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de margem a margem o rio avança:

dissidência sexual e de gênero,


raça, etnia e deficiências

Fomento: Realização:
de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia,
deficiências

Equipe

Produção: Glaucilene Ferreira Soares, Iariadney Alves da Silva (Iara Alves), Lélia de
Castro e Melissa de Oliveira Navarro Barreto

Coordenação editorial: tatiana nascimento, Nina Ferreira

Editoração: Gilmaro Nogueira (Editora Devires)

Diagramação: Carlos Felipe Wanderley

Revisão: Jade Bittencourt e Jéssica Brito Queiroz

Fomento: Secretaria de Estado da Mulher do Distrito Federal


Sumário

DE MARGEM A MARGEM O RIO CORRE, (SE) TRANSFORMA, AVANÇA:


LEGISLAÇÃO POLÍTICAS PÚBLICAS E MOVIMENTOS DE DIREITOS
HUMANOS LGBTI+ EM FACE DA MULTIPLICIDADE SUBJETIVA DE
SUJEITOS E CATEGORIAS SOCIAIS ATRAVESSADAS POR MARCADORES
IDENTITÁRIOS VASTOS E SIGNIFICATIVOS
Coturno de Vênus
Associação Lésbica Feminista de Brasília................................................................................7

TERMINOLOGIA: ENTENDENDO SIGLAS, CONCEITOS, EXPRESSÕES


Sara Meneses........................................................................................................................... 16

MASCULINIDADES NEGRAS HOMOSSEXUAIS EM HISTÓRIAS DE VIDA


INTERSECCIONAIS
Pedro Ivo Silva
tatiana nascimento.................................................................................................................. 26

ENVELHECIMENTO DE PESSOAS LGBTI+: INVISIBILIDADES AMPLIADAS,


ABORDANDO SOBRE MEMÓRIA LÉSBICA
Entrevista com Heliana Hemetério........................................................................................ 38

MOVIMENTO DE MULHERES NEGRAS E FEMINISMO NEGRO NO BRASIL:


UMA MEMÓRIA
Cidinha da Silva.........................................................................................................................51

TERRITÓRIO SAGRADO
Gabriele Miranda Santos........................................................................................................ 62

LEGISLAÇÃO, POLÍTICAS PÚBLICAS E CONJUNTURA PARA LGBTI+ NA


ÁREA DA EDUCAÇÃO
Alexandre Bortolini
Maria Regina Bortolini............................................................................................................. 70

MUITO ALÉM DE “I WILL SURVIVE”


Manoella Back¹ .......................................................................................................................80
LEGISLAÇÃO, POLÍTICAS PÚBLICAS E CONJUNTURA PARA LGBTI+ NA
ÁREA DE SEGURANÇA PÚBLICA, DIREITO À CIDADE E ENFRENTAMENTO À
VIOLÊNCIA CONTRA MULHERES E LGBTI+
Lídia Rodrigues ...................................................................................................................... 89

ENSAIO: “LEGISLAÇÃO, POLÍTICAS PÚBLICAS E CONJUNTURA PARA


LGBTI+ NA ÁREA DA ASSISTÊNCIA SOCIAL”
Kayodê da Silva Silvério.......................................................................................................... 99

ENTRE MOBILIZAÇÕES E RESISTÊNCIA: A LUTA INDÍGENA PELA GARANTIA


DE SEUS DIREITOS
Danilo Tupinikim...................................................................................................................... 114

POLÍTICAS PÚBLICAS PARA POPULAÇÃO LGBTI+ NO ÂMBITO DOS 03


PODERES DO DISTRITO FEDERAL
Talita Victor............................................................................................................................ 125

MATERNIDADE NÃO-HÉTERO/NÃO-CIS E OUTRAS PARENTALIDADES


DISSIDENTES: RELATOS DE UMA MAR-TERNIDADE TRAVESTI
Kika Sena................................................................................................................................ 145

TRANSGENERIDADES: MULHERES TRANS, TRAVESTIS, HOMENS TRANS,


TRANSMASCULINIDADES E NÃO-BINARIEDADE
Lam Matos............................................................................................................................. 152

PROJETO PESQUISA E FORMAÇÃO: UM OLHAR PARA A POPULAÇÃO


LGBTI+ LEGISLAÇÃO, POLÍTICAS PÚBLICAS E MOVIMENTO LÉSBICO E
INCIDÊNCIA POLÍTICA
Lu Ferreira................................................................................................................................ 161

LEGISLAÇÃO, POLÍTICAS PÚBLICAS NO BRASIL E DISTRITO FEDERAL,


INCLUINDO DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS
Talita Victor............................................................................................................................ 169

LEGISLAÇÃO E POLÍTICAS PÚBLICAS PARA LGBTI+ NA ÁREA DA SAÚDE


Andrey Lemos........................................................................................................................180
GORDOFOBIA: CORPO, (S)EM DÚVIDA
UM ENSAIO SOBRE GORDICE, GRAVIDEZ Y PUERPÉRIO
tatiana nascimento.................................................................................................................190

ENTREVISTA COM BÀBÁ RENATO DE OGUN


Nina Ferreira.......................................................................................................................... 202

PORQUE É IMPORTANTE FALARMOS SOBRE NÓS: EXPERIÊNCIAS DE


ATUAÇÃO DA COTURNO DE VÊNUS EM PROJETOS DE PESQUISAS E
FORMAÇÕES
Coturno de Vênus ...................................................................................................................211
De margem a margem o rio corre, (se)
transforma, avança: legislação políticas
públicas e movimentos de direitos humanos
LGBTI+ em face da multiplicidade subjetiva de
sujeitos e categorias sociais atravessadas
por marcadores identitários vastos e
significativos

Coturno de Vênus
Associação Lésbica Feminista de Brasília

Esta publicação que vocês têm em mãos, leitoras queridas, leitories querides,
leitores queridos, foi finalizada às vésperas de uma grande mudança no Brasil.
Enquanto terminávemos a editoração desse livro, cujo lançamento foi marcado
para a véspera do segundo turno do processo eleitoral para escolha do presi-
dente do nosso país, muitas águas rolaram, internamente em cada uma de nós,
coletivamente em nosso grupo, externamente no país inteiro.
Num momento político tão marcado, de um lado, pela violência da extrema-
-direita organizada cada vez mais e decidida a atentar contra nossas vidas insub-
missas e, de outro, pela esperança de bissexuais, transgêneras, travestis,
dias melhores para todes que lutamos queer, intersexo, assexuais, pansexu-
pelo direito de viver, de nos expressar, ais e outras categorias incategorizá-
de sermos quem somos e como so- veis da dissidência sexual e de gênero.
mos, finalizamos esse conjunto de pa- Nós lutamos é por direitos humanos
lavras insubordinadas, as quais tentam para humanes tortes, também. Esse
trazer sentidos novos, ou simultanea- livro é sobre isso.
mente ancestrais, para ocupar o con-
Sobre esse povo teimoso que so-
ceito de direitos humanos.
mos, essa gente que insiste em viver,
Sabemos que esse é um concei- sorrir, trabalhar, produzir, amar, pen-
to em constante disputa, frequente- sar, escrever, cantar, se espalhar no
mente questionado e alargado, para mundo a despeito de tantas estatísti-
que abarque cada vez mais existên- cas assassinas; esse povo “do arco-í-
cias, formas de viver e amar, cada vez ris”, esse pessoal queer; “a viadagem”,
mais povos, subjetividades, corporei- as trava tudo, as sapatona, es não-
dades. -binárie, pessoas trans, “do babado”,
entendidas, “bafônicos”, em suma, a
Então, enquanto vocês as lêem aí,
identidade LGBTI+ é o guarda-chuva
saiba que, do lado de cá, aqui nes-
subjetivo que motiva o início do tra-
se contexto editorial e em um outro
balho que leva ao livro “De margem a
espaço-tempo diferente e cada vez
margem o rio avança”, produzido pela
mais distante desse em que vocês
Coturno de Vênus – Associação Lés-
agora recebem estas palavras, en-
bica Feminista de Brasília, ONG que
quanto jantávamos os artigos, en-
atua há 17 anos com sede em Brasília,
saios, poemas, relatos, análises, refle-
Distrito Federal, em luta pelos direitos
xões aqui publicadas fizemos isso por
humanos de lésbicas, bissexuais, pes-
acreditar que estamos do lado justo
soas trans, queer.
da história.
Mas não pára por aí. Nem pode
Por isso, nutrimos o desejo espe-
parar. Porque sabemos que, assim
rançoso de que quando você ler De
como as águas de um rio nunca são
margem a margem os rumos de tal
uma mesma água, as identidades das
pleito eleitoral tenha redefinido para
dissidências sexual e de gêneros não
melhor, para cada vez mais longe da
são unívocas, desmarcadas de outras
extrema-direita e sua noção estreita
interpelações subjetivas. Muito pelo
de “direitos humanos para humanos
contrário. Em primeiro lugar (e para
direitos”, os caminhos e os destinos
falar do lugar, primeiro) estamos nos
de uma nação que ainda tanto mata,
articulando desde um lugar, esse lu-
que ainda muito machuca, que ainda
gar, essa cidade. A capital do Brasil.
bastante viola direitos humanos de
pessoas LGBTQIAP+1: lésbicas, gays, E é daqui, espaço central em ter-
mos de disputas narrativas, políticas,
1 Essa é a única vez em que faremos referência à que enfrentamos cotidianamente a
sigla assim mais completa; da próxima ocorrência
em diante usaremos LGBTI+.
realidade de estarmos em um con-

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 9
texto no qual, quando não se está norte, o nordeste e o centro-oeste
em posição de usufruir qualquer um, trazem ao debate.
por menor que seja, dos poderes he-
Fazemos isso para somar forças
gemônicos, grandes ou pequenos, a
aos tantos projetos em curso, para
realidade é ser margem, é estar fora
que as narrativas sobre as dissidên-
dos centros, é ser periferia: de sexua-
cias sexuais e de gênero saiam do
lidade, de gênero, de classe, de raça,
eixo sul-sudeste, tragam cores além
de etnia, de corpo.
do branco, vozes além da homosse-
Ainda, estando nós também cien- xualidade branca cisgênera, amplian-
tes de que as constantes disputas por do assim o cerne da episteme LGB-
escuta, por legitimidade estão mar- TI+ nacional a expandir seus limites
cadas para além do corpo, chegando para territórios menos reconhecidos,
aos limites da inserção georreferen- ainda que não menos atuantes, nem
ciada que tem assistido a discursos, menos fecundos.
práticas, cenários de ativismo e mili-
Como diria a poeta, ativista, pen-
tância LGBTI+ sendo dominados por
sadora sapatão chicana queer Gloria
coletivos, organizações, associações
Anzaldúa,
gays brancas que são, ainda por cima,
majoritariamente coletivos sulistas e Por que sou levada a escrever? Porque a
escrita me salva dessa complacência que
sudestinos, querendo pautar os dis- temo. Porque não tenho escolha. Porque
cursos, as narrativas, as agendas de preciso manter vivos o espírito de minha
revolta e a mim mesma. Porque o mundo
luta da dissidência sexual e de gênero que crio na escrita compensa aquilo que
brasileira a partir de seus limites ge- o mundo real não me dá. Ao escrever eu
organizo o mundo, ponho nele uma alça em
ográficos e territoriais se propondo que posso me segurar. Eu escrevo porque
a vida não satisfaz meus apetites e minha
status quase universal, nos apresen- fome. Escrevo pra registrar o que outros
tamos aqui como centro-oestinas. apagam quando eu falo, pra reescrever as
histórias mal-escritas que eles contaram de
mim, de você. Pra ficar mais íntima comigo
Assim é que, não por coincidência mesma e contigo. Pra me descobrir, pra me
mas por escolha traduzida em po- preservar, pra me fazer, pra ter autonomia.
Pra dissipar os mitos de que sou uma
lítica curatorial ciente e afirmativa, profeta louca ou uma pobre alma sofredora.
a maioria de autories da publicação Pra me convencer de que tenho valor e de
que o que tenho a dizer não é um monte
também é daqui do centro-oeste, de merda. Pra mostrar que eu posso e que
eu vou escrever, mesmo que me ameacem
de Brasília. E essa escolha, portanto, pra não escrever. E vou escrever sobre as
é uma escolha feita de forma deli- imencionáveis, sem me importar com o
suspiro ultrajado da censura e do público.
berada, consciente, autoafirmativa, E, por fim, eu escrevo porque tenho medo
que se realiza no intuito de contribuir de escrever, mas tenho mais medo ainda de
não escrever. (Anzaldúa, 2021, p. 52).
aos cada vez mais frequentes esfor-
ços de remapeamento da produção
Esse livro reúne vozes, histórias,
de conhecimento LGBTI+ nacional,
perspectivas, epistemes, corpos,
para que se desenhe um mapa cada
subjetividades que são, em geral, du-
vez mais representativo e descentra-
plamente desautorizadas: primeiro
lizado, que dê conta das cores, sota-
pelas narrativas super hegemônicas
ques, sabores e experiências que o
da branquitude cisgênera heteronor-

10 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
mativa magra, capacitista, sudestina em geral de raça e classe, e de locali-
ou sulista, masculina tantas vezes; zação regional.
depois, pelas micro-hegemonias que
Por sermos uma organização com-
são reproduzidas no coração dos es-
posta também por integrantes sapa-
paços de luta contra as super hege-
tonas negras, achamos importante
monias. 74 anos depois da declaração
que a publicação desse livro desse
dos direitos humanos, ainda precisa-
conta de tratar, não de maneira seto-
mos lutar para garantir que, mesmo
rizada ou de alguma forma acessória
entre “os nossos”, sejamos reconhe-
como infelizmente por vezes tópicos
cides, ouvides. Desinvizibilizades.
considerados de interseccionalidade
Ainda temos que disputar entre são tratatos, temas que frequente-
nós para que dentro dos contextos mente são chamados de interseccio-
de dissid6encia sexual e/ou de gêne- nais ou correlatos mas são, para tan-
ro as super hegemonias não tenham tas pessoas LGBTQIAP+ desse brasil,
disciplinado tanto a nós, nosses pa- centrais, uma vez que aspectos como
res, a ponto de fazer com que nossas racialidade, etnias e/ou deficiências
vozes sigam sendo pouco ouvidas, a marcam nossas subjetividades, de-
ponto de tornar dispensáveis nossos terminam os rumos de nossa história,
saberes. Mas são saberes, histórias, são, em alguns casos, os traços iden-
experiências, formas de vida sexual titários que são primeiros percebidos
dissidentes, gênero dissidentes igual- socialmente e pelos quais sofremos
mente legítimas, fecundas, necessá- preconceito, discriminação, inacesso
rias à desconstrução de mundos em sistemático a direitos humanos que
que o espaço ao narrar, ao dizer, ao grupos hegemônicos gozam como
pensar sobre é elitizado. se fossem privilégio ou exclusividade.
Nossos saberes, conhecimentos É por isso que para nós foi impor-
e epistemes têm sido menos aces- tante conseguir convidar um número
sados, menos ouvidos, por conta majoritário de pessoas negras, indí-
mesmo de como se dá uma configu- genas, não brancas, com deficiência,
ração de legitmidades, a qual obe- centro-oestinas como nós ou oriun-
dece ordenamentos geoterritoriais das de regiões desse Brasil, enfim,
que, ainda que dentro de processos pessoas que partilham de pertenci-
e contextos das lutas sociais e polí- mentos e perspectivas contra-he-
ticas contra hegemonias – como é o gemônicas em suas vidas – uma vez
caso da luta pelo fim das lgbtqifobias, que, como é sabido, ainda que não
em luta atenta e constante contra as seja verdade do ponto de vista da
heterocisnormatividades, patroni- materialidade da vida, há uma domi-
zantes de quereres, corporeidades, nância de narrativas brancas, capaci-
subjetividades, formas de afeto, de tistas, sudestinas ou sulistas sobre a
relacionamentos… –, reproduz “pe- população LGBTQIAP+ brasileira.
quenos poderes”, criando e manten-
Mais do que nos contrapor com
do assim “pequenas hegemonias”,
nossa própria vida e com nossas pró-

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 11
prias reflexões a essas narrativas, o Isso coloca um contraponto à no-
conjunto de textos que trazemos aqui ção de políticas públicas, as quais,
é também anunciativo. Declarar isso por sua vez, tendem a consolidar in-
é a partir de um entendimento de que terpretações de formas menos flui-
há mais a fazer do que apenas recla- das, mais rígidas, uma vez que dizem
mar, demandar, denunciar. E por es- respeito ao estabelecimento de leis,
tarmos lidando com os textos negros, e para isso demandam tantas vezes
os quilombolas, os textos indígenas compreensões terminais acerca de
que foram convidados a fazer parte determinado tema ou subjetividade.
desse relicário, essa publicação está Para quem, como nós, tem estado
sintonizada com cosmovisões que na luta por direitos humanos das co-
escapam ao fatalismo racionalista da munidades LGBTI+ há décadas, tor-
branquitude, da colonialidade, e seus nou-se comum ter que explicar, por
paradigmas de escassez, destruição, exemplo, a agentes do serviço pú-
toxicidade. blico, mudanças terminológicas, ou
mesmo a inclusão de novos sujeitos
Em um dos textos de De margem a
sociais que sequer eram imaginados,
margem, Danilo Tupinikim afirma que
no plano dos direitos humanos, da ci-
Quando falamos na especificidade nos dadania, e de acesso a serviços bási-
modos tradicionais de vida dos povos
indígenas, nos referimos a um modelo que cos, como, por exemplo, as pessoas
vai contra a organização social, política e não-binárias.
econômica dos não-indígenas, e que muitas
vezes entra em conflito diante de suas
formas de ver e vivenciar o mundo. Esse desafio em defender nos-
sa multiplicidade como algo que nos
Podemos ampliar a discussão para fortalece, a celebração de nossas di-
o tópico em questão, a multiplicidade ferenças como fonte de mais possibi-
de subjetividades dentro da legenda lidades e não de limitações, por vezes
LGBTI+ levando a uma miríade de hu- parece estar ligado à dificuldade de
manidades que demanda igualmente entender humanidade fora de pa-
interpretações múltiplas de direitos râmetros binários: “mulher” ou “ho-
humanos, propondo uma reflexão so- mem”, “negro” ou “branco”, “passi-
bre a própria noção de humanidade: vo” ou “ativo”, “anormal” ou “normal”,
quem é humano, quem tem direito de “negativo” ou “positivo”. A conjunção
ser chamada, chamade, chamado de “ou” sendo usada, nesse contexto,
pessoa humana? Isso também está sempre de forma excludente, nunca
dentro do terreno conflituoso cita- permitindo ambivalência.
do pelo autor, e para nós é tema de Muitas vezes, para pessoas que es-
constante reflexão e transformação tão fora de nossos contextos de luta,
de práticas, uma vez que as identida- de relacionamentos, de trabalho, até
des sexuais e/ou de gênero têm pas- mesmo de família, parece que querer
sado, historicamente, por mudanças defender a vulnerabilidade de nossas
constantes nos sentidos que as defi- identidades é uma ofensa, é algo er-
nem, sendo mesmo constantemente rado, que nos põe em risco ao afron-
redefinidas, rearticuladas.

12 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
tar a noção rígida de sujeito, pessoa, tem papel fundamental o sistema de
humano que carregamos dentro de valores (muitas vezes, CIStema) que
nós e que é forjada por aquela ex- conforma desde aquilo em que acre-
pressão colonial binária, excludente. ditamos até nossas formas de atuar
no mundo. Assim, mesmo havendo
Temos que lutar constantemente
uma série de dispositivos legais de
para convencer outras pessoas, mui-
proteção e defesa de nossos direitos
tas vezes dentro de nossas próprias
e de nossas vidas, ainda assim es-
famílias, de que somos sim pessoas,
tamos entre as populações LGBTI+
de que somos gente, somos huma-
mais vulnerabilizadas do planeta.
nes. E também para os entendimen-
tos jurídicos, legais, em que a duras Nesse sentido, o mesmo Brasil que
penas vamos consolidando, ano após tem uma legislação avançadíssima,
ano especialmente depois do adven- em comparação a outros países pro-
to da Constituição Federal de 1988, gressistas, no que diz respeito, por
a qual ficou conhecida como Consti- exemplo, ao nome social de pessoas
tuição Cidadã, o reconhecimento aos trans e travestis2, é o Brasil que mais
nossos direitos humanos: mata pessoas travestis e transgêneras
do mundo, segundo os dados da ONG
Viola a dignidade da pessoa humana a
manutenção, entre os juristas, de uma visão internacional Transgender Europe:
androcêntrica e homofóbica, que reforça
e reproduz as inculcações realizadas no Apesar de a transfobia ser crime no Brasil
interior da família patriarcal, no sentido de desde 2019, o país é ainda o que mais mata
impor a heterossexualidade como algo pessoas trans e travestis em todo o mundo
“normal” e a homossexualidade como pelo 13° ano consecutivo. O número de
algo “anormal”, na medida em que trata assassinatos de mulheres trans e travestis
os sujeitos que não estejam de acordo é o maior desde 2008 — ano em que o
como esse parâmetro de “normalidade” dado começou a ser registrado. Conforme
estabelecido, como indivíduos possuidores o relatório de 2021 da Transgender Europe
de menor dignidade. Ao diminuir a (TGEU), que monitora dados globalmente
dignidade dos que não se enquadram nesse levantados por instituições trans e
padrão de normalidade, com base em LGBTQIA+, 70% de todos os assassinatos
argumentos morais ou religiosos, nega-se registrados aconteceram na América do Sul
a parte da população acesso pleno ao ideal e Central, sendo 33% no Brasil, seguido pelo
de igualdade estabelecido na Constituição México, com 65 mortes, e pelos Estados
Federal. (Mattos, 2014, p. 4). Unidos, com 53. (Pinheiro, 2022).

No entanto, mesmo que suposta- Muitas dessas mortes atingem es-


mente paire sobre todes nós a garan- pecialmente mulheres trans e traves-
tia do direito constitucional à igual-
dade e demais políticas públicas que 2 É muito importante ressaltar que tal conquista
vão se assomando desde o final dos dos movimentos sociais, especialmente dos
anos 1980, fato é que a salvaguarda movimentos Trans e Travesti, foi consolidada
durante o mandato da presidenta Dilma Rousseff,
legal de direitos a pessoas LGBTI+ que assinou, em 2016, um Decreto Presidencial
não necessariamente se traduz em dispondo sobre “o uso do nome social e o
práticas e condutas respeitosas, nem reconhecimento da identidade de gênero de
pessoas travestis ou transexuais no âmbito da
mesmo no âmbito de quem opera administração pública federal direta, autárquica
políticas públicas. Isso se deve a ser- e fundacional”, Decreto n. 8727, de 28 de abril de
mos pessoas humanas em contexto 2016. Disponível em: <http://www.planalto.gov.
br/CCIVIL_03/_Ato2015-2018/2016/Decreto/
constante de subjetivação, na qual D8727.htm>. Acesso em: 14 out. 2022.

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 13
tis negras, e tais números correspon- outros direitos humanos fundamen-
dem, tragicamente, a menos mortes tais à existência plena com cidadania,
do que efetivamente ocorrem, uma gera lacunas que, quando não dire-
vez que são subnotificadas. Segundo tamente responsáveis por mortes
pesquisa da Antra – Associação Na- LGBTI+, são indiretamente responsá-
cional de Travestis e Transexuais, lan- veis, como mostram tantos casos de
çada em 29 de janeiro de 2019, das suicídio que ocorrem entre nós.
124 mortes de pessoas trans assassi-
Temos conquistas nacionais, como
nadas no país naquele ano, 82% eram
o Programa Nacional de Direitos Hu-
negras (Benevides, Nogueira; 2019).
manos (PNDH 3); da Presidência da
O mais básico e fundamental di- República (2009), o programa Bra-
reito humano, que é o direito à vida, sil Sem Homofobia – Programa de
segue sendo ameaçado quanto mais Combate à Violência e à Discrimina-
longe estejam, com relação às rígidas ção contra GLBT (sic) e a Política Na-
e estreitas réguas coloniais, da cisge- cional de Saúde Integral de Lésbicas,
neridade, do racismo, da heternorma, Gays, Bissexuais, Travestis e Transe-
os corpos, subjetividades e desejos xuais (Política Nacional de Saúde In-
dissidentes. O racismo, assim, como tegral LGBT), ambos do Ministério
necropolítica colonial que mais de- da Saúde (2004 e 2011); a decisão do
termina o direito à vida ou à morte, Supremo Tribunal Federal – STF de
amplifica a violência transfóbica de que pessoas trans podem alterar seu
forma muito contundente, tornando nome de registro civil independen-
impossível falarmos de gênero e se- temente de cirurgia de redesignação
xualidades sem falar sobre raça. sexual (01 de março de 2018).
O conceito de necropolítica do Há também importantes políticas
pensador senegalês Achille Mbembe locais, no âmbito do Distrito Federal e
pensa como há duas forças de morte entorno, como o Centro de Referência
em atuação nas sociedades contem- Especializado de ASsistência Social
porâneas; para o autor, há políticas e (Creas) da Diversidade, que tem foco
dispositivos que se encarregam de no atendimento a pessoas LGBTI+ e
causar o máximo de mortes, e estão é um serviço da Secretaria de Desen-
intimamente ligados à ideia de sobe- volvimento Social do DF3; a portaria n.
rania do Estado, o qual se outorga o 04, de 23 de janeiro de 2020, que es-
direito de “definir quem importante tabelece, no contexto do Sistema So-
e quem não importa, quem é ‘des- cioeducativo do Distrito Federal, um
cartável’ e quem não é” (Mbembe,
2018, p. 29). 3 Para conhecer mais políticas públicas voltadas
à população LGBTI+ no Distrito Federal,
A falta de políticas públicas que especialmente as destinadas às pessoas trans,
você pode consultar o site Cidadania Trans,
garantam o acesso à moradia, saú- disponível no link: <https://cidadaniatrans.sejus.
de, educação, empregabilidade, bens df.gov.br/politicas.html#:~:text=APOIO%20
culturais e artísticos (usufruto e pro- A%20COMUNIDADE%20LGBT%20EM,em%20
parceria%20com%20a%20Sejus.>. Acesso em:
dução), participação política, dentre 14 out. 2022.

14 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
protocolo de atendimento humaniza- Referências:
do à população LGBT. Estas e outras
ANZALDÚA, Gloria. A vulva é uma
são conquistas fundamentais, bastan-
ferida aberta & outros ensaios. Trad.
te básicas, e que seguem sendo ame-
tatiana nascimento. Rio de Janeiro: A
açadas em tempos de fundamentalis-
Bolha, 2021.
mo político e de valores.
BENEVIDES, Bruna G.; NOGUEI-
Assim como as águas fundas e in-
RA, Sayonara Naider Bonfim (Orgs.).
controláveis dos rios, que podem
Dossiê assassinatos e violência contra
tanto afagar quanto afogar, a luta por
travestis e transexuais brasileiras em
direitos humanos de pessoas dissi-
2019. São Paulo: Expressão Popular:
dentes sexuais/de gênero, em todas
ANTRA, IBTE, 2020.
as nossas especificidades étnico-ra-
ciais, de corporeidade, de geoloca- MATTOS, Fernando da Silva. Di-
lização, cosmovisão, têm sido defi- reito à igualdade e à dignidade dos
nidas por margens cada vez menos homossexuais no Brasil: uma análise
marginalizadas, cada vez mais articu- panorâmica da jurisprudência. In: Mari
ladas, cada vez mais transformado- Cristina de Freitas Fagundes; Gabrie-
ras. É de margem a margem que os la M. Kyrillos; Ana Clara Correa Hen-
rios correm, avançam, transbordam, ning. (Org.). Direitos Fundamentais
transformam. É daqui, de nossos lu- e grupos vulneráveis no Brasil. 1ed.
gares sociais vários, multifacetados, São Leopoldo: Casa Leiria, 2014, v. 2,
que fazemos política e lutamos por p. 293-315. Disponível em: <https://
mundos mais justos, em que as dife- direito.mppr.mp.br/arquivos/File/ar-
renças até mesmo entre nós, que di- tigoMattos.pdf>. Acesso em: 14 out.
ferimos das normas sociais mais rígi- 2022.
das e violentas, sejam reconhecidas e
MBEMBE, Achille. Necropolítica:
celebradas como fortaleza.
biopoder, soberania, estado de exce-
Ao contrário do que os cistemas ção e política da morte. São Paulo: n-1
normativos definem, vulnerabilidade, edições, 2018.
para nosso povo teimoso, é força. As
PINHEIRO, Ester. Há 13 anos no
diferenças, que por tanto tempo têm
topo da lista, Brasil continua sen-
sido temidas e evitadas, que causam
do o país que mais mata pessoas
incômodo e apresentam o desafio
trans no mundo. In: Brasil de Fato
da especificidade a quem formula e
(online). 23 jan. 2022. Disponível
opera políticas públicas, essas dife-
em: <https://www.brasildefato.com.
renças que fazem com que ou nos
br/2022/01/23/ha-13-anos-no-to-
destaquemos ou sejamos tratades
po-da-lista-brasil-continua-sendo-
como descartáveis, nos ensinam a
-o-pais-que-mais-mata-pessoas-
força da vulnerabilidade. É dessa for-
-trans-no-mundo#.>. Acesso em: 14
ça que escrevemos aqui, é ela que
out. 2022.
nos faz seguir, como rio, delineado
por nossas margens.

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 15
Terminologia: Entendendo siglas, conceitos,
expressões.

Por Sara Meneses

A primeira vez que escutamos determinadas palavras algo marca a nossa


memória. Para cada uma de nós da população LGBTQIA+ essa experiência se
mistura e perdura no processo de descoberta de quem nós somos. Alguns de
nós reagiram com espanto, outros com ignorância, alguns com raiva e para certa
parcela há a identificação, o momento do “agora entendi o que eu sou”. Toda
essa descrição faz parte de um tempo e espaço bastante localizados. Estou me
referindo às minhas experiências como uma pessoa parda, cisgênera, sapatão
e pobre, compartilhadas com toda uma geração de pessoas do Brasil que nas-
ceram na virada do século XX e estão vivenciando a vida adulta no século XXI.
Por que é importante me localizar nessa escrita? Conceição Evaristo, uma au-
tora brasileira com obras consagradas na literatura nos apresentou o conceito
de “Escrevivência”, que através da sua escrita pessoal, apresenta experiências
coletivas compartilhadas por muitas mulheres negras no Brasil. Faço uso aqui do
conceito de Escrevivência como ferramenta metodológica para costurar essa
escrita (EVARISTO 2009; SOARES & MACHADO, 2017).
1. Terminologia produto tanto do indivíduo como da
sociedade, existem forças sociais que
A palavra terminologia tem uma
atuam para que essa pessoa se com-
longa trajetória como campo disci-
preenda e possa a partir disso atuar
plinar na ciência da informação. Um
e fazer a si mesmo (MARTÍN-BARÓ,
termo polissêmico, ou seja, que tem
1989). Silvia Lane, uma psicóloga so-
mais de um significado, apresenta um
cial brasileira nos apresenta a ideia de
primeiro significado como conjunto
que a linguagem surgiu da coletivida-
de diretrizes que formulam e regem
de, ou seja, que a linguagem reproduz
a partir de princípios, a compilação,
por meio do significado das palavras
formação de termos e caminhos
em frases os valores, conhecimentos
conceituais e um segundo significado
(verdadeiros e falsos) que estão vin-
como conjunto de termos relaciona-
culados a práticas sociais que se con-
dos à uma especialidade ou campo,
solidaram em um determinado grupo
formando um sistema de conceitos
social (LANE & CODO, 1984). Assim,
que se referem a uma atividade par-
qualquer análise da linguagem tem
ticular. Ou seja, a terminologia tanto
que a considerar como um produto
é disciplina como produto concreto
histórico e fruto de um contexto social.
sobre o qual versa (TESAURO, 2015;
DIAS, 2000). Isso significa que as palavras repre-
sentam o mundo, que a nossa língua
Para mim, a curiosidade de me
explica e reproduz crenças, valores e
aproximar dos significados dessa pa-
muitas visões do que consideramos
lavra tem a ver com o objetivo dessa
como realidade. Porém, um aspec-
escrita que busca apresentar siglas,
to muito importante ressaltado pela
conceitos, expressões da população
Psicologia Social nos aponta que as
LGBTQIA+ visando a compreensão
pessoas transformam a si mesmo, a
da pessoa que nos lê. Porém, é preci-
partir do momento que internalizam
so deixar claro que não será apresen-
essa língua, elas têm a possibilidade
tado aqui apenas um vocabulário de
de mudar não só a si mesmos como a
termos e conceitos. Estamos em bus-
própria língua.
ca de compreensão e para alcançar
esse estado, é preciso de um contex- Marcos Bagno (2003) nos faz um
to, seja ele histórico, político, social, alerta sobre as pessoas que reagem
para compreender é preciso conhe- negativamente às mudanças na lín-
cer onde as palavras se localizam. gua, ele aponta que essas pessoas
acreditam em uma ilusão de que a lín-
gua é fixa, imutável. Tais pessoas jul-
2. Palavras que constroem
gam mudanças como sinais de “cor-
pessoas
rupção”, “decadência” não apenas
Do ponto de vista da Psicologia da língua, mas da sociedade. Porém,
Social, existe uma relação inseparável a língua é viva e está em constan-
entre indivíduo e sociedade, descre- te mudança seja por fatores sociais
vendo a identidade social como um (externos) ou fatores linguísticos (in-

18 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
ternos). Quando olhamos para a lín- nhecida por seus poemas na qual se
gua portuguesa de séculos passados declarava a mulheres, mas o termo re-
conseguimos aceitar que ela mudou, torna ao contexto moderno por volta
mas aceitar que a língua segue mu- dos anos 1890. Os termos “homosse-
dando parece muito difícil, pois ela dá xual” e “ bissexual” foram cunhados
sentido às nossas atividades, conse- no final do Século XIX, pelo jornalis-
guimos nos comunicar, então por que ta Karoly Maria Kertbeny através de
ela deveria mudar? Essa impressão uma carta anônima que reivindicava
de que a língua está pronta e acaba- a homossexualidade e a bissexualida-
da é falsa, agora mesmo a língua pas- de como condições inatas e naturais
sa por processos de mudança e nós do ser humano (BLAKEMORE, 2021).
convivemos com diferentes tempos Uma vez popularizados tais termos,
da língua, marcas de como a língua vários médicos se propuseram a es-
era falada no passado com marcas de tudar pessoas homossexuais e bisse-
como ela mudou e é falada no século xuais, mas de um ponto de vista que
atual (BAGNO, 2003). colocava tais pessoas como doentes.
Para além dessa noção, legalmente
As disputas na linguagem demons-
em muitos países era crime ter rela-
tram que as palavras constroem pes-
ções homossexuais, inclusive ainda é
soas e realidades e que a língua dá
em cerca de 73 países.
sentido a quem nós somos. Portan-
to, ter essa compreensão possibili- Em um breve resgate histórico, são
ta que processos culturais tais como Marsha P. Johnson e Sylvia Rae Rive-
mudança de crenças e valores sejam ra, duas transexuais, que lideram a re-
possíveis, e foi pautado nessa mu- volta no Bar Stonewall contra batidas
dança que a população LGBTQIA+ policiais violentas direcionadas à po-
construiu novas formas de existir. pulação LGBTQIA+ que frequentava
o lugar. A partir deste marco inter-
nacional, outros movimentos se in-
3. Os Direitos conquistados
tensificaram ao longo do mundo. No
a partir das Lutas Coletivas Brasil, desde 1940 havia reuniões que
Historicamente, o movimento de buscavam socialização entre pessoas
luta da população LGBTQIA+ atra- da população LGBTQIA+. Porém foi
vessou barreiras externas e internas no período da Ditadura Militar no Bra-
para se consolidar na busca por se sil que a partir de publicações como
afirmar como sujeitos de Direitos. Os o Jornal Lampião da Esquina e Cha-
termos utilizados para se referir às naComChana que passaram a discu-
pessoas que se relacionam sexual- tir sobre questões e atravessamentos
mente com pessoas do mesmo gê- sociais das pessoas da população
nero foram o ponto de partida para a LGBTQIA+. Porém, é preciso ressal-
trajetória de luta. O termo “Lésbica” tar que assim como nos movimentos
assim como “Lesbianismo” datam de esquerda, os movimentos “gays”
como um dos mais antigos devido a também reproduziam opressões
poetisa Safo da Ilha de Lesbos, co- contra a participação de lésbicas,

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 19
travestis e transexuais, tendo como ENTILAIDS (FACCHINI, 2011; LINO et
maiores protagonistas homens gays al. 2011). Dentre uma das associações
brancos (FACCHINI, 2011). impulsionadas a partir desse período
está a ANTRA (Articulação Nacional
Em 1980, com a epidemia de HIV/
de Travestis, Transexuais e Transgê-
AIDS a população LGBTQIA+ se vê
neros), uma das principais institui-
assolada com muitas pessoas ado-
ções atuantes no Brasil pelos direitos
ecendo e morrendo, com uma des-
das pessoas trans.
mobilização dos grupos organizados
na década passada e sofrendo com a A história das lutas coletivas pauta
alcunha de “peste gay” e todo o pro- as mudanças nas siglas, nos termos e
cesso de estigmatização que recaiu expressões. Desde a primeira década
sobre toda a comunidade LGBTQIA+ dos anos 2000, a luta da população
(FACCHINI, 2011; LINO et al. 2011). LGBTQIA+ convive com fortaleci-
Porém, é nesse processo intenso de mentos e enfraquecimentos. Em 1999,
estigmatização que a luta por melho- uma resolução do Conselho Federal
res tratamentos e por ações de cui- de Psicologia veta aos profissionais da
dado à população LGBTQIA+ se for- Psicologia praticarem qualquer ação
talecem e se constrói um movimento que trate a homossexualidade como
que pauta na constituinte a inclusão patologia na prática clínica. Essa reso-
do termo “orientação sexual” no ar- lução chega ao Brasil muitas décadas
tigo contra a discriminação. Ainda depois que a CID (Classificação Inter-
que não tenha sido incluído, esse ato nacional de Doenças) havia retirado a
expressa uma forte mobilização que homossexualidade do rol de doenças
perdura até hoje em torno da pauta em 1973. A Transexualidade, no en-
da saúde da população LGBTQIA+. tanto, só foi retirada do rol de doenças
da CID em 2018. O casamento entre
A década de 1990 demonstra a luta
pessoas do mesmo gênero, apesar de
por direitos e políticas públicas dire-
ainda não ser Lei, é garantido por uma
cionadas à população LGBTQIA+.
decisão do Supremo Tribunal Federal
Aqui a criação da ABGLT (Associação
desde 2011, válida em todo o território
Brasileira de Gays, Lésbicas e Tra-
brasileiro.
vestis) desponta a articulação políti-
ca entre os diferentes segmentos da Essa breve recapitulação da histó-
população LGBTQIA+, com destaque ria das lutas coletivas pela garantia de
para o SENALE (Seminário Nacional direitos à população LGBTQIA+ de-
de Lésbicas) que promovem uma monstra que as disputas e constru-
discussão das pautas das mulheres ções partem da luta em coletividade,
lésbicas em todo o Brasil. Além disso, mas que não se encerram com um
as organizações de travestis e transe- direito conquistado, pois o Brasil se-
xuais se disseminam pelo país e um gue sendo um país LGBTFóbico que
marco desse período são os Encon- segue nos matando todos os dias.
tros Nacionais de Travestis, Transexu- Manter viva a nossa luta e constru-
ais e Liberados na luta contra a AIDS - ção é levar adiante a nossa memória

20 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
e pautar a nossa continuidade a partir questionados quanto aos papéis de
da nossa historicidade. gênero que reproduziam nas relações
homossexuais, chegando a discutir
sobre o binarismo (noção de que exis-
4. A Sigla LGBTQIA+
tem apenas dois gêneros - masculino
Olhar para nossa história é recu- e feminino) e rompendo a noção de
perar os sentidos e compreender sexo biológico. Todos esses questio-
os movimentos que lutamos hoje. namentos se refletem nas identidades
Quando pude ter aulas sobre o pen- e no reconhecimento da população
samento LGBT brasileiro, me depa- tanto em termos de pautas a serem
rei com textos como o de Cassandra disputadas quanto ao estabelecimen-
Rios que saltaram aos olhos pela po- to de compreensões da realidade das
esia e pelo retrato de uma vivência de relações de gênero e da sexualidade.
afeto entre mulheres que não se en-
contra em muitos textos hoje. Assim 4.1. Gênero e Sexualidade
como resgatar todos os termos que
constroem nossa trajetória enquanto Desde o meu início nos estudos do
movimento de luta e que nos identifi- feminismo a compreensão dos con-
ca em cada momento histórico, des- ceitos de gênero e sexualidade me
de os termos que foram ressignifica- chamaram a atenção, não só pela plu-
dos como “gay” e “homossexual” até ralidade de concepções e teorias que
termos e pronomes da “linguagem apontam a influência desses aspec-
neutra” que constrói uma nova forma tos na realidade vivida, mas principal-
de nos reconhecermos e de nos iden- mente porque o processo de conhe-
tificar fora do binarismo (masculino e cer o significado desses conceitos
feminino) tão forte na língua portu- compõe um desvelar, a retirada de
guesa. A língua é viva e constrói nossa um véu que a socialização gendrada
realidade, assim como nós a constru- construiu sobre mim. Existe uma di-
ímos, transformamos e compomos nâmica entre esses aspectos da vida
novas realidades. humana, que fica claro nos papéis so-
ciais distribuídos e incentivados pela
A composição da sigla LGBTQIA+ é
sociedade brasileira, mas a compre-
diversa e atravessada por construções
ensão desses mecanismos possibilita
de diferentes contextos. Inicialmente
a quebra da influência deles e por isso
conhecida como GLS (Gays, Lésbi-
a educação de gênero e sexualidade
cas e Simpatizantes) a partir do Mo-
é uma pauta de luta da população
vimento Homossexual Brasileiro, que
LGBTQIA+.
toma forma através de grupos como
o SOMOS (Grupo de Afirmação Ho- Não é meu objetivo me alongar
mossexual de São Paulo) na década nessa escrita, por isso não aprofun-
de 1970 e o Grupo Gay da Bahia em daremos nas teorias de gênero e
1980 (FACCHINI, 2011). Com os es- sexualidade. Aqui buscaremos com-
tudos da teoria Queer na década de preender os termos e os seus signi-
1990, os movimentos também são ficados para a população LGBTQIA+.

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 21
Gênero é uma grande catego- Aprender esses conceitos nos aju-
ria que se relaciona com dois outros da a compreender as identidades das
conceitos, identidade de gênero e pessoas cisgêneras e transgêneras
expressão de gênero. De forma su- que fazem parte da população LGB-
cinta o Gênero é uma construção so- TQIA+. A transgeneridade como um
cial que atribui papéis, performances conceito guarda-chuva compreende
conforme as configurações corpo- pessoas que transicionaram de gê-
rais (cromossomos e genitália), tais nero tais como mulheres transexuais,
expectativas sociais são construídas travestis, homens transexuais e pes-
antes mesmo das crianças huma- soas que romperam com o binarismo
nas nascerem e influenciam todos como pessoas não-binárias, pessoas
os campos sociais da vida humana transmasculinas, pessoas de gênero
(JESUS, 2012; REIS, 2018). O gêne- fluido, pessoas agênero entre outras
ro parte da ideia de binarismo dos (JESUS, 2012; REIS, 2018; MENESES
corpos, de que existem apenas dois et al, 2020).
gêneros (homem-mulher/masculino-
Mulher transexual (Ela/Dela): pes-
-feminino), conforme características
soa que não se identifica com o gê-
físicas corporais construções sociais
nero masculino que lhe foi imposto
foram estabelecidas como uma nor-
ao nascimento e transicionou para o
ma a serem seguidas pelas pessoas,
gênero feminino.
exemplo: “ o homem é racional, a mu-
lher é passional”. Homem transexual (Ele/Dele):
pessoa que não se identifica com o
Identidade de Gênero por sua vez
gênero feminino que lhe foi imposto
se refere a como cada pessoa se re-
ao nascimento e transicionou para o
conhece no binarismo (masculino-fe-
gênero masculino.
minino). Sendo dividida pela cisgene-
ridade, na qual a pessoa se identifica Travesti (Ela/Dela): pessoa que
com o gênero que lhe foi designado apresenta uma identidade de gêne-
no nascimento e a transgeneridade, ro feminina, não necessariamente se
que compreende desde pessoas que reconhece como mulher transexual,
se identificam com o gênero opos- mas envolve uma performance de
to ao que lhe foi designado no nas- gênero feminina, a qual o pronome a
cimento até pessoas que romperam ser utilizado também deve ser femi-
com o binarismo, através de uma re- nino.
lação fluida com os gêneros.
Pessoa não-binária (Elu/Delu):
Expressão de gênero ou perfor- pessoa que rompe com o binarismo
mance de gênero é a maneira como masculino-feminino e adota para si a
cada pessoa expressa publicamente linguagem neutra visando a afirma-
através de signos e comportamentos ção como pessoa trans com a inde-
estabelecidos culturalmente como terminação de gênero.
feminino, masculino e de outros gê-
Intersexual: pessoa que ao nascer
neros.
apresenta características biológicas

22 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
cromossômicas e anatômicas ambí- (JESUS, 2012; REIS, 2018; MENESES
guas e não é possível a atribuição de et al, 2020).
gênero ao nascimento. Cabendo a
Assexual: Caracteriza uma pessoa
pessoa ao longo do seu crescimento
que não se sente atraída por pesso-
identificar-se com algum gênero ou
as de nenhum gênero, mas também
não.
compreende pessoas que têm atra-
Gênero fluido: pessoa que pode ção romântica e afetiva, mas não se-
expressar-se em ambos os gêneros xual por outras pessoas.
conforme sua identificação, sem que
Bissexual: pessoa que se sente
haja uma marcação de tempo.
atraída por ambos os gêneros (ho-
Queer: Pessoa que não se subme- mens cis e/ou trans e mulheres cis e/
te a rótulos de identidade de gênero, ou trans).
pois tem predileção pela autonomia
Pansexual: pessoas que se sen-
da indeterminação.
tem atraídas afetiva e sexualmente
Drag Queen/King/ transformis- por outras pessoas, independente da
ta: Nomenclaturas que caracterizam identidade de gênero.
performances artísticas de feminili-
Gay: homem (cis ou trans) que se
dade ou masculinidade, compreen-
atrai afetiva e sexualmente por outros
dem formas de experienciar o gêne-
homens (cis ou trans), também reco-
ro como arte não se tratando de uma
nhecido pelos termos bicha, viado,
identidade de gênero.
entre outros.
Agora que compreendemos as-
Lésbica: mulher (cis ou trans) que
pectos do gênero, vamos adentrar
se atrai afetiva e sexualmente por ou-
o campo da sexualidade. Historica-
tras mulheres (cis ou trans), também
mente, a sexualidade compreen-
reconhecida pelos termos sapatão,
de um campo de conhecimento do
sapatona, entre outros.
prazer entre pessoas, das trocas so-
ciais, dos signos eróticos e das cons- Heterossexual: pessoa que se sen-
truções calcadas em cada tempo te atraída afetiva e sexualmente ape-
e contexto das práticas sexuais. A nas por pessoas do sexo oposto ao
Orientação Sexual, por sua vez, é um seu.
conceito mais recente, e compreen-
de o desejo sexual e como ele é dire- Importante destacar que o sinal
cionado para determinadas pessoas, “+” (mais) representa todas as pes-
compreende uma inclinação involun- soas que não se identificam com as
tária, portanto não é possível mudar nomenclaturas acima descritas, mas
ou escolher a quem se deseja sexu- compreendem que o espaço de luta
almente. Dentre as orientações se- da população LGBTQIA+ é também
xuais estão a heterossexualidade, a um lugar de pertencimento, pois elas
homossexualidade, a bissexualidade, questionam as normas de gênero e
a pansexualidade e assexualidade sexualidade.

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 23
4.2. Interseccionalidade na tir, ser quem nós somos, amar quem
População LGBTQIA+ amamos. A norma está dada cultu-
ralmente e reforçada socialmente.
Lélia Gonzalez, uma pensado-
Esses sistemas de opressão do Ra-
ra brasileira em seu texto Racismo e
cismo, Patriarcalismo, Capacitismo,
Sexismo na Cultura brasileira (1984)
Cisnormatividade e Heteronormativi-
destaca a interdependência entre
dade colocam em risco nossas vidas
racismo e sexismo na vivência das
diariamente e por isso a nossa luta é
mulheres negras no Brasil, demons-
contra a norma estabelecida.
trando que a articulação do racismo
com o sexismo aprofunda a violência
sofrida pelas mulheres negras. Por 6. Referências
que esse debate é importante para a
população LGBTQIA+ ? BAGNO, Marcos. A norma oculta
- língua & poder na sociedade brasi-
O conceito de interseccionalida- leira. 2ª ed. São Paulo: Parábola Edi-
de foi cunhado pela autora Kimberlé torial, 2003.
Crenshaw (2002), e compreende a
noção de que há uma interdepen- BLAKEMORE, Erin. De LGBT a
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opressão tais como o racismo, o pa- cimento de identidade. National Geo-
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de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 25
MASCULINIDADES NEGRAS HOMOSSEXUAIS EM
HISTÓRIAS DE VIDA INTERSECCIONAIS

Pedro Ivo Silva


tatiana nascimento

RESUMO

A pesquisa aqui apresentada busca desvelar os sentidos e as implicações da


construção de masculinidades negras que emergem das histórias de vida dos
sujeitos constituídos na intersecção identitária entre negritude e homossexua-
lidade. Para atingi-lo, desenvolvemos este estudo dentro dos pressupostos de
natureza qualitativa ao realizar a revisão bibliográfica (GIL, 1999) da pesquisa de
mestrado do autor, publicada como o livro Narrativas Afrobixas (2020), em que o
uso das técnicas ‘entrevista aberta’ e ‘histórias de vida’, por meio das ‘narrativas
(auto)biográficas’, leva às interpretações. Dentre os relatos dos entrevistados na
pesquisa, a temática da construção de suas masculinidades como sujeitos ne-
gros homossexuais emerge em diversos momentos e tornou-se pertinente ao
estudo aqui proposto a possibilidade de pontuar e ampliar sua interpretação fe-
nomenológica. Os participantes da pesquisa são integrantes do Coletivo Afrobi-
xas e sua filiação a este grupamento ras da formalidade acadêmica bran-
parece demonstrar grande contribui- co-eurocêntrica ou da legitimação
ção para a (res)significação de suas patriarcal branca cis-heterossexista2
masculinidades por meio da reflexão sobre seus textos. Para a autora, tudo
crítica sobre modelos e valores so- isso deve ser dispensado e evocadas
cialmente hegemônicos. O aporte “as realidades pessoais e sociais —
teórico utilizado nesse caminho me- não através da retórica, mas com san-
todológico refere-se a discussões em gue, pus e suor” (ANZALDÚA, 2000
torno das representações de mascu- [1981]).
linidades negras advindas da cons-
Ante essa (res)significação da es-
trução interseccional das categorias
crita pela experiência atravessada por
identitárias ‘negritude’ e ‘homosse-
olhares ex-cêntricos, ou seja, que se
xualidade’. As interpretações feno-
dispersam para fora do centro hege-
menológicas apresentadas apontam
mônico ocidental, como dimensio-
para a dimensão em que negros ho-
na a coautora, pesquisadora e poeta
mossexuais constroem suas masculi-
negra tatiana nascimento3 (2019), em
nidades vinculadas a questões raciais,
seu livro cuírlombismo literário, enten-
de classe e de orientação sexual, po-
demos que a capacidade de produzir
rém mais explicitamente raciais ante
conhecimento em diversos níveis das
demais aspectos identificados inter-
histórias de vida e da compreensão
seccionalmente em suas narrativas.
das vivências compartilhadas pode
Palavras-chave: Negritude. Ho- desvelar realidades renegadas, tidas
mossexualidade. Interseccionalidade. socialmente por abjetas, uma vez que
Masculinidade(s) negra(s). Narrativas “narrar torna-se sinônimo de diálogo
(auto)biográficas. consigo, com o outro, com o mundo”
(CASTRO, 2014, p. 183). Nessa pers-
Primeiras considerações
2 Heterossexismo pode ser entendido como
Em seu texto Falando em línguas: “ideologia que prega a heterossexualidade como
uma carta para as mulheres escritoras a única sexualidade aceitável no meio social”
(VECCHIATTI, 2012, p. 38). Refere-se, ao longo
do terceiro mundo, Gloria Anzaldúa do texto, à heterossexualidade hegemônica, de
(2000 [1981]) convida mulheres es- caráter estrutural, portanto exercida por pessoas
critoras “de cor”1 do terceiro mundo cisgênero (cis-heterossexismo) dentro de uma
norma para o exercício das práticas afetivo-
– não brancas, negras, ameríndias, sexuais e das expressões de gênero socialmente
mestiças, asiático-americanas, etc. – aceitas (cis-heteronormatividade). Segundo
a repensarem sua escrita a partir de Jesus (2012), o termo cisgênero refere-se à
pessoa que se reconhece com o mesmo gênero
suas subjetividades não hegemôni- que lhe foi designado social e medicamente no
cas, inclusive em termos do exercício nascimento, com base no seu órgão genitor.
de sua sexualidade, tirando as amar- 3 A autora grafa seu nome em letras minúsculas
na assinatura de seus trabalhos e optamos por
1 Mantivemos o campo semântico anglófono em respeitar essa forma ao longo do texto, assim
que a expressão “de cor” é categoria endêmica e como também o faremos em relação à grafia do
não traz a carga pejorativa que o mesmo termo nome da pesquisadora bell hooks nas citações,
apresenta no contexto do português brasileiro. pelo mesmo motivo.

28 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
pectiva, a produção científica e sua xualidade é simultaneamente subjeti-
importância social trazem consigo a vo, estrutural e sobre posicionamen-
possibilidade de que sejam resultado tos sociais nas práticas cotidianas
significativo da ação daqueles cuja(s) (BRAH; PHOENIX, 2004). Adotamos
identidade(s) não se encontra(m) no tal conceituação para analisar relatos
eixo hegemônico dessa produção. de bixas pretas sobre si também com
base na proposição de Audre Lorde
Embora seja possível o estudo
sobre a importância do reconheci-
em separado de categorias de raça,
mento à diferença e da multiplicida-
classe e gênero, em particularidades
de que compõe cada subjetividade
próprias sobre diferentes formas de
(2000).
poder, intersecções entre estas ca-
tegorias – também destas com ou- Ao revisitar a dissertação de mes-
tras, como a sexualidade – vêm sen- trado do autor, intutilada Afrobixas:
do estudadas desde a década de narrativas de negros homossexuais
1980 por autoras como Angela Davis sobre seu lugar na sociedade (2017),
(1981) e Audre Lorde (2009 [1983]). posteriormente editada em livro
Suas análises sociais em obras sobre como Narrativas Afrobixas (2020),
a condição das mulheres negras na bem como um trabalho acadêmico de
sociedade estadunidense contribu- comunicação oral apresentado por
íram de maneira original e significa- ele na Universidade de Brasília (UnB),
tiva para a teoria social crítica, o que em 2017, chamado História de vida e
preparou as bases para o surgimento a construção da(s) masculinidade(s)
da teoria da interseccionalidade de negra(s) homossexual(is), procura-
Kimberle Crenshaw (1989), dentro mos no presente texto atualizar olha-
dos estudos feministas trabalhados res e interpretações possíveis para as
por pesquisadoras negras. Para esta narrativas (auto)biográficas (JOSSO,
autora, injustiça e desigualdades so- 2004; CHIZZOTTI, 2011) estudadas
ciais sistêmicas ocorrem em uma naqueles trabalhos anteriores, alicer-
base multidimensional, sendo que çadas em parâmetros intencionais
conceituações clássicas de opressão de seleção e interpretação acerca da
dentro da sociedade – tais como por temática da construção das masculi-
raça, classe ou gênero – não agem in- nidades de negros homossexuais, no
dependentemente umas das outras, que tange a aspectos interseccionais
mas se inter-relacionam, configuran- entre negritude e homossexualidade.
do seu caráter interseccional. Adotamos conceituações contem-
porâneas de negritude, como a com-
Nesse esteio, a teoria interseccio-
plexidade étnico-racial negra, em sua
nal permitiria um entendimento mais
dimensão identitária biológica, an-
complexo e dinâmico das relações
cestral e ontológica, conforme des-
humanas, para além do foco dado a
creve Kabengele Munanga (2009),
um único aspecto social, demons-
e de homossexualidade, como uma
trando que seu entrelaçamento com
expressão da sexualidade humana
as categorias de gênero, raça ou se-
orientada pelo desejo afetivo-se-

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 29
xual entre sujeitos do mesmo gêne- de de Brasília, cuja pauta de trabalho
ro (LINS; MACHADO; ESCOURA, possui um posicionamento político
2016)4. de enfrentamento do racismo e da
homofobia, por meio do fortaleci-
Nesse esteio, selecionamos tre-
mento de seus membros, negros de
chos das narrativas dos participantes
sexualidades periféricas. Como cole-
Malcolm, Danilo e Rodrigo5, mem-
tivo, o Afrobixas aproxima sua pauta
bros do Coletivo Afrobixas, como
de reivindicação social ao Movimento
corpus metodológico possível para
Negro e ao Movimento de Lésbicas,
este estudo, por ser a construção
Gays, Bissexuais, Travestis e Transe-
das suas masculinidades fora dos pa-
xuais – bem como de demais dissi-
drões hegemônicos tema emergente
dências de identidades sexuais e de
no relato de suas vivências como ne-
gênero – (LGBT+), promovendo aco-
gros homossexuais. Malcolm, Danilo
lhimento, discussão política e ação
e Rodrigo apresentaram-se com as
social de pessoas que se identificam
respectivas idades de 23, 21 e 21 anos,
com seus objetivos propostos.
e se autorreferenciaram em suas nar-
rativas como homens homossexuais Na interpretação das narrativas
cisgênero. dos participantes de pesquisa sobre
o tema emergente da construção
Situando o contexto e lugar de
de suas masculinidades, buscamos
fala dos narradores participantes, é
ao longo deste estudo dialogar com
necessário pontuar que o Coletivo
perspectivas de construção histórica,
Afrobixas é um grupamento de mili-
política e simbólica dessas vivências
tância social surgido na Universida-
nos diversos momentos em que esse
diálogo é solicitado, dentro dos pres-
4 Adotamos, neste trabalho, o entendimento
abrangente de que a orientação do desejo não
supostos teóricos interseccionais.
se remete ao sexo biológico do sujeito desejado,
mas ao gênero construído socialmente,
podendo as identidades destoar da coerência Experiências homoeróticas
esperada entre sexo e gênero. Apesar disso, e masculinidades negras
algumas menções ao longo do texto sobre a
homossexualidade e aos homossexuais farão homossexuais em narrativa
referência ao sexo biológico para a compreensão
das discriminações históricas ocorridas devido à De acordo com Marsiaj (2003),
suposta naturalização da relação sexo/gênero/
orientação sexual.
diante do processo afirmativo e “po-
sitivo” da identidade homossexual
5 Os nomes reais dos entrevistados foram
substituídos por pseudônimos, conforme
desde as décadas de 1960 e 1970, o
sua livre escolha, no intuito de preservar suas suporte midiático em todo o mundo
informações pessoais. As narrativas desses passa a ser uma constante, mas não
participantes foram selecionadas conforme o
tema aqui apresentado, seguindo as orientações
sem o ônus exigido pelo capitalis-
de Sanders (1982), a qual sugere que, de mo. Argumenta o autor que a maior
acordo com o tema, a pessoa pesquisadora aceitabilidade e abertura social à
em abordagem fenomenológica deva retirar
o máximo de informações de um número
participação e socialização dos ho-
limitado de participantes, o que pode ser feito mossexuais, seja nas esferas públicas
suficientemente entre três e seis indivíduos.

30 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
ou autônomas, requerem sua trans- [1] “eu comecei a ter mais dinheiro, [...] foi o
período em que eu descobri as boates e que
formação em um nicho de mercado. eu fui me acostumando a ideia de ser gay na
época, [...] estava me entrosando com esse
Esse ideal tem sido a maioria das ve- movimento LGBT” (Malcolm, 12/4/2016).
zes representados sob um gênero,
uma classe e uma raça específicos – o Esse trecho de seu relato entra em
homem gay branco de classe média. consonância com a análise de Marsiaj
Com a intenção de estabelecer (2003) sobre as condições econô-
um diálogo entre as considerações micas interferirem, de forma indireta
iniciais do parágrafo anterior e uma ou direta, em como pessoas homos-
interpretação fenomenológica so- sexuais se inserem nos grupos identi-
bre a forma como se expressam as tários de gays ou lésbicas, bem como
masculinidades negras homossexuais na maneira com que se relacionam
dos narradores participantes, cumpre afetiva e amorosamente. Essas pri-
ressaltar que a perspectiva de inter- meiras experiências do participante
pretação fenomenológica a que nos com as sociabilidades homossexuais
propomos com este artigo está no aproximaram-no de um padrão de
estudo da temática sobre a constru- comunidade gay branco e de classe
ção das masculinidades negras que média, influente inclusive em seus
emergem dos relatos daqueles parti- envolvimentos românticos, mesmo
cipantes sobre suas experiências ho- sendo negro e morador de uma cida-
moeróticas, ou seja, que marcam “um de localizada no entorno do DF.
conjunto de ações que um indivíduo Isso pode ser observado no que
direciona para outro do mesmo sexo, descreve mais adiante em sua narra-
com implicações afetivo-sexuais” tiva:
(FERNANDES, 2015, p. 42).
[2] Considerando que eu tinha mais dinheiro,
Nessa perspectiva, apresentamos eu estava indo mais pro centro do que
ficando próximo dos meus, eu comecei a
um trecho da narrativa de Malcolm, me envolver mais com pessoas brancas,
em que relata sobre seu trabalho no e eu não tinha raciocinado sobre isso; eu
não tinha consciência de classe, de raça,
Consulado Britânico e sobre como a então eu ia pras festas do centro nos fins de
liberdade maior conquistada por esse semana e ficava com essas pessoas brancas
e eu percebia que eu não era tratado
emprego e seu status social auxiliou da mesma maneira [que elas] na boate
(Malcolm, 12/4/2016).
na sua identificação com a comuni-
dade gay e na promoção de suas in-
terações homoeróticas nesse meio. A A percepção racializada que Mal-
identificação do narrador com o “ser colm tem de suas relações afetivas é
gay” adveio do estabelecimento das também encontrada em um trecho
redes homossociais que fez quando do relato de Rodrigo, em que inter-
passou a ter mais dinheiro, frequen- preta comentários ouvidos a respeito
tando ambientes gays localizados no do seu corpo como um estereótipo
centro de Brasília, em torno de certa social de masculinidade de homens
“cultura gay” que passou a experien- negros:
ciar, como quando relata: [3] Durante a faculdade eu tive dois
namorados, os dois eram brancos, e eu me

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 31
senti objetificado algumas vezes, senti um e o início de seus envolvimentos com
tratamento diferente por ser negro, não
tanto deles, mas das pessoas que estavam outros homens. O princípio desses
ao redor, tipo “nossa fulano tá pegando
um negão, que safado”, e isso sempre me envolvimentos se dá virtualmente e
incomodou bastante. Por que “safado”, só o participante parece demonstrar a
porque sou negro? Se fosse com um branco
você falaria a mesma coisa? (Rodrigo, negação de suas características ne-
15/4/2016). gras como meio de estabelecer esses
contatos homoeróticos:
Esse relato de Rodrigo dialoga
[4] eu comecei a ter contato com pessoas
com o argumento de Richard Miskolci não negras, um contato melhor, que nunca
(2007, p. 13-14) sobre a matriz social tinha acontecido, em que eu fui conseguindo
aceitar essa sexualidade [homossexual].
hegemônica ser capaz de produzir Primeiro foi com um perfil fake6 no Facebook
valor sobre os seres humanos com como uma pessoa branca [pausa]. É muito
louco porque, nossa! Eu usava o perfil de
base na relação intrínseca das cate- uma pessoa branca [pausa longa], mas por
que eu usava uma pessoa branca? (Danilo,
gorias de raça e sexo, o que justificaria 14/4/2016).
a análise da racialização do sexo e da
sexualização da raça como um pro- Ao se fazer passar por uma pessoa
cesso normalizador duplamente na- branca por meio de um perfil fake,
turalizante e subordinador que marca Danilo corrobora a influência notada
a história e a dinâmica das relações na construção do ideal contempo-
sociais das sociedades pós-coloniais râneo da imagem do gay como mo-
e, em particular, daquelas que convi- delo de cidadão-consumidor branco
vem com o legado da escravidão. e de classe média, resultante da in-
No esteio dessa argumentação, tersecção entre raça e classe social
Osmundo de Araújo Pinho (2005) as- mais conveniente à transformação
severa que, mesmo diante de mode- das relações homossociais em nicho
los culturalmente construídos como mercadológico (MARSIAJ, 2003);
mais aceitáveis ou desprezíveis de e denota também a colonização do
masculinidades conflitantes (signifi- desejo, que é hegemonicamente
cativamente entre homens gays ver- construído para corpos brancos, ao
sus heterossexuais; brancos versus adotar uma foto de pessoa branca
negros), o corpo negro nunca passa como sua para tornar-se mais apto a
despercebido. Tem sobre si, portan- receber afeto e contato naquela rede
to, em consonância com o pensa- social. Essas interpretações possíveis
mento de Frantz Fanon (2008), o sobre a experiência relatada por Da-
simbolismo do que não é universal, nilo parecem estabelecer um diálogo
do que é tratado como exótico, sus- com as experiências pontuadas por
cetível à fetichização, processos que Malcolm no campo afetivo de suas
desumanizam tal corpo. homossociabilidades, remetendo a
formas interseccionais de suas auto-
Na interpretação da narrativa do percepções como negros homosse-
participante Danilo, selecionamos um xuais.
trecho em que relata o processo de
aceitação de sua homossexualidade
6 Perfil virtual falso.

32 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
Danilo demonstra, ainda, uma re- social – adotada na interpretação das
flexão contrária à “imagem modelo” narrativas (auto)biográficas, não pre-
de homens gays anteriormente men- tendemos afirmar que homens cis-
cionada, quando começa a namorar gênero homossexuais negros sejam
um rapaz negro e a refletir sobre sua completamente vítimas das norma-
própria expressão de masculinidade tizações advindas da formação hu-
interseccionada por fatores muito di- mana hegemônica no Ocidente. Se
ferentes daqueles elencados acima por um lado uma nova masculinidade
por Marsiaj (2003). No esteio dessa pode ser construída por homens ho-
inferência sobre sua narrativa, veja- mossexuais, como sugere Anzaldúa
mos um trecho sobre a experiência (1999), por outro, Pinho (2005), Fa-
relatada: non (2008), bell hooks (2013) e Dei-
vison Faustino Nkosi (2014) argumen-
[5] Eu percebi toda essa identificação por
causa da nossa estética/aparência, nossos tam que a emasculação do homem
posicionamentos políticos, todos os nossos negro diante da subordinação racial
pensamentos eram complementares [...]. As
relações virtuais através dos fakes brancos- socializa-o dentro do estereótipo da
héteros-másculos-ABNT e os problemas em
relacionamentos passados interraciais eram virilidade e da truculência como rea-
os mesmos; questões familiares, enfim... ção à castração sobre o acesso aos
Concluímos que a vida de preto viado segue
sempre o mesmo caminho: não afetividade espaços e formas de poder do pa-
e baixa autoestima (Danilo, 14/4/2016). triarcado da supremacia branca.

Com esse relato, compreendemos Postulamos, ainda, que além dessa


que Danilo estabelece em seu dis- faceta reativa, a construção da mas-
curso uma crítica social convergente culinidade negra como violenta pa-
à afirmação de Pinho (2004, p. 129) rece atender também às estratégias
de que “as comunidades de gays, de de desumanização coloniais em que
homossexuais, produziram uma de- saber, razão, estrategismo e demais
terminada brancura ou a branquitude atributos são positivados e associa-
gay como a norma estética”. Nessa dos à branquitude, enquanto violên-
baila, o entrevistado parece reforçar cia, loucura, desvairo são pejorativos
e valorizar sua negritude em vivên- e associados à negritude, como
cias e práticas compartilhadas, assu- forma de questionar a civilidade de
mindo uma abrangência política de pessoas negras e dos homens negros,
sua identidade e estabelecendo uma por extensão. A violência parece
contra-hegemonia como resistência ser, ao mesmo tempo, estratégia
(PINHO, 2004), diante do padrão de e consequência da articulação
branquitude encontrado dentro da intrínseca de raça e gênero na
comunidade gay em suas experiên- construção não só dos estereótipos
cias pessoais. sexuais de selvageria e descontrole
associados às pessoas negras, mas da
Com base na perspectiva inter- sensualidade e do desejo «corretos»
seccional entre raça e sexualidade e desejáveis associados às pessoas
– além de outras nuances entrecru- brancas (nascimento, 2019).
zadas, como masculinidades e classe

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 33
Com base nisso, compreendemos sexualidade e às relações de poder”
que a animalização do corpo negro na (DARDE, 2008, p. 224).
construção do criado supermasculino
Essas ponderações e interpreta-
(NKOSI, 2014) atinge não só o corpo
ções que apresentamos complemen-
de homens negros heterossexuais,
tam o sentido de que não fazemos
mas também de negros homossexu-
uso teórico da perspectiva intersec-
ais, conforme foi possível inferir das
cional com vistas a vitimizar um grupo
histórias de vida de Rodrigo e Danilo.
específico, ao mesmo tempo em que
A narrativa de Danilo expõe, ainda, consideramos pertinente a emergên-
as expectativas da sociedade sobre o cia do essencialismo identitário de
corpo negro do entrevistado e como um grupo minoritário diante da ação
este manifesta sua identidade fora do do poder hegemônico normatizador
padrão esperado, com seus trejeitos (hooks, 2013) ao valorizar suas carac-
e voz afeminados, porém sem perder terísticas identitárias raciais e homos-
de vista suas identificações com sua sexuais de maneira confluente.
negritude ou com sua homossexuali-
dade:
4 Considerações em
[6] “um negro de 1,90m de altura, meio que expansão
com corpo padrão, e aí quando ele abre a
boca [...] é a ‘bixa’, é ‘viado’, é o efeminado,
sabe? [pausa] Assim, causa aquele O método fenomenológico tem
estranhamento” (Danilo, 14/4/2016).
mostrado meios capazes de auxiliar
nas dimensões subjetivas e sociais de
O estranhamento a que se refe- comunicação, compreensão e inter-
re o participante reforça a ideia so- pretação no processo de construção
bre a existência no imaginário social do conhecimento e na percepção da
ocidental da “pré-suposição de uma realidade dos participantes, no que
identidade negra que é masculina, tange aos relatos ouvidos e transcri-
que exclui a mulher, que exclui o ho- tos. A construção de conceitos sobre
mossexual” (PINHO, 2004, p. 129). masculinidade(s) negra(s) e a con-
Sua narrativa é capaz de estabecer tribuição de perspectivas intersec-
uma crítica social por meio de vi- cionais entre raça e sexualidade na
vências geradoras de liberdade de descrição das experiências dos par-
expressão e de identificação contra ticipantes permitiram, com base na
uma imagem hegemônica de mas- interpretação fenomenológica pro-
culinidade negra homossexual, pau- posta, o surgimento da correlação
tada pela heteronormatividade, que entre negritude e homossexualidade
se funda “num padrão normativo nas narrativas dos entrevistados no
hegemônico ocidental [...] que, além que se refere à constituição de suas
de partir do pressuposto da heteros- masculinidades negras homossexuais
sexualidade compulsória, hierarquiza ligadas a sua “vivência”, isto é, “o que
e atribui valores aos sujeitos, às fe- fica para o sujeito (Eu) de sua redu-
minilidades, às masculinidades, aos ção do objeto (fenômeno visado)”
arranjos socioafetivos familiares, à (RIBEIRO JÚNIOR, 2003, p. 14).

34 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
Essas narrativas geradas conse- alimentam e naturalizam tais práticas,
guem dialogar com o que asseve- as quais estruturam, conjuntamente a
ra a pesquisadora Guacira Lopes fatores como a classe socioeconômi-
Louro (2015) sobre a hierarquização ca, as hierarquias sociais de poder.
dos sujeitos, nas sociedades moder-
nas ocidentais, dar-se por meio de
Referências
suas marcas fenotípicas, sexuais e
de comportamento, as quais reve- AARTS, Bas; BAUER, Martin W. A
lam o lugar de poder ou submissão construção do corpus: um princípio
no interior dessas sociedades, o que para a coleta de dados qualitativos.
corrobora as experiências descritas In: Pesquisa qualitativa com texto,
de Malcolm, Danilo e Rodrigo. Nesse imagem e som: um manual prático.
sentido, a compreensão das experi- BAUER, Martin W.; GASKELL, Geor-
ências narradas parece apontar para ge (orgs.). Trad. De Pedrinho A. Gua-
a dimensão opressiva em que vivem reschi. Petrópolis: Vozes, 2013.
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de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 37
Envelhecimento de pessoas LGBTI+:
invisibilidades ampliadas, abordando
sobre memória lésbica

Entrevista com Heliana Hemetério

Binah Ire: Na entrevista que você concedeu a Cláudia Regina Lahni para a
Revista Estudos Feministas, em 2021, eu senti um tom um tanto pessimista na
sua fala, principalmente quando você falou do Lula, sobre deixarmos o Lula en-
velhecer em paz. Agora estamos aí diante do candidato Lula, o que você pensa a
respeito dessa candidatura, Heliana, e como você se sente com relação ao con-
texto político brasileiro em geral nesse ano de 2022?
Heliana Hemetério: Olha Binah, quando eu fiz a entrevista para Cláudia Lah-
nin, eu disse a ela que eu lamentei muito a esquerda não ter trabalhado com
outro nome para essa candidatura, e deixa o Lula viver em paz. Eu reforço o que
eu já disse. Eu lamento que nesse momento a gente tem somente Lula como
resposta política. Um homem que está com quase 80 anos, que passou por tudo
que passou, perder a mulher, perder o neto, ficar preso, as injustiças, enfim, tudo.
Toda a construção social que ele fez nesse país e ter que ir lá tirar o homem do
contato (com a família), né? Tirar o homem da paz, era o momento dele. Agora
ele casou de novo, (ao invés de) usu- dam e eles gravam. As promessas de
fruir dessa nova companheira, não, Deus que existem no mundo - você
agora a Lula tá lá andando pelo Brasil, é historiadora, você sabe disso - des-
né, pra baixo pra cima, tendo que as- de que o mundo é mundo Deus está
sumir esse país quebrado, totalmente prometendo tudo, né? A Igreja diz
fundamentalista, porque eles estão isso, né? A igreja. A igreja católica,
todos aí, né? Passaram esse tempo depois vem a evangélica e referenda
todo com direito a matar pretos, mu- com Calvino a mesmíssima coisa. Lu-
lheres, LGBTI+, tiveram direito a tudo, tero diz que os pobres não tinham di-
tudo, acabaram com tudo...é tentar reito, nada. Lutero traz os pobres e a
ver como trazer alguns pontos, né? injustiça, mas Calvino vem dizer com
Como eu vou ajudar as pessoas de a teologia da prosperidade. Então
fato? Como fazer isso? E nisso cor- nós estamos há anos vivendo isso,
rendo um novo risco. Qual é o novo há anos, há séculos, o tempo todo,
risco? Quando Lula vem, Lula nos dois a gente vive isso. E aí o Lula ganha,
mandatos, e depois vem Dilma, eles todo mundo vai para o governo, todo
abandonam, né? Quem era do mo- mundo abandona, né? As políticas
vimento ativista naquele momento sociais não dão conta porque é pre-
vai todo para gestão, inclusive eu no ciso muita coisa, é preciso, é um tra-
Rio de Janeiro, sou carioca, eu estava balho que não pode parar, é o tempo
no Rio de Janeiro, no arco-íris, fui eu, todo, o tempo todo, uma construção,
Cláudio Nascimento, Márcio Caeta- a construção. Todo mundo acha que
no, todo mundo que era do arco-íris, tá resolvido e Lula vai ficar vinte anos
fomos todo construir o “Rio sem ho- no poder, quando você não está re-
mofobia”. Né? E aí a gente construiu, solvendo nada, não resolveu nada e
a gente trabalhou, trabalhou, traba- está aí a resposta, aí eu continuo di-
lhou. Depois eu conheci Angela, ca- zendo: eu lamento muito, eu continuo
sei com ela e vim morar aqui. O que pessimista mesmo com a volta de
faltou à gente? Faltou continuar na Lula. Eu acho que a gente vai melho-
base, a gente abandonou a base. E rar, no sentido...isso se Lula assumir,
aí a base agora está fundamentalista, se o Lula assumir, que você sabe que
na mão de neopentecostal, sabe? Os esse povo da direita adora ditadura.
racistas pobres achando que é assim Então é isso também...
mesmo e os pretos pobres achando
Binah Ire: É, o risco é grande.
que Deus é que faz tudo. Parou-se,
realmente parou a construção da fala Heliana Hemetério: O risco é
política desse segmento popular. São enorme.
os pobres, é o povo que sustenta...
que sustenta né? O que se fala? A voz Binah Ire: E ainda falando em en-
do povo é a voz de Deus. Mas de que velhecer em paz, será que as lésbi-
Deus e de que povo? Um povo total- cas, especialmente as lésbicas negras
mente neopentecostal, agradando brasileiras, tem o direito de envelhe-
esse governo, que os pastores man- cer em paz? Como está sendo pra
você esse processo de envelhecer?

40 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
H.H.: É óbvio. É claro que as lésbi- va, né? É só ter filhos? Não, tem que
cas não envelhecem em paz. Nem as ter emprego, tem que ter casa, tem
negras, e também diria das brancas. que ter condições de dar alimenta-
Eu acabei de… Finalizamos um pro- ção ao filho. O corpo é meu e eu vou
jeto aqui na rede de mulheres negras parir... Não, você não vai parir assim
do Paraná, eu e minha companheira não, você tem responsabilidade. Filho
Angela, e nós fomos fazer oficinas é uma outra pessoa, né? Filho é uma
aqui no Paraná, né? Oficinas presen- pessoa que você tem que ter respon-
ciais. Em todas, em todas... Eram ofi- sabilidade. É isso, é isso que aconte-
cinas para LBT+ livres, fazia parte do ce...
projeto. Em todas, as lésbicas têm
B.I.: Em 2015 Fernanda Montene-
preocupação com trabalho, moradia
gro e Nathália Timberg interpreta-
e futuro. Todas têm medo do para
vam um casal lésbico na novela “Ba-
onde vai, o que vai acontecer com
bilônia”. O casal ficou famoso pela
elas quando estiverem velhas. Para
cena do beijo entre as duas, que foi
onde vão? Como vão se sustentar?
chamado de “beijo gay” na época.
Como é a questão da aposentado-
Lembro que o que me chamou mais
ria? Todas, todas… Sabe? Todas. E ao
atenção foi o fato de, apesar de não
mesmo tempo o movimento não traz
sair do estereótipo branco classe mé-
a fala do envelhecimento não. Agora
dia alta, urbano, o casal era composto
eu tenho um pipocar, né? Uma pes-
por duas mulheres velhas. Enquanto
soa fala dali e a outra fala daqui, mas
a polêmica se fazia em cima do bei-
não pauta do movimento. Não é pau-
jo, eu pensava nessa questão da soli-
ta do movimento, não é falta do mo-
dão das mulheres lésbicas na velhice,
vimento é questão de trabalho, mo-
na importância de redes lésbicas de
radia, aposentadoria. A construção
apoio entre nós, entre jovens e ve-
da própria vida. A gente fica muito
lhas, inclusive, você como parte de
ainda, a gente está muito… Não, pres-
uma militância já histórica, acha que
ta atenção… Não, o amor, é claro, ele
existem essas redes? Ou que elas são
faz parte da nossa vida, mas a gente
possíveis?
antes de pensar em ter um amor, né?
Um amor, construir um casamento, H.H.: Olha, vou começar lá na no-
você tem que construir a sua vida. vela, né? A Nathália Timberg e a Fer-
Você estar com a sua vida, (ter) o nanda Montenegro eram um casal
seu emprego, saber que vai poder se de lésbicas de meia idade, brancas
aposentar, que vai poder morar numa de classe média. Então, elas podiam
casa, ter comida. Saber dos direitos, ser idosas e lésbicas, mas elas tinham
a sua saúde física e mental, e pensar dinheiro para continuar o romance
como elaborar o seu envelhecimento. delas, né? Se a família se importava
E o movimento não está pensando ou não, era isso então o diferencial.
nisso? Não, não está. Como é que é A construção dessa dignidade en-
isso? Dignidade que é a questão hoje quanto lésbica, ela é diferente para
que a gente fala da justiça reproduti- mulheres brancas e mulheres pretas.

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 41
Essa é a primeira coisa que tem que lando de corporeidade agora. Agora,
ser colocada. Segundo, quando você de um tempo para cá, que a academia
fala da importância da militância... trouxe esse debate, mas as ativistas
não, porque nem os meus pares, nem não falam disso. E eu digo ativista, ati-
aquelas que são meus pares se preo- vista do cotidiano. Eu vejo ali na rede
cuparam em falar disso. Eu me lem- Lésbi, tudo ali é muito importante,
bro que quando eu comecei a pensar é pesquisa, política, pesquisa disso,
nisso entre as negras, eu não via nem pesquisa daquilo... Não vejo ninguém
as negras, nem as brancas falar em falando dos incômodos corpóreos do
envelhecimento. E eu me pautei nisso envelhecimento. Por isso que eu falo
já lá atrás, há uns 25 anos atrás, quan- brincando: em que momento vocês
do eu comecei a perceber os dados, vão se dar conta do pentelho branco?
os sinais do envelhecimento físico, e Ninguém fala disso. Eu posso falar,
eu sempre fui muito vaidosa… Então porque a mim incomodou. Aí eu tive
como era lidar com o envelhecimento que pensar: como eu vou elaborar os
físico? E a partir do envelhecimento pentelhos que são pouco agora, mas
físico, eu comecei a pensar nas outras eles vão aumentar… Aí depois o cabe-
questões, né? Nas outras questões… lo pintado, pintado, pintado, quando
Porque o movimento não fala dos in- eu decido deixar branco, e isso ago-
cômodos do envelhecimento. Você ra… Eu me lembro que o marco… Que
olha as lésbicas… Você olha para as quando eu fui entregar a bandeira
lésbicas, elas estão todas muito bem LGBT para Dilma, ela tava caindo já
sempre, e quando elas dizem que elas e as mulheres todas se reuniram e
estão mal, elas estão mal porque a foram, e eu fui representando o mo-
pressão subiu, porque a pressão des- vimento LGBT+, entreguei para ela
ceu, porque tá diabética, e o assunto a bandeira LGBT… Ela caiu em 2016
fica ali. Elas falam de doença. As mu- né? 15? 16… Meu cabelo estava em
lheres héteras não, as héteros estão três cores, porque ele estava ficando
buscando botox, (ácido) hialurônico, branco. Olha só, agora. Pouco tempo
não sei mais o quê, silicone, levanta o atrás que eu estou usando o cabelo
peito, baixa o peito… A gente sequer branco. Eu tive que elaborar, o que
teve ousadia até hoje em falar da es- adiantava o cabelo ficar bonito com
tética. Da estética, a estética que eu aquela cor vinho, não sei o quê… Mas
tenho, este corpo que eu carrego, é o cabelo tá vinho, me dava trabalho,
o corpo que eu gostaria? Eu sou fe- tinha que pintar a cada 10 dias, e eu
liz tendo 110 quilos, 150 quilos, 85, precisava dar quando de outras coi-
ou sendo magra demais? Eu gosto sas, né? Quais eram os outros sinais?
desses meus peitos fartos ou eu não Você olha para a pele, você tem pon-
gosto? Eu gosto dos meus cabelos, tinhos brancos ou pontinhos pretos.
como é o caso das lésbicas negras? Você olha para a pele, ela começa a
Este corpo que eu tenho, ele respon- ficar uma pele fina. Você olha pro jo-
de à minha felicidade? Não. A gente elho, o joelho está dizendo que está
não conversa entre nós, a gente tá fa- ficando enrugado. Então você tem

42 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
sinais que começam… Presta atenção Família que sabe que é lésbica, todas
Binah. São sinais que começam ago- as famílias sabem. Toda mãe sabe
ra, não é sinal que começa com 50, que a gente é lésbica, a avó também,
nana nina não. Olha o corpo de 35 e a irmã também, o cunhado também.
começa a buscar os sinais da velhice. Eu não estou falando da família que
E aí você começa a fazer isso, sabe, o sabe, eu estou falando da família que
tempo todo, né? O tempo todo ten- aceita. Como é essa aceitação? Você
tando… Vai pra academia, não sei o pode ir na casa da sua mãe amanhã
quê, e não adianta, agora a academia que é sábado, com a sua companhei-
não vai dar conta, sabe? A academia ra. Mãe vim aqui passar te pegar pra ir
não vai dar conta, a academia vai te ao shopping, tomar um sorvete. En-
manter bem, respirando, não sei o fim, o que a sua irmã hetero faz, você
quê, mas não vai sustentar todos os ter o mesmo comportamento, che-
seus músculos. Se fosse assim nin- gar no Natal, você passa Natal com a
guém envelhecia, né? Era fácil, ia para sua família e a sua companheira ou no
academia, ninguém perecia. E a gen- ano novo, você vai para casa da sua
te precisa falar disso, né? Os incômo- companheira com a família dela, se
dos do corpo. Os incômodos que eu isso for possível, mas isso não ocor-
tenho ou que eu não tenho. E o mo- re. Então a gente tem um Natal assim,
vimento não fala disso. O movimento eu vou para a minha família, e eu vou
não fala da queda na vida sexual. Não para sua… E eu vejo isso muito bem
fala. O movimento não fala de práti- no Facebook. As companheiras casa-
cas sexuais. Fica muito acadêmica, das, 5, 6, 10 anos, no Natal, cunhada,
tudo muito acadêmico, é tudo muito sobrinho, a mãe, não sei quem, não
a pesquisa, estou aqui, estou ali, que sei o quê, a família toda, e não vejo a
é importantíssimo pra gente pensar, companheira na foto. E eu fico pen-
tô dizendo, foi a academia que trouxe sando… Isso parece que não, isso nor-
essa palavra corporeidade, que todo malizou entre nós, porque a priori não
mundo tá usando, tanto as brancas há o que fazer… A gente pode não ter
quanto as pretas, todos os movi- o que fazer, olha, eu não posso fa-
mentos, né? Estão usando essa pa- zer, minha família não aceita, né? Mi-
lavra. Mas, é pensar nisso, é usar, ler nha companheira não se sente bem
e sentar entre as ativistas e falar dis- lá, como é que eu vou resolver? Mas
so: como você está lidando com seus você tem que ter consciência disso,
pentelhos brancos? E isso faz parte e buscar caminhos de não ter agra-
da saúde física e mental das lésbicas. vamento mental por conta disso. Sair
Que tudo isso é um pacote, a gente desse lugar de ficar reclamando: a mi-
envelhece no pacote. A gente enve- nha família não aceita. Qual o grande
lhece com as contas a pagar, longe da sonho? Meu grande sonho é que a mi-
família, algumas, algumas são privile- nha família… Ah, não, não, vai sonhar
giadas sim, consegue ter uma famí- outra coisa. Vai sonhar outra coisa, se
lia que aceita, aceita de fato, eu não não você vai ficar presa o tempo todo
estou falando que família que sabe. sonhando que a sua família te aceite

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 43
e a família da companheira te aceite. pau come. Temos que falar disso, eu
Você quer ser a nora, você quer ocu- tenho condições de viver uma rela-
par o lugar da nora? Não, não, não. Eu ção aberta? Ou eu não tenho, eu não
tenho pensado muito, agora com 70 tenho.
anos, quando foi chegando perto de
B.I.: Agora passando pra vida real,
70, eu fui elaborando coisas que me
não sei se você conhece a Nicinha e a
davam sofrimento, que não me dão
Jurema, um casal de sapatonas mais
mais, ponto. Eu acho então quando
velhas, negras, moradoras da Roci-
a gente se reunir, puxar, quais são as
nha, que foram protagonistas de um
novas pautas para a gente debater,
capítulo da série “Meu amor – seis
temos as pautas políticas que é a in-
histórias de amor verdadeiro” da Ne-
serção das lésbicas na política da ter-
tflix, onde é retratada a luta delas pra
ceira idade. Entra lá no conselho local,
ir morar numa casinha fora da favela,
se você puder, tiver tempo, tá. Con-
a família delas, filhos, netos, e uma
selheira Municipal, Conselheira Esta-
parceria de vida que inclui o culto
dual, grupo, se meter nesses lugares
afro-brasileiro através da Umbanda.
sim, encontro de idosos, você ir para
São muitas as Nicinhas e Juremas
lá para o encontro de idosos e botar
por aí que desconhecemos, e é nelas
o dedo, sabe? Como é lá no Conse-
que pensamos principalmente quan-
lho de Saúde, que eu sou conselheira
do batalhamos por políticas públicas
pelo Candaces. Eu estar nos núcle-
para lésbicas. Você acha que temos
os de vida. Estou lá idosa e lésbica, é
em algum lugar políticas públicas que
assim. Participei no outro dia de uma
estejam levando em consideração
fala, bem assim, todo mundo muito
essas pessoas e sua saúde?
interessante, da igreja, falei ih, vai dar
certo...aí fiquei pensando como eu ia H.H.: Não. Não acredito. Não, não
dar entrada...e eu disse que não sou há. Não há Binah. Eu estou no Conse-
uma idosa diferente das outras, eu lho Nacional de Saúde, você não tem
sou uma idosa lésbica. Eu também ideia da luta da gente para falar de ra-
tenho filhos, também tenho netos... cismo e questões LGBTI+. Nossa Se-
nhora, é você falar de racismo, é você
B.I.: É uma desconstrução da fa-
falar da questão LGBTI+, aparece a
mília monogâmica que também é ne-
plateia antirracismo. Todo mundo é
cessária, né?
antirracista, até o segundo debate.
H.H.: Ah, agora você está pergun- Vou contar para você. Nós vamos ter
tando da família monogâmica… É ou- a Conferência Nacional de Saúde no
tra história, né? Essa coisa de mono- ano que vem, mas a passada, que foi
gamia. É outro debate, né? É outro em 2018, quando a gente estava pen-
debate, porque o que eu tenho visto sando, né? Quais seriam os itens para
por aí? Uma série de acordos. Não, eu a conferência, décima sexta confe-
tenho um acordo com a minha com- rência, quando a gente fala que a
panheira, a nossa relação é aberta… É população negra é um tópico: “não,
aberta até que deixa de ser aberta e o porque tem que ser população para

44 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
todas as pessoas, a questão da saúde vê se está colocado ali gay, lésbica,
é de todos”. Não, aí teve que bater, trans e bissexual negro? Nem aí. Está
mas bater feio. A rede LaiLai aten- pautado na população, nas doenças
de população negra e AIDS, a gente genéticas, anemia falciforme, e não
entrou, na época eu estava lá pela sei o quê, que as mulheres negras
ABGLT. Juntamos, fizemos um blo- têm mais miomas, tudo está bonito
co de Conselheiros para ir pra cima. lá. Não tem nada, e uma das pensa-
Conselheiros brancos e negros… Pra doras dessa política é lésbica. É lés-
ir para cima, porque não queriam. Foi bica, negra, está entendendo? Está
o último tópico a entrar. E aí você está nesse patamar há muito tempo, mas
lá no Conselho Nacional de Saúde, não se colocou. E aí quando você vai
exatamente com esse quadro, do ra- para cima diz: “não, é porque naque-
cismo e da lgbtfobia. Agora no 29 de le momento a importância era a saú-
julho, a Michele Seixas, representan- de”, mas não estou querendo que ela
tes da ABL, que é a segunda suplen- faça… Que tenha saúde integral das
te, ela estava no.... É que a gente tem lésbicas, dos bissexuais, dos gays…
um rodízio, né? Eu sou titular e tem Não, é que tenha somente referência
dois suplentes, então a Michele esta- a essas dificuldades...
va lá e fez uma mesa de lésbicas pela
B.I.: Esses dias, cheguei ao con-
visibilidade lésbica. Uma conselhei-
sultório de enfermagem do posto de
ra falou: “ai, mas eu acho que vocês
saúde, para fazer um preventivo, e a
têm muita coisa para discutir com os
enfermeira me disse que se eu tives-
meninos trans, eles passam”...na na
se sido “homossexual” desde menina
na na não. Hoje é o dia das lésbicas,
eu não precisaria fazer. É um lugar
hoje não é dia de homem trans. Os
comum essa afirmação e nos mostra
homens trans, o dia deles é 29 de Ja-
o quanto ainda estamos distantes de
neiro. É o dia da visibilidade trans, é lá.
um atendimento de saúde realmente
“Não, mas lá as mulheres...” não, não,
adequado a todas as expressões de
não, não, os homens trans tem...”Ah,
gênero e sexualidade que existem.
mas elas não aceitam eles, eles têm
Fazendo parte do Conselho Munici-
dificuldade, né? E como eles ainda
pal, onde estamos focando na exi-
são, assim...” ela querendo dizer, né?
gência de formação, vejo o porquê
“são fisicamente mulheres” Só fisi-
isso acontece. O poder público nos
camente, porque eles são homens
municípios se exime quase totalmen-
trans. Então, temos muita dificulda-
te de fazer qualquer coisa para nossa
de.... Então, além de não entenderem
população. Você faz parte de Conse-
os conceitos, querem se meter no
lho (de Saúde), o que você acha que
conceito alheio e dar os seus palpi-
é possível fazer para pressionar o po-
tes como acham… Não! Não é assim
der público via Conselho pelas políti-
Binah. Não é assim, entendeu? Não é
cas públicas que precisamos?
assim, então não tem política. Você
tem uma política de saúde integral H.H.: Exatamente, eles definem
da população negra… Leia lá, leia lá que a gente não precisa de gineco-

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 45
logista. E as outras doenças? E as de pauta. Vai acontecer o SENALES-
doenças comuns, né? Como é que BI agora em dezembro. Tá, eu acho
eu falar de munila? Como é que eu importantíssimo. Temos que cons-
falar de candidíase, que é uma coi- truir uma pauta política para o novo
sa que vem do açúcar alto, também. governo… Tá, nós vamos construir a
E as outras doenças? E outra coisa, pauta política, nem sei se vamos, né?
não se leva em consideração, ago- Nem sei se vamos, como é que vai ser
ra mesmo está se perguntando, vai isso, essa pauta, devido a esse qua-
se pautando, que ia ser esse ano, a dro político que nós estamos viven-
conferência de saúde mental... Nos- do aí. Mas eu quero saber é nós que
sa, para você falar de saúde mental, estamos nas instituições, que somos
aí eles falam, em relação à população da rede não sei quê, da rede não sei
negra já colocam: “a população negra que lá. A rede está discutindo o quê?
não é assistida”, o racismo, pela OMS, Como é que são essas rodas de con-
é considerado agravante de saúde, e versa? Eu sou de um tempo que nós…
eu considero a LGBTI+fobia também, Sou de um tempo, parece que é um
agravante. O silenciamento, a invisibi- tempo passado realmente mesmo,
lidade, isso tudo é agravamento de de 40 anos atrás… Que nós tínhamos
saúde. É só a gente ler ali, né? Ler a oficinas com espelhinho na mão para
questão, ali no lesbocídio, o aumento olhar a vagina. Colocava embaixo e
de suicídios entre a comunidade, en- cada um olhava sua própria vagina
tre as lésbicas. Vá ler, a depressão… É para entender, o que eram grandes
sério, sem falar em estupro coletivo, lábios, pequenos lábios, clitóris, que
aborto seguro e legal que não tem. E muitas mulheres não sabiam o que
aí as feministas, as grandes feministas era isso. Eu tenho depoimento de
também não fazem recortes da lésbica que ficava prendendo a urina
necessidade de aborto legal seguro pra poder fazer xixi na hora do orgas-
para lésbicas, e isso é um acúmulo de mo, porque achava que era aquilo. Eu
questões que fazem parte do nosso tenho depoimentos de rodas que já
cotidiano de vida, independente se existiram, no coletivo de lésbicas do
há política ou não. E aí Binah, você Rio de Janeiro, a gente fazia isso, eu
envelhece com esse pacote, você fui do coletivo de lésbicas, tinha umas
envelhece nesse pacote, você vai ar- rodas pequenas, fechadas, para as-
rastando pra sua vida inteira, passan- suntos que a gente chamava de as-
do as suas décadas, né? Idade jovem, suntos delicados. E não era aberto,
adolescente, adulta, envelhecimento né? Eu quero falar disso, falar de prá-
e chega velha. Chega velha como? tica sexual, você tinha que ouvir como
Como? Se as políticas que estão aí e as lésbicas não conheciam o corpo. A
que deveriam olhar para sua velhice, diferença da maneira de transar en-
e não olham porque você é lésbica… quanto uma lésbica feminizada da
E se o movimento também não está lésbica masculinizada. E a gente per-
olhando isso? Agora você tem uma deu o fio dessas conversas. E nisso
ou outra falando, mas estou falando estão os envelhecimentos, a gente

46 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
não fala da questão da gordura, hein? ficuldades continuam. No trabalho,
Fala “a gordofobia horrível”, mas nin- na escola, na família...a família então,
guém fala como é que é isso. pouca diferença fez. A família real-
mente não conseguiu avançar nada,
B.I.: Heliana, você como nossa mais
o contexto familiar cisheteronormati-
velha, nossa griô, como nos explica a
vo que todo mundo fala, não avançou
Ariana Mara, e também como histo-
nada. Agora, que o nosso caminhar
riadora, o que acha das iniciativas de
trouxe fala, trouxe debate, ah, não
memorialização das lutas LGBTQIA+,
tem dúvida, não tem dúvida. A gen-
como o Arquivo Lésbico Brasileiro?
te teve uma coragem, inclusive essa
Apesar das dificuldades, é possível
coragem de dizer hoje, de reinventar…
perceber uma ampliação da militância
Exemplo: quando a gente fala que
e um diálogo entre gerações? Como
nós somos protagonistas sempre,
poderíamos ampliar essas trocas?
olha para o movimento feminista e
H.H.: Ah, com certeza. Concor- veja as protagonistas do movimento
do, a gente ampliou o diálogo entre feminista. Eram todas lésbicas. Tanto
as gerações, sim. E é possível, e a que diziam que o movimento femi-
gente tem que entender inclusive as nista era um movimento sapatão, que
dificuldades e de que lugar as pes- só tinha sapatão. Quando olha para o
soas falam. Exemplo: a gente tem movimento negro, nossa, são as lés-
uma idade, velhas, somos as idosas, bicas negras, não reconhecidas, e até
e algumas das idosas não enten- hoje não reconhecidas. Sabe? É disso
dem...”não, porque ela é jovem, elas que eu estou falando. A Família aceita
falam, elas pensam que elas estão e silencia. A família não aceita, a fa-
inventando a roda”... Elas estão pen- mília silencia. Não quer que você fale
sando que estão inventando a roda alto, não quer que os vizinhos saibam
porque a gente se afastou e não está que você é lésbica, quando você está
dizendo para elas que elas não inven- entre a tal da família, não quer que o
taram nada, que tudo estava aí. Tudo sobrinho perceba que você é tia lés-
já estava aí, como também muitas bica, né? Mas explora você bastante.
coisas já estavam quando eu cheguei. Isso fazem muito bem, que é uma
A questão dos nossos passos vem coisa que também não está sendo
de longe. Então, elas não inventam a dita, que é a tal da lésbica solteirona,
roda. Então cabe a gente dizer para que cuida dos sobrinhos, é a madri-
elas: “olha, vocês estão (re)inventan- nha, é a que manda o sobrinho, o afi-
do a roda”. Nada disso é novo, o que lhado para Disney, como eu gosto de
é novo é a maneira de vivenciar a sua dizer. É que cuida da mãe doente, do
lesbianidade. Vocês vivenciam uma pai doente, é a que compra cadeira
lesbianidade muito mais simples do de roda, o remédio, tudo é ela. Ela é a
que a gente, muito mais fácil do que filha exemplar achando que com isso
a gente, em determinados espaços. está sendo aceita. Ela não está acei-
Eu estou falando que está mais fácil ta, não, ela está explorada. Você está
se mostrar lésbica, mas algumas di- explorada.

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 47
B.I.: Sim, lésbicas como cuidado- lésbicas, mas se incomoda da filha ser
ras, porque não tem família, e tem lésbica. O que é a questão racial? “Eu
obrigação também. não sou racista. Não, eu tenho amiga
negra, eu tenho comadre negra”. Eu
H. H.: É isso mesmo, a lésbica cui-
quero saber qual vai ser sua postura
dadora, né? E a gente não está mos-
quando seu filho ou sua filha arranja-
trando isso para as novas, tem que
rem parceiros pretos. É disso que eu
mostrar isso pras novinhas...” não,
estou falando. Dizer assim “eu não
porque eu ajudo meu irmão, a minha
sou racista porque a minha namorada
irmã separou do marido e está na mi-
é preta”. A sua namorada é preta. Eu
nha casa com os três filhos, aí eu aju-
estou falando de um racismo estrutu-
do...”. Tem inclusive uma companhei-
ral, não estou falando da sua namo-
ra nossa que tem três sobrinhos no
rada. Isso é um erro que os brancos
plano de saúde, aquelas coisas tudo,
ocorrem sempre, né? É você falar...
pois é...
“não, mas a minha namorada é ne-
B.I.: Pensando fora das institui- gra”. A sua namorada é negra. Ela é
ções, na sua experiência, podemos negra. Eu estou falando da sua postu-
vislumbrar uma organização coletiva ra racial em relação a uma comunida-
voltada aos cuidados das nossas mais de. É exatamente a mesma coisa. O
velhas? Tanto no que diz respeito à meu vizinho é excelente, é um rapaz
saúde, quanto ao registro do trabalho maravilhoso, né? Ele me acode ele
de vocês, principalmente lésbicas ne- me dá carona, ele faz não sei o quê,
gras à frente do movimento lésbico ele é gay, mas olha você tem que ver
brasileiro, mas também de lésbicas que rapaz maravilhoso, tem até alma
negras “comuns”, líderes nas suas co- hétero, de tão bom que ele é… Então
munidades, como a Nicinha e a Jure- quando você fala da questão das lés-
ma? bicas serem aceitas da comunidade,
foram aceitas sim. Elas, é outra coisa
H.H.: Eu acho que poderíamos que precisamos separar. Então é dis-
pensar sim, em uma organização, eu so que eu estou falando, como pen-
não digo para cuidar das mais velhas, sar no privativo e como pensar para
que aí seria uma coisa muito ampla, o coletivo. São duas maneiras que
como é que cuidar isso, né? O cui- nós temos que perguntar, como nós
dado circular, quando você fala, é o vamos...sabe, porque as pessoas me
cuidado negro. A circularidade é uma tratam muito bem no conselho, e me
dinâmica de mulheres negras. Quan- acham inteligente e ficam admiradas,
do você fala que a Nicinha (e Jurema) eu e mais duas companheiras lésbi-
elas eram líderes da comunidade, elas cas assumidas lá dentro do Conselho,
ocupam esse papel de líderes da co- tudo bem, somos conselheiras, tudo
munidade, mas são elas duas, você bem essa postura lá no conselho, mas
entende? A gente tem que separar são lgbti+ fóbicas, né? Então o trata-
um pouco isso. Elas são líderes da mento dado a nós é de respeitabilida-
comunidade, respeitadas e queridas. de, deferência, blá blá blá...mas não é
Ninguém se incomoda de elas serem

48 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
esse o comportamento para o coleti- de fora para nós, não estou falando
vo. E a gente só vai construir se tiver como eu me sinto ou como você se
isso no coletivo, você só vai acabar sente. Como nós vivemos sempre
com LGBTI+ fobia e com o racismo fora dessa estrutura de sociedade, a
se você tiver comportamento de mu- gente tem dificuldade de se colocar
dança estrutural. Voltando para ve- nos papéis, inclusive da maternidade.
lhice. Qual é a cvv, essas coisas todas Vou buscar uma coisa bem simples,
que tem planos para idosos, quem a maternidade. Isso agora de família
é que faz o recorte de lésbicas? Eu lésbica, eu não gosto desse termo,
nunca vi uma propaganda dizer oh, família lésbica. Lésbica é você e sua
vai ter uma pousada que vai aceitar companheira. O filho não é lésbico, o
casais lésbicos ou não. Eu já fui a uma cachorro não é lésbico, nem o gato.
pousada, mas a pousada era para Que família lésbica que é essa que
LGBTI+, eu estive em duas pousadas você está falando? Não, você tem
assim, mas eram pousadas próprias uma família construída por duas lés-
para... Se a lgbtfobia não existisse, era bicas, e cada um tem sua sexualidade.
uma pousada e ponto. Quando você fala do envelhecimento
parece que como a nós tudo foi ne-
B.I.: Na entrevista com a Claudia
gado e ainda é negado, e muito nega-
você falou que sente uma falta de
do, a gente não consegue se colocar
aceitação geral das sapatonas com
nesses lugares. Eu não sou mãe lésbi-
relação ao envelhecimento, aos pro-
ca, eu sou uma mãe. Eu não sou uma
blemas de saúde que vão surgindo
avó lésbica, eu sou avó, que também
conforme vamos envelhecendo...
sou lésbica, que também sou histo-
Você acha que isso tem a ver com
riadora, que também sou candom-
uma questão de gênero? Por exem-
blecista. Eu tenho dois filhos, sou a
plo, as lésbicas são frequentemente
mãe deles. Aí eu sou historiadora,
“acusadas” de serem homens e por
lésbica, casada, são as coisas que eu
isso acabam por reproduzir certa
tenho em volta, sou de candomblé, é
pose de invencibilidade diante das
isso… E quando dizer eu sou uma ve-
fragilidades que o envelhecimento
lha lésbica, eu sou uma pessoa...
traz?
B.I.: Lésbica não é um qualificador,
H.H.: Com certeza, com certeza,
né...
eu digo, e penso, e repito, eu sempre
digo, qual o lugar das lésbicas? Para H.H.: Exatamente. Lésbica não
mim, Binah, a gente ainda está num pode ser qualificador. Faz parte da
não-lugar. A gente não é homem e minha identidade... Existe esse silen-
não é mulher. Quando Keila Simpsom ciamento em torno de nós, e o que
fala das travestis, não das mulhe- é pior, esse silenciamento em torno
res trans, ela fala travesti não é ho- de nós nos silencia, e nós o com-
mem nem mulher, travesti é travesti. pramos também (...) Então quando
Eu acho a mesma coisa em relação você é lésbica, você vai chegar no
às lésbicas. Estou falando do olhar asilo e vai ter que dizer que é lésbi-

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 49
ca, ou então você vai voltar para o garem e falarem “a senhora”. Eu sou
armário, que é o que está aconte- uma senhora, quero que me tratem
cendo, principalmente com os gays com respeito, porque os idosos tem
solitários que voltam para o armário, que ser tratados com respeito.
ou então, a coisa mais trágica que eu
B.I.: Eu procuro usar velha e velho,
sempre tenho conversado com al-
porque como diz Maria Bethânia en-
guns amigos meus...ou então espe-
velhecer é um privilégio, e envelhecer
rar a hora da morte com a cordinha
bem um privilégio maior ainda, né?
no pescoço, porque eles não elabo-
ram a velhice, saem por aí pegando H.H.: Exatamente. Bethânia está
os namorados, e aí abre o jornal está certíssima. Mas se deu a palavra ve-
lá, liga a TV está lá, apareceu morto, lho… Velho é tudo aquilo que não tem
roubaram a casa...a cordinha no pes- utilidade, né? Você arruma a casa,
coço...vai ser um problema que eles pega os móveis, né? Abre a gaveta,
é que vão ter que resolver, eu estou pega esse vestido está velho, essa
querendo resolver a nossa. Sabe? calcinha velha, tudo que está velho
Porque aí você fica velha e lésbica. e você dá para o outro ou você joga
Nesse momento está sozinha. Vai fora, você entende? Olha a simbolo-
morar com a sua irmã viúva, ou com a gia do que é velho na vida da gente.
sua irmã casada? Vai morar com seus Alguém pensa que esse vestido ve-
sobrinhos. Você já parou para pensar lho que você está dando ali, você tá
o que é isso? Então a gente tem que pegando o vestido velho e você vai
falar disso, sim, que a velhice vai che- dar...na realidade você deveria pensar
gar para todas. E pensar mesmo essa o quanto aquele vestido serviu a você
ideia de como nós vamos lidar uma durante sua vida, o quanto deixou
com a outra, como é que é pensar você bonita, pensa nisso… Eu tenho
um morar junto, e dividir casas...bus- dificuldade, eu não sou acumuladora,
car uma coisa que nos deixe menos mas tem coisas que eu não dou, e fico
frágeis, menos vulneráveis. Não nos muito aborrecida quando eu dou coi-
incomodarmos de sermos chama- sas de coração e as pessoas dão para
das de senhora, pensar nisso. Qual o as outras. Normalmente eu não dou
problema? Eu não me incomodo de absolutamente nada do que ganho.
me chamarem de senhora. A priori, Quando eu morrer, usem, quando eu
quando começaram, eu fiquei meio morrer façam o que eu quiser… E al-
ressabiada, depois eu fui elaborar gumas coisas já tem para quem dar,
isso, por que eu estou incomodada? também já defini. Sabe? Pensar nisso,
Eu sou uma senhora mesmo. Como esse vestido velho? Me fez ficar boni-
é que eu vou me incomodar dessas ta tantas vezes… É isso… Assim como
meninas novas do movimento che- ser senhora é ter chegado aqui.

50 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
Movimento de Mulheres Negras e feminismo
negro no Brasil: uma memória1

por Cidinha da Silva

O dendê deste texto

No início do outono de 2017, li uma postagem de rede social na qual uma jor-
nalista negra na casa dos quarenta abraçava uma militante, também negra, na
casa dos 75 anos e a reverenciava como importante ícone do feminismo negro.
Reli o texto, a ver se não havia me equivocado, posto que em pelo menos vinte
anos de convivência com a homenageada não tinha me dado conta de seu alar-
deado feminismo negro.
Concluí o óbvio. Da mesma forma que certos pesquisadores querem a todo
custo enquadrar realidades nas teorias utilizadas como sustentadoras de suas
pesquisas, a jornalista empregou um conceito em voga e da moda para inserir

1 Este livro é de três mulheres que admiro muito: Bel Santos Mayer, Belzíssima, Belzinha, Maria Isabel.
Várias dimensões de um nome para significar grandeza estelar. Bianca Santana, a mais completa discípula
de Sueli Carneiro que, assim como a mestra, especializou-se em abrir portais. É também de Leda Maria
Martins, minha inspiração primeira que depois de ler esse texto numa publicação coletiva, deu-se ao
trabalho de me telefonar para comentá-lo e assim, me deu um dia-presente na vida. Às três, muito
obrigada, por tudo o que me oferecem.
uma militante política – de quem não Sobre tais plataformas e seus con-
se teve notícia, por exemplo, como frontos e conflitos, a poeta portugue-
participante dos fóruns feministas sa Raquel Lima me lembrou: “Mas as
orquestrados pelas mulheres negras novas gerações têm existência nesses
nos anos 1980 e 1990 – na condição territórios, são a marca de seu tempo
autodeclarada de militante do femi- e é preciso achar formas de lidar com
nismo negro. Aliás, nessas décadas isso”. Assenti. Alguns pontos me pa-
ainda não se falava nisso com o mes- recem centrais nesse “aprender a li-
mo vigor de agora. dar” com as novas gerações e seus
suportes comunicacionais: o primeiro
Está certo que, nas nossas culturas
refere-se ao reconhecimento político
de matrizes africanas, anterioridade
e histórico de lugares do fazer político
é posto, mas, nesse caso, a jornalista
pautados por construções sólidas e
se confundiu totalmente, levada por
transformadoras (debates, ações for-
essa onda midiático-feminista que
madoras, intervenções nas áreas da
desconsidera contextos históricos e
educação, saúde, cultura, religiosida-
aplica conceitos de hoje à atuação
des, gestão pública, direito, controle
política pregressa de algumas mulhe-
social de políticas públicas, liderança
res negras, principalmente daquelas
em manifestações culturais que man-
consideradas ícones.
têm vivas e dinamizam as culturas ne-
Escolhi iniciar o texto com essa pe- gras, imprensa negra, ações afirmati-
quena narrativa porque, no meu sen- vas etc.), que antecedem em décadas
tir, ela ilustra uma confusão bastante o território da política na web, apenas
presente nestes tempos marcados mais um território. O segundo pon-
pelo ativismo político que tem como to, decorrente desse, é compreender
principal plataforma de organização, por meio do estudo, da pesquisa, do
mobilização e síntese (com pou- diálogo com as mais velhas, que mui-
ca autocrítica), as redes sociais, por to pouco se inventa da roda. Ela já foi
meio de memes, frases bombásticas inventada há muito tempo. Podem
e/ou acusatórias, textos catárticos, existir novas formas de colocá-la para
tretas, análise de pessoas, caráter e rodar. É salutar que se crie o novo,
trajetórias políticas, como se discute mas é inteligente reconhecer também
a composição de personagens de sé- que o conhecimento sobre as coisas
ries. Daí decorrem debates movidos e processos configura repositório dis-
por argumentação pueril, performan- ponível a toda a humanidade, capaz
ces em vídeo e toneladas de fotos de eliminar esforços físicos e mentais
para provar que a vida foi vivida. Ou desnecessários, além de potencializar
seja, uma perspectiva que encerra a voos mais seguros a partir do conhe-
ação política das mulheres negras de cimento do campo. Existe uma falta
todos os tempos no entendimento de historicidade das ondas feministas
contemporâneo de feminismo negro contemporâneas, uma falta de arti-
construído no território das platafor- culação do hoje com o passado que
mas digitais. nos trouxe até onde estamos agora.

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 53
O terceiro ponto é que se faz neces- ríodo em que Patricia Hill Collins es-
sário tensionar com acuidade e gene- crevia as reflexões que viriam a subs-
rosidade um lugar de formação que tantivar o trabalho de muitas ativistas
tem sido protagonizado por pessoas e pesquisadoras negras no Brasil e no
muito jovens também em processo restante da América Latina.
de formação básica, envoltas nessa
Mas Lélia era brasileira, latina, nos
loucura do “você me representa”, e
deixou muito cedo, em 1994, e sua
enfrentar, com coragem, as quimeras
produção teórica foi anterior ao ad-
que têm surgido por conta disso. Essa
vento da internet. Assim, boa parte
é uma proposta para o futuro, não
das jovens feministas negras credita
pretendo desenvolvê-la neste texto.
à Kimberlé Crenshaw a elaboração do
“A memória é uma ilha de edição”, conceito de feminismo interseccional
como disse um dia Waly Salomão. nos anos 1990. Contudo, Lélia Gon-
Este texto trata das memórias de uma zalez, uma década antes, já articulava
mulher negra sudestina, circunscri- a ideia, esmiuçava-a, e inspirava Sueli
ta ao vivido no lugar geopolítico São Carneiro, criadora de Geledés – Insti-
Paulo, epicentro da região Sudeste, tuto da Mulher Negra, a organização
que, por diversos motivos, inclusive negra mais importante dos anos 1990
pela empáfia, costuma desconhecer e 2000.
ou não valorar de maneira adequada
Lélia não cunhou a expressão fe-
os processos vivenciados em outras
minismo interseccional, mas a gêne-
regiões do país, principalmente Nor-
se do conceito já estava em sua obra
te, Nordeste e Centro-Oeste.
escrita e em sua intervenção política.
Falava-se naquele momento em es-
Ação das mulheres negras pecificidades das mulheres negras,
organizadas num contexto opressão tripla (raça/gênero/classe),
moldado pelas ideias de depois em opressão múltipla ou mul-
Lélia Gonzalez
tifacetada. Saberíamos disso se lês-
semos os nossos clássicos, ou mes-
Lélia Gonzalez, a precursora de to- mo se apenas soubéssemos quem os
das as mulheres negras que se identi- escreveu, como alertou Sueli Carnei-
ficam com os princípios filosóficos e ro em entrevista para a revista Caros
políticos de eliminação da opressão Amigos (2000).
sofrida pelas mulheres, das desigual-
Os anos 1980 foram marcados
dades decorrentes e de promoção
pela rearticulação dos movimentos
da autonomia das mulheres negras, já
sociais e sua luta para derrubar de
no final dos anos 1970 alertava sobre
vez a ditadura civil-militar. Pelas pri-
a interseccionalidade (sem usar essa
meiras eleições livres, em 1982, para
expressão) das opressões sofridas
os governos estaduais, Câmara dos
por nós. Lélia articulava as questões
Deputados e Senado. Pela eleição de
ligadas à opressão de gênero, de raça
Franco Montoro em São Paulo, Leo-
e de classe. Fazia isso no mesmo pe-
nel Brizola no Rio de Janeiro, Tancre-

54 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
do Neves em Minas, e a subsequente dades e estados, instados pelo Con-
criação dos conselhos da mulher e da selho Nacional dos Direitos da Mulher
comunidade negra no âmbito dessas (CNDM), mais especificamente pelo
gestões (pelo que sei, Miguel Arra- Programa da Mulher Negra, criado
es, também eleito em Pernambuco por Sueli Carneiro, uma das dirigentes
na onda democrática, não criou nada do Conselho na época. Os coletivos
similar). Pela campanha a favor das de mulheres negras eram organiza-
diretas em 1984. Pela eleição de Tan- ções apartidárias que tinham o objeti-
credo no Congresso Nacional e pela vo de reunir mulheres negras oriundas
posse de Sarney, diante da morte de diferentes agremiações para dis-
do outro. Pelo desaparecimento de cutir suas especificidades na socieda-
Ulysses Guimarães na queda de um de brasileira e formas de se organizar
helicóptero no mar, como aconte- politicamente para enfrentá-las.
ceu com Teori Zavascki, ministro do
É importante destacar que a
STF. Pela instituição da Assembleia
organização autônoma das mulheres
Nacional Constituinte de 1986, dos
negras, tanto dentro como fora das
deputados Luiz Inácio Lula da Silva,
organizações mistas, enfrentou forte
Benedita da Silva e Paulo Paim. Pelo
resistência por parte dos homens
centenário da abolição da escrava-
negros organizados que utilizavam o
tura. Pelo Tribunal Winnie Mandela e
discurso débil e exclusivista de que as
pelo nascimento de Geledés, organi-
“mulheres negras estavam dividindo
zação que inseriu o movimento social
o Movimento”. O que eles temiam,
negro no mundo das ONGs, até en-
na verdade, era a perda de suas
tão branco.
carregadoras de piano, secretárias
Paralelamente à redemocratização responsáveis pela confecção de
do Brasil, o Movimento Negro se re- atas e alimentação dos militantes
articulava. Digo em paralelo porque a nos congressos e outras funções
luta negra não era vista como algo es- de sustentação que lhes permitiam
truturante na reorganização política discutir infinitamente e planejar a
do país. Pouco mudou até hoje, conti- revolução sem considerar a voz das
nuamos correndo pelas beiradas dos mulheres.
temas centrais de interesse público.
Ocorreram os Encontros Nacio-
O Movimento Negro Unificado nais de Mulheres Negras, nos quais
(MNU), organização mais importan- se tentou constituir uma organização
te daquele período, tensionava a es- nacional de mulheres negras, inicia-
querda brasileira com a questão de tiva sempre marcada por distensões
raça e classe. Surgiam dentro das regionais e disputas internas – todas
organizações mistas as comissões e compreensíveis, pois, como me lem-
grupos de mulheres negras que, por brou Yasmin Thayná, a disputa é ine-
sua vez, tensionavam as questões de rente à política, haja vista que todo
gênero. Ampliavam-se também os território está em disputa, seja narra-
coletivos de mulheres negras nas ci- tiva, estética, geopolítica, egóica.

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 55
Houve ainda a participação de mu- Movimento de Mulheres
lheres negras líderes em várias con- Negras versus Movimento
ferências internacionais que trataram Feminista
dos direitos das mulheres, tais como
Nairóbi (III Conferência Mundial So- As reflexões que farei aqui, repi-
bre a Mulher, 1985), Cairo (Conferên- to, são frutos exclusivos da memó-
cia Internacional Sobre População e ria. Recomendo a leitura de estudos
Desenvolvimento, 1994) e Pequim sobre o tema para quem quiser uma
(IV Conferência Mundial Sobre a Mu- abordagem aprofundada.
lher, 1995). Quando cheguei a São Paulo em
O intento de constituição de uma 1988, aos dezenove anos, para par-
organização nacional de mulheres ticipar de uma das sessões do Tribu-
negras só lograria efetividade no ano nal Winnie Mandela – a de julho, salvo
2000, durante o processo prepara- engano –, fui acolhida amorosamente
tório para a III Conferência Mundial pelas mulheres de Geledés.
Contra o Racismo, que ocorreu em Algumas coisas me impressiona-
Durban, África do Sul, no ano seguin- ram: a primeira delas, a eloquência e
te. Seria criada, finalmente, a Articu- elegância discursivas de Sueli Carnei-
lação de Mulheres Negras Brasileiras ro, bem como sua generosidade. Ao
(AMNB). Nesse momento, venceu o mesmo tempo, fiquei chocada com
entendimento amadurecido de que o sua braveza e com os discursos de
mesmo céu poderia comportar inú- outras mulheres, verdadeiras brava-
meras estrelas. tas que arrancavam palmas frenéticas
Existe também um capítulo a ser da audiência.
escrito sobre a constituição e fortale- A aglomeração de tantas mulheres
cimento dos grupos de mulheres ne- negras no mesmo espaço, cheias de
gras dentro das organizações mistas, poder e certezas, também me impac-
notadamente no MNU. Ali, ao longo tava. Entretanto, achava uma chatice
dos anos 1980 e início da década de a obrigatoriedade do bar depois das
1990, diversas mulheres que talvez reuniões e debates e a continuação
não sejam estrelas muito visíveis hoje, dos trabalhos por lá. Ver Benedita da
ou tenham uma atuação mais discre- Silva, minha musa da Constituinte, de
ta nos termos da militância política, perto foi de tirar o fôlego. Anos de-
puderam amadurecer e se beneficiar pois eu seria hospedada na casa dela
com o convívio estreito ao lado de no Chapéu Mangueira, por recomen-
Lélia Gonzalez e Luiza Bairros. São dação de Sueli Carneiro, e demorei a
muitas histórias bonitas e fortes que dormir pela emoção de estar na casa
merecem divulgação em formato de da Bené, como era chamada pelas
publicações, depoimentos em vídeo, pessoas mais íntimas.
coleções de fotografias, circulação
da memória, enfim. Ficam aí suges- Das conversas que escutei no pós-
tões de temas para pesquisa. -Tribunal, guardei três pontos: existia
uma estratégia de Geledés para ocu-

56 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
par espaços institucionais, possíveis nista, em Bertioga, que foi tomado
formuladores de políticas públicas por vários ônibus de mulheres ne-
para as mulheres negras; os funda- gras oriundas do Brasil inteiro. Não
mentos do culto aos orixás eram força vivi isso, o ano era 1989 e eu, uma
motriz de muitas daquelas mulheres; simples estudante universitária em
e, por fim, havia uma distinção entre Belo Horizonte, não envolvida em
Movimento de Mulheres Negras e militância política. Ouvi os rumo-
Movimento Feminista, integrado por res do levante, principalmente pelas
algumas mulheres negras. Não se mulheres de Geledés que haviam se
falava em feminismo negro, ou pelo tornado minhas amigas e às quais
menos eu não ouvi. eu visitava pelo menos uma vez por
ano. O final dos anos 1980 e a déca-
Essa distinção era tensa. Parecia
da de 1990 foram marcados por uma
haver um entendimento de que a
perspectiva militante e teórica de
expressão Movimento de Mulheres
enegrecimento e pluralização do fe-
Negras poderia abarcar mais mulhe-
minismo. Geledés nasceu em 1988 e
res de origem popular e camponesa,
(com créditos reconhecidos ou não)
trabalhadoras domésticas e outras
inspirou o surgimento de outras or-
categorias profissionais de menor
ganizações autônomas de mulheres
remuneração, nas quais as mulheres
negras país afora.
negras abundavam. A expressão Mo-
vimento Feminista, por sua vez, tinha Sobre a organização, é impor-
cara e tom mais europeizados e inte- tante ressaltar alguns aspectos ino-
lectualizados. Havia também a distin- vadores, pelo menos seis deles: a
ção geral Movimento de Mulheres e responsabilidade do instituto na
Movimento Feminista. Amelinha Te- consubstanciação da questão racial
les, da União de Mulheres, escreveu no campo dos direitos humanos, ou
sobre isso e foi uma leitura importan- seja, a perspectiva de que é um di-
te para mim. reito humano viver sem racismo; a
criação de um programa de comuni-
No ano de 1987, em Garanhuns,
cação em sua estrutura por antever o
tivera lugar o XIX Encontro Nacional
papel da área comunicacional na dis-
Feminista, do qual se falava muito. Ali
puta de narrativas sócio-político-cul-
parece ter havido uma insurreição das
turais que nos tomaria nas décadas
mulheres negras contra o feminismo
seguintes; o trabalho com as juven-
branco que não conseguia ouvi-las
tudes negras na área da cultura por
com a atenção necessária e muito
meio do antológico Projeto Rappers,
menos com disposição para descons-
uma iniciativa que contribuiu muito
truir privilégios de raça e classe, me
para a descriminalização e organiza-
confiou Ana Reis. As mulheres negras
ção do movimento hip-hop em São
estavam muito bravas, se isolaram, se
Paulo; a publicação da revista Pode
fecharam.
Crê! (1992/1994), um projeto impres-
O levante continuou dois anos de- so esteticamente bem cuidado que,
pois, no X Encontro Nacional Femi- além de trazer conteúdos inovadores

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 57
produzidos pelos rappers do projeto, crescido no Brasil o volume de even-
positivava e espraiava o conceito de tos políticos e culturais que objetivam
juventude negra detentora de voz discutir questões caras às mulheres
ativa – um pouco depois, em 1996, a negras, ao tempo que também fa-
revista Raça Brasil chamou a atenção zem circular sua produção intelectu-
do país, mas podemos dizer que a al e artística. Dessa forma firma-se o
Pode Crê! fora sua precursora e não mês de julho como mês das mulheres
lhe devia nada em termos estéticos negras brasileiras.
e gráficos; a criação e efetivação dos
Em 1995 ocorreu a Marcha Zumbi
primeiros programas de ação afir-
dos Palmares pela Cidadania e pela
mativa no Brasil, no ano de 1999, em
Vida que reuniu milhares de pesso-
parceria com empresas, com vistas a
as em Brasília em atenção ao tricen-
promover o acesso, permanência e
tenário de morte ou de imortalidade
sucesso de jovens negros em boas
de Zumbi dos Palmares. As mulheres
universidades, antecipando o debate
negras e suas organizações participa-
sobre as ações afirmativas para ne-
ram decisivamente da organização e
gros como estratégia de combate às
execução da Marcha.
desigualdades raciais que só tomaria
fôlego no país em finais de 2001 e iní- Nesse mesmo ano foi publicado na
cio de 2002, pelas portarias do go- revista Estudos Feministas da UFRJ,
verno Fernando Henrique e adoção o dossiê Mulheres negras, organi-
de cotas para negros em universi- zado por Matilde Ribeiro, que viria a
dades públicas como a Universidade ser ministra da Secretaria de Políti-
Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), cas de Promoção da Igualdade Racial
a Universidade Estadual da Bahia (Seppir) em 2003, no primeiro go-
(UNEB) e Universidade de Brasília verno Lula. A publicação contou prin-
(UnB); e, finalmente, a criação e ma- cipalmente com pensadoras negras
nutenção diária do Portal Geledés, e suas produções, fossem feministas
um dos mais importantes e acessa- ou não. Publiquei nesse dossiê um
dos portais de notícias do país, sendo texto chamado “O rap das meninas”,
o mais consultado para medir a pul- que tratava de questões de gênero
sação das questões raciais. no movimento hip-hop.
Em 1992, durante o Primeiro En- Em 1997 aconteceu em São Luís,
contro de Mulheres Afro-Latino- Maranhão, a Jornada Lélia Gonzalez.
-Americanas e Afro-Caribenhas na Promovido pela Fundação Cultural
República Dominicana, instituiu-se o Palmares, o encontro reuniu expo-
25 de julho, Dia Internacional da Mu- entes negras de todo o país e trouxe
lher Negra Latino-Americana e Cari- ao Brasil, pela primeira vez, a lendária
benha. Em 2014, a presidenta Dilma Angela Davis.
sancionou essa mesma data como o
Dia Nacional de Tereza de Bengue- Em 2000, foi publicado O livro da
la e da Mulher Negra. Desde o esta- saúde das mulheres negras: nossos
belecimento da comemoração, tem passos vêm de longe pela editora

58 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
Pallas, organizado por Jurema Wer- Das três ministras negras da Seppir
neck, Maísa Mendonça e Evelyn C. nos governos Lula-Dilma, duas tive-
White. Obra-marco daquele início de ram trajetória feminista bem conhe-
década, pois reuniu o pensamento cida e consubstanciada em organiza-
de mulheres negras sob um espectro ções políticas negras e de mulheres:
muito significativo. Matilde Ribeiro na Sempre Viva Orga-
nização Feminista (SOF) e na Soweto
Durante todo esse período aqui
– Organização Negra, e Luiza Bairros
compreendido – é bom que se regis-
no MNU e no Grupo Ialodês.
tre –, as reflexões de Sueli Carneiro
foram materializadas em textos que Notadamente na segunda década
se transformaram em faróis para a do século XXI, verificamos a atuação
luta das mulheres negras brasileiras das jovens feministas negras nas re-
na contemporaneidade. Isso aconte- des sociais. Sobre isso não sei falar,
ce até hoje, embora atualmente Sueli não me arvoro a falar e considero que
se veja ombreada por diversas vozes, existe bastante gente falando, cons-
muitas delas inspiradas por ela própria. truindo essa narrativa de maneira sé-
ria e consequente.
As décadas de 2000 e 2010, a Gostaria de destacar três pontos
consolidação do feminismo finais para este tópico: primeiro, a
negro chegada de Jurema Werneck à di-
reção da Anistia Internacional em
A formação da Articulação de Mu- 2017. Parece-me que, aliada às suas
lheres Negras Brasileiras, a meu ver, inequívocas competências indivi-
demarca o amadurecimento das or- duais, a conquista do posto é resul-
ganizações de mulheres negras e de tado da luta coletiva das mulheres
suas gerações mais novas que com- negras organizadas em agremiações
preenderam, como já disse, que o céu feministas ou não e também da atu-
comportava inúmeras estrelas. Ainda ação profícua da AMNB. O caso de
assim, eu não percebia ali uma opção Jurema me parece diferente das ar-
explícita pelo feminismo negro. Pa- ticulações que levaram as ministras
rece-me que o ingresso significativo negras ao poder, a saber, concertos
de mulheres negras politicamente partidários e negociações políticas
posicionadas nos programas de pós- que não passaram pelo movimento
-graduação das universidades bra- social como agente definidor, mes-
sileiras – também como docentes – mo que as mulheres em questão
foi um fator mais significativo. Penso fossem respaldadas pelas mulheres
que nesse processo foi robustecida negras organizadas. Jurema Wer-
a ideia de um feminismo negro pela neck, entretanto, conquistou uma
necessidade de produzir uma teoria instância de poder importante pelo
feminista negra no Brasil, uma abor- mandato coletivo de um movimento,
dagem epistemológica que contem- cuja construção e consolidação con-
plasse essas intelectuais emergentes. taram com seu empenho diuturno.

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 59
Há também outras mulheres negras celulares do tamanho e peso de um
muito competentes que ocupam di- radinho de pilhas, quando as relações
ferentes espaços significativos nas humanas presenciais eram mais for-
televisões, nos telejornais e portais tes e frequentes do que as relações
de notícias, em programas de entre- humanas mediadas pelas ferramen-
vistas e no entretenimento televisivo tas de comunicação. Por outro lado,
e digital. De um modo geral, é um a gramática da contemporaneidade
grupo beneficiado pela luta das mu- é o audiovisual. O financiamento de
lheres negras organizadas dos anos uma viagem ou um projeto se resolve
1980 para cá. com “vakinhas” virtuais. Aquelas ca-
tarses antigas de quando a mulhera-
O segundo ponto trata dos con-
da dividia seus sentimentos de forma
flitos geracionais entre mulheres ne-
presencial e que podiam dar início a
gras da velha guarda do Movimento
grandes amizades ou amores, agora
de Mulheres Negras e mesmo do fe-
ocorrem nos “textões” das redes so-
minismo negro de primeira geração
ciais, a qualquer hora, numa comu-
e mulheres jovens mais ligadas ao
nicação direta com o mundo todo,
ativismo na web. Trata-se de cam-
inclusive aquele que não tem nada a
po minado a cada metro quadrado,
ver com suas dores mais íntimas.
em zigue-zague, o que torna muito
difícil não pisar nas minas e com isso O último ponto refere-se à Marcha
estilhaçar nossas pernas, nossa sus- das Mulheres Negras Contra o Racis-
tentação. A falta de reconhecimento mo, a Violência e Pelo Bem Viver, mo-
público das primeiras e a frustração mento ímpar na história de atuação
por não ocuparem lugares aos quais política das mulheres negras organi-
se achavam merecedoras, somadas zadas, protagonizado pelas mulheres
à visibilidade acachapante que os negras do Nordeste que lideraram o
meios digitais possibilitam às prota- processo, criaram e fizeram valer o
gonistas jovens, têm levado algumas projeto e mobilizaram o Brasil inteiro.
mais velhas a crises de representati- E vejam, estávamos já em 2015 e não
vidade e reconhecimento. Escuda- se tratava de uma marcha autopro-
das na cristalização de um modo de clamada de feministas negras, mas
fazer política, de um tempo em que de mulheres negras em marcha.
existiam atas de reuniões presen-
ciais, mosquitinhos para panfletar
Lesbianidade negra ou de
nas ruas, alto-falantes para mobilizar
transeuntes, livro de ouro para pagar boa na lagoa cheia de sapas
alimentação, aluguel de ônibus e col- com a barriguinha no sol
chonetes em congressos políticos,
Em alguma medida nos anos 1990
essas mulheres se frustram diante do
as lésbicas negras que reivindicavam
novo. E algumas, talvez de maneira
espaços específicos ouviram de cer-
saudosista, querem voltar ao tempo
tas companheiras que elas iriam “di-
em que existiam máquinas de escre-
vidir o Movimento”. O mesmo que
ver, carbono, livro-caixa, pager, bip,

60 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
aquelas ouviram dos homens negros mir um protagonismo no tema e que
quando quiseram discutir especifici- eu, como segunda lésbica a exercer a
dades das mulheres como parte da presidência da organização, deveria
pauta geral do Movimento Negro. In- fazê-lo. Esperava-se isso de mim e
congruências. da organização. Depois de alguns se-
gundos em silêncio, perscrutada por
Em 2005 ocorreu em São Paulo o
Sueli, eu disse: “Teremos que esperar
primeiro Encontro de Lésbicas Ne-
a terceira presidenta lésbica”. Ela me
gras. Constituiu-se também um co-
olhou com a cara de quem pergunta:
letivo virtual, a Rede Afro LGBT, pal-
“Você está brincando ou está falan-
co de discussões acaloradas sobre
do sério?”. Era sério. Eu não me sentia
ser negro e lésbica, gay, bissexual e
preparada para responder àquela de-
transgênero no Brasil. A Rede contou
manda. Ela me perguntou o porquê.
também com encontros presenciais
Respondi que eu não saberia me co-
regionais e dois nacionais.
locar de alma naquilo, porque mesmo
As lésbicas negras têm disputado entendendo que o pessoal é político,
espaços no feminismo negro, nas or- a vivência da orientação sexual esta-
ganizações LGBT, nas organizações va no campo da intimidade para mim.
lésbico-feministas. A Rede de Mulhe- Adicionalmente, eu entendia que a
res Negras do Paraná, sob inspiração luta contra o racismo era o essencial
e liderança da septuagenária Heliana e tudo mais cabia ali.
Hemetério, tem tentado qualificar a Cidinha da Silva é prosadora e editora. Tem
discussão. dezesseis livros autorais de literatura publicados,
entre eles: Um Exu em Nova York (contos, 2018);
Lembro-me que em 2000, quan- # Parem de nos matar! (crônicas, 2019, 2ª edição)
e a série Melhores crônicas de Cidinha da Silva
do assumi a presidência de Geledés,
(volumes 1, 2 e 3, 2019). Tem textos publicados
Sueli Carneiro me indagou qual seria em catalão, espanhol, francês, inglês e italiano.
minha posição em relação às ques- Seus livros estão disponíveis no site da Kuanza
Produções: www.kuanzaproducoes.com.br.
tões políticas das lésbicas negras. Ela
entendia que Geledés deveria assu-

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 61
TERRITÓRIO SAGRADO

Minhas cores
Minhas dores
Meus amores
Meus antecessores

Meu corpo é cultura


Meu corpo é político
Meu corpo é sangue
É pulsão
Tesão
Paixão
Meu corpo é constelação

Minha casa
Que se faz morar uma cambada
De gente amada

Meu corpo é território


Aqui se planta e se colhe
Para alimentar uma prole

Mãe terra
Me de teus frutos
Para que eu possa fazer sucos
Daqueles que correm nos dutos
De tuas raízes

(SOL(AR), 2021)

Autora: Gabriele Miranda Santos, mais conhecida como Solar (nome artístico)
RESUMO that aims to guarantee the autonomy
of forms of life, and the protagonism
Falar em liberdade sexual perpassa
that strengthens the ancestry, identi-
pelo direito territorial e socioambien-
ties, languages, religions and culture
tal, nossos corpos Quilombolas exis-
of the Quilombola Communities.
tem e resistem a diversas formas de
opressão. Lutamos pelo respeito, va- Keywords: Territorial Body, Qui-
lorização dos nossos modos de vida lombo, Struggles, Communities tra-
e produção de conhecimentos, con- ditional
fluindo com o respeito aos espaços
e tempos nos quais crianças, adoles- Corpo Território - Formas de ex-
centes, jovens, adultos, idosos e an- pressar identidades de luta!
cestrais quilombolas ensinam, apren- As comunidades Quilombolas con-
dem, educam e colaboram para que fluem e constituem modos de existir
as futuras gerações deem continui- e resistir, nos levando a pensar que o
dade a cultura quilombola. Buscando território é muito mais que a proprie-
confluir a individualidade ao coletivo, dade da terra. Assim como previsto
escrevo este breve relato de exis- no ART. 68 da Constituição Fede-
tência que visa garantir a autonomia ral de 1988, no Ato das Disposições
das formas de vida, e o protagonismo Constitucionais Transitórias (ADCT),
que fortalece a ancestralidade, iden- que estabelece aos remanescentes
tidades, línguas, religiões e cultura das comunidades dos quilombos que
das comunidades Quilombolas. estejam ocupando suas terras, o re-
Palavras-Chave: Corpo Território, conhecimento a propriedade defi-
Quilombo, Lutas, Comunidades Tra- nitiva, devendo o Estado emitir-lhes
dicionais. títulos respectivos. Com o artigo
transcrito acima, o termo quilombo
assumiu um novo significado, não
SUMMARY mais atrelado ao conceito de grupos
formados por escravizados fugidos.
Talking about sexual freedom per- Atualmente, o termo é usado para
meates territorial law, our Quilombola designar segmentos quilombolas em
bodies exist and resist various forms diferentes regiões do Brasil, fazendo
of oppression. We fight for respect, referência às terras oriundas de he-
appreciation of our ways of life and ranças, posses, terras abandonadas
production of knowledge, respect pelos proprietários, da compra ou en-
for the spaces and times in which tre tantos outros territórios com traje-
children, adolescents, young people, tória histórica própria. É reconhecido
adults, the elderly and quilombola enquanto Quilombo os grupos étni-
ancestors teach, learn, educate and co-raciais dotados de relações ter-
collaborate so that future genera- ritoriais específicas, com presunção
tions can continue quilombola cultu- de ancestralidade negra, relacionada
re. Seeking to merge individuality with com a resistência à opressão histórica
the collective, I write this brief report sofrida e seu reconhecimento deve

64 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
ser dado segundo critérios de autoa- O que eu quero para mim, quero para
todos. A gente vive no coletivo, tudo na
tribuição atestada pelas próprias co- comunidade é coletivo, não é individual.”
(Sandra Maria da Silva, liderança quilombola
munidades. Singulares ou plurais, elas - CONAQ)
movimentam consigo práticas cultu-
rais, espirituais e coletivas, geradas e O respeito aos espaços e tempos
transmitidas pela tradição oral. nos quais crianças, adolescentes, jo-
Apenas em 2003, através do De- vens, adultos, idosos e ancestrais qui-
creto Federal Nº 4.887, é que foi re- lombolas ensinam, aprendem, edu-
gulamentado o procedimento para cam e colaboram para que as futuras
identificação, reconhecimento, delimi- gerações deem continuidade a cul-
tação, demarcação e titulação das ter- tura quilombola. Valoriza os conhe-
ras ocupadas por remanescentes das cimentos e as formas de produção
comunidades quilombolas. A Conven- de conhecimento das comunidades
ção 169 da Organização Internacional quilombolas e da cultura afro-brasi-
do Trabalho (OIT) sobre Povos Indíge- leira, garantindo o etnodesenvolvi-
nas e Tribais, foi promulgada no Brasil mento, modelo de desenvolvimento
por meio do Decreto 5.051 de 19 de que antecede o desenvolvimento e
abril de 2004; atualmente em vigên- possibilita a aprendizagem, levando
cia no Brasil pelo Decreto nº 10.088 de em consideração a participação das
05 de novembro de 2009, obriga os comunidades tradicionais e suas tra-
governos a adotar medidas de acordo dições. Compreende-se que o local
com as tradições e culturas dos povos do ser é componente indispensável
interessados, a fim de reconhecer e às formas de produção da vida e do
proteger seus direitos, especialmen- trabalho, os mutirão ou puxirão como
te referente ao trabalho e às possi- dizem nossos antepassados, mantém
bilidades econômicas, às questões a tradição, a sustentabilidade, a cultu-
de educação e saúde, aos serviços ra e a comemoração.
sociais, o respeito e a integridade de “Quando faz mutirão de colheita tem baile.
seus detentores. Com o objetivo de Junta o povo, é o povo que faz a festa.
Dança de par. Violão, sanfona, cavaquinho,
protegê-los, a Consulta Prévia, Livre, pandeiro. Aqui só tem violão. O resto
Informada, só será realizada mediante dos instrumentos os convidados trazem.
Vamos pro poço tomar banho, pode tomar
procedimentos apropriados, toda vez uma cachaça, depois vai jantar e iniciando
que sejam previstas medidas legisla- na viola”, disse Antoninho Ursulino, em
depoimento de 2010.
tivas ou administrativas suscetíveis de
afetá-los diretamente.
O Sistema Agrícola Tradicional Qui-
“É uma vivência de geração em geração. lombola do Vale do Ribeira/SP foi
Nossos antepassados foram trazidos da reconhecido em 2018, como Patri-
África. Eles morreram mas deixaram legado,
deixaram família. Com a libertação eles mônio Histórico e Imaterial Brasileiro
não ganharam nada e nem tinham terra.
Eles embrenharam mata adentro e, onde pelo Instituto do Patrimônio Histórico
achavam terra que desse para morar, era e Artístico Nacional (Iphan). Usando
construído um Quilombo. Nas comunidades
todos são parentes. É primo, prima, irmão, o roçado e o fogo controlado, a roça
tio, pai. A gente não discrimina ninguém, a de coivara abre espaço na mata fertil,
gente luta pela igualdade. É nesse contexto
que vivemos, de união e compartilhamento.

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 65
durante três a cinco anos o agricultor Educação do Campo, Educação Es-
familiar quilombola faz o uso daque- pecial, Educação Profissional Técnica
le solo para plantar, colher e nutrir-se. de Nível Médio, Educação de jovens
Após o roçado dá lugar ao tempo de e adultos e Educação à Distância.
pousio¹ possibilitando assim a regene- Visando garantir em todas etapas e
ração da floresta e sua biodiversidade, modalidades da educação básica o
ajudando a proteger o maior rema- respeito a suas especificidades, a fim
nescente de Mata Atlântica do Brasil. de assegurar que as escolas quilom-
Com mais 240 variedades de plantas bolas que estejam localizadas em ter-
orgânicas e manejadas sem o uso de ritórios quilombolas ou que atendem
agrotóxicos, garantimos não apenas estudantes oriundos de comunidades
a nossa segurança alimentar, mas quilombolas, considerem a participa-
de outros territórios de resistência e ção de lideranças e da comunidade
luta, como o projeto “Quilombo Que- na gestão das escolas conforme dis-
brada”, uma iniciativa que é realizada posto no Decreto N° 8.750/2016, que
através da Cooperativa de Agriculto- regulamenta o conselho nacional dos
res Quilombolas do Vale do Ribeira Povos e Comunidades Tradicionais,
(Cooperquivale), que trilha caminhos assegurando expressamente ao seg-
da roça para a mesa de quem mais mento quilombola representatividade
precisa. Roça de coivara é Educa- em espaços de debate de política pú-
ção Quilombola, e acontece em cada blicas fundamentais a estes grupos,
hectare da comunidade, os conjuntos como forma de subsídio para cobrar
de saberes e tecnologias tradicio- das unidades escolares, dos municí-
nais são transmitidos na prática e nos pios, dos Estados e da União. Os ob-
modos de vida. Buscando dialogar e jetivos da Educação Escolar Quilom-
adequar-se aos costumes e tradições bola rege-se na autonomia e garantia
às Diretrizes Curriculares Nacionais do protagonismo dos estudantes qui-
para a Educação Escolar Quilombo- lombolas, cabendo à União responsa-
la, a educação deve ter como prin- bilizar-se pela proteção e o consenti-
cípio que os indivíduos quilombolas mento das comunidades acerca das
narrem a sua versão da história com medidas propostas. Os processos de
suas histórias, que constroem os sig- ensino-aprendizagem devem pautar-
nificados que julgam ser representati- -se no direito à liberdade, diversidade,
vos de suas vivências. (Secretaria do pluralidade, valorização da ancestra-
Estado do Paraná, 2010). A Resolu- lidade e o reconhecimento da histó-
ção CNE/CEB nº 08/2012, assegura ria e da cultura afro-brasileira como
o direito a consulta, valorização e mo- elementos estruturantes do proces-
bilização de saberes das comunida- so “civilizatório nacional. A luta por
des remanescentes de Quilombo. A uma educação de qualidade que seja
Educação Escolar Quilombola é uma coerente com o modo de viver nos
modalidade de ensino da educação quilombos contribuem para o forta-
básica que inclui: Educação Infantil, lecimento da identidade quilombola,
Ensino Fundamental, Ensino Médio, enquanto educadora busco incorpo-

66 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
rar aos conhecimentos escolares a in- com a comunidade, sistema de ensino e
terculturalidade de saberes, gravadas instituições de educação superior. As-
e vivas em nossos solos de memórias sumindo assim a autonomia e o controle
e histórias, adentramos o chão de de suas próprias instituições e formas de
sala de aula como forma de garantir vida, o protagonismo fortalece a ances-
a inclusão e o direito a uma educação tralidade, identidades, línguas, religiões
diferenciada que assegure os costu- e cultura do(a) jovem quilombola, sendo
mes, cultura, pertencimento e suas sua permanência essencial para o futuro
práticas socioculturais ou políticas. do território.

A Lei 10.639/03 que estabelece a A trajetória de vida vai para além do


obrigatoriedade do ensino da história e sujeito central que conduz a narrativa
cultura afro-brasileiras e africanas nas (auto)biográfica. Ao focar o sujeito que é
escolas públicas e privadas do ensino narrado, dimensiona-se tal sujeito em um
fundamental e médio; o Parecer do CNE/ contexto mais amplo. Se entendermos que
CP 03/2004 que aprovou as Diretrizes a constituição de identidade é relacional,
Curriculares Nacionais para Educação das as biografias dos sujeitos poderão ser
Relações Étnico-Raciais e para o Ensino conectadas/comparadas com as narrações
de História e Cultura Afro-Brasileiras e de outras histórias de vida, numa dinâmica
Africanas; e a Resolução CNE/CP 01/2004, que supõe ir além da sucessão cronológica
que detalha os direitos e as obrigações dos individual ou da constituição de trajetória de
entes federados ante a implementação da vida. (CAETANO, 2016, p. 33)
lei compõem um conjunto de dispositivos
legais considerados como indutores de uma
política educacional voltada para a afirmação Os saberes individuais quando ex-
da diversidade cultural e da concretização de
uma educação das relações étnico-raciais postos se tornam coletivos, em uma
nas escolas, desencadeada a partir dos mescla de histórias e pontos de vista,
anos 2000. É nesse mesmo contexto que
foi aprovado, em 2009, o Plano Nacional que expressam de diferentes formas,
das Diretrizes Curriculares Nacionais para
a Educação das Relações Étnico-Raciais mapeadas e registradas nos nossos
e para o Ensino de História e Cultura Afro- acervos de memória. Enquanto guar-
Brasileira e Africana (BRASIL, 2009).
diãs e guardiões lutamos pela garan-
tia do uso coletivo dos territórios,
Buscamos a superação do racismo
pelo bem viver e pela implantação
(institucional, ambiental, estrutural, entre
de projetos de desenvolvimento sus-
tantas outras formas de violência que nos
tentável, que estejam em harmonia
atravessam) não compactuamos com
com o meio ambiente e a autonomia
toda e qualquer forma de preconceito e
das mulheres quilombolas, através
discriminação racial. O currículo escolar
do diálogo e escuta ativa lutamos
deverá ser aberto, flexível e de caráter
pela superação do racismo, sexismo,
interdisciplinar, elaborado junto aos só-
machismo, homofobia, lesbofobia e
cios, de modo a articular o conhecimento
transfobia, etc.
escolar e os conhecimentos construídos
pelas comunidades quilombolas. A cons- toma o discurso sobre o sujeito como o
centro de interesse e fundamenta outra
trução de um projeto político pedagógico perspectiva do fazer ciência. Ela propõe
(PPP), que considere as especificidades que, por intermédio de relatos particulares,
outras dimensões mais amplas sejam
históricas, culturais, sociais, econômicas, articuladas para o entendimento dos
identitárias e coletivas, passa pela inser- fenômenos sociais e, por conseguinte,
pensadas suas sequelas nas trajetórias dos
ção da realidade quilombola em todo ma- sujeitos. Levando em consideração que nas
narrativas, como nas memórias, o passado
terial didático, produzido em articulação se reconstrói discursivamente de maneira
não linear, com superposições de tempo,

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 67
reflexões e espontaneidade, o que retorna Falar em gênero e sexualidade ne-
não é o passado em si, mas a (re)leitura das
imagens e experiências armazenadas na cessariamente precisa dialogar com
memória estimuladas em um determinado
presente e sob certas circunstâncias. Em a diversidade, singularidades e dis-
outras palavras, não é o passado linear tintas realidades, nossos corpos são
que se reconstitui na narrativa, e sim tudo
aquilo que foi privilegiado na experiência sagrados assim como nossos territó-
que marcou nossos corpos e auxilia na rios. Matérias que confluem sabedo-
forma como nos colocamos no mundo hoje.
(CAETANO, 2016, p. 34-35) rias através do respeito à diversidade
religiosa, ambiental, sexual, cultural,
Escrever sobre um território per- social e ancestral. Movimentos que
passa narrar histórias de vidas passa- nos movimentam e transformam.
das, as especificidades presentes na Atualmente minha maior transforma-
trajetória dos sujeitos. Identificar-se ção é me reconhecer enquanto sujei-
enquanto pertencente a uma comu- to-corpo de terreiro e filha de Santo
nidade Quilombola é ter consciência da Mãe Patrícia Iansã, carregando co-
do solo fertil e solo sagrado do qual migo os frenteiros da minha orí Oyá e
pisa, pois é nele que a esperança, Ṣàngó, guiada e apadrinhada por seu
união e luta pela titulação se fazem Tranca Rua. As falanges junto a meu
presentes. Corpos que lutam pela li- corpo negro existem, coexistem e re-
berdade para ser, estar e expressar sistem a todas as formas de opressão
todos os modos e formas de existên- que ameaçam nossos modos de vida.
cia, exigem ampliar suas vozes e rom- As violências sofridas direta e indire-
per com os silenciamentos históricos. tamente pelos abandonos do esta-
A branquitude hegemônica exerce do, violam meu corpo que reinvidica
seu poder sob nossos corpos for- direitos humanos e liberdades fun-
çando-nos a norma cis heterosexual, damentais, sem obstáculos, nem dis-
estabelecendo parâmetros sexuais criminação. Segundo Kabengele Mu-
e formas relacionais, das quais nos nanga (2018) “É preciso unir as lutas,
prende e tenta encaixar, violentando sem abrir mão das especificidades”.
nossos corpos, abusando da matéria Não tem como falar da comunidade
e estuprando o espirito. LGBT+ sem falar em identidades e
comunidades. Lutar contra a escra-
As mudanças mais bonitas
vidão espiritual, cultural, socioeconô-
Não vem com calma e sossego
mica e política, é lutar por liberdade
São uma ventania incontrolável
de ir, vir e existir. Titulação já!
Jogando tudo pra cima
Nada cai no mesmo lugar
Nem as coisas Referências
Nem o coração Nem você
O tempo fechado nos abre.”
AFFONSO, paulo, Direito Ambien-
tal Brasileiro. São Paulo: Cicacor, 2016.
(No XII ENCONTRO DO COLETIVO MULHERES
QUILOMBOLAS NA LUTA (MQNL), teve
BARLOW, zenobia; STONE, micha-
intervenção cultural em que Elizete de França Dias el. Alfabetização Ecológica. São Pau-
recitou poemas sobre o corpo e ancestralidade lo: Cultrix. 2005
negra, de autoria da escritora Ryane Leão).

68 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
BISPO, antônio. Colonização Qui- SILVA jackson. LGBT SEM TERRA
lombos. Brasilia: Revista Ampliada. Rompendo as cercas e tecendo a li-
2019 berdade.
FUNDAÇÃO PARA O DEVIDO São Paulo: Ed. dos Autores, 2021.
PROCESSO. Manual para defender
MARTINS, alessandra. Jongo e an-
os direitos dos povos Indígenas e tra-
cestralidade: Salvaguarda e preser-
dicionais. Massachusetts. Tradução
vação sob olhar dos detentores. São
realizada por Rodolfo Marinho. 2004.
Paulo: Câmara Brasileira do Livro.
GOVERNO DO PARANÁ. Educa- 2021.
ção Escolar Quilombola: Pilões, Pe-
MOREIRA, erika; LIMA, mariana.
neiras e Conhecimento Escolar. Para-
Educação no Campo. Santa Rita:
ná: Memvavmen, 2010.
Grafica Caxias, 2016.
LUIZ, viviane; SILVA, laudessandro;
NASCIMENTO, Lisângela Kati.
AMÉRICO, márcia; MARCOS, luiz.
Identidade e Territorialidade: os qui-
Roça é vida. São Paulo: Grupo de tra-
lombos e a educação escolar no Vale
balho da roça, 2020.
do Ribeira. Dissertação de Mestrado,
MARÉS; LIMA; OLIVEIRA; MO- USP, 2006
TOKI. Protocolos de consulta Prévia e
WOLKMER, antonio; MARÉS, car-
o direito á livre determinação. Funda-
los; BLANCO, maria. Os direitos ter-
ção Rosa Luxemburgo, 2019.
ritoriais Quilombolas além do marco
MARINHO, alessandro ; PAZ thais; temporal. Goiás: Editora da PUC Goi-
;ilustração MACIEL, carlos; PINHEI- ás, 2016.
RO elias;

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 69
Legislação, Políticas Públicas e Conjuntura
para LGBTI+ na área da educação

Alexandre Bortolini
Maria Regina Bortolini

Em 2011 o Brasil assistiu pela TV uma polêmica em torno de um material pro-


duzido pelo Ministério da Educação. O kit, parte das ações do projeto Escola
Sem Homofobia, era composto por textos e alguns vídeos que traziam uma
abordagem positiva sobre a vivência de pessoas trans, lésbicas, gays e bissexu-
ais. Em uma das histórias, duas meninas enfrentavam o preconceito e assumiam
seu amor diante de toda escola. Em outro, uma aluna trans superava os olha-
res de alguns colegas para seguir em busca do sonho de se tornar professora.
Num terceiro vídeo, um adolescente se descobria bissexual ao se apaixonar por
um colega da escola. Feito para combater a discriminação, o material acabou
sendo, ele mesmo, alvo do preconceito de grupos conservadores. Acusado por
lideranças religiosas de fazer “propaganda” de “modos de vida fora do padrão”,
o material foi descrito por um deputado como um “kit gay”. Nas suas palavras,
sob a desculpa de combater a discriminação ativistas radicais estariam atacando
valores “tradicionais” da “família brasileira” e pondo em risco o “normal desen-
volvimento” de crianças e adolescentes. Na contramão, especialistas apareciam
no jornal desmentindo as acusações cando a formação moral de crianças
e defendendo a adequação do ma- e jovens. Em um momento de pro-
terial: não se tratava de influenciar fundo embate político, as menções a
a sexualidade de ninguém, mas de desigualdades de gênero, raça e se-
enfrentar o preconceito. Para pes- xualidade presentes no plano foram
quisadoras, educadores e ativistas, retiradas e substituídas por uma refe-
falar abertamente sobre as múltiplas rência genérica ao combate de “todas
orientações sexuais e identidades de as formas de discriminação”. Não sa-
gênero era um instrumento impor- tisfeitos, conservadores propagaram
tante para a promoção de direitos de a ideia de que o PNE teria proibido o
lésbicas, gays, bissexuais, travestis e debate sobre gênero e sexualidade
transexuais. O diálogo franco e aber- na educação, o que definitivamente
to sobre a construção do gênero e da não corresponde à realidade.
sexualidade, em um ambiente de li-
Nos anos seguintes, foram postos
berdade e acolhimento, ajudaria ado-
em curso em todo o país um núme-
lescentes e jovens a compreenderem
ro significativo de projetos de lei que
a si e aos outros, respeitando e valo-
propunham vetar a abordagem de
rizando suas diferenças na escola e
conteúdos sobre gênero e sexuali-
para além dela. Sob intensa pressão,
dade nas escolas, indicando inclusive
o governo acabou vetando a produ-
retaliações a profissionais de educa-
ção e distribuição do material.
ção que insistissem em abordar es-
Três anos mais tarde, o tema volta- ses temas. Ainda que evidentemen-
ria ao debate público durante a vota- te inconstitucionais, essas iniciativas
ção do Plano Nacional de Educação produziram efeitos e, articuladas a
(PNE). O “inimigo” dos conserva- variadas técnicas de intimidação, fo-
dores agora era uma suposta “ideo- ram eficazes em instalar um clima de
logia de gênero” que estaria sendo verdadeiro terrorismo ideológico nas
propagada pelo governo em escolas escolas e nos sistemas de ensino.
públicas. Nos discursos desses con-
Esse quadro recrudesceu ainda
gressistas, esse termo era usado para
mais quando grupos conservadores
se referir a qualquer ideia, teoria, pro-
chegaram definitivamente ao governo
posição, ação ou mesmo qualquer
em 2019 e assumiram, como objetivo
palavra que, de alguma maneira, es-
do próprio Ministério da Educação, o
capasse de suas formas normativas
combate à suposta “ideologia de gê-
de entender o corpo, a sexualidade,
nero”. As políticas de educação para a
a família e as relações entre homens
diversidade que vinham sendo desen-
e mulheres. Símbolo dessa ideologia,
volvidas até então foram desmonta-
a palavra gênero, junto com outros
das e no lugar o governo inaugurou um
termos relacionados, deveria ser eli-
programa de militarização das escolas,
minada dos planos de educação, dos
fundado no ataque ao pensamento
materiais didáticos e dos currículos,
crítico, na padronização de comporta-
como forma de impedir que essas
mentos e na exclusão da diferença.
ideias chegassem às escolas, prejudi-

72 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
Toda essa sequência de aconte- trabalho”. Em seu Art. 206, a Carta
cimentos produziu um contexto em dispõe que o ensino será ministrado,
que há muita desinformação e medo. dentre outros, com base nos princí-
Afinal, pode ou não pode falar de gê- pios da igualdade de condições para
nero e sexualidade na escola? Esses o acesso e permanência na escola, da
temas estão ou não proibidos? Nas liberdade de aprender, ensinar, pes-
próximas páginas, vamos fazer um quisar e divulgar e do pluralismo de
passeio pelas principais normativas ideias e de concepções pedagógicas.
que regulam a educação escolar bra-
A Lei de Diretrizes e Bases da Edu-
sileira para perceber como, a despeito
cação reproduz e amplia, em seu Art
do esforço do reacionarismo, princí-
3°, os princípios que devem basear o
pios como a liberdade de aprender e
ensino, entre eles a “igualdade de con-
ensinar, o pensamento crítico e cien-
dições para o acesso e permanência
tificamente fundamentado, o com-
na escola”, a “liberdade de aprender,
bate ao preconceito e a promoção da
ensinar, pesquisar e divulgar a cultu-
diversidade seguem sendo as diretri-
ra, o pensamento, a arte e o saber”, o
zes a guiar o trabalho pedagógico de
“pluralismo de idéias e de concepções
todas as escolas no Brasil.
pedagógicas” e o “respeito à liberda-
de e apreço à tolerância”.
Legislação e normas
O Estatuto da Criança e do Ado-
educacionais
lescente se soma a este conjunto ao
A Constituição Federal, em seu afirmar o direito de toda criança e
Art. 3º define, entre os objetivos fun- adolescente à liberdade, incluída aí a
damentais da República Federativa liberdade de opinião, expressão e de
do Brasil, a promoção “do bem de crença.
todos, sem preconceitos de origem, Temos ainda a Lei Maria da Penha,
raça, sexo, cor, idade e quaisquer ou- aprovada em 2013. Em seu Art. 8, ela
tras formas de discriminação”. Já o aponta como diretriz das políticas
Art. 5º, traz a conhecida afirmação de públicas de enfrentamento à violên-
que “todos são iguais perante a lei, cia contra a mulher “a promoção e a
sem distinção de qualquer natureza” realização de campanhas educativas
e afirma expressamente a igualdade de prevenção (...) voltadas ao público
entre homens e mulheres como pre- escolar e à sociedade em geral” e “a
ceito constitucional. promoção de programas educacio-
O Art. 205 da Constituição afirma nais que disseminem valores éticos
que a “educação é direito de todos e de irrestrito respeito à dignidade da
dever do Estado e da família” e que pessoa humana com a perspectiva de
será “promovida e incentivada com a gênero e de raça ou etnia”. No próprio
colaboração da sociedade, visando texto, a lei faz referência à orientação
ao pleno desenvolvimento da pes- sexual e, em 2022, o Supremo Tribu-
soa, seu preparo para o exercício da nal de Justiça ratificou que ela se apli-
cidadania e sua qualificação para o ca também a mulheres trans.

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 73
A esse quadro legal se soma ainda As Diretrizes Curriculares Nacio-
à decisão do Supremo Tribunal Fede- nais para o Ensino Fundamental de
ral que em 2019 definiu que atos pre- 9 (nove) anos afirmam, em seu Art.
conceituosos contra pessoas LGBTI+ 16, que “os componentes curriculares
devem ser enquadrados no crime de e as áreas de conhecimento devem
racismo. Isso significa que, desde en- articular em seus conteúdos (...) a
tão, a lgbtfobia está criminalizada no abordagem de temas abrangentes e
Brasil, e pode ser punida com multa contemporâneos” – e lista sexualida-
ou pena de até três anos de prisão. de e gênero entre eles - que devem
“permear o desenvolvimento dos
Se a base legal impõe o enfren-
conteúdos da base nacional comum
tamento destes temas na escola, o
e da parte diversificada do currículo.”
conjunto das diretrizes educacionais
O parecer homologado que funda-
brasileiras aponta a necessidade de
menta as diretrizes reforça a relação
trabalhar questões ligadas a gêne-
entre as experiências em gênero e
ro e sexualidade desde a educação
sexualidade vivenciadas pelos e pelas
infantil até o ensino médio. Indicam
estudantes em sua vida, a busca pela
para tanto uma abordagem focada
construção de valores próprios e a im-
não na padronização de comporta-
portância de aprender com a diferen-
mentos ou na reprodução de mode-
ça. A diferença não é um problema,
los pré-definidos, mas, ao contrário,
mas uma ferramenta pedagógica,
na reflexão crítica, na autonomia dos
que permite conhecer e reconhecer
sujeitos, na liberdade de acesso à
o outro - e a si mesmo, desenvolven-
informação e ao conhecimento, no
do competências fundamentais para
reconhecimento das diferenças, na
a vida em uma sociedade democrá-
promoção dos direitos e no enfren-
tica. E incluem-se aí também as dife-
tamento a toda forma de discrimina-
renças relacionadas a gênero e sexu-
ção e violência.
alidade.
As Diretrizes Curriculares Nacio-
As Diretrizes Curriculares Nacionais
nais para a Educação Infantil afirmam,
para o Ensino Médio também fazem
dentre seus princípios, a necessidade
menção explícita a estes temas. Em
de “construir novas formas de socia-
seu Art. 16, afirmam que o projeto po-
bilidade e de subjetividade compro-
lítico-pedagógico das escolas de En-
metidas com a democracia e com o
sino Médio deve valorizar e promover
rompimento de diferentes formas de
os direitos humanos “mediante te-
dominação etária, socioeconômica,
mas relativos a gênero, identidade de
étnico-racial, de gênero, regional, lin-
gênero, raça e etnia, religião, orien-
guística e religiosa.” Isto significa que,
tação sexual, pessoas com deficiên-
desde a educação infantil, é não só
cia, entre outros”. Indica ainda que as
possível, como recomendável, traba-
unidades de ensino devem promo-
lhar temas ligados a gênero e sexu-
ver “práticas que contribuam para a
alidade, didaticamente adaptados a
igualdade e para o enfrentamento de
esta faixa etária específica.
todas as formas de preconceito, dis-

74 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
criminação e violência sob todas as Afirmam também, em seu Art. 14 que
formas.” Já as Diretrizes Curriculares a abordagem curricular deve relacio-
Nacionais para a Educação Profissio- nar “a dimensão ambiental à justiça
nal Técnica de Nível Médio indicam, social, aos direitos humanos, à saú-
dentre seus princípios norteadores de, ao trabalho, ao consumo, à plu-
(Art. 6°) o “reconhecimento das iden- ralidade étnica, racial, de gênero, de
tidades de gênero e étnico-raciais” diversidade sexual, e à superação do
racismo e de todas as formas de dis-
O reconhecimento das diferenças
criminação e injustiça social.”
e a abordagem da temática de gê-
nero não está restrito a escolas urba- As Diretrizes Nacionais para a Edu-
nas. As Diretrizes Operacionais para cação em Direitos Humanos, que se
a Educação Básica nas Escolas do aplicam a todos os sistemas e institui-
Campo afirmam, em seu Art. 5º, que ções de ensino, definem como seus
“as propostas pedagógicas das esco- fundamentos, entre outros, a digni-
las do campo, respeitadas as diferen- dade humana; a igualdade de direi-
ças e o direito à igualdade (...) con- tos; o reconhecimento e valorização
templarão a diversidade do campo das diferenças e das diversidades; a
em todos os seus aspectos: sociais, laicidade do Estado e a democracia
culturais, políticos, econômicos, de na educação.
gênero, geração e etnia.”
As Diretrizes Curriculares Nacionais
Gênero aparece também entre os para a formação inicial em nível supe-
princípios da educação quilombola. rior e para a formação continuada de-
O inciso XX do Art. 7° das Diretrizes finem como um dos princípios da For-
Curriculares Nacionais para a Educa- mação de Profissionais do Magistério
ção Escolar Quilombola na Educação da Educação Básica “a formação dos
Básica aponta para “o reconhecimen- profissionais do magistério (formado-
to do lugar social, cultural, político, res e estudantes) como compromis-
econômico, educativo e ecológico so com projeto social, político e ético
ocupado pelas mulheres no processo que contribua para a consolidação
histórico de organização das comuni- de uma nação soberana, democrá-
dades quilombolas e construção de tica, justa, inclusiva e que promova a
práticas educativas que visem à su- emancipação dos indivíduos e grupos
peração de todas as formas de vio- sociais, atenta ao reconhecimento e à
lência racial e de gênero.” valorização da diversidade e, portan-
to, contrária a toda forma de discrimi-
Também as Diretrizes Curriculares
nação”. Ou seja, a sociedade brasileira
Nacionais para a Educação Ambien-
espera, ou melhor, demanda de seus
tal listam, entre seus objetivos, “pro-
profissionais de educação uma atu-
mover o cuidado com a comunidade
ação enfática na superação de toda
de vida, a integridade dos ecossiste-
forma de discriminação, incluindo-se
mas, a justiça econômica, a equidade
aí as relacionadas a gênero e orienta-
social, étnica, racial e de gênero, e o
ção sexual. Estes são, portanto, temas
diálogo para a convivência e a paz”.

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 75
e perspectivas que, por ofício, cabe a associadas de exclusão. Mesmo que
educadores e educadoras trabalhar gênero e sexualidade não sejam men-
na escola. Neste mesmo sentido, pro- cionados explicitamente, a retirada
fissionais de educação não podem desses termos do plano não signifi-
ser obrigados a impingir sobre seus cou, de forma alguma, uma proibição
alunos e alunas determinado modelo do debate desses temas nas escolas.
de comportamento de gênero ou se- Do mesmo modo, o PNE não deso-
xualidade, sob pena de estarem des- brigou as escolas de cumprirem sua
respeitando o direito constitucional à obrigação de combater o preconcei-
personalidade de cada criança, ado- to, inclusive a lgbtfobia, o machismo
lescente e adulto. e o sexismo.
Se as diretrizes para a educação Tal qual o PNE, a Base Nacional
básica são bastante explícitas, esse Comum Curricular (BNCC), excluiu
não é o caso do Plano Nacional de do seu texto qualquer referência a
Educação. Aprovado, sob intensa gênero ou menções explícitas de
pressão das bancadas religiosas do questões LGBTI+. Documento que
Congresso Nacional, o texto final do define os objetivos de aprendizagem
PNE retirou as referências à orienta- de toda a educação básica brasileira,
ção sexual ou gênero. Ainda assim, o a BNCC inclui entre as competências
plano manteve entre suas diretrizes a que devem ser construídas pela es-
“superação das desigualdades edu- cola o respeito aos direitos humanos,
cacionais, com ênfase na promoção o posicionamento ético em relação
da cidadania e na erradicação de to- ao cuidado de si e dos outros, a com-
das as formas de discriminação” e a preensão da diversidade humana, e a
“promoção dos princípios do respeito superação dos preconceitos. Em seu
aos direitos humanos” e “à diversida- texto introdutório a BNCC afirma que
de”. Nas metas que propõem a uni- a escola “como espaço de aprendiza-
versalização do ensino fundamental gem e de democracia inclusiva, deve
para toda a população de 6 (seis) a se fortalecer na prática coercitiva de
14 (quatorze) anos e do atendimento não discriminação, não preconceito
escolar para toda a população de 15 e respeito às diferenças e diversida-
(quinze) a 17 (dezessete) anos, en- des”. Entre as competências para o
contram-se, dentre as estratégias, a ensino fundamental inclui “Analisar
necessidade de fortalecer o acom- informações, argumentos e opiniões
panhamento e o monitoramento do manifestados em interações sociais
acesso, da permanência e do apro- e nos meios de comunicação, posi-
veitamento escolar em situações de cionando-se ética e criticamente em
discriminação, preconceitos e violên- relação a conteúdos discriminatórios
cias na escola e o desenvolvimento que ferem direitos humanos” (Lín-
de políticas de prevenção à evasão gua Portuguesa); “Identificar as for-
motivada por preconceito ou quais- mas de produção dos preconceitos,
quer formas de discriminação, crian- compreender seus efeitos e comba-
do rede de proteção contra formas ter posicionamentos discriminatórios

76 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
em relação às práticas corporais e aos os sistemas de ensino e as escolas de
seus participantes” (Educação Físi- educação básica brasileiras devem
ca); “atuar socialmente com respeito, assegurar diretrizes e práticas com o
responsabilidade, solidariedade, co- objetivo de combater quaisquer for-
operação e repúdio à discriminação” mas de discriminação em função de
(Ciências); “problematizar represen- orientação sexual e identidade de
tações sociais preconceituosas sobre gênero de estudantes, professores,
o outro, com o intuito de combater a gestores, funcionários e respectivos
intolerância, a discriminação e a exclu- familiares”.
são” (Ensino Religioso). Para o Ensino
Na intersecção com a educação, as
Médio, indica “combater estereótipos,
políticas de saúde reconhecem ado-
discriminações de qualquer natureza
lescentes e jovens como sujeitos de
e violações de direitos de pessoas ou
direitos sexuais e reprodutivos. As Di-
grupos sociais, favorecendo o conví-
retrizes nacionais para a atenção inte-
vio com a diferença”. Entre as habili-
gral à saúde de adolescentes e jovens
dades a serem desenvolvidas, prevê:
na promoção, proteção e recupera-
“ Investigar e discutir o uso indevido
ção da saúde destacam a importân-
de conhecimentos das Ciências da
cia da articulação entre os setores de
Natureza na justificativa de processos
saúde e educação em ações que pro-
de discriminação, segregação e pri-
movam a reflexão sobre a vivência do
vação de direitos individuais e coleti-
aprendizado da sexualidade, conside-
vos, em diferentes contextos sociais
radas “as diversas condições trazidas
e históricos, para promover a equida-
pelas desigualdades de gênero, pelas
de e o respeito à diversidade (Ciên-
distintas condições socioeconômicas
cias da Natureza e suas Tecnologias);
e culturais, pelas relações de poder
“Analisar situações da vida cotidiana,
entre gerações e as discriminações
estilos de vida, valores, condutas etc.,
pela orientação sexual”.
desnaturalizando e problematizan-
do formas de desigualdade, precon- Além desse quadro regulatório na-
ceito, intolerância e discriminação, e cional, há também na legislação local
identificar ações que promovam os de alguns estados e municípios nor-
Direitos Humanos, a solidariedade e mativas que apoiam o debate sobre
o respeito às diferenças e às liberda- gênero e sexualidade nas redes de
des individuais” (Ciências Humanas e ensino, dentro de uma perspectiva
Sociais Aplicadas). da diversidade e dos direitos huma-
nos. Levantamento sobre planos es-
Em 2018, o Conselho Nacional de
taduais de educação mostrou que a
Educação aprovou a Resolução nº 1,
grande maioria deles traz diretrizes
que define o uso do nome social de
ou metas que reforçam direitos das
travestis e transexuais nos registros
mulheres e boa parte reafirma ex-
escolares. No seu primeiro artigo a
plicitamente os direitos de pessoas
resolução orienta que, “na elaboração
LGBTI+. Mesmo onde essas men-
e implementação de suas propostas
ções não aparecem explicitamente,
curriculares e projetos pedagógicos,

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 77
os princípios de inclusão e superação orientação sexual. Uma realidade que
das desigualdades e discriminações contradiz os princípios fundantes do
permanece1. ensino e que ameaça o direito à edu-
cação de grande número de pessoas.
Como se vê, longe do que propa-
gam fakenews e políticos mal inten- A existência e persistência da LGB-
cionados, não há nada na legislação, Tfobia nas escolas brasileiras não é
nas diretrizes ou planos educacio- novidade. Em 2004, um estudo da
nais que proíba o debate sobre gê- UNESCO já apontava para um alto
nero e sexualidade nas escolas. Pelo índice de imagens homofóbicas e de
contrário, todo o quadro regulatório intolerância quanto à homossexuali-
da educação brasileira reforça como dade entre estudantes e professores.
princípios da escola o enfrentamento A discriminação contra homossexuais
à discriminação, a superação dos pre- – diferentemente de outras formas,
conceitos, a promoção da diversidade como aquelas relacionadas a racismo
e dos direitos humanos. Os principais e a misoginia – era não só mais aber-
marcos legais que regem a educação tamente assumida, como valoriza-
brasileira são enfáticos quanto à ne- da entre jovens estudantes. Na pes-
cessidade da superação de desigual- quisa, 25% dos alunos entrevistados
dades e promoção da cidadania, não afirmaram que não gostariam de ter
só na escola, mas a partir da escola, colegas homossexuais. O percentual
o que traz implicações diretas ao cur- fica maior ainda quando se trata ape-
rículo. Ignorar estes temas, ou pior, nas dos meninos. No Rio de Janeiro,
propositalmente restringir sua abor- entre os responsáveis, 40% não gos-
dagem na escola constitui não apenas tariam que seu filho estudasse junto
negligência, mas franco desrespeito com um colega homossexual. E em-
aos princípios que regem a educação bora esse percentual caia muito entre
brasileira, fundamentados na Consti- professores, havia ainda um grande
tuição e em leis específicas. número de educadores que explici-
tamente rejeitavam a ideia de ter um
aluno ou aluna homossexual2.
Um contexto hostil, um
debate urgente Essa realidade não parece ter se
transformado tanto nos últimos anos.
A despeito deste arcabouço legal, Uma pesquisa recente realizada pela
pesquisas educacionais evidenciam Associação Brasileira de Lésbicas,
ambientes escolares marcados pela Gays, Bissexuais, Travestis e Tran-
desigualdade, discriminação e vio- sexuais sobre a situação de pessoas
lência no que diz respeito a gênero e
2 CASTRO, Mary Garcia; ABRAMOVAY, Miriam;
1 VIANNA, Cláudia; BORTOLINI, Alexandre. DA SILVA, Lorena Bernadete. Juventudes
Discurso antigênero e agendas feministas e sexualidade. Brasília: UNESCO Brasil,
e LGBT nos planos estaduais de educação: 2004. Disponível em: http://www.cepac.
tensões e disputas. Educação e Pesquisa, v. 46, org.br/agentesdacidadania/wp - content/
2020. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ u p l o a d s /2 0 1 4 /0 4 / U n e s c o _ j u v e n t u d e s _
ep/a/Tc37WjhH7ywmFCpJJ4NbBCH/ sexualidade.pdf

78 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
LGBT na escola retrata níveis eleva- diante de um quadro de desigualda-
dos e alarmantes de discriminação, de tão evidente, há quem hoje com-
agressões verbais e mesmo violência bata o debate sobre gênero e sexu-
física. Ao mesmo tempo, identifica alidade na educação. Seus discursos
“níveis baixos de respostas nas fa- se apoiam no senso comum para mo-
mílias e nas instituições educacionais bilizar um grande número de pessoas,
que fazem com que tais ambientes acionando preconceitos, ansiedades
deixem de ser seguros para muitos e ressentimentos na tentativa de blo-
estudantes”. Segundo o estudo, es- quear a possibilidade dessa reflexão
ses cotidianos escolares hostis recor- crítica tão importante para a escola.
rentemente afetam o desempenho Ao contrário, esses grupos vêm tra-
de estudantes LGBT, provocam fal- balhando para tornar a escola ainda
tas e desistências, levam à depressão mais disciplinadora e excludente.
e alimentam um sentimento de não
Mais do que nunca, é preciso forta-
pertencimento à instituição escolar3.
lecer escolas e educadoras compro-
É justamente no sentido de con- metidas com o combate à discrimina-
frontar essa série de desigualdades ção e a promoção da cidadania, com
que, desde o processo de redemo- um olhar dirigido para grupos histori-
cratização, foram postas em ação camente excluídos. A desinformação
políticas educacionais de promoção e o medo não podem impedir que a
dos direitos das mulheres, da igual- escola faça o mais que urgente deba-
dade de gênero, da igualdade racial, te sobre os estigmas, os preconcei-
do reconhecimento e valorização da tos, as discriminações e as violências
diversidade sexual e de gênero. Esses que, mesmo criminalizadas, persistem
debates, trazidos pelo campo cientí- na nossa sociedade. A construção de
fico, pelas políticas públicas, pelos um país democrático passa necessa-
movimentos sociais ou pelas próprias riamente por construir a democracia
pessoas que fazem parte da comu- na escola, tornando a educação um
nidade escolar, ainda que de forma lugar de dignidade, equidade e diver-
precária e descontínua, têm conse- sidade para todas as pessoas, inclusi-
guido pouco a pouco produzir efeitos ve para mulheres e LGBTI+.
nas práticas escolares.
Esses pequenos avanços, no en-
tanto, seguem sob ameaça. Ainda

3 ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LÉSBICAS,


GAYS, BISSEXUAIS, TRAVESTIS E
TRANSEXUAIS. Pesquisa Nacional sobre
o Ambiente Educacional no Brasil 2015: as
experiências de adolescentes e jovens lésbicas,
gays, bissexuais, travestis e transexuais em
nossos ambientes educacionais. Curitiba:
ABGLT, 2016. Disponível em: https://abglt.
org.br/pesquisa-nacional-sobre-o-ambiente-
educacional-no-brasil-2016/

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 79
Muito além de “I will survive”

por Manoella Back1¹

“E o risco que assumimos aqui é o do ato de falar com todas as implicações.


Exatamente porque temos sido falados, infantilizados (infans é aquele
que não tem fala própria, é a criança que se fala na terceira pessoa,
porque falada pelos adultos) que neste trabalho assumimos nossa
própria fala. Ou seja, o lixo vai falar, e numa boa” (Lélia Gonzalez).

Incumbida da tarefa de dissertar sobre identidade de gênero, sexualidades,


deficiências e direitos sob o ponto de vista militante não vou enganá-los: a his-
tória de “I will survive”, de Glória Gaynor e Stonewall se passaram volta e meia no
decorrer de minhas leituras.
Vivo hoje onde se sagrou a Stonewall tupiniquim no pós-ditadura militar e
me deparo com uma efervescência forte advinda das LGBTQIAP+, diretamen-
te proporcional às políticas conservadoras e neoliberais que nos cercam. Mas
não é apenas o conservadorismo uma de nossas principais trincheiras, já que
a opressão pode vir purpurinada ou com as cores de arco-íris. Não me refiro
aqui apenas às figuras políticas de partidos de direita ou extrema-direita que

1 É mulher cis-gênero, bissexual, com paralisia cerebral, atriz, professora, jornalista, militante pelos Direitos
Humanos e integrante do Coletivo Feminista Helen Keller.
surfam na onda LGBTQIAP+, mas a e descendo dos ônibus. Com o tom
todas, todes e todos àqueles que de caridade - aqueles que pesso-
não compreendem a diversidade ex- as com diversidade funcional sabem
pressa dentro da própria sigla. E sim, bem como é - se oferece para ajudar
há capacitismo no meio lgbtqiap+, há com bolsas e sacolas. Respondo que
lgbtqiap+fobia no universo “defiça”. não preciso. A pessoa insiste. Inverte
São estas intersecções que busco predicado e sujeito. Refaz a mesma
pontuar aqui. pergunta. Respondo mesmo que não
preciso. A figura então pergunta se
Não dá para esquecer de quem
pode me ajudar a amarrar os cadar-
lutou antes da gente, mas neste mo-
ços. No meio da minha explanação de
mento, lanço um olhar ao presente.
que “eu consigo dar conta”, simples-
Sou natural de Blumenau-SC e me
mente se abaixa, dá um nó no meu
lembro bem do quão atônita fiquei
tênis, pega minhas sacolas, me entre-
na manhã do dia 8 de dezembro de
ga um cartão de sua religião e acres-
2017, no “Dia Nacional da Família”. Ao
centa emocionada que “tudo vai me-
perambular pela cidade, me deparei
lhorar”, e que EM NOME DE JESUS,
com outdoors, corações vermelhos e
EU VOU ME CURAR!
os dizeres “X e Y: uma questão de ge-
nética” ou “Família, projeto de Deus”, Notem aqui, por favor, que as reli-
já pré-determinando que as famílias giões não são as únicas responsáveis
LGBTQIAP+ ou as ausentes dos co- pelos exemplos de opressões nestes
merciais de margarina não sejam dig- relatos pessoais. Mas uma sociedade
nas. A ação foi encabeçada pela Or- normatizada como um todo. O livro
dem dos Ministros do Evangelho de “Viadagens Teológicas”, de André
Blumenau (OMEBLU) e teve resposta Musskopf nos ajuda a pensar sobre
rápida da comunidade LGBTQIAP+. estas questões já que a própria cren-
No mesmo dia, ocupamos a frente da ça/ religião faz parte da cultura dos
prefeitura do município com nossas povos. Para o autor, as teologias em
famílias “não normativas”, amigues, geral são construídas a partir do uni-
cartazes e inúmeras palavras de or- verso patriarcal e normativo, sem es-
dem que entoavam que “Somos fa- paço para distintas maneiras de ser.
mília, sim!”. Este fator retroalimenta movimentos
políticos e evidencia práticas sociais
Para além disso, estava certa vez
amplas e diversas. (2012)
em um dos terminais de Florianópolis
– SC cheia de sacolas. Mas é impossível construir ciências
humanas – a antropologia, por exem-
Daí surge uma figura, daquelas que
plo - sem pensar nas expressões re-
brotam do chão, que resolve me ob-
ligiosas ou manifestações culturais.
servar caminhando de ponta-a-pon-
Mesmo que muitos de nós, LGBT-
ta no terminal rodoviário. Observa-
QIAP+ e PCD, vejamos as religiões
va-me fazendo perguntas, porque
como verdadeiros entraves nos de-
ainda me perdia na ilha catarinense.
bates sobre direitos humanos, diver-
Tal figura me observa ainda subindo

82 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
Disponível em: <https://www.google.com/ Disponível em: < https://www.redebrasilatual.
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2022 2022

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 83
sidade sexual, gênero e normativida- trabalho, tampouco brancos ou com
de de corpos. É importante que se uma situação financeira razoável.
mencione cidadania, o que conquis-
Neste instante, pautou-se as inter-
tamos e o que precisamos conquistar.
dependências dos corpos com defi-
De uns tempos para cá, sem dúvida,
ciência, a convivência com as dores
tivemos avanços. Mas registros como
físicas e emocionais, desigualdades
os abaixo não nos deixam mentir,
sociais, etnias, sexualidades, o cuida-
tampouco sentar na poltrona num dia
do destinado quase exclusivamente
de domingo: temos muito que lutar
às mulheres e outras subjetividades.
coletivamente:
Pessoalmente, o “pulo do gato”
A pauta LGBTQIAP+ e das PCD
do modelo social da deficiência, foi
convergem no lugar das submissões
o devido entrelaçamento com a luta
e intolerância há tempos. No mesmo
por direitos humanos já que, a nossa
espaço, muitas vezes simbólicos, de
“ “cura” não está nas diversas tera-
exigir o reconhecimento de que so-
pêuticas apresentadas pela área da
mos famílias legítimas, carregamos
saúde e sim, na política”. A deficiên-
o estigma de que “Fomos doenças”.
cia, portanto, está relacionada com as
Há 31 anos, a homossexualidade saiu
relações com o meio:
do rol de doenças reconhecidas pela
Organização Mundial da Saúde. Já, a Deve-se entender deficiência como um
conceito amplo e relacional. É deficiência
transexualidade deixou de ser consi- toda e qualquer forma de desvantagem
derada “transtorno mental” apenas resultante da relação do corpo com lesões
e a sociedade. Lesão, por sua vez, engloba
em maio de 2019, na 72ª Assembleia doenças crônicas, desvios ou traumas que,
Mundial de Saúde, após muita luta. na relação com o meio ambiente, implica
em restrições de habilidades consideradas
Mas ao considerar as deficiências, comuns às pessoas com mesma idade
e sexo em cada sociedade. Lembro que
convém lembrar que alguns corpos deficiência é um conceito aplicado a
ainda são assim interpretados. Para situações de saúde e doença e, em alguma
medida, é relativo às sociedades onde as
embasar esta afirmativa, gosto de pessoas deficientes vivem. Além disso, evito
trazer à tona os movimentos sociais o uso da expressão pessoa portadora de
deficiência ou pessoa com deficiência, mas
que nos trouxe o Modelo Social da adoto pessoa deficiente ou, simplesmente,
deficiente. (DINIZ, 2003, p. 2).
Deficiência, modelo este que flores-
ceu graças às feministas e que sur-
ge com a premissa de mostrar que O Modelo Social ainda é uma crí-
pessoas com deficiência são seres tica ao nosso modelo de sociedade
humanos e não meros diagnósticos. capitalista, neoliberal, que valoriza as
Em sua primeira geração, o modelo lógicas de independência. A filóso-
social contava com a participação de fa Eva Kittay, figura importante nes-
homens brancos, com lesão medular, te movimento cuja filha tem paralisia
ingleses, que exigiam espaço no mer- cerebral, alega que pessoas com de-
cado de trabalho. Mas, nos anos 80, ficiências graves precisam de apoio
o modelo foi refutado já que, na prá- e cuidado para se manterem vivos,
tica não são todos os corpos com de- argumenta que não é uma excep-
ficiência que são aptos ao mundo do cionalidade, mas essencial às vidas

84 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
humanas (1999) porque todos preci- teórico que tínhamos em relação às
saremos de amparo e/ou cuidado em identidades de gênero. O “queer” é o
algum momento da vida. É dela a fra- desviante da norma: o não-binário, o
se “somos todas filhas de uma mãe”, que provoca, o que propõe relações
fator este endossado pela antropólo- entre o não-cisgênero ou não-hete-
ga Débora Diniz: rossexual e abraça todo o socialmen-
te “estranho”. Sem tradução literal
A base para esta reconfiguração do modelo
social da deficiência deve se basear para o português, queer subenten-
no reconhecimento da centralidade da de o viado, a sapatão, a caminhonei-
dependência nas relações humanas, no
reconhecimento das vulnerabilidades das ra, o traveco ou a bicha. O “Queer”
relações de dependência e seu impacto
sobre nossas obrigações morais e, por fim, desafia as caixinhas pré-definidas
nas repercussões dessas obrigações morais nos próprios estudos de gênero e os
em nosso sistema político e social. (DINIZ,
2003, p. 7). complementa com os termos de he-
terossexualidade compulsória e per-
Umas das mais recentes lutas das formatividade de gênero ou como o
mulheres no movimento PCD é incluir ser humano se manifesta no mundo.
nas agendas decisórias e de controle Sobre as nossas presenças simbóli-
social o que chamamos de política do cas e físicas em espaços de poder:
cuidado, já que a segunda geração do Butler não acredita ser possível separar o
modelo questiona conceitos de de- que os corpos estão fazendo da linguagem,
porque corpos são expressivos – eles
pendência: significam. Para ela a ocupação de espaços
por corpos fala: é uma maneira de fazer
À medida que promove a visibilidade à uma demanda, de dizer “este espaço nos
dimensão do cuidado como uma questão de pertence” (BURIGO, 2016).
justiça, a perspectiva feminista da deficiência
permite politizar esse contexto da vida
privada, bem como resgatar a condição da Os corpos LGBTQIA+, o de mulhe-
mulher cuidadora, muitas vezes esquecida
no bojo das políticas públicas para mulheres res e das PCDs são regulados tanto
e para pessoas com deficiência. (MELLO; na esfera privada com dizeres como
NUERNBERG, 2012, p. 642).
“Ande como um homem”, “Sua fal-
ta de mobilidade me irrita” ou “não
Para nós, é responsabilidade do
dá para usar este batom vermelho”,
Estado garantir demandas relativas
como na esfera pública: aborto é cri-
ao cuidado e que estas seguem com
me caso não esteja ancorado no arti-
as garantias de acessibilidades tanto
go 128 do Decreto Lei nº 2.848/ 1940,
arquitetônicas, como comunicacio-
o casamento homoafetivo ainda não
nais e atitudinais.
foi garantido por lei, embora assegu-
Não é novidade que os corpos rado pelo Supremo Tribunal Federal
LGBTQIAP+ divergem às normas so- em 2011 ou demora/ restrição ao re-
ciais, ameaçam padrões, tradições conhecimento como grupo de risco
ou colocam em cheque sistemas em catástrofes sanitárias como o que
culturais, políticos e sociais. A Teoria foi vivenciado na pandemia de coro-
Queer¹, que tem em Judith Butler seu navírus em 2020, mesmo que corpos
maior expoente, ressignifica termos com deficiência possam ter garantias
pejorativos e reconstrói o arcabouço pela Lei Brasileira de Inclusão.

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 85
Os embates sobre os modelos do- tir de elementos e signos pejorativos,
minantes de vida, portanto, são de- mas também dar-lhe o significado de
terminantes na construção de políti- potência de vida:
cas sociais no movimento político das
(...) importante para nós afirmar que não há
PCD e LGBTQIAP+. Da mesma forma corpos que podem e outros que não , sendo
que se desenha na Teoria Queer, as que todo corpo pode-sim e pode-não, e que
precisamente por poder-não, é que poderá
pessoas com deficiência também já pensar, desejar e agir diferentes às normais.
E será nessa diferença onde radicará sua
foram chamadas de “pessoas aleija- potência desviante. (CAO, p. 15).
das”, “pessoas incapazes”, “inválidos”,
“deformados” ou “defeituosos”. As- É o que eu gosto de chamar de
sim se sagra a Teoria Crip, traduzida “pulsão vital”, termo este usado por
como “teoria aleijada”. Sueli Rolnik, como norte para escla-
Esta, assim como a Teoria Queer, recer o equilíbrio quando as intem-
também propõe a ruptura com tudo péries da vida são constantemente
que é binário: nada é natural, mas sim patologizadas:
construído socialmente: Desanestesiar nossa vulnerabilidade
às forças; ativar o saber-do-corpo à
possibilita a desnaturalização das experiência do mundo em sua condição de
identidades, vistas como historicamente vivo; desobstruir cada vez mais o acesso
construídas a partir do colonialismo, à tensa experiência do estranho-familiar;
do patriarcado e do capitalismo - eixos não denegar a fragilidade; não interpretar
aos quais são acrescentados o da a fragilidade desse estado instável e seu
heteronormatividade, o da cisgeneridade desconforto como “coisa ruim”, não ceder
e o da corponormatividade, propostos, à vontade de conservação das formas de
respectivamente, pelas teorias Queer, existência; não atropelar o tempo próprio
Transfeministas e Crip. Devemos questionar da imaginação criadora; não abrir mão
tais bases, que reforçam a estigmatização e do desejo em sua ética de afirmação da
a opressão, explicitando seus mecanismos vida; não negociar o inegociável; praticar
de penetração e perpetuação sociais, bem o pensamento em sua plena função:
como trazer à visibilidade as identidades indissociavelmente ética, estética, política,
dissidentes, que não se encaixam nos crítica e clínica. Isto é, reimaginar o mundo
padrões propagados pelas ideologias em cada gesto, palavra, relação com o outro,
hegemônicas. (HARAWAY, 2009 apud. modo de existir - toda vez que a vida assim o
MAGNABOSCO; SOUZA, p. 6 ). exigir. (ROLNIK, 2018 p. 195).

Pensar em um corpo como capaz Ter Rolnik como referência é olhar


ou incapaz, nos leva ao mundo labo- para militância com mais poesia ou o
ral advindo do sistema capitalista: é o famoso “sin perder la ternura”. Cor-
corpo que produz, que é disciplinado, pos LGBTQIAP+ ou das PCD vivem
normatizado e que gera mais-valia. opressões e deve se aliar:
Este está intrínseco aos dizeres de
Ao pensarmos outras formas de existência
Butler: constroem hegemonias e pa- enquanto mulheres, não podemos perder
drões de “preferência social” compul- de vista o modelo de sociedade capitalista
em que vivemos, importante enfatizar,
sórias, tal fato que nos aproxima da entretanto, a existência de corpos marcados
por raça e deficiência, que constituem a
corponormatividade e heterossexua- classe trabalhadora em sua totalidade e que
lidade. (MCRUER, 2016 apud. MAG- não poderíamos ignorar, dada a realidade
patriarcal e racista que se coloca como base
NABOSCO; SOUZA, p. 6). do sistema econômico vigente. (BACK;
SCHOLNIK, 2020 p. 12).
A grande premissa das teorias crip
e queer é não apenas repensar a par-

86 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
Este é o momento de expormos social: militância e organização das
nossas vulnerabilidades, por mais que mulheres com deficiência. Revista
doa. É agora que precisamos nos mo- Rizoma, V. 5, n.2, 2020. ISSN - 2526-
vimentar ainda mais, ampliar as deci- 947X
sões quando estas não olham pela
BURIGO, Joanna. Judith Butler:
gente já que, antes de tudo:
corpo política e linguagem. Dispo-
Espera-se das pessoas não mais a ação e sim nível em: <https://www.cartacapital.
um comportamento, que eram padrões a
serem seguidos, nos quais um conformismo com.br/opiniao/judith-butler-corpo-
ganha força e empurra a sociedade para -politica-e-linguagem/ > Acesso em:
“uniformidade estatística”, para um “ideal
político, não mais secreto, de uma sociedade 10. Mai. 2022.
que, inteiramente submersa na rotina da vida
cotidiana, aceita pacificamente a concepção Butler J. Problemas de Gênero:
inerente à sua existência. (ARENDT, 2011,
p.53 apud. SANTOS, 2017 p. 51). feminismo e subversão da identida-
de. Rio de Janeiro: Civilização Brasi-
Já chamamos nossa realidade para leira; 2008.
jogo, romper com as máscaras dos que
DINIZ, Débora. Modelo social da
não falam (Mask of Spechless) e respon-
deficiência: a crítica feminista. Dis-
der as próprias perguntas: quem pode
ponível em: < http://repositorio.unb.
falar?, sobre o que nos é permitido falar?,
br/bitstream/10482/15250/1/ARTI-
O que acontece quando falamos? Ou,
GO_ModeloSocialDeficiencia.pdf >
até mesmo, como “viados”, “sapatões” e
Acesso em: 18. Mai. 2018.
“aleijados” resistem quando desafiam o
sistema vigente? E corpos são resisten- GONZALEZ, Lélia. Racismo e
tes a partir do lugar que habitam? Como sexismo na cultura brasileira. Re-
concretizar nossas políticas? vista Ciências Sociais Hoje,
A gente não quer só sobreviver. Anpocs, 1984.
Ou, como diriam Os Titãs, a gente
LADO A. Blumenau: evangélicos
não quer só comida. Porque, como
espalham balões e cartazes com
nos ensina Conceição Evaristo, a
mensagens excluindo novas famílias.
gente combinou de não morrer.
Disponível em: < https://revistaladoa.
com.br/2017/12/noticias/blumenau-
Bibliografias -evangelicos-espalham-baloes-car-
tazes-com-mensagens-excluindo-
CAO, Santiago de. Cartografias -novas/ >. Acesso em: 15.mai.2022
sensíveis em espaços públicos.
Disponível em: < KITTAY, Eva Feder. Love’s Labor:
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http://santiagocao.metzonimia. pendency. New York: Routledge,
com/catografias-sensíveis > Acesso 1999.
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MELLO, Anahi G.; NUERNBERG,
BACK, Manoella. SCHOLNIK, Fer- Adriano H. Gênero e deficiência:
nanda. Construindo o movimento interseções e perspectivas. Revis-

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 87
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nos/viadagens-teologicas-religiao-
-e-politica-fora-armario/> Acesso
em: 11. Mai.2022.

88 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
Legislação, Políticas Públicas e Conjuntura
para LGBTI+ na área de segurança pública,
direito à cidade e enfrentamento à violência
contra mulheres e LGBTI+.

Lídia Rodrigues

Começando a conversa...

Para compreender a importância de dialogarmos sobre Legislação, Políticas


Públicas e Conjuntura para LGBTI+ na área de segurança pública, direito à cida-
de e enfrentamento à violência contra mulheres e LGBTI é fundamental com-
preender os conceitos que sustentam as ideias de segurança e direito à cidade,
políticas públicas e violência.
Segurança Pública, compreendida como o estado onde a vida doméstica e
comunitária oferece as condições básicas e essenciais para o gozo dos direitos
e para a execução dos deveres cidadãos. Para tanto, é necessário princípios e
normas orientadoras da vida social, expressas na legislação e implementadas
através das políticas públicas. A manutenção da segurança pública, precisa ser
compreendida a partir de uma sé- atrelando-o a necessidade de cria-
rie de componentes de prevenção, ção e ressignificação da cidade como
com a garantia dos direitos huma- um espaço de inclusão, equidade e
nos (econômicos, sociais, culturais e diversidade.
ambientais), aparatos de repressão,
Para a efetivação dos direitos hu-
como mecanismos de denúncia e
manos, econômicos, ambientais e
policiamento capacitado para atua-
sociais com combate às violências,
ção em casos de violação de direitos,
garantia de segurança pública e con-
e judiciais com aplicação de medidas
cretização do direito à cidade é ne-
que sejam efetivas para o princípio
cessário a atuação institucionalizada
ressocializador do direito penal.
e ordenada do Estado por meio das
Para que esse conceito seja apli- políticas públicas.
cado de forma ampla, é necessário
Por sua vez, precisamos compre-
que os elementos que o constituem
ender o que são políticas públicas:
sejam dispostos e interajam de forma
regular e estável com vistas à garantia A composição das políticas públi-
das liberdades coletivas e individuais. cas necessita de alguns passos im-
O que significa um equilíbrio de for- portantes sendo eles: 1. Percepção de
ças nesse sistema integrado, onde a uma questão ou problema; 2. Envolvi-
vigilância e repressão não se sobre- mento do governo e construção de-
ponham aos direitos sociais. mocrática com o conjunto amplo de
sujeitos sociais envolvidos na questão
O que chamamos de direito à cida-
ou problema; 3. Definição de objeti-
de é um conjunto de garantias muito
vos nítidos; 4. Elaboração de um pro-
amplas que dizem respeito ao uso
cesso de intervenção (planejamento).
dos espaços públicos, a possibilidade
de circulação e transporte, a moradia No caso brasileiro, as políticas pú-
em um espaço com condições de sa- blicas devem considerar as compe-
neamento básico, até a participação tências do pacto federativo, ou seja, o
nas decisões de rumos do que é me- que está sob a responsabilidade dos
lhor para seu bairro ou cidade. municípios, estados e federação, e da
competência dos três poderes (exe-
Pensar nisso, nos remete a ideia de
cutivo, legislativo e judiciário) nesses
que as opressões e desigualdades,
três níveis de atuação.
como o racismo, desigualdade de gê-
nero e LGBTfobia, determinam e são
determinadas na produção geográfi- Pensando um pouco mais...
ca. Estamos falando de uma geopolí-
tica que se expressa em segregação Para além da compreensão desses
e violência de alguns grupos sociais conceitos iniciais, senti a necessidade
no modelo que temos de urbaniza- de fazermos nesse texto um percur-
ção. As lutas sociais, dos sujeitos co- so que elucide sobre esse panorama
letivos que antes eram invisibilizados que envolve as leis, as políticas públi-
dão novos sentidos a esse direito, cas e a efetivação da segurança pú-

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 91
blica e direito à cidade para pessoas Isso demonstra que em vez da
LGBTQIA+ e mulheres. Esse percurso proteção e igualdade garantidas pela
compreenderá três atos, sendo es- Constituição Federal de 1988 existe
ses: 1. As condições sócio-históricas uma criminalização social de orienta-
que fazem com que os sujeitos LGB- ções sexuais e identidades de gênero
TQIA+ estejam mais vulneráveis a diversas à heteronormatividade e à
violações de direitos, a ameaças con- cisgeneridade.
tra sua integridade física e a redução
No dia 13 de junho de 2019, o Su-
de acesso aos espaços da cidade; 2.
premo Tribunal Federal – STF apro-
Uma apresentação e análise dos da-
vou a aplicação da Lei do Racismo
dos que apontam para como essa
(7.716/1989) para a criminalização da
vulnerabilidade se apresenta atual-
homofobia e da transfobia. O que re-
mente; 3. Os direitos adquiridos e os
presenta por um lado um avanço, por
desafios para sua implementação.
que a partir dessa decisão há prece-
dência jurídica para os crimes contra
1. As condições sócio- LGBTQIA+, por outro demonstra um
históricas atraso nas forças políticas do país,
uma vez que essa decisão vem no
Remontar detalhadamente as con- sentido de sanar a ausência de legis-
dições sócio-históricas que produ- lação específica sobre o tema.
zem as opressões contra os sujeitos
LGBTQIA+ seria uma tarefa que por si Em 2006 iniciou a tramitação no
só seria objeto de um complexo estu- Senado do PLC 122/2006, arquivado
do. O que pretendemos aqui, é traçar oito anos depois, sem conclusão de
um panorama geral dessas condições todo o rito legislativo necessário para
e como elas impactam no cotidiano sua aprovação, devido às normas da
dessas populações. casa que estabelecem o tempo máxi-
mo de tramitação de um projeto para
No Brasil, em 2021, uma pessoa arquivamento definitivo.
LGBTQIA+ foi assassinada a cada 29
horas1. Isso fez com que o país ga- Esse cenário apresentado na atu-
nhasse o desonroso ranking global, alidade, é o resultado de um largo e
sendo o país que mais mata essa po- complexo processo histórico, enre-
pulação no mundo inteiro, superando dado ao patriarcado como padrão
inclusive indicadores de países onde das relações sociais e econômicas e
a homossexualidade é crime penali- seus desdobramentos na normatiza-
zado com a morte. São recorrentes ção da sexualidade e divisão sexual
ainda denuncias de violências homo- do trabalho e das riquezas.
fóbicas não letais, entre as quais: vio- O patriarcado como estrutura de
lência psicológica e física, estupros poder tem sua origem em tempos
corretivos e práticas diversas de dis- remotos, no entanto, como toda di-
criminação. nâmica social, foi se atualizando nos
tempos, sofrendo influências e in-
1 Dados do Grupo Gay da Bahia

92 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
fluenciando religiões, Estados me- terísticas biológicas (a formação ge-
dievais e modernos, o processo de nital e reprodutiva, carga hormonal e
colonização do “novo mundo” e de cromossômica), atrelando o modo de
neocolonização do continente africa- participação na reprodução humana
no. Se imbricou a outras estruturas de ao status social. Esse elemento fun-
poder, como o racismo e o capitalis- damentador das construções biná-
mo, orientando sujeitos na produção rias de gênero, que nomeia pessoas
de modos de vida e das narrativas da com vulva e útero como mulheres e
história, e, por séculos, se estabele- as identificam com uma performance
ceu como verdade absoluta através de gênero denominada feminina, cujo
do silenciamento de inúmeras cos- a carga simbólica é da passividade e
mologias. do cuidado, também nomeia como
homens pessoas com pênis e escro-
A partir da chave de leitura sobre
to, e as identificam com uma perfor-
a construção patriarcal, precisamos
mance de gênero masculina, que, por
desvelar algumas técnicas de domi-
sua vez tem como carga simbólica a
nação e normatizações sociais des-
dominação.
se sistema político2 que no curso do
tempo reverberaram em violências Esse sistema de nomeação e
como a maternidade compulsória, identificação compulsória a partir
a divisão social e sexual do trabalho, de características biológicas limita a
lgbtfobia, a violência contra a mulher, humanidade das pessoas, reduz a se-
as produções binárias de gênero, etc. xualidade a reprodução, e hierarquiza
as relações sociais a partir de ques-
As origens do patriarcado ante-
tões que fogem da livre determina-
cedem o refinamento da linguagem
ção de cada pessoa, afinal, a partir
e o desenvolvimento da escrita por
dessa lógica não poderíamos esco-
muitos povos, e quando as primeiras
lher que tipo de vida ter, uma vez que
narrativas escritas que acessamos na
os papéis foram previamente estabe-
forma dos mitos e escritos religio-
lecidos.
sos, já possuem diversos sinalizado-
res desse sistema, que, por sua vez, No entanto, a naturalização des-
expressos nesses textos, contribuem sa compreensão foi primordial para
para sua consolidação. Portanto, em a cooperação das pessoas com esse
vez de determo-nos a pensar nas ori- CIStema. Para isso foram construí-
gens, iremos falar das características das ao longo do tempo um complexo
dessas normas e de sua reverberação pensamento-prática envolvendo os
na vida das pessoas. regimes políticos com centralidade
na ocupação de espaços de poder
Um fator chave, é a determinação
pelos homens e portanto a definição
de papéis sociais a partir das carac-
das normas e parâmetros a partir dos
interesses desses.
2 Chamamos aqui de sistema político pela
compreensão de se tratar de uma conjunção de Também vale explicitar o mode-
forças e poderes que organizam o rumo da vida
de indivíduos e da vida social
lo econômico patriarcal que durante

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 93
milênios compreendeu apenas ho- Se expressa através dos sentidos, e é
mens como proprietários, e que foi se vinculada diretamente a nossa saúde
atualizando no tempo, e mesmo com física e emocional.
avanços na efetivação dos direitos de
Para a exploração do trabalho das
mulheres, ainda hoje existem signos
pessoas, muitos discursos foram pro-
jurídicos e políticos que fazem com
duzidos e fortalecidos sobre o corpo
que mulheres tenham menos poder
e a sexualidade, criando um espectro
econômico, e portanto, menos auto-
de culpa e medo em seu entorno que
nomia sobre suas vidas.
influencia as práticas de pessoas até
É revelador pensar nas religiões a atualidade. A identificação do corpo
monoteístas que identificam o sa- com a maldade, foi refinando a ideia
grado com o masculino, e, reafir- do prazer e da sexualidade ao peca-
mando o lugar da verdade patriarcal do, tratando então como única forma
produziram uma série de dogmas, possível do exercício dessa sexualida-
que mesmo arcaicos até hoje subor- de quando para a reprodução dentro
dinam simbólica e materialmente as da instituição formal e patriarcal do
mulheres. casamento.
Como os poderosos se alinham A redução da sexualidade a pers-
para manutenção de seu poder, tam- pectiva reprodutiva é uma ferramen-
bém é importante ressaltar a partici- ta de instrumentalização dos corpos
pação dos Estados-Nação, que com e afetos humanos para a lucrativida-
o processo colonial se atualizaram e de de poucos, partindo da repressão
expandiram, e, por vezes, o próprio sexual e da genitalização da sexuali-
paradigma científico do início da mo- dade, essa perspectiva não compre-
dernidade produziu teorias que for- ende as vivências afetivas e sexuais
taleceram a narrativa patriarcal. que não sejam heterossexuais como
produtivas, e opera em sua margina-
Para refinar nossa encruzilhada en-
lização.
tre gênero e orientação sexual, gos-
taria de aprofundar agora em como Importante dizer que o patriarcado
essa complexa produção operou na e a heterossexualidade compulsória,
redução da sexualidade humana à ló- diante do já exposto, são basilares
gica reprodutiva, o que embasa em para a colonização ocidental do mun-
muitos casos a lgbtfobia. do, com o genocídio e epistemicidio
de diversos povos, esses modelos
A sexualidade é um aspecto bási-
de interação se consolidaram como
co e fundamental da vida, uma pul-
estruturas de relacionamentos a se-
são criadora, uma energia vital, que
rem impostas no “Novo Mundo”, em
se articula com todos os aspectos
detrimento de perspectivas diversas
que compõem a existência de uma
que existiam entre os povos originá-
pessoa. É uma característica que nos
rios e os povos vindos do continente
acompanha durante toda a vida, pas-
africano.
sando por distintas fases e formas.

94 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
Para consolidação desses modos colonialidade, compreender outras
relacionais, a violência foi abundan- pedagogias e sobretudo, mudar o
temente utilizada como tecnologia paradigma monotemático de verda-
pedagógica pelas missões religiosas, des, encorpando a tessitura social à
pelos proprietários de terras e es- disposição da diversidade humana.
cravizados amparados pelo Estado Só assim conseguiremos superar a
Colonial, e no curso do tempo trans- lógica do medo do denominado ou-
mitiram essa técnica para as institui- tro para a construção de relações de
ções do Império e posteriormente da amizade e convívio com o que é di-
república, e para as famílias, meno- verso.
res células sociais de reprodução das
normas vigentes.
2. Os dados apontam?
Essa espiral histórica de constru-
ção e reprodução da heteronormati- Uma das maiores dificuldades, para
vidade e do patriarcado é uma chave implementar todo o ciclo de políticas
importante para compreendermos públicas contra a LGBTfobia é a au-
a alta incidência de violações de di- sência de dados oficiais que cruzem
reitos contra LGBTs, a naturalização os diversos sistemas de notificação
dessas violências, a dificuldade em e denúncia, produzidos pelas insti-
estabelecer base legal e jurídica para tuições brasileiras que nos ajudem a
enfrentamento da Lgbtfobia e a es- compreender essa realidade.
cassez de políticas públicas que ini- Os dados atualmente disponíveis,
bam a ocorrência dessas situações e e utilizados pelo Atlas da Violência
mitiguem os seus impactos quando (IPEA) são os dados do Disque 100 e
ocorrem. do Sistema Nacional de Informações
O monorracionalismo da coloniza- e Agravos de Notificações (Sinan), do
ção ocidental, opera a partir da im- Ministério da Saúde.
posição de verdades absolutas, da Segundo o disque 100, entre 2011 e
naturalização dessas perspectivas no 2019 o Disque 100, foi registrado uma
curso do tempo a partir da produção média de 1.666 denúncias de violên-
de esquecimento de outros modos cias contra pessoas LGBTQI+ por
de vida e da violência como mecanis- ano. Porém, é curioso observar que
mo de subordinação dos outros a sua nessa série histórica, houveram sig-
verdade. Esse método até hoje vigo- nificativas variações nos números das
ra, e é responsável pelos inúmeros denúncias, sendo que em 2012 foram
crimes de ódio supostamente come- feitas 3.031 denúncias enquanto em
tidos em nome do bem, em defesa 2019, apenas 833 denúncias, sen-
da família, ou em nome de Deus. do 50% a menos que em 2018. Esse
É imprescindível alargar nossos dado é intrigante, uma vez que nos
horizontes históricos, abraçar outros últimos três anos, temos observado,
referenciais de civilidade que foram a olho nu uma crescente em casos
sistematicamente silenciados pela de LGBTfobia, motivados por uma

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 95
onda de ódio estimulada por figuras tesoura, enxada), 24% foram com ar-
públicas e políticos, como o próprio mas de foto e 21% por espancamen-
presidente da república. Cabe a nós to ou estrangulamento. Esses dados
que olhamos os dados no perguntar nos fazem refletir sobre a motivação
e produzir hipóteses de respostas so- dos assassinatos contra LGBTs, uma
bre o que eles nos dizem: A violência vez que o modo de assassinato com
reduziu ou há um desmantelo ou des- armas brancas ou com as mãos de-
credito da política pública? Como es- monstram o ódio implicado na pratica
tão sendo feitos os registros dessas do crime.
denúncias? O que está acontecendo
Garantir a segurança e o direito à
com as pessoas que sofrem violên-
cidade de pessoas LGBTQIA+ e de
cias e não tem informações ou condi-
mulheres, significa mais do que esta-
ções para fazer denúncias?
belecimento de mecanismos de de-
O Atlas da Violência 2021, aponta núncia, embora esses sejam impres-
que cindíveis para enfraquecer a lógica
de impunidade que encoraja autores
“A escassez de dados mantém-se central
enquanto desafio ao avanço da agenda desses crimes. É necessário educa-
de promoção de direitos LGBTQI+, ção em direitos humanos, mudança
mantendo-se, inclusive, incertezas acerca
da realização do Censo. A falta de dados, de paradigmas socioculturais e esta-
e de intervenções estatais pela promoção
de direitos LGBTQI+, tende a aprofundar belecimento de políticas de repara-
a vulnerabilidade de tal população à ção social.
violência, especialmente de seu subgrupo
mais vulnerável, constituído de pessoas
jovens e negras LGBTQI+.”
3. Os direitos adquiridos e
A Associação de Travestis do Ce- sua implementação.
ará - ATRAC publicizou dossiê onde
“As leis não bastam! Os lírios não nascem da
monitorou os assassinatos de traves- lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se na
tis e transexuais no Ceará entre 2020 pedra.
e 2021. Apenas 26,92% dos casos ti- Carlos Drumond de Andrade
veram as investigações concluídas, e
em apenas um dos 26 casos houve Todas as pessoas, sem discrimina-
menção a crime de ódio na denúncia ção têm direito constitucional à pro-
ofertada à justiça. teção de sua vida, integridade física,
liberdade e honra e qualquer ato que
O Grupo Gay da Bahia mapeou
atente contra esses direitos deve ser
em seu balanço anual , que em 2021
punido, inclusive criminalmente. No
houveram 300 mortes violentas de
entanto, sabemos que um conjunto
pessoas LGBT+, com crescimento de
de pessoas, dada a produção sócio-
8% em relação ao ano anterior. Foram
-histórica está mais vulnerável a ter
276 homicídios (92% do total) e 24
esses direitos violados (como pes-
suicídios (8%). 35% dos casos acon-
soas racializadas, mulheres, LGBTS,
teceram no Nordeste e 33%, no Su-
Crianças, idosos). Não existe na le-
deste. 28% dos assassinatos ocorre-
gislação brasileira crime específico
ram com armas brancas (faca, facão,

96 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
relacionado a manifestações de ódio pecializadas em Crimes de Ódio uma
contra LGBTs, porém com a deci- medida administrativa importante no
são de aplicação da Lei do Racismo sentido de combater essas violências.
(7.716/1989) para a criminalização da
É fundamental a implementação
homofobia e da transfobia há uma ju-
do Plano Nacional de Promoção da
risprudência para a defesa dessa po-
Cidadania e Direitos Humanos de
pulação.
LGBT, que traz diretrizes e ações para
Porém, além do formalismo legal, a a elaboração de Políticas Públicas
efetivação dos direitos e a responsa- voltadas para esse segmento, mobili-
bilização por crimes exige um conjun- zando o Poder Público e a Sociedade
to de ações coordenadas que ope- Civil Organizada para realização de
rem na sociedade a fim de possibilitar ações de educação, geração de tra-
que o que está reconhecido no texto balho e renda, moradia, assistência
da lei seja arraigado no seio da socie- social, segurança pública, etc.
dade e torne-se cotidiano.
Os Princípios de Yogyakarta (um
Existem algumas políticas públi- tratado internacional sobre direitos
cas, leis e atos institucionais que ob- humanos nas áreas de orientação
jetivam a implementação dos direitos sexual e identidade de gênero, do
LGBTQIA+ relacionados a segurança qual o Brasil é signatário) estabelece
pública e direito à cidade. Essas, em- 29 direitos a serem garantidos pelos
bora já existam há algum tempo, ain- Estados-nação a população LGB-
da encontram dificuldades para sua TQIA+. Esses princípios refletem as
efetivação. necessidades dessa população para
obtenção de dignidade e cidadania.
A Lei nº 11.340/2006, popularmen-
São direitos expressos nesse tratado:
te conhecida como Lei Maria da Pe-
Gozo Universal dos Direitos Huma-
nha, prevê medidas voltadas ao en-
nos; Igualdade e a Não-Discrimina-
frentamento da violência doméstica
ção; Reconhecimento Perante a Lei;
e estabelece de forma explícita a sua
Direito à Vida; Segurança Pessoal;
aplicação para relações LGBTs, no
Privacidade; Não Sofrer Privação Ar-
entanto para sua implementação efe-
bitrária da Liberdade; Direito a um
tiva ainda é necessário a informação
Julgamento Justo; Tratamento Hu-
da população em geral e preparação
mano durante a Detenção; Não So-
dos agentes públicos implicados em
frer Tortura e Tratamento ou Casti-
sua implementação para aplicação
go Cruel, Desumano e Degradante;
devida da lei.
Proteção Contra todas as Formas de
Para a efetivação da decisão do Exploração, Venda ou Tráfico de Se-
STF, de equiparação do crime de res Humanos; Trabalho; Seguridade
Lgbtfobia aos crimes de racismo é Social e outras Medidas de Proteção
necessário também a formação dos Social; Padrão de Vida Adequado;
agentes de segurança pública, sendo Habitação Adequada; Educação; Pa-
a implementação de Delegacias Es- drão mais Alto Alcançável de Saúde;

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 97
Proteção contra Abusos Médicos; fundamental que as pessoas estejam
Liberdade de Opinião e Expressão; organizadas para cobrar do Estado a
Liberdade de Reunião e Associação efetivação desses direitos. A efetiva-
Pacíficas; Liberdade de Pensamento, ção dos direitos necessita de políticas
Consciência e Religião; Liberdade de de Estado comprometida e alinhadas
Ir e Vir; Direito de Buscar Asilo; Direito com os direitos humanos, com qua-
de Constituir uma Família; Direito de dro de pessoal capacitado a lidar com
Participar da Vida Pública; Direito de essas questões e orçamento público
Participar da Vida Cultural; Direito de que garanta a continuidade e qualida-
Promover os Direitos Humanos; Di- de dessas políticas.
reito a Recursos Jurídicos e Medidas
Sonhar com um país seguro não
Corretivas Eficazes; Responsabiliza-
significa querer mais forças policiais
ção.
ou mais punição simplesmente, sig-
Porém, como evoca o poema de nifica sobretudo sonhar com um país
Drumond, citado no início deste ca- que efetive os direitos humanos bási-
pítulo: os lírios não nascem da lei. cos de todes, todas e todos!
Para que a vida encontre caminhos é

98 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
Ensaio: “Legislação, Políticas Públicas
e Conjuntura para LGBTI+ na área da
assistência social”

Kayodê da Silva Silvério1

O presente ensaio tem como objetivo refletir e analisar a construção, des-


construção, as encruzas e caminhos das Políticas Públicas e Conjuntura para
LGBTI+ na área da Política Pública de Assistência Social voltada à população
LGBTIQPA+, sob à luz da Legislação. Para tanto, este ensaio figurou como uma
percepção da experiência de gestor atuando desde 2009 no Sistema Único de
Assistência Social SUAS-DF, e foi subsidiado por um levantamento bibliográfico
e análise documental acerca do tema.
O trabalho conta, ainda, com análises documentais e legislações, tais como: os
relatórios da Conferência LGBT e de Assistência Social; os escritos legislativos

1 Kayodê Silvério (SILVÉRIO, K. da S.) é Especialista em Assistência Social, Assistente Social, Historiador,
Servidor Público da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social -SEDES do Governo do
Distrito Federa -GDF – Ex Gestor do CREAS da Diversidade/SEDES/GDF, Graduando em Teologia e
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos – PPGDH da Universidade de Brasília
(UnB), pessoa trans não binarie ciborgue e artivista em Direitos Humanos atuando com as pautas
LGBTQIPA+Afrorreferenciadas da Diversidade Sexual, Étnico Racial e Religiosa.
sobre a política de assistência social, e risco social que abrangem lésbicas,
a partir da Constituição Federal (CF) gays, bissexuais, travestis, transexu-
de 1988 até os dias atuais; a Lei Orgâ- ais, transgêneros/as/es e intersexos/
nica de Assistência Social (LOAS) de as/es (LGBTI)2 público-alvo da políti-
1993, que regulamenta os artigos 203 ca em questão.
e 204 da CF de 1988; a Política Na-
Contudo cabe elucidar, que algu-
cional de Assistência Social (PNAS)
mas categorias pertinentes a vulne-
de 2004 e o Sistema Único de Assis-
rabilidade e risco social podem se
tência Social (SUAS) de 2005.
configurar como indicadores de “ex-
O propósito é reafirmar que a popu- clusão”. Isto se deve ao fato de que
lação LGBTIQPA+, em sua perspectiva o público-alvo dos próprios serviços
de emancipação, expressa o aprofun- a serem prestados, nos níveis de pro-
damento paradoxal entre o processo teção social ou da proteção básica
de minimização das políticas sociais e propostos, é vasto e apresenta de
o aumento das demandas sociais por maneira tão diversa expondo um ven-
serviços públicos. Este fato impulsio- tilador de situações, particularidades,
na políticas de viés neoliberal, reque- singularidades, que pode chegar até
rendo o desenvolvimento de críticas a comprometer o processo de nor-
ao Estado capitalista, atualmente, em matização dos serviços prestados.
sua versão neoliberal. Esta conjuntu-
Outra situação importante a ser
ra nos coloca, sobretudo, a reflexão
abordada é a discussão em torno da
acerca da importância de se pensar
redação da PNAS, no que tange à
o fazer técnico/político e profissional,
efetivação de diretos da população
respeito a integralidade dos direitos
LGBTIPQA+. A exemplo disso tem-se
humanos, em especial o respeito às
o subtítulo “Família e Indivíduos [...]”
diversidades de gênero/sexuais, étni-
co raciais e religiosas sob o prisma da
2 Em 2008, com a 1ª Conferência Nacional
laicidade do Estado Brasileiro. de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e
Transexuais, foi padronizada a nomenclatura
O presente ensaio parte da Política do movimento homossexual brasileiro, que
Pública de Assistência Social no Bra- até então usava a sigla GLBT, passaria a usar
sil segundo suas normativas técnicas LGBT – Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis
e Transexuais - a mudança de posição da
e a legislação vigente construída, tais letra se dá ao fato de uma maior visibilidade
como a Política Nacional de Assis- para as reivindicações das mulheres lésbicas.
tência Social (PNAS) que são docu- Entretanto, existem outras nomenclaturas para
designar tal grupo, como: LGBTQ (lésbicas,
mentos basilares para a efetivação e gays, bissexuais, transexuais, travestis,
implementação do Sistema Único de transgêneros, queer), LGBTQI (Lésbicas, Gays,
Assistência Social (SUAS), e sobretu- Bissexuais, Transexuais, Travestis, Transgêneros,
Queer, Intersexuais), LGBTI+ (Lésbicas, Gays,
do que tem como objetivo principal Bissexuais, Transexuais, Travestis, Transgêneros,
atender pessoas e famílias em situ- Intersexuais e mais), e LGBTQQIASCPF2NBK+
ação de vulnerabilidade, risco social (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Queer,
Questionando-se, Intersexuais, Assexuais, Sem
e/ou violação de direitos. Especial- Gênero, Simpatizantes, Curiosos, Pansexuais,
mente as categorias vulnerabilidade Polissexuais, Amigos e Familiares, “Dois-
espíritos”, Não Binarie, Kink e mais).

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 101
(BRASIL, 2004, p. 20), o qual desta- contra LGBTQI+, envolvendo 1.713 ví-
ca que o conceito de família passa por timas e 2.275 suspeitos.
transformações, contudo, refere-se
Em outro relatório a pedido da Co-
somente às mulheres que chefiam
missão Interamericana de Direitos
núcleos familiares. Excluem-se, assim,
Humanos no final de 2018 entregue
as famílias formadas por casais e tri-
à AGU (Advocacia-Geral da União),
sais, com ou sem filhos/as, biológicos/
somando-se as denúncias de assas-
as ou adotivos/ as, além de serem su-
sinato registradas entre 2011 e 2018
primidas as famílias monoparentais,
pelo Disque 100 (um canal criado para
onde a/o mãe/pai é LGBTIQPA+.
receber informações sobre violações
A PNAS ainda referencia a cate- aos direitos humanos), pelo Trans-
goria gênero relacionada apenas às gender Europe e pelo GGB (Gru-
mulheres cisgêneras, dificultando a po Gay da Bahia), totalizando 4.422
possibilidade de reconhecimento de mortos no período. Isso equivale a
pessoas e arranjos familiares multi- 552 mortes por ano, ou uma vítima de
versos da formação do casamento LGBTQI+fobia a cada 16 horas no País.
ou união estável entre homem e mu-
Enquanto o Disque 100 datou 529
lher cisgêneros, como também não
denúncias de assassinato entre 2011
são mencionados os termos orienta-
e 2018, a Transgender Europe infor-
ção sexual e identidade de gênero.
mou 1.206 homicídios de transexuais
O debate sobre o atendimento da e o GGB registrou 2.687 mortes. Ain-
PNAS destinado à população LGB- da em 2018, 170 pessoas teriam sofri-
TIQPA+ é imprescindível, num con- do alguma violência em razão de sua
texto em que, no País e no mundo, identidade de gênero. Em 2017, foram
as mortes de LGBTIQPA+ são pre- 258; em 2016, 184; e, em 2015, foram
ponderantes. Nesse contexto faz-se 220 denúncias. A violência física so-
lembrar que o Brasil é o País que mais frida pela comunidade LGBTIQPA+
assassina LGBTIPQA+ no mundo. continua como uma das acusações
mais frequentes: 667 no ano passado
Segundo dados oficiais da Secre-
(2021), contra 864 em 2017 e 561 em
taria de Direitos Humanos (SDH) da
2016.
Presidência da República, que há três
(03) anos teve sua nomenclatura alte- Segundo a ONU – Organização
rada para Ministério da Mulher, Família das Nações Unidas, o Brasil é o país
e Direitos Humanos, apresentando que mais mata Pessoas TRANS no
um retrocesso Pós Golpe Parlamentar mundo, sobretudo vale salientar que
de 2016 com intuito de imputar valo- de janeiro a setembro de 2018, 271
res morais para toda uma sociedade, pessoas transgêneras foram mortas
no que diz respeito as pautas do re- em 72 países. O Brasil lidera o ranking
conhecimento da diversidade huma- com 125 casos no período.
na. A SDH divulgou dados que reve-
Em 2020, a Associação Nacional
laram que em 2011 foram denunciadas
de Travestis e Transexuais – ANTRA
6.809 violações de direitos humanos

102 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
encontrou um número recorde de neráveis a sofrerem violações de
assassinatos contra travestis, mulhe- seus direitos, afetando direta e indi-
res trans e demais pessoas trans. Um retamente sua saúde física, mental e
total de 175 casos foram mapeados emocional.
contra 44 nos Estados Unidos. Já em
É importante observar também o
2021, nos quatro primeiros meses,
percurso extenso de reivindicações,
enquanto nos EUA foram 19 pessoas
em especial dos movimentos
Trans assassinadas, no Brasil chega-
sociais/sociedade civil, e também o
mos a triste marca de 56 assassinatos
protagonismo pela luta por direitos
– sendo 54 mulheres Trans/Travestis
e o respeito aos corpos dissidentes
e 02 homens Trans/Transmasculinos.
LGBTIQPA+ relativo às demandas
São inúmeros os casos que apresen-
que as pessoas LGBTIQPA+ lutaram
taram requintes de crueldade e uso
arduamente, dando origem a alguns
excessivo de força, e espancamentos
programas, como é o caso do
- indicativos de se tratarem de crimes
Programa Brasil Sem Homofobia
de ódio. Tendo sido encontrados ain-
(BSH) – constituindo um processo de
da 05 casos de suicídio, 17 tentativas
articulação ligado a várias secretarias,
de assassinatos e 18 violações de di-
fortalecendo a luta do movimento no
reitos humanos contra pessoas Trans,
país, proposto em 2004, por meio
no mesmo período (ANTRA, 2020).
da Secretaria Especial de Direitos
De acordo com o relatório de mor- Humanos (SEDH) da Presidência da
tes violentas de LGBTIQPA+ no Bra- República.
sil, “a cada 19 horas uma pessoa LGB-
Sem dúvida, no contexto brasileiro
TIQPA+ é barbaramente assassinado
o BSH foi o marco inicial para a pro-
ou se suicida vítima da “LGBTfobia”
moção da cidadania LGBT. A propos-
(GRUPO GAY DA BAHIA, 2017, p. 1), o
ta contida no “Brasil Sem Homofobia,
que faz o Brasil liderar o ranking mun-
Programa de Combate à Violência e à
dial de crimes contra os/as LGBTIP-
Discriminação contra GLTB e de Pro-
QA+. Tais dados confirmam a violên-
moção da Cidadania Homossexual”, é:
cia sofrida pelos/as/es mesmos/as/
es, uma vez que os mecanismos re- “[...] promover a cidadania GLBT, a
partir da equiparação de direitos e do
gulatórios do Estado são capitalistas, combate à violência e à discriminação
cisheterossexistas, misóginos, racis- homofóbicas, respeitando a especificidade
de cada um desses grupos populacionais”
tas, excluem e oprimem tal comuni- (CONSELHO NACIONAL DE COMBATE À
dade, explorando-a, marginalizando- DISCRIMINAÇÃO, 2004, p. 11).
-a, violentando-a, mercantilizando-a
e genocizando. Nesse sentido o Programa Brasil
Sem Homofobia foi editado em um
No Brasil, sobretudo nas duas úl- plano plurianual (PPA) de 2004/2007,
timas décadas, não se pode falar sendo organizado em princípios bási-
de LGBTIPQA+ sem que o tema da cos e programas de ações articulados
violência aflore, indicando ser esse a uma política de direitos LGBTIQ-
um dos grupos mais expostos e vul- PA+. Observa-se que o BSH não pos-

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 103
sui nenhum parágrafo específico para ‘educação’, ‘previdência social’, ‘trabalho e
emprego’ e ‘cidades’. Tais propostas tratam
ações no campo da Política de Assis- basicamente da necessidade de capacitação
de profissionais da assistência social para o
tência Social, como tem nas áreas de atendimento à população LGBT (em abrigos
Educação, Saúde, Segurança, Traba- e demais serviços socioassistenciais); da
inserção das categorias identidade de
lho e Cultura. gênero e orientação sexual no SUAS e
na PNAS; e da articulação entre a política
Vale lembrar que dentre estas Po- de assistência social e as demais políticas
públicas (MELLO et al, 2013, p. 138).
líticas Públicas, existem ações que
também perpassam o campo da
Infelizmente, a PNAS mesmo após
Assistência Social, tais como: a ca-
a sua última atualização em 2004 jun-
pacitação de profissionais nos mais
to ao Ministério de Desenvolvimen-
diversos Ministérios, a criação de ins-
to Social por meio dos processos de
trumentos técnicos para diagnosticar
controle social, via Conselhos de As-
e avaliar a situação de violação aos
sistência Social Municipais/Distritais/
direitos humanos de LGBTIQPA+,
Estatuais e das Conferências de Assis-
a criação de uma rede de proteção
tência Social, não faz nenhuma men-
socioassistencial para testemunhas
ção à comunidade LGBTIQPA+, não
de crimes relacionados à orientação
faz referência às questões concernen-
sexual/identidade de gênero, levan-
tes também à identidade de gênero.
tamento dos tipos de violação de di-
Este fato reforça a ideia de que gê-
reitos, a tipificação e o contexto dos
nero é colocado somente em relação
crimes, mapeamento do perfil de au-
a cisgeneridade e vinculado apenas a
tores, a compreensão da vitimização
figura da mulher cis, o que impede e
de modo a assegurar o encaminha-
dificulta a efetivação de ações e pro-
mento das vítimas pessoas LGBTI-
jetos voltados para os/as LGBTIQPA+,
QPA+ para serviços de assistência e
apenas após o surgimento do BSH
proteção, com o objetivo de supera-
(que, não chegou à implantação, não
ção das situações de violações de di-
obtendo nenhum resultado sobre a
reitos e o respeito a integralidade das
política de assistência social).
diversidades dissidentes.
A garantia e a promoção de direitos
A I Conferência Nacional LGBT re-
da população LGBTIQPA+ no Brasil
alizada no Brasil ocorreu em 2008,
surge como um dos grandes desa-
esta trouxe eixos e ações a serem to-
fios impostos à rede de atendimento
mados para o enfrentamento à LBG-
socioassistencial. A população LGB-
TIQPA+fobia em diferentes políticas
TIQPA+ tem o direito assegurado de
como Previdência Social, Trabalho e
acessar qualquer serviço, programa,
Renda, e Assistência Social. Mello et
projeto e benefício da assistência so-
al. (2013) pontuam que:
cial no caso o Sistema Único de Assis-
Nos Anais da I Conferência Nacional LGBT tência Social - SUAS, resguardados
observa-se a desarticulação entre as
propostas relativas à assistência social, os seus critérios de elegibilidade, e
uma vez que, em face da inexistência de deve ser atendida sem qualquer dis-
grupo de trabalho (GT) específico sobre o
tema, as 11 deliberações aprovadas estão criminação em todos os equipamen-
distribuídas em diferentes GTs: ‘saúde’,
tos da assistência social.

104 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
A Lei Orgânica de Assistência So- Política Pública de Assistência Social,
cial, a Lei Federal 8.742/1993, coloca assegurada por Lei.
como um dos princípios da Assis-
A Política Nacional de Assistência
tência Social “igualdade de direitos
Social (PNAS) trabalha de forma inte-
no acesso ao atendimento, sem dis-
grada às políticas setoriais, consideran-
criminação de qualquer natureza”.
do as desigualdades socioterritoriais,
Além disso, a Lei Orgânica do Dis-
visando seu enfrentamento à garantia
trito Federal, estabelece como seus
dos direitos socioassistenciais, com
valores fundamentais a plena cida-
especial atenção para aquelas popu-
dania e a dignidade da pessoa hu-
lações que historicamente foram alo-
mana, vedando explicitamente qual-
cadas em espaços sociais de abjeção,
quer discriminação ou prejuízo em
seja por questões relacionadas à ren-
razão de orientação sexual. Também
da, a orientação sexual, a identidade
é um dos princípios éticos de todas
de gênero, a cor/raça ou à etnicidade.
as pessoas que trabalham no SUAS,
Neste sentido, a PNAS possui papel
conforme a Resolução do Conselho
fundamental na promoção de direitos
Nacional de Assistência Social CNAS
para população LGBTIQPA+, deven-
nº 269/2006, “Garantia do aces-
do garantir a perspectiva da equidade
so da população a política de assis-
e da diversidade no desenvolvimento
tência social sem discriminação de
das ações, programas, benefícios e
qualquer natureza (gênero, raça/et-
serviços do Sistema Único de Assis-
nia, credo, orientação sexual, classe
tência Social (SUAS).
social, ou outras), resguardados os
critérios de elegibilidade dos dife- O “Trabalho Social”3 com famílias
rentes programas, projetos, serviços no SUAS tem como princípio à pre-
e benefícios” (AREDA, 2021 e SILVÉ-
RIO 2022).
3 Para Marilda Iamamoto, a compreensão do
significado de “trabalho social” da profissão
A Política Pública de Assistência de assistentes sociais, parte da concepção da
Social atua na proteção das famílias totalidade histórico-social. A mesma, no capítulo
- de todas elas. Para o Sistema Único II de sua obra Relações Sociais e Serviço Social
no Brasil, enfatiza que seu trabalho se direciona a
de Assistência Social família é o grupo “um esforço de captar o significado social dessa
de pessoas que se acham unidas por profissão na sociedade capitalista” e “um esforço
laços consanguíneos, afetivos e, ou de compreender a profissão historicamente
situada”. De acordo com a autora, a nossa
de solidariedade (Resolução CNAS profissão é integrante da reprodução das relações
Nº 145/2004). Então, independen- sociais, ou seja, tem rebatimentos do movimento
temente de como ela é formada, sua da sociedade no interior da profissão. As
relações sociais não se restringem à reprodução
família pode ser registrada no Cadas- material, mas “[…] atinge a totalidade da vida
tro Único para Programas Sociais do cotidiana, expressando-se tanto no trabalho, na
Governo Federal e nos prontuários família, no lazer, na escola, no poder etc., como
também na profissão” (IAMAMOTO, 1982, p.73).
eletrônicos das Secretarias de Esta- Precisamente, por isso é que segundo ela, não se
do ou Municipais de Assistência So- pode afirmar que o Serviço Social se situe “[…]
cial da sua região podendo acessar os unilateralmente como um mecanismo de apoio
ao capital, podendo tornar-se em instrumento a
serviços, programas e benefícios da serviço dos trabalhadores”. (IDEM, p.96).

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 105
venção e atendimento de situações vemos um dissenso do que foi produ-
de violência e violações de direitos. zido e da efetivação dessas políticas.
É imprescindível que as unidades do
Vale salientar, em contrapartida,
SUAS enquanto garantidoras de di-
que essa I Conferência oportunizou
reitos respeitem as identidades de
alguns avanços a partir das propos-
gênero e a orientação sexual das/os
tas retiradas na plenária final. Um dos
suas/seus usuárias/os, proporcionan-
pontos fortes desses avanços a partir
do a liberdade e individualidade no
das propostas discutidas nos grupos
uso dos espaços, incorporando mo-
de trabalhos (GT´s) foi a do Plano
dos de tratamento e especificidades
Nacional de Promoção e Cidadania
no acompanhamento socioassisten-
e Direitos Humanos de LGBT (PNC-
cial, fortalecendo a autonomia e ci-
DH-LGBT) em 2009. O documento
dadania desta população.
do PNCDH-LGBT é composto por
Especificamente, com a I Confe- 51 diretrizes e dois eixos estratégicos
rência Nacional LGBT que se iniciam com 180 ações. O objetivo principal é:
os debates deste grupo dentro da
[...] orientar a construção de políticas
Política de Assistência Social. públicas de inclusão social e de combate
às desigualdades para a população
A respeito dessa situação acima, LGBT, primando pela intersetorialidade
e transversalidade na proposição e
Mello et al. (2013) afirmam que, ape- implementação dessas políticas (BRASIL,
sar de se ter um grande avanço na 2009, p. 10).

discussão sobre LGBTIQPA+ na Polí-


tica de Assistência Social, com a Con- E no que diz respeito à Política de
ferência supracitada, as problemati- Assistência Social o PNCDH-LGBT
zações foram colocadas em segundo destaca e aprofunda na seguinte pro-
plano, apresentando poucas ações posta:
a serem operacionalizadas, não pro- No âmbito da assistência social, o Plano Nacional
porcionando mudanças radicais no LGBT propõe a ‘ampliação dos conceitos de
família, de modo a contemplar os arranjos
cenário social do país. familiares LGBT’ e também uma perspectiva
de intersecção que possa ‘assegurar a inclusão
Muito embora a I Conferência Na- do recorte de orientação sexual e identidade de
gênero, observando a questão étnico-racial nos
cional LGBT, possa ter possibilitado programas sociais do Governo Federal’. Outras
proposições com ações de mudan- ações concentram-se no combate à homofobia
em órgãos municipais, estaduais e federais
ças e demais quebras de paradigmas, de assistência social, e ainda, em questões
relacionadas à população carcerária LGBT
fruto das LGBTIQPA+fobias institu- (MELLO et al., 2013, p. 140).
cionais não foi possível efetivar seu
objetivo, e muito menos ainda o BSH. Considerando a luta do movimen-
Tendo em vista que o BSH se transfor- to TRANS no Brasil pela visibilidade
mou em um documento meramen- de demandas historicamente repri-
te orientador das Políticas Públicas, midas, torna-se necessário discutir
aproximado, isto é, sem articulações dentro do SUAS, de forma mais apro-
entre as propostas que intencional- fundada, as oportunidades de quali-
mente foram criadas para serem in- ficação profissional, emprego e ren-
corporadas por essas Políticas, então

106 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
da e a urgência de capacitação dos/ objetivo implantar e efetivar a Políti-
das/des profissionais da assistência ca Nacional de Sensibilização e For-
social quanto à importância do aten- mação Continuada dos/as/es Tra-
dimento adequado, e o respeito ao balhadores/as do SUAS das esferas
nome social4, visto que este deve ser Municipal/Estadual e Federal para
inserido em todos os instrumentos o respeito e a inclusão das especifi-
de identificação, acompanhamento e dades do atendimento à população
atendimento dos equipamentos so- LGBTIQPA+. Faz necessário ponderar
cioassistenciais. (CAMPANHA SUAS que infelizmente ainda é pouco reali-
SEM TRANSFOBIA. Ministério do zada essas sensibilizações nas esferas
Desenvolvimento Social. 2018). federativas, e, quando realizada, é de
forma residual, permeada por juízo de
A II Conferência Nacional de Po-
valores/morais hegemônicos, falas
líticas Públicas e Direitos Humanos
e documentos com conteúdos per-
de LGBT foi realizada em 2011, e teve
meados por racismos institucionais; e
como princípio a discussão do desen-
questões LGBTIQPA+fóbicas, misó-
volvimento/andamento das políticas
ginas, sexistas, superficiais, duvidosas,
públicas para LGBTIQPA+ e as legis-
precárias e de maneira extremamente
lações específicas. Dentre as diretri-
pontuais (sem continuidade).
zes aprovadas, uma delas diz respeito
à Política de Assistência Social, a qual Já a III Conferência Nacional de Po-
refere-se à introdução do reconhe- líticas Públicas e Direitos Humanos de
cimento de arranjos familiares, que LGBT realizada em 2016 possuía (04)
sempre existiram em toda a humani- quatro eixos temáticos com o intuito
dade e em diversos tempos sociohis- de reunir propostas que favoreces-
tóricos culturais, no Cadastro Único sem o enfrentamento à violência con-
(CADÚNICO) da Assistência Social, tra LGBTIQPA+. No que tangeu a Po-
com a criação dos campos: orienta- lítica de Assistência Social, é notório a
ção sexual, identidade de gênero e repetição de aprovação com as pro-
o nome social, para que a população postas de diretrizes já aprovadas na
LGBTIQPA+ possa ter o direito social II Conferência. Essas diretrizes, mas
do acesso aos programas que valem- não tiveram êxito em sua execução
-se de dados do CADÚnico como durante o processo histórico e político
base unificada para todo o Brasil. de uma conferência para a outra.
Nesse interim é importante desta- Pode-se concluir que tal propo-
car também a diretriz que tem como sição aconteceu devido a uma série
de fatores que se interseccionam en-
4 Nome Social – Decreto 8727/2016 Que dispõe tre si, tais como o conservadorismo,
sobre o uso do nome social e o reconhecimento
da identidade de gênero de pessoas travestis,
as práticas do fundamentalismo re-
transexuais e transgêneras no âmbito da ligioso, do racismo, e do machismo
administração pública federal direta, autárquica em todas as esferas políticas do País,
e fundacional, reconhecendo a população
TRANS e determinando que todos órgãos de
confirmando uma sociedade conser-
esfera federal deverão respeitar, bem como, vadora, cujas ações estão pautadas
implementar o campo do mesmo.

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 107
na cisheteronormatividade, no pa- empatia nos profissionais, sensibilizar,
triarcado, na misoginia, e no geno- humanizar e/ou qualificar.
cídio escancarado da comunidade
As trabalhadoras e trabalhadores
LGBTIQPA+.
do SUAS, muitas vezes nem sequer
escutam o que a pessoa LGBTQIPA+
CONSIDERAÇÕES FINAIS está querendo buscar no serviço, ao
informar fazer parte da comunidade
As Políticas de Assistência Social LGBTQIPA+ cria-se uma barreira de
ainda são muito ineficazes no atendi- acesso “naturalmente”, baseada nos
mento à População LGBTIQPA+ em preconceitos, tabus, Fake News, dis-
âmbito nacional, estadual e munici- cursos moralistas, medos, falácias,
pal, especialmente, nas possibilida- crueldade, nem sequer olham para
des de gestão e do atendimento ao essas pessoas, não fazem uma es-
público. Quando há uma demanda cuta qualificada, para compreensão
para o acompanhamento especiali- da demanda inicial. Situações como
zado, a/e/o profissional deve sempre estas muitas vezes poderiam ter sido
ter o compromisso com o fazer pro- resolvidas na 1ª unidade em que a
fissional ético, em conformidade com pessoa procurou, assim, não preci-
o que preconiza a Lei Orgânica da sariam passar por essa revitimização,
Assistência Social (LOAS), o SUAS, por falta de empatia profissional.
a PNAS e demais legislações que
são basilares para a implementação e Até existe algo muito irrisório na
efetivação dessa Política Pública. legislação da Política da Assistência
Social, mas quando os/as/es traba-
Existe uma realidade muito presen- lhadores/as/us do SUAS se depa-
te em nível nacional, que se capilariza ram com essa realidade institucional,
em todos os municípios, estados, ci- de atender nos serviços as pessoas
dades, capitais, ruas, casas, escolas, LGBTQIPA+, muitos não sabem o que
entre outros, que é quando pesso- fazer tecnicamente, muitas vezes por
as LGBTQIPA+ vão ao encontro dos desconhecimento, ou por ausência
serviços, tais como CRAS, CREAS, de legislações específicas, ou ainda
Unidades de Acolhimento, entre ou- por LGBTQIPA+fobia institucional,
tros, mas não conseguem sequer ter discriminações racistas e LGBTQI-
uma escuta, muitas vezes ali mesmo PA+fóbica por motivações religiosas,
na porta de entrada a pessoa é apa- questões morais e éticas, tipificações
gada, sem que suas especificidades relacionadas à crimes de ódio, práti-
sejam respeitas. Hoje, século 21, de- cas racistas e sexistas.
pois de anos da construção e imple-
mentação do SUAS, não existe uma Pondero, ainda, que a inclusão do
norma técnica que oriente todos os nome social por intermédio do De-
serviços do Brasil, em relação à atua- creto Presidencial para o respeito à
ção direta dos profissionais, o material identidade de gênero, não é conside-
disponibilizado é sempre superficial e rada pelos estados e municípios, che-
raso, tampouco conseguem causar gando ao cúmulo do absurdo de falar

108 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
que é falsidade ideológica o respeito dade no Distrito Federal7 e Casarão
à identidade de gênero das pessoas da Cidadania em Salvador-BA8.
TRANS que buscam as Unidades de
Nesse ponto é crucial ampliarmos
Assistência Social e demais Políticas
o debate e problematizar que nosso
Públicas para serem atendidos/as/
País cuja a extensão territorial é con-
es/os – acompanhados/as/es. A per-
tinental e lidera o ranking mundial de
gunta que fica: Se você é uma pessoa
genocídio da população LGBTIQPA+,
TRANS, por mais que esteja vivendo
é total absurdo não pensarem do
todas as violações de direitos exis-
ponto de vista da gestão política do
tentes no mundo, você tem o desejo
território a implementação e capilari-
de voltar nessa unidade para procurar
zação dessas unidades específicas ci-
atendimento biopsicossocial, depois
tadas acima já existentes no País que
de ter sido acusade/a/o de falsidade
ideológica, mesmo existindo uma le-
gislação vigente? 7 O Centro de Referência Especializado em
Assistência Social da Diversidade Sexual, Étnico
Desse modo é de suma importân- Racial e Religiosa – CREAS DIVERSIDADE criado
em meados de março de 2009 funcionava
cia, elucidar a existência do Fórum anteriormente como o Núcleo de Enfrentamento
Nacional de Gestoras/es que tra- a Discriminação Sexual, Étnico Racial e Religiosa
balham diretamente com a Política – NUDIN, foi pensando a partir dos parâmetros,
normas e diretrizes do CREAS LGBT de Campinas
Pública LGBTQIPA+ (FONGES5 – por meio de trocas/encontros institucionais e
LGBT), presente atualmente em 81 capacitação de servidores/as e gestão e das
Estados, Municípios e Distrito Fede- normativas do MDS para os serviços de CREAS.
CREAS Diversidade é vinculado a Secretaria de
ral. Um dado relevante que esse Fó- Estado de Desenvolvimento Social do Governo
rum apresenta (vide o Mapeamento do Distrito Federal, recebe financiamento distrital,
do FONGES - ANEXO I) é que exis- do MDS e de outros órgãos de fomento/pesquisa.
tem apenas três 03 Políticas Públicas 8 O Casarão da Cidadania foi criado em
específicas de Assistência Social para meados de 2017/18 no centro da capital baiana
com o propósito de atender às diversidades
o atendimento da população LGBT- sexuais, étnico racial e religiosa e no mesmo
QIPA+ no Brasil, que são o CREAS-L- local se oferece atendimento especializado das
GBT6 Campinas-SP, CREAS Diversi- seguintes políticas públicas – segurança, saúde,
educação, defensoria pública, e assistência
social. Em 2019 o CREAS Diversidade/DF
conjuntamente com serviços que compunham
5 Foi criado oficialmente em junho de 2011. É a rede na época foram convidados para fazer
constituído pelo conjunto dos *órgãos gestores uma capacitação multi/interdisciplinar para a
responsáveis pela coordenação e execução futura inauguração de um serviço semelhante no
da política LGBT em seu território e tem como Casarão em conformidade com o já executado
objetivo principal contribuir para consolidação no DF para toda a equipe de profissionais do
das políticas públicas para a população próprio Casarão, e para a Rede de Serviços
LGBTIQPA+, e fortalecer os órgãos gestores com a presença/participação ativa massiva da
estaduais e municipais. Sociedade Civil o encontro foi chamado de
“Trocas de Boas Práticas – Serviços existentes
6 O Centro de Referência Especializado em para a População LGBTIQPA+ e foi realizado
Assistência Social LGBT de Campinas – SP em um hotel em Lauro de Freitas, localizado
criado em 31 de julho de 2003 é vinculado à na região metropolitana de Salvador -BA. O
Secretaria de Assistência Municipal do Estado Casarão é vinculado ao Governo de Estado da
de São Paulo, recebe financiamento do MDS e Bahia e é financiado pelo Fundo Nacional de
de outros órgãos de fomento/pesquisa. Assistência Social – FNAS.

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 109
prestam serviços exitosos dentro da qualquer tipo de violações de direitos,
Política Pública de Assistência Social. discriminações e violências sejam elas
estruturais, institucionais, simbólicas,
Outro ponto interessante seria
familiares, e etc, tornando uma agen-
pensar para que todas as pessoas
da política e pública de urgência, bem
no Brasil tivessem acesso ao mape-
parecido quando uma pessoa que
amento do FONGES, pensando so-
chega a um Pronto Socorro e precisa
bretudo nas redes de fortalecimento
de atendimento imediato.
e superação das violações de direi-
tos. Seguindo essa mesma toada da Há outro ponto nevrálgico e delica-
implementação de mais Políticas do no SUAS, quando pensamos tecni-
Públicas específicas para a Popula- camente a Proteção Social Especial de
ção LGBTIQPA+, mesmo pautada Alta Complexidade em relação às Uni-
em Conferências Nacionais de Saú- dades de Acolhimento Institucionais,
de, Assistência, Segurança Alimentar ou seja, os antigos Abrigos/Casa de
dentre outras é notado que a aber- Passagem que é sem dúvida nenhu-
tura foi muito pequena, e aponto as- ma o maior desafio para que as orien-
sertivamente que deveria ter CREAS tações sexuais/identidades de gênero
específicos no mínimo um (01), em sejam respeitadas. Muitas delas/es/us
todas as capitais do Brasil. apresentam relatos horripilantes e ul-
traviolentos que sofreram dentro das
Nesse contexto, o principal objetivo
unidades de acolhimento que é um
desse ensaio revela assertivamente
braço do Estado para acolher, e que
que a discussão dos objetos/princí-
quando acolhidas sofrem diversas vio-
pios/resultados/normativas relaciona-
lências odiosas por parte de profissio-
dos/as à população LGBTIQPA+ na
nais e de outras pessoas acolhidas que
política pública de assistência social
não são da comunidade LGBTIQPA+,
ainda está aquém do proposto, apre-
inclusive “estupro corretivo”9.
sentando um fazer institucional mas-
sacrante, apagado e sem força políti- Nas três (03) últimas Conferências
ca de implementação. Pondero nesse Nacionais de Assistência Social e na
aspecto que essa discussão tem que última Conferência Nacional LGBT foi
estar alicerçada e ancorada com fun- aprovado com louvor e incluído nos
damentos normativos constitucionais relatórios/anais das Conferências a
em diálogo constante com os movi- criação de Unidades de Acolhimento
mentos sociais, direitos humanos, in- específicas para a População LGBTI-
clusive, internacionais e seus organis- QPA+ em todo o território brasileiro,
mos de defesa e garantia de direitos.
9 O estupro corretivo é uma tentativa de
Portanto, o Estado tem a obrigação “controlar o comportamento social ou sexual da
garantida na constituinte de cumprir vítima.” Ou seja, é quando o crime é cometido
na tentativa de “corrigir” uma característica da
esses códigos/leis, e ampliar esse de- vítima, como sua orientação sexual da vítima ou
bate para todo o País; principalmen- identidade de gênero. E acaba caracterizando
te quando as tratativas é de efetivar uma tortura declarada às identidades de gênero
e afetivos sexuais, por ser uma prática que fere a
o direito a uma vida livre de todo e dignidade humana.

110 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
mas a realidade brasileira não acom- ficidades de LGBTIQPA+´s. Óbvio
panhou as propostas das mesmas, e que há exceções mas ainda sabemos
inexiste Unidades nesse sentido. Atu- do pouco investimento social, mone-
almente em 2021 foi criada a 1ª Re- tário e político com uma série de er-
pública LGBT do Brasil, em 03 locais ros absurdos cometidos no momento
distintos no Distrito Federal. Estas da defesa e da garantia de direitos.
repúblicas estão vinculadas ao Esta-
Por fim, trocando em miúdos e no
do – Secretaria de Estado de Desen-
que foi proposto ao longo da constru-
volvimento Social – SEDES, em uma
ção dessa publicação, podemos con-
parceria com sociedade civil e uma
cluir de maneira muito triste, que as
entidade socioassistencial, uma re-
Políticas Públicas de Assistência So-
alidade desafiadora, porém neces-
cial para as pessoas LGBTIQPA+ são
sária e busca-se uma prática exito-
tão somente ainda um “tapa buracos”
sa. Avalio que é interessante replicar
e sobrevive de uma irrealidade e cujos
também essa possibilidade de outras
números de estatísticas/estudos ofi-
formas de se pensar o acolhimento
ciais de que pessoas mortas/assas-
institucional, para que as pessoas se
sinadas só crescem e hoje podemos
sintam morando em uma residência/
inclusive falar da existência da necro-
casa humanizada fazendo parte do
política10 na população LGBTIQPA,
seu processo de superar as violações
e não se conta sequer com o direito
de direitos, investidas em resgate a
à vida para os mínimos sociais básicos
autonomia, convívio social/coletivo,
das necessidades básicas da sobre-
relações afetuosas e fortalecimento
vivência humana. Mbembe no ensaio
de vínculos humanizados.
intitulado “Necropolítica”, parte da
Para tanto, é necessário reconhe- premissa “que a expressão máxima
cer que o debate sobre as opressões/ da soberania reside em grande medi-
violações de direitos às pessoas LGB- da, no poder e na capacidade de ditar
TIQPA+ é novo, no contexto da so- quem pode viver e quem deve mor-
ciedade brasileira, com a proposição rer”, razão pela qual “matar ou deixar
da criação de novas Políticas Públicas viver constituem os limites da sobera-
de Estado como um todo e também nia, seus atributos fundamentais.” As-
no campo da Assistência Social a se- sim, ao final e ao cabo, “ser soberano é
rem verdadeiramente efetivadas. Ex- exercer controle sobre a mortalidade
cepcionalmente, por outro lado, não
foi ainda possível algo mais maduro, 10 “...O necrobiopoder unifica um campo de
concreto, duradouro, expansivo com estudos que tem apontado atos contínuos
do Estado contra populações que devem
rebatimentos expressivos nas políti- desaparecer e, ao mesmo tempo, políticas de
cas sociais, sobretudo no SUAS, e em cuidado da vida. Dessa forma, proponho nomear
especial na PNAS que necessita ur- de necrobiopoder um conjunto de técnicas de
promoção da vida e da morte a partir de atributos
gentemente de uma revisão de con- que qualificam e distribuem os corpos em uma
teúdo e forma principial no que tange hierarquia que retira deles a possibilidade de
a abertura ao respeito à integralidade reconhecimento como humano e que, portanto,
devem ser eliminados e outros que devem
da diversidade humana e as especi- viver...” (BENTO, 2018)

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 111
e definir a vida como a implantação e BRASIL. Constituição da República
manifestação de poder.” Logo, neste Federativa do Brasil. Diário Oficial da
sentido, “a soberania é a capacidade República Federativa do Brasil, Brasí-
de definir quem importa e quem não lia (DF), 2012a. BRASIL. Presidência
importa, quem é ‘descartável’ e quem da República. Lei n. 8.742, de 07 de
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de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 113
ENTRE MOBILIZAÇÕES E RESISTÊNCIA: A LUTA
INDÍGENA PELA GARANTIA DE SEUS DIREITOS

Danilo Tupinikim1

Resumo: O artigo busca discutir as questões que envolvem o movimento indí-


gena e sua importância para a garantia de seus direitos, sobretudo no que tange
a legislação brasileira e as políticas públicas indigenistas. Pretende-se apresentar
a resistência indígena diante da atual realidade enfrentada por seus povos, em
um cenário de tentativas de retrocessos presente nos três poderes em que re-
flete no cenário violento vivido em seus territórios.
Palavras-chave: Legislação, movimento indígena, políticas públicas.
A realidade dos povos indígenas desde a invasão de seus territórios, sempre foi
de bastante luta e resistência. Territórios tomados, corpos dizimados e culturas
massacradas é um resumo superficial diante do histórico violento sofrido por es-
tes povos diante destes 522 anos. Deste a institucionalização deste território ba-
tizado como Brasil, políticas colonialistas, exploratórias e integracionistas sempre
estiveram em curso, muitas vezes colocando a destruição enquanto o caminho

1 Graduando em Ciência Política na Universidade de Brasília (UnB); E-mail: danilotupinikim@gmail.com.


para o desenvolvimento econômico e de genocídio contra seus povos. A
do mesmo e, perseguindo e crimina- resistência indígena e, posteriormen-
lizando aqueles que defendiam a pre- te, a consolidação do movimento in-
servação do meio ambiente, da vida dígena, desde o início do processo
e a importância do reconhecimento de colonização foi fundamental para
das pluralidades culturais. essas garantias.
Com a redemocratização do país Contudo, é necessário entender-
a partir da promulgação da Consti- mos e conceituar o que é o movi-
tuição de 1988, foram reconhecidos mento indígena, hoje consolidado e
diversos direitos sociais. Dentre seus reconhecido em âmbito nacional e in-
artigos, estão o Art. 231 que reconhe- ternacional. Assim, de acordo com o
ce aos povos indígenas “sua organiza- antropólogo indígena Gersem Baniwa
ção social, costumes, línguas, crenças e o reconhecimento entre as próprias
e tradições, e os direitos originários lideranças indígenas, o movimento
sobre as terras que tradicionalmen- indígena “é o conjunto de estratégias
te ocupam, competindo à União de- e ações que as comunidades e as or-
marcá-las, proteger e fazer respeitar ganizações indígenas desenvolvem
todos os seus bens” (MEDINA, 2021). em defesa de seus direitos e interes-
No Art. 232 da mesma Constituição, ses coletivos’’ (BANIWA, 2006, p. 58)
reconhece as organizações indígenas assim, para fins de diferenciação nos
enquanto partes legítimas para ocu- conceitos, Baniwa afirma que embora
par os órgãos jurídicos a fim de reivin- uma organização indígena seja parte
dicar seus direitos, conforme afirma o importante do movimento indígena,
Artigo: “Os índios, suas comunidades ambos significam diferentes coisas;
e organizações são partes legítimas no entanto, organização indígena “é a
para ingressar em juízo em defesa de forma pela qual uma comunidade ou
seus direitos e interesses, intervindo povo indígena organiza seus traba-
o Ministério Público em todos os atos lhos, sua luta e sua vida coletiva” (BA-
do processo” (MEDINA, 2021). As- NIWA, 2006, pp. 61-62).
sim, é garantido em Constituição os
Ciente dos referidos termos, é fun-
direitos dos povos indígenas, um im-
damental olharmos para a atual rea-
portante passo para a preservação e
lidade enfrentada pelos povos indí-
manutenção das tradicionalidades in-
genas e o quanto a organização e o
dígenas e, um sinal de cessar das po-
movimento indígena é fundamental
líticas de genocídio legitimadas pelo
na consolidação de seus direitos. É
Estado brasileiro.
essa resistência que refletiu na ga-
No entanto, é fundamental deline- rantia de que a população indígena
armos estes cinco séculos de lutas in- fosse assistida dentro do censo brasi-
dígenas, em que os direitos indígenas leiro realizado em 2010 pelo Instituto
só foram garantidos depois de muita Brasileiro de Geografia e Estatística
resistência contra as diversas tentati- (IBGE); o levantamento apontou que
vas de aniquilamento de seus corpos existem aproximadamente no país

116 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
cerca de 817.963 indígenas, divididos global, do qual o Brasil é parte desde
em 502.783 que vivem na zona rural 25 de julho de 2002” (MAZZUOLI,
e 315.180 vivendo em zonas urbanas, 2021). Este PDL representa uma das
demonstrando em conjunto a pre- diversas tratativas advindas do Con-
sença indígena em todos os estados gresso Nacional no que tange às di-
brasileiros e o Distrito Federal (TERE- versas tentativas de retrocessos no
NA, 2021), um importante passo para contexto político brasileiro atual. A
a visibilidade da existência indígena. Articulação dos Povos Indígenas do
Brasil (APIB) no Dossiê Internacional
No entanto, é notável que o colo-
de Denúncias dos Povos Indígenas do
nialismo ainda permeia as instituições
Brasil lançado em 2021, lista os princi-
do Estado brasileiro. São tempos
pais projetos que ameaçam de forma
sombrios em que a própria Constitui-
mais aguda os direitos originários ga-
ção brasileira sofre ataques constan-
rantidos, são eles:
tes por parte de representantes polí-
ticos e que, conjuntamente, soma-se O PL 490/2007 que propõe a
às diversas tentativas de retrocessos transferência da competência de de-
no que diz respeito aos direitos indí- marcação das terras indígenas para o
genas já garantidos. São exemplos Congresso Nacional e viola o direito
os diversos PL’s vindo do Poder Le- de usufruto exclusivo das terras indí-
gislativo em que visa o desmonte genas; o PL 984/2019 que pretende
das políticas ambientais, abertura reabrir uma rodovia cortando a última
das terras indígenas para o garimpo grande reserva da Mata Atlântica do
ilegal, legaliza a grilagem de terras, interior do país em que preserva uma
autoriza grandes empreendimentos grande biodiversidade importante do
nos territórios indígenas, bem como bioma; o PL 2633/2020, mais conhe-
fere de todas as formas os tratados cido como PL da grilagem, busca o
nacionais e internacionais firmados, enfraquecimento do controle sobre a
como a Convenção 169 da Organi- ocupação das terras públicas da União,
zação Internacional do Trabalho, em legalizando e incentivando a grilagem
que salvaguarda aos povos indígenas e crimes ambientais - especialmen-
o direito à consulta livre, prévia e in- te na Amazônia -, assim como enfra-
formada no que diz respeito aos seus quecendo as regras de regularização
territórios. A referida, corre grandes ambiental; e o PL 191/2020, autoriza
riscos visto que em 2021, o Deputa- a exploração das terras indígenas por
do Federal Alceu Moreira (MDB/RS) grandes projetos de infraestrutura e
escreveu um Projeto de Decreto Le- mineração, abrindo espaço para rea-
gislativo de número 177/2021 em que lização de pesquisa e de lavra de re-
“pretende autorizar o Presidente da cursos minerais e de hidrocarbonetos,
República a denunciar a importan- para o aproveitamento de recursos
te Convenção nº 169 da Organiza- hídricos visando à geração de energia
ção Internacional do Trabalho, que é elétrica em terras indígenas e institui a
um texto fundamental sobre direitos indenização pela restrição do usufru-
dos povos indígenas e tribais em nível to de terras indígenas.

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 117
Diante de todo este cenário, ainda Notadamente, diante dessas ten-
encontra-se nas mão do Supremo Tri- tativas de retrocesso, os povos indí-
bunal Federal (STF), o Recurso Extra- genas armam-se com seus cantos e
ordinário (RE) nº 1.017.365 ou, a Tese unem-se anualmente em Brasília para
de Marco Temporal, um julgamento participação do Acampamento Terra
que definirá o futuro dos processos Livre, maior mobilização nacional in-
de demarcação das terras indíge- dígena e de grande impacto político,
nas mas que já vem impactando de para fazer diversas denúncias da rea-
diversas formas a realidade indígena. lidade em seus territórios, bem como
O debate iniciou-se a partir do pedi- para impedir os ataques aos seus di-
do de reintegração de posse movi- reitos garantidos e demandar melho-
do pelo governo do estado de Santa rias nas políticas indigenistas.
Catarina contra os povos Xokleng,
Nestes últimos anos também foi
Kaingang e Guarani da Terra Indígena
bastante significativo o déficit no que
Xokleng La Klaño, no referido estado.
diz respeito às demarcações das ter-
Em 2021 o RE foi considerado pelos
ras indígenas no Brasil. Segundo Tere-
ministros do STF um caso de “Re-
na (2021) “das 1.298 Terras Indígenas
percussão Geral”, o que significa que
(TISs) no Brasil, 829 (63%) apresen-
terá caráter vinculante e terá impacto
tam alguma pendência do Estado
em todos os casos de demarcações
para que seu processo demarcatório
no Brasil. Segundo a APIB,
seja finalizado. E ainda, destas 829
Está em jogo, neste julgamento, o debate um total de 536 terras (64%) não ti-
sobre as teses do Indigenato (Direito
Originário) e do Fato Indígena (Marco veram ainda nenhuma providência
Temporal), que a bancada ruralista insiste adotada pelo Estado”. Cabe lembrar
em consagrar, argumentando que os
indígenas somente teriam direito às suas que a CF 88 fixou o prazo de cinco
terras se as tivessem em sua posse física em anos para a demarcação de todas as
5 de outubro de 1988, data da promulgação
de nossa Constituição. Eventual vitória terras indígenas do país - o que não
desses argumentos implicará a anulação
de procedimentos de demarcação e o foi feito. Além disso, desde o ano de
aumento de conflitos e de atos de violência 1985, somente os presidentes Michel
contra os povos e comunidades indígenas,
além de diversos atos ilícitos como garimpo, Temer e Jair Bolsonaro não demar-
mineração, desmatamento e grilagem, caram qualquer terra indígena (AU-
incentivados, inclusive, pelo atual governo
(APIB, 2021, p. 23). GUSTO, 2020); cabe ressaltar que
este último, afirmou em seu discurso
O julgamento em questão, que es- de campanha que não demarcaria
tava previsto para voltar à votação no sequer 1 centímetro de terra indígena
dia 23 de junho de 2022, foi retirado e, assim o fez. O presidente cumpriu
de pauta pelo Presidente do STF. Ju- com o que disse, ainda foi além. Em
ristas analisam que uma possível jus- seus diversos discursos depois de
tificativa é o atual contexto político eleito, este incentivou e legitimou a
que anda incerto, bastante fragilizado violência contra os povos indígenas.
e polarizado, e com um grande risco
No que tange às demarcações de
de atentado contra nossa tão nova
terras indígenas, salienta-se que esta
democracia.

118 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
é um direito dos povos indígenas e vários outros casos, o mais recente e
que foi garantida em 1988, com a pro- que tomou repercussão internacional
mulgação da Constituição. Portanto, foi o caso do indigenista Bruno Pereira
não se trata de algum governo aplicar e do jornalista britânico Dom Phillips.
ou não a política, é um dever, e negar Bruno trabalhava na reserva indíge-
este direito confrontando a lei, é con- na do Vale do Javari, especialmente
fessar ser contra a vida indígena. com indígenas isolados e recém con-
tatados e defendia a expulsão de in-
Neste cenário de retrocesso e ata-
vasores e garimpeiros ilegais; Bruno
que aos direitos indígenas é notável o
era referência na proteção das co-
aumento da perseguição, violência e
munidades da região. Dom escreveu
morte dos defensores dos direitos in-
várias reportagens sobre as questões
dígenas e ambientais. A flexibilização
ambientais do país, o avanço do des-
da legislação ambiental e a impunida-
matamento e os problemas enfren-
de presentes, levou o Brasil ao título
tados pelas comunidades indígenas.
de um dos países mais perigosos do
Ambos foram assassinados brutal-
mundo para defensores e ativistas
mente em campo, na luta em defesa
ambientais (ILHÉU, 2022). Entrando
dos territórios e da vida indígena.
neste índice de violências seguido de
assassinatos estão Ari Uru-Eu-Wau- Assim, como afirma a APIB,
-Wau que integrava um grupo auto-
As ameaças e ataques sofridos pelos povos
-organizado de vigilância, que regis- indígenas têm sido perpetrados, em sua
trava e denunciava extrações ilegais grande maioria, pelo governo Bolsonaro,
seja pela manifestação pública de discurso
de madeira dentro de seu território de ódio e mensagens racistas contra
os povos originários, seja no apressado
em Rondônia, ele foi encontrado processo de destruição das políticas e dos
morto com sinais de espancamento órgãos públicos que deveriam cuidar dos
direitos indígenas e socioambientais (APIB,
em abril de 2019; Maxciel Pereira dos 2021, p. 15).
Santos, servidor da Fundação Nacio-
nal do Índio e que atuava como fis- Neste sentido é perceptível a omis-
calizador na Base do Rio Ituí-Itaquaí, são do poder público no que diz res-
no Vale do Javari, foi assassinado a peito à busca de medidas para elimi-
tiros em Tabatinga (AM) em setem- nar de vez este histórico de violências.
bro de 2019; Paulo Paulino Guajajara, Pelo contrário, as instituições públi-
era indígena e integrava em conjun- cas que deveriam defender estes
to a outros indígenas, um grupo que indivíduos, passaram a persegui-las
atuava na preservação da mata e do por não ir de encontro com suas ide-
seu povo, combatendo a extração de ologias neoliberais e exploratórias
madeira na TI Araribóia, no estado do que seu governo prega. A Fundação
Maranhão, foi morto com um tiro nas Nacional do Índio (FUNAI), “órgão
costas em novembro de 2019; Zezi- do Estado brasileiro responsável pela
co Rodrigues Guajajara, denunciava proteção e promoção dos direitos
a derrubada da floresta e o roubo de dos povos indígenas, incumbido de
madeira de sua região, foi assassina- etapas essenciais nos processos de
do a tiros em março de 2020; dentre demarcação de terras” (APIB, 2021,

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 119
p. 16), no atual governo foi aos pou- visando o lucro individual utilizando
cos sucateada e militarizada, e passou como justificativa o desenvolvimento
a perseguir lideranças indígenas ten- econômico e interesses do país. Clara-
tando de todas as formas intimidá-las. mente esta é uma boa justificativa. Em
um momento em que o Congresso é
No que diz respeito à omissão do
ocupado e comandado pelos interes-
governo frente aos diversos ataques
ses do agronegócio, ultraconserva-
e violações de direitos humanos co-
dorismo e neoliberalismo, explorar ao
metidos contra os povos indígenas,
máximo os recursos naturais parece
nota-se que em meio ao avanço da
ser o melhor caminho. Enquanto isso,
pandemia a ausência de medidas es-
a invasão de grileiros, garimpeiros ile-
tratégicas para combater o avanço
gais, o desmatamento, poluição dos
dentro dos territórios foi quase nula,
rios, monocultura, sequestro, estupros
o que fez com que o vírus levasse
e assassinatos é uma realidade coti-
cerca de 1,3 mil indígenas e atingin-
diana nas comunidades indígenas de
do cerca de 162 povos. Esse descaso
todas as regiões do país.
fez com que a APIB e a CONAQ (Co-
ordenação Nacional de Articulação No entanto, a atuação indígena,
de Quilombos) entrassem com uma em sua maioria das vezes na forma de
ação no STF denunciando a omissão frente de defesa, foi e continua sen-
do Estado frente à saúde dos povos do fator essencial na defesa de seus
originários e tradicionais (APIB, 2021, territórios e das florestas. Trabalhan-
pp. 21-22). Além disso, a atuação in- do de forma cooperativa nos territó-
dígena dentro de seus próprios terri- rios, indígenas e suas organizações
tórios foram imprescindíveis para que regionais de base desenvolveram
mais mortes ocasionadas pelo Coro- diversas ações em seus territórios
navírus não viessem a acontecer. Foi como forma de combate à pande-
a tradicionalidade indígena e a garan- mia, são destaque: Desenvolvimento
tia da vacina um dos principais fato- de aplicativo para monitoramento de
res que ceifou o vírus e sua letalidade casos de Covid-19, produção de ma-
dentro das comunidades. terial informativo; entrega de mate-
riais de saúde, alimentação e EPI´s,
Assim, é fundamental olharmos cri-
estruturação das Unidades de Aten-
ticamente a quem o Estado brasileiro
ção Primária Indígena (UAPIs), plano
está servindo e quem realmente está
de ação emergencial
protegendo os territórios indígenas.
No meio de uma pandemia, diversos de combate às queimadas ilegais,
povos indígenas tiveram que deixar ações de reflorestamento e recu-
suas aldeias para mobilizarem-se no peração ambiental, instalação e ma-
centro de Brasília contra as diversas nutenção de barreiras sanitárias. É
medidas anti-indígenas que vêm sen- importante ressaltar que esta foi uma
do tomadas no parlamento, ao mes- iniciativa crucial para evitar um núme-
mo passo que, figuras políticas apoiam ro maior de óbitos indígenas visto que
abertamente a exploração da terra estes se encontram entre os povos

120 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
que possuem uma alta vulnerabilida- dos povos indígenas é manter e ga-
de em relação à viroses e infecções rantir os direitos já adquiridos, além
respiratórias (CRUZ, 2021, p. 2). de lutar por outros direitos que ainda
precisam ser conquistados para con-
O relatório de impacto da COVID19
solidar a perspectiva étnica de futuro,
nos povos indígenas organizado pela
enterrando de vez a ameaça de ex-
APIB em 2020, apontou a presença
tinção desses povos”.
de “conflitos, assassinatos, ataques,
invasões e perseguições sofridas pe- O autor supracitado ainda ressal-
los povos indígenas no contexto da ta a invisibilidade indígena diante da
pandemia. Em 2021, cresce a escala sociedade nacional e, o quanto isso é
das operações de invasão, persegui- perigoso para a vida indígena:
ção e usurpação dos territórios indí-
Na cabeça de muitas pessoas no Brasil,
genas, culminando em dois ataques os povos indígenas ainda são vistos como
diretos às aldeias indígenas do povo seres transitórios, que algum dia deixarão de
existir, seja por meio de processos naturais
Yanomami e Munduruku” (APIB, 2021, ou induzidos pelas políticas de intervenção.
Neste sentido, não é coincidência a
p. 28). Nesse sentido, é fundamental existência de mais de uma centena de
entendermos que a relação entre os propostas de emendas constitucionais
(PECs) no Congresso Nacional que tentam
povos indígenas e a terra vai muito negar ou reduzir os direitos indígenas
além do espaço físico e o usufruto de conquistados à custa das vidas de centenas
de lideranças indígenas do Brasil (BANIWA,
seus bens naturais; “os povos indíge- 2006, p. 84).
nas brasileiros existem a partir de sua
relação com o território, que é o es- Ainda, segundo o antropólogo in-
paço sobre o qual eles podem proje- dígena, também é um desafio para os
tar e exercer suas formas de vida, sua povos indígenas “garantir definitiva-
organização social, política e cultural” mente e em determinadas condições
(APIB, 2021, p. 19). No entanto, atacar sociojurídicas ou de cidadania o seu
seus territórios, é atacar diretamente espaço na sociedade brasileira con-
suas vidas. temporânea, sem necessidade de
abrir mão do que lhe é próprio: as cul-
Desmontar as políticas públicas
turas, as tradições, os conhecimentos
indigenistas e flexibilizar a legislação
e os valores” (BANIWA, 2006, p. 85).
ambiental é apoiar o cenário que “ex-
põe os povos tradicionais às frequen- Quando falamos na especificidade
tes ameaças de morte, assassinatos, nos modos tradicionais de vida dos
invasões, destruição de seu território povos indígenas, nos referimos a um
e contaminação de recursos natu- modelo que vai contra a organização
rais” (APIB, 2021, p. 20). O principal social, política e econômica dos não-
desafio para os povos indígenas na -indígenas e, que muitas vezes entra
atualidade é lidar com as instituições, em conflito diante de suas formas de
o capitalismo neoliberal e o retro- ver e vivenciar o mundo. Baniwa afir-
cesso que vem sendo legalizado nos ma que,
três poderes. Como afirma Baniwa
O modelo de organização social, no formato
(2006, p. 84), “a principal dificuldade de associação institucionalizada, não
respeita o jeito de ser e de fazer dos povos

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 121
indígenas. Os processos administrativos, com efeito, esses povos passam a se-
financeiros e burocráticos, além de serem
ininteligíveis à racionalidade indígena, rem ameaçados de todas as formas;
confrontam e ferem os valores culturais
dos seus povos, como o de solidariedade, essas ameaças advêm da corriqueira
generosidade e democracia (BANIWA, “pressão dos interesses econômi-
2006, p. 82).
cos do agronegócio, da mineração e
pelos demais megaprojetos de de-
Caroline Barbosa Contente No- senvolvimento do Estado brasileiro”
gueira e Débora Silva Massulo trazem (MASSULO; NOGUEIRA, 2019). Es-
o contexto histórico de ocupação e tes povos, no entanto, passam a ser
colonização do território brasileiro, vítimas das instituições a partir de po-
em que, inicialmente de cunho explo- líticas de integração indígena ou de
ratório dos recursos naturais a partir negação de seus direitos tradicionais;
da mão-de-obra escrava indígena formas de etnocídio e genocídio que
e africana. A partir de uma análise tinham e ainda tem como objetivo
desde a perspectiva do colonialismo invalidar direitos territoriais e modos
interno, as autoras discutem a infe- de vida tradicionais indígenas (LIMA,
riorização dos povos - cuja cultura 1995 apud (MASSULO; NOGUEIRA,
divergente ao modelo de desenvolvi- 2019). De acordo com Massulo e No-
mento e cultura europeia -, e que foi gueira, mesmo o Brasil tendo adota-
utilizado para exploração dos corpos do o Estado Democrático de Direito a
dissidentes à essa realidade; as au- partir da Constituição de 1988, o colo-
toras trazem críticas ao etnocentris- nialismo interno perpassa as diversas
mo impregnado dentro dessa visão instâncias e são responsáveis por sub-
(MASSULO; NOGUEIRA, 2019). meter os povos indígenas à exclusão
Diante disso, em conjunto à insti- diante do Estado. Segundo Casanova
tucionalização dos territórios, o mo- (2007 apud MASSULO; NOGUEIRA,
delo europeu prevaleceu diante das 2019), o colonialismo interno
independências dos Estados-Nação, é a compreensão crítica de que as estruturas
dando formas e continuidade às es- coloniais internas que prevaleciam no
domínio colonial, persistem e prevalecem
truturas coloniais, estabelecendo-se também no domínio burguês, ou seja,
nos processos de tomada de decisão, no domínio dos Estados-Nação que se
consolidaram nas dependências na América-
bem como na construção dos campos Latina, influenciadas pelas revoluções
político, econômico e social do Brasil. burguesas do século XVIII (CASANOVA,
2007 apud MASSULO; NOGUEIRA, 2019).
Essa reprodução europeia, do mode-
lo civilizacional, consequentemente,
Assim, colonialismo interno, como
trouxe consigo as desigualdades so-
Casanova explica (2007, p. 432 apud
cioeconômicas e problemas quanto à
MASSULO; NOGUEIRA, 2019), refe-
exploração dos recursos naturais do
re-se à conquista em que as popula-
país (MASSULO; NOGUEIRA, 2019).
ções nativas não são exterminadas,
Diante deste processo, os modos mas passam a fazer parte do Estado
de vida dos povos originários passam colonizador, em que o etnocentrismo2
a ser visto como obstáculo para o mo-
delo desenvolvimentista do Brasil, e 2 (LÉVI-STRAUSS, 1976).

122 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
e o eurocentrismo3 fazem parte das No que se refere à luta indígena
questões sociais, econômicas, jurídi- em defesa da demarcação de seus
cas e institucionais do mesmo. Posto territórios, contra o desmatamento,
isso, estes povos, que ao longo des- grilagem de terras, garimpo ilegal,
te processo sofrem a marginalização suicídio, estupro, poluição dos rios,
diante da sociedade hegemônica, etc., a resistência indígena não parou;
são obrigados a ir de encontro às nor- em meio à pandemia esses proble-
mas institucionalizadas a partir da óti- mas não só continuaram a acontecer,
ca eurocêntrica. como também aumentaram-se os ní-
veis de ocorrência. Muitas vezes ten-
Sob seu território tomado e go-
do que se expor ao vírus da Covid-19,
vernado por outro povo, formado
diversos povos indígenas encara-
por elites políticas e econômicas do-
vam os problemas citados enquanto
minantes, que descrevem o que são
um vírus mais contagioso e perigoso
direitos e deveres a partir de seus en-
dentro de seus territórios que o pró-
tendimentos, e que atinge todos des-
prio Coronavírus e o agravamento da
te território, os povos inferiorizados
pandemia.
passam a ser “excluídos das decisões
políticas, submetidos à dominação Sendo assim, os povos indígenas
dos grupos que detém o poder esta- durante todo o processo de colo-
tal” (MASSULO; NOGUEIRA, 2019). nização, resistiram às diversas ten-
Neste sentido, “a participação demo- tativas de aniquilamento de suas
crática é limitada, sem respeito aos culturas e existências por meio de
costumes, tradições, línguas e for- diversas estratégias; uma delas tor-
mas específicas de determinar a po- nou-se fundamental para a conso-
lítica dos povos indígenas. Da mesma lidação e reconhecimento de seus
maneira, e, consequentemente, os direitos: o movimento indígena or-
direitos destes povos são determina- ganizado.
dos pelo governo central do Estado”
No entanto, é fundamental perce-
(MASSULO; NOGUEIRA, 2019).
bermos a origem do Estado brasileiro
Diante dos três poderes – Exe- e como este lida com a tradicionalida-
cutivo, Legislativo e Judiciário – as de indígena, ao passo que, em muitos
participações (quando minorias con- momentos da história, este desem-
seguem chegar nestes postos) limi- penhou um protagonismo no que diz
tam-se aos aparelhos institucionais respeito à reprodução de violências
de base colonialista, que impede de sofridas pelos indígenas.
diversas formas proposições volta-
das à garantia de uma qualidade de
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20 jun. 2022. MASSULO, Débora Silva; APIB (apiboficial.org)>. Acesso em:
NOGUEIRA, Caroline Barbosa Con- 15 jun. 2022.
tente. A teoria do indigenato vs teoria

124 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
Políticas públicas para população LGBTI+ no
âmbito dos 03 poderes do Distrito Federal

Talita Victor

Este artigo propõe traçar um panorama, no âmbito dos poderes Legislativo,


Executivo e Judiciário, das principais legislações (ou proposições legislativas),
políticas públicas e julgados (ou acordos) que impactaram diretamente a popu-
lação LGBTI+ do Distrito Federal nas últimas décadas. Para fins de análise com-
parativa, fazem parte deste estudo tanto matérias, movimentos ou posições fa-
voráveis a esta população, quanto aquelas contrárias. Estas, denominamos anti
direitos e aquelas, pró-cidadania.

A lei anti-homofobia do DF: um roteiro de duas décadas

O primeiro caso analisado possivelmente seja o mais emblemático do DF, por


sua amplitude e capacidade de mobilizar os três poderes, em diferentes mo-
mentos das últimas três décadas. Trata-se da Lei nº 2.615/2000, originada do
Projeto de Lei nº 951/19991, que “determina sanções às práticas discriminatórias

1 No nível nacional, o projeto de lei conhecido como PLC 122/06, que foi protagonista da agenda legislativa
em razão da orientação sexual das param o Buriti após ele, a norma teve
pessoas”, de autoria da deputada dis- sua eficácia limitada por muito tempo.
trital Maria José Maninha e coautoria Tal regulamentação se deu apenas
da deputada Lucia Carvalho e dos dezessete anos depois, em 23 de ju-
deputados Chico Floresta e Rodrigo nho de 2017, na gestão do Governador
Rollemberg. Rodrigo Rollemberg (2015-2019), por
meio do Decreto nº 38.292/20173.
Importa salientar que a lei distri-
tal, uma das primeiras no país a re- Em 2013, contudo, faz-se neces-
conhecer a discriminação baseada sário destacar, o Governador Agnelo
na orientação sexual2, prevê sanções Queiroz (2011-2015) tentou, sem su-
de natureza administrativa, tais como cesso, regulamentar a lei, por meio
advertência, multa, suspensão ou do Decreto nº 34.350, de 09 de maio.
cassação do alvará de funcionamen- Mas cedeu à pressão de aliados anti-
to, e ainda inabilitação para contratos, direitos, base de deputados distritais
acesso a créditos, isenções, remis- ligados à bancada autodenominada
sões e anistia. evangélica. E, no dia seguinte, publi-
cou a revogação do ato. A justificati-
Já sua regulamentação, que deve-
va foi de que teria havido “um erro de
ria prever a criação de mecanismos e
tramitação do gabinete”.
definição de competência para rece-
bimento de denúncias, formas de apu- E assim como aconteceu em 2013,
ração, garantia de ampla defesa aos também em 2017, o ato do Executivo
infratores, tudo isso cabia ao Poder provocou imediata reação do Legis-
Executivo e deveria ter sido feita em lativo. Mas, desta vez, o Governa-
sessenta dias, pelo então Governa- dor, que era deputado em 2000 e
dor Joaquim Roriz (1999-2006). Mas um dos autores do projeto de lei que
este, em sentido contrário, impôs veto originou a Lei “anti-homofobia”, aca-
total à lei, cabendo à Câmara Legisla- bou não cedendo à pressão conser-
tiva (CLDF) derrubar o referido veto, vadora de sua base. Por isso, pouco
para que a lei pudesse entrar em vigor tempo depois da publicação do seu
a partir do dia 28 de julho de 2000. decreto, um grupo de parlamentares
apresentou e aprovou, no mesmo
Todavia, sem a necessária regula-
dia, em turno único, por um placar
mentação, ignorada por Joaquim Roriz
de 9 votos a 6, o Projeto de Decreto
e pelos cinco governadores que ocu-
Legislativo (PDL 300/30174), que se
propunha a sustar os efeitos do ato
LGBT na primeira década deste século, é do ano
de 2001 e se origina do PL nº 5.003/2001, de
regulamentar do governador.
autoria da deputada federal Iara Bernardi.
2 Apenas o Rio de Janeiro (RJ) tem legislação 3 Disponível em: http://www.sinj.df.gov.br/sinj/
anterior, que é a Lei nº 2.475/1996. No estado Norma/4700dbbcc107488cb23eec58aa2abd9a
de São Paulo (SP), a legislação semelhante a /Decreto_38293_23_06_2017.html
esta é do ano de 2001 - trata-se da Lei estadual
nº 15.082/2001. No Rio Grande do Sul, Lei nº 4 Disponível em: https://legislacao.cl.df.
11.872/2002. Minas Gerais, Lei nº 14.170/2002. g ov. b r/ Le g i s l a c a o/co n s u l t a P ro p o s i c a o -
Paraíba, Lei nº 7.309/2003. 6!300!2017!visualizar.action

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 127
O PDL, transformado no Decreto Territórios (TDJFT) pelo Governador
Legislativo nº 2.146/2017, teve auto- Rollemberg e pelo Partido dos Traba-
ria dos deputados Rodrigo Delmas- lhadores (PT). E também perante o
so (líder do governo, à época), Pas- Supremo Tribunal Federal (STF), por
tor Júlio Cesar (ex-líder do governo) meio de ADI 5740 movida pelo Parti-
e Bispo Renato, todos da bancada do Socialismo e Liberdade (PSOL) e
evangélica. Deram parecer favorável ADI 5744, também movida pelo Go-
a deputada Celina Leão e o deputa- vernador do DF.
do Raimundo Ribeiro. Para garantir
Antes, ainda, em janeiro daque-
os nove votos, somam-se a esses os
le ano, o Ministério Público do DF e
deputados Cristiano Araújo, Weling-
Territórios (MPDFT), provocado por
ton Luiz e a deputada Sandra Faraj,
diversas organizações e movimen-
também pastora evangélica. Con-
tos sociais pró-cidadania LGBTI+, já
trariamente à aprovação, votaram os
havia ajuizado ação civil pública, em
distritais Agaciel Maia, Luzia de Paula,
sede da qual o TJDFT (TJDFT) de-
Professor Israel, Ricardo Vale e Telma
terminou, em outubro de 2017, que o
Rufino, além do presidente da Casa,
Governo do DF aplicasse imediata-
Joe Valle.
mente a Lei Distrital n° 2.615/2000,
Em sua justificativa, os deputados declarando que esta não possuía
autores da proposição afirmam que qualquer vício.
regulamentar uma lei que pune a ho-
A partir dessa confluência de ações,
mofobia fere o dever constitucional
vindas de diferentes atores institucio-
do Estado de proteger a família, uma
nais e da sociedade civil, em novem-
vez que
bro de 2020, o STF decidiu, por una-
é no grupo familiar que se inicia o nimidade, pela inconstitucionalidade
desenvolvimento psicológico, e também
o primeiro contato com a sociedade (...) o do decreto da CLDF. Em seu voto, a
grupo familiar, pais e filhos, são responsáveis ministra relatora Carmen Lúcia afirma
pela forma como veremos o mundo no
futuro (...) não podemos permitir que a que este não possui “qualquer funda-
influência da família na sociedade seja mento constitucionalmente legítimo”;
desvalorizada, ela é quem define nossos
princípios, o que entendemos como certo que se fundamenta “apenas em consi-
e errado e, principalmente, como nos
relacionamos com os integrantes de outras derações genéricas sobre proteção à
famílias (...) (AJUSTAR CITAÇÃO) família” e; por fim, que “atenta contra
os princípios da dignidade da pessoa
Desse modo, tanto a forma quanto humana e da igualdade, e importa ina-
o conteúdo dessa manobra, flagran- ceitável retrocesso social na proteção
temente inconstitucional, também contra condutas discriminatórias em
provocaram reação da sociedade, ve- razão da orientação sexual das pesso-
ículos de comunicação e movimentos as no Distrito Federal”5
pró-cidadania LGBTI+. A votação da
CDLF soou como golpe e foi pron- 5 Disponível em: https://stf.jusbrasil.com.
tamente questionada perante o Tri- b r/ j u r i s p r u d e n c i a / 1 1 3 6 2 2 2 6 74 /a c a o -
direta-de-inconstitucionalidade-adi-5740-
bunal de Justiça do Distrito Federal e d f - 0 0 07 2 7 9 - 5 5 2 0 1 7 1 0 0 0 0 0 0/ i n t e i ro -
teor-1136222692

128 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
Feita essa descrição inicial de todo LGBTS (lésbicas, gays, bissexuais,
o roteiro que se produziu em torno travestis, transexuais e simpatizan-
da “lei anti-homofobia” no DF, pas- tes) de Brasília, evento que ocorre há
sa-se elencar outras iniciativas, ainda 23 anos na capital.
no âmbito do Poder Legislativo local,
Em outra frente de atuação, na es-
que permearam o debate na CLDF.
fera do Direito Administrativo, a Lei nº
Algumas, transformadas em lei; ou-
5.448/2015, que tem origem em pro-
tras, ainda em fase de tramitação.
posição da deputada Arlete Sampaio,
estabelece cláusula de proibição de
O debate legislativo pró- conteúdo discriminatório contra a
cidadania LGTI+ mulher nos contratos de aquisição de
bens e serviços pelo Distrito Federal.
No que se refere às normas que Nesta lei, o conteúdo homofóbico
integram o ordenamento jurídico lo- aparece como um tipo específico de
cal, é importante destacar a Lei nº discriminação, que constitui motivo
4.374/2009, que tem origem em para rescisão do contrato e aplicação
proposição da deputada Erika Kokay de multa.
e insere no calendário oficial do DF o
Dia de Combate à Homofobia, insti- Em 2011, a deputada Rejane Pitan-
tuído em 17 de maio. Recentemente, ga chegou a apresentar projeto que
a lei foi atualizada, a partir de propo- determinava que órgãos da Adminis-
sição do deputado Ricardo Vale, e tração Pública garantissem o uso do
passa tratar de “lgbtfobia” ao invés de nome social, mas a matéria, apesar
apenas “homofobia”. de aprovada em primeiro turno pelo
Plenário, acabou indo ao arquivo.
É importante registrar que também
são de autoria da deputada Erika Mais recentemente, foi aprovada
Kokay o projeto de lei, do ano de a Lei nº 6.804/2021, que tem origem
2003, arquivado, que buscava instituir em proposição de autoria do depu-
o dia 28 de junho como o dia do tado Fábio Félix, e dispõe sobre o
orgulho homossexual no DF; o projeto respeito ao uso do nome social nas
de lei, do ano de 2003, também lápides e nos atestados de óbito de
arquivado, que dispunha sobre a travestis, mulheres transexuais, ho-
implantação pela Secretaria de Saúde mens transexuais. O descumprimen-
de serviços de apoio psicológico aos to da norma implica em multa cujos
pais de homossexuais, adolescentes e valores devem ser revertidos para o
parentes próximos. custeio de políticas públicas de pro-
moção de direitos das pessoas trans
Ainda sobre o calendário oficial, e combate à transfobia. Isto porque,
existe também a Lei nº 6.538/2020, o direito à identidade de gênero é
que tem origem em proposição do constantemente violado, mesmo
deputado Chico Vigilante e inclui no após a morte, o que apaga a memória
calendário oficial de eventos do Dis- de pessoas trans e travestis.
trito Federal a Parada do Orgulho

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 129
Aqui, cumpre ressaltar que Fábio que dispõe sobre a inclusão de conte-
Félix é o primeiro deputado distri- údos dirigidos à população LGBT na
tal abertamente gay e seu primeiro programação da Semana Distrital de
exercício de mandato parlamentar Valorização da Vida por meio de pa-
(2019-2023) tem gerado, além de lestras, debates, seminários, audiên-
leis pró-cidadania LGBTI+, uma série cias públicas, esclarecimentos, propa-
de proposições e debates engajados, gandas publicitárias e distribuição de
por meio inclusive da Frente Parla- folhetos informativos e explicativos.
mentar LGBTI+ e do Seminário LGB-
E, ainda, em enfrentamento direto
TI+ da CLDF, realizado anualmente
ao Governador Ibaneis, que vetou a
desde 2019. Além disso, em sua ges-
lei aprovada e teve este veto derru-
tão à frente da presidência da Comis-
bado pela Casa, destacamos a Lei nº
são de Direitos Humanos, o número
167/2019, que dá o nome de Marielle
de denúncias de LGBTIfobia aumen-
Franco à praça localizada nas imedia-
tou em 54,5%.
ções da “Estação Galeria” do metrô,
Merece destaque também o rela- no Setor Comercial Sul. Simbolica-
tório final da CPI do Feminicídio6, que mente, o veto do Governador Ibaneis
o parlamentar conduziu, ao lado da foi derrubado na data de mobilização
deputada Arlete Sampaio. O relatório nacional em memória dos mil dias da
é produto de uma série de audiências execução da vereadora carioca, ne-
e diligências, e, dentre diversas reco- gra, defensora dos direitos humanos
mendações, enfoca o lesbocídio e o e também ativista LGBTI+.
transfeminicídio como faces especí-
Acerca dos projetos de lei ou pro-
ficas da violência de gênero, sobre as
postas de emenda à lei orgânica7 que
quais faltam informações direciona-
impactam a população LGBTI+, ainda
das. Para tanto, recomenda ao Exe-
em fase de tramitação na CLDF, des-
cutivo a formulação, coordenação e
tacamos os seguintes:
articulação de políticas públicas que
incorporem noções transversais e in-
tersetoriais de enfrentamento ao ma- O debate legislativo
chismo, ao racismo, à lesbofobia e à antidireitos
transfobia.
Na última década, em todo o país,
Outras leis que têm origem em pro- foi possível observar inúmeras inicia-
posições de autoria do deputado Fá- tivas que buscavam combater uma
bio Félix são: a Lei nº 6.503/2020, que suposta “ideologia de gênero”, bem
assegura o respeito ao nome social como instituir um conjunto de regras
nos formulários de inscrição dos con- proibitivas em formato de progra-
cursos públicos; e a Lei nº 6.707/2019, ma nacional, com versões adaptadas

6 Disponível em: https://www.cl.df.gov.br/-/ 7 Nesta pesquisa, a metodologia definida para


cpi-do-feminic-c3-addio-aprova-relat-c3- proposições acompanhadas não contempla
b3rio-final-que-ser-c3-a1-encaminhado-a- proposições como Indicações ao Executivo;
autoridades-do-df Requerimentos, Moções; Sugestões.

130 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
Tabela 1. Principais proposições pró-cidadania LGBTI+ na CLDF

Projeto Autoria Ementa Situação


Dispõe sobre a reserva de vagas
de emprego, aprendizagem pro-
fissional ou estágio para travestis, Designada relatora Júlia Lucy
PL 960/2020 Fábio Félix mulheres e homens transexuais nas na Comissão de Economia,
empresas privadas que recebem Orçamento e Finanças
incentivos fiscais do Distrito Fede-
ral, e dá outras providências.
Dispõe sobre penalidades a serem
aplicadas a torcedores, clubes e
seleções de futebol cujas torcidas, Designado relator Fábio Felix
Leandro
PL 1945/2021 Diretorias ou equipes praticarem na Comissão e Assuntos So-
Grass
atos de racismo, injúria racial e/ou ciais
LGBTfobia em estádios do Distrito
Federal
Cria o Dia do Testamento e da
Memória no Calendário Oficial de
Designado relator Leandro
Eventos do Distrito Federal a ser
PL 1932/2021 Fábio Félix Grass na Comissão de Edu-
comemorado no dia 23 de outubro
cação, Saúde e Cultura
e dispõe sobre o incentivo às mani-
festações de última vontade.
Institui a Rede de Promoção da ci-
Proferido parecer pela admis-
dadania LGBTI+ e Enfrentamento
PL 2013/2021 Fábio Félix sibilidade do relator Reginaldo
à LGBTIfobia, denominado “PRO-
Veras na CCJ
TEÇÃO LGBTI+ DF”.
Estabelece a obrigação de fixa-
ção de placas de conscientização Proferido parecer favorável
contra crimes de homofobia, les- do relator Sardinha na Comis-
PL 2030/2021 Fábio Félix
bofobia, bifobia e transfobia em são de Direitos Humanos, Éti-
estabelecimentos comerciais e ca e Decoro
congêneres
Proferido parecer favorável
Institui e inclui no Calendário Oficial
do relator Agaciel Maia na Co-
PL 2150/2021 Fábio Félix de Eventos do Distrito Federal o
missão de Direitos Humanos,
Dia da Visibilidade Lésbica
Ética e Decoro

Institui o Selo Empresa Sem Assé- Apresentado – aguarda des-


2581/2022 Tabanez
dio no âmbito do Distrito Federal. pacho da Mesa

para os estados e municípios, cha- Tais iniciativas se localizam poli-


mado “Escola sem Partido”. Isso por- ticamente em antagonismo direto
que, acreditam os defensores dessa ao Projeto “Escola sem Homofobia”
corrente de pensamento, as escolas (2011), no âmbito do Programa do go-
estariam sendo alvo de uma cres- verno federal “Brasil sem Homofobia”
cente incidência cultural do ativismo que, prontamente, foi apelidado de
LGBTI+ e, consequentemente, esta- forma pejorativa de “kit gay” por par-
riam ameaçados os valores da família lamentares e políticos conservadores
tradicional judaico-cristã, hetero-pa- ligados a bancadas religiosas, notada-
triarcal e cisgênero. mente evangélicos. Logo, e em razão

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 131
da pressão desses atores políticos, o e à pobreza, também pela garantia de
“Escola sem Homofobia”, que havia direitos civis como identidade e casa-
sido elaborado por setores da socie- mento igualitário, e pela necessidade
dade civil por meio de convênio com o de políticas educacionais de comba-
Fundo Nacional de Desenvolvimento te à discriminação e pró-diversidade
da Educação (FNDE), acabou sendo nas escolas, à luz do debate que vinha
vetado e retirado de circulação pelo sendo feito no âmbito do Plano Na-
Ministério da Educação. cional de Educação (PNE), no Con-
gresso Nacional. A propósito, tam-
No entanto, esse debate ganhou
bém o Plano Distrital de Educação
ainda mais força e pautou sobrema-
foi aprovado em junho de 2015 com a
neira as disputas eleitorais, tornan-
exclusão de referências diretas a gê-
do-se decisivo para eleger grande
nero e sexualidade. Dos 23 presentes,
número de pessoas alinhadas com o
16 foram favoráveis às exclusões10.
combate à “ideologia de gênero”. Foi
decisivo para destituir uma presiden- Nessas circunstâncias, em 2015,
te da República, em defesa da mo- surge na CLDF o primeiro de uma
ralidade e dos valores da família8, e série de projetos de lei que visavam
escolher outro para “unir o povo, va- instituir o “Escola sem Partido”, um
lorizar a família, espeitar as religiões programa que limitava drasticamente
e nossa tradição judaico-cristã, com- o conteúdo administrado nas escolas,
bater a ideologia de gênero, conser- traduzindo toda e qualquer iniciativa
vando nossos valores.”9 pró-diversidade ou mesmo debates
sobre sexualidades em “doutrinação
Antes, porém convém destacar a
ideológica” que, por estarem em su-
realização, nos anos de 2012 e 2016,
posto “conflito com convicções mo-
respectivamente, da Segunda a Ter-
rais e religiosas dos estudantes e de
ceira Conferência Nacional de Polí-
seus pais” deveriam ser banidos, sob
ticas Públicas LGBT. No DF, as con-
pena de responsabilização dos pro-
ferências distritais aconteceram em
fissionais de educação. A tônica foi
meados de 2011 e em março de 2016.
basicamente a mesma em diferentes
E estes foram espaços que produzi-
localidades e os projetos se multipli-
ram uma série de debates e aprova-
cavam tornando-se, literalmente, có-
ram resoluções para promoção da ci-
pias uns dos outros.
dadania LGBTI+, que passavam, além
do eixo central de combate à violência Em razão da judicialização desse
tema11, essas iniciativas não prospera-
8 Sobre isso, ver análise das justificativas de
voto dos parlamentares que votaram a favor do 10 Disponível em: https://g1.globo.com/distrito-
impeachment da Presidente Dilma Russef. fe d e ra l /n ot i c i a /2 01 5/0 6/c a m a ra - exc l u i -
questao-de-genero-e-aprova-plano-distrital-
9 Trecho do discurso de posse do atual de-educacao.html
Presidente da República Jair Messias Bolsonaro,
em 1º de janeiro de 2019. Disponível em: 11 Também em 2020, o STF decidiu e reafirmou
https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/ posição pela inconstitucionalidade de programas
noticia/2019-01/no - dis curs o - de-poss e- estaduais e municipais chamados de “Escola sem
bolsonaro-pede-apoio-para-reconstruir-o-pais Partido”, em favor da tolerância, pluralismo de

132 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
ram – ao menos não da forma conce- afetivo-sexual, para as quais tanto o
bida originalmente pelo Movimento Estado quanto as famílias estariam se
Escola Sem Partido. Contudo, vale omitindo ao não combater. Além dis-
ressaltar que ainda tramitam projetos so, fica nítido também o apelo autori-
que guardam estreita relação com a tário que justifica a punição (castigo)
chamada “Lei da Mordaça” e que, em para aqueles que desviam do cami-
última análise, pretendem restringir nho das tradições morais e religiosas
a liberdade de cátedra e estabelecer para as quais devem ser educados.
rígido controle de todo e qualquer
Nesta última legislatura, surge,
conteúdo impresso em livro didático
também como movimento nacional,
ou material audiovisual que “enfoque
difundida por estados e municípios
nos órgãos genitais e poses nitida-
e, obviamente, atravessando o Con-
mente sensuais em que explorada
gresso Nacional e a Câmara Legis-
sua sexualidade”12, sob pretexto de
lativa do DF, uma segunda onda de
proteger crianças e adolescentes da
proposições legislativas. Trata-se de
influência do ativismo cultural LGB-
mais um desdobramento do “Escola
TI+, conforme veremos a seguir.
sem Partido”, uma investida contra a
A justificativa dada pelo autor do PL linguagem neutra ou gramática igua-
2.472/22 ilustra bem as motivações litária, com projetos que buscam não
desse movimento, seus pressupos- apenas a sua proibição (sempre as-
tos e objetivos: “A omissão familiar, sociada ao uso obrigatório da norma
bem como a omissão do Poder Públi- culta da língua portuguesa), mas tam-
co em não frear essas ações [conteú- bém a imposição de multas e penali-
dos semelhantes ao que chamam ‘Kit zação de profissionais de educação.
Gay’], que tem tapado os olhos para
De fato, não se pode deixar de
aqueles que têm tido infância rouba-
constatar que, por ser uma derivação
da pelo sensacionalismo obscuro” E
do combate à “ideologia de gênero”,
conclui “segundo Pitágoras, 500 A.C.
essa é uma onda de contornos inter-
‘educai as crianças e não será neces-
nacionais. E ainda enfrenta resistên-
sário castigar os adultos’”.
cia e dificuldade de compreensão até
Nesse trecho, fica nítida a urgência mesmo nos movimentos progressis-
que os conservadores veem em bar- tas, partidos de esquerda e na própria
rar quaisquer iniciativas educacionais população LGBTI+.
que se voltem para o campo da plu-
Por outro lado, a despeito das di-
ralidade e da diversidade de gênero e
vergências que existam em debate
tão novo, é importante registrar o
ideias e concepções pedagógicas, bem com os
valores da liberdade assegurados na Constituição
caráter da ação conservadora contra
e em diversas normas internacionais às quais o linguagem neutra e salientar que isso
Brasil se filia. pode afetar não apenas a forma como
12 Conforme justificativa do PL 1758/2017, nos comunicamos em textos formais,
disponível em https://legislacao.cl.df. mas atingir diretamente os direitos
g ov. b r/ Le g i s l a c a o/co n s u l t a P ro p o s i c a o -
1!1758!2017!visualizar.action
das pessoas não binárias e, mais uma

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 133
Tabela 2. Principais proposições anti direitos LGBTI+ na CLDF

Projeto Autoria Ementa Situação


Estabelece diretrizes para
‘Infância sem Pornografia’ Designado relator Martins
PL 1758/2017 Rodrigo Delmasso
no âmbito do Distrito Fede- Machado na CCJ
ral e dá outras providências.
Proferido parecer contrário
Institui a Semana da Difusão pelo relator Fábio Felix na Co-
PL 1813/2017 Rodrigo Delmasso
da Cultura Heterossexual. missão de Direitos Humanos,
Ética e Decoro
Rodrigo Delmasso, Institui, no âmbito do Sis-
Aguarda despacho na Comis-
Martins Machado, tema de Ensino Público do
PL 70/2019 são na Comissão de Educa-
Valdenino Barcelos Distrito Federal, o ‘Programa
ção, Saúde e Cultura
e Daniel Donizete Escola Sem Partido’.
Dispõe sobre a proibição da
exposição de crianças, de
até 12 (doze) anos, a danças Designado relator João Car-
PL 784/2019 Rodrigo Delmasso que aludam à sexualização doso na Comissão de Assun-
precoce nas escolas do Dis- tos Sociais
trito Federal e dá outras pro-
vidências.
Proíbe o uso de “linguagem
neutra” ou “linguagem não Tramitação cancelada – de-
PL 2303/2021 Iolando
binária” nas instituições es- clarado prejudicado
pecificadas.
Revoga a Lei nº 6.538, de
Rodrigo Delmas-
13 de abril de 2020, que in-
so, Iolando, Martins Designada relatora Arlete
clui no calendário oficial de
PL 2150/2021 Machado, Rafael Sampaio na Comissão de
eventos do Distrito Federal,
Prudente, Valdelino Educação, Saúde e Cultura
a Parada do Orgulho LGBTS
Barcelos
de Brasília.
Veda a instalação, a ade-
quação e o uso comum de
banheiros públicos coletivos
por pessoas de sexos dife-
Designado relator Fábio Félix
rentes, os chamados “ba-
PL 2379/2021 Iolando na Comissão de Direitos Hu-
nheiros unissex” ou ”banhei-
manos, Ética e Decoro
ros neutros ou multigênero”,
nas dependências das insti-
tuições que especifica e dá
outras providências.
Proíbe a exposição de crian-
ças e adolescentes a ativida-
des escolares que possam
contribuir para a sexualiza- Designado relator Robério
PL 2472/2022 Iolando ção precoce e a erotização Negreiros na Comissão de
infantil no âmbito da Edu- Assuntos Sociais
cação Básica do Sistema de
Ensino público e privado do
Distrito Federal.

134 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
vez, pessoas transexuais, travestis e Em relação às moções, matéria
todas aquelas que, por qualquer cri- não listada nas Tabelas 1 e 2, porque
tério moral e biologizante, destoe ou proposições de natureza simbólica e
performe gênero diferente do que se efeito mais político que jurídico – to-
espera dela. das foram aprovadas e arquivadas na
sequência –, destacamos três delas
Sobre isso, destacamos trecho da
para melhor compreensão das es-
justificativa de um dos projetos de lei
tratégias da bancada conservadora
elencados na Tabela 2, que é taxativo
antidireitos. Todas as moções desta-
ao afirmar que
cadas têm foco no mesmo tema: o
A adoção de uma linguagem neutra a ser voto de repúdio ao direito do nome
ensinada a crianças é o princípio de uma
tragédia histérica: a ideologia de gênero social para pessoas transexuais e tra-
sendo propagada em escolas. A linguagem vestis e, consequentemente, ao que
neutra suprime as diferenças entre homens
e mulheres, impõe uma assepsia de gênero passaram a denominar “ideologia de
que destrói o princípio de separação entre gênero”.
meninos e meninas (...) é o começo da
ação da destruição de uma percepção
natural, biológica dos sexos, pois começa a Em março de 2015, um grupo
mudar a percepção da realidade através da conduzido pela Pastora Sandra Fa-
linguagem. ( PL 2303/2021)
raj (Rodrigo Delmasso, Pastor Julio
César, Bispo Renato, Lira, Raimundo
Por fim, selecionamos também
Ribeiro e Wasny de Roure) aprovou
trecho da justificativa do projeto que
Moção de Repúdio (MO 28/201514)
pretende revogar a lei que insere a Pa-
às Resoluções nº 11/2014 e nº 12/2015
rada do Orgulho LGBTS no calendário
do Conselho Nacional de Combate à
oficial de eventos do DF. O autor prin-
Discriminação e Promoção de Direi-
cipal é o deputado Rodrigo Delmas-
tos da população LGBTI+ (CNCD/
so que, nas duas últimas Legislaturas,
LGBT/Secretaria de Direitos Huma-
tem protagonizado e coordenado a
nos da Presidência da República).
ala anti direitos entre os distritais.
As referidas resoluções tão somente
Nesta justificativa, Delmasso deixa estabeleciam parâmetros para ga-
nítida a percepção que tem não ape- rantia de acesso e permanência de
nas sobre a Parada do Orgulho, mas pessoas transexuais e travestis nos
sobre os movimentos LGBTI+ de ma- espaços das instituições de ensino.
neira geral. Para ele, portanto, é in- Diversas outras casas legislativas no
concebível admitir que movimentos país seguiram na mesma direção e,
de tal natureza recebam apoio desta no Congresso Nacional, proliferaram
Casa. Movimentos que são perigo- projetos de decreto visando sustar as
sos e totalmente inadequados para a referias resoluções, sob argumento
grande parte da sociedade que urge de que crianças e adolescentes não
por uma sociedade justa, ordeira e capacidade civil para escolher nome
respeitosa”13. social.

13 Disponível em: https://legislacao.cl.df. 14 Disponível em: https://legislacao.cl.df.


g ov. b r/ Le g i s l a c a o/co n s u l t a P ro p o s i c a o - g ov. b r/ Le g i s l a c a o/co n s u l t a P ro p o s i c a o -
1!1146!2020!visualizar.action 4!28!2015!visualizar.action

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 135
Em março do ano seguinte, a Fren- A omissão dos legisladores
te Parlamentar Evangélica aprovou e o papel de vanguarda do
Moção de Repúdio (MO 331/201615) STF
à “promoção da ideologia de gênero
presente nas fichas de inscrição das Em nível nacional, a produção
Conferências Regionais Dos Direitos legislativa em favor da população
das Crianças e Adolescentes do Dis- LGBTI+, até aqui, foi mínima. Na ver-
trito Federal”. Isto porque as fichas dade, o que se observa no Brasil é a
continham campos para definição omissão do Congresso Nacional – ou
de orientação sexual (heterossexual, um “jogo de soma zero” em face de
homossexual, bissexual, outros) e de diversas tentativas de retrocesso –,
sexo (masculino, feminino). O argu- avanços tímidos e recuos da Presi-
mento foi de que “a inclusão do item dência da República e Ministérios,
Orientação Sexual para crianças de 11 enquanto as decisões mais impor-
a 14 anos pode influenciá-las, tornan- tantes e de maior impacto são anco-
do-as versáteis a escolhas sexuais”. radas no STF.

Em novembro de 2018, a Pasto- A última década é marcada pelo


ra Sandra Faraj aprovou uma terceira protagonismo do Poder Judiciário
moção de Repúdio (MO 1067/201816) na defesa das liberdades individuais
contra publicação da Circular da Se- e direitos fundamentais. Sobre isso,
cretaria de Estado de Educação do como pano de fundo para este sub-
Distrito Federal, “que orienta as Co- título, destacamos algumas das mais
ordenações Regionais de Ensino importantes decisões do STF.
quanto ao registro do Nome Social Em 2011, por unanimidade, o ca-
de estudantes Trans em documen- samento civil igualitário17 e, por con-
tos escolares internos e o reconheci- seguinte, uma série de direitos até
mento da sua identidade de gênero então reservados aos casais heteros-
nas dependências das Unidades Es- sexuais, tais como compartilhar bens,
colares do Distrito Federal”. O argu- construir patrimônio, garantir prote-
mento, desta vez, foi de que a Lei dos ção à herança ou pensão em caso de
Registros Civis não pode “encampar morte, inclusão de dependentes em
interesses escusos ou proteger pre- planos de saúde, seguros, garantia
tensões ilegítimas fundamentadas de visitação em hospitais em caso de
em mero capricho (...)”. Sandra Faraj adoecimento.
disputou as eleições em 2018, mas
não foi reeleita.
17 Decisão em sede da ADI nº 4277 da PGR e
da ADPF nº 132 do estado do Rio de Janeiro,
15 Disponível em: https://legislacao.cl.df. que reconheceu o direito ao estabelecimento
g ov. b r/ Le g i s l a c a o/co n s u l t a P ro p o s i c a o - de união estável por casais homoafetivos. Além
4!331!2016!visualizar.action disso, dois anos depois, em 2013, o Conselho
Nacional de Justiça (CNJ) emitiu a Resolução
16 Disponível em: https://legislacao.cl.df. nº 175 para proibir que cartórios vetassem o
g ov. b r/ Le g i s l a c a o/co n s u l t a P ro p o s i c a o - casamento ou a conversão de união estável em
4!1067!2018!visualizar.action casamento de pessoas homoafetivas.

136 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
Em 2015, o STF decide que a Em junho de 2019, por 8 votos a 3,
Constituição Federal não recepciona o STF protagonizou mais uma ação
as expressões “pederastia ou outro” e história ao julgar procedente ação
“homossexual ou não” contidas Códi- direta de inconstitucionalidade por
go Penal Militar18. A corte inicia julga- omissão, bem como mandado de in-
mento em 2017, que foi concluído em junção, que pediam que a homoles-
2020, em que declara inconstitucio- botransfobia pudesse ser utilizada
nais normas da Anvisa e Ministério da como qualificadora de motivo torpe
Saúde que estabeleciam como inap- no caso de homicídios dolosos con-
tos para doação de sangue homens tra a população LGBTI+, bem como
que têm relações sexuais com ho- que se declarasse a omissão do Con-
mens (denominados HSH). A proibi- gresso Nacional, que deixou de tomar
ção, no entanto, alcançava não ape- medidas legislativas para combater
nas os homens, mas grande parte da esses atos de discriminação21.
população LGBTI+.19
Em 2020, conforme tratamos an-
Em 2018, vimos mais uma decisão teriormente, o STF acolheu também
histórica do supremo tribunal, que dá uma ação formulada pela da Confe-
provimento a recurso extraordinário, deração Nacional dos Trabalhadores
contra acórdão proferido pela Oitava em Educação (CNTE), por meio ar-
Câmara Cível do Tribunal de Justi- guição de descumprimento de pre-
ça do Estado do Rio Grande do Sul, ceito fundamental22, que pedia que
e fixa tese de repercussão geral que fosse declarada inconstitucional lei
reconhece o direito à identidade de do município de Londrina (PR) que
gênero nos registros civis, para o qual vedava o ensino sobre gênero e até
não se deve exigir nada além da ma- mesmo a utilização do termo nas es-
nifestação de vontade do indivíduo, colas. Pelo acórdão, e em razão do
seja pela via judicial ou diretamente debate feito anteriormente acerca da
pela via administrativa, independen- importância das políticas educacio-
temente de procedimento cirúrgico nais, destacamos:
e laudos de terceiros, por se tratar de
A norma impugnada caminha na contramão
tema relativo ao direito fundamental de tais valores ao impedir que as escolas
ao livre desenvolvimento da persona- tratem da sexualidade em sala de aula ou
que instruam seus alunos sobre gênero
lidade.20. e sobre orientação sexual. Não tratar de

18 Decisão em sede da ADPF 291, ajuizada pela Iotti do Grupo de Advogados pela Diversidade
Procuradoria Geral da República (PGR), acerca Sexual e de Gênero (GADVS), além do Instituto
das expressões discriminatórias contidas no art. de Bioética (ANIS) e a Associação Brasileira de
235 do Código Penal Militar. Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais
e Intersexos (ABGLT).
19 Decisão em sede da ADI 5543, ajuizada pelo
Partido Socialista Brasileiro (PSB). 21 Tratam-se da ADO 26, movida pelo Partido
Popular Socialista (PPS), e do mandado de
20 Trata-se do recurso extraordinário (REC injunção (MI 4.733), movido pela ABLGT.
670.422), que teve como advogadas juristas
de grande reconhecimento pelos movimentos 22 Decisão em sede da ADPF 600, disponível em
LGBTI+, como Maria Berenice Dias do Instituto https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.
Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), Paulo jsp?docTP=TP&docID=753837225

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 137
gênero e de orientação sexual no âmbito do merece tratamento isonômico quan-
ensino não suprime o gênero e a orientação
sexual da experiência humana, apenas to ao reconhecimento, dissolução e
contribui para a desinformação das crianças
e dos jovens a respeito de tais temas, para partilha de bens adquiridos durante a
a perpetuação de estigmas e do sofrimento convivência”23. Em 2008, a 2ª Turma
que deles decorre. Trata-se, portanto, de
uma proibição que impõe aos educandos Cível reconhece a união homoafetiva
o desconhecimento e a ignorância sobre para fins previdenciários.24
uma dimensão fundamental da experiência
humana e que tem, ainda, por consequência,
impedir que a educação desempenhe Já em 2011, pouco depois da deci-
seu papel fundamental de transformação são do STF sobre casamento igualitá-
cultural, de promoção da igualdade e da
própria proteção integral assegurada pela rio, a 2ª Turma Recursal dos Juizados
Constituição às crianças e aos jovens (...) É
na escola que eventualmente alguns jovens Especiais Cíveis e Criminais do DF
são identificados, pela primeira vez, como confirma sentença monocrática da
afeminados ou masculinizados, em que o
padrão cultural naturalizado é identificado primeira instância para permitir a in-
como o comportamento “normal”, em que clusão de companheiro como depen-
a conduta dele divergente é rotulada como
comportamento “anormal” e na qual se dente no plano de saúde do Corpo de
naturaliza o estigma (...)É na escola que se
pode aprender que todos os seres humanos Bombeiros Militar do Distrito Federal.
são dignos de igual respeito e consideração. Para a relatora, que se referencia no
O não enfrentamento do estigma e do
preconceito nas escolas, principal espaço de pronunciamento do STF exarado na
aquisição de conhecimento e de socialização ADI 4277, os autores “comprovaram,
das crianças, contribui para a perpetuação
de tais condutas e para a sistemática mediante escritura pública, a existên-
violação da autoestima e da dignidade de
crianças e jovens. Não tratar de gênero e de cia de relação homoafetiva há seis
orientação sexual na escola viola, portanto, anos, na qual um dos companheiros,
o princípio da proteção integral assegurado
pela Constituição (BRASIL, Supremo estudante que não possui remunera-
Tribunal Federal. ADPF 600. Relator Min. ção, precisa ser incluído no plano de
ROBERTO BARROSO).
saúde do companheiro integrante da
corporação”. 2526
Feita essa introdução, à luz de jul-
gados paradigmáticos do Supremo
Tribunal Federal, nesta terceira parte 23 20040020013132CCP, Relª. Desª. SANDRA
será abordado o tratamento que o DE SANTIS, Data do Julgamento 28/04/2004.
Poder Judiciário local (TJDFT) tem 24 20070111509358APC, Relª. Desa. CARMELITA
conferido às demandas da população BRASIL. Data do Julgamento 29/10/2008.
LGBTI+. 25 Acórdão n.520203, 20100112201930ACJ,
Relatora: ISABEL PINTO, 2ª Turma Recursal dos
Em abril de 2004, um primeiro jul- Juizados Especiais Cíveis e Criminais do DF, Data
gado já sinalizava para a necessidade de Julgamento: 12/07/2011, Publicado no DJE:
18/07/2011. Pág.: 190.
de reconhecimento da união entre
pessoas do mesmo sexo, para fins 26 Em 2010, Com a edição da Súmula Normativa
nº 12 , editada pela Agência Nacional de Saúde
de partilha. Na ocasião, a desembar- (ANS), os casais do mesmo sexo puderam
gadora relatora firma que, perante o incluir o parceiro ou parceira como dependente
Juízo Cível, “as uniões homoafetivas em seu plano de saúde. No ano seguinte, o
próprio TJDFT reconhece, administrativamente,
não são instituição familiar à luz do a união homoafetiva estável para inclusão
ordenamento jurídico vigente. En- de dependentes. O pedido foi feito por um
tretanto, a realidade da sociedade de servidor e acatado pelo Conselho do Programa
de Assistência à Saúde e Benefícios Sociais do
fato entre pessoas do mesmo sexo Tribunal.

138 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
Ainda sobre a conformação de ar- No caso em tela, trata-se de uma ser-
ranjos familiares, no ano de 2019, a 5ª vidora pública do município de São
Vara da Fazenda Pública do DF deter- Bernardo do Campo (SP), casada
minou, em liminar com tutela de ur- com profissional autônoma, e ambas
gência, que o Banco de Brasília (BRB) realizaram procedimento de insemi-
concedesse licença-maternidade a nação artificial heteróloga, e o óvu-
uma empregada pública casada com lo fecundado foi da servidora. Pelo
outra mulher, que estava prestes a se voto, o relator argumenta que
submeter ao parto. A empregada do
A titularidade da licença-maternidade
BRB solicitou a licença de 120 dias, ostenta uma dimensão plural, recaindo
mas o banco autorizou apenas os 20 sobre mãe e filho(a), de modo que o
alcance do benefício não mais comporta
dias garantidos aos homens pais, sob uma exegese individualista, fundada
exclusivamente na recuperação da mulher
argumento de que não havia previsão após o parto. Certamente, a licença
legal para o caso. Em sua decisão, a também se destina à proteção de mães não
gestantes que, apesar de não vivenciarem
magistrada considera o princípio da as alterações típicas da gravidez, arcam
proteção integral da criança, aquele com todos os demais papeis e tarefas que
lhe incumbem após a formação do novo
que busca assegurar a maior parte do vínculo familiar (...)Deveras, a partir do
regime constitucional inaugurado em 1988,
tempo possível com sua mãe nos pri- o modelo de família patriarcal, centrado
meiros meses de vida. E, ainda, que no vínculo indissolúvel do casamento, foi
substituído pelo paradigma do afeto, que
“realizar uma interpretação restritiva propiciou o reconhecimento dos mais
no caso é violar decisão consolidada variados formatos de família construídos
pelos próprios indivíduos em suas relações
do Supremo Tribunal Federal – STF, afetivas interpessoais, permitindo o fim do
engessamento dos arquétipos familiares
isso porque o fato de não ter gerado (...) É nesse sentido que, no caso sub
a criança não retira da autora o status examine, o reconhecimento da condição
de mãe à mulher não gestante, em união
de mãe daquela que está prestes a homoafetiva, no âmbito da concessão da
nascer”.27 licença-maternidade, tem o condão de
fortalecer o direito à igualdade material e,
simbolicamente, de exteriorizar o respeito
Sobre isso, cumpre ressaltar que, estatal às diversas escolhas de vida e
ainda em 2019, o STF reconheceu configuração familiares existentes (BRASIL,
Supremo Tribunal Federal. RE 1211446 RG/
existência repercussão geral em sede SP. Relator Min. LUIZ FUX).
recurso extraordinário (RE 1211446)28.
Dessa forma, a corte entende a plu-
riparentalidade e reconhece a condi- Lei Maria da Penha e o
ção de mãe à mulher não gestante, Gênero
em união homoafetiva, para fins de
concessão da licença maternidade. No que se refere ao combate à vio-
lência de gênero e aplicabilidade da
27 PJe: 0705696-86.2019.8.07.0018 – a última Lei Maria da Penha, que cria mecanis-
decisão que consta no TJDFT indica que BRB mos para coibir a violência doméstica
ganhou recurso, ou seja, foi deferido o pedido
de atribuição de efeito suspensivo ao agravo e familiar contra a mulher, e dispõe
de instrumento, e o processo foi enviado para a sobre a criação dos Juizados de Vio-
Justiça do Trabalho. lência Doméstica e Familiar contra a
28 Disponível em https://portal.stf. Mulher, alterando Código Penal, Có-
j u s . b r/p r o c e s s o s /d o w n l o a d Pe c a . digo de Processo Penal e Lei de Exe-
asp?id=15341717987&ext=.pdf

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 139
cução Penal destacamos uma série demonstrado que o crime foi motiva-
de acórdãos da 2ª e 3ª Turma Crimi- do pelo menosprezo ou discrimina-
nal, de 2018, 2019 e 2020. ção à condição de gênero da vítima.
Os desembargadores ainda comen-
Em abril de 2018, 1ª Turma Cri-
tam o recurso do réu, que, para ex-
minal TJDFT, por unanimidade, deu
cluir a qualificadora, afirma que a víti-
provimento ao recurso do Ministério
ma, biologicamente, não pertence ao
Público do Distrito Federal para de-
sexo feminino. Ao julgar improceden-
terminar que o procedimento que
te tal recurso, constatam que o crime
investiga crimes de ameaça e lesões
foi motivado “por ódio à condição de
corporais contra transexual feminina
transexual da ofendida, o que carac-
deve tramitar no Juizado de Violência
teriza menosprezo e discriminação ao
Doméstica e Familiar contra a Mulher.
gênero feminino por ela adotado”.31
Na ocasião, os desembargadores re-
afirmam a autodeterminação da pes- Semanas depois, essa mesma Tur-
soa transexual feminina, que “carrega ma profere decisão afastando a apli-
consigo todos os estereótipos de vul- cabilidade da Lei Maria da Penha em
nerabilidade e sujeição voltados ao casais de mulheres. Nos termos do
gênero feminino”.29 acórdão, “a prática, em tese, de cri-
mes envolvendo casal do sexo femi-
Em fevereiro de 2019, um segundo
nino, por si só, não é capaz de atrair
acórdão vai na mesma direção, reafir-
a incidência da Lei nº 11.340/06”. Os
mando competência do Juizado de
desembargadores concluem que,
Violência Doméstica e Familiar contra
considerando as circunstâncias fá-
a Mulher para casos de mulheres tran-
ticas do caso em questão, “o de-
sexuais e travestis. Pelo acórdão, “a Lei
sentendimento havido na relação
Maria da Penha não distingue orienta-
homoafetiva entre mulheres não ca-
ção sexual nem identidade de gênero
racterizou violência baseada no gê-
das vítimas mulheres”. E continua “se-
nero ou condição de hipossuficiência
ria incongruente acreditar que a lei que
de uma parte sobre a outra”32
garante maior proteção às ‘mulheres’
se refere somente ao sexo biológico, Todavia, em sentido oposto, de-
especialmente diante das transforma- cidiu a Primeira Turma Criminal, em
ções sociais. Ou seja, a lei deve garan- novembro de 2020, que é possível a
tir proteção a todo aquele que se con- aplicação da Lei Maria da Penha no
sidere do gênero feminino.”30 âmbito de relação homoafetiva en-
tre mulheres, desde que a violência
Em julho de 2019, a 3ª Turma ad-
mite como sujeito passivo de femini-
31 Acórdão 1184804, 20180710019530RSE,
cídio a mulher transgênero, quando Relator Des. WALDIR LEÔNCIO LOPES JÚNIOR,
3ª Turma Criminal, data de julgamento: 4/7/2019,
29 Ver tramitação do processo 20171610076127 publicado no DJe: 12/7/2019.
30 Acórdão 1152502, 20181610013827RSE, 32 Acórdão 1187339, 20180310095096APR,
Relator: SILVANIO BARBOSA DOS SANTOS, Relator: JESUINO RISSATO, Terceira TURMA
Segunda Turma Criminal, data de julgamento: CRIMINAL, data de julgamento: 18/7/2019,
14/2/2019, publicado no DJe: 20/2/2019. publicado no DJE: 24/7/2019.

140 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
tenha sido praticada em contexto de Política Cultural LGBTI+:
relação doméstica, familiar ou de afe- uma afronta à família
tividade e que haja situação de vul- brasiliense
nerabilidade ou de subordinação. Na
decisão, os desembargadores bus- Uma das principais iniciativas de
cam alcançar o sentido do “gênero”, políticas públicas listadas no início
como termo basilar da Lei Maria da deste tópico, a Portaria que institui
Penha e, desse modo, tem suas raízes a política cultural LGBTI+, acontece
apoiadas em uma construção cultu- em articulação com a referida coor-
ral, e não biológica. Ao descreverem denação. Cumpre ressaltar, entre-
a ofensa moral que a ré direcionou à tanto, que a norma foi revogada em
vítima (“piranha”), concluem que tal menos e uma semana e substituída
ofensa se relaciona diretamente com pela Portaria 287, de 05 de outubro
o gênero feminino e que, portanto, de 2017, que “institui a Política Cultu-
“afastar do presente caso a incidên- ral de Ações Afirmativas no âmbito
cia da Lei Maria da Penha, de modo a da gestão pública cultural do Distrito
permitir novo benefício despenaliza- Federal”36.
dor, revelaria inaceitável postura co- Assim, a Secretaria de Cultura pas-
nivente do Estado”33 sa a tratar da cultura LGBTI+ de ma-
Além disso, ressaltamos que a Se- neira mais genérica e diluída entre di-
gunda Turma, em agosto de 2020, versas outras temáticas e populações
proferiu decisão semelhante, segun- vulneráveis – mulheres; população
do a qual “a proteção assegurada às negra e quilombola; populações in-
mulheres pela Lei Maria da Penha dígenas; populações das comunida-
independe de orientação sexual, des rurais, tradicionais e itinerantes;
prevalecendo inclusive nas relações população cigana; pessoas com defi-
homoafetivas”. Concluem, por fim, ciência; pessoas idosas; pessoas em
que as “agressões de mulher contra situação de rua; apátridas, imigrantes
mulher motivadas tanto pela condi- e refugiados; outros grupos historica-
ção de vulnerabilidade e fragilidade mente excluídos.
da vítima, quanto pelo gênero dela e Ainda, certamente em razão das
em contexto doméstico e de intimi- reações contrárias à existência de
dade afetiva, atrai a aplicação da lei uma política cultural eminentemen-
especial”.3435 te LGBTI+, tornaram-se público-al-
vo dessa política de fomento cultural
33 Acórdão 1301119, 07232110920208070016, “pessoas em situação de ameaça à li-
Relator: CRUZ MACEDO, Primeira Turma
Criminal, data de julgamento: 19/11/2020,
publicado no PJe: 21/11/2020. Tribunal de Justiça (STJ) estabeleceu que
a Lei Maria da Penha se aplica aos casos de
34 Acórdão 1272188, 00003872620178070009, violência doméstica ou familiar contra mulheres
Relator: JAIR SOARES, Segunda Turma Criminal, transexuais, dando provimento a recurso do
data de julgamento: 6/8/2020, publicado no Ministério Público de São Paulo e determinando
PJe: 17/8/2020. a aplicação das medidas protetivas requeridas
35 Em abril de 2022, a Sexta Turma do Superior 36 Disponível em: https://bityli.com/bZHnUD

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 141
berdade de consciência, crença e re- zembro de 2021. Em pouco tempo
ligião”. Quando da edição da primeira de existência, SEFAM ostenta entre
versão da Portaria 277, a Frente Par- seus feitos a impressionante marca
lamentar Evangélica emitiu uma nota de 223 escrituras públicas entregues
ao GDF e declarações públicas foram a entidades religiosas e assistenciais
emitidas que se pedia “respeito à fa- (Programa Igreja Legal), bem como
mília brasiliense”, posto que o gover- a aprovação da Lei nº 6.888/202138,
no não poderia “fomentar a escolha que passou a permitir que templos
sexual”. erguidos em áreas públicas até de-
zembro de 2016 sejam legalizados
Assinada pelo presidente da Fren-
junto à Terracap.
te, Delmasso, a nota afirma que os
parlamentares são “contrários à cria-
ção de uma política pública para um E as estatísticas
segmento específico [uma vez que]
tal política pública fere frontalmente Por fim, e não menos importante, é
os dispostos constitucionais [e tam- fundamental registrar a relevância do
bém] fere diretamente o direito das trabalho da Companhia de Planeja-
famílias brasilienses”37 mento do DF (Codeplan) para reunir
informações sobre a população LGB-
TI+. A primeira pesquisa da compa-
Uma Secretaria para a nhia, publicada em outubro de 2017
Família e denominada Um olhar sobre a po-
pulação LGBT no Distrito Federal, já
Em 25 de setembro de 2020, a sinalizava que os dados eram falhos,
despeito da existência da Coordena- as informações precárias, e que, por-
ção de Políticas de Proteção e Pro- tanto, ainda seria “um desafio estimar
moção da Liberdade Religiosa, o go- e conhecer o perfil desses grupos
vernador Ibaneis editou Decreto nº populacionais [posto que] com essa
41.425, que cria a Secretaria Extraor- escassez de informações, a definição
dinária da Família do Distrito Federal e elaboração de políticas públicas,
(SEFAM), e designou para titular da muitas vezes são realizadas buscan-
pasta o pastor Iliobaldo Vivas da Silva, do responder às demandas dos mo-
da Igreja Universal e ex-deputado fe- vimentos e grupos sociais organiza-
deral do Rio de Janeiro, pelo Partido dos, ainda que possam apresentar
Republicanos. um viés”39.
Na sequência, o correligionário e Mas algumas informações ali conti-
também pastor evangélico, o depu- das já sinalizavam para dados conhe-
tado distrital Martins Machado, as- cidos dos movimentos e organizações
sume a Secretaria da Família, em de-

38 Disponível em: https://bityli.com/yWDBLN


37 Disponível em: https://g1.globo.com/distrito-
federal/noticia/bancada- evangelica-na- 39 Disponível em: https://www.codeplan.df.gov.
camara-do-df-pede-revogacao-de-politica- br/pesquisa-da-codeplan-abre-debate-sobre-
cultural-lgbti.ghtml visibilidade-da-populacao-lgbt/

142 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
não governamentais que, há tempos, De fato, é necessário frisar, o corpo
realizam suas próprias pesquisas sobre de pesquisadores fez atentas consi-
a população LGBTI+. A saber, traves- derações quanto às dificuldades me-
tis e transexuais são quem mais sofre todológicas de se inserir perguntas
violência e quem mais denuncia; injúria sobre orientação sexual, sobretudo
e ameaça configuram como maioria porque o morador respondente teria
entre as denúncias recebidas pela po- de fazer afirmações sobre a sexuali-
lícia e discriminação e violência psico- dade dos demais moradores. Assim,
lógica, pelo Disque 100; a maioria dos já se esperavam respostas equivoca-
crimes ocorre no transporte público, das por duas razões: 1) eventual des-
na casa a vítima ou do suspeito. Os conhecimento da orientação sexual
dados, portanto, se limitam à compre- dos demais moradores; ou 2) even-
ensão da violência. tual receio, preconceito, reserva ou
outro obstáculo.
Uma vez explícita a necessidade de
aprimorar a coleta de informações,
para além dos dados do Disque 100 e Considerações Finais
registros da Polícia Civil, uma inserção
na última Pesquisa Distrital de Amos- Ao final desta análise panorâmica,
tra por Domicílios (Pdad) de 2021, que sobre como tem se dado o avanço (e
reúne informações demográficas, os retrocessos) no reconhecimento
sociais, de trabalho e renda, buscou da cidadania LGBTI+ no âmbito dos
traçar um perfil – sabidamente envie- Três Poderes do Distrito Federal, a
sado – da população LGBTI+ do DF. primeira conclusão a que se chega é
Pelo resultado, divulgado em maio de que os principais e mais consolidados
2022, essa população corresponderia marcos legislativos, julgados ou po-
a apenas 3,8% da população geral do líticas públicas estão concentrados
DF e residiria predominantemente em na última década. São, portanto, três
regiões de renda alta, por exemplo. Legislaturas e ao menos três gover-
nadores diferentes.
Em nota metodológica, denomi-
nada Gênero e Orientação Sexual no E uma segunda conclusão reside
DF: um olhar inclusivo, elaborada após no fato de que, como ocorre no res-
consulta pública e coleta de contri- tante do Brasil e em outras partes do
buições da sociedade civil, a Code- mundo, o reconhecimento e valoriza-
plan discorre sobre como inseriu duas ção da diversidade afetivo-sexual e
questões abertas sobre identidade de gênero tem de enfrentar intensa
de gênero e orientação sexual e ela- resistência conservadora e, por ve-
borou um questionário suplementar zes, excessivamente autoritária. Aliás,
à Pdad, com perguntas sobre a po- muitas das lutas pró-cidadania LGB-
pulação LGBTQIA+ a ser respondido TI+ acabam se limitando ao não re-
eletronicamente40. trocesso.

40 Disponível em: http://www.codeplan.df.gov. e - O r i e nt a c a o -S exu a l - n o - D F- u m - o l h a r-


br/wp-content/uploads/2018/03/NT-Genero- inclusivo.pdf

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 143
A terceira conclusão, que podemos Todavia, há que se ressaltar mui-
chamar de apontamento ou mesmo tas dessas lideranças, ao se estabe-
provocação, é que a ausência ou pre- leceram no serviço público, propi-
sença de baixa intensidade da socie- ciam o surgimento de uma burocracia
dade civil organizada e de fóruns pú- progressista, profissional, atuante e
blicos de deliberação, para além dos comprometida em todos os poderes,
aparatos burocráticos e partidários na Defensoria e no Ministério Público,
ou da inserção de ativistas em gabi- e também nos veículos de comunica-
netes e mandatos parlamentares, im- ção. São servidores dispostos a tor-
põe sérias limitações às conquistas narem políticas de Estado iniciativas
de direitos. que poderiam se exaurir em pouco
tempo, diante de restrições orça-
Em suma, a baixa capacidade dos
mentárias, de pessoal e da ofensiva
movimentos LGBTI+ no DF de organi-
anti-direitos.
zarem amplos levantes de rua, frentes
de luta e mobilização permanente, e a Logo, a aliança com a luta das pro-
inexistência de um conselho atuante, fissionais da educação, assistência
podem ter resultado na acomodação social, saúde e cultura proporciona-
de parte de suas lideranças aos cargos ram as maiores demonstrações de
de governo ou a organizações pulve- força e articulação para manutenção
rizadas. E, dessa forma, o impacto de de conquistas, monitoramento do
suas ações é pouco sentido pelo Le- poder público e avanços em direitos.
gislativo, Executivo ou Judiciário.

144 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
Maternidade não-hétero/não-cis e outras
parentalidades dissidentes:
Relatos de uma mar-ternidade travesti

Kika Sena

No início era o caos. E o caos era eu, mas quem era eu? E o caos era ela tam-
bém, e quem era ela? O elo foi o início da criação caótica das primeiras noções
sobre responsabilidade mar-terna que assumimos no mundo meu e dela. Como
quem cava fundo, me procurei em verdadeiras dinâmicas de uma mar-ternidade
travesti. Antes até me aventurei em lugares de mar-ternagem a ponto de ousar
ocupar o lugar de mãe, sem entender a complexidade que pode ser carregar as
subjetividades que advêm do termo. E é sobre esses envolvimentos que essa
escritura fará um passeio, desde onde eu comecei a perceber a interferência dos
outros a partir de seus olhares sobre a minha corpa renascida até onde eu me
encontro agora: em imersão nesse mar que ouso clamar mar-ternidade.
Antes da ideia concebida meu filho, eu já tinha sido mãe: uma espécie de mãe
quebra-galho talvez, talvez uma ideia de mãe adotada pelo filho de uma amiga,
uma criança que não nasceu de mim. Foi a partir daí que comecei a reparar nesse
lugar tão fundador de/da humanidade. As pessoas à minha volta me deixavam
confortável na ideia de carregar o uma mulher biologicamente irreal, que
nome de mãe, quando eu era apenas é aquela que possui útero como terra
uma amiga presente na maternidade fértil; e de um homem biologicamente
de uma de minhas melhores amigas irreal, que é aquele quem planta a se-
ocupando um lugar que foi bem vindo mente no últero do sagrado feminino.
para mim e para nós. Comigo mesma,
Ser travesti ou mulher trans biolo-
estive em confronto com esse lugar
gicamente e ciborguemente real, me
de mãe do filho dos outros, porque
anula de uma maternidade? Não, se
mesmo sendo travesti, esse lugar me
essa maternidade for pensada para
caía bem ainda que houvesse alguma
além das noções patriarcais, ou seja,
negação pelo que foi dado: uma ma-
reconhecendo as múltiplas noções
ternidade dissidente, não-cis e não-
de mulheridades e/ou maternidades
-hétero compartilhada entre nós e
para além das que foram e permane-
outras mulheres.
cem romantizadas através da produ-
Ao passo em que mar-ternar o filho ção histórica de cultura.
de minha amiga contribuía para com o
Assim, o que avalia a minha mater-
reconhecimento da sociedade sobre
nidade pode ser, é e será traduzida
minhas mulheridades e travestilidades
pelas escolhas de minha criação, pe-
e minhas potências maternas, ser mãe
los trajetos de meu próprio desen-
de meu filho foi afastando esses reco-
volvimento enquanto mulher e mãe
nhecimentos alheios. Uma parte pelas
nas trocas com meu filho, enquan-
transfobias estruturais presentes na
to humanes em relação de criação,
nossa cultura, que é avançada no de-
aprendizagem e ensino; jamais pelas
sejo da ideia de que o núcleo central de
expectativas que foram criadas. Nes-
uma família é composto pelas noções
se sentido, uma maternidade travesti
de pai e mãe como estruturas essen-
também é sobre estar em constante
ciais; outra parte pelo meu desejo de
processo de experiência, sobre os
reconhecimento enquanto mulher e
atentamentos ao novo e, principal-
mãe. Como quem cava fundo para sa-
mente, às sabedorias ancestrais, às
ber quem se é, seu domínio e seus de-
apreciações do divino.
mônios, profundeza nenhuma se ade-
qua a superficialidade da expectativa
forçadamente imposta por uma única Das transfobias que negam
noção do que é ser uma mãe real. E o minha mar-ternidade ou
que é ser uma mãe real? como eu documento isso:
Ser travesti ou mulher trans biolo-
Começo pelo parto – que não é o
gicamente e ciborguemente real, me
começo – e pelo direito de assistência
anula de uma maternidade? Sim, se
à pessoa que pare e pergunto: quem
essa maternidade for exclusiva das
é o pai agora se é inconcebível a ideia
noções cristãs cis-héterocentradas,
de duas mulheres serem mães bioló-
ou seja, aquelas noções de que na
gicas de uma criança, sendo uma de-
concepção de um bebê é preciso de
las uma mulher travesti?

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 147
O primeiro momento onde sen- gistrar nosso filho. Porém no ato do
ti minha maternidade negada foi na registo, é mencionado que seria im-
ocorrência de uma ida às pressas para possível registrar a criança a partir da
o hospital no dia de nascimento do noção de filiação, uma vez que o siste-
filho da natureza. Mesmo sendo eu a ma do hospital estava desatualizado,
pessoa que estava mais presente na e caso quiséssemos registrar nosso
gestação de minha companheira, e filho lá, teríamos que concordar com a
ainda continuando mãe presente to- ideia de que precisaria haver um pai e
dos os dias de vida desse novo ser, uma mãe ou a criança seria registrada
o primeiro momento onde me senti como sem pai e só uma mãe.
negada no lugar de mãe foi no dia do
Seguimos na missão de registrar
nascimento do meu filho. Como que
nosso filho em outro cartório e no ato
de súbito e sem acordo, uma presen-
do registro tivemos mais uma vez que
ça familiar cisgênera e feminina me
argumentar sobre nossa relação onde,
roubou o direito de ver meu filho nas-
mais uma vez, tivemos que lidar com
cendo, como se eu não tivesse direito
os obstáculos inventados pela trans-
a escolha. E mesmo negada daquele
fobia estrutural. Nesse momento, já
direito, não reclamei à minha própria
irritada com a negação de minha cida-
descoberta de mim mesma e fiquei
dania, recorri ao tabelião do local para
em casa esperando ansiosa pelas no-
dialogar sobre o assunto. No ato da
tícias de um momento que julgo sa-
conversa, fui constrangida não só por
grado e que também deveria ser meu.
ser referida nos pronomes masculinos,
Ao nascer, minha cria aparenta mas por precisar explicar como era
menos melanina que as duas mães e possível que eu pudesse ser mãe bio-
o primeiro comentário de quem me lógica daquela criança. E o baile que
toma o poder de ver meu filho vir ao segue! Finalmente conseguimos re-
mundo é o segundo momento de ne- gistar nosso filho a partir da noção de
gação de minha maternidade, onde é filiação, mas a onda não para de tentar
mencionado que meu filho é branco e, afogar uma mulher travesti mãe!
por isso, levantando questões mais di-
retas sobre meu fracasso em ser mãe.
Sobre a falta que um Pai faz
A partir daí, embora haja uma re-
levância em afirmar que eu era a úni- A presença de uma criança apro-
ca mãe travesti acompanhando uma xima muita gente das criadoras/cui-
recém-parida no hospital, e por isso dadoras/mães/pais. Talvez é a partir
mesmo, não foi me questionado o da espera desse novo ser no mun-
grau de parentesco que eu tinha com do que sejam formadas as redes de
a criança ou com a pessoa que pare, apoio, e por isso ainda acreditamos
deixando as pessoas em volta assus- naquele provérbio africado que diz
tadas com o grau de amor envolvido que é preciso de uma aldeia para se
na nossa relação. No momento de criar uma criança. E se por um lado há
saída do hospital havia a opção de re- muita gente com a percepção de que
a nossa cultura se atualiza e, com ela,

148 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
as noções de parentalidade/materni- que ousam romper com as diretrizes
dade, se aproximam de uma intenção muito bem estruturadas de uma so-
verdadeira de cuidar de quem cuida, ciedade qualificada como ideal/nor-
há também os que insistem em viver mal/feliz e que faz chover a necessi-
no passado e manter o que conside- dade de um pai onde não existe.
ram tradição.
Digo isso porque o que não faltou
Ainda assim, algumas das pessoas nesses dois anos de criação foram as
que se aproximaram da minha família perguntas: como meu filho vai lidar
deixaram escapar o quanto pode ser com a ausência de uma pai? Seu fi-
estranho saber que existe uma mu- lho vai te chamar de pai quando ele
lher travesti mãe. Se não é pela falta crescer? Além disso, destaco que não
abordando a noção de parentalidade faltou presença masculina se auto
a partir da comparação entre filho ou proclamando como representação
mãe, é na negação da maternidade paterna de meu filho.
pelo viés biológico onde atribuem a
É óbvio que em qualquer cultu-
ideia de um sexto sentido àquela mãe
ra existem representações sociais,
pela conexão estabelecida com a cria
sejam elas paternas, maternas, de
através do cordão umbilical. Ora, o que
qualidade de saúde, quantidade de
seria este sexto sentido? Seria uma
beleza, do que é ser sujeito ou obje-
atenção redobrada à criança e aos
to. Mas a ideia forçada de que toda
pontenciais perigos que ela pode so-
e qualquer criança precisa de um re-
frer? Ou seria um sentimento de uni-
ferencial masculino de paternidade,
ficação entre cria e criadora? Então as
além de infringir o direito de escolha
pessoas que optam por acompanhar
da criança sobre seus próprios refe-
o crescimento e desenvolvimento de
renciais, impõe a quem cria um mo-
uma criança (no caso das parentalida-
delo de criação.
des dissidentes) estão impedidas de
desenvolverem esse sentido? Ainda:
se esse sentimento for exclusivo de Até onde surfamos na onda
quem gera uma criança, o termo mais e até onde nos permitimos
adequado a quem pode possuir tal afogar?
superpoder ainda seria mãe? E os ho-
mens que têm útero e podem engra- Desde que muriquinho nasceu, te-
vidar, no caso dos homens trans, es- nho minha maternidade posta à pro-
tão de fora desse jogo de atribuições? va e me deparado com o que sinto e
como reajo quando perambulo com
O problema não está, em si, na
ele na rua, ou vou a uma consulta com
percepção de uma relação mais ínti-
uma pediatra, ou quando vou cumprir
ma com os sujeitos da criação e nas
qualquer obrigação. E apesar de mui-
habilidades que estão aí para serem
tas vezes não ser reconhecida como
desenvolvidas, mas se encontra em
a mãe de meu próprio filho, existe em
como nós enquanto sociedade pro-
contraposição, um olhar social que de
curamos falhas naquelas e naqueles
certo modo me reconhece como cui-

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 149
dadora. E vejam: não há problema ne- conseguiu entender isso, essa é uma
nhum em ser cuidadora, inclusive mui- questão que deve ser acessível à to-
tas mães brasileiras conseguiram criar des. Talvez porque não é preciso de
seus filhos porque os deixavam sob muito esforço para fazer uma leitura
os cuidados da comunidade (vizinha/ visual da existência dos signos que
tia/avó...) para trabalhar cuidando dos opto por expressar e no contato com
filhos dos outros, inclusive esse é um eles, não só apreender como imposi-
assunto que merece respeito e mais ção ou ideologia transgressora, mas
tempo de conversa. Mas essas mães dialogar principalmente como o que
nunca deixaram de serem mães. são: subjetividades de alguém que é
real e que também contribui para a
Muitas vezes, cansada de buscar
formação de nossa cultura.
aprovação e de lutar contra uma onda
que eu sabia que poderia me afogar, Como quem tempesteja em mar
acolhi com respeito o olhar que o ou- aberto também é válido aqui chover
tro lançava sobre mim. E mergulhei um pouco da experiência que trans-
fundo. A questão que pode me afogar forma minha vida e clamar olhares
é que eu sei que eu sou cuidadora do de amor para essa travessia que é a
meu filho, eu cuido dele e cuidando mar-ternidade, falar sobre mar, rio e
sou curada. Só que eu também sou lagoa que são as águas infindas que
mais do que isso. Eu não sou uma pro- formam essa trajetória e também so-
fissão ou um suporte pra uma outra bre o calor que envolve essa enchente
mãe que precisa fazer os corres dela. alagoana que acabou por transbordar
Eu também sou a mãe e apesar de no Rio Acre. Águas infindas porque na
travesti também sou fundadora dessa junção dos três nunca se sabe onde
nova família tradicional brasileira. começa um e termina o outro. Assim
como eu em minha experiência mar
Se a negação de minha mulheri-
eterna.
dade e de minha maternidade ainda
ecoa na minha existência e se eu só É preciso voltar no tempo: me-
me calo diante disso, como ficam as mória, paisagem em movimento que
lutas de tanta gente que veio antes carrega respingos do que sempre foi
de mim? E como fica quem vem de- ancestralidade e hoje reverbera em
pois? E a vida de meu filho é menos como eu me projeto mulher e mãe de
importante porque a mãe dele é uma meu filho. Se não sei onde começo ou
travesti? onde termino, é porque nesse nascer
de quem vem depois de mim, eu me
torno outras e, por isso, ancestral de
Trovões de acordar e amar:
uma nova linhagem de esperança de
a glória de ser mãe travesti poder de existência do povo preto.
ou o fim do que digo agora
E nessa experiência de mar eter-
Afinal, a mãe é ela e ela: singular nidade também me percebo onde a
e plural. E não existe um pai. Se eu construção social do amor enfim en-
consegui entender isso e minha mãe contra casa e faz dela caminho para

150 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
um entendimento de que ser mãe tralidade gritando em meus ouvidos
não-cis/não-hétero – e mesmo que a cada intuição acionada, inclusive no
ainda fosse – ou assumir uma paren- ato de ser mãe? O que seria de uma
talidade dissidente nessa nossa con- pessoa preta e travesti sem o tato de
temporaneidade pode ser um even- sua história?
to chave na mudança de paradigmas
É nesse sentido que, enquanto
sociais. É nesse cuidado e criação de
mãe, reivindico sempre que neces-
quem vem depois que vejo ainda mais
sário a prática de nutrição de nossas
forças no rompimento das estruturas
crianças com nossas referências: seja
pré-estabelecidas como oficiais e
no almoço que minha mãe me ensi-
norteadoras de nossos afetos. Nes-
nou a fazer, numa história que minha
se sentido, quero dizer que ser mãe
avó contava ou em como tenho res-
é um ato político de real importância
significado memórias para que a his-
cultural.
tória siga adiante através de minha
Embora eu já tenha percebido a herança honrando o protagonismo
importância da teimosia na criação da criança como maior presente her-
de rachaduras das estruturas sócias dado pela natureza. Porque acredito
em se tratando de como nós pessoas que uma criança filha de mães não cis
pretas, travestis e de outras dissidên- ou de outras parentalidades são ver-
cias de gênero e sexualidade, tenho dadeiras bombas atômicas tinindo os
pensado que a experiência de minha ouvidos de quem não consegue lem-
maternidade travesti tem me revela- brar das guerras que se passaram.
do mais ainda o quanto precisamos
Por fim, minha experiência en-
destacar a ação de teimar em nosso
quanto mãe travesti e preta não diz
cotidiano. Teimosia é onde começa a
só sobre mim, mas principalmente
continuação da história, pois se não
sobre quem vem depois. Ou, o que
fosse ela ancestralidade seria qual-
acontece com o mar depois que mar
quer coisa contada em pele cis-hete-
termina? Inclusive, é mais sobre o ho-
ro e branca, datada em branco, pas-
rizonte avistado no mar, do que sobre
sada em branco, embranquecida para
o próprio mar. É sobre a possibilidade
se comemorar e relatar o incomemo-
de haver outras histórias além-mar a
rável: apenas o sofrimento de nossos
serem contadas.
ancestrais. E o que seria de nós? O
que seria de mim sem a minha ances-

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 151
Transgeneridades: Mulheres
trans, travestis, homens trans,
transmasculinidades e não-binariedade

Lam Matos

Gênero

Para falarmos um pouco das identidades de gênero é preciso entender pri-


meiramente sobre o que é uma identidade de gênero, ou pelo menos, saber
minimamente sobre o conceito.
O gênero propriamente dito é uma expectativa comportamental criada em
torno do sexo biológico, de uma característica física do corpo, e que foi separa-
da em dois, o corpo com pênis e o corpo com vagina.
Vale sempre lembrar que essa separação dos corpos em apenas dois causa
ainda uma exclusão e não legitimidade de pelo menos outras 41 possibilidades
de corpos físicos e biológicos possíveis, que são identificados como interse-
xos. Essa variação corporal e biológica pode ser pela ambiguidade das geni-
tais, pela presença externa de uma genital e os órgãos internos do sistema re-
produtor oposto, pode ser também IDENTIDADE DE GÊNERO
apenas hormonal, quando não se
As identidades de gênero foram
produz os níveis hormônio esperado
divididas pela sociedade em apenas
para cada corpo, ou ainda cromos-
duas, a feminina e a masculina e fo-
sômica, quando a pessoa com vagi-
ram definidas assim com base na bio-
na é de cromossomo XXY, XYY, XXX
logia do corpo como sendo aceitável
e vice versa, além de outras dezenas
apenas dois tipos, o corpo com pênis
de possibilidades. Em casos de am-
e o corpo com vagina. Essa divisão foi
biguidade genital a cirurgia de ade-
quação não deve ser considerada a feita da seguinte maneira: o corpo
melhor solução, hoje a comunidade com pênis sendo apenas o masculino
intersexo luta pela decisão da pes- e pertencente ao homem e o corpo
soa intersexo passar ou não por essas com vagina sendo apenas o feminino
cirurgias. Por muito tempo, e ainda e pertencente a mulher.
hoje, existe uma decisão médica so-
Durante décadas foi sustentado
bre esses corpos, que os padronizam
como correto ou ideal esses dois gê-
baseados em características cis nor-
neros, atribuindo ainda sobre esses
mativas e mutiladoras, causando na
corpos expectativas de um papel de
grande maioria dos casos, traumas e
gênero pré-estabelecido para cada
problemas inumeráveis as pessoas in-
um, a de que os homens fossem viris,
tersexo no futuro.
fortes e provedores e de que as mu-
O gênero também pode ser visto lheres fossem sensíveis, submissas,
como uma construção social, uma gestantes e cuidadoras do lar e dos
forma de entender, visualizar e se re- filhos.
ferir a organização social da relação
Sendo gêneros impostos sobre
entre os sexos, uma forma primária
esses corpos mesmo antes de te-
de dar significado às relações de po-
rem consciência sobre suas próprias
der e ainda de “deveres” que foram
identificações, outras identidades fo-
atribuídas às pessoas a partir de suas
ram surgindo ao longo das décadas
genitais. Tudo isso foi se construindo
e da transformação da sociedade,
e se consolidando ao longo das dé-
questionamentos sobre a divisão dos
cadas como uma norma a ser seguida
gêneros em apenas dois fizeram com
e uma “tradição” que não deveria ser
que outras possibilidades de auto
quebrada.
identificação surgissem e se legiti-
Essa expectativa sobre as geni- massem na sociedade.
tais de cada corpo pode ou não ser
Como o próprio nome diz, identi-
correspondida pelo indivíduo, isso
dade de gênero é como o indivíduo
porque cada pessoa pode ou não se
se identifica, podendo ser ou não
identificar com essa expectativa. Daí
correspondente ao gênero que foi
temos uma diversidade nas identifi-
sugerido ao nascimento com base
cações de gênero.
em suas genitais.

154 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
Para entendermos os conceitos TRANSGÊNEROS
da diversidade nas trans identida-
Ao contrário das identidades cis-
des, precisamos também entender o
gêneras, as identidades transgêne-
conceito das cis generidade, que ali-
ras são associadas a pessoas que
ás, foi quem criou a norma binária de
demonstram discordância ao gênero
gênero que temos hoje.
atribuído ao nascimento.
O prefixo TRANS, ao contrario de
CISGÊNEROS
CIS, quer dizer “do outro lado” ou “do
São pessoas que tem uma identi- lado de lá”. Vindo do latim TRANS
dade de gênero idêntica ao gênero que quer dizer ALÉM ou ATRAVÉS. A
atribuído ao nascimento, baseando- exemplo, transatlântico, o que atra-
-se na genital do indivíduo. vessa o atlântico, Trans Jordânia, do
lado de lá da Jordânia.
A palavra cisgênero vem do latim
cis, e significa “do mesmo lado, des- Quando a pessoa nasce com pê-
te lado”. Temos também por cis o nis e se identifica como mulher ou o
termo romano antigo Gália Cisalpi- feminino, é uma mulher trans ou tra-
na, que seria a Gália deste lado dos vesti.
Alpes, ou Cisjordânia que seria deste Quando a pessoa nasce com va-
lado da Jordânia. gina e se identifica como homem ou
Sendo assim, quando se tem o gê- masculino, é um homem trans ou
nero pré-imposto ao indivíduo, base- transmasculino.
ado em sua genital e essa informa- Ao contrário da cisgeneridade bi-
ção não se cruza e esse indivíduo se nária, que se divide em apenas dois
identifica com essa atribuição, temos gêneros, masculino e feminino, as
uma identidade cisgênera. identidades trans vão muito além. O
Quando a pessoa nasce com pênis entendimento de que não precisa-
e se identifica como homem, esse é mos ficar atrelados apenas ao que
um homem cisgênero ou homem nos foi imposto ao nascimento, nos
cis. dá a oportunidade de nos identificar-
mos com o gênero que nos faz sentir
Quando a pessoa nasce com vagi- mais confortável, descobrindo uma
na e se identifica como mulher, essa diversidade de outras possibilidades
é uma mulher cisgênera ou mulher de identidades de gênero. Essa di-
cis. versidade vai além das trans identida-
Faço aqui um lembrete de que es- des de homens trans, mulheres trans
tamos nos referindo a identidade de e travestis, como também as identi-
gênero e não a orientação sexual. A dades não-binárias.
orientação sexual diz respeito à rela- As identidades não binárias vão
ção afetiva/sexual que cada pessoa muito além de se identificar apenas
possui. com um gênero masculino ou femi-

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 155
nino, essas identidades podem ser brança sobre o papel de gênero, so-
neutras, fluidas ou agênera, e ainda bre a forma como vamos performar a
assim ter mais uma infinidade de pos- nossa
sibilidades.
identidade masculina. É colocado
Entender esses conceitos é im- sobre o masculino uma série de re-
portante para termos outros pontos gras de como se deve andar, sentar,
de vista sobre a construção dos gê- falar, do que beber, comer, vestir e se
neros na sociedade e como eles se relacionar. A cisgeneridade
relacionam nessa organização que
criou uma prisão masculina de gê-
foi constituída com base numa única
nero, feminina também, mas vamos
possibilidade de gênero, que é a cis-
falar disso mais a frente. A masculini-
generidade.
dade se torna tóxica para seus identi-
Ao longo dos tempos a transgene- tários quando não permite a flexibi-
ridade veio ganhando espaço e uma lização da mesma. A necessidade de
considerável visibilidade. Nas espe- ter que ser duro, forte, não demons-
cificidades de cada identidade trans, trar sentimentos, ser grosso, não se
a transmasculinidade é uma que vem abater, não demonstrar fraqueza ou
a passos pequenos, mas cheios de qualquer coisa do tipo faz com que
força e muita luta, conseguindo uma a masculinidade seja sufocante, o que
brecha ao sol. gera infinitos problemas, principal-
mente na saúde mental, tanto para
Transmasculinidades se referem às
transmasculinos quanto para os pró-
identidades masculinas, incluindo ho-
prios homens cisgêneros. Muito além
mens trans e não-binários.
do desempenho do papel de gênero,
As pautas dessa comunidade existem outros problemas que insis-
transmasculina vão muito além de ter tem em assolar a comunidade trans-
a identidade respeitada, de ser tra- masculina e ter uma genital dita “não
tado no gênero masculino ou neutro, condizente” com o gênero a que se
do acesso a uma transição saudável identifica acarreta uma série de vio-
e bem acompanhada, desde a saú- lências inimagináveis, desde o não
de mental até intervenções cirúrgi- respeito a identificação com o mas-
cas seguras e de qualidade, sem ter culino até a insegurança sobre direi-
a sensação de ser apenas um objeto tos sexuais e reprodutivos.
experimental e de pesquisa para a
Somos ignorados constantemente
comunidade médica.
por não termos o falo (pênis) como
Com corpos possuidores de vagina órgão genital que ateste nossa iden-
e seu respectivo conjunto reprodutor, tidade masculina, digo somos por
salvo os casos de pessoa intersexo, que este que escreve é também um
as pessoas transmasculinas passam homem trans. Aliás, vou mais além
por machismos, misoginia, assédios, do ignorados, somos rejeitados des-
desqualificações de gênero e muitas se espectro masculino enquanto
outras opressões. Existe uma co- possuidores de vagina por ousarmos

156 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
a “invadir” um espaço imaculado e imaginário adoece e intoxica ainda
sagrado, repleto de “privilégios” que mais os homens, cis e trans, fortale-
é esse mundinho fechado do mas- cendo uma sociedade machista, mi-
culino. Masculino cisgênero, diga-se sógina e violenta, cercada de medos,
de passagem, porque quem o cons- traumas e mortes.
truiu foi nada mais nada menos que
Essa cobrança por um masculino
o homem cisgênero, provavelmente
ideal para que transmasculinos sejam
heterossexual, branco e detentor de
aceitos nesta “confraria” resulta tam-
um poder capitalista.
bém nesses indivíduos cada vez mais
Outra pauta que é muito cara para inseguros com seus corpos e sua
a comunidade transmasculina são os identidade de gênero. A ausência de
direitos sexuais e reprodutivos, existe referência para transmasculinos fez
uma necessidade urgente de se levar com que parte deles reproduzissem
esse assunto para as rodas de discus- o machismo e uma masculinidade tó-
são sobre saúde. Os transmasculinos xica para eles e para outras pessoas,
e homens trans estão cada vez mais mas, felizmente, cada vez mais essa
encarando o desafio que é gerar comunidade tem ampliado o debate
seus próprios filhos, passar por cima sobre uma transmasculinidade sau-
de todas as barreiras que a cisnorma- dável e sido referência uns para os
tividade impõe para exercerem a pa- outros. A coragem e a ousadia de en-
ternidade de maneira saudável e sem carar a masculinidade toxica tem sido
abalar suas identidades, mostrando crescente entre os transmasculinos,
ainda que, o gênero enquanto cons- romper suas próprias barreiras e mos-
trução social, pode ser, e é mutável, e trar aos homens cis que abrir um le-
não deve se apegar a características que de outras possibilidades de viven-
biológicas para se legitimar. cia dessa masculinidade pode ser um
alívio e não um tormento que abalaria
As transmasculinidades batem de
suas identidades, isso porque diaria-
frente com a masculinidade cis hege-
mente somos confrontados por ou-
mônica estabelecida quando mostra
sarmos “invadir” um lugar de privilégio
que não é uma genital que justifica
masculino, nos afirmando masculinos
o gênero, mas sim o sentimento de
sem as “ferramentas” para justificar tal
pertencimento e a postura conscien-
afirmação, e isso para uma sociedade
te que se adota quando se identifica
machista e falocentrica é um absurdo,
com tal, e acabamos por provar de
ter que reconhecer nossas identida-
uma vez por todas que esse ideal de
des transmasculinas quando não usa-
masculino imposto e exigido aos ho-
mos do falo para sustentar nenhum
mens é inalcançável e utópica, e que
argumento. É aí que também sofre-
nem mesmo o homem cis, branco,
mos a misoginia, encarar a opressão,
hétero e rico, no auge dos seus privi-
violência e apagamento quando de-
légios, vai conseguir alcançar, muito
claramos uma identidade legitima-
pelo contrário, essa busca e essa ne-
mente masculina em corpos com va-
cessidade de provar esse masculino
gina, útero, ovários e trompas.

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 157
Em outro nível, um pouco inverso pertencente apenas as ruas, prostitui-
dos transmasculinos e a um tempo ção e violência, enquanto as declara-
a mais na estrada, temos as mulhe- das mulheres trans poderiam ocupar
res trans e travestis, que passam pela outros espaços, mesmo que ainda
discriminação primeiramente sen- com alguma restrição, mas, desde
do apontadas como desertoras de que começaram a se organizar para
um lugar de privilégio quando essas lutar por seus direitos, mulheres trans
nascem com pênis e são compul- e travestis mudaram, e ainda mudam,
soriamente definidas com o gênero a história de suas identidades. Res-
masculino ao nascer. Numa socieda- significaram esses lugares a que fo-
de machista, onde o privilégio maior é ram colocadas quando participaram
do homem, abdicar desse lugar é um da campanha “TRAVESTI E RESPEI-
ultraje. Como alguém ousaria abrir TO: já está na hora de os dois serem
mão dessa masculinidade intocável vistos juntos. Em casa, na boate, na
para se autodeclarar mulher ou fe- escola, no trabalho e na vida” lançada
minina? Temos também a misoginia, no Congresso Nacional em 2001. A
quando mulheres trans e travestis são campanha foi realizada por lideranças
colocadas como fracassadas por se do movimento organizado de traves-
identificarem com o feminino/mu- tis e mulheres trans em parceria com
lher, são rebaixadas pela sociedade o Programa Nacional de DST/Aids. O
machista e colocadas num limbo, na objetivo dessa campanha era justa-
beira da calçada, sujeitas a violência mente quebrar preconceitos e para-
de todo tipo, empurradas para traba- digmas sobre esses corpos e identi-
lhos ditos menos valorizados, tendo dades. Obviamente isso não resolveu
seus corpos violados como se esse todos os problemas, mas abriu cami-
fosse um castigo por abandonarem nho para o início de uma nova cami-
seu trono de poder masculino. Ser nhada.
resiliente é praticamente um dever,
Ainda que aparentemente muito
quando se tem que passar por cima
recente, vem se organizando uma co-
de tantas opressões e violências para
munidade transgênera, que ao meu
se manter de pé.
ver, soma e muito com toda comuni-
Entre todos os desafios diários que dade trans, me refiro as pessoas não-
uma mulher trans ou travesti passa, -binárias. Pensar na não-binariedade
vale citar o caminho que traçam para é basicamente questionar a forma
serem reconhecidas como mulher/ em como a sociedade veio se orga-
feminina. Há de se observar que não nizando de maneira tão arcaica, se
existe uma teoria que diferencie es- dividindo em apenas dois gêneros,
sas duas identidades, mulher trans masculino e feminino, e fazendo dis-
e a travesti, o que as difere além do so um pilar para sustentar toda uma
fato de que cada uma se autodeclara norma de como os papéis devem ser
como bem quiser, temos na história executados e ordenar quem faz parte
dessa comunidade o fato de que a de qual gênero, baseando-se apenas
sociedade coisificou a travesti como em genitais que nada tem haver com

158 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
esses comportamentos. As identida- para encontrarmos uma identidade
des não-binárias são praticamente única, pessoal, autodeclarada e ainda
infinitas, pois vão muito mais fundo legítima. Talvez a beleza na não-bi-
nos papeis de gênero, nos comporta- nariedade seja justamente esse le-
mentos e nas expressões de gênero, que quase infinito de possibilidades
não se prendendo apenas ao mascu- de viver o gênero, e não apenas um
lino ou ao feminino, mas misturando, gênero como pensamos. Nos des-
fluindo ou abdicando deles. Essas prender dos papéis impostos e das
identidades questionam muito mais expressões esperadas para cada gê-
afinco a estrutura binária que a so- nero é entender uma outra liberdade
ciedade criou, partem também para de ser realmente quem se é e quem
a flexibilização da língua portuguesa queremos ser.
praticada hoje, desafiando a criar uma
Falando assim parece fácil e muito
linguagem neutra para irmos além do
bonita a não-binariedade, não fosse
masculino e feminino que nos parece
pelo preconceito e pelo não lugar
tão confortável para nossa comunica-
que as pessoas não-binária podem
ção, mas que na verdade é apagado-
estar. O não lugar se dá pelo fato
ra dessa identidade também legítima.
de não estarem apegadas a apenas
Outro desafio que as identidades um gênero, isso causa uma não in-
não-binárias nos coloca é a de como clusão dessas identidades em vários
observamos o outro, quando nos- aspectos, seja social, de saúde ou de
sa mente foi treinada por milhões de direitos. A sociedade não está pre-
anos a ler o que é masculino e o que parada ainda para discutir a não-bi-
é feminino com apenas alguns sinais nariedade, na verdade ela não está
e acabamos por deduzir sem que- preparada para nenhuma identidade
rer questionar que toda pessoa com que não seja cis, mas, num geral, não
barba é homem/masculino e toda faz sentido para eles uma pessoa
pessoa com cabelo longo é mulher/ não ser apenas masculino ou femini-
feminina, mas que na verdade esses no ou ser nenhum dos dois. Falando
sinais podem estar completamen- de espaços para se debater o assun-
te misturados ou simplesmente não to e levantar suas pautas, as pessoas
existir e essa pessoa ser apenas uma não-binárias encontram dificuldades
pessoa de gênero neutro, é nesse para discutir diversos temas justa-
momento que temos que entender mente pela fluidez de suas identida-
essa neutralidade de gênero, exer- des, mas isso não significa que não
citar a linguagem neutra e respeitar estão se articulando e conquistando
essa identidade. seu espaço. Cada vez mais vemos em
diversos meios, por mais simples que
Podemos também ter uma fluidez
seja, referencias de uma não-binarie-
entre os gêneros e não estarmos pre-
dade, como propagandas que levan-
sos a apenas um, mas transitar entre
tam o debate de que roupa não tem
eles, ser hora feminino, hora masculi-
gênero, isso é parte de um debate le-
no ou ainda usar dos dois espectros
vantado pela população não-binária

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 159
de que o gênero é uma construção gêneros, mas questionar como são
social imposta em tudo o que faze- executadas essas identidades, trans
mos, como comemos, nos vestimos e e cis, como elas organizam a socie-
nos comportamos. dade, como ela afeta negativamente
e/ou positivamente essa sociedade,
De uma forma geral esse debate
o que precisa ser mudado e com que
de como esses papéis e expressões
urgência e como isso tudo afeta as
são desempenhados por cada um
pessoas quando esse gênero aprisio-
em sua identidade de gênero, já vinha
na a maneira como cada um deve vi-
sendo levantado pela comunidade
ver e se comportar.
transgênera num geral, mas ganhou
mais força e argumentos quando a De uma forma geral as identida-
comunidade não-binária veio fazen- des trans, cada uma em seu espaço e
do mais barulho e sendo ouvida. com suas pautas e demandas, abrem
uma porta para questionarmos es-
Falar sobre gênero e suas identi-
ses comportamentos sociais de uma
dades não deveria ser um assunto
maneira geral e fomentam o deba-
apenas da comunidade transgênera
te sobre as violências de gênero em
(homens trans, transmasculinos, mu-
vários espaços, ajudando a iluminar
lheres trans, travestis e pessoas não
possíveis soluções e lançando desa-
binárias), ele vai muito além e atin-
fios para que cada um questione seu
ge principalmente a forma como a
lugar de privilégio, ou não, e repensar
nossa sociedade se organiza e como
nas mudanças necessárias para uma
mantém ainda vigorosa tantas opres-
sociedade mais ampla, acolhedora,
sões e violências, tanto para homens
questionadora e liberta de tantos pa-
quanto para mulheres. Debater os
drões.
gêneros não é querer eliminar os

160 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
Projeto Pesquisa e Formação: um olhar para
a população LGBTI+
Legislação, políticas públicas e movimento
lésbico e incidência política

Lu Ferreira1

Como atuar na cultura histórica e estrutural de violência


de nosso país?

O exercício de escrever é uma oportunidade de revisitar ideias, crenças com


possibilidade de reorientar pensamentos. Esse texto pretende provocar um res-
gate de memória, para distanciar a incidência política do movimento lésbico do es-
quecimento, pois pensar políticas públicas relacionadas ao movimento de lésbicas
e sua incidência sobre a legislação no Brasil, é lidar também com alguns silencia-
mentos. Pois o tema da diversidade sexual nas políticas educacionais brasileiras, se

1 Lu Ferreira (ALVES, L. F.): é pessoa trans não-binária. Ativista em Direitos Humanos com foco na
comunidade LBT (Lésbicas, Bissexuais e Transexuais). Tem formação acadêmica em História e Políticas
de Comunicação e de Cultura.
misturam com as questões de gênero, alidades, pela diversidade de orien-
em que pesa a atuação do masculino tação sexual e identidade de gênero,
binário, que se pretende dominante, eis que surge o Seminário Nacional de
apesar de falhar categoricamente em Lésbicas, conhecido como SENALE.
suas tentativas permeadas por estig- Reconhecido como um espaço de in-
mas orientados pela invisibilidade po- teração político pedagógico nacional
lítica da atuação de mulheres. construído por Lésbicas e mulheres
Bissexuais no Brasil. Nasceu como um
Os conflitos advindos dessa tradi-
Seminário, reunindo lésbicas pela pri-
ção misógina (miseo e gyne = ódio
meira vez na cidade do Rio de Janei-
à mulheres), não apagam as memó-
ro, em 1996, onde se estabeleceu o
rias de períodos e caminhos traça-
29 de agosto como DIA NACIONAL
dos rumo à construção de atuações
DA VISIBILIDADE LÉSBICA, mas se
direcionadas a conquistas referentes
transformou, ao longo dos anos, no
aos direitos humanos da população
maior evento deliberativo de lésbicas
LGBTQI+ neste país. Considerar essa
e bissexuais do Brasil, questionando
historicidade oferece elementos ne-
os padrões culturais pré-estabeleci-
cessários para ampliação do assunto,
dos e propondo o rompimento com o
o que não os delimitam às linhas das
padrão heteronormativo socialmente
perspectivas dos relatos que serão li-
imposto. Ao todo foram realizados
dos aqui.
sete (07) Encontros Nacionais, a par-
Nos limites e possibilidades vis- tir da edição de 1998:
lumbrados inicialmente por um mo-
I SENALE: 1996 – Rio de Janeiro\RJ
vimento voltado para o que foi cha-
II SENALE: 1997 – Salvador\BA
mado no final da década de 1990, de
III SENALE: 1998 – Betim\ MG
movimento de liberação homossexu-
IV SENALE: 2001 – Aquiráz\CE
al, a busca por transformação cultural
V SENALE: 2003 – São Paulo\SP
em relação à sexualidade, progressi-
VI SENALE: 2006 – Recife\PE
vamente se permeia a agenda de luta
VII SENALE: 2010 – Porto Velho\RO
por conquistas relativas aos Direitos
VII SENALE: 2014 – Porto Alegre\RS
Sexuais, assim como ao combate ao
preconceito, à discriminação e à in- A partir desse movimento na dé-
tolerância contra a população LGB- cada de 1990, aconteceram nacional-
TQI+. Tudo isso associado à busca mente diversos encontros, debates e
por dignidade humana no trato, pelo atividades estimulados por ativistas e
direito de exercer cidadania, valorizar pesquisadoras lésbicas visando quali-
a visibilidade como estratégia de re- ficar os debates e iniciativas do movi-
sistência ao direito de existir. mento lésbico brasileiro.
Com o propósito de discutir, refletir No decorrer do texto vamos en-
e propor ações para intervir nas polí- tender política pública por diferentes
ticas públicas, através da construção perspectivas, nesse exercício inicial
coletiva, na busca por direitos e dig- de memória e de conhecimento, a
nidade, pela livre expressão das sexu- referência será a elaboração de Sec-

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 163
chi (2013), que diz que, uma política voco da tentativa de serem legitima-
pública é uma diretriz elaborada para das por meio de frágeis afirmações
enfrentar um problema público, sen- de significarem expressões de “ajuda
do então uma orientação à atividade para correção de comportamentos
ou à passividade de alguém e que desviantes da norma”. Muitas, muites
possui dois elementos fundamentais: de nós já ouvimos expressões como:
intencionalidade pública e resposta “não é normal sentir atração sexual
a um problema público onde a razão por alguém do mesmo sexo, isso é
para o estabelecimento de uma polí- nojento”. Atuações absolutamente
tica está posta. violentas e descompensadas que são
tidas como corretas.
Compreendendo também que
como “a política em si caracteriza-se As crenças que motivam esse am-
como o diálogo entre sua formulação biente violento para a comunidade
e sua implementação, ou seja, a inte- LGBTQI+, podem ser alteradas para a
ração entre o que se propõe executar compreensão de que se trata de mo-
e o que se realmente executa”, con- dos diversos de viver as sexualidades,
forme Sampaio e Araújo Jr. (2006, o que pode potencialmente transfor-
p. 341), a ideia passa pela análise de mar um país desigual e violento em
alguns aspectos: o que se quer, o que um lugar no mínimo aproximado da
se necessita e o que se recebe de re- coerência do conceito e da prática de
torno. respeito ao próximo. Pois não é em
todo lugar que as sexualidades são
A reivindicação de políticas públi-
concebidas e vividas pelos olhares
cas está explicitamente associada à
dos entendimentos de pecado ou de
pauta das reivindicações na esfera le-
sem-vergonhice. Estas formas de ver
gislativa, indispensáveis para assegu-
a diversidade sexual humana estão
rar tratamento de política de Estado
presentes em sociedades com tradi-
aos direitos civis de segmentos so-
ção moral cristã equivocada, em que
ciais considerados minorias políticas
o Brasil está inserido, apesar de cons-
no Brasil. Aqui existe uma questão
titucionalmente posicionar-se como
séria que deve ser enfrentada, a po-
Estado laico.
lítica se confunde com cunho moral,
oriundo da dimensão ideológica, que A demanda geral dos seguimen-
afeta diretamente a elaboração e im- tos do movimento LGBTQI+ envolve
plementação de políticas públicas. reivindicações nas áreas dos direitos
civis, políticos, sociais e humanos, o
Em nossa sociedade a experiên-
que exige atuação articulada e coor-
cia vivida por setores do movimento
denada com todas as áreas do Poder
LGBTQI+ mostra que os direitos à ci-
Executivo, para que as políticas públi-
dadania das pessoas que transgridem
cas se tornem efetivamente políticas
a norma sexual estabelecida, que é a
de Estado. Quando essa abrangência
heterossexualidade, nos expõem a
falha, a possibilidade de se gerar ex-
diversas violências, que em geral, se
clusão é mais latente, como aconte-
manifestam juntamente com o equí-

164 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
ceu na década de 1990, quando as comuns das conquistas. Tais reflexões
lésbicas, por não serem inicialmente possibilitaram e possibilitam aos movi-
consideradas como grupo com práti- mentos de mulheres lésbicas e bisse-
ca de risco, não foram contempladas xuais se libertarem do estigma inicial
nas ações de prevenção da AIDS. de serem vistos tão marcadamente
como separatistas, fortalecendo in-
É possível entender que a aproxi-
clusive novas conquistas anti-machis-
mação das lésbicas e bissexuais em
tas em diversos campos de atuação.
relação as mulheres com agendas
do movimento feminista proporcio- A incidência política do movimen-
naram a qualificação das discussões to lésbico colaborou com a preocu-
internas de todas as partes, desde pação em garantir o debate sobre
pensar sobre o tratamento da ques- a diversidade sexual no âmbito da
tão homossexual dentro do movi- educação, contemplada no Plano
mento feminista brasileiro e da ques- Nacional de Políticas para as Mulhe-
tão da mulher dentro do movimento res, nas suas duas edições de 2004 e
homossexual, influenciar na elabo- de 2008 por meio de articulação de
ração da primeira publicação lésbica mulheres de todo o país, integrantes
do país; a “ChanacomChana”, criado ou não de movimentos feministas. E
pelo Grupo Lésbico-Feminista (LF de foi nesse período da história que sur-
1979 a meados de 1981). O que pos- ge a Associação Feminista de Brasília
sibilitou evidenciar a necessidade de e Entorno, a Coturno de Vênus, que
atuações por demandas específicas atua até os dias atuais, se aproximan-
desses grupos, a exemplos: diminuir do de duas décadas de atuação.
a incidência de machismo nas expe-
Essas atuações conjuntas forta-
riências públicas e privadas; comba-
leceram as questões de gênero do
ter a misoginia como estratégia de
movimento de mulheres lésbicas, in-
exclusão de mulheres nos espaços
tegradas com questões das mulheres
de decisão; identificar e se defender
negras e das feministas do quadro
de lesbofobia; enfrentar e fragilizar a
nacional.
invisibilidade feminina utilizada como
instrumento de poder do masculino A mobilização pela incidência rumo
binário no próprio movimento LGBT- a uma educação igualitária se deu no
QI+ e nas diversas esferas de atuação sentido de reivindicar, dentre outras
política da sociedade brasileira. prioridades, ações que promoves-
sem a sensibilização de gestoras e de
Com o passar do tempo e os avan-
gestores da educação em todas as
ços das lutas por direitos igualitários,
instâncias de governo para a temática
ampliar os debates sobre as especi-
da diversidade sexual na escola. Tan-
ficidades de cada segmento fortale-
to no sentido de contemplar etapas
ceu a cultura da diversidade como um
para uma formação continuada de
todo, evidenciando que as demandas
professoras e de professores, quanto
e ativismos apesar de terem suas par-
da elaboração de materiais didáticos
ticularidades se encontram em lugares
adequados ao tema, com mudança

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 165
curricular. A questão de pensar eta- Executivo foram resultado de inci-
pas vislumbrou conquistas progres- dência política organizada progressi-
sivas em direção a uma educação vamente com a participação do mo-
inclusiva e não-sexista com objetivos vimento lésbico brasileiro:
como “incorporar a perspectiva de
a) em 2004 criação do “Brasil Sem
gênero, raça, etnia e orientação sexu-
Homofobia (BSH) – Programa de
al no processo educacional” (BRASIL,
Combate à Violência e à Discrimi-
2004, p. 56).
nação contra GLBT’s e de Promo-
A educação é um instrumento de ção da Cidadania Homossexual;
combate a práticas estimulantes de
b) em 2008, realização da I Con-
comportamentos violentos. Quan-
ferência Nacional de Gays, Lésbi-
to menos informação, mais violência.
cas, Bissexuais, Travestis e Tran-
Naquele momento (início dos anos
sexuais, com o tema “Direitos
2000) esses segmentos ativistas que
humanos e políticas públicas: o
atuaram com incidência na educação,
caminho para garantir a cidada-
viviam e observavam o alto nível de
nia de Gays, Lésbicas, Bissexuais,
exposição violenta de diversos gru-
Travestis e Transexuais (GLBT);
pos politicamente minoritários, como
exemplo: o 3º Relatório Nacional so- c) em 2009 lançamento do “Plano
bre os Direitos Humanos no Brasil Nacional de Promoção da Cida-
(USP, 2006), relata 360 homicídios dania e Direitos Humanos de Lés-
de gays, de lésbicas e de travestis no bicas, Gays, Bissexuais, Travestis
Brasil, entre 2003 a 2005. E no sen- e Transexuais” (PNDCDH-LGBT);
tido de estabelecer conceitos, princí-
pios, diretrizes e ações de prevenção, d) em 2009 também a publicação
assistência e garantia de direitos, con- do decreto que criou o Programa
forme normas e instrumentos interna- Nacional de Direitos Humanos 3
cionais de direitos humanos e legisla- (PNDH-3);
ção nacional, surge o Plano Nacional Por que elencar alguns fatos, da-
de Políticas para as Mulheres (PNPM), tas, conquistas faz diferença?
elaborado com base na I Conferência
Nacional de Políticas para as Mulhe- Os motivos e as defesas podem
res, realizada em 2004 pela Secretaria ser diversos, mas aqui é trazido com a
de Políticas para as Mulheres (SPM) e perspectiva de destacar os traços de
pelo Conselho Nacional dos Direitos cidadania insurgente. Por que usan-
da Mulher (CNDM). O combate à vio- do o que Lionço (2009) elaborou, o
lência contra as mulheres, é refletido e que seria a subcultura passa a orga-
questionado incluindo as violações so- nizar-se para se apropriar de bens e
fridas pelas lésbicas também. direitos para o exercício da cidadania,
subvertendo um conceito global de
Seguindo a perspectiva de resgate cultura, em que uma crença velada
de memória, a partir dos anos 2000, fortalecia a ideia de que ser heteros-
algumas ações no âmbito do Poder sexual e/ou pertencer a cisgenerida-

166 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
de masculina seriam a possibilidade interesses de manutenção do aces-
de garantir acessos e o privilégio no so desigual ao poder. Os desafios
exercício de direitos. existem, a realidade está posta como
uma possibilidade, mas pode ser
A legitimidade da discordância
transformada por meio de incidência
pressupõe dentre muitas possibilida-
política.
des, a atenção para estratégias como
articulação, identificação de proble- Tomando como referência e in-
mas, idealização de soluções, pesqui- centivo, a “Iniciativa Direito à Memó-
sa, debates, trocas de experiências, ria e Justiça Racial”, define incidência
criação de estratégias de atuação, política de forma estimulante: um
monitoramento de atividades, avalia- conjunto de ações e estratégias or-
ção das ações como instrumentos de ganizadas por grupos, organizações
poder para atuação efetiva na inci- e movimentos sociais visando cons-
dência sobre políticas públicas e polí- tranger, monitorar e influenciar a for-
ticas de Estado que ampliem direitos mulação de políticas públicas, ações
e assegurem desenvolvimento social sociais ou processos políticos den-
com ganhos reais para o coletivo (co- tro ou fora das institucionalidades e
munidade, sociedade, nação, país). das instituições do poder público. E
Conseguir fazer uma conexão nítida a partir desse conceito se faz possí-
entre as ações planejadas e as ações vel e necessário atualizar estratégias
executadas é um produto de avalia- de atuação do movimento lésbico
ção presente em diversas iniciativas: brasileiro, como por exemplo, acom-
entre o ideal e o real, temos resulta- panhar as ações e proposições legis-
dos com poder de orientação. lativas no campo da saúde, da cida-
dania, do controle social dos meios
Entender o planejamento, o
de comunicação de massa, dos direi-
acompanhamento e a solicitação de
tos para pessoas LBT, do direito ao
execução de políticas públicas é um
aborto legal e seguro.
conjunto de instrumento capaz de
gerar maior efetividade para direitos Pensar a construção de políticas
previstos em normas legais, manifes- públicas que confiram visibilidade a
tas em ações e programas que são grupos em situação de vulnerabilida-
desafios cotidianos no Brasil, espe- de social, política, econômica, com
cialmente relacionadas à igualdade consequência de exclusão do espa-
na esfera pública entre todas as pes- ço público, aponta a necessidade do
soas, independentemente de orien- resgate da memória e da reconstru-
tação sexual e identidade de gênero. ção da história dos movimentos so-
Potencializar essa perspectiva pode ciais, tanto em suas ações progra-
fortalecer a resistência à atuação de máticas quanto na pesquisa sobre os
setores conservadores da socieda- movimentos vulneráveis, como uma
de, dos governos, que questionam possibilidade de reposicionamen-
a relevância do tratamento dado a to na disputa por respeito às nossas
temas diversos que fogem aos seus existências.

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 167
Nós existimos. Está posto também Referências
o desafio de concretizar práticas que
BRASIL, Ministério da educação.
contemplem a história, as diferenças
Programa Educacional inclusivo direi-
de cada grupo social e cultural, de
to à diversidade. Brasília, 2004, nº 3.
modo que sejam respeitadas dentro
das suas especificidades sem perder GOMES, Nilma Lino. Educação e
o diálogo, ou melhor, retomando di- Diversidade Étnico-cultural. In. MEC.
álogos, valorizando trocas de expe- Diversidade na educação: reflexões e
riências rumo a garantias de direitos experiências. Brasília: MEC, 2003.
sociais.
LIONÇO, Tatiane. Atenção inte-
No sentido de se posicionar diante gral à saúde e diversidade sexual no
das estratégias de incidência política, Processo Transexualizador do SUS:
concordando com a autora Gomes, avanços, impasses, desafios. Revis-
(2003, p. 71), fica a provocação de ta Physis vol. 19 no. 1. Rio de Janeiro,
que a luta pelo direito e pelo reco- 2009.
nhecimento das diferenças não pode
SAMPAIO, J.; ARAÚJO JR, J. L.
acontecer de forma separada e isola-
“Análise das políticas públicas: uma
da e nem resultar em práticas cultu-
proposta metodológica para o estu-
rais, políticas e pedagógicas solitárias
do no campo da prevenção em Aids”.
e excludentes.
Recife: Revista Brasileira de Saúde
Como lidar com esses desafios? Materno Infantil, vol. 6, no 3, 2006, p.
335-346.
Como nos reinventarmos e seguir-
mos oxigenando as atuações sem SECCHI, Leonardo. Políticas públi-
perder de vista o que já é conquista? cas: conceitos, categorias de análise,
casos práticos. 2. ed. São Paulo: Cen-
Será que essas questões servem
gage Learning, 2013.
para todas, para todes ou provocam
a chegada de outras questões/ es- SITE: http://www.fundosocialelas.
tratégias mais pertinentes às especi- org/historia-grupos-coturno-venus.
ficidades de cada setor da sociedade asp
civil organizada?
SITE: https://medium.com/@tosi.
Quais as memórias de conquistas marcela/19-de-agosto-dia-nacio-
que as incidências políticas do (s) nal-do-orgulho-l%C3%A9sbico-8c-
grupo social (ais) em que pertence- 11223d471f
mos podem ser trazidas à tona para
SITE: https://senale.wordpress.
nos incentivar a fortalecer ou re-
com/historia/
começar nossas atuações políticas
rumo a novas legislações que possam
nos contemplar mais e mais em nos-
sas existências diversas?

168 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
Legislação, políticas públicas no Brasil e
Distrito Federal, incluindo direitos sexuais e
reprodutivos

Talita Victor

Direito à Saúde, à Identidade e à Memória

No tocante ao direito à saúde, em decisão recente, numa ação ajuizada por pes-
soa transgênero contra o Distrito Federal, para realização de mastectomia para
transição de gênero, a Primeira Turma Recursal dos Juizados Especiais julgou im-
procedente a ação, uma vez que a cirurgia de retirada das mamas é considerada
eletiva, sem urgência e, assim, deve respeitar a fila de espera do Sistema Único de
Saúde e suas respectivas prioridades. Por outro lado, no mesmo julgamento, os
desembargadores afirmam que o Estado tem o dever de instituir políticas públicas
e mecanismos que garantam a realização do procedimento, a fim de resguardar
a dignidade das pessoas trans e, dessa forma, “o DF tem a obrigação de encami-
nhar o requerente para realização do procedimento, observadas as prioridades de
atendimento já existentes”. 1

1 Acórdão 1380311, 07065877320208070018, Relator: Juiz FLÁVIO FERNANDO ALMEIDA DA


FONSECA, Primeira Turma Recursal dos Juizados Especiais do Distrito Federal, data de julgamento:
15/10/2021, publicado no PJe: 8/11/2021.
Em outro processo, que tramita em Cumpre ressaltar que, no voto mi-
segredo de justiça, a Turma condenou noritário, um dos desembargadores
plano de saúde ao pagamento de in- que julgavam o caso ressaltou que,
denização por danos morais no valor mesmo com as modificações já ini-
de R$ 10.000,00, porque configurada ciadas, como a mastectomia bilateral
violação aos direitos da personalida- e o uso de hormônios para ressaltar
de, por recusa indevida do plano de caracteres masculinos, a genitália per-
custear cirurgia ginecológica e de re- manece com aparência feminina e não
designação sexual. O plano foi conde- é possível garantir o êxito da cirurgia.
nado por inadimplemento contratual e Para o Magistrado, portanto, a rede-
porque causou aflição psicológica, an- signação sexual deveria ser condição
gústia e insegurança, causando prejuí- imprescindível para a pretendida al-
zo à qualidade de vida da vítima. teração do prenome. E esse mesmo
debate foi feito no STF, quando do
Sobre o processo transexualizador
julgamento do REC 670422, mas foi
e o direito à identidade, em 2015, a 2ª
vencido conforme se sinalizou ante-
Turma Cível do TJDFT deu provimen-
riormente. Na ocasião, os votos ven-
to a recurso de um homem transexual
cidos, em parte, foram dos Ministros
que teve seu pedido de alteração de
Marco Aurélio e, em menor extensão,
nome e gênero negado pelo juiz de
os Ministros Alexandre de Moraes, Ri-
primeira instância, que argumentou
cardo Lewandowski e Gilmar Mendes.
que a alteração do registro civil estaria
condicionada à cirurgia completa de Um acórdão que também diz res-
mudança de sexo – isto porque o au- peito à alteração de nome de pessoa
tor já havia se submetido à mastecto- transgênero chama a atenção, por-
mia. Em decisão colegiada (acórdão), que ocorre de maneira inversa. Após a
as desembargadoras concluem que morte do filho, a família ingressou com
ação perante o Tribunal com o objeti-
A pessoa transexual pode adotar nome
que reflita a identidade de gênero com o vo de modificarem o nome e o gênero
qual se identifica ainda que não realizada a do filho falecido nos registros públicos.
transgenitalização, haja vista a existência de
justo motivo para a alteração (Lei 6.015/73, Mais uma vez, a 2º Turma Cível decidiu
55, parágrafo único, 57 e 58) bem como a
incidência dos princípios da dignidade da em favor do reconhecimento da iden-
pessoa humana e da não discriminação tidade de gênero como fator essen-
(CR, 1º, III, e 3º, IV,). Fundamentação
idêntica justifica a mudança do gênero de cial para o pleno gozo dos direitos das
feminino para masculino no registro civil, pessoas trans. Em decorrência disso,
porque a discrepância documental entre
nome e gênero exporia a parte a situações demonstram ilegitimidade ativa dos
vexatórias ou ridículas, circunstância que
refoge ao espírito das normas contidas na pais do de cujus para o requerimento,
Lei de Registros Públicos. (BRASIL. Tribunal isto porque “a modificação do preno-
de Justiça do Distrito Federal e Territórios.
2ª Turma Cível. Acórdão 911786. Relatora: me é direito personalíssimo do titular
Des. LEILA ARLANCH)2 que não se transmite aos sucessores”3

2 Acórdão n. 911796, 20140710125954APC, 3 Acórdão 1186763, 07001860420198070015,


Relatora: LEILA ARLANCH, Revisora: GISLENE Relatora Desª. CARMELITA BRASIL, 2ª Turma
PINHEIRO, 2ª Turma Cível, Data de Julgamento: Cível, data de julgamento: 18/7/2019, publicado
25/11/2015, Publicado no DJE: 16/12/2015. Pág.: 214 no DJe: 24/7/2019.

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 171
Essa decisão encontra ressonância precedente do STJ5, determina que,
na legislação aprovada pela CLDF - no caso em especial, seria necessá-
Lei nº 6.804/2021, da qual tratamos ria a elaboração de estudo de caso
no início deste artigo. complementar com a participação de
servidores e profissionais competen-
tes para a questão, dado o nível de
Pessoas trans privadas de
periculosidade da interna, que come-
liberdade teu prática de ato infracional análogo
Em relação ao sistema prisional ao crime de roubo com emprego de
e socioeducativo, elencamos duas arma de fogo, e apresentou ocor-
decisões que chamam atenção pela rência de natureza grave (tentativa
negativa. Na primeira delas, a juíza da de homicídio no interior da unidade),
Vara de Execuções Penais julgou im- além de ser usuária de drogas e não
procedente pedido formulado por 11 ter rede de proteção que pudesse
presas provisórias, mulheres trans ou acolhê-la.6
travestis, e indeferiu sua transferência
para estabelecimento prisional femi- A investida antidireitos da
nino. Na sentença, a magistrada afir- “cura gay”
ma que “o sistema penitenciário do
DF segue à risca o conteúdo da Re- Por fim, é importante conferir
solução Conjunta 1 do Conselho Na- maior destaque a um tema, na seara
cional de Combate à Discriminação, dos movimentos antidireitos, conhe-
que trata do acolhimento de pessoas cido como “Cura Gay”. Em 2019, no
LGBTI em privação de liberdade no âmbito de ação popular, o juiz Júlio
Brasil”, uma vez que as mulheres esta- Roberto dos Reis, da 25ª Vara Cível,
vam em celas separadas dos homens. condenou a TV Globo a pagar inde-
Entretanto, a juíza a firma que “não há nização de R$ 170 mil a psicólogos
motivos legais suficientes para alo- que oferecem serviços chamados de
cá-las em celas junto com mulheres “reorientação sexual” por associá-los
cis[gênero]”4 à prática do charlatanismo, em razão
Já a 2ª Turma Criminal manteve,
desta vez, e por unanimidade, deci- 5 Em sede do HC 497.226/RS, o Ministro
são que indeferiu o pedido de trans- relator Rogério Schietti Cruz, da Sexta Turma,
pondera que a permanência da presa em local
ferência para ala feminina de uma impróprio para alguém que se identifica e se
Unidade de Internação/UI de adoles- comporta como gênero feminino, além de violar
cente transexual. O desembargador, o princípio da dignidade da pessoa humana,
poderia ocasionar atos de violência, “dada a
em que pese afirmar que decisão característica ainda patriarcal e preconceituosa
de boa parte de nossa sociedade, agravada
pela promiscuidade que caracteriza ambientes
carcerários masculinos
4 Processo em segredo de justiça Ver notícia em: 6 07059776220208070000, Relator
https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/ Desembargador João Timóteo de Oliveira, 2ª
noticias/2018/maio/presas-transexuais-nao- Turma Criminal, unânime, data de publicação:
devem-ser-alocadas-em-presidio-feminino 11/5/2020.

172 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
de matéria jornalística veiculada Jor- gislativo e Judiciário, concluímos esta
nal Nacional, em 18 de setembro de análise com as principais iniciativas em
2017, e pelo Fantástico, em 24 de se- políticas públicas no âmbito do Poder
tembro daquele ano7. Executivo do Distrito Federal (GDF),
em que pese o Poder Executivo ter
Antes, o juiz Waldemar Cláudio de
tido protagonismo em diversos epi-
Carvalho, da 14ª Vara da Justiça Fede-
sódios tratados anteriormente.
ral, atendeu ação movida pelo mesmo
grupo de psicólogos, autorizando-os Na mesma perspectiva com que
a realizar as terapias de reversão se- percorremos Legislativo e Judiciário,
xual, vedadas pelo Conselho Federal com enfoque nas duas últimas déca-
de Psicologia desde 19998. Segundo das, as políticas públicas aqui abor-
o magistrado, isso se faz necessário, dadas também serão permeadas de
uma vez que a resolução do CFP é um uma avaliação dos movimentos anti
“verdadeiro ato de censura”, porque direitos frente a cada uma delas.
impede que pessoas que desejam a Preliminarmente, para além dos
reorientação sexual tenham o trata- marcos legislativos oriundos da CLDF,
mento. E, provocando danos à liber- seis atos normativos do GDF mere-
dade profissional, restringe os psicólo- cem atenção. São eles, em ordem
gos cristãos de “investigar transtornos cronológica:
psicológicos e comportamentais liga-
dos à orientação sexual egodistônica, I) CREAS Diversidade (ver ato de criação,
2009, gestão Eurides Brito).
quando a pessoa não se sente con- II) A Portaria nº 13, de 9 de fevereiro de
fortável com sua orientação de deseja 201010, da Secretaria de Educação, que
determina a inclusão do nome social de
mudá-la”9. O CFP ajuizou reclamação travestis e transexuais nos respectivos
junto ao STF contra essa decisão, e a registros escolares de todas as instituições
educacionais da rede pública de ensino do
suprema corte determinou a manu- Distrito Federal, em respeito aos Direitos
Humanos, à pluralidade e à dignidade
tenção da eficácia da resolução e, na humana, a fim de garantir o ingresso, a
sequência, a extinção da ação popular permanência e o sucesso de todos no
processo de escolarização.
movida pelos psicólogos cristãos.
III) O Decreto nº 33.151, de 24 de agosto
de 201111, que cria o Grupo de Trabalho
de Políticas Públicas de Enfrentamento à
Políticas públicas e o Poder Lesbofobia, Homofobia, Bifobia, Transfobia
Executivo e Promoção da Cidadania LGBT, que
tem caráter consultivo e propositivo,
formado por membros do Poder Público,
A partir de todo caminho descrito e das organizações da sociedade civil e
instituições LGBT.
até aqui, no âmbito dos poderes Le-
IV) O Decreto nº 37.069, de 21 de janeiro
de 201612, que cria a Delegacia Especial de
7 Sentença diisponível em https://static.
p o d e r 3 6 0 . c o m . b r/ 2 0 1 9 / 0 1 / 0 7 1 5 7 0 6 - 10 Disponível em: http://www.sinj.df.gov.br/sinj/
80.2018.8.07.0001_27563153.pdf norma/62340/portaria_13_09_02_2010.pdf
8 Disponível em: https://site.cfp.org.br/wp- 11 A referida norma não está disponível para
content/uploads/1999/03/resolucao1999_1.pdf busca no sítio do Diário Oficial e tampouco da
CLDF. A referência, sem a íntegra, está no sítio
9 Disponível em: https://site.cfp.org.br/wp- do TJDFT.
content/uploads/2017/09/Decis%C3%A3o-
Liminar-RES.-011.99-CFP.pdf 12 Disponível em: https://bityli.com/StPRb

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 173
Repressão aos Crimes por Discriminação volvimento Social (SEDES), é voltado
Racial, Religiosa ou por Orientação Sexual,
ou contra a Pessoa Idosa ou com Deficiência, especificamente a atender situações
que especifica e dá outras providências
(Decrin). de discriminação por orientação se-
xual, identidade de gênero, raça, et-
V) A Portaria nº 155, de 25 de agosto de
201613, da Secretaria de Saúde, que institui nia ou religiosidade, e realiza um tra-
Grupo de Trabalho (GT - Ambulatório balho de referência, não apenas para
Trans) para implantação do ambulatório
de assistência especializada às pessoas o DF, mas para o Brasil, desde a abor-
travestis e transexuais na rede pública de
Saúde do Distrito Federal; dagem às LGBTI+ em situação de rua
ou desabrigo, retificação de docu-
VI) O Decreto nº 38.025, de 23 de fevereiro
de 201714, que cria o Comitê Intersetorial de mentos de identidade, em parceria
Promoção dos Direitos e da Cidadania da com a Defensoria Pública, segurança
População LGBT.
alimentar e nutricional, até a viabili-
VII) O Decreto nº 38.292, de 23 de junho zação de outros benefícios sociais a
de 201715, que dispõe sobre a criação,
composição, estruturação e funcionamento pessoas vulneráveis17.
do Conselho Distrital de Promoção dos
Direitos Humanos e Cidadania de Lésbicas, Sem dúvida, o CREAS Diversidade
Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais.
se tornou um “cartão de visitas” do
VIII) O Decreto nº 37.982, de 30 de janeiro
de 201716, que estabelece que é um direito GDF para políticas públicas voltadas à
o uso do nome social e o reconhecimento população LGBTI+. E boa parte des-
da identidade de gênero de pessoas trans
– travestis, transexuais e transgêneros – no se sucesso se deve à atuação e resis-
âmbito da administração pública direta e tência de servidores, muitas também
indireta do Distrito Federal.
são pessoas LGBTI+, que se empe-
IX) A Portaria nº 277, de 28 de setembro de nham profissional e pessoalmente
2017, que institui a Política Cultura LGBTI,
para fortalecimento, valorização e fomento com esse equipamento público. Pos-
da cultura LGBTI do Distrito Federal.
sivelmente, a Assistência Social tenha
conseguido, atravessando governos
CREAS Diversidade nessa última década, um caso de su-
Dentre as ações do Poder Execu- cesso, enquanto política de Estado,
tivo, a mais antiga aqui destacada é, em meio à ofensiva conservadora.
possivelmente, uma das que repre-
senta maior avanço para a população Nome social nas escolas
LGBTI+ do DF. Trata-se do Centro de
Referência Especializado em Assis- Ainda nesse governo, que des-
tência Social (CREAS) da Diversida- moronava politicamente e não tinha
de, criado em 2009, ainda na gestão a agenda pró-cidadania como pauta
Arruda. prioritária da gestão, merece desta-
que a Portaria de fevereiro de 2010,
Esse equipamento, que integra que garantiu a inclusão do nome so-
formalmente a Secretaria de Desen- cial de travestis e transexuais nos
respectivos registros escolares, e foi
13 Disponível em: https://bityli.com/lndEnp
14 Disponível em: https://bityli.com/dZrXLm
15 Disponível em: https://bityli.com/ymGck 17 Disponível em: https://segov.df.gov.br/
d i g n i d a d e - e - re s p e i t o - p a ra - t o d o s - u m -
16 Disponível em: https://bityli.com/ihLYRQ compromisso/

174 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
publicada poucos dias antes do então pró diversidade, instituir o Conselho
Paulo Otávio renunciar ao mandato LGBTI+, entre outros compromissos.
governador, cargo que ele ocupava
Contudo, há de se ressaltar a cria-
em razão da cassação de José Ro-
ção da Coordenação de Diversidade
berto Arruda, por denúncias de cor-
na Secretaria de Estado de Justiça
rupção.
(SEJUS), hoje denominada Coorde-
A Secretária de Estado de Educa- nação de Políticas de Proteção e Pro-
ção, à época, era a Sra. Eunice San- moção de Direitos e Cidadania LGBT,
tos, possivelmente a única mulher que foi a estrutura burocrática que
negra no alto escalão do governo. buscou, nos governos subsequen-
Sobre o processo de sensibilização tes, articulação com as demais pastas
que culminou nesta Portaria, é im- para que a agenda LGBTI+ se manti-
portante registrar que, anos antes, vesse minimamente na ordem do dia.
ainda na condição de adjunta, Eunice Na gestão que sucedeu a de Agnelo
fomentou a pesquisa “Revelando tra- Queiroz, atos do GDF dispuseram
mas, descobrindo segredos: violência sobre a Criação da Delegacia Espe-
e convivência nas escolas”, realizado cializada (DECRIN), GT para criação
pela Rede de Informação Tecnolo- do Ambulatório Trans, o Conselho
gia Latino Americana (RITLA)18, no Distrital LGBTI+ e, ainda, um Comitê
ano de 2008, em 84 escolas das 14 Intersetorial, ainda não criado.
Diretorias Regionais de Ensino, que
revelou alta percepção da discrimina-
Delegacia Especializada
ção entre crianças e adolescentes da
rede pública de ensino do DF. Destaca-se a primeira iniciativa do
governo Rollemberg, que foi a cria-
Grupo de Trabalho ção da Delegacia Especial de Repres-
são aos Crimes por Discriminação
e a Coordenação de
Racial, Religiosa, ou por Orientação
Diversidade
Sexual, ou Contra a Pessoa Idosa ou
Já o Decreto de 2011, que cria o com Deficiência, no Complexo da Po-
grupo de trabalho, foi a primeira si- lícia Civil, ao lado do Parque da Cida-
nalização formal do governador Ag- de. Esta é, de fato, uma iniciativa pio-
nelo Queiroz à comunidade LGBTI+. neira, uma vez que a DECRIN do DF
Na sequência, após a tentativa frus- é a primeira do Brasil a se especializar
trada de regulamentar a lei “anti-ho- em atendimento e combate a delitos
mofobia”, iniciativas semelhantes não contra populações vulneráveis, entre
prosperaram no Executivo local, não elas a LGBTI+.
obstante o peso que a campanha Crimes de injúria racial e, sobretu-
eleitoral de Agnelo conferiu à agen- do, violência contra pessoas idosas
da LGBTI+, que se comprometia com constituem a maior parte das ocor-
a construção de políticas públicas rências registradas na DECRIN. No
que diz respeito aos crimes de ódio
18 Disponível em: https://bityli.com/LVxkCG

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 175
contra LGBTI+ e os direitos desta é entendida pelo sistema de justiça no
população, a delegacia se manteve Brasil como racismo social. Neste in-
atuante em campanhas de formação quérito emblemático, conduzido pela
e capacitação de profissionais da se- DECRIN, o Ministério Público requereu
gurança pública, assim como cam- que o condenado pagasse R$ 40 mil
panhas de informação e conscien- reais pelos danos causados à coleti-
tização destinadas a eventos como vidade. Segundo a imprensa local, o
carnaval e paradas LGBTI+. valor deve ser destinado a um “fun-
do coletivo defensor da pauta LGBT-
Já em relação às ocorrências regis-
QIA+”, porém não especificado20.
tradas pela Polícia Civil, considerando
que apenas em 2019 o Brasil passou
a admitir como crime a homolesbo- Ambulatório Trans
transfobia, a Secretaria de Segurança
Pública (SSP-DF) informa que regis- Seguindo uma linha do tempo, o
trou, em 2020, 39 ocorrências desse Ambulatório Trans é, possivelmente,
tipo de crime, enquanto em igual pe- um dos equipamentos mais impor-
ríodo 2019, ocorreram 11 registros da tantes para a saúde integral LGBTI+,
mesma natureza. Sobre isso, há que com foco voltado para travestis, tran-
se ressaltar que houve ao menos 391 sexuais e transgêneros. Inaugurado
denúncias de violência contra pesso- em agosto de 2017, no Hospital Dia
as LGBTI+ em 2020, e 505 em 2019, da Asa Sul, o ambulatório conta com
o que mostra que ainda há um longo equipe multidisciplinar e as pessoas
caminho até que esse tipo específico usuárias são (ou deveriam ser) en-
de violência seja tratado pelos órgãos caminhadas pelas unidades básicas
de Estado com a especificidade que de saúde e pelo CREAS Diversidade,
devida.19 que, já na inauguração do ambula-
tório, reunia demanda inicial de 200
Em julho de 2021, um registro em pessoas. Na ocasião, o governador
especial chama atenção, pela rele- afirmou que “o que estamos fazendo
vância coletiva que alcança e a sim- hoje é um gesto de cidadania, tirando
bologia. Trata-se de denúncia do as pessoas da escuridão e colocan-
MPDFT contra indivíduo que oferecia do luzes sobre essa diversidade, que
curso de “cura gay”. tem que ser reconhecida, respeitada
Na denúncia, o MPDFT salienta e valorizada”21.
que o homem praticou e induziu a dis- O serviço funciona de segunda a
criminação e o preconceito de raça, sexta-feira, no período matutino e
uma vez que a homolesbotransfobia
20 Disponível em: https://www.correiobraziliense.
com.br/cidades-df/2021/07/4936133-mpdft-
19 Disponível em: https://g1.globo.com/df/ d e n u n c i a - h o m e m - q u e - of e re c i a - f a l s o -
distrito-federal/noticia/2021/05/17/de-391- tratamento-de-cura-gay.html
denuncias-de-violencia-contra-lgbts-no-
df-apenas-34-foram-investigadas-como- 21 Disponível em: https://www.agenciabrasilia.
homotransfobia-em-2020-aponta-pesquisa. df.gov.br/2017/08/14/populacao-trans-passa-
ghtml a-contar-com-ambulatorio-especifico-no-df/

176 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
vespertino, e além da equipe multi- A demora, certamente, encontra ra-
disciplinar, conta com sala de acolhi- zões nas forças antidireitos estabele-
mento para identificação da deman- cidas ao longo dos governos. Não por
da, encaminhamento de demandas acaso, também o ato normativo que
personalizadas e construção perso- dispunha sobre a criação do Conselho
nalizada de Projeto Terapêutico Sin- Distrital de Promoção dos Diretos Hu-
gular (PTS). Segundo a própria Se- manos e Cidadania de Lésbicas, Gays,
cretaria de Saúde, o ambulatório tem Bissexuais, Travestis e Transexuais foi
como princípios o direito à cidadania objeto de tentativa de revogação por
e à despatologização das identidades parte da CLDF, o que mereceu nota
e expressões de gênero, bem como o de repúdio publicada em sítio oficial
Estado como provedor dos cuidados do Ministério da Mulher, da Família e
necessários à diversidade como ma- dos Direitos Humanos, conduzido pela
nifestação da sexualidade humana. Ministra Flávia Piovesan, do Governo
de Michel Temer22.
Cadê o Conselho LGBTI+? Na referida nota, a Secretária clas-
sifica a atitude da CLDF como “lasti-
Uma das ferramentas de controle mável” ao tempo em que manifesta
social e participação popular volta- apoio ao órgão do GDF responsável
das para elaboração e fiscalização de pelo Decreto, à época denominada
políticas públicas, consagrada pela Secretaria de Estado de Trabalho,
Constituição de 1988, é o conselho de Desenvolvimento Social, Mulheres,
direito. No DF, a instituição do Conse- Igualdade Racial e Direitos Humanos
lho LGBTI+ é um item de reivindica- (SEDESTMIDH), por ter demonstra-
ção dos movimentos da sociedade do “disposição em unir esforços e cla-
nas últimas décadas. mar para a construção de uma cultura
Diferente de outras ferramentas, de não violência e tolerância, na qual
como a delegacia especializada e o o respeito à diversidade e à igualda-
centro de referência especializado, de é a essência de um Estado Demo-
o conselho de direito foi das últimas crático de Direito”. Além disso, Flávia
conquistas das movimentos pró-ci- Piovesan constata que políticas pú-
dadania LGBTI+ no DF. Enquanto blicas realizadas por estados e mu-
o Conselho Nacional de Combate nicípios carecem fortalecimento de
à Discriminação (CNCD-LGBT) foi sua institucionalização, uma vez que
criado em 2001; o do Rio de janeiro apenas 37% dos estados possuem
foi instituído por decreto estadual, legislação para a proteção dos direi-
em 2009; o de São Paulo, em 2010; tos de LGBT; 25,9% possuem progra-
o estado da Bahia criou, por meio de ma, plano ou ação desenvolvida para
lei, em 2014, seu Conselho Estadual a promoção dos direitos de LGBT; e
dos Direitos da População LGBT; o 44,4% possuem Conselhos de Direi-
Distrito Federal esperou até o ano de tos LGBT”.
2017 para contar com esse decreto.
22 Disponível em: https://bityli.com/QXFyHw

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 177
Decorrido um ano, em maio de selho Distrital de Promoção e Defesa
2018, a extinta SEDESTMIDH publi- dos Direitos Humanos (CDPDDH),
cou edital de chamamento público23 bem como a coordenadora de Diver-
para seleção e eleição de represen- sidade LGBT da SEJUS que recebe-
tantes, entidades, coletivos ou orga- ram, em 2019, o Prêmio “Beijo Livre
nizações da sociedade civil interessa- de Direitos Humanos LGBT”, honraria
das em compor o Conselho LGBTI+ concedida por uma organização não
do DF. Coube à Coordenação de Di- governamental para as categorias Ci-
versidade daquele órgão dar segui- dadania e Gestão Pública.
mento aos trâmites para efetivação
Isto porque, teria sido este o con-
do conselho.
selho “responsável por diversas
Todavia, assim como Agnelo, o ações visando garantir políticas pú-
governo Rollemberg também não blicas voltadas ao segmento LGBT”,
foi reeleito e uma nova gestão, com nos termos da comunicação oficial
Ibaneis Rocha, teve início em 2019. O do GDF25. E, ao lado do Conselho de
novo governo redefiniu competên- Direitos Humanos, a Coordenação
cias das secretarias, o que certamen- da Diversidade, ao promover ações
te provocou a paralisia do processo como audiência pública para debater
anterior. A Coordenação de Diver- crimes de LGBTfobia; nota em apoio
sidade, por conseguinte, passou a à Política Cultural LGBTI, para valo-
integrar a Subsecretaria de Políticas rização e fomento da cultura LGBTI
de Direitos Humanos e de Igualdade do Distrito Federal; posicionamento
Racial (SUBDHIR), na Secretaria de pela ilegalidade do Decreto que susta
Justiça e Cidadania. a regulamentação da Lei anti-homo-
fobia; adesão ao Pacto Nacional de
Desse modo, com processos des-
Enfrentamento a Violência LGBTfó-
continuados ou mesmo interrompi-
bica; a assinatura do vice governador
dos, o que se observa é que a atuação
em termo de compromisso com pro-
dos movimentos LGBTI+ da socieda-
tocolo de atendimento à população
de civil estão inscritas no Conselho
LGBTI no Sistema Socioeducativo.
Distrital de Promoção dos Direitos
Humanos [e Cidadania LGBT], for- Por sua vez, dada a morosidade
malmente vinculado à Secretaria de do Executivo em instituir o Conselho
Justiça e Cidadania do Distrito Fede- e também o Comitê Intersetorial de
ral24. A título de exemplo, foi o Con- Promoção dos Direitos e da Cidada-
nia da População LGBT, criado por
23 Disponível em: https://www.agenciabrasilia.
um outro decreto de fevereiro 2017, o
df.gov.br/2018/05/19/abertas-inscricoes-para- MPDFT emite à SEJUS, em dezem-
interessados-em-compor-o-conselho-lgbt-do- bro de 2020, recomendação em que
df/
24 Este, sim, o “Conselho de Defesa dos Direitos
da Pessoa Humana”, tem previsão no Art. 49 do 25 Disponível em: https://www.agenciabrasilia.
Ato das Disposições Transitórias da Lei Orgânica df.gov.br/2019/07/11/servidora-da-sejus-
do DF, uma vez que foi criado no início dos anos ganha-premio-de-direitos-humanos-lgbt-na-
2000. categoria-gestao-publica/

178 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
considera a necessidade de identi- a. Comitê Intersetorial de Promo-
ficar, estruturar, ampliar e aprimorar ção dos Direitos e da Cidadania da
as políticas públicas de promoção de População LGBT, criado pelo Decreto
direitos26. n. 38.025, de 12 de fevereiro de 2017;
Nessa recomendação, o Núcleo b. Comitê Gestor Distrital de En-
de Enfrentamento à Discriminação frentamento à Violência Lgbtfóbica,
(NED) do MPDFT argumenta já ter previsto na Cláusula Segunda do Ter-
questionado o GDF por o GDF por mo de Adesão do Distrito Federal ao
meio de uma série de ofícios quanto Pacto Nacional de Enfrentamento à
à existência da efetivação das ativi- Violência Lgbtfóbica, assinado em 22
dades, mas não obteve resposta sa- de fevereiro de 2020 e publicado no
tisfatória, ao longo dos últimos três Diário Oficial da União em 19 de mar-
anos. ço de 2020;
Assim, o MPDFT pede que se dê c. Conselho Distrital de Promoção
cumprimento, no prazo de 90 dias, dos Direitos e Cidadania da Popu-
ao seguinte: lação LGBT, criado pelo Decreto n.
38.292, de 23 de junho de 2017.

26 Disponível em: https://bityli.com/ulqRKh

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 179
Legislação e Políticas Públicas para LGBTI+
na área da saúde

Andrey Lemos

Pensar a legislação, políticas públicas e as condições de propositura de ações


em saúde para a população LGBTI+ no Brasil se traduz num esforço em curso
nos últimos anos na academia e na esteira das pautas dos movimentos sociais,
onde parte da reivindicação só tem sido possível graças à consolidação do Es-
tado Democrático de Direito. Por outro lado, tal possibilidade é reflexo do mo-
vimento pela Reforma Sanitária brasileira, oriundo das lutas gestadas ainda no
período do Regime Militar (1964-1985), ou mais especificamente no final da dé-
cada de 1970, quando se buscou discutir a ideia de um novo modelo de saúde
para o país, capaz de atender a todos, todas e todes.
A Reforma Sanitária estruturou-se nas universidades, no movimento sindical e
em experiências regionais de organização de serviços de saúde. Esse movimen-
to social consolidou-se na 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986, com a
participação popular nos debates que aprimoraram a formulação sobre um novo
modelo de saúde para o país que atendesse as necessidades da diversidade da
nossa população. O maior resultado desse movimento foi garantir na Constitui-
ção de 1988 que a saúde é um direito gurado o direito ao sexo seguro para
do cidadão e um dever do Estado. prevenção da gravidez indesejada e
ou qualquer outra situação de saúde
O SUS, criado de acordo com os
como de IST/HIV/AIDS e Hepatites
ideais da Reforma Sanitária, garante
Virais. O direito a serviços de saú-
que todos tenham acesso à saúde de
de que garantam privacidade, sigilo
forma integral, equânime e universal.
e atendimento de qualidade e sem
Desde a sanção da já citada Cons- discriminação com acolhimento e
tituição cidadã, com a Política de atenção às suas necessidades para
Saúde no Brasil, a sociedade civil par- prevenção, promoção, assistência e
ticipa do planejamento, da tomada tratamento, assim como o direito a
de decisões, no controle social pelo informação e a educação sexual e re-
monitoramento das ações em saúde produtiva.
por meio dos colegiados paritários e
Costumamos entender por gêne-
deliberativos que compõem os Con-
ro, a construção de atitudes, expec-
selhos Locais, Distritais, Municipais,
tativas e comportamentos, tendo por
Estaduais e Nacional de Saúde, nos
base o que determinada sociedade
comitês e grupos de trabalhos cria-
define enquanto valores de como é
dos pelos colegiados deliberativos e
ser homem e ou mulher. Mas não po-
das Conferências Nacional, Estaduais
demos esquecer que aprendemos a
e Municipais de Saúde. Essa partici-
ser homens e mulheres pela ação da
pação foi regulamentada e definida
família, da escola, do grupo de ami-
na Lei nº 8.142, de 1990.
gos, das instituições religiosas, do
Dessa forma, o movimento LGB- espaço de trabalho, dos meios de
TI+ se mobilizou para garantir que comunicação, entre outros espaços.
essa população tivesse acesso à saú- Portanto, existem várias formas de
de de acordo com suas especificida- ser homem ou mulher no mundo. A
des da mesma forma equânime, in- isso chamamos diversidade de gê-
tegral e universal em toda a rede do nero, pois os comportamentos de in-
SUS, saindo do lugar de população divíduos de sexos diferentes não são
mobilizadora e preventiva vinculada biologicamente determinados, mas
unicamente às Infecções Sexualmen- socialmente construídos através da
te Transmissíveis (ISTs), para a inte- relação e ou interação entre o indiví-
gralidade da saúde para as mulheres duo e sua cultura, no seu processo de
lésbicas, trans e bissexuais e para os socialização.
homens gays, trans e bissexuais, que-
É importante reafirmarmos tam-
er, intersexus e assexuais no lugar de
bém que gênero e sexualidade são
promoção e garantia da saúde na vi-
duas dimensões da vida das pessoas
vência da sua sexualidade.
que muitas vezes estão conectadas,
A pessoa, independente do seu mas que não se reduzem ou neces-
gênero, da sua identidade de gêne- sariamente se vinculam uma à ou-
ro e ou orientação sexual tem asse- tra. Sim, porque o garoto que brinca

182 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
de boneca ou a garota que gosta de orientação sexual que pode ser com-
brincadeiras tidas socialmente como preendida como heterossexualidade,
masculinas não podem ser enxerga- homossexualidade, bissexualidade,
dos ou enxergadas como homos- entre outras; de ter relação sexual in-
sexuais apenas a partir desses com- dependente da reprodução; o direito
portamentos. Os comportamentos à liberdade sexual; à autonomia sexu-
masculinos e femininos não são da- al, integridade sexual e à segurança
dos pela natureza, logo há várias for- do corpo sexual; à privacidade sexual;
mas de ser homem ou mulher, meni- o direito ao prazer sexual; à expressão
no ou menina. sexual; à associação sexual; às esco-
lhas reprodutivas livres e responsá-
Outro aspecto importante a consi-
veis e o direito à informação sexual
derar, é que a pobreza e a desigual-
livre de discriminações.
dade social presentes em nosso país
são obstáculos ao exercício integral No âmbito da Saúde, a constituição
dos direitos sexuais e reprodutivos, cidadã de 1988, assegura o seguinte:
pois as políticas públicas de promo-
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever
ção desses direitos demandam re- do Estado, garantido mediante políticas
cursos estatais e, via de regra, as mu- sociais e econômicas que visem à redução
do risco de doença e de outros agravos e
lheres pobres, por exemplo, não têm ao acesso universal e igualitário às ações
e serviços para sua promoção, proteção e
acesso a meios alternativos de aces- recuperação.
so a esses direitos.
Art. 197. São de relevância pública as ações
e serviços de saúde, cabendo ao Poder
Público dispor, nos termos da lei, sobre sua
Direitos assegurados e a regulamentação, fiscalização e controle,
devendo sua execução ser feita diretamente
luta pela sua garantia ou através de terceiros e, também, por
pessoa física ou jurídica de direito privado.
Os direitos sexuais são muitos Art. 198. As ações e serviços públicos de
e podemos citar aqui alguns deles saúde integram uma rede regionalizada
e hierarquizada e constituem um sistema
como o direito de viver e expressar único, organizado de acordo com as
livremente a sua sexualidade sem so- seguintes diretrizes:
frer ou praticar violências, discrimi- I - descentralização, com direção única em
nações e imposições e com respeito cada esfera de governo;
pleno ao corpo do(a) parceiro(a); de II - atendimento integral, com prioridade
escolher o(a) parceiro(a) sexual pela para as atividades preventivas, sem prejuízo
dos serviços assistenciais;
ou por qual se sinta atraída ou atraí-
III - participação da comunidade.
do, afetivo ou sexualmente; o direito
de viver plenamente a sua sexualida-
de sem medo, vergonha e ou culpa; O direito à saúde, resumido ness-
o de viver a sexualidade independen- es artigos, é resultado do movimento
temente de estado civil ou condição de saúde pública desenhado em São
física; de escolher se quer ou não Paulo e, posteriormente, encampado
quer ter relação sexual com alguém, por outros sanitaristas brasileiros. O
outra pessoa ou consigo mesmo ou movimento teve início na luta contra
mesma; de expressar livremente sua a meningite, epidemia desencadea-

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 183
da na década de 1970, em São Paulo. programas e projetos para sua efetiva
Mascarada pelos militares, foi poste- implementação.
riormente enfrentada sem a existência
Colocamos em perspectiva ess-
de um sistema de saúde pública que
es fatos para pensar os direitos da
orientasse a população e prestasse a
população LGBTI+ em relação à área
assistência necessária.. A partir desse
da saúde, o que pressupõe também
episódio foram travadas as discussões
incorporar a dimensão da univer-
sobre direito à saúde, em especial na
salidade, especialmente quando se
8ª Conferência Nacional de Saúde.
compreende este enquanto um dos
Esta busca por construir uma saúde princípios fundamentais do Sistema
pública coaduna com os compromis- Único de Saúde (SUS), imprimin-
sos de uma sociedade democrática, do uma determinação fundamental,
uma vez que havia, naquele momen- qual seja: todos os cidadãos brasile-
to, uma mentalidade de contribuição iros, sem qualquer tipo de discrimi-
como aspecto necessário para o nação, têm direito ao acesso às ações
acesso a um bem público. Assim, a e serviços de saúde. De igual modo,
ausência de ações sistematizadas de incorpora-se o conceito da integrali-
garantia de acesso a bens e serviços dade, especialmente porque o siste-
de saúde naturalizava o acesso aos ma de saúde deve estar preparado
serviços de saúde apenas para os para ouvir o usuário, entendê-lo in-
trabalhadores segurados pelo antigo serido em seu contexto social e, a
INAMPS, e aos desvalidos do sistema partir daí, atender às demandas e ne-
restava o amparo através das Santas cessidades desta pessoa. E, por fim,
Casas de Misericórdia ou hospitais a equidade, pois todos os brasileiros
beneficentes. devem ser tratados igualmente e
conforme as suas necessidades.
É inegável ter havido uma dispu-
ta pelo modelo de saúde pública no Os princípios do SUS somam-se
âmbito da Constituinte (1987-1988) a uma luta travada ao longo do tem-
e, mais ainda, em relação ao enfren- po, com tentáculos argumentativos
tamento de um modelo de saúde presentes, por exemplo em eventos
privada também em eclosão. Por isso, advindos dos anos de 1960, quan-
devemos reconhecer o valor de ter- do a Organização Mundial da Saúde
mos a política de saúde pública como (OMS) ampliou o conceito de saúde
um compromisso oficial, expresso em para o de bem-estar físico e mental,
documento escrito, no qual consta trazendo assim um avanço significati-
um conjunto de diretrizes, objetivos, vo sobre a ação em saúde.
intenções e decisões de caráter geral
Deve-se considerar o avanço no
e em relação a um determinado tema
campo legislativo e de políticas públi-
em questão, a funcionar como um
cas para a população LGBTI+ como
guia para direcionar o planejamento
um amalgamento de forças e lutas,
e a elaboração de estratégias, cujo
a exemplo da contribuição do mov-
desdobramento é um plano de ação,
imento feminista, da contracultura,

184 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
quando se ousou pensar a liberdade da Secretaria de Direitos Humanos,
sexual; da revolta de Stonewall, na junto à Presidência da República, em
Nova Iorque de 1969; na reforma uni- 2003. Um ano depois surgia o GT
versitária, nos movimentos estudantis Saúde da População LGBT. Mas nada
e isto tudo encontra-se entrelaçado seria mais significativo que a publi-
com a redemocratização (1979-1985) cação da Portaria Processo Transex-
e o surgimento do movimento ho- ualizador, em 2008.
mossexual brasileiro, em 1979, com o
Outros avanços esperariam mais
jornal Lampião da Esquina.
um pouco, a exemplo da Carta dos
O início da década 1980 inspirou Usuários do SUS (2009), da Publi-
um mosaico de liberdades. Sonhar cação da Política Nacional de Saúde
não era apenas uma possibilidade, Integral de LGBT (2011), da Revisão
mas uma necessidade de se pen- da Portaria do Processo Transexu-
sar um amanhã sem as amarras da alizador (2013), além de campanhas
repressão, e isto coadunava com (2015), credenciamento de serviços
propostas de avanço nos direitos so- (2017) e posteriormente incorpo-
ciais, em especial para segmentos de ração de serviços visando ao aten-
baixa renda e excluídos do sistema, dimento à violência intrafamiliar e na
por isso não é de estranhar a luta pela escola, discriminação/exclusão no
reforma sanitária, a luta pela digni- ambiente do trabalho e outros es-
dade das pessoas vivendo com HIV/ paços públicos.
Aids, o ativismo das profissionais do
O passo a passo aqui disposto, sem
sexo. Neste contexto, a 8ª Conferên-
pretensão de esgotar o tema, esbarra
cia Nacional de Saúde assumiria o
em esforços para – entre outros ob-
protagonismo de pensar o direito à
jetivos – conter o fenômeno do suicí-
saúde como valor universal.
dio, flagelo que assombra os profis-
O advento da Constituição de 1988 sionais de saúde, bem como o uso de
impôs a necessidade de um estatu- drogas, a automutilação, a depressão,
to para a saúde e em 1990 surgiria o fenômenos presentes especialmente
Sistema Único de Saúde, mesmo ano entre os LGBTI+. Não raro, as pes-
em que a OMS retiraria a homossex- soas vulneráveis a tais condições ain-
ualidade do CID-10 (em 17 de maio da encontram as portas dos serviços
de 1990). Os anos iriam passar e, em de saúde fechadas pelo preconceito
2000, o Governo Federal lançaria o e pela discriminação.
Programa “Brasil sem homofobia”.
O preconceito nos balcões da
Apesar das críticas e barreiras para
saúde tende a ser mais presente
a sua implementação, estava aberta
quando se trata de LGBTI+ pretos,
possibilidades para uma melhor inter-
travestis e transexuais e, em muitos
locução com as esferas das políticas
casos, a causa primária para tanta ig-
públicas.
norância é a incompreensão acerca
Um importante marco para os Di- da identidade e do gênero.
reitos Humanos no Brasil foi a criação

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 185
Porque uma política tar os homens gays dos serviços de
específica para a saúde da atenção básica.
população LGBT?
Compreender e respeitar os con-
Os significados sobre sexo, gêne- ceitos de orientação sexual e identi-
ro e sexualidade vigentes em nossa dade de gênero contribuem para que
sociedade e também nos serviços de a população LGBT se sinta acolhi-
saúde, são usualmente concebidos a da nos serviços de saúde. E a Políti-
partir de condicionantes biológicos ca Nacional de Saúde Integral LGBT
e naturais, sem considerar as dimen- tem como objetivo, justamente, pro-
sões históricas, sociais e culturais que mover a saúde integral dessa popu-
dão sentido a estas realidades. lação, eliminando a discriminação e o
preconceito institucional, bem como
A saúde da população LGBT, por- contribuindo para a redução das de-
tanto, deve ser considerada para sigualdades e a consolidação do SUS
além do ponto de vista da epidemio- como um sistema universal, integral
logia e do viés de HIV/DSTs, sobre- e equitativo. Ela se estrutura a partir
tudo, diante da ausência de dados e dos eixos que seguem:
pesquisas sobre essa população. En-
tretanto, questões de gênero, sexua-
lidade e diversidades não costumam 1. Equidade em Saúde
ser pautadas durante a formação
Entendemos que a impossibilida-
profissional em saúde.
de de se garantir acesso à saúde para
A produção e disseminação de in- lésbicas, gays, bissexuais, travestis e
formações sobre a sexualidade para transexuais é uma consequência de
as mulheres, por exemplo, têm sido quando se é submetido à discrimi-
relacionadas somente à representa- nação, preconceito, invisibilidade por
ção da heterossexualidade, reprodu- conta de sua identidade de gênero,
ção e maternidade. identidade de gênero e ou orientação
sexual.
Já travestis, mulheres transexuais
e homens trans são os alvos frequen- As violências estruturais e institu-
tes de gozações e maus tratos. Em cionalizadas se constituem também
sua grande maioria, foram hostiliza- em determinantes Sociais de Saúde
das na família, na escola, nos espaços para a População LGBT, como a vio-
comunitários de lazer e acabaram por lência física, psicológica, sexual; a fal-
dispor de pouca ou quase nenhuma ta de informações corretas e lingua-
educação formal. gem adequada; os frequentes elos
familiares fragilizados; as crenças e
Ainda, a concepção hegemônica
posturas moralistas que não reconhe-
que se tem da masculinidade é um
cem a diversidade; os direitos sexu-
dos fatores de maior peso nos agra-
ais e direitos reprodutivos; a falta de
vos de saúde dos homens, seja pela
compreensão e reconhecimento das
natureza dos agravos, seja pela gran-
vulnerabilidades específicas que atin-
de influência que exerce para afas-

186 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
gem essa população; o não respeito à lhas, cartazes, e outros materiais com
importância e ao uso do nome social especificidades orientando a gestão e
para as pessoas travestis e transexu- o trabalho multiprofissional em saúde;
ais; e, principalmente, o comporta- a realização de oficinas, elaboração
mentos homo/lesbo/bi/transfóbicos de documentos e notas técnicas; os
praticados por gestores, usuários e seminários e a publicação da Portaria
trabalhadores nos serviços de saúde. nº 2.803, de 19 de novembro de 2013,
que redefiniu e ampliou o Processo
Transexualizador no SUS (revisão da
2. Transversalidade,
Portaria nº 457, de 19 de agosto de
Participação Social e 2008, que regulamentava o Processo
Integralidade Transexualizador), além do novo pron-
tuário eletrônico do cidadão (PEC), in-
É urgente a necessidade de re-
cluindo receitas, atestados e encami-
conhecer que o preconceito e a dis-
nhamentos com o nome social.
criminação por conta da orientação
sexual e da identidade de gênero fra- Nessa conjuntura histórica, as prin-
gilizam a saúde das pessoas LGBT e cipais demandas das lésbicas, dos
precisamos debater os determinan- gays, das pessoas bissexuais, travestis
tes sociais de saúde para ampliar os e transexuais na saúde são os atuais
olhares e buscar construir estratégias desafios para a integralidade de cui-
de promoção da saúde integral de dado para essas pessoas, pois identifi-
lésbicas, gays, bissexuais, travestis e camos a necessidade de construirmos
transexuais. Porém, para tanto, deve- processos de trabalho que assegurem
mos transversalizar o debate em to- acolhimento e atendimento livres de
das as políticas de saúde e incentivar discriminação e preconceito nos servi-
o fortalecimento da representação ços de saúde, como por exemplo, que
do segmento social LGBT nas instân- seja realidade o uso do nome social no
cias de participação e controle social. cartão SUS, nas fichas cadastrais, nos
prontuários de saúde, nos exames la-
boratoriais e nos sistemas de informa-
3. Avanços e Desafios na
ção em saúde.
saúde da população LGBT
Um dos maiores problemas a ser
Considerando o conjunto de ações enfrentado é a adequação dos sis-
na Política Nacional de Saúde Integral temas de saúde para que os proce-
LGBT, é possível perceber alguns re- dimentos não sejam negados devido
levantes avanços como a inclusão dos à incongruência entre sexo biológico
quesitos orientação sexual e identi- e a identidade de gênero do usuário
dade de gênero em algumas fichas, ou da usuária, assim como a aten-
formulários, sistemas, prontuários de ção à saúde mental, principalmente
saúde; como o módulo EaD LGBT na relacionados a processos de exclu-
UNASUS; as várias edições do Curso são social, violências, discriminação e
de Formação de Lideranças/Ativistas preconceito.
Sociais LGBT; a publicação de carti-

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 187
A promoção do cuidado na saúde e raça/cor – saúde da mulher, saúde
da população LGBT passa também do homem, saúde de adolescentes e
pela prevenção da automedicação e jovens, saúde da pessoa idosa, saúde
abuso de hormônios, a prevenção de da população negra, saúde da po-
uso do silicone industrial e cuidados pulação em situação de rua, saúde
em saúde em relação a problemas indígena – é construir a resistência
causados pelo uso do silicone, a in- democrática em defesa da vida, as-
clusão de temáticas sobre diversida- sim como possibilitar a produção de
de sexual e de gênero na formação pesquisas em saúde com foco na po-
em saúde, em processos de educa- pulação LGBT como a hormoniotera-
ção permanente para trabalhadores pia, cirurgias de redesignação sexual,
da saúde e para lideranças e ativistas saúde mental, violências, ISTs e HIV/
que atuam no controle e na participa- Aids.
ção social. Precisamos articular ações
Não cabe tergiversar, pois a ga-
que ampliem o fomento à inclusão de
rantia dos direitos sexuais e reprodu-
pessoas trans no controle e na parti-
tivos e da integralidade do cuidado
cipação social na saúde.
deve estar presente em toda a rede
Por fim, em tempos de aumento SUS. A ampliação do Processo Tran-
do subfinanciamento da saúde pú- sexualizador no SUS é exemplo de
blica, da perseguição aos direitos so- um desafio tardio, considerando que
ciais e humanos, do aprofundamento ainda não temos serviços que garan-
das violências, do ódio, da precariza- tam o acesso de pessoas travestis e
ção das vidas e de inúmeras vulnera- transexuais em todos os estados, e o
bilidades impostas por lideranças e acesso aos procedimentos ambula-
ações políticas que seguem uma ne- toriais, com garantia de dispensação
cropolítica que desumaniza, segrega, dos hormônios na rede SUS, aspecto
exclui e negligencia as necessidades que é importante para a redução de
da população, cabe a gestores, traba- danos causados pela falta de acom-
lhadores, pesquisadores e sociedade panhamento profissional necessário.
como um todo, se articularem para
Isso porque nem falamos sobre o
defender o Sistema Único de Saúde,
acesso aos procedimentos cirúrgicos,
com seus princípios e suas diretrizes,
com regulação da fila de espera, si-
que resiste em meio ao desmonte
tuação que muito nos preocupa pois
das políticas públicas comandado
existem pessoas trans na fila há mais
pelo pensamento dominante no atual
de um década.
governo federal e nos seus discípulos
que atuam no Executivo, Legislativo e Derrotar o obscurantismo nega-
Judiciário. cionista é fundamental para que o
país possa voltar a investir num maior
Nesse momento, reconhecer e
financiamento para o fortalecimen-
incluir as identidades trans em polí-
to da promoção da equidade com
ticas, programas e ações de saúde
ampliação das cirurgias de neofalo-
com intersecção de gênero, geração
plastia, metoidioplastia, próteses de

188 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
silicone para travestis, feminilização cia na atenção básica que deve ser a
da face, a revisão das idades mínimas ordenadora do cuidado e assegurar
para hormonioterapia e cirurgias, o longitudinalidade de acompanha-
acompanhamento psicológico para mento com vínculo para que essas
crianças e pré-adolescentes transe- pessoas tenham, a partir do acesso à
xuais e principalmente a garantia de saúde, o direito à cidadania.
acompanhamento e contra-referên-

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 189
gordofobia: corpo, (s)em dúvida
um ensaio sobre gordice, gravidez y
puerpério

tatiana nascimento

a gordofobia duvida do corpo. o fato de engravidar aos 40, gorda, sendo pes-
soa negra de pele clara, gorda, com vivências afetivossexuais cuír, gorda, me
ensinou isso de novo mais recentemente. a gordofobia cria padrões definitivos
pra corpo, que por sua natureza material mesma é indefinitivo – o que é dife-
rente, nesse contexto, de indefinível, já que a gordofobia, como outros sistemas
opressivos, é uma régua de classificação, hierarquização, exclusão, ou seja, um
sistema de definição depreciativa.ela, ao mesmo tempo, põe em dúvida a mate-
rialidade de corpos que escapem (ou tentem escapar, ou pareçam escapar) aos
seus parâmetros rígidos y estreitos, estreitos me lembrando aqui a sinonímia com
“magros”, aos seus mecanismos de definição/hierarquização/exclusão. nesse
sentido, é um sistema constante de questionamento do corpo gordo, porque a
gordofobia necessariamente avalia o corpo como incorreto, incapaz, inadequa-
do, feio, sujo, preguiçoso, pra citar algumas das adjetivações mais recorrentes.
engravidei em agosto de 2020 e já nos meses finais da gestação passei duas
vezes por esse tipo de contestação ria em me perguntar verbalmente so-
da validade do corpo gordo de grávi- bre a gravidez, me fazendo respon-
da (ou corpo de grávida sendo pes- der também verbalmente, funcionou.
soa gorda), uma contestação centra- a senhora que estava atrás de mim
da principalmente na gordofobia. na fila continou sem acreditar que eu
deveria estar ali: ou será que o ques-
na primeira vez eu tava numa fila
tionamento dela era sobre eu “mere-
preferencial de supermercado, já lá
cer” estar ali?
pelos 8 meses de gestação, a barri-
ga bastante grande e também visível. talvez importe também pensar os
uma senhora branca, com cerca de 70 impactos da meritocracia no questio-
anos pelo que calculei, y que estava namento de direitos humanos bási-
na fila preferencial logo atrás de mim, cos, em uma sociedade que funciona
ficou perguntando à moça do caixa através da manutenção ou negação
porque eu estava ali – não perguntou de direitos que acabam sendo trata-
a mim, que estava imediatamente em dos como privilégios a depender de a
frente a ela (com o distanciamento quem se refiram.
mínimo exigido pela pandemia sen-
o resultado da dúvida sobre minha
do totalmente ignorado por ela), mas
gravidez foi que a senhora começou a
sim à caixa, o que acredito ter sido
empurrar minhas pernas com o carri-
feito como uma solicitação velada de
nho dela, querendo me obrigar a sair
providência contra a suposta “fraude”
de fila preferencial e ceder a vez a ela.
que eu estaria cometendo ao estar ali
quando ela fez isso pela primeira vez
na fila preferencial.
achei que tinha sido sem querer e me
prefiro pensar que, como eu estava voltei pra avisá-la de que tinha me
de costas, ela não deve ter visto mi- atingido com o carrinho, e a cara dela
nha barriga. mas a mulher do caixa ti- era de repúdio, e ela continou me ba-
nha visto, e ainda assim me obrigou a tendo com o carrinho, eu comecei a
responder que eu estava grávida, se- chorar na fila, foi um dia muito desa-
gundo ela, pra tentar deixar a senhora gradável, enfim…
atrás de mim mais calma. acho impor-
já na segunda ocasião, eu estava
tante mencionar que nesse mercado
numa loja de roupas com minha mãe
os caixas preferenciais são destina-
e minha irmã. na fila pra pagar, uma
dos ao atendimento de pessoas com
outra idosa fez o mesmo questio-
necessidades não visíveis ou não tão
namento; eu já com 39 semanas de
perceptíveis, incluindo como pessoas
gestação (minha filha nasceria duas
dentro do TEA (transtorno do espec-
semanas depois desse episódio), mas
tro autista), com neoplasia maligna,
foi minha irmã quem ouviu as interpe-
ou que façam hemodiálise.
lações da senhora. que, não satisfeita
mas, mesmo minha gravidez sen- ao ouvi-la responder que eu estava
do visível, estar no caixa específico na fila preferencial por estar grávida,
foi constrangedor e mesmo violento; retrucou com “grávida nada, ela tá é
nem mesmo a tentativa da funcioná- gorda, isso sim. sem-vergonha!”.

192 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
não é por não ter havido violência decidi refletir sobre essas memó-
física, dessa vez, que eu me senti al- rias; falar de uma vai transbordando
guma coisa melhor com o ocorrido. outra. nem sempre, ao longo de mi-
aliás, com relação à gordofobia, que nha vida gorda, tive barriga grande/
me confronta desde criança, o re- evidente. e durante muitos anos, um
pertório de violência passa necessa- elogio tão dolorido quanto “seu rosto
riamente por diversos recursos dis- é tão bonito” (que trazia implícita ou
cursivos que transformam palavras explicitamente o complemento “só
quaisquer em xingamentos historica- falta emagrecer”) foi “você é gorda
mente associados a pessoas gordas. mas pelo menos tem cintura e não
tem barriga, que sorte né?”.
a simples menção de uma dessas
palavras, mesmo em contexto total- engravidar trouxe essas lembran-
mente diferente daquele da tenta- ças muito à tona porque mesmo
tiva de ofensa gordofóbica, é capaz eu tendo menos preocupação com
de engatilhar mal-estar emocional, aparência e físico ao longo de minha
ansiedade, medo, raiva, ou, talvez a vida, com relação a outras amigas
sensação mais básica com que convi- ou familiares mulheres, foi motivo de
vo como reflexo de ataques gordofó- estresse específico a sombra de que
bicos há décadas, uma impressão de eu nunca mais voltaria a ter um corpo
inadequação ao mundo das pessoas gordo com barriga menos evidente,
normalizadas, com corpos magros. depois de parir.
refletir sobre a história da gordofo- de alguma forma, y escrevi mais
bia em minha vida me leva a examinar recentemente sobre isso num texto
como, em outros momentos, bem sobre “a gratidão afetivossexual da
antes de engravidar, eu já havia sido gorda”1, mesmo tendo chegado a um
“confundida” com mulher grávida no tipo de paz (ou armistício) profundo
ônibus, no metrô, no avião, na sala de com relação à autoaceitação, auto-
espera de consultas… nessas ocasi- amor, e fim da autodepreciação por
ões, alguém viu minha minha barriga ser gorda, ainda me vejo emocional-
e presumiu que era gravidez. mente muitas vezes sendo refém da
necessidade de aprovação alheia que
isso me faz pensar que um corpo
teve suas raízes na sensação de ina-
não pode ser gordo a não ser que te-
dequação por ser única filha gorda
nha um motivo nobre que justifique
de um casal magro com outres filhes
isso, no caso, a gravidez. mas como
magres/esportistas.
sugerem os exemplos anteriores, em
que eu efetivamente grávida fui trata- quando minha gravidez foi ques-
da como pessoa gorda fingindo estar tionada na loja de roupa, no segun-
grávida pra obter vantagem, mesmo a do episódio que citei, a crítica moral
gravidez, esse evento que é em geral
tão celebrado socialmente, fui colo- 1 h t t p s : // w w w . i n s t a g r a m . c o m / p /
cada em questão e tratada como em- CL8RgbDHcHM/ texto completo disponível
nesse link, e reproduzido nos anexos ao final
busteira, pilantra, “sem-vergonha”. deste ensaio.

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 193
“sem-vergonha” é uma tentativa de ais, conjugando racismo e gordofobia
ofensa assim como “tá é gorda, isso em diversos episódios de abusos que
sim”, lembrando-nos dos estigmas não são o foco dessas reflexões, as
sociais atrelados aos corpos gordos, quais prefiro relacionar mais às expe-
como preguiça, mais comum, e ma- riências recentes que envolvem gor-
landragem, oriunda da primeira. nes- dofobia na gravidez e no puerpério.2
se dia, eu estava convenientemente
imagino que você que lê esse texto
distraída e sequer ouvi as reclama-
deve ter se lembrado, em algum mo-
ções, que foram ouvidas e rebatidas
mento, da “grávida de taubaté”. mos-
por minha irmã, que é magra. assim
tra-se digno de nota o fato de que
que saímos da loja e ela me contou
mesmo sendo um evento isolado e
o que tinha acontecido, comentan-
mais recente (com relação aos meus
do ter estranhado mesmo eu não ter
quarenta e um anos de vida) ele pa-
falado nada (sou bem conhecida por
rece alimentar um receio social de ser
barraqueira), ficamos ambas refletin-
enganado por uma pessoa gorda se
do que a insistência da mulher em pri-
passando por grávida, assim como a
meiro me questionar e depois ques-
expressão “falsa magra” denota esse
tionar minha irmã – pois foi ela quem
mesmo receio.
ouviu, que avisou à mulher de minha
gravidez, e que recebeu as ofensas gordice como embuste.
dirigidas a mim, quando a justificativa
de estar grávida e por isso usar a fila como fraude.
preferencial não foi aceita – pode es- enganação.
tar relacionada a ela parecer muito jo-
vem e ser uma mulher negra de pele dúvida.
retinta. a gordofobia é um sistema de
a associação entre gordofobia e ra- opressão. como sistemas de opres-
cismo tem espaço em minha vida por são costumam fazer pra se manter
ensinar que mesmo a gordice sendo em funcionamento, cria regras rígidas
culturalmente rechaçada numa so- de avaliação, classificação, hierarqui-
ciedade de profunda objetificação zação, exclusão: e punição. ferramen-
sexista (e consequente invasão, des- tas de controle.
respeitos vários) que trata corpos viver em uma sociedade na qual
femininos como mercadoria, e prin- ter um corpo gordo significa ser
cipalmente quando esses corpos são constantemente considerada erra-
tratados como “belos”, “esculturais”, da, falsa, enganadora, embusteira,
“gostosos” (adjetivos poucas vezes fraudulenta, duvidosa, falha (isso, pra
associados ao corpo de pessoas gor- não mencionar as desqualificações
das), a racialização enquanto negra mais verbalizadas como “feia”, “nada
de pele clara (transitando entre os
estereótipos da “mulata” ou da “mo- 2 tratei sobre esses episódios no zine “gorda,
rena brasileira”) impactou em uma eu?!?”, mapeando as articulações entre
gordofobia, racismo y lesbofobia, publicado em
dupla articulação das violências sexu- 2012. disponível em https://bit.ly/gordaeu2012

194 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
atraente”, “desleixada”, “pouco femi- mais como doença, com tratamentos
nina”), não só passível mas carecente “curativos” correlatos que aumentam
de correção (física e/ou moralizante) em repertório com o passar dos anos
pode ser (e aqui a escolha de palavras e têm seu ápice na indicação de ci-
é igualmente deliberada, consciente, rurgia bariátrica para pessoas gordas
proposital:) um fardo com peso de- que não têm diagnóstico de obesida-
masiado. de grave.
me parece também importante importante ressaltar enfaticamen-
analisar que o outro “xingamento” te, aqui, que não me oponho ao direi-
não foi “você é gorda, isso sim”, mas to inalienável de cada pessoa escolher
“tá é gorda, isso sim”, com o verbo viver aquilo que acha mais apropriado
estar parecendo sugerir que ser gor- pra sua própria vida. não me oponho
da é um tipo de falha de caráter com a dietas de emagrecimento, cirurgia
algo de escolhido, proposital, que po- bariátrica, prática de exercício ou ou-
deria ser alterado se houvesse vonta- tras estratégias de mudança corporal.
de real pra emagrecer e ter um corpo
pelo contrário, tenho falado aber-
adequado, legítimo, não trapaceiro,
tamente, ao longo desses anos como
ou seja, se eu tivesse vergonha de ser
ativista pró-gordice saudável e feliz (o
gorda, não seria mais gorda.
que tem sido chamado, mais recen-
essa a atribuição de traços de ca- temente, de discursos positivos so-
ráter específicos às pessoas gordas é bre o corpo, mas no termo em inglês,
análoga àqueles traços que acompa- “body positivity”), que se o emagreci-
nham pessoas magras por nada mais mento é fator que vai trazer bem-es-
que sua magreza mesma, traços den- tar, que seja alcançado, vivenciado,
tro os quais beleza é um dos prioritá- celebrado.
rios mas há outros igualmente impor-
fico bastante preocupada com
tantes, como limpeza, agilidade e, em
aqueles discursos anti-gordofobia
especial, saúde.
que não levam em consideração fa-
saúde, aliás, é um dos principais tores reais de adoecimento, inclusive
argumentos usados contra pessoas mental, que estão associados a viver
gordas, partindo-se do pressuposto como corpo gordo numa sociedade
de que estar gorda é estar doente. que idolatra a magreza. acredito pro-
disso apreendemos que a existência fundamente na soberania corporal
tão fixa ao longo do tempo de tais pra saber que não tenho direito (nem
discursos gordofóbicos se usa de vontade) de criticar pessoas gordas
uma ambiguidade estratégica pra se que decidiram emagrecer por quais-
manter, pois se de um lado a gordice é quer motivos que tenham tido, das
atribuída constantemente a preguiça, formas que lhes foram possíveis.
falta de vontade de emagrecer (sen-
me parece mais frutífero, por ou-
do, portanto, algo com aquele caráter
tro lado, analisar que nessa mesma
de escolha comentado anteriormen-
sociedade pró-magreza há um mas-
te); por outro lado, é tratada cada vez

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 195
sacre emocional em curso desde os fofura, gordice – só não se parecia
primeiros anos de vida das pessoas, tanto com “o bebê da michelin” quan-
especialmente daquelas considera- to familiares acostumades ao formu-
das mulheres, em prol do emagreci- lismo com que tiveram que criar e
mento compulsório.3 (des)nutrir seus bebês nos anos 80 e
90, sem nenhum apoio pra manterem
nos primeiros meses do meu puer-
a amamentação.
pério esse foi foco de muita reflexão
porque pra algumas pessoas, princi- quando criança e adolescente, fiz
palmente familiares, parecia absurdo todo tipo de dieta, tomei todo tipo de
que eu, “tão gorda”, fosse mãe de chá e beberagem (que uma criança
uma bebê menos gorda e que, nas podia tomar), participei de vigilantes
primeiras semanas de vida, teve ga- do peso (o que me parecia especial-
nho de peso abaixo dos parâmetros mente controverso, e parece até hoje,
tabelados pela pediatria convencio- por premiar com comida quem ema-
nal, que tende a abordar peso isola- grecesse mais semanalmente); só não
damente de outros fatores de bem- tomei remédio controlado, mas fui le-
-estar e desenvolvimento neonatal. vada a algumes endocrinologistas que
os receitaram. importante dizer que
esse suposto descompasso entre
muitas dessas coisas, se não todas,
minha gordice e a não-gordice de mi-
foram movimentadas externamente,
nha filha foi o que justificou a falta de
pra atender o desejo de uma possível
apoio que tive quando decidi suspen-
magreza (minha) manifestado por fa-
der a complementação de leite de
miliares mais velhas/os, em uma famí-
vaca (“fórmula”) que ela tomou de 04
lia majoritariamente magra.
a 08 semanas de vida, e mesmo eu
estando convicta a aumentar minha não teve dieta mágica ou tenta-
própria produção por ordenha e com tiva de alteração de hábitos alimen-
apoio da pediatra que a acompanha- tares que tenha dado certo. mesmo
va e abertamente defende amamen- quando emagrecia por alguns perí-
tação (dra. jamima leça), tive que lidar odos, logo engordava novamente.
com olhares desaprovadores segui- pra depois de um tempo emagrecer
dos da desqualificação constante de de novo. imagino que muitas pesso-
que ela estava “muito magra” mesmo as gordas estão habituadas a essas
quando o ganho de peso dela estava mudanças corporais constantes, que
dentro ou acima das médias tabela- poderiam ser vistas com muito mais
das e ela tinha excedentes dobrinhas, tranquilidade se fôssemos ensinades
desde criança dessa magia da natu-
3 lélia de castro faz uma discussão muito reza corpórea que é mudar constan-
interessante acerca dessa inversão de
parâmetros corporais que acontece; quando
temente.4
bebês, a gordura não só é tida como sinal de
fofura mas principalmente de saúde, e aos 3 ou
4 anos ela começa a se tornar preocupante a 4 publiquei um texto sobre isso, com foco em
ponto de haver intervenções tão cedo para que amamentação y diversidade de biotipo de
crianças emagreçam. mais sobre suas reflexões mama, disponível em https://www.instagram.
em www.instagram.com/doulalgbtqi com/p/CWA_wbTryWE/

196 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
quando engravidei, mesmo antes num ciclo um pouco depressivo que
de saber que estava grávida, notei me fez voltar a comer muito doce e
uma mudança até então inédita em carboidratos de forma desregulada
minha silhueta: uma nova confor- e com o frágil objetivo compensató-
mação dos quadris. mesmo estando rio/acolhedor – passei por uma inter-
com o peso estável há alguns meses, venção envolvendo a barriga que me
percebi que meus quadris pareciam deixou constrangida e com aquela
mais “pra fora”, o que me deixou bas- sensação ruim de violação corporal.
tante preocupada, até, pensando es-
que os corpos gordos enfrentam
tar relacionado a uma dor crônica que
muito, pois somos tratades como
tenho na região devido a uma má-
corpos públicos quase o tempo todo.
-formação no cóccix.
é isso que motiva alguém a xingar
toda a gravidez foi, aliás, uma ava- uma pessoa desconhecida na rua de
lanche de mudanças corporais, mais baleia, ou passar gritando pelo carro
ou menos fáceis de se lidar com, a vai fazer uma academia balofa, den-
depender das variações hormonais/ tre outras abordagens.
emocionais, que me regularam nova-
quando minha bebê já estava com
mente o humor e a psiquê de forma
sete ou oito meses (faz pouco tem-
ao mesmo tempo muito nova, estra-
po, pois ela vai fazer onze meses na
nha, maravilhosa, confortáveis.
semana em que escrevo essas linhas)
o aumento da barriga foi engraça- estávamos saindo de casa pro pas-
do de notar porque, como mencionei seio de rotina e, ao sair do elevador,
anteriormente, eu já vinha sendo bar- encontramos uma vizinha que vinha
riguda há uns dois anos, então me pu- subindo. ela se achou no direito de me
nha horas examinando o espelho pra parar pra, além das costumeiras pa-
ver se a curva parecia algo diferente lavras de carinho/elogio à bebê, TO-
de antes. o que aconteceu mesmo a CAR EM MIM, pegar na minha barri-
partir do final do primeiro trimestre ga, esfregando-a, pra perguntar, com
da gestação. tom entre deboche e reprovação, se
eu já estava esperando o irmãozinho
mais recentemente, depois de já
dele (muitas pessoas tomam minha
ter parido e continuar gorda – ali-
cria por menino por não ter orelhas
ás, a relação é que eu perdi peso na
furadas nem usar brinco).
gestação, e ganhei peso durante a
amamentação porque além de sentir por ser uma pessoa de quem eu
muita fome por estar dando de ma- não esperava esse tipo de microvio-
mar pra outro serzinho que foi se for- lência, não rebati com o que era mais
mando, desenvolvendo, crescendo a óbvio e eu já tinha usado, em outras
partir do alimento com que eu a nu- ocasiões, quando alguém da família
tria eu também me sentia muito de- me perguntou a mesma coisa: “eu já
samparada e descuidada, acossada, era gorda e já tinha barriga antes de
julgada por escolher tentar amamen- engravidar e parir”. só me senti ir mur-
tar exclusivamente no peito, e entrei chando emocionalmente, e a cara de

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 197
constrangimento ficou guardada em- ginal, como estávamos em pleno auge
baixo da máscara. da pandemia de covid-19 essas eram
das poucas ocasiões em que eu me
essa não foi a primeira ocasião em
encontrava com mais de 2 ou 3 pes-
que meu corpo foi tocado por motivo
soas de uma só vez. em comum, além
de controle gordofóbico, nem tam-
das gestações, as outras grávidas con-
pouco foi a mais violência ou desa-
versavam avidamente sobre dietas,
gradável. mas de novo me fez refletir
procedimentos estéticos que queriam
sobre a necessidade que muitas pes-
fazer pós-parto, exercício, medidas e
soas parecem ter de querer justificar
peso, mais do que se falava sobre as
um corpo gordo com algum moti-
absurdas festas/chás de revelação do
vo que as pareça satisfatório por ao
sexo-gênero assumido pela família
mesmo tempo explicar e desculpar
depois de ecografias reveladoras de
aquele desvio, aquela transgressão
genitálias; mais do que se falava sobre
ao reino encantado da magreza per-
preço de enxoval; mais do que se fala-
feita amém.
va sobre o próprio parto.
muitas vezes essas abordagens
eu me sentia quase absolutamente
são feitas por mulheres que tiveram
sozinha, não tinha vontade de inte-
e muito provavelmente ainda têm
ragir com ninguém, e em todos es-
seus corpos igualmente submetidos
ses espaços fui a única grávida gorda
ao escrutínio desse controle corporal
transitando ali. eram, também, am-
constante. a normalização da gordo-
bientes extremamente elitizados (te-
fobia é muito mascarada em nome
nho plano de saúde, a yoga era parti-
de preocupação com a saúde das
cular), brancos, heterocisnormativos.
pessoas gordas, e talvez seja esse
graças à generosidade de minha filha,
um dos motivos principais que fazem
a solidão é, desde a barriga, profun-
gordofobia tentar se passar tanto por
damente amenizada pela presença
conselho, sugestão, cuidado, ajuda…
amorosa, divertida, instigante dela.
quando muitas vezes se manifesta
em abordagens extremamente inva- tenho sonhado com y trabalhado
sivas, violentas, descuidadas, enfim: pela construção de espaços mais vi-
normativas e magrófilas. víveis, respiráveis, acolhedores, ma-
cios pra pessoas como eu y também
é especialmente cruel, violento e
pra que as pessoinhas como ela, con-
contra a natureza mutável do corpo
forme cresçam, possam ocupar de
o imperativo do emagrecimento pós-
forma mais leve, mais divertida, mais
-parto, a tentativa de voltar o corpo
feliz, sendo gordas ou não. muitas ve-
“ao que ele era antes” da gravidez,
zes, durante a luta que foi pra manter
como se a realidade de qualquer cor-
a amamentação exclusiva y sair do
po tivesse sido sempre a mesma, fixa,
leite de vaca modificado (“fórmula”),
imutável, constantemente regulada.
quando me contestavam se precisa-
durante os meses em que fiz yoga pra
va mesmo disso tudo, se não era me-
gestantes ou mesmo durante a fisio-
lhor dar logo mamadeira e parar de
terapia pélvica de preparo ao parto va-

198 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
insistir em dar peito, eu respondi que nossos corpos, com a forma que mo-
estudos recentes apontam o uso de vimentamos (ou não) nossos corpos,
fórmula no puerpério como fonte de como nos medicamos, como ocupa-
doenças do tipo obesidade e asma, mos o planeta.
além de enfraquecimento do sistema
aliás, por falar em planeta, nesse
imunológico, entre outras.
planeta lindo que algumas famílias de
de uma prole de três crias, sou a nossa espécie teimam em destruir,
mais velha, fui a única que não mamou quando a gordofobia bate muito for-
leite materno/humano (só durante o te eu me lembro: até a terra é indu-
primeiro mês de vida, como resulta- bitavelmente redonda. y tento mais
do de um processo de violência pós- uma vez ser redonda em paz…
-parto que minha mãe sofreu com
pra encerrar esse ensaio, deixo
seu obstetra), a única gorda, a única
transcritos aqui dois textos mais cur-
com doenças respiratórias (inclusive
tos que abordam o tema de uma ou-
bronquite asmática). como as críti-
tra perspectiva, menos dura/dolorida
cas à amamentação exclusiva vinham
do que a maior parte das palavras
prioritariamente de familiares que me
dessa minha reflexão, pra que chegue
pressionaram a infância/adolescên-
também um pouco de esperança ou
cia toda pra emagrecer, essa respos-
alívio a quem leia.
ta costumou silenciar-lhes, porque o
pânico social com relação a crianças
gordas, especialmente crianças li- textos anexos
das como meninas, parece ser ainda
maior do que a lavagem cerebral que
a indústria da fórmula conseguiu fazer a gratidão afetiva-sexual
com a geração de nossas mães (mu- da gorda [03/03/2021]
lheres com 60 ou 70 anos, que foram
amamentadas exclusivamente por lei- adolescer gorda significou não ser
te materno na maioria dos casos). desejada sexualmente. não em públi-
co, ao menos.
não é coincidência mera que a in-
dústria dos “alimentos” ultraproces- y tb me ensinou uma internaliza-
sados, cheios de açúcares, gorduras ção (inconsciente até muitos anos
danosas, carboidratos concentrados depois) de que eu deveria ser muito
seja tão lucrativa quanto a indústria grata sempre a qualquer pessoa que
do emagrecimento. ambas ques- fizesse o favor de me desejar.
tionam a soberania alimentar base- conversando numa live com o ama-
ada em agricultura familiar de base do amigo rodrigo botero hj mais cedo
orgânica, sem transgênicos; ambas me lembrei de como foi importante
miram o controle de nossas práticas aprender a dizer não tb como forma
de bem-viver centradas em uma re- de aprender a dizer sim.
lação harmoniosa não só com nossos
corpos, mas com o que alimentamos y isso tem muito a ver com as parti-
cipações marginalizadas no mercado

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 199
do sexo-afeto orientado por mode- vre tanto do desejo alheio como forma
los estéticos magristas/racistas, tanto de aprovação externa pra “compen-
quanto eu era hetera quanto depois sar” a autorrejeição; quanto da sen-
que fui lésbica. sação de dívida afetiva/sexual por ter
sido “finalmente escolhida”. que bom
eu simplesmente me sentia obriga-
que essas experiências tantas vezes
da a transar com quem quer que qui-
doídas me ensinaram, de alguma for-
sesse, pq era raro alguém querer. rola-
ma, a honrar y respeitar meu desejo.
va um misto de afeto y gratidão muito
torto, pq não tava baseado em dese- é bom ocupar esse corpo, do jeito
jo, com consequências muitas vezes que ele é. finalmente ♡
adoecedoras pq significou, muitas
vezes, realmente me obrigar a transar.
normal de corpo é mudar
é um alívio ter amadurecido y me [08/11/2021]
curado de tantas feridas, poder falar
sobre elas com tranquilidade y até meu peito é tão caído que quase
grata pelo aprendizado, depois de chega no umbigo; tão caído que já fui
tantos anos de angústia y tentativas parada na rua pra me recomendarem
tão doloridas de lutar contra a solidão plástica; tão caído E grande que qdo
amplificada pela gordofobia, y as in- apareceu um caroço na mama es-
seguranças que ela engatilha. querda y fui num mastologista super
mega ultra recomendado ele falou 5
sabem que hj eu me sinto grata minutos sobre o caroço y 25 sobre eu
até pelas pessoas que abertamente TER QUE fazer plástica de redução
falaram que nunca ficariam comigo pra “seus seios ficarem mais bonitos”.
por eu ser gorda? mas é outro tipo de
gratidão, eu acho. não aquela que le- tornei a pensar nisso hj com tan-
vava a sexo forçado. ta nitidez depois que uma mãe dum
grupo de puérperas em que participo
pq depois de um tempo ter sido tava triste comentando que queria
muito rejeitada me ensinou tb que é ter peitos um pouco maiores pra não
tudo bem eu rejeitar, não querer ficar ficarem “tão feios” depois que paras-
com alguém. sem olhar pros motivos se de amamentar.
das rejeições de forma funda, sem
problematizar o afeto construído em quando consegui sair da fórmula
torno de magreza, de branquitude. (leite de vaca em pó hipermodifica-
do) y manter minha filha crescendo
mas tb me ensinou a não me sen- 26,5 gramas por dia com amamenta-
tir constrangida por não querer ficar ção exclusiva pensei que era uma ma-
com alguém (o que já senti muitas ravilha ter peitos que produzem leite
vezes, também). que nutre cria, que faz gente! 26,5g
tô tipo a pollyanna-moça hoje, ven- de pessoa sendo feitos, por dia, y
do o lado bom em tudo na vida... mas, olha que tem mães fazendo, por dia,
de verdade, como é bom me sentir li- 30, 35, 40g de gente! fazendo y ali-

200 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
mentando fêmur, pele, córneas, pân- aí, lactantes que ficam com peito
creas, dentinhos, músculos faciais murcho depois de amamentar iam
que abrem sorrisos, dedinhos, cresci- ser livres pra celebrar a alegria de nu-
mento encefálico, cabelinho, sobran-
celha, aquelas unhas minúsculas nas
mãozinhas ávidas por segurar tudo,
🥰🌊🌱👶
trir com o próprio corpo suas crias
🏽
como tive peito caído desde que
descobrir o mundo.
apareceram, nunca tive essa nóia de
antes de parir eu fazia fisio urogi- “e depois qdo parar de amamentar?”,
necológica pra me preparar pro parto o que é uma #pas
vaginal (que não rolou), y as colegas
sonho que muitas outras mães
de fisio todas conversavam entre si
que amamentam fiquem paz com
sobre o que fazer depois de parir pro
seus corpos, cada vez mais, especial-
corpo voltar “ao normal”...
mente as que são mães de meninas,
normal de corpo é mudar, se trans- y que nossas filhas tenham a chance
formar, se adaptar, aprender a ser de de crescer aprendendo a amar seus
formas novas conforme o tempo pas-
sa (y tempo, sabemos, é um deus tb). 💛
corpos assim como nós um dia sabe-
remos sim fazer
aaah gente, imagina que massa se & viva o peito caído! viva o corpo
não existissem padrões de beleza! se que muda!
todo mundo pudesse se sentir linde
como é ♡

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 201
Entrevista com Bàbá Renato de Ogun

por Nina Ferreira

Embora o candomblé seja uma religião popular em nosso país, para introduzir
minha entrevista com o babalorixá Renato de Ogun a um público mais amplo
vejo a necessidade de escrever um pouco sobre a religião na qual eu também
vivo um sacerdócio.
O candomblé é uma religião brasileira de matriz africana, que organiza e reela-
bora cultos de divindades africanas no Brasil com a vinda de pessoas de diferen-
tes povos e reinos em regime escravo no período da colonização do nosso país.
Os candomblés são organizados em casas (terreiros) e cada casa pertence ao
que chamamos Nação, sendo as principais nações: Angola, que cultua divinda-
des chamadas Nkisi e tem como tronco étnico-linguístico fundamental o bantu;
Jeje, que cultua os Voduns e tem como tronco étnico-linguístico fundamental o
fon; Ketu e Ijexá, que cultuam Orixás e têm como étnico-linguístico fundamental
o iorubá. Há também as casas que se autodenominam Jeje-nagô. Isso porque as
dinâmicas do processo de escravização que envolveram os povos Fon do reino
do Dahome e os povos Iorubá de diferentes reinos. Pessoas dos reinos ioruba-
nos sequestradas por dahomeanos que exerciam práticas espirituais ou mágicas
foram chamadas nagôs ou anagôs, cessidade de fazê-lo, já que não exis-
como descreveu Juana Elbein em te mais uma hierarquia legal vigente
seu Os Nagô e a Morte. Portanto, Je- entre as religiões em questão.
je-Nagô atende aos sincretismos en-
Formados a partir do século XIX os
tre os Fon e os povos iorubanos antes
terreiros de candomblé mantiveram
da chegada ao Brasil.
a prática de quilombos, consistindo
O caráter sincrético do candomblé não apenas em um grande grupo de
é verificável: os tambores chamados correligionários, mas uma verdadeira
atabaques, hoje presentes nas três comunidade que provém princípios
nações centrais, com exceção do filosóficos e formação estética, assim
candomblé pernambucano chamado como subsídios para a vida cotidiana,
Xangô que preconiza outro tipo de seja ela no meio urbano ou rural, e
tambor (o Ilú), são de origem Fongbe que tem calendário anual e indumen-
e são chamados nessa língua dentro tárias próprias.
dos terreiros: o maior, que faz a fun-
São alguns dos princípios comuns
ção de solista, chama-se Hun, o mé-
aos diferentes candomblés: o respei-
dio e o pequeno, que fazem a base
to às pessoas mais antigas no sacer-
do ritmo com pequenas diferenças
dócio, a “idade de santo”, sejam elas
chamam-se Hunpí e Le, respectiva-
mais velhas de nascimento ou não; o
mente. Além disso, o sistema oracular
apreço pela diferença, uma vez que
central adotado em todas as nações
todos cultuam várias divindades, to-
é, majoritariamente, o mesmo: o jogo
das diferentes entre si e igualmente
de búzios. Esse sistema foi organiza-
queridas e importantes; o culto aos
do séculos antes do início do sistema
ancestrais divinizados e a relação es-
escravocrata e há defensores de que
piritual com os ancestrais em geral; o
esse seja um sistema iorubano por
respeito pelas vidas animal e vege-
excelência, enquanto outros defen-
tal, uma vez que fazem parte o ar-
dem uma contribuição Fongbe para
cabouço energético e simbólico no
esse sistema.
qual também se manifestam as di-
Esse sincretismo também se deu vindades cultuadas; o uso de um ou
em relação ao catolicismo, diante da mais sistemas oraculares por meio do
catequização compulsória de pes- quais seja possível se comunicar com
soas africanas e indígenas no perío- divindades e ancestrais não-diviniza-
do colonial. Para seguirem cultuando dos e/ou com o mundo espiritual; a
suas divindades, pessoas africanas e ausência de um antagonista total.
descendentes fizeram correlações
Embora tenha sido “legalizado”
entre santos católicos e elas. A ida a
em 1946, por meio de artigo que as-
uma missa fez, e em alguns casos ain-
segura liberdade de crença, o can-
da faz, parte dos atos que finalizam o
domblé ainda sofre perseguições
processo iniciático. No entanto, o sin-
que atingem desde lideranças a pes-
cretismo com o catolicismo tem sido
soas recém-filiadas e simpatizantes.
deixado de lado diante do fim da ne-
É possível ler reportagens sobre os

204 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
13 terreiros em Brasília, incendiados se embranquecer ao longo dos anos,
e depredados apenas no ano 2015. no dissipar de seus pontos funda-
Também há reportagens de denún- mentais, e na amnésia diante de sua
cias de agressões verbais e físicas, história, ainda apresenta um contra-
bem como ameaças, sofridas por ponto a uma sociedade que despreza
pessoas que frequentam terreiros, a diferença, as espécies não humanas
sejam elas lideranças ou não. e todas as heranças culturais criadas
por pessoas pretas.
A violência contra religiões de ma-
triz africana, embora tenha se locali- Isso posto, encerro a introdução ao
zado na Intolerância Religiosa, fun- candomblé e venho introduzir meu
damenta-se no racismo religioso. entrevistado, Renato Pedro, conhe-
Explico: uma das críticas centrais, cido como Rentado de Ogun. Fun-
bode expiatório para a perseguição dador da Comunidade Renovação
ao candomblé, é o fato de a imolação de Ogun, em São Paulo, tem 32 anos
de animais fazer parte da liturgia da de idade, é sacerdote no candom-
religião. Pessoas de diferentes gru- blé Ketu, iniciado para o orixá Ogun,
pos, desde veganos mal-informados cujos domínios estão ligados à tec-
a religiosos e políticos onívoros e cíni- nologia, ao trabalho, às guerras. Ho-
cos, têm recorrido à justiça para pro- mem transexual, Renato defende a
mover o racismo religioso, apontando adaptação da tradição às demandas
uma suposta crueldade nas religiões da atualidade.
que sacrificam animais. No entanto,
Eu sou Nina Ferreira, artista, edu-
estão no centro da perseguição o
cadora, sacerdotisa do Orixá Ìrókò no
candomblé e a umbanda. As liturgias
candomblé, e fui convidada a condu-
judaicas e mesmo as cristãs do inte-
zir essa entrevista.
rior e o natal católico com seu animal
nascido para o abate festivo estão Nina: Você pode explicar um pou-
fora de questionamento, na maior co pra gente primeiro como que você
parte das vezes. Vincula-se ao can- chegou nessa religião e depois é qual
domblé a imagem do primitivo, do é a função de um babalorixá?
atraso, da ignorância fundamentada
em “crendice”, mesmo imaginário vo- Renato: Certo. Bom, eu cheguei
cabular dos cartões postais do século nessa religião por caminhos familia-
XIX que defendiam a supremacia ra- res mesmo. A família do meu pai. Co-
cial é utilizado contra o candomblé e nheci o candomblé através de uma tia
sua liturgia, não à toa e muito menos paterna que frequentava e me iden-
por acaso. tifiquei, acho que primeiro no âmbito
ancestral, porque eu ainda não pen-
O racismo é uma ideologia que está sava nem a gente pode falar de tran-
na fundação do Brasil e de muitos pa- sição né que ainda não pensava sobre
íses, e que é um dos pilares ou veto- isso não tinha esse conhecimento mi-
res de organização da sociedade de nha Orí não era desperto para… Des-
classes. O candomblé, embora possa perto para esse caminho. Eu tinha 14

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 205
anos quando eu conheci e aí não po- “quero me iniciar com o senhor”. Fi-
dia ir pro terreiro, minha mãe não dei- quei sem entender nada porque meio
xava ainda por ser menor de idade, que estava correndo atrás do tempo
não responder pelos meus atos e ela perdido, estava me entendendo ain-
também não ter conhecimento, eu da enquanto homem trans, me afir-
só me sentia bem, sabia que aquele mando numa comunidade de terreiro
espaço, aquele lugar, aquelas coisas e que foi super importante pra minha
pessoas me faziam bem. Então aos 21 pra meu amadurecimento, pra esse
anos eu me iniciei, hoje tenho 14 anos corpo que eu estava construindo e
de iniciado. Mas minha transição co- pra essa... Não construção de per-
meçou quando eu estava com 27 pra sonalidade, porque eu acho que isso
28 anos de idade e hoje eu completo só foi externalizado, mas um espaço
35 e aí nesse período [da transição] de terreiro é fundamental quando
eu me afastei porque realmente co- ele acolhe uma pessoa trans nessa
mecei a não me sentir à vontade com afirmação: de onde você está para
o corpo, com as vestimentas e indu- onde você quer chegar. Se ele [o ba-
mentárias que identificavam o gênero balorixá] naturaliza as coisas dentro
porque era muito latente e por causa da comunidade, não há sofrimento.
disso eu já detestava fazer roupas... Porque eu percebo que grande par-
Acho que eu tinha uns 5 anos já de te da transformação veio da parte
iniciado eu ainda tinha duas roupas. dos babalorixás, né? Das Olori Egbe
Me afastei acho que porque não tinha [orientadoras(es)/presidentes de
maturidade, não sabia o que estava uma comunidade] dessas famílias. E
acontecendo com a minha cabeça. aí eu percebi que eu comecei juntar
aqui, juntar ali, estava juntando a mi-
Quando eu retomei já com outra
nha família. Fundei a Comunidade da
cabeça, com Orí sabendo o que era
Renovação de Ogun Onirê, que é um
e o que queria, foi uma virada de cha-
segmento da C.R.E.I.A Oxaguiã do
ve dentro da religião, e mais do que
meu pai, Daniel, e que tem acolhido
depressa as coisas se desenrolaram,
corpos, iguais aos meus que preci-
tomei a minha obrigação de 7 anos*,
sam desse espaço de autoafirmação,
coloquei tudo que estava atrasado há
porém, na minha casa também tem
3 anos em ordem e aí o meu pai com
todo tipo de filhes, famílias também
quem eu dei continuidade, professor
cis-hetero-normativas.
Daniel Pereira, me deu os direitos de
babalorixá e aí logo em seguida eu Eu penso o seguinte: o candomblé
pensei: “bom cheguei aqui tomei os tem essa causa matriz, que é o forta-
direitos de babalorixá e pronto né, lecimento sobre as questões raciais.
acabou, vou seguir ebome (egbon) Beleza, isso é inquestionável, a gente
aqui da casa dele a vida inteira e é isso sabe que isso é. A premissa da religião
que tem pra essa vida, vamos nessa” de matriz africana, coloca o combate
(risos). Só que aí um pouco mais de ao racismo de todas as formas, po-
1 ano depois as pessoas começaram rém hoje essa não é a única causa.
a aparecer para jogar [búzios] diziam Tinha um homem trans babalorixá

206 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
em São Paulo, acho que agora tem tanto binárias como as não binárias,
mais alguns, e nossas casas têm uma como que você vê a presença de
luta mais, que é essa de afirmação e pensamentos transfóbicos e homo-
ocupação por parte dos corpos trans. fóbicos no candomblé – religião que
Não que eu queira um candomblé se- há mais de um século tem pessoas
paratista, não é isso. Mas eu percebo com uma performance vinculada ao
que é preciso buscar um lugar que gênero oposto e pessoas homosse-
seja mais seguro, psicologicamente. xuais em postos de liderança?
Para que esses corpos que não preci-
Renato: A homofobia também foi
sem mais ficar se humilhando para as
latente, né? As pessoas sofreram mui-
pessoas cisgênero, independente da
to com isso dentro da própria religião.
orientação sexual delas. Eu até afirmo
Mas eu penso que há muito tempo
que essas pessoas deveriam valorizar
atrás isso era falta mesmo do conhe-
e procurar corpos iguais para se for-
cimento e consequência do colonia-
talecer, assim outros segmentos de
lismo, no sentido do eurocentrismo
luta se fortalecem: “não falem por
do catolicismo, a parte cristã que foi
nós sem nós”, sabe?
parar dentro do candomblé porque
Acho que de uns tempos para cá na época era o que as grandes senho-
uma galera andou pegando seus 5 ras e os grandes senhores tinham. E
minutos aí de aliado e muitos que mesmo naquele tempo as tradições
só foram ali na frente, sabe? Só são foram atravessadas por visionários
aliados na frente, porque no fundo e babalorixás revolucionários, como
a gente sabe que é paulada. Então Joãozinho da Goméia, que usava pa-
acho que a gente também precisa se nos na cintura... Tudo foi através da
preservar. Né? Se preservar em se va- indumentária porque homossexualis-
lorizar enquanto pessoas que podem mo, corpes que não condiziam com
sim ocupar esse espaço, que podem aquele tempo que já existiam eram
sim fazer um candomblé, um culto fa- jogados para debaixo do tapete. Tive-
miliar e próprio da sua ancestralidade, mos grandes Iyalorixás. Uma grande
porque a transexualidade é para mui- Iyalorixá que atravessou esse tempo
to além do ego, né? Para muito além foi a Mãe Sônia de Yemanjá, que in-
de querer ser ou parecer. É de, de felizmente já fez a passagem, foi uma
certa forma, ancestral também, por- grande atravessadora desse tempo,
que vem de Orí. E aí, quem não aceita como mulher trans. Sempre as mu-
e quem não entende acredito que é lheres abrindo caminho para que es-
porque pouco sabe sobre essa jorna- tejamos aqui hoje. Como mulher trans
da que é Orí; abriu caminho para que… Para que es-
tivéssemos aqui hoje. E aí eu acho que
Nina: E pensando que Orí não está
era que era isso mesmo, né? Era mais
preso nesse tipo de julgamento, esse
pela sociedade e não pela religião.
tipo de norma que é transfóbica, afi-
nal de contas, vê a transição como Em África ou em outros países a
uma aberração...Aliás, as transições, diversidade é algo muito lógico. Já

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 207
existiam histórias, a própria mitolo- to em que existe, ao mesmo tempo,
gia dos Orixás, traz histórias, Itãs, re- essas atualizações e aberturas que a
lacionados a corpos não-binários ou tradição necessita para continuar viva
transexuais ou que ora é macho ora e ao mesmo tempo uma resposta
é fêmea. Então acho que foi mui- conservadora da sociedade?
to mais uma questão social. A pró-
Renato: Olha, posso te dizer que,
pria intervenção humana trouxe esse
no meu ponto de vista, eu vejo como
preconceito sobre homossexuais e
uma grande organização. Né? Porque
transexuais. Queriam aquele padrão-
a igreja, ou a máquina que faz a igreja
zinho de candomblé cristão católico
girar, é muito mais organizada do que
ali que parecia certinho ao ponto de
a máquina que faz a religião de ma-
vista deles e seguimos aqui a ponto
triz africana girar. Eles ocuparam es-
de separarmos as coisas por gênero.
paços que nós, ao passar dos anos,
E isso foi sendo assim até pela ques-
desocupamos ou não nos importa-
tão de organizar, né? Vamos dizer as-
mos, talvez. Porque a, como você diz,
sim, para manter a ordem, mas nes-
de 10 anos pra cá, eu te digo de um…
se ponto eles também não tinham a
De uns 15 a 20 anos atrás a população
consciência do que estavam criando
periférica era mais apegada a Exu, a
e imenso pensamento de: “tem axé
Pomba Gira [entidade cultuada nas
não tem axé”, “tem santo, não tem
umbandas] como forma de proteção.
santo”, essas coisas que a gente sabe
E a gente, por algum meio, se perdeu
que não existe a partir de lideranças
disso daí... Elas se apegaram à igreja a
que começam a desconstruir os pre-
ponto de querer nos atacar, como se
conceitos dentro dos seus terreiros e
nós fôssemos o vilão, sem pensar nos
a validar as auto afirmações de Orís
seus antecessores. Essa geração de
que não condizem com os padrões
hoje, que está ligada à marginalidade
de antigamente.
se esqueceu que tiveram um histórico
Nina: Nos últimos 10 anos, vimos favorável ao candomblé. Porque anti-
uma série de ataques a terreiros de gamente, os terreiros eram acolhedo-
candomblé por parte de pessoas res das pessoas à margem, não o ini-
vinculadas à religião evangélica, mas migo, e hoje nós somos vistos como
essa perseguição é muito antiga e um inimigo e a igreja como um gran-
tem origem no racismo antinegro. de aliado. Tanto que o quadro político
Então a gente teve uma série de per- que nós tivemos aí essa semana [no
seguições em relação ao sacrifício primeiro turno das eleições], creio,
animal e foram propagadas muitas está 80% ligado à manipulação por
mentiras que relacionavam pessoas parte das igrejas evangélicas e à re-
que cometiam crimes ao candomblé ligião católica. Entendeu? Eu sei que
e à umbanda, que usaram como si- nós não perdemos ainda, mas parece
nônimo de magia negra. Isso vem da que mesmo com todos esses avanços
própria história de proibição das reli- que nós temos feito nós voltamos a
giões de matriz africana e depois evo- anos atrás, sendo perseguidos e ten-
luiu. Como que você vê esse momen- do que nos esconder. Recentemente

208 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
eu tive que mudar de casa porque eu Renato: Nos rituais. O tempo das
fui denunciado. E a denúncia chegou iniciações nossas é lento, e o tem-
lá da seguinte forma: “você faz cultos po das igrejas é mais veloz, que está
na sua casa segundas e quartas-fei- mais a fim à urbanização. Eu acho
ras, das 4 da tarde às 2 da manhã” Eu que a igreja tem estrutura maior, né?
falei: ôxe, e aí eu não trabalho, não Política de grana, enfim, de investi-
pago conta? Como é que é esse ne- mento. Acho que o sentido de uma
gócio aqui? “Você mata animais”. Sim, comunidade de terreiro é fazer algo
a Constituição garante que o sacri- pela comunidade e ao redor dela,
fício de animais para alimentação da mas hoje nós não temos esse espa-
minha família. O culto aqui é próprio, ço por muitas vezes não sermos nem
não tem placa, não tem fila de gen- aceitos pela própria comunidade. Se
te aqui, não é uma igreja, não é uma a pessoa falar lá no terreiro pegar
instituição, né? Não é uma tenda com uma cesta básica, mesmo que ela es-
placas e o que tem aqui é um culto fa- teja precisando, ela vai pensar 10 ve-
miliar. E a gente não tinha barulho de- zes. Na casa do meu pai [babalorixá]
pois das 22h, tá? Estou contando para nós tínhamos cestas básicas e fomos
você a perseguição que eu sofri. Dis- tentar doar numa comunidade. Não
seram: “porque se eu voltar aqui, eu quiseram as nossas doações porque
vou multar você em não sei quantos eram de terreiro. E aí tivemos que ir
mil e contatar o proprietário” blá, blá, procurar uma comunidade mais dis-
blá... E acabei me mudando. Tive que tante, onde sabíamos que seríamos
procurar uma casa. Até agora não tive aceitos. Mas não foi ali, ao redor, onde
mais problema, mas estamos sujeitos até então fazíamos nosso trabalho so-
a ter esse tipo de… Esse tipo de pro- cial. Então até um trabalho social hoje
blema. Sabemos que até lutar contra é difícil. Os terreiros tomaram outros
isso dá uma dor de cabeça danada e caminhos, vieram algumas pesso-
às vezes a gente prefere pegar nos- as mais estudadas também e outro
sas coisas e mudar e ter paz do que quadro social começou a se formar,
ficar atrás de processos, embora te- acho que pelo acesso à informação
nhamos os nossos direitos garantidos também. Talvez algumas pessoas de
quanto a isso, mas é um desgaste. periferia, quando não vivenciam uma
casa de terreiro, fim com esse estig-
Nina: O candomblé foi por muito
ma de “coisa do diabo” na cabeça, de
tempo o sinônimo de um quilombo
“coisa ruim pra vida”. Sem vivenciar
urbano, quando na cidade, dado seu
não sabem o trabalho em desenvol-
grau de atuação na vida da população
vimento lá dentro, não sabe que que-
negra. Como você vê esse descom-
remos que as nossas crianças tenham
passo entre populações periféricas
estudo, saúde, enfim... A gente vê
e o candomblé, onde muitas popu-
muitas pessoas pretas dentro da igre-
lações periféricas puderam viver, ter
ja ouvindo discursos que demonizam
formação não só religiosa, mas uma
nossa religião, e isso é dolorido, é um
estética e intelectual, e espaço para
sentimento de perda. Só que faz par-
viver, mesmo para viver?

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 209
te, porque não saímos por aí conver- Mas mais do que depressa, chegaram
tendo ninguém, nem convencendo as à prefeitura para dizer que eu estava
pessoas da nossa verdade absoluta. matando animais e essas coisas todas
Fazemos o que nos faz bem. Não sei que a gente já sabe e que se eu vol-
até onde isso é só bom, porque eles tasse lá eu poderia me prejudicar de
têm vários meio de informação que a alguma forma. E agora fiz tudo o que
gente não tem. Têm emissoras de te- eu precisava nessa casa nova, está
levisão... E nisso acho que nós esta- fluindo. Espero que continue assim,
mos um pouco atrás, nesses avanços, porque a gente respeita muito o am-
né? De espaços, de ocupar espaços. biente para não ter problemas: dos
Mas a passos lentos nós temos que horários à forma de cultuar. A gente
caminhar. Cuidar sim, da nossa comu- precisa se adaptar momentaneamen-
nidade. Quando alguém está triste e te para sobreviver, então eu acho que
vem conversar comigo é a hora que isso é um pouco de retrocesso para
eu tenho para falar sobre o que me nós. Se você para em frente à minha
faz bem, o que me cura, mas jamais casa você não vai saber que lá é o ter-
de convencer alguém. reiro. Só vai saber se entrar, porque é
tudo mais lá no fundo do terreno. Já
Nina: E aí, você mudou para outro
a igreja, não: ela pode abrir qualquer
lugar se eu já vou se mudando para
porta, fazer qualquer barulho que
conseguir fazer o culto, ele está con-
ninguém reclama. Muito desigual né?
seguindo tranquilamente.
*A “obrigação de 7 anos” é um rito de passagem,
Renato: Sim e é muito louco, por- comum a iniciados. São feitos, tradicionalmente,
que até um lugar mais elitizado onde ao menos quatro ritos de passagem no
candomblé: a iniciação, o rito de um ano de
eu moro agora, a casa é maior... É tão iniciação, o de três anos de iniciação e o de sete
louco que na onde eu morava tinha anos. O último deste ciclo marca a maioridade,
baile funk, fluxo, aos finais de sema- por assim dizer, da pessoa iniciada. Geralmente
após esse rito a pessoa ganha mais autonomia
na e não tinha polícia, não tinha de- e em alguns casos é direcionada a tornar-se
núncia, não tinha problema, ninguém babalorixá ou iyalorixá.
tinha coragem de enfrentar o funk.

210 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
Porque é importante falarmos sobre nós:
experiências de atuação da Coturno de
Vênus em projetos de pesquisas e formações.

Coturno de Vênus

A Coturno de Vênus, criada em 2005, é uma associação lesbofeminista, antir-


racista, antiLGBTIfóbica e anticapacitista do Distrito Federal. A missão da Cotur-
no de Vênus é promover os direitos humanos - sexuais, reprodutivos, ambientais,
sociais, econômicos e culturais – para as lésbicas; enfrentar a discriminação por
orientação afetivo-sexual, raça/etnia, gênero, corporalidade, posições político-
-sociais e/ou geracionais; incentivar a visibilidade e o protagonismo lesbiano.
Ao longo da trajetória da Organização, na busca de direitos para a popula-
ção lésbica e sapatão sentimos a necessidade de termos dados específicos so-
bre nós que pudessem propiciar um alcance direcionado de políticas públicas,
contudo, dados e informações eram inexistentes no que se refere à população
lésbica e sapatão. E esta cobrança por informações direcionadas para lésbicas
e sapatão tem sido um dos eixos fundamentais para a atuação coletiva. Por en-
tendermos que o Estado não responde às cobranças da população na medida
de suas necessidades, e reconhecendo a lesbofobia institucional, compreende-
mos a importância de produzir dados Colocamos na rua um projeto sem
direcionados, para identificar e quan- recurso financeiro, mas com muita
tificar quem somos e onde estamos, vontade de suprir a necessidade de
fundamental para elaborarmos nar- dados sobre a nossa população. Para
rativas sobre vivências e experiências reunir dados como faixa etária, raça/
de lésbicas e sapatão e reivindicar a etnia, emprego, religião, grau de ins-
elaboração de legislação e de políti- trução, disponibilizamos um formulá-
cas públicas. rio online, no período de 2018 a 2019,
difundido pelas parcerias, entrevistas
O projeto do Lesbocenso DF surge
para jornais, rádios, site e instagram
de uma inquietação de lésbicas e sa-
de coletivos, organizações e institui-
patão ativistas da Associação Lésbica
ções parceiras, além das redes sociais
Feminista de Brasília - Coturno de Vê-
como Instagram e WhatsApp. Esse
nus, do Distrito Federal, por compre-
projeto é pioneiro e, nessa perspecti-
enderem a importância e necessida-
va, não tivemos o intuito de abranger
de de identificar lésbicas e sapatão
todas as lésbicas e sapatão do Distri-
de diferentes gerações, identidades
to Federal e sim trazer um fragmento
raciais, corporalidades, classe social e
dessa população como um ponto de
território para promover a elaboração
partida e observação.
de dados sobre quem somos, onde
estamos, quais nossos potenciais e O formulário disponibilizado on-li-
capacidades para possíveis pontos de ne foi respondido por 1.353 pessoas
vinculação entre as nossas diferenças. e destas, utilizamos 968 respostas.
Consideramos para a análise os da-
dos de quem se autoidentificou en-
LesboCenso DF projeto
quanto lésbica, sapatão e suas va-
pioneiro: 1º LesboCenso do riações, como por exemplo, fancha,
Brasil caminhão e homossexual feminina.
Foram descartadas do conjunto de
O primeiro LesboCenso foi realiza-
dados as respostas duplicadas, de
do pela Associação Lésbica Feminista
lésbicas e sapatão que não moram no
Coturno de Vênus, no Distrito Fede-
DF/Entorno, bissexuais, homens trans
ral, com a construção de uma meto-
ou auto identificação vaga como por
dologia que hovesse participação de
exemplo, pessoas que se declararam
diversas ativistas lésbicas e sapatão
como humana, pessoa, ou até mes-
autônomas. Desde a estruturação do
mo o próprio nome.
formulário até a primeira análise dos
dados, antes do lançamento, conta- O formulário foi construído a par-
mos com essas parceiras. O Lesbo- tir de eixos temáticos de auto iden-
Censo DF é a primeira iniciativa de tificação, educação, saúde, trabalho,
censo voltado para população de lés- renda e violência com perguntas dis-
bicas e sapatão, com uma perspecti- tribuídas em 19 seções. A demanda
va colaborativa e coletiva de elabora- para obtenção de estatísticas preci-
ção e compilação de dados. sas sobre violências, vivências e ex-

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 213
periências sapatônicas é central para sabilização e comprometimento, por
o movimento e a partir das respostas meio dos dados e análises produzi-
e dados coletados, pudemos obser- das, com a elaboração de políticas
var e ratificar as fragilidades na pres- públicas e ações efetivas.
tação do serviço público em relação
Como desdobramento dessa au-
aos temas abordados, em especial,
diência pública e o alcance, dado o
sobre o acesso aos serviços de saú-
pioneirismo da pesquisa, algumas
de e no fortalecimento de redes e
parcerias foram realizadas para conti-
formas de acolhimento para enfren-
nuidade e ampliação do projeto, para
tamento contra práticas lesbofóbicas
ampliar a capilaridade em relação à
nos mais diversos espaços.
produção e análise de dados sobre
As informações coletadas foram lésbicas e sapatão.
consolidadas em um encontro com
Ampliar o LesboCenso, além de
lideranças comunitárias de diferentes
ser um dos objetivos da Coturno de
regiões administrativas, para análise
Vênus, é uma pauta histórica do mo-
e validação dos mesmos. Elabora-
vimento brasileiro de lésbicas e sapa-
mos como produtos cartilhas (físicas
tão, mapear, produzir e analisar dados
e virtuais) com o material acumula-
sobre lésbicas e sapatão do Brasil.
do ao longo do processo, para serem
Sendo assim, no começo de 2021, em
distribuídas e debatidas em rodas de
parceria com a Liga Brasileira de Lés-
conversas entre lésbicas e sapatão,
bicas (LBL), iniciamos as tratativas
para difusão dentro dos movimentos
e estratégias para a realização do 1º
sociais, para formação de agentes
LesboCenso Nacional.
públicas/os, e para incidência política.
Em 2020, no mês da visibilida-
LesboCenso Nacional:
de lésbica do Distrito Federal, como
uma das atividades da Ação Lésbica Mapeamento de Vivências
do Distrito Federal e Entorno, lança- Lésbicas no Brasil
mos a cartilha virtual com análise e
Para a realização deste projeto
os dados coletados do LesboCenso
reunimos as quatro diretoras: Glau
DF, em uma audiência pública on-line
Soares, Iara Alves, Lélia de Castro e
(dado o contexto pandêmico) na Câ-
Melissa Navarro, da Associação Lés-
mara Legislativa do Distrito Federal
bica Feminista Coturno de Vênus e
(CLDF), em parceria com o Gabinete
uma pesquisadora convidada, Ra-
24, e participação de Secretarias de
quel Mesquita Almeida, para integrar
Estado do Governo do Distrito Fede-
a Coordenação de Pesquisa. A Liga
ral, além de coletivos, organizações e
Brasileira de Lésbicas (LBL), é uma
instituições e ativistas LGBTI+. A es-
organização com ativistas em vários
colha da audiência pública para o lan-
estados pelo Brasil, elegeu quatro
çamento deu-se por observarmos a
das suas integrantes, Dayana Brunet-
importância da parceria entre Estado
to, Grazielle Tagliamento, Léo Ribas e
e Movimento Social para a respon-
Mariana Meriqui Rodrigues para com-

214 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
por a coordenação do projeto. Cada No começo da articulação do pro-
uma das integrantes ocupou coorde- jeto do LesboCenso Nacional, ainda
nações específicas para desenvolver estávamos em contexto de pande-
o projeto: Coordenação Geral, Co- mia, o que nos impossibilitou a reali-
ordenação de Comunicação, Coor- zação da coleta de dados de forma
denação de Mobilização, Coordena- presencial, por isso, restringimos ao
ção de Administrativo/Financeiro e formato on-line, o que, novamente,
Coordenação de Pesquisa. A gestão impactou no processo de coleta de
dessas coordenações foi colegiada. dados. Apesar das plataformas digi-
A parceria para a primeira etapa do tais serem eficientes no que tange a
LesboCenso foi de janeiro de 2021 a abrangência e navegação, rompendo
agosto de 2022. fronteiras, o alcance ainda é restrito
para pessoas que possuem internet.
No Lesbocenso Nacional segui-
mos a metodologia do Lesbocenso Vale destacar que, conforme relato
DF e realizamos o projeto a partir da de algumas supervisoras, na tentati-
parceria com integrantes de outras va de acessar lésbicas e sapatão de
organizações do movimento lésbico regiões periféricas ou de difícil aces-
e/ou LGBTI+ do país com a proposta so, afastadas dos grandes centros e
de abarcar o Brasil e diferentes pers- que não possuíam internet. Foram
pectivas e diversidade política com elaboradas estratégias para o deslo-
respeito aos direitos humanos. Sen- camento e acesso ao formulário, re-
do assim, a equipe de supervisoras cursos para transporte e crédito para
da primeira etapa do LesboCenso, os celulares, conseguindo ultrapassar
para a coleta de dados foi compos- as barreiras físicas, que alguns ter-
ta por : Ana Carla Lemos, Ana Cristi- ritórios impunham, e acessar o for-
na Conceição Santos, Ana Karolinna mulário on-line para coleta de dados.
de Lima Nunes, Ana Lídia Rodrigues Esses relatados ficam nítidos e mate-
Lima, Ana Naiara Malavolta Saupe, rializados quando a concentração de
Anahi Guedes de Mello, Chirley do respondentes que moram em bairros
Socorro Xavier Muniz, Cinthia Oli- de classe média é de 37,17% , 23.91%
veira Abreu, Ione Baptista Lindgren, zona central, enquanto 13,83% em
Karoline Soares Chaves, Larissa Pin- bairros de classe média baixa (perife-
to Martins, Márcia Balades, Maria Ali- ria) e 1,70% em favelas, 0,08% em co-
ce de Oliveira, Maria Goretti Gomes, munidades quilombolas e 0,04% em
Maria Guilhermina Cunha Salasário, aldeias indígenas.
Maria Lúcia Quirino de Castro, Maria-
Durante o período de 29 de agosto
na Septimio Rosa de Souza, Pâmela
de 2021 a 30 de abril de 2022 foi dis-
de Freitas Soares, Rosângela Fer-
ponibilizado o formulário on-line, em
nandes de Castro, Roselaine Dias da
nossas redes sociais e no site do Les-
Silva, Simone Brandão Souza, Suane
boCenso Nacional, divulgado e di-
Felippe Soares e Virginia Maria Cam-
fundido pelas supervisoras, parceiras
pos de Figueiredo.
e rede de apoio que estruturamos ao

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 215
longo do projeto. Ao final da coleta, A porcentagem de lésbicas e sapatão
alguns formulários foram respondi- respondentes com deficiência é de
dos presencialmente pela população 2,39%. As respostas sobre escolari-
de lésbicas e sapatão em situação de dade ficaram concentradas em lés-
privação de liberdade. bicas e sapatão com ensino superior
incompleto e completo, totalizando
Para o LesboCenso Nacional, re-
54,01% das respostas, bem como a
estruturamos os eixos que orienta-
média de idade das lésbicas e sa-
vam o formulário, visto que, no Les-
patão respondentes é de 30 anos.
boCenso DF, estruturado em 5 eixos
Esses são alguns dos dados que se-
e algumas questões, principalmente
lecionamos para apresentar o perfil
no eixo de auto identificação, eram
das lésbicas e sapatão do Brasil que
abertas comprometendo a análise e
responderam o LesboCenso Nacio-
cruzamento de dados. Sendo assim,
nal, para ter acesso aos demais eixos,
para ampliar os subsídios para análi-
dados e análise, acesse em: https://
se e aprofundar as variáveis para cru-
www.lesbocenso.com.br/relatorio-
zamento de dados, no LesboCenso
-primeira-etapa.
Nacional, os eixos foram reestrutu-
rados e as perguntas fechadas, mas
com opção “outro” caso nenhuma Encaminhamentos
das alternativas contemplasse a pes-
soa respondente. Por fim, os eixos Porque é preciso falar sobre nós,
ficaram: Autoidentificação, Trabalho, lésbicas e sapatão, para apresentar
Violência, Família, Saúde e Redes, nossas demandas e visibilizar nos-
sendo o último eixo importante para sas vivências e trajetórias. Desde sua
compreendermos as redes e supor- criação a Coturno de Vênus atua com
tes que lésbicas e sapatão possuem, pesquisas e formações para eviden-
além de mapear a forma como estão ciar as necessidades da população de
organizadas ou não. lésbicas e sapatão. Revisitar os cami-
nhos que percorremos é fundamen-
Segundo o relatório descritivo do tal para avaliar e elaborar estratégias
1º LesboCenso Nacional, publicado para potencializar nossas ações, am-
no dia 29 de agosto de 2022, foram pliar e promover novos projetos tan-
alcançadas 24.514 lésbicas e sapa- to de pesquisa quanto de formação,
tão. Das respostas válidas para aná- em busca de mudanças concretas em
lise, 19.455 respondentes 51,36% se nossas realidades na defesa dos di-
identificam como lésbicas e 26,40% reitos humanos para população LGB-
como sapatão. Em relação à identi- TI+, em especial de lésbicas e sapa-
dade de gênero, 85,23% se autode- tão. Desde 2018 nos dedicamos a um
claram cisgêneras, 6.31% não binária, projeto de mapeamento de vivências
e 1,07% pessoa trans. No que diz res- de lésbicas e sapatão, o LesboCenso
peito à identidade racial, 33,55% se DF e o LesboCenso Nacional, e, ava-
auto declararam como negras (pre- liando nossa atuação, apresentamos
tas e pardas) e 61,94% como brancas. alguns pontos importantes de ade-

216 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
quações, planejamentos e desdobra- em uma próxima pesquisa e/ou pro-
mentos. jetos, com cautela o levantamento
das demandas e dos custos para que
Um dos pontos fundamentais,
a captação seja feita antes do projeto
tanto no LesboCenso DF quanto no
iniciar, para assim, promovermos re-
LesboCenso Nacional, é em relação
cursos para subsidiar a presença de
ao alcance da pesquisa no que tan-
algumas pessoas durante o projeto,
ge a população de lésbicas e sapatão
principalmente, para as pessoas au-
negras, quilombolas e indígenas. Em
tônomas. Sem contar a importância
ambos, o maior número de respostas
de ter projetos e pesquisas, com re-
ficou concentrado em lésbicas e sa-
curso, idealizados e coordenados por
patão brancas. É necessário criar es-
lésbicas e sapatão, para fomentar não
tratégias mais eficientes para que as
só a pesquisa, mas a manutenção
populações de lésbicas e sapatão ne-
das pesquisadoras durante o período
gras, quilombolas e indígenas se iden-
de realização. E como queremos am-
tifiquem com a pesquisa, queiram
pliar o alcance das nossas pesquisas,
participar e, principalmente, tenham
inclusive realizar um novo LesboCen-
acesso. Não só por uma questão de
so, é imprescindível focar no planeja-
falta de internet, mas para promover
mento de captação para impactar em
articulações mais eficientes para di-
uma maior abrangência na coleta de
fusão, bem como trazer a pesquisa
dados presencialmente.
para a rua e para os territórios, de for-
ma presencial e, assim, conseguir es- Estamos em fase de análise do
truturar uma proposta de ações com recém-lançado relatório descritivo
mais parceiras em campo, para ter- da primeira etapa e elaboração das
mos retorno sobre essas populações próximas etapas do LesboCenso Na-
de lésbicas e sapatão que foram sub- cional, para estabelecer novas ações
-representadas nas análises a partir junto com as ativistas lésbicas e sapa-
dos dados coletados. Para isso, é im- tão organizadas e/ou autônomas, na
prescindível estabelecer um planeja- realização de propostas e desdobra-
mento para captação de recursos ou mentos do LesboCenso Nacional, as-
parceria Movimento Social-Estado sim como realizamos no DF. Um dos
que oportunize o alcance do projeto desdobramentos do LesboCenso DF,
de forma mais efetiva. em parceria com a Secretaria de Es-
tado da Mulher do Distrito Federal, e
Os dois projetos de LesboCen-
recurso de emenda parlamentar, foi
so não tiveram o recurso necessário
a realização do projeto de pesquisa e
para abranger todas as demandas
formação para de servidoras/es que
para a sua realização, mesmo na
atendem direta e indiretamente a po-
condição de pesquisa on-line, como
pulação LGBTI+, além da produção e
foi o caso do LesboCenso Nacional. É
lançamento de uma publicação on-li-
fundamental revermos as condições
ne com os mesmos temas abordados
de trabalho que nos colocamos em
na formação.
determinados projetos. E reavaliar,

de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências 217
A formação que ocorreu entre abril sica de Saúde (UBS 11 – Rajadinha /
e julho de 2022, contou com a pre- Residência em Saúde do Campo na
sença de servidoras/es de diversas Fiocruz), Centros de Atenção Psicos-
áreas de atuação do Estado, tendo social - CAPS (Ceilândia, Sobradinho
um grande número de participantes 2), Defensoria Pública, Polícia Militar
decorrente da Secretaria de Estado do Distrito Federal - PMDF, Sindica-
de Educação do DF - SEEDF, ponto to das professoras e dos professores
positivo na perspectiva que tanto o do DF - SINPRO, Sindicato dos Ser-
enfrentamento à LGBTIfobia assim vidores da Assistência Social e Cultu-
como outras formas de discriminação ral do GDF – Sindsasc, Central Única
iniciam ainda na infância e é de suma dos Trabalhadores - CUT, Câmara
importância que as/os professoras/ Legislativa do DF - CLDF (assessor
es tenham um amplo entendimento de Deputada), Conselho Nacional de
sobre os direitos humanos para con- Segurança Alimentar - Consea-DF,
seguir estabelecer um lugar seguro Universidade da Integração Interna-
para a diversidade de crianças e ado- cional da Lusofonia Afro-Brasileira –
lescentes e propiciar uma educação Unilab (estudante), Abrigo Nosso Lar
voltada enfrentamento de toda for- e Coletivo Agbara de direitos Huma-
ma de discriminação. nos/Psicuidados que são fundamen-
tais no acolhimento e atendimento às
Além da grande presença de pro-
pessoas LGBTI+.
fessoras/es na formação, como men-
cionado acima, também tivemos a Entendemos ser fundamental o
participação da Secretaria de Esta- aprofundamento sobre as demandas
do da Mulher – SMDF (Núcleos de da população LGBTI+ e suas trans-
Atendimento à Família e aos Autores versalidades de raça, classe e identi-
de Violência Doméstica – NAFAVD/ dade de gênero nos serviços públicos
Planaltina), Secretaria de Estado da e, ainda que, a formação tenha sido
Saúde - SES (Ambulatório de Diver- direcionada para 100 servidoras/es
sidade de Gênero-Ambulatório Trans do Distrito Federal num horizonte de
e Centro Especializado em Doenças milhares de servidoras/es do DF é um
Infecciosas - CEDIN, Centro de Tes- passo importante para o aprofunda-
tagem Anônima - CTA), Secretaria mento pedagógico e ampliação de
de Desenvolvimento Social – SEDES pessoas aliadas na defesa de direitos
(Gerencia de Serviços de Acolhimen- e acessos.
to para Criança , Adolescentes e Jo-
A formação foi avaliada pelas/os
vens, Casa de Passagem - Casa Flor),
cursistas que participaram como fun-
Secretaria de economia do Distrito
damental e de alto valor para suas vi-
Federal - SEDEST, Secretaria de Jus-
das pessoais e profissionais, além de
tiça do DF - SEJUS, Centro Regional
informarem sobre a importância da
de Assistência Social - CRAS (Cei-
continuidade e ampliação. A forma-
lândia, Paranoá, Sobradinho), CRE-
ção proporcionou uma escuta para
AS (Da Diversidade, de Taguatinga,
os conhecimentos e olhares através
Samambaia, Ceilândia), Unidade Bá-

218 de margem a margem o rio avança: dissidência sexual e de gênero, raça, etnia, deficiências
da ótica de especialistas LGBTI+ so- de pensar na importância dos dados
bre os diversos temas, e entende- para subsidiar políticas públicas e for-
mos que é necessária a ampliação e mação continuada de quem atua nos
continuidade dessa atividade que se serviços públicos , é preciso reforçar
demonstrou rica para todas as pesso- a importância de incentivar, visibilizar
as participantes. e fomentar pesquisas e projetos vol-
tados para comunidade LGBTI+, em
É valorosa a participação dos
especial, lésbicas e sapatão.
movimentos sociais para os avanços
e elaboração de políticas públicas,
os movimentos são diversos bem Bibliografia
como seus direcionamentos para
tantas pautas urgentes e presentes LesboCenso - Mapeamento de
na nossa sociedade orientadas para Lésbicas e Sapatonas do Distrito Fe-
no enfrentamento de discriminação deral. Uma publicação Coturno de
de raça, identidade de gênero, Vênus - Associação Lésbica Feminis-
identidade afetivo-sexual, classismo, ta de Brasília v. 1, n.1, 2020. Disponível
capacitistismo, gordofobia e tantos em: https://issuu.com/coturnode-
outras discriminações atreladas aos venus/docs/lesbocenso . Acesso em:
marcadores socias da diferença que 16 out. 2022.
nos atravessam. 1º LesboCenso Nacional: Mapea-
Para a Coturno de Vênus, organi- mento de Vivências Lésbicas no Bra-
zação de 17 anos, participar da idea- sil. Relatório Descritivo 1ª Etapa (2021-
lização e construção dos dois proje- 2022). Publicado em 2022 pela Liga
tos no contexto político, econômico Brasileira de Lésbicas (LBL) e Asso-
e social que estamos inseridas - re- ciação Lésbica Feminista de Brasília
crudescimento do conservadorismo – Coturno de Vênus. Brasil. Disponí-
e retrocessos de políticas públicas no vel em: https://www.lesbocenso.com.
Brasil - é realizar e cumprir com nossa br/relatorio-primeira-etapa. Acesso
missão enquanto organização. Além em: 16 out. 2022.

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