E49, homem, 37 anos)

Geralmente os aplicativos são todos iguais. Geralmente eles avaliam o


tempo que você leva para poder realizar a entrega e com que qualidade
você usa para realizar essa entrega. Consultando o quê? A avaliação do
restaurante, a avaliação do cliente e o tempo que você levou para fazer
essa entrega. Eles montam um perfil ali pra você para dizer quantas
corridas você vai fazer no dia a dia. Se você recusar alguma corrida você
já não precisa continuar mais lá trabalhando. Você pode voltar para casa
porque eles não vão nem te mandar corrida, nem nada. Se você está

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recusando é porque você não está disponível para eles. Às vezes a pessoa
acha o valor que pegou um pouco abaixo, fala esse valor não compensa
pra eu fazer, aí acaba recusando. É aí que a pessoa acaba se prejudicando
porque o próprio aplicativo te prejudica com isso. Dá meio que uma
punição ali (E22, homem, 23 anos)

As empresas de plataformas digitais mensuram a qualidade de entrega produzindo,


assim, um ranqueamento onde as avaliações necessárias dependem de terceiros que vão
determinar ou não a continuidade da atividade do entregador. A gestão algorítmica não
permite uma relação gerência-trabalhador, onde os dados coletados para o rankin não
possam ser contestados pelo entregador. Toda a comunicação do entregador com a
gerência sobre imprevistos no trajeto da entrega ou reclamação de clientes é realizada
por meio do aplicativo. Entretanto, essa comunicação nem sempre se mostra
transparente e responsiva quanto aos imprevistos relacionados à natureza do trabalho:

Eles me deram um endereço faltando um pedaço e eu caí na besteira de seguir


pelo mapa deles, do aplicativo. Aí eu andei até debaixo do prédio, cheguei lá
tentei falar com o cliente via chat, tentei falar com o suporte da Uber via chat
também. Não me responderam. Aí eles me bloquearam por causa disso...eles
não prestam uma assistência digna pra gente, bloqueiam sem justificativa,
essa que é a verdade. Pode perguntar pra qualquer entregador que de mil que
você entrevistar, os mil vão dizer isso. (E08, homem, 35 anos).

Comigo não aconteceu não de acidente essas coisas, mas com colega ele
teve que pagar até o pedido porque para correr atrás foi canseira, para
procurar o aplicativo porque lá vai ficar como se você não se entregasse. O
cara preferiu que descontar dele do que correr atrás porque era mixaria
(E49, homem, 37 anos).

Apesar de não ter uma imagem patronal explícita, essas empresas mantêm controle
sobre os(as) trabalhadores(as). Vale pontuar ainda que, toda a execução da rotina de
atividades dos entregadores comprova uma relação de subordinação, onerosidade e
habitualidade, mesmo sem necessariamente ter um espaço físico. Assim, em alguns
casos, foi possível reconhecer legalmente o vínculo entre empresa de plataforma e o
trabalhador(a) como ocorreu no TRT-15, em Campinas, e no TRT-3 em Minas
Gerais. No caso que ocorreu em Campinas, a magistrada reconheceu vínculo
trabalhista entre o Ifood e o entregador ao identificar a relação de pessoalidade,
subordinação, fiscalização e controle da atividade, onerosidade e transferência ilícita
de riscos do negócio. Pontos que também podem ser identificados nas falas dos 04
entregadores anteriormente apresentados.

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Sara Nogueira de Araujo

No início, o discurso de “empreender”, de “ser autônomo”, de “ser seu próprio patrão”


convencia os(as) trabalhadores(as), se tornando eficaz principalmente porque a
exploração é indireta, opaca. Mas ao vivenciar uma rotina de trabalho contínua sob esse
modo de gestão, nos parece que as contradições entre o discurso neoliberal empregado
pelas plataformas esbarram nos limites das atividades reais dos(as) trabalhadores(as),
permitindo a eles identificarem as contradições inerentes a esse contexto de trabalho.

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como exposto, o neoliberalismo alinha o Estado ao interesse do mercado que é


regido por uma perspectiva empresarial. O que, por conseguinte, vai impactar as
políticas públicas, principalmente as legislações trabalhistas, que passam por
flexibilização no que tange a seguridade dos(as) trabalhadores(as). Essas, somadas à
inserção da tecnologia no mundo do trabalho, permitem omitir a imagem patronal,
desassociar o indivíduo do processo de trabalho e manter a opacidade em relação aos
dados relevantes sobre as atividades exercidas. O uso da tecnologia pelo capital como
forma de vigília e controle do trabalho está intrinsecamente relacionado à exploração
do trabalho humano, seja explícita ou, nesse caso, subjetivamente.

Conforme observado até aqui, identificou-se no contexto do trabalho em plataformas


os principais processos para a construção e afirmação da mistificação do
autogerenciamento: a subjetividade neoliberal como molde para um indivíduo
centralizado no trabalho e na competitividade; a uberização como fenômeno
facilitador para possível generalização da precarização do trabalho; e os algoritmos
como ferramentas de vigilância e controle.

O processo de desmistificação do autogerenciamento no trabalho em plataformas


digitais ocorre quando a exploração passa a ser percebida e exposta pelos
trabalhadores(as). Dessa forma, torna-se imprescindível novas pesquisas que
busquem compreender como esses processos, ao se interconectarem, contribuem para
as transformações no mundo do trabalho. Já que é por meio dessa compreensão que
se torna possível confrontar o controle e a precarização, além da necessidade e
efetividade de uma legislação que dê o devido suporte aos(às) trabalhadores(as)
digitais, assegurando-lhe prescrições de como deve ser sua profissão e atuação, além
de proteção na figura de direitos sociais.

Vale o ressalvo que o intuito dessa pesquisa não foi trazer uma perspectiva tecnofóbica
em relação ao trabalho em plataformas digitais, mas dar ênfase aos fenômenos que
colaboram para o controle pelo capital sobre o trabalhador/a nesse contexto de gestão

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A desmistificação do autogerenciamento no trabalho em plataformas digitais

do trabalho. O anseio de que a tecnologia poderá emancipar o homem do trabalho ainda


não será suprida enquanto estiver atrelada à exploração do trabalho humano.

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Data de submissão: 28/08/2022


Data de aprovação: 22/01/2023

Este trabalho está licenciado sob uma licença Creative Commons Attribution-
NonCommercial-ShareAlike 4.0 International License.

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