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Ensaio

QUEM TEM MEDO


DE DESISTIR?
A ginasta Simone Biles, a tirania da performance
e o receio de dizer não

TEXTO CARLOS FERRAZ ILUSTRAÇÕES MAURICIO PLANEL

Após o adiamento por um ano em à disputa, decidem, para surpresa de dessa vez, são da vida real. Se é que cabe
virtude da Covid-19, as Olimpíadas todos, não desempatar, compartilhando chamarmos de vida real uma Olimpíada.
de Tóquio saíram do papel suscitando o primeiro lugar e o ouro em uma Embora alavancada por evidentes
emoções ambíguas. De um lado, medo celebração entusiasmada e comovente, interesses geopolíticos, publicitários
e revolta com um possível agravamento de puro fair play. e empresariais, o maior evento
dos níveis de infecção, ocupação Nessa mesma atmosfera se poliesportivo do mundo produz mais do
hospitalar e letalidade da virose. encontravam os atletas do skate que que lucros, poder político, rivalidades
Preocupações cujos resultados finais torceram animadamente pelos seus e vaidades, de indivíduos e grupos.
demonstraram não ser infundadas. rivais. Camaradagem que revelava não É uma grande festa que congrega o
De outro, nostalgia e ânsia por ver o serem antônimas as ações de competir planeta em torno do esforço e do talento
noticiário novamente dominado pelo e cooperar. O skate é mais do que uma humanos para a prática de habilidades
belo, o incrível e o raro. De pão e de circo mera modalidade esportiva. É um singulares e de superação de limites.
também é feita a vida. E os 15 dias de estilo de vida criativo, descontraído e Evoca de pronto uma atmosfera de
jogos ofertaram as desejadas exibições desafiante. Por último, no atletismo, disponibilidade favorável ao inusitado,
do maravilhoso. desnorteado e aflito ao perceber ter ao raro e ao exemplar. Em Tóquio,
Os bônus desta edição foram confundido o estádio de sua competição, acontecimentos do gênero vieram
além de recordes quebrados e o velocista jamaicano Hansle Parchment à tona, mas não só na clave do que
atuações memoráveis. Houve gestos recebe o auxílio da voluntária Trijana suscita aplausos, sorrisos e lágrimas,
de desprendimento, colaboração e Stojkovic, que não só o orienta como também na que desperta respeito,
altruísmo. Dois atletas do salto em altura, lhe empresta o dinheiro para o táxi, cuidado e reflexão. A multipremiada
Gianmarco Tamberi, da Itália, e Mutaz a fim de que chegue a tempo ao local ginasta dos Estados Unidos, Simone
Barshim, do Qatar, adversários e grandes correto da prova. Dias depois, Parchment Biles, decide abandonar as provas
amigos, chegam à final como os mais revisita Trijana, trazendo consigo uma movida por problemas emocionais
bem classificados. Empatam na marca medalha de ouro, um presente, os de natureza depressiva e ansiosa.
dos 2,37m e realizam com afinco as três dólares emprestados e os seus sinceros Caso semelhante havia ocorrido
tentativas de praxe visando superar os agradecimentos. Parece estarmos recentemente em Roland Garros.
2,39m, mas sem um vencedor. Frente falando de personagens de Rubem A tenista Naomi Osaka, campeã de
à opção de baixar o sarrafo e voltarem Braga, em As boas coisas da vida. Mas, quatro títulos do Grand Slam, resolveu

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interromper a sua participação no


evento após episódios de estresse Os incômodos das
atletas se parecem
agudo em entrevistas coletivas. No
US Open, estendeu a decisão de
afastamento para todo o circuito, por

com os de todos nós.


tempo indeterminado. De Osaka e Biles
eram aguardadas novas conquistas
e premiações. Mas a conjugação

Fora dos estádios, a


inusitada entre o corpo das proezas
e das vulnerabilidades as posicionou
na encruzilhada entre a glória, o

vida contemporânea
patriotismo, a opinião pública e a
saúde psicológica, posta em risco ou
já debilitada. Duas atletas de ponta,

segue uma cadência


com chances reais de vitória optaram
pelos cuidados pessoais e incorporaram
à gramática dos esportes de alto
rendimento o verbo desistir.
Até estes incidentes, o público seguia
convicto de que nada poderia retirar
semelhante. O atleta
de uma prova um atleta de alto nível a
não ser uma lesão física incapacitante, encarna e realiza os
nossos valores mais...
doping ou decisões de ordem política.
Razões emocionais estavam fora do
script. Estávamos acostumados a esperar
de atletas esforços sobre-humanos,
expressões de abnegação e de sacrifício.
À bravura dos incansáveis,
somavam-se as performances brilhantes
de inúmeros atletas da atualidade e
de figuras emblemáticas do rol da À frente de seu tempo, Nelson de atletas de alto nível e da inclusão
fama, transmitindo a ideia de que Rodrigues imaginava uma ferramenta do treinamento psicológico na linha
era possível executar as estratégias e fundamental para o esporte competitivo. de frente das preocupações e do
os movimentos com naturalidade e Sabia que atletas se veem diante de planejamento estratégico. Ficou claro
sem maiores transtornos. Pareciam tarefas que requerem todas as suas que vocação, talento e preparo físico,
suficientes treino, talento, determinação forças e habilidades, físicas e mentais. tático e técnico não impedem falhas
e vontade. Ledo engano. Estão em constantes testes de seus no imprevisível e delicado sistema de
Em 1956, na crônica Freud no futebol, limites, e miram em uma janela de regulação emocional do organismo
Nelson Rodrigues já antevia o necessário oportunidades e de sucesso estreita e humano. As mudanças aspiradas
cuidado com a alma para o bom alta. Assim é constituída a arena das há décadas por Nelson Rodrigues se
desempenho de atletas profissionais. disputas: sangue, suor e lágrimas, sem tornaram urgentes. Mas as provações
Pensando na seleção brasileira de futebol triunfos finais para a grande maioria dos em foco excedem soluções individuais e
após o vexame na final de 1950 com competidores. O foram felizes para sempre contextos esportivos. Há um problema
o Uruguai, em um Maracanã lotado, se aplica a bem poucos. É a escassez que estrutural na cultura.
comentou: “Cuida-se da integridade sustenta a glória.
das canelas, mas ninguém se lembra O ambiente competitivo adquire ***
de preservar a saúde interior, o facilmente ares tirânicos e inumanos, As queixas de Naomi Osaka e Simone
delicadíssimo equilíbrio emocional do criando as condições ideais para o Biles resumem o vivido dos indivíduos
jogador (…) – Já é tempo de atribuir- desencadeamento de quadros de dor contemporâneos, somadas e subtraídas
se ao craque uma alma, que talvez crônica, ansiedade, burnout e depressão. as diferenças de posição e status. Disse
seja precária, talvez perecível, mas Um delicado trabalho necessita ser feito Osaka: “Eu penso que nunca sou boa
que é incontestável (…) quem ganha e para lapidar e transformar a tensão, o suficiente. Eu nunca disse a mim
perde as partidas é a alma(…). – fomos o desgaste, a frustração, a impressão mesma que eu fiz um bom trabalho,
derrotados por uma dessas tremedeiras de incapacidade mental e física e o mas eu sei que constantemente eu digo
obtusas, irracionais e gratuitas. (…) medo de decepcionar em força, desejo a mim mesma que eu sou ruim ou que
teríamos sido campeões do mundo, e esperança. Não é tarefa fácil, nem poderia ter feito melhor (…) eu acho que
naquele momento, se o escrete houvesse mesmo para especialistas. sou extremamente autodepreciativa”.
frequentado, previamente, por uns cinco Um alerta foi dado no sentido da (…) “Sinto também que não estou me
anos, o seu psicanalista”. humanização do regime de preparação divertindo tanto quanto antes”. (…)

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... fundos. É o que da crônica de Clarice Lispector, Por não
estarem distraídos. Os personagens, um

gostaríamos de
casal de amantes, sentiam: “a levíssima
embriaguez de andarem juntos, a alegria
como quando se sente a garganta um

ser no contexto de
pouco seca e se vê que, por admiração,
se estava de boca entreaberta (…) Como
eles admiravam estarem juntos! Até que

nossas arenas de
tudo se transformou em não”. O que
gerou a mudança? Responde o narrador:
“Tudo se transformou em não quando

disputas, competições,
eles quiseram essa mesma alegria deles
(…) Tudo só porque tinham prestado
atenção, só porque não estavam bastante

comparações. Em
distraídos. Só porque, de súbito exigentes
e duros, quiseram ter o que já tinham (…)
porque quiseram ser, eles que eram”.

seus infortúnios, A deliciosa experiência de estarmos


distraídos é a primeira que se perde sob
o jugo da exigência. Como antes Osaka

enxergamos os nossos na relação com seus fãs, os protagonistas


de Lispector sabiam fazer companhia

pequenos dramas
um ao outro até o dia em que passaram a
desejar ser o que já eram e planejar fazer
o que já faziam. O que poderia levar
alguém a querer realizar o que já realiza?
Talvez o autocontrole dos
perfeccionistas quando aspiram a
parar o tempo e a repetir ipsis litteris o
que já fazem visando fazê-lo tal qual
“Estou neste ponto em que preciso pessoal e talhado para sonegar a deveriam; ou na pretensão de otimizar
descobrir o que quero fazer”. paz e o ato espontâneo do desejo. o ato, se auto exigem sem trégua, se
Simone Biles, por sua vez, afirmou: O resultado afetivo decorrente auto supervisionam sem descanso,
“Eu simplesmente não confio em mim da consecução do dever é, se bem- à procura de um a mais que tornaria
tanto quanto antes. E não sei se é a idade, sucedido, alívio, e caso frustrado, especial a reedição da experiência. Algo
mas fico um pouco mais nervosa quando decepção e sofrimento. Foi o que disse paradoxal como: vamos nos programar
faço ginástica”. O que ambas dizem, em literalmente Naomi Osaka: “Eu sinto para alcançar a vivência a que chegamos
uníssono, é o que ouvimos na clínica: que, quando ganho, não fico feliz. Sinto exatamente porque não nos programamos. Ou:
“não sou tão boa quanto gostaria”, “não mais um alívio. E, quando perco, fico vamos revisar e otimizar o que fizemos para
sei se estou à altura do que faço”, “não muito triste. Não acho que isso seja alcançar o que conseguimos porque nada nos
tenho certeza de que gosto de minha normal”. A exigência de ter que dar certo exigimos. Sem a distração, peça central
rotina profissional”, “não confio mais oprime de atletas a cidadãos comuns, da cena, transita-se do desejo ao dever;
em mim mesmo”, “preciso descobrir o salvo raríssimas exceções. O ganho já e o que se colhe é tédio, aborrecimento
que quero de minha vida”. não é comemorado como vitória, mas e cansaço. Definitivamente, distrair-
Os incômodos das atletas se como mera obrigação. A derrota pesa se não é um verbo contemporâneo,
parecem com os de todos nós. muito mais do que uma nova conquista. ambicioso, coaching.
Afinal de contas, do lado de fora dos Não há mais prazer em ganhar, apenas Algo similar ocorre no uso reiterado
estádios, a vida contemporânea segue medo de perder. E fica ainda pior da palavra gratidão, habitual em nossos
uma cadência semelhante. O atleta quando se carrega nas costas o paradoxal dias. Visa conferir relevo e nos chamar a
encarna e realiza os nossos valores peso de uma história de êxitos e triunfos. atenção para o que é ofertado pelo outro
mais fundos. É o que gostaríamos de Nostálgica, Osaka devaneia: “Eu ou pela vida e que não conseguimos
ser no contexto de nossas arenas de acho que o que eu estou tentando dizer espontaneamente ou distraidamente
disputas, competições, comparações é que eu vou tentar celebrar mais a valorizar e reconhecer a autoria. Por
e exigências. Em seus infortúnios, mim e a minhas conquistas. (…) Tipo, que desaprendemos a gostar do que
enxergamos os nossos pequenos dramas. a escolha de ir lá e jogar, de ir ver os fazemos e a admitir instintivamente
E nos cenários que compartilhamos, fãs, aquelas pessoas vêm me ver jogar, a importância do outro? Por que só
um imperativo de sucesso e felicidade isso por si só é uma conquista”. O conseguimos fazê-lo ritualizando a ação,
funciona como um dever contínuo e esforço para gostar do que deveria ser conferindo-lhe o caráter de um roteiro
exorbitante, mascarado de necessidade apreciado naturalmente lembra-nos a ser seguido, que, embora exiba uma

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aparência cuidadosamente espontânea, é,


no fundo, exigente e duro, como escreveu
Lispector? Em uma resposta simples e
que pula etapas: por estarmos deprimidos,
no sentido amplo do termo, não
estritamente clínico. Mas, por sua vez,
por que estamos deprimidos?

***
A Organização Mundial de Saúde estima
que mais de 300 milhões de pessoas
no mundo hoje sofrem de depressão.
E o Brasil contribui com 10,4% de
sua população na composição dessa
cifra. Os especialistas se dividem na
explicação de uma suposta explosão
de casos ocorrida nas últimas décadas.
Na ausência de registros claros para
comparação, alguns acreditam que
foi o acerto do diagnóstico o que
permitiu uma melhor identificação
da depressão e, consequentemente,
de sua visibilidade social. Não teria
havido aumento significativo das
ocorrências, em números relativos,
apenas o incremento dos registros.
Outros creem exatamente no inverso:
é possível que diagnósticos menos
precisos confundam depressão
com estados de tristeza normais e
com sintomas compartilhados com
outros quadros psicopatológicos,
superdimensionando os números.
É aceito por todos que a existência
de medicações mais eficazes funciona
como mais uma variável relevante nesse aproximação de uma lupa. São males simples e tangível da doença neurótica
quesito. As pessoas procuram os serviços que se originam de combinações de permaneça insatisfeita”. O mesmo
de atendimento na medida em que fatores biológicos e constitucionais, além ocorre com as depressões.
podem contar com melhores soluções. A de psicológicos e sociais. Encontram nas Consideradas as incertezas teóricas
maior demanda daí decorrente ganha a ocasiões de estresse vetores importantes e levando-se em conta a pluralidade de
aparência de elevação da frequência do para o seu desencadeamento, mas contextos estressores da atualidade (da
fenômeno. Mas é unânime e destacado há um amplo repertório de estresses uberização do trabalho à discriminação
o papel do fator estresse como causa dos possíveis para serem levados em racial), tomaremos os depoimentos
transtornos depressivos. E este é um conta, com variações individuais de das atletas e o eco de queixas afins
vetor em escalada crescente no mundo sensibilidade para os mesmos. que chegam aos nossos consultórios
atual, o que advoga a favor da tese da O que faz com que certos fatores para aquilatar o papel corrosivo das
proliferação dos quadros doentios. de risco sejam causa de um quadro exigências e desafios da ideologia
O impacto do estresse se deve não depressivo para uns e, para outros, meritocrática. Podemos reduzi-los a
só ao poder de induzir diretamente a apenas um incômodo grave, mas um fantasma que cobra e assombra o
crise quanto ao de provocar situações assimilável; o que torna uns despidos e inconsciente de todos nós: a aspiração por
predisponentes, como o uso de álcool, outros dotados de recursos imaginários sermos extraordinários e o indisfarçável desprezo
tabaco e outras drogas. e emocionais para enfrentar o poder pela pessoa comum.
Sabemos que qualquer tentativa ofensivo de um evento específico é O culto do extraordinário e o pavor
de apreender a dinâmica das causas algo que o psicanalista Jurandir Freire de ser uma pessoa comum é a edição
psicológicas da depressão, assim Costa, citando Freud, põe com razão na contemporânea do lema do herói e do
como de outros transtornos mentais, conta da Moira – do destino. Ao tratar das vencedor. Repassado diuturnamente,
são sempre aproximações, recortes e neuroses, o próprio Freud havia dito: de forma explícita e implícita, pelas
simplificações. A fórmula, por mais “Deve-se temer que nossa necessidade agências transmissoras da ética
admirável que pareça, não suporta a de encontrar uma ‘causa última’ meritocrática, esse código se tornou

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apenas nos anos 1980 o status positivo
de ferramenta justa e igualitária para
a avaliação de pessoas. E foi abraçado
por políticos do espectro da esquerda
à direita. Imaginamos, como adverte
o autor, que a meritocracia: “é algo
que define o sonho americano, mas
essa retórica de acender sozinho é
proeminente nos anos 1980 e 1990. A
versão anterior falava de uma ampla
igualdade de condições, de cidadãos
que se reuniam em espaços públicos e
praticavam o respeito mútuo. Esse é o
sonho americano mais generoso, e foi
reduzido nas últimas quatro décadas à
mobilidade ascendente individual”.
Está fora de discussão o valor
positivo do mérito. Como argumenta
Sandel, desejamos ser atendidos por
um bom médico, quando estamos com
um problema de saúde, assim como
queremos que o piloto do avião em
que nos encontramos seja habilitado
para o voo. Mas a meritocracia não é
uma ideologia do mérito. Revela-se
melhor enquanto conceito por meio
das duas crenças centrais que imprimiu
no imaginário ocidental: a) só os que
ganham têm valor e b) os melhores
merecem o que possuem.
Os candidatos ao castelo ou
aos crocodilos não atentam para as
contradições que giram em torno desse
princípio. A primeira é que o “mérito
dos bem-sucedidos” nem sempre
dominante nos contextos escolares, desempenho e da implacável avaliação é devido a conquistas prévias dos
profissionais e esportivos. Pouco de falhas e defeitos. Por si só, não mesmos: ser inteligente, alto, forte,
sobrou do sábio conselho do Bispo gestaria um só caso de depressão belo e habilidoso ou ser filho de pais
da Pensilvânia, Ethelbert Talbot, propriamente dita e, tampouco, o pathos bem-sucedidos financeiramente que
imortalizado pelo discurso do Barão específico que deu origem ao maracanaço. o posiciona nas melhores escolas,
Pierre de Coubertin na cerimônia Mas é, sem dúvida, uma causa potencial faculta-lhe os melhores serviços
de abertura dos jogos olímpicos de das ansiedades e tristezas que compõem médicos e a segurança necessária para
Londres, em 1908, quando declara que o terreno da depressividade atual. transitar sem danos, fazem parte de
o importante não é vencer, mas competir. E com heranças constitucionais e familiares e
dignidade. É certo que quem compete *** não adquiridas pelo indivíduo em foco.
quer vencer, mas a máxima indica A hipótese de um laço estreito entre Por conseguinte, dependem de dons
que o jogo da vida é mais fecundo o transtorno depressivo e o culto e da sorte, deformando assim o ponto
e satisfatório quando recusamos o da excelência ganha plausibilidade de partida de uma competição justa e
desafio imaginário do ou a vida ou a morte pela coincidência temporal entre o estritamente por mérito.
e a concentração de todas as nossas estágio de maturação das ideologias A segunda é que o “mérito dos bem-
expectativas em uma única batalha. E da autorrealização e da meritocracia sucedidos” só é aceito se a sociedade
isso vale para os três contextos citados. e a ascensão geométrica dos demandar a ação em causa e julgá-la
A prédica do extraordinário se registros e/ou das ocorrências de importante e valiosa. Saber jogar futebol
confunde com um Bem e, talvez, seja casos de depressão no mundo, de em uma terra dominada pela arte da
por isso mais danosa. Opera com meados do século XX em diante. escultura não agrega grande valor ao
incentivos e sem defesas, na condição Cunhado em 1958, pelo sociólogo portador. Saber educar crianças em
de algo edificante e inofensivo. Michael Young, e associado na ocasião a uma sociedade marcada por uma
Desdobra-se nas figuras da exigência uma sociedade distópica, o conceito de economia capitalista financeiro-
perfeccionista, da autocobrança por meritocracia, segundo Sandel, adquiriu rentista não levará muito longe o poder

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de compra da docente. E nascer em


uma sociedade que valoriza o seu O chamado a ser
incrível, nunca banal,
talento não é mérito, é novamente
sorte. Grandes méritos não garantem,
portanto, qualquer reconhecimento.

induz à crença de que


Por fim, a terceira, é que o “mérito
dos bem-sucedidos” não justifica os
benefícios alcançados com suas vitórias.

a pessoa comum, de
Tratam-se de critérios distintos. O mérito
pode garantir, no máximo, a posição,
mas não o prêmio auferido. Em uma

comportamentos mais
corrida, quem faz o percurso em menor
tempo é o primeiro lugar. Mas isso não
decide o que o vencedor irá receber.

repetitivos e previsíveis
Digamos que haja um valor geral de 10
mil reais para a premiação e a corrida
conta com 10 competidores. Devo dividir
o valor em 10 mil para o primeiro e
nada para os demais? Cinco mil para
o primeiro, três mil para o segundo e
– sem destaques –, é
dois mil para o terceiro? 2.500 para o
primeiro, 2.000 para o segundo, 1.750 um derrotado, inútil,
supérfluo, invisível
para o terceiro, 1.500 para o quarto, 1.250
para o quinto e 1 mil para o sexto? Fica
claro, pelas alternativas, que o critério
de distribuição dos benefícios conforme
o mérito posicional é puramente
arbitrário. Não há critério meritório
para se avaliar quanto a mais deve
receber a diferença obtida pelo mérito.
Construímos um fetiche no modo prova, em um drama hamletiano de a eles, ou se esquecem até que ponto estão em
como olhamos o primeiro lugar, assim ser ou não ser o herói ou o impostor. dívida com sua comunidade, seus professores, seu
como o bem-sucedido. Podem ter Recalcamos a figura do homem país, as circunstâncias de sua vida e, em suma,
alcançado escores muito próximos ou médio e igualmente do sentido de a sorte que os ajudou em seu caminho. Apreciar
ser detentores de méritos similares comunidade – a interdependência o valor da sorte na vida pode dar lugar a uma
aos demais, mas, aos nossos olhos, que sustenta dos patamares mais necessária humildade. Parte do problema é que
parecem separados por um fosso abissal. básicos aos mais complexos da vida as elites meritocráticas de hoje em dia sofrem
No lugar do espectro de possibilidades em sociedade. O mundo comunitário é uma falta de humildade”.
e da interdependência, preferimos negado duplamente: pelos indivíduos Sob o comando desse fantasma da
a idealização do mito associado às comuns que não acreditam contribuírem excelência, a sociedade contemporânea
agonísticas opções do tipo ou tudo ou para tanto, que não contam com a alcançou níveis de produtividade
nada, ou preto ou branco, ou você ou o sua existência e, consequentemente, inéditos, porém com um passivo de
outro sem espaços para transições. não buscam nele amparo; e pelos mal-estares e transtornos emocionais
O chamado a ser incrível, nunca banal extraordinários, que o negam, omitindo difíceis de serem compensados por
induz à crença de que a pessoa comum, quem e o quê os ajudou em sua bens e serviços. Os desafios deixaram
de comportamentos mais repetitivos ascensão (ninguém me ajudou, cheguei até de ser pontuais e localizados e se
e previsíveis – sem destaques –, aqui graças unicamente a mim mesmo), sob transformaram em um moto-contínuo.
é um derrotado, inútil, supérfluo, o risco de manchar os fios de ouro da As obrigações de cada um passaram a
invisível, e o extraordinário, de atos independência, da autodeterminação conter pendências e tarefas atrasadas
mais criativos e inesperados – célebres e da autossuficiência que entramam a como um padrão. Invejas, ódios,
–, um vencedor, insuperável, único, glória de ser um self-made man. Levadas medos e culpas por comparações
inigualável, raro. E aqui está incluso ao pé da letra, autonomias do gênero e autoavaliações se cruzam e se
ser jovem, de corpo malhado, com poder soam tão absurdas quanto afirmar que combinam na alma dos comuns.
de compra e inúmeros seguidores nas redes cada indivíduo teria o dever de elaborar O alarme de estresse (preparação
sociais. Destituídos de lugares simbólicos a sua própria vacina para a Covid-19 ou pra luta e fuga) – fundamental para
dignos e respeitáveis no espaço então enfrentá-la de peito aberto. otimizar o desempenho – não se
intermediário entre os polos, os atores A conclusão de Sandel é precisa: desliga jamais. Não é propriamente
dessa ficção carregam nas costas a “Os bem-sucedidos devem se perguntar se é uma comunidade o que se forma em
sensação de estarem constantemente à verdade que seu sucesso é atribuível inteiramente torno dos deveres de excepcionalidade,

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Recalcamos a figura eu tinha. Infelizmente, ele concordou
com a proposta de moderação. E eu

do homem médio e
perdi uma boa oportunidade de lapidar
o narciso cronicamente insatisfeito que
carregamos em nossas costas.

igualmente do sentido
Tempos depois, dois exemplos da
escola da vida, ainda no âmbito do
futebol, me ajudaram a entender a

de comunidade – a
importância do ordinário e o papel
comunitário do extraordinário. O
primeiro foi no dia em que, ainda

interdependência que
menino, me deparei em uma pelada
de rua com um ex-jogador do Clube
Ferroviário do Recife – time da

sustenta dos patamares


primeira divisão do campeonato
pernambucano de futebol, mas com
resultados sofríveis. Imaginava que o

mais básicos aos Ferroviário só continha pernas de pau.


Foi com muita surpresa que me deparei
com um verdadeiro craque diante do

mais complexos da amadorismo profundo dos peladeiros


de plantão. No campo entre cajueiros,

vida em sociedade
em Candeias, só deu ele. Freguês dos
grandes, algoz dos pequenos! Como foi
instrutivo ver o show desse ex-jogador
entre nós, praticantes autoconfiantes e
presunçosos! Aprendi, numa só jogada, a
relativizar o valor do atleta médio de um
time profissional e, consequentemente,
numa extensão maior, a valorizar o
mas uma gincana assemelhada à tentativas para consolá-la, dizendo- papel da pessoa comum que, no final
Round 6 – série coreana da Netflix. lhe que é preciso aprender a perder, reage das contas, faz a roda do mundo girar e,
Resta ao indivíduo encontrar o magoada: “Eu já aprendi a perder! Eu em certos contextos, cumpre um papel
gênio que o habita ou decretar falência quero agora aprender a ganhar!”. de gala, como o inesperado visitante
psíquica. Embora, na ausência do O irmão caçula, Benício, hoje com de Candeias. O jogador do Ferroviário
talento criativo e empreendedor, seja cinco anos (será a idade da conversão é o homem médio que surpreende. O
aceitável a moeda do sobrecarregado. ao espírito competitivo ou apenas a do ordinário que se mostra extraordinário
Se não sou incrível, sou pelo menos Édipo e de suas ambições ególatras?), em um determinado momento. Uma
disponível: trabalho demais, faço tudo saiu com essa nestes dias: “Pai, quando metáfora de todos nós.
o que me pedem, não nego tarefas, não eu perco, eu não consigo NÃO fazer O segundo exemplo veio do convívio
nego convites, aceito desafios, assumo uma cara de triste. Eu tento, mas não com um grande amigo de infância.
encargos, compromissos, deveres, consigo”. Pego de surpresa, pergunto- Chamava-se Pedrinho – Pedim, em
responsabilidades... não digo não pra nada! lhe o que disse para me certificar se sotaque nordestino original. Além de
Trata-se de uma versão B da busca havia de fato entendido, e ele reitera: uma pessoa amiga, rara, de coração
pela excelência, com alto poder de “Quando eu perco, eu tento não chorar, nobre, era um craque de futebol, desses
convencimento. Desejada inclusive por mas eu não consigo”. que jogam para o time. Pedim tinha uma
alguns que já detêm o título principal. Nesse mesmo compasso, quando capacidade magistral de valorizar os
tinha por volta dos 10 ou 12 anos, colegas que atuavam com ele. Os menos
*** lembro de um amigo da escola que me dotados, os verdadeiros “café com leite”,
Todos querem ser extraordinários. propôs brincarmos de bater pênaltis faziam gols, davam passes importantes,
Ganhar, triunfar, dominar um ofício, um pro outro. E acrescentou a regra defendiam com simplicidade, mas com
dar a volta por cima, sentir a própria de “chutarmos com toda a força!”. eficácia, quando pertenciam a seu time.
força, se aprimorar e buscar ser melhor Incomodado com a pedida, não com As equipes médias que ele montava
rendem sensações e sentimentos a brincadeira, tentei argumentar que eram vencedoras, não por Pedrinho
revitalizadores. Que o diga a minha filha melhor seria batermos os pênaltis jogar por todos, mas pelo talento de
mais nova, Liz, que, aos cinco anos, após apenas com alguma força, não toda. A única fazer com que todos jogassem e dessem
sofrer algumas derrotas em disputas com justificativa, não revelada, era evitar o melhor de si, sob o seu comando.
os irmãos e as amigas, cai em prantos, expor para o amigo e para mim mesmo Em quadras e em campos de areia
num choro sentido, e, diante de nossas o que seria o limite de toda a força que às margens do Pajeú, contagiava os

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próximos e essa é a maior nobreza dos


extraordinários. Não é o êxito de fazer
sozinho e, muito menos, de humilhar
ou sombrear os menos habilidosos,
mas, sim, iluminá-los com a força do
exemplo, da inspiração e do comando.
O anônimo jogador do Ferroviário
e meu amigo Pedim valorizaram aos
meus olhos, em definitivo, o valor
ou o passe do homem médio e a
importância social do extraordinário.
Finalmente, na tarefa de lidar com
o erro, peça central da composição
do homem médio, ficou igualmente
marcado na memória um comentário
despretensioso de um outro grande
amigo, capaz, como poucos, de olhar a
vida fora da caixa, dada a sensibilidade,
o bom humor e a inteligência. Ladimir
havia parado de fumar, após longos
anos de hábito, e tinha me dito que
não cederia mais ao vício. Tempos
depois, eu o vejo novamente em pleno
uso de seu doce veneno. Com tom
levemente recriminatório, abordei-o:
“Mas, Ladimir, você havia me dito que
tinha parado de fumar!” E ele, com a
segurança e a irreverência costumeira,
respondeu: “Ah, Carlinhos, é importante
fazer alguma coisa errada de vez em
quando”. Tinha toda razão. Não há nada
mais apropriado para o gozo da vida, o
exercício do bom senso e a consciência
de nossos limites do que uma relação
camarada com os próprios erros. Não era
à toa que Ladimir era tão querido pelo todos, nunca um comum, desfaz qualquer desenho característico do melancólico,
meu pai, um pregador constante da arte encantamento com pessoas reais e com segundo Freud, é o de alguém que
de fazer autocrítica. Não apenas visando a precariedade da vida, assim como reage patologicamente à perda do
a correção e o aperfeiçoamento. Quem substitui o gozo com o extraordinário objeto amado, real ou idealizado.
sabe, principalmente, como um convite pelo gozo do extraordinário. Colocamo- Contemporaneamente, a psicanalista
para que o entendêssemos em seus nos bem distantes da capacidade lúdica Marie-Claude Lambotte retifica o
claros-escuros. Talvez, para que não nos de tirar partido do precário, como os argumento freudiano e aponta ser a falta,
assustássemos com os nossos. nossos filhos pequenos faziam quando a ausência original do objeto amado, e
Nas nossas histórias de vida se interessavam mais pelas caixas, não a sua perda, o que acarreta o quadro
normalmente se apresentam papéis ebarbantes do que pelo próprio melancólico propriamente dito. São os
personagens e situações semelhantes, presente. E, individualistas que somos, dilemas de ter e depois perder e o de nunca
prontos a nos ensinar a importância trocamos a alegria contagiante de um ter tido. Os dois modelos de sofrimento
da competição e da cooperação; sorriso coletivo pela gargalhada solitária estão presentes na corrida meritocrática.
de ser e de avaliar o extraordinário do vencedor. Pois é ela o que queremos Frustrados na busca pelo título de ser e
como um bem individual e coletivo; pessoalmente obter. continuar sendo o melhor perdemos o que
de habitarmos, sem resistências, a desejávamos alcançar ou que esperavam
condição de homem médio – que *** que alcançássemos (e que já era nosso,
acerta e erra, se oculta e se destaca –, Equivalente ao consumismo, a na fantasia) e, à luz dessa perda, parece
sempre passível de surpreender a si meritocracia estimula a busca um deserto o que nos resta. Ninguém
mesmo e ao outro; e da autocrítica como constante por um objeto a mais, como pode nos amar nessas condições,
ferramenta de aperfeiçoamento e de forma de distinção. A ambição, no nada temos a oferecer, e, se o fizerem,
aceitação e proveito de nossos limites e limite, inalcançável, insere os seus não queremos esse amor, tal como
erros. Contudo, a ideologia do sucesso seguidores na dinâmica clássica da Groucho Marx, que não frequentava clubes
individual e da busca por ser o melhor de melancolia, cogitada pela psicanálise. O que o aceitassem como sócio. O resultado:

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preconiza uma vitória a qualquer custo,
sem lugares simbólicos à altura das
pessoas médias, resultam sentimentos
de insuficiência e de superfluidade,
com a cereja do bolo reservada para
a responsabilidade individual (o erro
é sempre nosso!) por não termos
alcançado a resiliência necessária
para transpormos as barreiras que se
apresentaram no caminho. A pedida
era para nos conduzirmos segundo uma
outra proposição de Groucho Marx:
“Vamos descobrir um tesouro naquela
casa? – Mas não há nenhuma casa… –
Então vamos construí-la!”.
Recentemente, Liz pediu para que eu
e a mãe opinássemos sobre qual de dois
objetos, confeccionados um por ela e um
por Benício, com massinha de modelar,
era o mais bonito. Esquivamo-nos da
sinuca de bico afirmando que eram
ambos bonitos. Insistiu várias vezes no
pleito e repetimos a mesma resposta.
Percebendo que não iria conseguir o
que queria, Liz protestou: “Adultos sempre
estragam brincadeiras de competição!”.
De fato, não podemos levar a
extremos a crítica da competitividade.
Afinal de contas, competir é uma
modalidade a mais de interação, que
possui a sua razão de ser (otimizar
um ato, um produto, um serviço)
e o seu gozo próprio (medir forças,
sentir como estamos frente ao outro),
uma vez localizada em seu devido
adultos e crianças desolados e irritados mostrarem medíocres caso apareçam contexto. O problema, sem dúvida,
consigo mesmos, vulneráveis aos no palco da vida. E com a aflitiva não é a competição e nem o mérito.
fantasmas cruciais da existência: ficar impressão de estarem muito aquém do Mas a transformação da primeira, em
sozinho, abandonado, sem dotes para que outros pensam sobre elas e a um modo de vida, e, do segundo, em ode
conquistar e preservar o amor do outro passo de serem desmascaradas, como na ao vencedor, e não aos capazes e aos
e a respeitabilidade social, por não obter síndrome do impostor. competentes, sem esquecermos do
sucesso nesse jogo específico da vida: A solução atualmente oferecida pela suporte aos que se mostram inaptos em
competir sem parar, vencer sempre. cultura é esse blá, blá, blá velho conhecido algum momento, por razões diversas.
Não faltam exemplos disfuncionais e associado, com alguma justiça, à A função vencer, em um
e paradoxais do potencial estressor do alienante pregação dos coachings e dos mundo meritocrático, encontra-
projeto de tornar-se diferenciado, acima manuais de autoajuda: seja um vencedor, se permanentemente ativada. O
da média e o mais longe possível de uma o céu é o limite, somos o que quisermos ser, só efeito direto são almas insaciáveis e
pessoa comum. Muitos jovens recorrem depende de você, desistir não é uma opção, a vida endividadas como as nossas.
hoje em dia mais ao Cialis (tadalafila) é uma guerra, dentre outras prescrições e
do que ao preservativo: perder a saúde, advertências. Incitam a alma vulnerável ***
sim; a ereção, jamais! Pela mesma razão e ambiciosa de todos nós com a Não é de se estranhar que a depressão
que transformamos Rubens Barrichello, promessa de que o sucesso e o estrelato conste como um dos principais motivos
piloto da elite do automobilismo, em se encontram ao alcance de qualquer de incapacidade e de afastamento do
sinônimo de lentidão. Não adianta ter interessado. Bastaria aceitarmos, sem trabalho, conforme dados da OMS
conquistado tudo o que conquistou: boicotes, o sucesso como propósito de (Organização Mundial de Saúde) e da
não foi um Ayrton Senna. Ponto final! vida, e abraçarmos com fé, força e foco Opas (Organização Pan-Americana
Exigências superlativas tornam cada os conselhos, atitudes e planejamentos de Saúde). Fizemos da depressão um
vez mais comum o exílio das pessoas recomendados pelos convictos regentes regulador social, e dos mais efetivos.
dentro de si mesmas, com receio de se do psiquismo. Dessa fórmula infalível que Antes a culpa e a vergonha, hoje a dor

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Ensaio

crônica, a estafa e, especialmente, a


depressão, são alguns dos poucos freios Desistir é um verbo de
conotação negativa.
capazes de barrar as nossas ambições,
forjadas por sôfregas ânsias de sucesso
e bom desempenho. Funcionam como

Utilizá-lo sem um motivo


um prazo para entregarmos os pontos.
Definem os atuais limites do que fazer ou
não fazer. Forjam os derradeiros motivos

que nos ultrapasse


para poder parar e dizer não. Um novo lema
foi traçado: seguirmos firmes e fortes, sem
descanso e sem medida, até a próxima depressão.

significa um atestado
Só nessas condições nos tornamos
indiferentes às expectativas ansiosas
e ávidas de nosso Eu, dos outros e dos

de mediocridade,
ideais. Só nessas condições conseguimos
formular uma autocrítica que
demarque os limites que não podemos
ultrapassar. Era do que suspeitava Freud,
ironicamente, em Luto e melancolia, ao
analisar as autoacusações presentes na
embora a depressão
sintomatologia de quadros mais severos.
“Quando, em uma exacerbada autocrítica já seja encarada dessa
forma por muitos
ele se descreve como um homem mesquinho,
egoísta, desonesto e dependente, que sempre só
cuidou de ocultar as fraquezas do seu ser, talvez
a nosso ver ele tenha se aproximado bastante do
autoconhecimento, e só nos perguntamos por
que é preciso adoecer para chegar a uma verdade
como esta. Sem dúvida, quem pode chegar a uma
tal autoapreciação e expressá-la diante dos outros
[...] está doente, quer diga a verdade, quer seja desista de mim para que eu possa ficar “em pensamentos do tipo: “muito está em
mais ou menos injusto consigo próprio”. paz”... deprimida. É a autêntica realização jogo”, “há compromissos inadiáveis”,
Na prática, é como se os automóveis de um desejo contemporâneo: “há outros envolvidos”, “estou me
não tivessem freios e só parassem na o de não me peçam mais nada! organizando para isso”. São argumentos
traseira de algum outro ou em um poste Biles e Osaka precisaram se deprimir compreensíveis, mas que nos levam, na
ou árvore que aparecesse no caminho. para revisar a carreira e alterar o curso maioria dos casos, a prejuízos maiores.
Organizar o trânsito dessa forma traria dos fatos. Uma parte nossa indaga: será Precisamos levar a sério o que
enormes custos. Mas é mais ou menos preciso tanto para mudarmos os rumos disse em sessão um cliente: “Nunca
assim que administramos o fluxo de de nossas vidas? Outra, pondera: poderia ouvi alguém falar que deveríamos
nossas vidas. Dê o seu máximo até ser bem pior! Por um lado, é como abandonar os nossos sonhos. E
adoecer. Desistir não é uma opção, se perdêssemos as rédeas. A doença como é importante fazer isso de
deprimir talvez! O acidente depressivo nos guia. O bom senso foi substituído vez em quando!”. Complementaria:
não é um ponto fora da curva, não é pelo senso médico. Por outro, é difícil abandonar certos sonhos e limitar
propriamente um acidente, mas a forma evitarmos a chegada da depressão, e as aspirações à felicidade. Sem um
possível ou aceitável (e não será admitida assim a perda da autonomia, por não teto para as aspirações e satisfações
por todos) de alguém se conter. dispormos nem de pródromos claros próximo às nossas condições de agir
O evento depressivo adquire, assim, (sinais que anunciam a doença) e nem no mundo, não vamos jamais saber
o status não só de um freio que se de roteiros de prevenção garantidos. o gosto de nos sentirmos capazes e
impõe à nossa revelia, mas também A aposta se resume a um diagnóstico autênticos. A busca pela excelência
o de uma estratégia de sobrevivência precoce e ao cultivo da qualidade de pode render bons frutos quando os
controversa, uma desejável rendição, vida (exercício físico, sociabilidade, contextos de vida, as características
uma aspiração a um fim, a uma entrega. hobbies, meditação), fazendo as vezes de personalidade e o momento
Semelhante a alguém que tentasse fugir de uma blindagem improvisada. maturacional são levadas em conta. Mas,
desesperadamente de um ladrão que o O que não é pouco, embora possa na condição de um ideal impositivo
persegue por conta de seus pertences se mostrar insuficiente. Mas, na que só tem olhos para o vencedor, é
e, em um determinado momento, do ausência da depressão para ligar o sinal mais um fator de despersonalização
alto de uma ponte, resolvesse lançá- vermelho, o exercício do cuidado de do que de aperfeiçoamento. Quem
los ao mar, praticando uma defesa, si oscila, procrastinando a atenção a tem medo de desistir é quem
do tipo: não tenho mais o que lhe oferecer; mal-estares importantes por meio de ainda não se deu conta disso.

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A depressão é o sintoma podem ser realizadas, embora em terreno
mais precário. Dependem igualmente

social de uma época


da forma como lidamos com o ideário
da excelência. Biles e Osaka fizeram de
seus estados depressivos plataformas

que não nos concede o


para a conjugação do verbo desistir numa
conotação libertária. Muniram-se da
potência do não, no sentido conferido

direito de desistir sem


ao termo pelo filósofo Agamben.
Exerceram o poder de não fazer, de decidir
não participar, de seguir no sentido inverso

a tarja do arruinado
ao esperado a fim de preservarem um bem
maior. Ao mesmo tempo, assumiram o
negativo de suas performances, tecendo,

e sem a angustiante
ao lado de históricos de conquistas, um
corajoso e digno currículo mortis, tal como
definido pelo filósofo Leandro Konder:

sensação de estarmos um lugar para o registro dos erros,


limites, fracassos e decepções. Currículo
que serve como fomento para a sensatez

perdendo uma enorme e a humildade. Como uma peça que nos


prepara para a morte, como defendeu o

oportunidade
autor, mas também para uma vida que
respeita os próprios limites.
Numa versão temerária, poderiam
ter adiado a revisão de suas vidas
e aumentado o risco de quadros
psicopatológicos ainda mais graves,
que exigiriam o mesmo desfecho
do afastamento, porém com danos
Desistir da tirania de si mesmo, da No entanto, se tememos a depressão, físicos (cardiológicos, reumatológicos,
busca incessante pelo extraordinário, tememos ainda mais a desistência. gástricos, intestinais), mentais (ideações
de uma devoção a competir que nos Desistir é um verbo de conotação e atuações suicidas) e profissionais
torna parecidos com o personagem negativa. Utilizá-lo sem um motivo que (erros, negligências, descompromissos)
Miguelito, do cartum de Quino, quando nos ultrapasse significa a assinatura superiores. É habitual o atraso da
este resolve numa caminhada pela de um atestado de mediocridade, desistência. Quem nunca sentiu ter
calçada ultrapassar o cidadão à frente embora a depressão já seja encarada levado longe demais um namoro
antes que ele alcance a esquina. Ao dessa forma por muitos. Porém, sem a ou casamento que já apresentavam
fazê-lo, diz para si mesmo, jubiloso: depressão a tiracolo, não conseguimos opressões, invasões, controles - afetos
“ahá!”, para em seguida se perguntar, justificar para nós mesmos e para os depressivos e ansiosos suficientes para
abatido: “ahá o quê?”. Desistir outros a suspensão de atividades que porem freio nas últimas ilusões? Quem
é preciso, mas não exatamente modelam nossas identidades pessoais e nunca se viu com vontade de sumir
como as crianças sírias refugiadas sociais e garantem em maior ou menor para evitar a prestação de contas com
e traumatizadas pela guerra civil, escala o nosso sustento econômico, filhos, cônjuges, colegas, patrões, público
retratadas no documentário A vida mesmo sendo obstáculos ao cuidado etc. em pactos que já deveriam ter sido
em mim, quando desistem da espera de si e, em certos casos, a própria renegociados anteriormente?
angustiante por um visto de asilo razão da destituição de si mesmo. É O trabalho da autocrítica não é
humanitário na Suécia adentrando em difícil convencermos a voz que nos fácil. Aceitar derrotas, assumir erros,
um estado semelhante ao do coma, diz, com resistência, com orgulho encarar desistências fere o narcisismo
nomeado como transtorno de resignação; ou apenas com resiliência: “ainda e a vaidade, mas possibilita realismo e
nem como Bartleby, personagem dá pra aguentar mais um pouco!”. A maturidade. Em certos casos, o efeito
de Melville, que desiste de forma depressão é o sintoma social de uma Kintsugi – técnica japonesa centenária
automática, paralisado pela compulsão época que não nos concede o direito de que consiste em reparar peças de
a dizer não; e tampouco como os desistir sem a tarja do arruinado e sem cerâmica com resina polvilhada a ouro,
suicidas, cujas desistências coincidem a angustiante sensação de estarmos conferindo às cicatrizes resultados
com a destituição da esperança. perdendo uma enorme oportunidade, estéticos admiráveis. Transposta para o
Desistir faz sentido como uma forma como se a vida fosse um cassino.   campo subjetivo, a técnica é uma parceira
de sobreviver ou de lutar por uma vida Felizmente, uma vez instalada a do currículo mortis, ao realçar o valor da
justa e equilibrada. depressão, novas manobras ainda imperfeição e o luto. Para além desse

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Ensaio

uso, a autocrítica ensejada pelos verbos


recusar, renunciar, desistir soam nas Ganham nos provocando
desejos que não
decisões de Biles e Osaka como ações
próximas à desobediência civil. Perante
o que as oprimiam, disseram não!

desejamos. E ganham
Desistir de sonhos impossíveis,
limitar as aspirações à felicidade.
Teme tais atitudes quem ainda

contornando nossas
não se conscientizou de que a vida
interessante só é viável se tiver
contornos, se abrirmos mão de quimeras

mágoas. Como repetem à


que nos iludem e esticam a corda,
sem plausibilidade e gratificações
proporcionais. Os únicos que ganham

exaustão: “enquanto uns


nessa conta são a publicidade e o
mercado. Ganham nos provocando
desejos que não desejamos. E ganham
contornando nossas mágoas. Como
repetem à exaustão: “enquanto uns choram,
outros vendem lenços”. Há, literalmente,
choram, outros vendem
interesse em nosso sofrimento.
Se a paz de espírito depende da lenços”. Há interesse
em nosso sofrimento
aceitação e colocação de balizas no
que esperamos de nós, do outro e do
ambiente, depende igualmente do
cultivo do real. O personagem Miguel,
de Quino, entendeu isso ao escrever a
Erika. Na carta, se explica: “Querida Erika:
seus lábios de morango,... seus dentes de pérola,...
seu cabelo de seda e seus olhos de esmeralda...
convenceram-se a me casar com Maria,... que convida a cultuar a variação da vida e a de espírito. Humilde e realista, nada
tem lábios de lábio, dentes de dente, cabelos de singularidade de cada um, em um espaço medíocre, no sentido pejorativo conferido
cabelo, olhos de olho. Portanto, adeus. Miguel”. público digno e decente para todos. a esse termo, é o homem médio que,
Erika não contava com essa. Por sua Nem abandono de si, nem heroísmo; em Freud, tateia em busca de um si
vez, a serenidade se encontra com mais resignação e assertividade no trato com o mesmo capaz de alcançar uma posição
facilidade nos terrenos em que agimos desejo. É esse o núcleo da ideia de saúde de equilíbrio entre as ambições narcísicas
sem fantasia. Como na canção de Chico cativada por Freud. Um conceito que de querer sempre mais e a inclinação
Buarque, em que o outro é convidado a remete à proposição de São Francisco masoquista de nada merecer. “Nem sempre
voltar à relação do jeito que é, “sem mentir de Assis: “Senhor, dai-me força para ganhando, nem sempre perdendo, mas
pra você”: “vem, mas vem sem fantasia, que da mudar o que pode ser mudado… aprendendo a jogar.”
noite pro dia, você não vai crescer”. Resignação para aceitar o que não pode Desistir é um verbo fundamental em
É preciso circunscrevermos o campo ser mudado… E sabedoria para distinguir uma era de triunfalismos. Necessário
de ação, variarmos o objeto e a medida uma coisa da outra”. para nos mantermos senhores de
com alguma liberdade, e buscarmos as O Freud convocado por Nelson nossos destinos e capazes de dizer
parcerias possíveis e adequadas, a fim de Rodrigues encontra ironicamente não. Para testemunharmos que
nesse ensejo seguirmos na busca do que em Dom Helder, o padre de passeata, sofremos de uma doença de contexto.
for possível ser, em projetos individuais um parceiro próximo para afirmar E, dessa forma, entendermos,
ou coletivos. Nem no preto, nem no o advento do homem comum. Nas como defendia o psicanalista Hélio
branco, identificados no intervalo cinza palavras do arcebispo emérito de Pellegrino, que “A salvação, ou é
da vida, no qual (quase) todos vivem. Olinda e Recife: “Quando houver negócio de todos, ou de ninguém”.
O mundo tem limites e quem os habita contraste entre a tua alegria e um céu
são pessoas médias. Essa consciência é cinzento, ou entre a tua tristeza e um CARLOS FERRAZ, psicanalista, professor de
a melhor forma de sermos afetivamente céu em festa, bendiz o desencontro, psicologia da FAFIRE (Faculdade Frassinetti
responsáveis, com nós mesmos e com que é um aviso divino de que o mundo do Recife) e doutor em Saúde Coletiva pelo
o outro. Não se trata de prêmio de não começa e nem acaba em ti”. IMS-UERJ. carloshf36@hotmail.com
consolação, nem convite para viver na Dom Helder traçou, em breves linhas, MAURICIO PLANEL, ilustrador nascido
invisibilidade ou largado na pior versão a imagem do sujeito freudiano que no Uruguai e radicado no Brasil. É membro
de si mesmo. Mas sim de uma filosofia renuncia à ambição onipotente de querer do coletivo Collagistas Sin Fronteras e
ou de um projeto político que nos que o mundo espelhe os seus estados da Sociedade Brasileira de Colagem.

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