Você está na página 1de 77

Revista da Sociedade Cearense de Psiquiatria em VOLUME 02 - Nº 01 - 2023

parceria com a Universidade Estadual do Ceará

NÚMERO ATEMÁTICO
REVISTA DA SOCIEDADE CEARENSE DE PSIQUIATRIA EM
PARCERIA COM A UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ

VOLUME 2 - NÚMERO 1 - 2023

JOSÉ JACKSON COELHO SAMPAIO


EUGÊNIO DE MOURA CAMPOS
(ORGANIZADORES)
Revista da Sociedade Cearense de Psiquiatria em DIRETORIA DA SOCIEDADE CEARENSE DE
parceria com a Universidade Estadual do Ceará PSIQUIATRIA – TRIÊNIO 2020 – 2022
© 2023 Copyright by Universidade Estadual do Ceará
Efetuado depósito legal na Biblioteca Nacional Diretor Presidente
Nagib Demes Neto
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS

Editora da Universidade Estadual do Ceará - EdUECE Diretor Vice-Presidente


Av. Dr. Silas Munguba, 1700 - Campus do Itaperi Joel Porfirio Pinto
Fortaleza CE
CEP: 60.714.903 - Tel: (085) 3101-9893. FAX: (85) 3101-9893 Diretora Secretária Geral
Internet: www.uece.br - E-mail: eduece@uece.br /
editoradauece@gmail.com Maria Gardênia Amorim

Editora filiada à ABEU Diretora Secretária Geral Adjunta


Denyse Sales Veloso Albuquerque

Diretor Tesoureiro
David Alves de Albuquerque Filho

Diretora Tesoureira Adjunta


EQUIPE EDITORIAL DA REVISTA
Camila Herculano Soares Rodrigues
José Jackson Coelho Sampaio
Eugênio de Moura Campos
COMISSÃO CIENTÍFICA
Camila Herculano Soares Rodrigues
Eugênio de Moura Campos – Coordenador
Carla Barbosa Brandão
Aline Sales Santiago
Cidianna Emanuelly Melo do Nascimento
Cláudio Manuel Gonçalves da Silva Leite
Joel Porfirio Pinto
Davi Queiroz de Carvalho Rocha
João Chaves Hiluy
PROJETO VISUAL E DIAGRAMAÇÃO
Málbia Rolim Barbosa
Lucas Matheus Silva Teixeira
Maria Luiza Ribeiro Pessoa
Nagib Demes Neto
SECRETARIA
Raimundo Araújo Melo
Dayvit Keffen dos Reis Vasconcelos
Sarah Lima Verde

IMAGEM DA CAPA
Pequeno Buda - Colagem Digital (2018)
por Saulo Castor

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental / José Jackson


Coelho Sampaio, Eugênio de Moura Campos (Orgs.);
Revista Sociedade Cearense de Psiquiatria em parceria com a
Universidade Estadual do Ceará. – v.2, n.1 (2023).—Fortaleza, CE: EdUECE,
2023 - 77p.

1. Psiquiatria. 2 . Saúde Mental. 3. Atenção Psicossocial. 4 .


Interdisciplinaridade. 5. Diálogos. I. Universidade Estadual do Ceará.

CDD: 150
Editorial

A Revista Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental – DIPSM,

cumprindo sua missão de contemplar a produção de conhecimento interdisciplinar tanto no

campo acadêmico como da assistência em psiquiatria e saúde mental, além de áreas afins, está

disponibilizando seu segundo volume (v.2). Os artigos abordam a saúde mental de crianças e

adolescentes, desenvolvem discussões acerca da reforma psiquiátrica brasileira e sobre a atuação

dos profissionais da Atenção Primária de Saúde no contexto da Rede de Atenção Psicossocial,

relatam experiências de formação acadêmica e de educação permanente em saúde mental, in-

cluindo a música como fundamento para educação em saúde mental e a capacitação de instru-

tores e supervisores para treinamento de profissionais não-especialistas, por meio do Manual

de Intervenções (MI-mhGAP) para transtornos mentais, neurológicos e por uso de álcool e

outras drogas na rede de atenção básica à saúde da Organização Mundial de Saúde. Na seção

História/Memórias republica o artigo do Professor Gerardo da Frota Pinto (in memoriam), na

área da Psiquiatria Forense, originalmente publicado em 1980 na antiga Revista Cearense de

Psiquiatria da Sociedade Cearense de Psiquiatria.


A DISPM está formalmente vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Saúde Co-
letiva (PPSAC) da Universidade Estadual do Ceará (UECE), tendo seu Regimento Interno
recentemente aprovado pelo Colegiado do PPSAC, assim completando uma das exigências
requeridas a todas as Revistas que figuram no Portal de Periódicos da UECE.
Boa leitura.

Prof. José Jackson Coelho Sampaio


Prof. Eugênio de Moura Campos

Editores Chefes

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 4, 2023.


4
HISTÓRIA/MEMÓRIAS

Considerações psiquiátrico-legais sobre


responsabilidade penal e capacidade civil na
prática forense*
Psychiatric-legal considerations on criminal responsibility and civil capacity in forensic practice
Consideraciones psiquiátrico-jurídicas sobre la responsabilidad penal y la capacidad civil en la
práctica forense


Gerardo da Frota Pinto1 Submetido em:
( 05/10/1916 - † 14/08/2011) 14/01/2023

Aprovado em:
1. Professor Titular de Psiquiatria do Curso de Medicina da Universidade Federal do
Ceará (1950-1985). Título de Especialista pelas Associação Brasileira de Psiquiatria 18/03/2023
(ABP) / Associação Médica Brasileira (AMB). Ex-Vice-presidente da ABP. Foi coorde-
nador da Comissão Científica e membro da Comissão de Admissão da SOCEP, e Publicado em:
membro da Academia Cearense de Medicina. 27/03/2023

*Artigo originalmente publicado em 1980 na antiga Revista Cearense de Psiquiatria – Ano II - Nº 2 – da Sociedade
Cearense de Psiquiatria (SOCEP).

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 5-18, 2023.


5
Considerações psiquiátrico-legais sobre responsabilidade penal e capacidade civil... 6

APRESENTAÇÃO -Legais sobre Responsabilidade Penal e Capa-

E
cidade Civil”, de autoria do professor Gerardo
stados psíquicos alterados podem Frota de Sousa Pinto, foi publicado em 1980 pela
suscitar diversas questões capazes de levar o indi- Sociedade Cearense de Psiquiatria no segundo
víduo a ter problemas em sua vida pessoal, social volume da Revista Cearense de Psiquiatria. Seu
ou com a lei, pois podem resultar em comprome- conteúdo tanto traduz o contexto social e legal
timento da capacidade de compreensão da reali- da época, como evidencia o cuidado dispensado
dade ou prejuízo do autocontrole do indivíduo. às questões sensíveis dos exames periciais, além
Diante disso, há quem defenda que o surgimen- de revelar a experiência acumulada pelo autor e
to da Psiquiatria Forense – ramo especializado da seu interesse pela Psiquiatria Forense.
Medicina Legal que tem lugar na interface entre Embora tenham ocorrido mudanças
a Psiquiatria e o Direito – se confunde com o da de terminologia desde que foi escrito o artigo,
própria Psiquiatria, pois relaciona problemas de a apreciação da imputabilidade penal permanece
saúde mental e questões judiciais. apoiada no critério biopsicológico. E ainda que
Formalmente, a Psiquiatria Forense teve a figura do “absolutamente incapaz” tenha sido
seu nascedouro com o parecer médico-psiquiá- revista no Código Civil, a avaliação psiquiátrico-
trico que embasou a avaliação da responsabilida- -forense continua sendo decisiva para o correto
de penal de Pierre Rivière, camponês francês que julgamento nos casos de incapacidade civil. As-
assassinou a mãe grávida e seus dois irmãos em sim, a leitura do texto do Professor Frota Pinto é
1835, resultando na substituição da sentença de capaz de prender a atenção de médicos psiquia-
pena de morte por prisão perpétua. Porém, já no tras, peritos, operadores do Direito e historiado-
Código de Justiniano (528 d.C.), tinha-se que res, ou outros interessados por questões periciais
condições como insanidade e embriaguez pode- no campo da psiquiatria.
riam reduzir a responsabilidade penal. E antes A combinação de aspectos ainda atuais
ainda, na Grécia Antiga, considerações filosóficas com outros que foram sendo transformados com
de Platão e Aristóteles traziam noções de racio- a evolução social torna o artigo ainda mais inte-
nalidade e responsabilidade. Assim, a Psiquiatria ressante, uma vez que somente olhando para o
Forense acompanhou o estado social e cultural passado, criticando o presente e refletindo sobre
de cada período na história, o que revela a im- o futuro evoluímos enquanto sociedade.
portância do estudo de sua evolução.
O artigo “Considerações Psiquiátrico- Marcio Magalhães Arruda Lira – Médico
Psiquiatra e Perito

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 5-18, 2023.


Gerardo da Frota Pinto 7

CONSIDERAÇÕES PSIQUIÁTRICO- diagnóstico precoce dos desvios mentais e dos


LEGAIS SOBRE RESPONSABILIDADE defeitos da personalidade, objetivando descobrir
PENAL E CAPACIDADE CIVIL NA os “portadores de perigo” para o necessário isola-

PRÁTICA FORENSE mento profilático e tratamento adequado, isto é,


para que sejam submetidos às “medidas de segu-
Questão importante e delicada é a ava- rança” previstas no art. 77 do Código Penal, que
liação da responsabilidade ou capacidade de im- diz: “Quando a periculosidade não é presumida
putação de uma pessoa, não só pelas dificuldades por lei, deve ser reconhecido perigoso o agente:
científicas que se antolham, como pela gravidade I — se seus antecedentes e personalidade,
das consequências advindas do julgamento pro- os motivos determinantes e as circunstâncias do
ferido. De fato, considerar alguém imputável fato, os meios empregados e os modos de exe-
equivale a considerá-lo responsável e, por conse- cução, a intensidade do dolo ou grau da culpa,
guinte, culpável dos seus atos ou omissões. autorizarem a suposição de que venha ou torne
O Código Penal brasileiro, que segue, a delinquir;
no tocante à responsabilidade, o critério mis- II — se, na prática do fato revela torpeza,
to ou biopsicológico, isenta de pena o doente perversão, malvadez ou insensibilidade moral.”
mental e o deficiente mental (art. 22) e faculta (1)
a redução dela (§ único do art. 22) nas chama- No que concerne à capacidade civil, cuja
das personalidades psicopáticas e personalidades avaliação pericial é de grande importância por-
fronteiriças (imputabilidade restrita). que vai fornecer o material decisivo para o corre-
Na apreciação dos casos fronteiriços, to julgamento, é um pressuposto jurídico sem o
mormente em face do parágrafo único do art. 22 qual falece ao indivíduo o pleno direito de gerir
(“que visa aos “anormais psíquicos”, aos “semi- sua pessoa e bens. Dentre os fatores capazes de
-loucos”, “aos psicopatas”) que são considerados modificar esse direito, sobressaem-se as pertur-
responsáveis parciais e sujeitos às “medidas de bações psíquicas que, em virtude de colocarem
segurança”, cresce de vulto a responsabilidade a pessoa maior em situação de inferioridade, fa-
do perito. Também, a verificação da periculosi- zem cessar a sua aptidão para adquirir direitos e
dade do indivíduo quer ele seja delinquente ou contrair obrigações. Com efeito, o nosso Código
sem delito (estado perigoso pré-delitual), fun- Civil assim preceitua em seu art. 59, nº II, quan-
dada sobre índices médico-psicológicos, é tarefa do, enquadrando todos os doentes mentais na
primordial do psiquiatra que terá de formular o “expressão” “loucos de todo gênero” os considera

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 5-18, 2023.


Considerações psiquiátrico-legais sobre responsabilidade penal e capacidade civil... 8

como absolutamente incapazes de exercer pesso- constata o completo desaparecimento dos sin-
almente os atos da vida civil. (2). tomas clínicos, num lapso de tempo superior a
Como são diversos os estados mentais sessenta dias (intermissão). Nos outros estados
mórbidos susceptíveis de produzir implicações mórbidos o que se verifica é apenas uma regres-
psiquiátrico-forenses e, em benefício da clareza são ou atenuação dos sintomas da doença.
expositiva, estudaremos os mesmos separada- Frequentemente o perito é chamado a
mente no que tange às suas fases de latência e opinar sobre casos em que há dúvida com refe-
incipiência e também suas remissões e intervalos rência à capacidade civil, responsabilidade ou pe-
lúcidos. riculosidade de pessoas que, apesar de não serem
Entende-se por latência mórbida, em portadoras de distúrbios mentais manifestos, não
psiquiatria, não o estado inicial ou incipiente podem, todavia, ser catalogados como normais.
da doença mental, mas, coisa um tanto diver- Tais casos constituem, ao nosso ver, um dos ca-
sa, como seja o caso de, apesar de os sintomas pítulos mais difíceis e delicados da psiquiatria
da doença ainda se encontrarem clinicamente forense.
inaparentes, já existe, contudo, uma psicose em Ocasiões há em que a suspeita da possí-
estado latente, na iminência de tornar-se mani- vel existência de uma doença mental latente, lar-
festa, aguardando, apenas, uma ocasião propícia vada, ou incipiente, vai exigir do juiz o auxílio de
para eclodir. peritos psiquiatras no sentido de lhe fornecer os
O que caracteriza a latência é a ausência esclarecimentos necessários a um perfeito e cor-
de sintomas clínicos, não obstante existirem sin- reto julgamento.
tomas humorais e outros que podem ser captados Entre os estados mórbidos capazes de
por processos de laboratório e psicotécnicos. Na maiores implicações psiquiátrico-legais destaca-
incipiência há apenas o início de leves sintomas mos a esquizofrenia latente, a epilepsia, a psico-
capazes de se fazerem notados, todavia, mercê de se maníaco-depressiva, a deterioração mental, a
um cuidadoso exame clínico. Enquadramos tam- neurossífilis incipiente e as personalidades psico-
bém na latência mórbida os estados de remissão páticas.
por considerarmos os mesmos como simples re- A importância médico-legal da esqui-
gressão da doença a uma fase de latência. Quanto zofrenia latente é muito grande e as estatísticas
aos chamados intervalos lúcidos das psicoses, só no-lo atestam. Heitor Carrilho encontrou no
consideramos como tais os observados na psicose Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro, que
maníaco-depressiva e, assim mesmo, quando se hoje tem o seu nome, 16,52% de internações de

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 5-18, 2023.


Gerardo da Frota Pinto 9

delinquentes esquizofrênicos. Rodrigues Arias, plena capacidade civil e responsabilidade penal.


citado por Ruiz Maya, diz que “grande número Nas chamadas curas com defeito aplica-se o dis-
de delinquentes vulgares, autores de pequenos posto no parágrafo único do art. 22, aconselhan-
delitos, absurdos e incompreensíveis por sua inu- do-se também o regime de curatela.
tilidade e discordância com a situação do agente Para que o perito psiquiatra possa de-
e por sua reiteração; e um número muito grande sempenhar a contento sua difícil tarefa contará
de menores delinquentes, são esquizotímicos ou com recursos diagnósticos de ordem clínica (es-
esquizomaníacos que conservando assim a inten- tudo dos antecedentes familiares do paciente,
sidade de seu defeito, são julgados e sanciona- sua correlação sômato-psíquica, caráter esquizoi-
dos à margem de nossa ciência”. Delitos de san- de, adaptação social e práxica etc.) e de ordem
gue cometidos por esquizofrênicos latentes são psicotécnica (psicodiagnóstico de Rorschach,
referidos em nossa literatura psiquiátrico-legal psicodiagnóstico miocinético, teste de Han-
(Henrique Roxo, Adauto Botelho, Heitor Péres fmann-Kasanin, de eficiência intelectual — D.
e outros) e também atentados ao pudor, furtos e Wechsler, narco-diagnóstico etc.).
roubos, vadiagens, auto-denunciação etc., cons- No que se refere às epilepsias, estas são
tituem a variada gama das transgressões esquizo- uma das condições mórbidas de maior interes-
frênicas. É preciso ressaltar, ainda, a incidência se médico-legal porque os epilépticos são vistos,
relativamente grande de esquizofrenia latente tradicionalmente, como pacientes portadores de
que, para Bleuler seria até mais frequente do que grande capacidade criminogênicas, inclinados a
a esquizofrenia franca. (3, 4 e 5). delinquir por impulsividade violenta. Sob a égi-
Aos crimes praticados por esquizofrêni- de da medicina contemporânea, entretanto, os
cos, mesmo nos estados de latência e incipiência, epilépticos são examinados de modo menos ra-
não se pode arrogar responsabilidade — aqui a dical, pois, se há epilépticos potencialmente peri-
inimputabilidade e a periculosidade são a regra. gosos e irresponsáveis a maioria deles se equipara
Nas esquizofrenias processuais e nas remissões às pessoas ditas normais. Além disso, a noção de
incompletas é norma admitir-se irresponsabili- epilepsia - entidade mórbida endógena — foi
dade e incapacidade totais. Certas esquizofrenias substituída pela concepção sômato-psíquica em
(reações esquizomorfas) podem remitir e, nos ca- que a doença é encarada como um conjunto de
sos antigos de remissão, com mais de dois anos sintomas provindos, basicamente, de “um dis-
de volta à normalidade e de perfeita adaptação túrbio na atividade eletroquímica cerebral que
práxica e social, deve-se conceder ao indivíduo se manifesta por um complexo sintomatológico

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 5-18, 2023.


Considerações psiquiátrico-legais sobre responsabilidade penal e capacidade civil... 10

no qual a afetação da consciência, a perturbação o indivíduo entra em automatismo ambulatório


do sistema nervoso autônomo, os movimentos podendo até realizar viagens. Após a crise psico-
convulsivos e os distúrbios psíquicos são os com- motora há, frequentemente, estado confusional e
ponentes essenciais” (Lennox) (6). amnésia lacunar, sintomas que falam em prol do
Na prática médica costuma-se dividir as diagnóstico da natureza comicial da crise.
epilepsias em dois grandes grupos etiológicos: o Ao lado das manifestações neurológicas,
das epilepsias idiopáticas ou criptogenéticas, de tanto motoras quanto sensoriais, há também, nas
causa desconhecida ou obscura e o das epilep- epilepsias, manifestações psíquicas, aliás, mais
sias sintomáticas, onde se pode perceber uma frequentes do que aquelas, indo desde a perda
causa real (cicatriz da córtex cerebral, tumores completa da consciência, às ausências, aos esta-
endocranianos, fatores tóxicos diversos, hipo- dos crepusculares, ao sonambulismo e aos im-
glicemia etc.). Do ponto de vista eletro-clínico pulsos (em que atos criminosos podem ocorrer,
as epilepsias são centrencefálicas quando a crise como homicídios, roubo, exibicionismo, fugas,
manifesta-se abruptamente “como um raio em piromania, agressões etc.). Quadros neuróticos,
céu sereno”, de modo generalizado, com perda psicóticos e de deterioração mental, todos de má-
inicial da consciência, e, focais, quando a des- xima importância psiquiátrico-legal, são também
carga principia numa determinada área cerebral, encontrados com relativa frequência.
havendo, antes da perda ou não da consciência, As anomalias de caráter do epiléptico
sintomas de “aviso” ou “aura” anunciadores do interessam bastante à medicina legal porque po-
ataque convulsivo que pode ser lateralizado ou dem aparecer na ausência de convulsões ou as
generalizado. preceder com largo prazo. As personalidades epi-
As epilepsias centrencefálicas abrangem leptoides oscilam entre a viscosidade e tenacida-
as crises de grande mal, de pequeno mal e as de (polo viscoso) e a explosividade (polo explosi-
mioclônicas. vo). Elas são afetivo-cumulativas, descarregando
As crises psicomotoras constituem o que suas emoções de maneira rápida e violenta, para,
Morei, Laségue e Baillarger chamavam de epi- em seguida, voltarem ao seu estado normal.
lepsia larvada. Nelas há períodos de perda ou di- Na prática forense criminal o perito
minuição da consciência, em que o paciente se deve poder informar, com relativa precisão, se o
toma subitamente irascível, impulsivo, pratican- agente cometeu o crime sob a influência da epi-
do atos aparentemente propositais e coordenados lepsia, estado confusional pós-paroxístico e seus
a ponto de parecerem responsáveis. Outras vezes, equivalentes, e o grau de periculosidade que de-

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 5-18, 2023.


Gerardo da Frota Pinto 11

tém. Na vara civil, interessa saber, sobretudo, se ques convulsivos frequentes e crises crepusculares
determinado epiléptico é capaz de gerir sua pes- amiudadas, as relações interpessoais do paciente
soa e bens. e seu ajustamento social estão seriamente com-
Os delitos praticados por epilépticos prometidos.
possuem certas peculiaridades como: inutilidade No exame pericial do suspeito de epi-
do ato cometido, brutalidade de execução, repe- lepsia, avulta de importância a eletroencefalogra-
tições do mesmo tipo de delito, amnésia poste- fia. Ê preciso ter em mente, todavia, que cerca
rior. Quando sobrevindos a uma crise de fúria, de 20% dos epilépticos não exibem alterações
o sono e o estupor pós-paroxístico têm grande eletroencefalográficas nas tomadas feitas no pa-
valor médico-legal. ciente, entre as crises, havendo a necessidade do
Na avaliação jurídica dos delitos co- uso de métodos especiais de ativação para que se
metidos por epilépticos, é norma concluir pela evidenciem alterações que se não apresentam de
completa irresponsabilidade do agente quando o modo espontâneo.
evento criminoso acontece durante a crise comi- Outros procedimentos psicotécnicos
cial (período confusional pós-convulsivo, crises como o psicodiagnóstico de Rorschach, o psico-
psicomotoras e estados crepusculares). No inter- diagnóstico miocinético de Mira e os testes de
valo das crises o epiléptico deve ser, em princí- eficiência intelectual, completam a avaliação do
pio, considerado como responsável total. paciente.
Se o delito aconteceu em consequência Conquanto não sejam triviais as ações
do caráter epiléptico o agente será examinado à delituosas praticadas por personalidades maní-
luz do parágrafo único, do artigo 22, do Códi- aco-depressivas, o estudo desta psicose, no que
go Penal. Não é verdade que todo epiléptico seja se refere às fases incipiente e latente, é de muita
perigoso, mas, de regra, se ele já tiver cometido utilidade, por causa de conexão com assuntos fo-
algum crime, (de natureza epiléptica), deve ser renses. Assim, não só interessam as transgressões
considerado perigoso e submetido às medidas de penais e as questões cíveis, mas, sobretudo, as-
segurança. pectos outros como o da prodigalidade, frequen-
Na ausência de deterioração mental e te nas pessoas hipomaníacas, e o problema dos
manifestações intervalares de caráter psicótico, o chamados intervalos lúcidos.
epiléptico é capaz de gerir sua pessoa e bens. A Aqui, a execução da perícia nos casos
interdição do epiléptico só é justificada quando, latentes, incipientes ou frustos, é, muita vez,
em virtude de deterioração mental evidente, ata- delicada, sendo necessário que o médico realize

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 5-18, 2023.


Considerações psiquiátrico-legais sobre responsabilidade penal e capacidade civil... 12

minuciosa observação não só do paciente como Na fase maníaca da psicose maníaco-


também das características do ato delituoso. -depressiva, deve-se considerar inicialmente suas
Questões referentes à responsabilidade formas clínicas, bem como a intensidade delas.
do agente, medidas de segurança, capacidade Muitos casos de prodigalidade e dissipação po-
civil, interdições e suspenção das mesmas, são dem ser explicados à luz de estados hipomanía-
acontecimentos frequentes que exigem uma so- cos mais ou menos longos e frequentes. Embara-
lução científica. çoso e complicado, mas, de grande importância,
O diagnóstico firmado de psicose maní- é discriminar se o hipomaníaco cometeu o delito
aco-depressiva redundará na incapacidade civil, em virtude da embriaguez preordenada, ou se
enquanto dura a crise, e na irresponsabilidade ambos resultaram da hipertimia, o que redunda-
total ou parcial, em conformidade com o grau rá, no caso positivo, na isenção ou abrandamento
e profundidade da psicose. No que diz respeito da pena (parágrafos 19 e 29, art. 24 do Código
às remissões e aos chamados intervalos lúcidos, a Penal).
doutrina dominante considera as primeiras como Os estados depressivos, que constituem
autênticas curas e os segundos como verdadeiros o outro polo da psicose maníaco-depressiva, va-
estados de normalidade psíquica, o que significa riam um pouco quanto à forma clínica e a in-
responsabilidade e capacidade plenas. Não obs- tensidade dos sintomas, desde a depressão sim-
tante, todos os casos devem ser cuidadosamen- ples, mitigada, até às formas graves. O estudo das
te examinados e julgados individualmente, para formas mitigadas da doença é de muita utilidade
verificar se se trata realmente de uma autêntica porque elas podem representar tanto a fase inicial
remissão, ou, ao contrário, de uma simples ate- da psicose em evolução, como a regressão desta e,
nuação da psicose, com posterior passagem para também, um estado constitucional permanente.
outra fase da doença, isto é, mudança de uma A importância psiquiátrico-legal decorre, preci-
crise maníaca para outra depressiva ou o opos- puamente, da necessidade de se estabelecer a ca-
to. Heitor Carrilho considerava como intervalo pacidade e a responsabilidade de pessoas em tais
lúcido na psicose maníaco-depressiva, “o desa- estados mórbidos, bem como opinar acerca do
parecimento total dos sintomas da mania ou da levantamento de interdições, de medidas de se-
melancolia, durante um lapso de tempo mais gurança, anulação de atos jurídicos, de intervalos
ou menos longo, porém, nunca inferior a dois lúcidos etc..., sendo precisamente nestas formas
meses, separando dois acessos confirmados dos depressivas mais leves, que costumam ocorrer as
referidos síndromes mentais”. (7). maiores cifras de suicídio.

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 5-18, 2023.


Gerardo da Frota Pinto 13

O procedimento pericial nos estados A importância psiquiátrico-legal da de-


maníaco-depressivos baseia-se na observação terioração mental e da demência se faz sentir so-
clínica dos examinandos, nas provas psicodiag- bretudo no foro civil em conexão com certos atos
nósticas (Rorschach, P. M. K. de Mira y Lopez, jurídicos como testamentos, doações, casamen-
questionários para a exploração da afetividade, tos e com a avaliação da capacidade civil do in-
nos testes de eficiência intelectual etc.). divíduo. Na vara criminal, não são infrequentes
Certas doenças mentais orgânicas, como os delitos contra os costumes, o ultraje público
a demência senil e as demências pré-senis, a ar- ao pudor ou atentados violentos ao pudor, prin-
tério-esclerose cerebral, as epilepsias, a coreia de cipalmente contra menores e até crimes contra a
Huntington e outros processos em que há altera- pessoa, corporais e mesmo homicídios. O diag-
ção do parênquima cerebral, costumam acarretar nóstico de deterioração mental grave, por de-
diminuição da eficiência mental, particularmen- mência senil, demência arteriopática, doenças de
te manifestada pela dificuldade em reter os fatos Pick e Alzheimer, epilepsias, ou ainda em virtude
recentes, realizar corretamente as associações e de severos traumatismos cranianos intoxicações e
adquirir novas ideias. Esse déficit intelectual é de- infecções graves, redundará na irresponsabilidade
nominado, em termos descritivos, como demên- do agente (inimputabilidade) e na incapacidade
cia e deterioração. Harriet Babcock (8), define a absoluta do indivíduo para exercer pessoalmente
deterioração mental como “um enfraquecimento os atos da vida civil. Nas formas leves de dete-
da função mental, sem tomar em consideração rioração mental o agente deve ser considerado
suas causas eventuais, quer sejam psicógenas ou como parcialmente responsável (imputabilidade
fisiógenas, e sua evolução, quer seja ela perma- restrita), porém, incapaz civilmente. Em ambos
nente ou temporária”. Quando uma pessoa, co- os casos cabe a interdição do deteriorado, sujei-
locada numa situação definida, tem uma eficiên- tando-se à curatela (art. 446 do Código Civil),
cia mental inferior àquela que deveria ter uma com o duplo fim de protegê-lo contra a captação
relação às pessoas análogas, ou ao seu compor- dolosa dos parentes ou amigos e, também, para
tamento anterior, Hunt e Coffer dizem que essa evitar que eles sejam explorados e dissipem seus
pessoa é portadora de um déficit intelectual. (9). haveres.
Demência é a perda total ou parcial, po- A verificação da existência de deteriora-
rém definitiva, de funções psíquicas, com maior ção e demência deve ser feita mediante rigorosa
ou menor alteração da personalidade, conse- observação clínica e com a ajuda de provas espe-
quente a uma conhecida desordem cerebral. ciais destinadas a medir o grau de deterioração

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 5-18, 2023.


Considerações psiquiátrico-legais sobre responsabilidade penal e capacidade civil... 14

mental, v.g., os testes de enfraquecimento men- (denominado, por Legrand de Saulle, de perío-
tal, os de eficiência intelectual, da electroencefa- do médico-legal da paralisia geral) as alterações
lografia e da ventriculografia. do comportamento precedem os sinais clínicos
Apesar de as estatísticas já não apresen- da doença e o indivíduo “delira em atos, antes
tarem os mesmos elevados índices de neurossífilis de delirar em pensamento” (Say). (10).
observados, outrora, em virtude dos modernos Na prática forense, a intervenção do
tratamentos, convém não perder de vista a possi- perito é solicitada diante das ações delituosas
bilidade de sua ocorrência porque a paralisia geral cometidas na fase pré-paralítica ou médico-legal
é, talvez, a doença neuropsiquiátrica que permite da doença, ou então, para levantamento de in-
o mais fácil, precoce e seguro diagnóstico graças terdições, anulações de contratos e testamentos,
aos atuais métodos de laboratório. e avaliação da capacidade civil, após remissões
Na paralisia geral, ou doença de Bayle, espontâneas ou devidas aos modernos tratamen-
constituída por uma síndrome psíquica, uma sín- tos. Aqui o perito deverá orientar-se pelo exame
drome neurológica e uma síndrome humoral, os clínico, as características do delito e, principal-
sintomas variam conforme seu período evolutivo mente, pelos exames de laboratório que são de-
classicamente dividido em período inicial (inapa- cisivos para o diagnóstico.
rente, sem sintomatologia clínica, mas com al- Antes dos atuais e efetivos tratamentos
terações do comportamento); período de estado (malarioterapia e penicihnoterapia) o diagnósti-
(onde se verifica acentuação dos sinais vistos no co de paralisia geral equivalia à irresponsabilida-
período anterior, quer de natureza psíquica, quer de e incapacidade inapeláveis. Agora, nos casos
neurológica); período terminal (de paralisia, ca- em que se obtêm remissão clínica completa e
quexia e demência). também humoral, com retorno às ocupações
A paralisia geral começa, de regra, por anteriores por um período superior a 2 anos,
sintomas de alterações do caráter e da persona- pode-se conceder ao antigo paralítico geral in-
lidade, havendo evidente contraste entre o atual teira capacidade civil e responsabilidade penal.
comportamento do indivíduo e a sua primitiva A neurossífilis mesenquimatosa, inters-
maneira de ser e de agir. Geralmente, os delitos ticial, não apresenta importância médico-legal
cometidos por paralíticos gerais referem-se aos idêntica à da paralisia geral, contudo, existem
furtos, atentados ao pudor, negócios ilícitos, etc., casos duvidosos que precisam ser esclarecidos
sendo muito raros os crimes de sangue. com referência à responsabilidade de agentes de
No período inicial da doença de Bayle delitos e à capacidade civil de pessoas questio-

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 5-18, 2023.


Gerardo da Frota Pinto 15

nadas. lidade psicopática, que, para eles é uma forma


O diagnóstico comprovado de lues ce- de neurose onde predominam os distúrbios do
rebri ocasiona as mesmas consequências médi- comportamento e que se estruturam através de
co-legais que o diagnóstico de paralisia geral ou defeitos crônicos do caráter (neurose de caráter).
seja irresponsabilidade penal e incapacidade Partridge (1930), revisando a literatura
civil. Sem embargo, quando inexistem sintomas a respeito, sugeriu a criação, ao lado das neuro-
psíquicos visíveis, mas somente reações humo- ses e psicoses, de uma nova entidade mórbida
rais positivas, o indivíduo deve ser considerado chamada de “sociopatia” para agrupar as pessoas
como parcialmente imputável, porém, civil- que apresentam como sintoma patognomôni-
mente incapaz. co a incapacidade de ajustamento à sociedade
O interesse médico-legal acerca das como um todo, com personalidade anormal por
denominadas “personalidades psicopáticas” é constituição ou desenvolvimento. (11).
grande, por causa de suas tendências antisso- Karpman (1941, 1944, 1945) propõe
ciais, de sua propensão a delinquir, da falta de distinguir a psicopatia “idiopática” da “sinto-
senso moral e de sua incorrigibilidade. mática”. No psicopata idiopático (verdadeiro
A mor parte dos psiquiatras, contudo, psicopata) não se encontram dados que sugiram
considera bastante insatisfatório o atual conceito a intervenção de fatores etiológicos psicogenéti-
desse grupo nosológico que não chega a ser uma cos. Sua falta de capacidade para a aprendizagem
entidade diagnóstica no sentido comum da pa- social, sua insensatez moral e sua elevada agres-
lavra pois o termo “personalidades psicopáticas” sividade são rasgos constitucionais. O psicopata
inclui um número indefinido de perturbações “sintomático”, pelo contrário, é na realidade um
do desenvolvimento e ajustamento da perso- neurótico, um deficiente mental ou um psicó-
nalidade que não podem ser convenientemen- tico que “atua como psicopata”, não sendo di-
te aceitas sob um rígido sistema de diagnóstico fícil, aqui, identificar a etiologia psicogenética.
psiquiátrico apesar de ele possuir uma utilidade Ao grupo dos “psicopatas sintomáticos” ou “psi-
didática, estatística, clínica e psiquiátrico-legal copatoides”, pertencem, no entender do citado
a despeito dos conceitos díspares dos diferentes autor, 85 a 90% dos pacientes diagnosticados
autores e escolas., comumente como psicopatas. (12).
Os psicanalistas não aceitam qualquer O Manual editado pela Associação Psi-
diferença entre personalidade psicopática e quiátrica Americana (2ª edição), com a finali-
neurose, considerando inútil o termo persona- dade de facilitar o uso da Classificação Inter-

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 5-18, 2023.


Considerações psiquiátrico-legais sobre responsabilidade penal e capacidade civil... 16

nacional de Doenças, da OMS, esclarece que modo recorrente, e se ficou provada a ineficácia
a expressão nela empregada — personalidade do tratamento adequado; c) se as dificuldades
antissocial, “é reservada para os indivíduos ba- no ajustamento tiverem sido manifestadas por
sicamente insocializáveis e cujo padrão de com- algum sintoma ou distúrbio do comportamento
portamento os coloca repetidamente em confli- que não seja consequência de deficiência mental,
to com a sociedade. São incapazes de lealdade doença estrutural do cérebro, epilepsia, neurose,
significativa para com os indivíduos, grupos ou psicose afetiva ou esquizofrenia (14).
valores sociais. São manifestamente egoístas, ru- São mencionados como principais tipos
des, irresponsáveis, impulsivos e incapazes de de desajustamento a delinquência e as transgres-
sentir culpa ou aprender com a experiência e o sões legais em geral, incluindo desde a vagabun-
castigo. A tolerância à frustração é baixa. Ten- dagem, o pequeno furto, a prostituição, os assal-
dem a culpar os outros ou oferecer racionaliza- tos, as falsificações, até o homicídio.
ções plausíveis pelo seu comportamento” (13). Bimhaum enumera nos psicopatas: a)
O diagnóstico de personalidade psico- desproporção entre o estímulo e a reação; b) de-
pática torna-se delicado quando na prática fo- sarmonia ou falta de coordenação nos elementos
rense o psiquiatra é solicitado a expressar sua que integram o caráter; c) intolerância psicofí-
opinião sobre questões de responsabilidade nos sica; d) inadaptabilidade à vida; e) comporta-
casos fronteiriços (“anormais psíquicos”, “semi- mento antissocial (15). Mira y Lopez enfatiza
-loucos”, e “psicopatas”), os quais são conside- a existência, nas personalidades psicopáticas, de
rados responsáveis parciais e sujeitos às medidas perturbações do comportamento que costumam
de segurança previstas no artigo 77 do Código ser precoces e manifestam-se sobretudo em face
Penal Brasileiro. A esse respeito deve-se ter em de estímulos e situações que direta ou indireta-
mente que nenhum sintoma ou combinação de mente reativam a emotividade e põem em con-
sintomas, tidos como manifestação clínica de flito as diversas tendências primitivas de reação
personalidade psicopática, são privativas dessa do indivíduo. Apesar de haver uma incidência
condição mórbida e que os critérios diagnósti- muito grande de anormalidades eletroencefa-
cos gerais são pouco satisfatórios. W. Preu ad- lográficas nas personalidades psicopáticas, elas,
mite o diagnóstico de personalidade psicopá- todavia, não são conclusivas; o mesmo podendo
tica quando se verificam: a) evidentes sinais de dizer-se dos diversos exames psicotécnicos em-
franco desajustamento social; b) se esse desa- pregados usualmente (PMK, psicodiagnóstico
justamento tem sido contínuo ou repetido, de de Rorschach, testes de eficiência intelectual

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 5-18, 2023.


Gerardo da Frota Pinto 17

etc.). O exame clínico deve ser completado com do tipo clínico da personalidade psicopática.
provas sorológicas e liquóricas, visando a afastar Assim, em se tratando de uma personalidade
a possibilidade de uma neurossífilis incipiente, hipertímica, tendendo para a prodigalidade e a
bem como pela radiografia do crânio e, se pre- dissipação, deve-se considerá-la como relativa-
ciso, pneumo ou arteriografia cerebral, que po- mente incapaz e opinar pela curatela.
dem revelar anomalias ou processos patológicos A atividade psiquiátrico-legal no terre-
ainda não detectados. no movediço do parágrafo único do artigo 22,
As implicações médico-legais que resul- do Código Penal, exige o indispensável conhe-
tam do diagnóstico firmado de personalidade cimento da matéria não só por parte do perito,
psicopática são muito importantes, não só para como, também, por parte da autoridade julga-
o perito quando é chamado a opinar sobre ca- dora, para que ela possa aquilatar da idoneidade
sos em que há dúvida acerca da responsabilidade dos processos empregados na perícia executada,
ou periculosidade, como para o juiz que deve retirando daí o material esclarecedor imprescin-
decidir acerca. O nosso Código Penal trata das dível ao correto julgamento do caso. A avaliação
personalidades psicopáticas no parágrafo único da responsabilidade ou capacidade de imputação
do artigo 22, que diz: “A pena pode ser reduzida de uma pessoa é tarefa espinhosa, bem como a
de um a dois terços, se o agente, em virtude de verificação da periculosidade, quer seja o indiví-
perturbação da saúde mental ou por desenvol- duo delinquente ou sem delito (estado perigoso
vimento mental incompleto ou retardado, não pré-delituoso), visando a descobrir os “portado-
possuía, ao tempo da ação ou da omissão, a ple- res de perigo”, para que lhes sejam aplicadas as
na capacidade de entender o caráter criminoso “medidas de segurança” previstas no artigo 77
do fato, ou de determinar-se de acordo com esse de Código.
entendimento”. Segundo ele os “fronteiriços Apesar do rol de dificuldades com que
(anormais psíquicos, psicopatas”) são declarados se defronta o perito, acreditamos que em virtude
responsáveis, ficando ao prudente arbítrio do dos grandes progressos verificados nos procedi-
Juiz, nos casos concretos uma redução da pena, mentos semiológicos e psicodiagnósticos, já se
e isto, sem prejuízo da aplicação obrigatória de dispõe de meios valiosos para o esclarecimento
medida de segurança”. (1). cabal da maioria dos casos psiquiátrico-legais
Quanto à capacidade civil, dependerá questionados.

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 5-18, 2023.


Considerações psiquiátrico-legais sobre responsabilidade penal e capacidade civil... 18

BIBLIOGRAFIA Stoelting - 1940.


9. Hunt e Coffer, apud P. Pichot - La me sure
1. Pinho, Ruy Rabello - Código Penal - Ed. de ladeterioration et de la debilite mentale -
Atlas S/A - São Paulo. SP. 1979. Paris - 1950. Hermann Ed.
2. Código Civil Brasileiro, Livraria Freitas 10. Say - apud Garcia. J. A. - Compêndio de
Bastos, RJ. Psiquiatria - Casa do Livio - Rio, 1942.
3. Carrilho. Heitor, apud Péres, H. in A 11. Partidge, G. E. - Current conceptions of
esquizofrenia latente, Atlântica, Ed. Rio, psychiatric personality - Am. J. Psych. 10,
1934. 1930.
4. Maya, Ruiz - Psiquiatria Penal e Civil - Ed - 12. Karpman apud Lawson G. Lowrey, in
Plus Ultra, 1931. Delinquent and criminal Personalities -
5. Roxo, H. - Caso de esquizofrenia latente - Hunt, Ed. N. York 1944.
Arq. Bras. Neur. Psiq. agosto - setembro, 13. APA, Manual Diagnóstico e Estatístico
RJ. 1932. de Distúrbios Mentais, 2ª Ed.
6. Lennox, W. P. - Science and Seizure - 2ª ed. Washington, DD. 1968, Ed. parcial em
N. York. Harpers & Brothers, 1941. língua portuguesa, Revista Brasileira de
Psiquiatria, Vol. 6, nº 3, set. 1972.
7. Carrilho, Heitor, - Intervalos lúcidos da
psicose maniaco-depressiva, apud Favero F. 14. Preu, W. Concept of psychopatic
Medicina Legal, 4ª Ed. L. Martins. personality, Hunt Ed. N. York, 1944.

8. Babcock, H. Examination for measuring 15. Birnbaum, apud Vallejo Nagera, Tratado de
efficiency of mental functioning. Chicago, Psiquiatria, Salvat. Ed. Barcelona, 1944.

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 5-18, 2023.


ARTIGO ORIGINAL

O saber e o agir dos profissionais da atenção


primária à saúde na atenção psicossocial:
caminhos para um cuidado integral
The knowledge and actions of primary health care professionals in psychosocial care: paths for
an integral care
El conocimiento Y el acto de los profesionales de la salud primaria en la atención psicosocial:
caminos hacia la atención integral

Ingrid Bezerra Costa Maia1 , Ana Patrícia Pereira Morais1 , Geanne


Maria Costa Torres1 , José Maria Ximenes Guimarães1 , Antonio Submetido em:
Germane Alves Pinto1 31/05/2022

Aprovado em:
1. Universidade Estadual do Ceará (UECE)
13/12/2022
Autor correspondente: anapatricia.morais@uece.br Publicado em:
27/03/2023

Título Resumido: Profissionais da APS na atenção psicossocial

Conflitos de interesse: Não há qualquer conflito de interesses declarado pelos autores.

RESUMO
Objetivo: Compreender o saber e o agir dos profissionais da Atenção Primária à Saúde no contexto da Rede de Atenção Psi-
cossocial no Município de Fortaleza. Metodologia: Estudo de caso com perspectiva crítico-analítica e abordagem qualitativa,
realizado no município de Fortaleza, Ceará, Brasil. Participaram da pesquisa 31 profissionais das equipes Saúde da Família e
Núcleo Ampliado de Saúde da Família, no período de abril a setembro de 2016. Os dados foram coletados por meio de entre-
vistas e tratados pela análise de conteúdo temática. Resultados: Emergiram duas categorias empíricas: “Concepção de saúde
mental” e “Eu cuido? Como eu cuido?”, que abordam sobre saberes e práticas da saúde mental, bem-estar, qualidade de vida
e enfrentamentos em busca do cuidado psicossocial na atenção primária à saúde, pois ainda se evidencia uma rede de atenção
psicossocial fragilizada e fragmentada. Conclusão: Considera-se que as inovações, tecnologias e organização da atenção à saúde
são indissociáveis no cuidar integralmente das pessoas, em seus contextos de vida e subjetividades.

Palavras chave: Atenção Primária à Saúde. Apoio Matricial. Integralidade em Saúde. Saúde Mental.

ABSTRACT
Objective: To understand the knowledge and actions of Primary Health Care professionals in the context of the Psychosocial
Care Network in the city of Fortaleza. Methodology: Case study with a critical-analytical perspective and qualitative approach,
conducted in the city of Fortaleza, Ceará, Brazil. Participated in the research, 31 professionals from the Family Health teams
and Extended Family Health Center, in the period from April to September 2016. Data were collected through interviews and
treated by thematic content analysis. Results: Two empirical categories emerged: “Conception of mental health” and “Do I
care? How do I care?”, which address knowledge and practices of mental health, well-being, quality of life and confrontations
in the search for psychosocial care in primary health care, as there is still evidence of a weakened and fragmented psychosocial
care network. Conclusion: It is considered that innovations, technologies and organization of health care are inseparable from
the integral care of people, in their life contexts and subjectivities.

Keywords: Primary Health Care. Matricial Support. Integrality in Health. Mental Health.

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 19-31, 2023.


19
O saber e o agir dos profissionais da atenção primária à saúde na atenção psicossocial... 20

RESUMEN
Objetivo: Comprender el saber y las acciones de los profesionales de la Atención Primaria de Salud en el contexto de la Red
de Atención Psicosocial en la ciudad de Fortaleza. Metodología: Estudio de caso con perspectiva crítico-analítica y enfoque
cualitativo, realizado en la ciudad de Fortaleza, Ceará, Brasil. Participaron de la investigación 31 profesionales de los equipos
de Salud de la Familia y Centro de Salud de la Familia Ampliada, en el período de abril a septiembre de 2016. Los datos fue-
ron recolectados a través de entrevistas y tratados por análisis de contenido temático. Resultados: Emergieron dos categorías
empíricas: “Concepción de salud mental” y “¿Me importa? ¿Cómo me importa?”, que abordan saberes y prácticas de salud
mental, bienestar, calidad de vida y confrontaciones en la búsqueda de atención psicosocial en la atención primaria de salud, ya
que aún se evidencia una red de atención psicosocial debilitada y fragmentada. Conclusión: Se considera que las innovaciones,
tecnologías y organización del cuidado de la salud son inseparables del cuidado integral de las personas, en sus contextos de
vida y subjetividades.
Palabras clave: Atención Primaria de Salud. Soporte de Matriz. Integralidad en Salud. Salud Mental.

INTRODUÇÃO que o indivíduo vive, articulando-se à prevenção,

A
promoção e recuperação da saúde, por meio de
Reforma Sanitária Brasileira de- ações intersetoriais e multiprofissionais3. Neste
marcou, política e institucionalmente, a consoli- estudo, consideramos a integralidade como a
dação de princípios e diretrizes que fundamenta- base para o cuidado em saúde mental.
ram a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), O cuidado com ênfase na construção
emergindo um sistema de saúde com forte ten- crítica, política e na lógica da integralidade,
sionamento à participação de usuários, trabalha- oportuniza a ressignificação dos sujeitos numa
dores e gestores em sua governança, na década relação democrática e cidadã entre profissional
de 1980 . 1
e usuária/o e/ou familiar4. A integralidade do
Os princípios fundamentais que nor- cuidado contribui para o fortalecimento dos vín-
teiam a atenção à saúde (universalidade, equida- culos familiares e comunitários, oportunizando
de e integralidade), expressos inicialmente nos autonomia aos usuários acometidos pelo sofri-
movimentos da Reforma Sanitária e incorpora- mento psíquico.
dos na Constituição Brasileira de 1988 e na legis- O Programa Saúde da Família (PSF),
lação SUS vêm produzindo mudanças nas práti- implantando a partir de 1994 sinalizava uma po-
cas em saúde, em particular, na atenção primária tente ferramenta para garantir a APS, com base
à saúde (APS) . 2
territorial, constituindo o acesso prioritário aos
A organização do cuidado na APS per- serviços de saúde. A Política Nacional da Aten-
passa por cinco atributos fundamentais: integra- ção Básica (PNAB), em 2006, indica que a APS
lidade, coordenação do cuidado, longitudinalida- deve ser estruturada como ordenadora da Rede
de do cuidado, responsabilidade e acessibilidade. de Atenção à Saúde (RAS), sendo necessário for-
Para o cuidado integral é imprescindível consi- talecer os seus atributos e a integração com os di-
derar as necessidades de saúde e o contexto em versos níveis de atenção e linhas de cuidados pre-

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 19-31, 2023.


Ingrid Bezerra Costa Maia, Ana Patrícia Pereira Morais, Geanne Maria Costa Torres, 21
José Maria Ximenes Guimarãe, José Maria Ximenes Guimarães, Antonio Germane Alves Pinto

viamente definidas5. A APS se constitui6 como te a todos os profissionais, primando por uma
principal estratégia de organização do sistema assistência integral e humanizada, considerando
público de saúde no Brasil, sendo a porta de en- as queixas, emoções e sentimentos dos usuários.
trada do sistema, o primeiro nível de atenção à A integralidade da atenção às pessoas em sofri-
saúde, caracterizado como espaço privilegiado na mento mental requer desconstrução e constru-
garantia do acesso, participação social, efetivida- ção das ações cotidianas dos profissionais da APS
de da integralidade e equidade do cuidado. incorporando saberes e práticas intrínsecos aos
Assim, os usuários deixam de ser núme- princípios da Reforma, pois a oferta da atenção
ros de prontuários e passam a ser reconhecidos integral à saúde demanda práticas produtoras de
como cidadãos com suas histórias de vida e seus saúde, norteadas pela autonomia e integralida-
vínculos familiares e comunitários que se for- de8.
mam durante toda a vida. Considera-se o sujeito Nesta perspectiva, a Política Nacional de
em sua singularidade e inserção sociocultural, Saúde Mental vem afirmar a necessidade de efe-
onde os profissionais da APS ultrapassam os mu- tivação de ações de saúde mental nos espaços da
ros institucionais e adentram nas casas e espaços APS. O modelo de redes de atenção psicossocial
comunitários do seu território, na perspectiva de se constrói sustentado em base territorial e atu-
promover o cuidado integral em saúde mental. ação transversal com outras políticas específicas
Por estarem inseridas na comunidade, as que busquem o estabelecimento de vínculos e
equipes da APS são um recurso estratégico no acolhimento a estes usuários de saúde9. O traba-
enfrentamento dos agravos vinculados ao uso lho interdisciplinar permite um olhar integrado
abusivo de álcool, drogas e várias formas de so- ao sujeito, colaborando para melhor compreen-
frimento psíquico. O cuidado em saúde mental7 são dos indivíduos e propondo intervenções que
requer abordagens que se coloquem a favor da possam atender às necessidades da população.
vida, da liberdade, da valorização das diversida- Destaca-se, então, que a experiência
des, da dignidade, da bioética e do respeito, ou na APS permitiu identificar as dificuldades dos
seja, dos direitos humanos, estabelecendo rela- profissionais no acolhimento às pessoas em sofri-
ções vivas que promovam afetos entre familiares mento e/ou transtorno mental, bem como na de-
e profissionais, produzam saúde e não cultivem a finição e identificação da gravidade e/ou o risco
doença, a dor e o sofrimento. da doença. Percebemos, ainda, fragmentação na
Com a Reforma Psiquiátrica Brasileira, Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), agravando
o processo de cuidar na Saúde Mental compe- ainda mais essa problemática, demonstrando que

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 19-31, 2023.


O saber e o agir dos profissionais da atenção primária à saúde na atenção psicossocial... 22

a intervenção6 e articulação das ações de saúde A investigação teve como campo empí-
mental na APS ainda representam desafios da re- rico o município de Fortaleza, capital do esta-
forma psiquiátrica em andamento, o que resvala do do Ceará, dividido em 119 bairros que estão
na garantia de acessibilidade destas pessoas em distribuídos em seis Coordenadoria Regionais
sofrimento a uma rede de cuidados e no reesta- (CORES). Foram selecionadas seis Unidades de
belecimento de seus laços socioafetivos na comu- Atenção Primária à Saúde (UAPS), utilizando-se
nidade. como critério de inclusão: ser aquela com maior
A incorporação de ações efetivas de saú- área adscrita no território de cada uma das CO-
de mental nos dispositivos da APS é fundamen- RES. O estudo foi realizado nas seguintes UAPS:
tal para a consolidação deste novo modo de pen- João Medeiros (CORES I), Rigoberto Romero
sar e cuidar da saúde mental, na perspectiva da (CORES II), Anastácio Magalhães (CORES
clínica ampliada e da assistência integral, qualifi- III), Roberto Bruno (CORES IV), Abner Caval-
cada e humanizada. Com isso, o presente estudo cante (CORES V) e Galba de Araújo (CORES
tem como objetivo compreender o saber e o agir VI).
dos profissionais da APS no contexto da Rede de Participaram da pesquisa 27 profissio-
Atenção Psicossocial no Município de Fortaleza. nais das equipes Saúde da Família (e-SF) e qua-
tro profissionais do Núcleo Ampliado de Saúde
METODOLOGIA da Família (NASF), perfazendo 31 atores sociais
das categorias profissionais: cinco dentistas, cin-
Trata-se de um estudo crítico-analítico co enfermeiros, cinco médicos, um auxiliar de
com abordagem qualitativa, que nos possibilita enfermagem, cinco técnicos de enfermagem,
compreender e analisar o fenômeno social e suas seis agentes comunitários de saúde (ACS), três
relações no campo da saúde mental e da atenção fisioterapeutas e um nutricionista, incluídos pe-
primária . Elegeu-se o estudo de caso por po-
10
los seguintes critérios: estarem lotados nas UAPS
tencializar a compreensão da complexidade do selecionadas e desempenhando suas atribuições
fenômeno social, focalizando o problema em sua há, pelo menos, um ano, considerando-se tempo
plenitude. O estudo de caso é uma investigação
12
necessário para maior vinculação e estabeleci-
empírica, um método que abrange planejamen- mento de relação terapêutica entre profissionais
to, técnicas de coleta de dados e sua análise, re- de saúde e usuários.
tratando a realidade com profundidade, à medi- A apreensão do material empírico ocor-
da que se adentra em todos os seus aspectos e se reu no período de abril a setembro de 2016, uti-
conhece o contexto em que ela permanece. lizando-se como instrumento para coleta de da-

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 19-31, 2023.


Ingrid Bezerra Costa Maia, Ana Patrícia Pereira Morais, Geanne Maria Costa Torres, 23
José Maria Ximenes Guimarãe, José Maria Ximenes Guimarães, Antonio Germane Alves Pinto

dos a entrevista semiestruturada. As entrevistas Em relação ao tempo de trabalho na


duraram, em média, 40 minutos, sendo gravadas APS, tivemos uma variação de um ano e seis me-
e transcritas na íntegra, sendo os dados analisa- ses até 25 anos de atuação. Destes, 19 são servi-
dos por meio da análise de conteúdo temática, dores públicos, um ingressou através do Progra-
numa perspectiva crítico-reflexiva12, seguindo as ma Mais Médico, oito estão no serviço através
etapas: ordenação dos dados, exploração do ma- da seleção pública temporária e três pessoas não
terial ou codificação, tratamento dos resultados possuem nenhum vínculo, recebendo seus sa-
obtidos e a interpretação dos dados. Para tanto, lários através do Recibo de Pagamento Avulso
percorreu-se um caminho de ordenação da rea- (RPA).
lidade investigada, com base na articulação dos No tocante aos cursos, capacitações e/
aspectos subjetivos aos objetivos das práticas so- ou formações na área de saúde mental, apenas
ciais de saúde, com vistas a estabelecer a constru- oito participantes afirmaram ter participado de
ção teórica. algum momento formativo, sendo eles: Álcool
A pesquisa obedeceu aos preceitos éticos e outras drogas, Curso Básico de Saúde Mental,
da Resolução nº 466/2012 do Conselho Na- Caminhos do Cuidado, Apoio Matricial em Saú-
cional de Saúde que regulamenta as pesquisas de Mental e Supera 8. Dos médicos participan-
envolvendo seres humanos13. Teve a aprovação tes, somente o de formação cubana é especialista
do Comitê de Ética e Pesquisa, da Universida- em Medicina de Família e Comunidade.
de Estadual do Ceará (UECE), sob Parecer nº A análise das entrevistas permitiu dividir
1.483.189. Para preservar o anonimato, os par- as respostas em duas categorias empíricas deno-
ticipantes foram identificados pela letra E (En- minadas: “Concepção de saúde mental” e “Eu
trevistado), seguido de numeral arábico, 1 a 31, cuido? Como eu cuido?”
conforme a ordem das entrevistas
I. Concepção de saúde mental:

RESULTADOS
Nesta categoria, expressa-se uma con-

A caracterização dos participantes tor- cepção de saúde mental como sendo bem-estar,

na-se relevante, visto que aproxima o leitor do o estilo de vida da população, ligados diretamen-

cenário da pesquisa. Dos 31 participantes, 23 são te ao enfrentamento dos conflitos e desafios da

do sexo feminino, com média de idade de 41,5 vida. Reiteram percepções que identificam saú-

anos, tendo o mais novo 25 anos e o mais velho, de mental relacionada a alguma característica

58 anos. genética que acompanha o indivíduo desde a

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 19-31, 2023.


O saber e o agir dos profissionais da atenção primária à saúde na atenção psicossocial... 24

infância, além de considerá-la como um distúr- pode vir a ter outras coisas tipo depressão, coisas
bio, patologia ou doença de origem psicológica e assim. (E16)
neurológica.
Saúde mental é estar bem consigo, é Eu acredito que a saúde mental tem sido
conseguir resolver a problemática interna, os o grande ponto de desequilíbrio da sociedade
seus conflitos internos e conseguir apaziguar ou nos dias de hoje. Intolerância, desrespeito, de-
fazer a gestão dos conflitos externos. (E1) samor, vício, depressão, desânimo (pausa). Vejo
que praticamente todas as pessoas têm necessida-
Na minha visão a saúde mental vai além des, umas com mais, outras menos, de práticas
de um comportamento dito normal, vai envolver que restabeleçam ou melhorem este equilíbrio.
toda uma característica genética que interfere no Identifico uma grande necessidade não só dos
ser como um todo. (E14) pacientes que procuram a unidade, mas dos pro-
fissionais que a compõe. (E29)
Saúde mental é justamente referente à
questão da mente, as questões que passam pelo II. Eu cuido? Como eu cuido?

cérebro, as doenças, e são distúrbios psicológicos.


Com base nos apontamentos verificados
(E17)
nessa categoria, os participantes buscam acolher
os usuários e suas ações se concentram em escu-
As verbalizações sobre suas concepções
tá-los, conversar e orientá-los, quando necessá-
de saúde mental nos trazem um ponto de vista
rio. As falas mostram que as ações destinadas aos
mais coletivo, apresentando uma estreita relação
usuários com transtorno mental e/ou em sofri-
entre a dinâmica da sociedade e o processo de
mento mental focam-se na escuta:
adoecimento. Ainda na visão dos participantes,
Tento conversar com o paciente, enten-
destacam as determinações ambientais como
der o que ele está sentindo, o que ele está pen-
inerentes ao processo de adoecimento mental.
sando. (E5)
Saúde Mental é tudo, mas assim no meu
ponto de vista saúde mental já começa desde a
Quando chega o paciente aqui que eu
infância. Se você vive dentro de um ambiente
dou a oportunidade que ele fale. Desde o mo-
que tem problemas você vai crescendo e levando
mento que você dar a oportunidade para que o
junto aqueles problemas e no futuro pode pre-
paciente consiga falar, consiga desabafar, você
judicar e você pode vir a ter outras coisas. Você
está trabalhando a saúde mental. (E25)

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 19-31, 2023.


Ingrid Bezerra Costa Maia, Ana Patrícia Pereira Morais, Geanne Maria Costa Torres, 25
José Maria Ximenes Guimarãe, José Maria Ximenes Guimarães, Antonio Germane Alves Pinto

Percebem-se condutas permeadas pela mais de está fazendo esse elo com o médico, elo
tendência biologicista, com prática prioritária com o Agente Comunitário de Saúde na área e
dos encaminhamentos à atenção especializada, com o médico aqui na Unidade. Eu não estou
especificamente, o Centro de Atenção Psicosso- conseguindo fazer nada. (E30)
cial (CAPS). Compreendem o encaminhamento
como resposta à necessidade da pessoa, visto que Os profissionais reforçam que o cuida-
os profissionais não reconhecem como sua com- do ao indivíduo em sofrimento psíquico tem se
petência a atenção a estas pessoas na APS. mantido na lógica da medicalização do sujeito,
Aqui a gente nunca consegue fazer nada, tendo sua resolução associada à prescrição e uso
então quando surgem esses casos mais assim de de medicações.
mental a gente encaminha logo pro CAPS. Ten- O médico da atenção básica é um trans-
ta dar logo um destino pra eles e o CAPS tenta critor da receita anterior, então não tem dimi-
mandar pra cá de volta. (E4) nuição de dose, não tem adequação de tratamen-
to, não tem uma terapia pra ver se a pessoa fazia
Aqui na unidade nossos profissionais um desmame desse medicamento. (E24)
têm a capacidade de direcionar, de classificar o
problema da pessoa e direcionar para um espe- Evidencia-se uma atenção focada no
cialista. (E22) adoecimento, vinculando o atendimento apenas
a um profissional, privando o indivíduo de uma
As falas dos profissionais revelam a cen- assistência integral e multiprofissional.
tralidade na figura do médico como o único que
detém o saber e capaz de proporcionar o cuidado DISCUSSÃO

a esses usuários.
Para a Organização Mundial da Saúde
A gente coloca pro médico pra ele diag-
(OMS) saúde mental é um estado de bem-estar
nosticar e ver quais as necessidades do paciente
no qual um indivíduo percebe suas próprias ha-
pra encaminhar pro CAPS pra ele ter um melhor
bilidades, podendo lidar com os estresses coti-
acompanhamento. O enfermeiro conversa com
dianos, trabalhar produtivamente e ser capaz de
o médico e de acordo com o que eles decidirem
contribuir para sua comunidade14. As mudan-
a gente encaminha o paciente. (E8)
ças do modelo de assistência à saúde a partir da

Aqui o nosso papel como enfermeira é Constituição de 1988 e da Lei n° 8.080/90, bem
como no campo da saúde mental na perspectiva

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 19-31, 2023.


O saber e o agir dos profissionais da atenção primária à saúde na atenção psicossocial... 26

do conceito ampliando de saúde, vem propor- centrado na recuperação do corpo individual16.


cionando a compreensão do processo saúde-do- Estes olhares múltiplos nos mostram
ença como socialmente construído e propondo que mesmo caminhando para a construção de
um modelo de atenção à saúde sedimentado em um novo paradigma, a concepção de saúde men-
práticas assistenciais desinstitucionalizadas. tal voltado para o modelo organicista, centrado
A compreensão do processo de saúde- na doença, que ignora o contexto familiar e so-
-doença é a personificação da realidade social cial em que vivem os indivíduos, ainda é pre-
que reflete as diversas contradições impostas pelo dominante17. O estudo apontou que o modelo
sistema capitalista. Os modelos dominantes per- biomédico ainda se faz presente em muitas falas,
passam pelos profissionais de saúde que tendem consoante ao modelo manicomial. Entretanto,
a reproduzir o cuidado baseado no contorno identifica-se a presença de concepções ampliadas
biológico e individual do sujeito em sofrimento de saúde mental, conforme princípios do para-
psíquico. Ao fazer isso, desassociam o indivíduo digma psicossocial. Estes princípios divergentes
de seu meio, de sua experiência pessoal e dos seus amparam diferentes direcionamentos do cuidado
condicionamentos14,15. Diante disso, torna-se em saúde mental e ao espaço reservado a esses
imprescindível conhecermos as percepções des- indivíduos na sociedade.
ses profissionais sobre saúde mental, tendo em Os depoimentos ainda destacam que
vista que as concepções inevitavelmente condu- os profissionais buscam acolher e humanizar o
zem as suas práticas, permitindo identificar quais atendimento aos usuários em sofrimento psíqui-
as respostas estão sendo dadas à população em co, mostrando-se disponíveis para conversar e
sofrimento psíquico e seus familiares. escutá-los, estabelecendo interconexões nos es-
A concepção de saúde mental dos en- paços de fala e escuta nas práticas do cuidado.
trevistados está diametralmente ligada com as O acolhimento18 pode servir como importante
situações vividas pelos indivíduos diariamente, ferramenta para o trabalho da equipe de saúde,
estando inclusive em harmonia com a visão pre- pois a perspectiva dialógica amplia as possibilida-
conizada pela OMS. Este entendimento é um des de efetiva atuação no cuidado à pessoa com
retrocesso quando falamos em saúde coletiva, transtorno mental.
pois há um distanciamento da saúde mental da Para agir integralmente em saúde men-
área da saúde coletiva e uma culpabilização do tal é preciso estimular artifícios que incluem a
indivíduo por seu adoecimento. Esta talvez seja escuta, o vínculo e o acolhimento, objetivando
uma das razões, para ainda termos um cuidado atender às necessidades dos usuários e criar am-

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 19-31, 2023.


Ingrid Bezerra Costa Maia, Ana Patrícia Pereira Morais, Geanne Maria Costa Torres, 27
José Maria Ximenes Guimarãe, José Maria Ximenes Guimarães, Antonio Germane Alves Pinto

biente para expressão de sentimentos, postura é responsável pela coordenação do cuidado, de-
condizente com a proposta de acolhimento e vendo os profissionais que nela atuam contribu-
humanização19. Esta postura que se estabelece írem na elaboração, acompanhamento e gestão
numa comunicação que provoca nos profissio- do cuidado ofertado ao indivíduo. Além disso,
nais de saúde a escuta do outro, fundamentado devem acompanhar e organizar o fluxo dos usu-
no cuidado integral e humanizado, revitaliza as ários entre os serviços ofertados na rede. No en-
práticas do cuidado e as relações interpessoais. tanto, ainda se observa o foco na doença, não na
Cuidar da pessoa no âmbito territorial, pessoa e suas necessidades, repassando o proble-
especialmente o cuidado à pessoa com transtor- ma para outro, ao invés de assumir a responsabi-
no mental, exige a inclusão de novas relações e lidade por sua resolução22.
dinâmicas sociais, assim como a prioridade no Partindo dessa premissa, necessário se
uso de tecnologias leves. O uso dessas tecnolo- faz o Apoio Matricial (AM) em saúde mental que
gias20 assume o comando da produção do cui- é uma prática em que profissionais especialistas
dado, servindo como dispositivo potencializador nesta área oferecem suporte aos demais profis-
para um trabalho que valoriza as subjetividades e sionais da APS para ampliar a sua resolubilidade
singularidades dos sujeitos. e produzir maior responsabilização no acompa-
A partir dessas reflexões, depreende-se nhamento e atendimento das pessoas em sofri-
a necessidade dos profissionais utilizarem estes mento psíquico, rompendo-se com a lógica dos
dispositivos no cuidado e de reconhecerem as encaminhamentos indiscriminados e ampliando
demandas de saúde dos usuários em sofrimento a sua clínica22. Torna-se imprescindível o apoio
psíquico para evitar a fragmentação na assistên- da gestão municipal para oficializar e intensificar
cia e a redução ao sistema biológico, pois quan- o matriciamento como dispositivo que possibili-
do as questões subjetivas21 são ignoradas ou não ta a construção de novos processos de trabalho,
identificadas, não há atenção integral, ocasio- auxiliando os profissionais da APS e contribuin-
nado uma cisão entre físico e psíquico. Diante do para a promoção do cuidado integral e com-
disso, torna-se substancial investir em ações que partilhado em saúde mental, por meio de uma
promovam a integralidade, sendo o acolhimento relação de horizontalidade.
integral em saúde um caminho a ser percorrido Os profissionais de saúde deveriam pas-
na APS. sar em suas formações por momentos reflexivos
Cabe destacar fragilidades na integrali- e problematizadores sobre a complexidade que
dade da assistência, tendo em vista que a APS é o ser humano23, reconhecendo suas histórias,

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 19-31, 2023.


O saber e o agir dos profissionais da atenção primária à saúde na atenção psicossocial... 28

seus devires, por meio de uma atenção que in- de tratamento ao usuário em situação de sofri-
tegra3 ações de promoção, prevenção, assistência mento mental. As dificuldades encontradas no
e reabilitação, promovendo acesso aos diferentes cotidiano, o luto, a angústia, o mal-estar, que
níveis de atenção e ofertando respostas ao con- fazem parte do ser social e de sua singularidade
junto. O cuidado em saúde mental24, a partir da são apreciadas como doenças e, com isso, ne-
Reforma Psiquiátrica e enquanto campo de atu- cessitam ser medicalizadas para que possam ser
ação, requer intervenções mais humanas, focali- curadas, favorecendo a perda de autonomia dos
zadas nas relações entre as pessoas. Cada pessoa sujeitos27,28.
carrega em si sua história e sua cultura, contexto Em sendo assim, o cuidado integral em
intenso que precisa ser considerado. saúde mental na APS requer um trabalho arti-
Na APS, o trabalho interdisciplinar é culado da RAPS, mas nos deparamos com uma
uma de suas diretrizes, visto que nenhum pro- rede fragilizada e fragmentada que necessita da
fissional sozinho consegue ofertar cuidado inte- integração dos diversos pontos de atenção, além
gral aos seus usuários, pois não podemos falar em de mais estratégias de encontro, comunicação e
saúde mental isoladamente, torna-se necessário relacionamento entre os profissionais dos diver-
associarmos tal concepção a uma extensa área de sos equipamentos e de diferentes níveis de com-
conhecimento e suas ações distinguem-se por seu plexidade.
caráter interdisciplinar e intersetorial, por vezes,
até transdisciplinar25,26. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para produzir mudanças na produção do
cuidado aos usuários com sofrimento psíquico A Reforma Psiquiátrica no município

necessário se faz o envolvimento de diversas ca- de Fortaleza consegue produzir um novo mode-

tegorias profissionais, bem como de instituições lo de atenção, mesmo que os modelos de gestão,

formadoras e instâncias do governo, a fim de por vezes, retrocedam no processo. No entanto,

que os envolvidos no processo do cuidar saiam evidenciamos que é possível caminhar na con-

da condição de alienação e realizem um trabalho solidação de saberes e práticas na perspectiva da

efetivo em equipe e capaz de gerar novos sentidos atenção psicossocial.

subjetivos que transformem as configurações ne- Além disso, constatamos a construção

gativas existentes. de um novo paradigma em torno da saúde/do-

Além disso, a prescrição dos medica- ença mental direcionado às ciências sociais. En-

mentos é vista como uma das principais formas tretanto, o modelo biomédico ainda está muito

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 19-31, 2023.


Ingrid Bezerra Costa Maia, Ana Patrícia Pereira Morais, Geanne Maria Costa Torres, 29
José Maria Ximenes Guimarãe, José Maria Ximenes Guimarães, Antonio Germane Alves Pinto

presente nas ações dos profissionais de saúde, práticas e constituindo novos serviços, inclusive
fortalecendo a permanência da psiquiatria tradi- no âmbito municipal.
cional. No entanto, ainda é forte a tendência à
Não se pode negar mudanças no modelo institucionalização da loucura representada na
técnico-assistencial, incluindo novos serviços em figura dos CAPS e comunidades terapêuticas,
saúde mental focados no atendimento psicosso- mas estamos conseguindo transpor os muros dos
cial e no acolhimento das ações de saúde mental serviços e equipamentos para adentrarmos nos
na APS. A dimensão jurídica-política é palpável, espaços comunitários e familiares, sendo a APS a
há um arcabouço jurídico direcionando novas grande protagonista de todo processo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Melo RC, Possa LB. Democracia no 4. Faleiros VP. Desafios de cuidar em


SUS, como estamos? Um debate sobre a serviço social: uma perspectiva crítica.
participação social a partir da literatura Rev. Katálysis [Internet]. 2013 [citado
recente. Saúde em Redes [Internet]. 2021 Jul 13];16(spe):8391. Disponível
2016 [citado 2021 Jul 12];2(4):393-408. em: <https://www.scielo.br/j/rk/a/
Disponível em: <http://revista.redeunida. nrBGcDT5WNLJw3SWCJfDynm/
org.br/ojs/index.php/rede-unida/article/ abstract/?lang=pt>. Doi: 10.1590/S1414-
view/803#:~:text=Os%20estudos%20 49802013000300006.
analisados%20demonstraram%20
5. Brasil. [Internet]. Portaria nº 2.436, de 21
avan%C3%A7os,nos%20
de setembro de 2017. Aprova a Política
espa%C3%A7os%20de%20
Nacional de Atenção Básica (PNAB),
participa%C3%A7%C3%A3o%20
estabelecendo a revisão de diretrizes para a
popular>.
organização da Atenção Básica, no âmbito
Doi: 10.18310/2446-4813.2016v2n
do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário
4p393-408.
Oficial da União 2017; 22 set. [citado 2021
2. Pinto LF, Giovanella L. Do Programa à Jul 13]. Disponível em: <https://bvsms.
Estratégia Saúde da Família: expansão saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2017/
do acesso e redução das internações por prt2436_22_09_2017.html>.
condições sensíveis à atenção básica
6. Silva G, Iglesias A, Dalbello-Araujo
(ICSAB). Ciênc. saúde colet [Internet].
M, Badaró-Moreira, M. I. Práticas de
2018 [citado 2021 Jul 12];23(6):1903-
Cuidado Integral às Pessoas em Sofrimento
1913. Disponível em: <https://www.scielo.
Mental na Atenção Básica. Psicologia:
br/j/csc/a/dXV7f6FDmRnj7BWPJFt6LFk/
Ciência e Profissão [Internet]. 2017
abstract/?lang=pt>. Doi: 10.1590/1413-
[citado 2021 Jul 13];37(2):404-417.
81232018236.05592018.
Disponível em: <https://www.scielo.br/j/
3. Starfield B. Atenção primária: equilíbrio pcp/a/hcZXpb7j3fxhD9dDQgvB7GG/
entre necessidades de saúde, serviços e abstract/?lang=pt>. Doi: 10.1590/1982-
tecnologia Brasília: Unesco, Ministério da 3703001452015.
Saúde (MS); 2002.

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 19-31, 2023.


O saber e o agir dos profissionais da atenção primária à saúde na atenção psicossocial... 30

7. Boff L. Saber cuidar: ética do humano: 16. Neves HG, Lucchese R, Munari DB. Saúde
compaixão pela terra. 20. ed. Petrópolis: mental na atenção primária: necessária cons-
Vozes, 2014. trução de competências. Revista Brasileira de
Enfermagem [Internet]. 2010 [citado 2021
8. Neves HG, Lucchese R, Munari DB, Vera
Jun 23];63(4):666-670. Disponível em:
I, Santana FR. O processo de formação do
<https://www.scielo.br/j/reben/a/NyjNHXL-
enfermeiro em saúde mental para a atenção
df8XCWNWn3HKnWph/?lang=pt>. Doi:
primária em saúde. Revista Rene [Internet].
10.1590/S0034-71672010000400025.
2012 [citado 2021 Jul 13];13(1):53-63.
Disponível em: <http://www.periodicos.ufc. 17. Correia VR, Barros S, Colvero LA.
br/rene/article/view/3768/2982>. Saúde mental na atenção básica: prática
da equipe saúde da família. Rev. esc.
9. Brasil. Ministério da Saúde. Saúde mental
enferm. USP [Internet]. 2011 [acesso
(Cadernos de atenção básica, Vol. 32).
2021 Jun 3];45(6):1501-1506. Disponível
Brasília, DF, 2013.
em: <https://www.scielo.br/j/reeusp/a/
10. Minayo MCS (Org.) et al. Pesquisa social: VsL4yTBPR7nSd9wF7MP5Tpj/?lang=pt>.
teoria, método e criatividade. 34. ed. Doi: 10.1590/S0080-62342011000600032.
Petrópolis: Vozes, 2015.
18. Lopes PF, Garcia APRF, Toledo VP.
11. Yin RK. Estudo de caso: planejamento e Nursing Process in the daily life of
métodos. 5. ed. Porto Alegre: Bookman, nurses in Psychosocial Care Centers. Rev
2015. Rene [Internet]. 2014 [cited 2021 Jun
3];15(5):780-8. Available at: <http://www.
12. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: periodicos.ufc.br/rene/article/view/3241>.
pesquisa qualitativa em saúde. 14. ed. São
Paulo: Hucitec, 2014. 19. Brasil. Ministério da Saúde. Política
Nacional de Humanização - Humaniza SUS:
13. Brasil. [Internet]. Conselho Nacional Documento Base. Brasília, DF: Ministério da
de Saúde. Resolução nº 466, de 12 de Saúde, 2006.
dezembro de 2012. Diretrizes e normas
regulamentadoras de pesquisas envolvendo 20. MERHY, E. E. Saúde: a cartografia do
seres humanos. Diário Oficial da União [da] trabalho vivo. 4 Ed. São Paulo: Hucitec;
República Federativa do Brasil. 2013 Jun 2007.
13;150(112 Seção 1):59-62. [citado 2021 Jul
21. Minóia NP, Minozzo F. Acolhimento
13]. Disponível em: <https://conselho.saude.
em Saúde Mental: Operando Mudanças
gov.br/resolucoes/2012/Reso466.pdf>.
na Atenção Primária à Saúde. Psicol.,
14. World Health Organization (WHO). Ciênc. Prof [Internet]. 2015 [acesso
[Internet]. Investing in mental health: 2021 Jul 3];35(4):1340-1349.Disponível
evidence for action. Geneva, Switzerland, em: <https://www.scielo.br/j/pcp/a/
2013. [citado 2021 Ago 13]. Disponível CPqyH9xbLLbLScNkfF4jN5c/
em: <https://apps.who.int/iris/bitstream/ abstract/?lang=pt>. Doi: 10.1590/1982-
handle/10665/87232/9789241564618_eng. 3703001782013.
pdf>.
22. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria
15. Minayo MCS, Souza H. Na dor do corpo, de atenção à saúde. Política Nacional de
o grito da vida. In Costa NS, Ramos CL, Humanização da Atenção e Gestão do SUS.
Minayo MC. Demandas populares, políticas Acolhimento e classificação de risco nos
públicas e saúde, pp. 76-101. Petrópolis: serviços de urgência [Internet]. Brasília:
Vozes, 1989. Ministério da Saúde; 2009. [acesso 2021 Jul
3]. Disponível em: <https://bvsms.saude.gov.

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 19-31, 2023.


Ingrid Bezerra Costa Maia, Ana Patrícia Pereira Morais, Geanne Maria Costa Torres, 31
José Maria Ximenes Guimarãe, José Maria Ximenes Guimarães, Antonio Germane Alves Pinto

br/bvs/publicacoes/acolhimento_classificaao_ 26. Lancetti A, Amarante P. Saúde mental e


risco_servico_urgencia.pdf>. saúde coletiva. In: Campos GWS et. col.
(Org.). Tratado de Saúde Coletiva. 2ª ed.
23. Amarante P. Saúde mental e atenção
Revista e Aumentada. São Paulo/Rio de
psicossocial. 4 Ed – revisada e ampliada. Rio
Janeiro: Hucitec/Fiocruz, p. 615-634, 2013.
de Janeiro: Fiocruz, 2015.
27. Bezerra IC, Jorge MSB, Gondim APS,
24. Cardozo PS, Ferraz F, Yasui S, Souza DF,
Lima LL, Vasconcelos MGF. “Fui lá no
Soratto J. Educational-communicative
posto e o doutor me mandou foi pra cá”:
action in the relationship of social workers
processo de medicamentalização e (des)
with family and users: integrality in
caminhos para o cuidado em saúde mental
mental health care. Saúde Soc [Internet].
na Atenção Primária. Interface [Internet].
2019 [cited 2021 Jul 16];28(4):160-173.
2014 [acesso 2021 Jul 16];48(18):61-74.
Available at: <https://www.scielo.br/j/
Disponível em: <https://www.scielo.br/j/
sausoc/a/bm9PZsvPZcHtrjzZSGNxQNq/
icse/a/SrLcmzsQHZMBJN6LcjJb6WK/
abstract/?lang=en>. Doi: 10.1590/S0104-
abstract/?lang=pt>. Doi: 10.1590/1807-
12902019190178.
57622013.0650.
25. Campos RO, Gama C. Saúde mental na
28. Freitas F, Amarante P. Medicalização em
atenção básica. In: Campos GWS, Guerreiro
psiquiatria. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz,
AVP (Org). Manual de práticas de atenção
2015.
básica: saúde ampliada e compartilhada. 3 ed.
São Paulo: Hucitec, p. 221-246, 2013.

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 19-31, 2023.


REVISÃO SISTEMÁTICA

Instrumentos de Avaliação de Risco à Saúde


Mental Infanto-Juvenil
Risk Assessment Instruments for Children’s Mental Health
Instrumentos de Evaluación de Riesgos para la Salud Mental del Niño y del Adolescente

Emauella Brito Ramos1 , Maria Suely Alves Costa1 , Jocélia Me-


deiros Ximenes 1
, André Sousa Rocha1 , Socorro Taynara Araújo Submetido em:
Carvalho1 31/08/2022

Aprovado em:
1. Universidade Federal do Ceará
21/11/2022
Autor correspondente: emanueri12@hotmail.com Publicado em:
27/03/2023

Título Resumido: Instrumentos de Avaliação de Risco à Saúde Mental Infanto-


Juvenil

Conflitos de interesse: Não há qualquer conflito de interesses declarado pelos autores.

RESUMO
Introdução: A saúde mental é um tema que tem ganhado notoriedade nas discussões científicas, principalmente no cenário
de pandemia, o qual impactou negativamente a sua constituição, especialmente no que diz respeito à crianças e adolescentes.
Nesse sentido, avaliar o risco de saúde mental nesse público se torna essencial para traçar intervenções eficazes. Contudo, é re-
levante considerar, nesta avaliação de risco, aspectos tais como história de vida, contexto, configuração familiar, suporte social,
dificuldades e capacidade de resiliência. Objetivos: Para tanto, este trabalho objetiva elencar os instrumentos disponíveis que
avaliem a saúde mental de crianças e adolescentes. Metodologia: Para isso, foi realizado uma revisão sistemática de literatura
de artigos disponíveis em bases virtuais e baseado no Systematic Search Flow (SSF). De acordo com os critérios de inclusão
e exclusão foram selecionados 11 artigos que apontaram instrumentos utilizados por profissionais no Brasil. Resultados e
discussões: A partir da sistematização dos dados foi possível identificar diversos instrumentos adotados, fato que evidencia a
heterogeneidade nas formas de avaliação de fatores de risco à saúde mental infanto-juvenil. Conclusão: Conclui-se assim, que
para a realização de tal avaliação, necessário se faz, a utilização de várias ferramentas, somado à expertise do profissional, além
do conhecimento teórico inerente às fases do desenvolvimento.

Palavras chave: Saúde mental. Saúde da Criança. Psicologia da Criança.

ABSTRACT
Introduction: Mental health is a topic that has gained notoriety in scientific discussions, especially in the context of a pan-
demic, which has had a negative impact on its constitution, especially with regard to children and adolescents. In this sense,
assessing the risk of mental health in this public becomes essential to outline effective interventions. However, it is relevant
to consider, in this risk assessment, aspects such as life history, context, family configuration, social support, difficulties and
resilience. Objectives: Therefore, this work aims to list the available instruments that assess the mental health of children and
adolescents. Methodology: For this, a systematic literature review of articles available in virtual databases and based on the
Systematic Search Flow (SSF) was carried out. According to the inclusion and exclusion criteria, 11 articles were selected that
pointed to instruments used by professionals in Brazil. Results and discussions: From the systematization of the data, it was
possible to identify several instruments adopted, a fact that highlights the heterogeneity in the ways of assessing risk factors for
child and adolescent mental health. Conclusion: It is therefore concluded that, in order to carry out such an evaluation, it is
necessary to use several tools, in addition to the professional’s expertise, in addition to the theoretical knowledge inherent in
the development phases.

Keywords: Mental health. Child Health. Child Psychology.

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 32-43, 2023.


32
Emauella Brito Ramos, Maria Suely Alves Costa, Jocélia Medeiros Ximenes, 33
André Sousa Rocha, Socorro Taynara Araújo Carvalho

RESUMEN
Introducción: a salud mental es un tema que ha ganado notoriedad en las discusiones científicas, especialmente en el contexto
de una pandemia, lo que ha impactado negativamente en su constitución, especialmente en lo que se refiere a niños y adoles-
centes. En ese sentido, evaluar el riesgo de salud mental en este público se vuelve fundamental para delinear intervenciones
efectivas. Sin embargo, es relevante considerar, en esta evaluación del riesgo, aspectos como la historia de vida, el contexto, la
configuración familiar, el apoyo social, las dificultades y la resiliencia. Objetivos: Por lo tanto, este trabajo tiene como objetivo
enumerar los instrumentos disponibles que evalúan la salud mental de niños y adolescentes. Metodología: Para ello, se realizó
una revisión sistemática de la literatura de artículos disponibles en bases de datos virtuales y con base en el Flujo de Búsqueda
Sistemática (SSF). De acuerdo con los criterios de inclusión y exclusión, fueron seleccionados 11 artículos que apuntaban a
instrumentos utilizados por profesionales en Brasil. Resultados y discusiones: A partir de la sistematización de los datos, fue
posible identificar varios instrumentos adoptados, hecho que destaca la heterogeneidad en las formas de evaluar los factores de
riesgo para la salud mental del niño y del adolescente. Conclusión: Por lo tanto, se concluye que, para llevar a cabo tal evalua-
ción, es necesario utilizar varias herramientas, además de la experiencia del profesional, además de los conocimientos teóricos
inherentes a las fases de desarrollo.

Palabras clave: Salud mental. Salud de los niños. Psicología infantil.

INTRODUÇÃO cia é um período de intensas transformações no

A
ciclo do desenvolvimento. Essas, por sua vez, in-
concepção de infância adquiriu di- cluem alterações comportamentais, fisiológicas,
ferentes significados durante o percurso histórico hormonais e comportamentais5. Nesse sentido,
das sociedades modernas ocidentais¹. Até então, uma vez que essa temática é complexa, os dispo-
as crianças eram representadas como adultos em sitivos de saúde mental e coletiva tem levanta-
miniatura, não tendo nenhum tratamento di- do esforços para trabalhar com esse público que
ferenciado e não lhes sendo conferido nenhum também pode se encontrar em risco nas classes
direito especial. Dessa forma, a responsabilida- menos desfavorecidas.
de pelos cuidados e educação dos jovens ficavam Sendo assim, ao versar sobre risco é pre-
inteiramente a cargo da família, sendo a figura ciso considerar e compreender os diferentes con-
materna a principal encarregada dessa tarefa². ceitos encorpados pela literatura científica. Logo,
Nessa direção, com as mudanças econô- o risco que se assume neste manuscrito, leva em
micas, políticas, sociais e religiosas que demarca- consideração o viés quantitativo em relação a
ram o surgimento da Idade Moderna, a concep- predição da ocorrência de eventos negativos in-
ção de infância tal como se concebe atualmente terligados ao arquétipo hegemônico das ciências
começou a ser estruturada³. Logo, a preocupação humanas e coletiva6.
com a educação e a saúde, bem como o reconhe- Neste rol, os aspectos referentes à saú-
cimento de aspectos inerentes a essa fase tensio- de mental de crianças e adolescentes tornaram-
naram por mudanças do lugar de invisibilidade -se importantes. Passando a ser considerada pela
ocupado pelas crianças na sociedade e nas políti- Organização Mundial de Saúde (OMS) como
cas públicas4. integrante de um estado de bem-estar físico e
É saliente mencionar que a adolescên-

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 32-43, 2023.


Instrumentos de Avaliação de Risco à Saúde Mental Infanto-Juvenil 34

social, que pode ser afetada por uma série de va- enumere os instrumentos que avaliem este cons-
riáveis externas7. A esse respeito, em contexto de truto. Sendo assim, o presente estudo tem como
pandemia, as mudanças do estilo de vida e de principal objetivo elencar os instrumentos dispo-
interações sociais impactaram negativamente nos níveis que avaliem a saúde mental de crianças e
aspectos psicológicos de crianças e adolescentes8. adolescentes.
Desse modo, a saúde mental passa a
ser resultado de processos internos e externos MATERIAL E MÉTODOS

ao sujeito sendo passível de mudança à medida


Trata-se de um estudo que foi baseado
que os eventos se apresentam na vida e a forma
nos procedimentos de uma revisão sistemática
como o sujeito lida com eles. Na vanguarda desta
de literatura sobre os instrumentos utilizados na
concepção, há um aparato legal e jurídico que
avaliação de risco de saúde mental de crianças
legisla sobre os direitos da infância, a saber: a
e adolescentes. Esse tipo de investigação de lite-
Constituição Federal de 19889 e o Estatuto da
ratura tem como principal objetivo um estudo
Criança e do Adolescente (ECA)10. Para compor
metódico em que se busca a menor interferência
este arcabouço, o Ministério da Saúde lançou em
dos pesquisadores envolvidos. Para que isso seja
201411, um documento intitulado de “Atenção
possível, a primeira fase do processo é a criação
psicossocial a crianças e adolescentes no SUS: te-
de um protocolo de pesquisa13.
cendo redes para garantir direitos”, que orienta
as questões pertinentes à atenção psicossocial a Há diferentes modos para realizar a re-

essa população específica. visão sistemática. Para esse estudo foi adotado o

Para atender a tais regulamentações, es- método Systematic Search Flow (SSF) o qual in-

pecialmente no que tange às políticas públicas de dica que há quatro principais fases do processo

saúde, pode-se citar a Rede de Atenção Psicos- de pesquisa: a primeira consiste na elaboração do

social (RAPS), que objetiva prestar assistência e protocolo de pesquisa, a segunda fase constitui a

cuidados a este público, norteados por uma visão análise do material recolhido, a terceira fase de-

integral de infância12. No entanto, é crucial que tém a síntese do material e a última fase é com-
posta pela escrita dos resultados encontrados. A
se consolide ferramentas e práticas em saúde co-
pesquisa dos artigos ocorreu durante o mês de
erente com esta ótica.
novembro de 2021 via biblioteca da Scientific
Portanto, tendo em vista a emergência
Electronic Library Online (SciELO) e da Bibliote-
de discussões a respeito da saúde mental infan-
ca Virtual em Saúde (BVS) além dos Periódicos
to-juvenil, torna-se relevante um estudo que

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 32-43, 2023.


Emauella Brito Ramos, Maria Suely Alves Costa, Jocélia Medeiros Ximenes, 35
André Sousa Rocha, Socorro Taynara Araújo Carvalho

eletrônicos em Psicologia (PePsic). do. Além desses, os que descreviam apenas sobre
Dessa forma, tendo em vista a pesquisa mensuração da saúde mental em maiores de 18
realizada inicialmente na plataforma dos Descri- anos ou continha descrição de instrumentos refe-
tores em Ciências da Saúde (DeCS)14 foram es- rentes a outros países foram descartados. De for-
colhidos os seguintes descritores e palavras-chave ma adicional, não foram consideradas literaturas
aplicados nas buscas efetuadas nas bases de da- não avaliadas por pares ou literatura cinzenta.
dos virtuais: “questionário e inquéritos”; saúde A seleção dos estudos foi executada de
mental”; “infantil”; “Questionário e inquéritos forma indepedente por dois pesquisadores por
AND risco saúde mental AND adolescentes”; meio da leitura dos título e resumos. Assim, eli-
“avaliação de risco em saúde mental adolescente’’ minaram-se numa primeira etapa aqueles que
e “child mental health questionnaire”, ambas cru- evidentemente não se encaixavam nos critérios
zadas pelo operador booleano AND. de elegibilidade. Em contrapartida, os estudos
Como critérios de inclusão, seleciona- considerados aptos foram lidos na íntegra para
ram-se artigos científicos que abordam a temáti- corroborar ou não a sua inclusão na pesquisa.
ca da avaliação do risco de saúde mental infantil Reforça-se que em casos de discordâncias, essas
e que descreveram a utilização de algum instru- foram solucionadas em consenso. Nesse sentido,
mento avaliativo. Além disso, considerando que para organizar o material selecionado por títulos
os instrumentos utilizados na avaliação psicoló- e a seleção de leituras apenas de resumos e leitu-
gica devem ser adaptados à realidade e linguagem ra completa do artigo foi criado uma planilha a
da população, os artigos selecionados deveriam qual constavam as seguintes informações: título
ser de estudos desenvolvidos no Brasil, poden- do artigo, autores, ano de publicação, população
do ser descrito em língua portuguesa, inglesa ou da pesquisa, metodologia, objetivos e instrumen-
espanhola. Os artigos deveriam ter acesso a seu tos utilizados.
conteúdo integral gratuito. Além disso, as escalas Para tanto, com a utilização dos descri-
apresentadas deveriam contemplar idades no in- tores e palavras-chave, foram exibidos 842 textos
tervalo de 0 a 18 anos. nas plataformas de dados científicos. Além disso,
Em contraponto, foram excluídos arti- com a utilização dos critérios de inclusão e ex-
gos que não abordavam a temática do estudo ou clusão e da leitura dos títulos, apenas 71 textos
que não retratavam o uso de instrumentos uti- foram selecionados para a leitura de resumos,
lizados na avaliação do risco à saúde mental em dos quais 12 eram repetidos. Ou seja, 59 arti-
crianças. Foram eliminados os artigos que exi- gos foram selecionados para leitura de resumo.
giam pagamento para acesso integral do conteú- Desses, apenas 24 foram lidos completamente

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 32-43, 2023.


Instrumentos de Avaliação de Risco à Saúde Mental Infanto-Juvenil 36

na íntegra. Por fim, após uma leitura criteriosa pertinentes para esse estudo (gráfico I).
dos artigos, selecionaram-se 11 produções como

Gráfico I: Seleção de artigos

Fonte: autores, 2022.

Tabela I: Artigos selecionados.

INSTRUMENTOS
TÍTULO OBJETIVOS IDADE AUTORES E ANO
UTILIZADOS

Rastreamento de proble- Estudar a aplicabilida- SDQ - Questionário de Capacidades e 30 a 50 Santos eCeleri. (11)
mas de saúde mental em de do Questionário de Dificuldades (2-4) meses
crianças pré-escolares no Capacidadese Dificuldades

contexto da atenção - SDQ para identificar

básica à saúde problemas de saude men-

tal em crianças

pré-escolares

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 32-43, 2023.


Emauella Brito Ramos, Maria Suely Alves Costa, Jocélia Medeiros Ximenes, 37
André Sousa Rocha, Socorro Taynara Araújo Carvalho

Contexto familiar epro- Analisar a associação entre SDQ - Questionário deCapacidades e 6-12 Ferriolli, Marturano

blemas de saúdemental variáveis do contexto fami- Dificuldades. anos e Puntel.

infantil no Programa liar e o risco de problemas (12)


Saúde daFamília emocionais/comportamen-

taisem crianças cadastradas

em

Programa Saúde da Fa-

mília.

Crenças e atitudes Verificar a prevalência e SDQ - Questionário deCapacidades e 7-11 Vitolo, Fleitlich-Bi-

educativas dos pais epro- fatores de risco para pro- Dificuldades anos lyk, Goodman, et al.
SRQ-20 - Self-ReportQuestionnaire
blemas de saúde mental blemas de saúde mental (13)
em escolares em escolares e sua possível

relação com crenças e

atitudes educativas de

pais/cuidadores.

Resiliência e problemas Compreender o processo SDQ- Questionário de capacidades e 9-16 Hildebrand, Celeri,

de saúde mental em deresiliência (supor- dificuldades (CA e R) RSCA - Escala de anos Morcill, et al. (14)
resiliência para crianças eadolescentes
crianças eadolescentes te social erecursos do
9-18
vítimas de violência ambiente familiar) e a

chance de problemas de

saúde mental em crianças

e adolescentes (9–16 anos)

vítimas de

violência doméstica

Prevalência e fatores Identificar a prevalência e GSHS - Global School- 14-29 Carvalho, Barros,

associados a fatores associados a based Student Health amos Santos, et al. (15)
Survey
indicadores negativos indicadores negativos de

de saúde mental em saúde mental em adoles-

adolescentes estudantes centes

do ensino médio em

Pernambuco, Brasil

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 32-43, 2023.


Instrumentos de Avaliação de Risco à Saúde Mental Infanto-Juvenil 38

Sintomatologia depres- Verificar a prevalência de CDI – Inventário de Depressão Infantil 11-15 Souza, Silva, Godoy,

siva em adolescentes sintomatologia depressiva anos et al. (16)


iniciais:estudo de base em adolescentes entre 11 e

populacional 15 anos em Pelotas, RS, e

identificar seus fatores

associados.

Qualidade de vida entre avaliar a qualidade de SF-12 - Item Short-FormHealth Survey 15-19 Silveira, Almeida,

adolescentes: estudo vida efatores associados anos Freire, et al. (17)


seccional empregando o em uma amostra de 754

SF-12 adolescentes

The multidimensional Avaliação multidimen- SCARED - Screen forChild and Anxiety 10-17 Salum, Isolan, Bosa,

evaluation and treatment sionale tratamento de Related Emotional Disorders) anos et al. (18)
K-SADS-PL - Entrevistaclínica diagnós-
of anxiety in children ansiedade em crianças e
tica e a uma entrevista clínica estrutu-
and adolescents: ratio- adolescentes
rada;
nale,design, methods
SDQ- Questionário de capacidade e di-
and preliminaryfindings)
ficuldadesCDI - Inventário de depressão

infantil;

CTQ - Questionário sobretraumas na

infância;

RES - Escala de Resiliência ASSIST -

Teste deTriagem do Envolvimento com

Álcool, Cigarro e outrassubstâncias

PBI - Parental BondingInstrument;

FES – Escala do ambiente familiar; BDI

-Inventário dedepressão;

BAI – Inventário deansiedade

Association of child mal- CTQ – Questionário sobre traumas na Menosde Scomparini , Santos,

treatment and psychiat- infância 18 anos Rosenheck, et al.

ric diagnosisin Brazilian (19)


children

and adolescents

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 32-43, 2023.


Emauella Brito Ramos, Maria Suely Alves Costa, Jocélia Medeiros Ximenes, 39
André Sousa Rocha, Socorro Taynara Araújo Carvalho

Saúde mental e fatores identificar os níveis de SDQ - Questionário de Capacidades e Adolesce Silva , Matsukura,

de risco e proteção: saúdemental, autoestima e Dificuldades ntes me- Cid, et al. (20)
Escala de Autoestima de Rosenberg,
focalizando adolescentes suportesocial de adoles- nores de
SSA –Questionário de Suporte Social
cumprindo medidas centes cumprindo medidas 18 anos
para Crianças e Adolescentes -IEP –
socioeducativas socioeducativas em meio
Inventário de
aberto, os estilos paren-
Estilos Parentais.
tais adotados pelos seus

responsáveis e identificar

relações entre estas

variáveis.

Eventos estressores na o avaliar a relação entre SDQ- Questionário de capacidades e 6- Matos, Cruz, Dumi-

família e indicativos de eventos estressores ocor- dificuldades (versão filhos- 4-17 anos e 17anos th, et al. (21)
pais).Escala de Avaliação de Reajusta-
problemas de saúde ridosna família no último
mento Social deHolmes e Rahe(1967)
mental em crianças com ano e indicativos de pro-

idade escolar blemas de saúde mental

em crianças com idade

escolar em duas escolas de

uma cidade no sul

do Brasil

Fonte: Dados da Pesquisa, 2022.

Os instrumentos mais citados nos estu- criança e do adolescente tende a considerar ques-
dos selecionados foram o Questionário de Capa- tões relativas à história de vida, relações, afetos,
cidades e Dificuldades (SDQ) utilizado em sete alterações comportamentais e consumo de subs-
dos 11 estudos16,17,18,19,20,21,22, correspondendo tâncias7. Atendendo a tais requisitos, há dois
cerca de 63,5%, ao passo que o Questionário so- instrumentos que avaliam a saúde o Item Shor-
bre Traumas na Infância (CTQ) foi o segundo t-Form Health Survey (SF-12) e o Global Scho-
mais citado (n=2)18, 22 equivalendo a aproxima- ol-based Student Health Survey (GSHS). Ambos
damente 18,2%, assim como a Escala de Resili- são de livre acesso. O primeiro, contém 12 itens
ência para crianças e adolescentes (RSCA)19. e mensura a saúde física e mental23. Já o segun-
A avaliação de risco à saúde mental da do, é indicado para um público mais específico,

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 32-43, 2023.


Instrumentos de Avaliação de Risco à Saúde Mental Infanto-Juvenil 40

escolares, o que reduz o alcance do instrumento. de autoestima de Rosenberg (EAR). A primeira,


O GSHS considera os hábitos, como a atividade examina aspectos referentes a resiliência. Ambos
física, por exemplo23. avaliam aspectos referentes a autoestima21.
É pertinente conhecer sobre os víncu- As experiências negativas influenciam ne-
los da criança e do adolescente uma vez que, de gativamente no desenvolvimento e na vida adulta.
acordo com, a presença de apoio, de sentir-se vin- Desse modo é pertinente avaliar eventos traumá-
culado a algo contribuem positivamente para di- ticos22. Os estudos descreveram dois instrumentos
minuir o impacto de eventos traumáticos3. Três que avaliam acontecimentos traumáticos: CTQ e
instrumentos avaliam os vínculos: Parental Bon- FES20, 23. O primeiro, avalia a exposição as diferen-
ding Instrument (PBI), Escala do ambiente fami- tes formas de abuso e situações de negligência19. O
liar (FES) e Questionário de Suporte Social para segundo, não é tão diretivo em relação ao trauma,
Crianças e Adolescentes (SSA)20,21. Ambos têm mas avalia questões referentes a conflito, controle,
formas similares de aplicação. Em relação o FES ambiente e outras situações23.
mostra- se extenso, pois são 90 itens que avaliam Para avaliar as alterações comportamen-
a nível interpessoal e familiar. Já o PBI conta com tais os instrumentos SDQ, Self-Report Question-
20 itens, mas mensura apenas relação de pais e naire (SRQ-20), GSHS, Inventário de depressão
filhos20. E o SSA tem 30 itens e consegue avaliar infantil (CDI), Inventário de depressão (BDI), In-
relações de vínculo de família, amigos, professor e ventário de ansiedade (BAI) e Screen for Child and
outras pessoas e sendo possível conhecer a rede de Anxiety Related Emotional Disorders (SCARED)
suporte social20. são frequentemente referenciados e também apre-
A PBI, a FES e o IEP avaliam questões sentam maior variedade no material avaliado21,
parentais, embora, abordem essa temática de mo- 26
. Embora analisem aspectos comportamentais
dos diferentes. O primeiro, refere-se a como o su- cada um tem sua forma avaliativa, por exemplo, o
jeito se sente ante a prática em referência princi- SRQ-20 avalia a presença de sintomas neuróticos
palmente a afeto e proteção. A FES ante a análise e psicóticos18. Já o SDQ, escala amplamente utili-
ambiental como existência de conflitos, controle, zada para detectar transtornos mentais comuns16.
entre outros e é uma escala longa, 90 itens. En- Dois instrumentos podem investigar o
quanto o IEP, com mais itens (42), investiga prin- consumo de substâncias: Teste de Triagem do En-
cipalmente comportamentos20,21. volvimento com Álcool, Cigarro e outras subs-
Também foram citadas escalas que men- tâncias (ASSIST) e GSHS20, 25. O ASSIST é uma
suram sentimentos positivos: Escala de resiliência escala autoaplicável podendo ser utilizada nos
e autoestima para crianças e adolescentes e Escala diferentes níveis de atenção19. O GSHS, embora

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 32-43, 2023.


Emauella Brito Ramos, Maria Suely Alves Costa, Jocélia Medeiros Ximenes, 41
André Sousa Rocha, Socorro Taynara Araújo Carvalho

seja destinado para estudantes, também há itens é preciso ter atenção no momento de selecionar e
referentes a essa temática25. adminstrar um instrumento, de modo a conside-
Adicionalmente, cabe salientar que os rar as peculiaridades mencionadas.
intrumentos apresentados possuem limitações
intrínsecas seja em relação a própria medida ou CONSIDERAÇÕES FINAIS

na forma como o público-alvo irá respondé-los.


Desse modo, infere-se que a avaliação
Isso significa que podem existir viéses de manipu-
de risco à saúde mental infanto-juvenil é multi-
lação de respostas, o que inviabiliza uma avalia-
dimensional sendo importante considerar fatores
ção acurada apenas com a utilização de um úni-
ambientais, educacionais, sociais e biológicos.
co instrumento27. Posto isso, menciona-se que os
Sendo esta fase, especialmente os primeiros anos,
intrumentos sugeridos pela literatura, podem ser
marcada por saltos desenvolvimentais tanto físi-
combinados entre si como também com outras
cos, neurológicos, sociais, relacionais, afetivos e
técnicas avaliativas, a saber, entrevistas, anamne-
psicológicos. Nesta mesma direção, os instrumen-
ses ou observações, a fim de alcançar um resultado
tos de avaliação de saúde mental, a miúde, me-
preciso e fideginido que irá colaborar no possível
dem um dos fatores presentes no construto saúde
prognóstico28.
mental.
Adicionalmente, dos instrumentos assi-
Muito se descreve sobre os fatores que de-
nalados, é preciso mencionar que o Questionário
vem ser considerados quando é avaliado a saúde
de Capacidades e Dificuldades (SDQ) e o Ques-
mental. Entretanto, a disponibilidade de instru-
tionário sobre Traumas na Infância foram os mais
mentos que possam mensurar a saúde mental de
amplamentes citados nos estudos. A partir de tal
crianças e adolescentes são poucos, podendo essa
informação, pode-se inferir, com cautela, que es-
ser uma temática pertinente para futuras pesqui-
ses instrumentos colaboram de forma mais abran-
sas. Outrossim, também foi possível perceber que
gente nas avaliações realizadas. Contudo, pode-se
para a avaliação do risco de saúde mental é neces-
lançar mão dos demais instrumentos, para que a
sário a utilização de vários instrumentos, alguns,
confiança nos resultados seja mais estável.
inclusive, disponíveis apenas para psicólogos.
Por fim, e não menos importante, tais
O desenvolvimento desse artigo contri-
instrumentos foram construídos considerados al-
buiu no conhecimento de instrumentos avaliati-
gumas particularidades tais como: publico-alvo e
vos bem como na compreensão da avaliação psi-
sua respectiva faixa etaria, classe social, condição
cológica da saúde mental infanto-juvenil. Tem-se
socioeconomica, região do país para a qual os es-
como limitação, o acesso limitado dos artigos,
tudos normativos foram construídos. Nesse víes,

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 32-43, 2023.


Instrumentos de Avaliação de Risco à Saúde Mental Infanto-Juvenil 42

apenas de livre acesso, o que possivelmente, redu- instrumentos aplicado. Outra lacuna do estudo
ziu o número de instrumentos descritos. Sugere-se foi a ausência de descrição de instrumentos pro-
ainda, estudo com profissionais que atuam na área jetivos.
de avaliação psicológica infantil para mensurar os

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 9. Brasil. Constituição 1988. Constituição da


República Federativa do Brasil. Brasília (DF):
1. ARIÈS P. História Social da Criança e da Senado; 1988. Disponível em: http://www.
Família. 2a ed. [local desconhecido]: LTC; planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/consti-
1981. tuicao.htm.

2. Cruz GA, Sarat M. História da infância no 10. Brasil. Ministério da Mulher, da Família e
Brasil: contribuições do processo civilizador. dos Direitos Humanos. Lei nº 8.069, 13
Educação e Fronteiras. 2015;5(13):19-33. de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatu-
to da Criança e do Adolescente e dá out-
3. Henick AC, Faria PM. História da infância ras providências. Diário Oficial da União,
no Brasil. Anais XII Congresso Nacional de Brasília (DF); 1990 jul 13. Disponível em:
Educação–Educare. 2015. https://cutt.ly/yECVBmB.
4. Dornelles LV, Marques CM. Mas o que é 11. Brasil, Ministério da saúde. Atenção psi-
infância? – atravessamento de múltiplos cossocial a crianças e adolescentes no SUS:
olhares na formação de professores. Edu- tecendo redes para garantir direitos. Brasília:
cação [Internet]. 10 nov 2015 [citado 9 ago Ministério da Saúde; 2014. Disponível em:
2022];38(2):289. https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/
5. BONIFÁCIO IB et al. Adolescência e pro- atencao_psicossocial_criancas_adolescentes_
jetos de futuro: possibilidades escolares na sus.pdf.
escuta e orientação de estudantes. 2019. 12. Brasil. Portaria MS/GM nº 3.588, de 21 de
6. BOSI MLM. Problematizando o conceito de dezembro de 2017. Altera as Portarias de
risco em diretrizes éticas para pesquisas em Consolidação no 3 e nº 6, de 28 de setem-
ciências humanas e sociais na Saúde Coletiva. bro de 2017, para dispor sobre a Rede de
Ciência & Saúde Coletiva. 2015; 20. 2675- Atenção Psicossocial, e dá outras providên-
2682 cias. Brasília: Ministério da Saúde; 2017. Di-
sponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/
7. Organização Pan-Americana da Saúde. Saúde saudelegis/gm/2017/prt3588_22_12_2017.
mental dos adolescentes. [texto da Internet]. html.
OPAS; 2021. Disponível em: https://www.
paho.org/pt/topicos/saude-mental-dos-ado- 13. Ferenhof HA, Fernandes RF. Desmistifican-
lescentes. do a revisão de literatura como base para
redação científica: método ssf. Revista Acb:
8. Lucas LS, Alvin A, Porto DM, et al. Impac- Método Biblioteconomia em Santa Catarina.
tos da pandemia de COVID-19 na saúde 2016:550-63.
mental de crianças e adolescentes: orientações
do Departamento de Psiquiatria da Infância 14. DeCS – Descritores em Ciências da Saúde
e Adolescência da Associação Brasileira de [Internet]. DeCS – Descritores em Ciências
Psiquiatria. Revista Debates em Psiquiatria. da Saúde; [citado 3 dez 2022]. Disponível
2020; 10(2):74. em: <https://decs.bvsalud.org/.>.

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 32-43, 2023.


Emauella Brito Ramos, Maria Suely Alves Costa, Jocélia Medeiros Ximenes, 43
André Sousa Rocha, Socorro Taynara Araújo Carvalho

15. Oliveira MA, Cestari TY, Pereira MO, et al. and Development.[Internet]. 2015;[citado
Processos de avaliação de serviços de saúde 12 fev 2022] 25(2):1-8.
mental: uma revisão integrativa da literatura.
23. Matos MB, Cruz AC, Dumith SD, et al.
Saúde em Debate [Internet]. 2014 [citado 9
Eventos estressores na família e indicativos
ago 2022];38(101).
de problemas de saúde mental em crianças
16. Raizel R, Guedes da Silva V, da Mata Godois com idade escolar. Ciência & Saúde Co-
A, et al. Comportamentos de risco à saúde letiva [Internet]. Jul 2015 [citado 15 mai
de adolescentes e atividades educativas da 2022];20(7):2157-63.
Estratégia Saúde da Família em Cuiabá, Mato
24. Scomparini L, Santos B, Rosenheck R, et al.
Grosso, 2011. Epidemiologia e Serviços de
Association of child maltreatment and psy-
Saúde [Internet]. Jun 2016 [citado 9 ago
chiatric diagnosis in Brazilian children and
2022];25(2):1-2.
adolescents. Clinics [Internet]. 30 ago 2013
17. Santos RG, Celeri EH. Rastreamento de [citado 02 ago 2022];68(8):1096-102.
problemas de saúde mental em crianças
25. Silveira MF, Almeida JC, Freire RS, et al.
pré-escolares no contexto da atenção bási-
Qualidade de vida entre adolescentes: estudo
ca à saúde. Revista Paulista de Pediatria
seccional empregando o SF-12. Ciência &
[Internet]. 7 dez 2017 [citado 15 mais
Saúde Coletiva [Internet]. Jul 2013 [citado
2022];36(1):82-90
23 jun 2022];18(7):2007-15.
18. Ferriolli SH, Marturano EM, Puntel LP.
26. Carvalho PD, Barros MV, Santos CM, et al.
Contexto familiar e problemas de saúde men-
Prevalência e fatores associados a indicadores
tal infantil no Programa Saúde da Família.
negativos de saúde mental em adolescentes
Revista de Saúde Pública [Internet]. Abr
estudantes do ensino médio em Pernambuco,
2007 [citado 13 fev 2022];41(2):251-9.
Brasil. Revista Brasileira de Saúde Materno
19. Vitolo YL, Fleitlich-Bilyk B, Goodman R, et Infantil [Internet]. Set 2011 [citado 11 mai
al. Crenças e atitudes educativas dos pais e 2022];11(3):227-32.
problemas de saúde mental em escolares. Re-
27. Souza LD, Silva RS, Godoy RV, et al. Sin-
vista de Saúde Pública [Internet]. Out 2005
tomatologia depressiva em adolescentes
[citado 22 mar 2022];39(5):716-24.
iniciais: estudo de base populacional. Jornal
20. Hildebrand NA, Celeri EH, Morcillo AM, et Brasileiro de Psiquiatria [Internet]. 2008
al. Resiliência e problemas de saúde mental [citado 30 Jun 2022];57(4):261-6.
em crianças e adolescentes vítimas de violên-
28. SIMOÕES MR. Potencialidades e limites do
cia. Revista de Saúde Pública. [Internet].
uso de instrumentos no processo de avaliação
2019; [citado 21 jan 2022] 53:1-14.
psicológica. Psicologia, Educação e Cultura
21. Salum GA, Isolan LR, Bosa VL, et al. The [Internet]. 2005. [Citado 15 Nov 2022];
multidimensional evaluation and treatment 9(2): 237-264.
of anxiety in children and adolescents:
29. NORONHA APPP, Hutz CS. Avanços e
rationale, design, methods and prelimi-
polêmicas em avaliação psicológica. Avaliação
nary findings. Revista Brasileira de Psiqui-
Psicológica. 2009 [Internet]. 2009. [Citado
atria [Internet]. Jun 2011 [citado 30 fev
15 Nov 2022]: 8(3): 453-455.
2022];33(2):181-95.
22. Silva MD, Matsukura TS, Cid MF, et al.
Saúde Mental e fatores de risco e proteção:
focalizando adolescentes cumprindo medidas
socioeducativas. Journal of Human Growth

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 32-43, 2023.


RELATO DE EXPERIÊNCIA

“MusiCAPS”: a música como estratégia de


educação em saúde no Centro de Atenção
Psicossocial
“MusiCAPS”: music as a health education strategy at the Psychosocial Care Center
“MusiCAPS”: la música como estrategia de educación en salud en el Centro de Atención
Psicosocial

Daniel Galeno Machado1 , José Maria Ximenes Guimarães1 , Ana


Patrícia Pereira Morais1 , Layza Castelo Branco Mendes1 , José Submetido em:
Jackson Coelho Sampaio1 03/04/2022

Aprovado em:
1. Universidade Estadual do Ceará (UECE)
18/12/2022
Autor correspondente: jose.ximenes@uece.br Publicado em:
27/03/2023

Título Resumido: A música como estratégia de educação em saúde no CAPS

Conflitos de interesse: Não há qualquer conflito de interesses declarado pelos autores.

RESUMO
Objetivo: Relatar a experiência da aplicação da música como fundamento terapêutico para educação em saúde mental de usuá-
rios do Centro de Atenção Psicossocial da cidade de Parnaíba, Piauí, Brasil. Metodologia: Trata-se de um relato de experiência
sobre a realização de grupo de música com usuários e profissionais do referido serviço, cujos encontros ocorreram no período
de agosto a outubro de 2018, registrando-se observações sobre esta prática. Resultados: Evidenciou-se que o grupo de música
se demonstrou potencialmente benéfico aos participantes, com o aumento da participação em atividades grupais, superação da
timidez, renovação da autoestima, melhora nas relações interpessoais e na comunicação, além de estimular a busca de conheci-
mento no que tange aos assuntos do cuidado em saúde. Conclusões: Apesar da necessidade de estudos mais profundos acerca
do tema, evidenciaram-se como notáveis as evoluções comportamentais e afetivas que fortalecem a prática terapêutica, além da
aprendizagem de temas em saúde.

Palavras chave: Musicoterapia, Saúde Mental, Terapias Complementares.

ABSTRACT
Purpose: To report the experience of using music as a therapeutic foundation for mental health education for users of the Psy-
chosocial Care Center in the city of Parnaíba, Piauí, Brazil. Methodology: This is an experience report on a music group with
users and professionals of the aforementioned service, whose meetings took place from August to October 2018, recording
observations about this practice. Results: It was evident that the music group proved to be potentially beneficial to the par-
ticipants, with increased participation in group activities, overcoming shyness, renewing self-esteem, improving interpersonal
relationships and communication, in addition to stimulating the search for knowledge with regard to health care matters.
Conclusions: Despite the need for deeper studies on the subject, the behavioral and affective developments that strengthen
therapeutic practice, in addition to learning about health issues, were notable.

Keywords: Music Therapy, Mental Health, Complementary Therapies.

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 44-49, 2023.


44
Daniel Galeno Machado, José Maria Ximenes Guimarães, Ana Patrícia Pereira Morais, 45
Layza Castelo Branco Mendes, José Jackson Coelho Sampaio

RESUMEN
Objetivo: Relatar la experiencia de aplicación de la música como base terapéutica para la educación en salud mental para
usuarios del Centro de Atención Psicosocial de la ciudad de Parnaíba, Piauí, Brasil. Metodología: Se trata de un relato de
experiencia sobre la conducción de un grupo de música con usuarios y profesionales del mencionado servicio, cuyas reuniones
se realizaron de agosto a octubre de 2018, registrando observaciones sobre esta práctica. Resultados: Se evidenció que el grupo
de música demostró ser potencialmente beneficioso para los participantes, con aumento de la participación en actividades
grupales, superación de la timidez, renovación de la autoestima, mejora de las relaciones interpersonales y de la comunicación,
además de estimular la búsqueda de conocimientos en relación a cuestiones de atención de la salud. Conclusiones: A pesar de
la necesidad de estudios más profundos sobre el tema, fueron notables los desarrollos conductuales y afectivos que fortalecen la
práctica terapéutica, además de aprender sobre temas de salud.

Palabras clave: Musicoterapia, Salud Mental, Terapias Complementarias.

INTRODUÇÃO angustias, medos e anseios, além de momentos

O
de orgulho com a execução ou aprendizado de
s Centros de Atenção Psicossocial uma nova tarefa.
(CAPS) são uma grande conquista advinda da Siqueira-Silva e Nunes3 referem que
Reforma Psiquiátrica Brasileira (RPB), criados as modificações ocorridas na saúde mental no
com a proposta de ressignificar saberes e práticas contexto da RPB foram objeto de uma já vasta
no campo da saúde mental, prestar serviços hu- literatura, que sublinhou a importância de ini-
manizados de atendimento especializado a pes- ciativas e movimentos envolvendo usuários, fa-
soas em sofrimento mental, em substituição às miliares e profissionais. Tais mudanças acende-
internações psiquiátricas, marcadas pela exclusão ram discussões de terapias alternativas na saúde
social e visão patologizante do sujeito1. mental, desencadeando um processo de contágio
De acordo com Lopes , é notável a im-
2
dos ideais da RPB e contribuindo para a articula-
portância dos CAPS na vida das pessoas com ção e inclusão de diversas dinâmicas coletivas na
transtornos mentais e dos seus familiares. A pro- saúde mental. A formação de coletivos musicais
posta do serviço promove a emancipação dos e artísticos neste campo surge como um desses
seus usuários, visto que antes da RPB, com a co- movimentos.
mercialização e marginalização da loucura, estes Ressalta-se que a música junto à lingua-
eram mais facilmente abandonados pelas famílias gem são traços exclusivos dos seres humanos em
e sociedade, reclusos em hospitais psiquiátricos. seus níveis de domínio e organização. A música
Com o estímulo à autonomia gerado por meio mobiliza processos cognitivos complexos como
dos serviços dos CAPS, tornou-se possível aos atenção dividida e sustentada, memória, contro-
usuários o desenvolvimento de laços de pertenci- le de impulso, planejamento, execução e contro-
mentos, sendo positiva a possibilidade dos usu- le de ações motoras. Estudos apontam benefícios
ários criarem momentos em que partilhem suas da música às pessoas com transtornos mentais no

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 32-49, 2023.


“MusiCAPS”: a música como estratégia de educação em saúde no Centro de Atenção... 46

estímulo à atividade física e disciplina, evocação A seleção da música se dava de modo


de humores e emoções positivas e apoio à inte- participativo, considerando-se o gênero musical
ração social4. desejado pelos usuários naquele dia, pois tinha-
Apesar de reconhecidos efeitos -se a intencionalidade de ir além da aprendiza-
benéficos, ainda existem poucos artigos nacio- gem sobre temas de educação em saúde, geran-
nais discutindo a utilização da música como es- do satisfação dos usuários com vistas a assegurar
tratégia terapêutica nos serviços de saúde men- sua adesão ao grupo. Os instrumentos musicais
tal1. Diante desta questão surgiu o interesse em utilizados foram o pandeiro, o violão, além de
observar e registrar empiricamente os efeitos equipamento de voz - o microfone. Na execução
terapêuticos da música em um serviço de saúde das músicas, todos eram convidados a participar,
mental no tocante à aprendizagem de temas em tanto os usuários quantos os profissionais que
educação em saúde. compusessem a roda, caso estivessem dispostos
à execução de tal atividade. Para que as canções
METODOLOGIA tivessem seu ritmo e letra corretos, elas eram co-
locadas na plataforma YouTube no estilo “can-
Trata-se de um relato de experiência, de ções para karaokê” para que o grupo resgatasse
natureza qualitativa, sobre o grupo de música trechos esquecidos.
com usuários de um Centro de Atenção Psicos- Quanto aos critérios de inclusão dos
social (CAPS), localizado na cidade de Parnaíba, usuários, não trabalhávamos com o enfoque
Piauí, Brasil. biomédico patologizante. Assim, os usuários
O grupo foi denominado “MusiCAPS”, não foram selecionados com base em critérios
cujos encontros ocorriam semanalmente, às diagnósticos, considerando o transtorno mental
quartas-feiras, das 14:00 às 15:00 horas, no pe- apresentado. O mote para a realização do grupo
ríodo de agosto a outubro de 2018, sendo com- era o desenvolvimento do bem-estar dos usuá-
posto por 25 usuários em média. Originalmente, rios, a ampliação da interação e a possibilidade
o grupo foi desenhado pelo psicólogo do CAPS, de aprendizagem de temas que pudessem rever-
em 2018. Todavia, durante sua implementação, berar no autocuidado em saúde tanto em am-
outros profissionais da equipe que se dispuseram biente terapêutico (CAPS), quanto em ambiente
a colaborar na sua condução foram incluídos familiar. Então, o grupo era aberto para todos os
como facilitadores, tais como o enfermeiro, o te- usuários que estavam no CAPS, por ocasião de
rapeuta ocupacional ou o assistente social. sua realização, tendo a variação de quantidade e

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 32-49, 2023.


Daniel Galeno Machado, José Maria Ximenes Guimarães, Ana Patrícia Pereira Morais, 47
Layza Castelo Branco Mendes, José Jackson Coelho Sampaio

de perfil de participantes. sua identificação. Assim, dispensa-se a aprecia-


O grupo de música, além de estimular ção por Comitê de Ética em Pesquisa com Seres
processos de sociabilidade, tinha o intuito de es- Humanos, conforme estabelecido na Resolução
timular a aprendizagem de temas relevantes em nº 510/2016, do Conselho Nacional de Saúde.
saúde mental para o ‘fazer-educar’ em saúde, por
meio da música. Destaca-se que temáticas como RESULTADOS E DISCUSSÃO

tristeza ou alegria, vida ou o processo de morte


O grupo intitulado MusiCAPS apresen-
ou outros temas, expressos nas músicas, faziam
tava dois objetivos: 1) facilitar a promoção da
com que além do canto, houvesse um momento
comunicação, a construção de relacionamentos
de reflexão, considerando-se a sua relevância para
e aprendizados, mobilização e expressão artística,
a saúde mental de qualquer indivíduo.
entre outros; 2) promover melhor compreensão
As informações que compõem o subs-
de temáticas na educação em saúde mental por
trato de análise deste manuscrito foram obtidas
meio das músicas. Assim, auxilia-se no supri-
com base na observação das práticas grupais de-
mento às necessidades emocionais, sociais e cog-
senvolvidas no MusiCAPS, registradas em diá-
nitivas dos usuários, além de uma aprendizagem
rio de campo, considerando-se a organização e
sobre temas relacionados à sua situação de saúde.
a dinâmica do grupo de música com usuários e
Os participantes agrupavam-se, geral-
profissionais do CAPS. No final de cada sessão,
mente em círculos, e após os instrumentos eram
o primeiro autor realizava o registro das obser-
distribuídos entre os componentes e profissio-
vações, com ênfase na experiência da dinâmica
nais, de acordo com a habilidade de cantar e/ou
grupal e da interação dos participantes, tal como
tocar cada equipamento, priorizando a participa-
na avaliação final realizada pelos participantes. O
ção dos usuários do serviço, e sempre sob super-
corpus das informações foi submetido à análise
visão dos profissionais do CAPS. O repertório
de conteúdo5.
musical era planejado antecipadamente a fim de
Em relação aos procedimentos éticos, o
garantir uma melhor sintonia e organização e
presente estudo limitou-se a discorrer sobre a ex-
foco no ritmo e letra.
periência dos autores no que diz respeito à apli-
Durante a aplicação da música foi evi-
cação da música como estratégia terapêutica para
denciada uma grande interação social entre os
a educação em saúde, portanto, uma prática pro-
usuários, além do exercício da atenção e con-
fissional, não envolveu diretamente informações
centração dos mesmos. As atividades, na maior
individuais dos usuários do CAPS, que permita

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 32-49, 2023.


“MusiCAPS”: a música como estratégia de educação em saúde no Centro de Atenção... 48

parte das vezes, sugeriam a participação coleti- que os pacientes não tinham voz própria3. As
va, cantando em grupo, porém, também haviam produções musicais surgem nesse contexto no
momentos individuais, com músicas cantadas processo de transformação dos usuários da saú-
individualmente e/ou com a participação dos de mental, implicando em um deslocamento do
usuários do serviço em algum dos instrumentos lugar de paciente para o de autor de sua própria
oferecidos. ação. Desse modo, as composições proporcio-
Nestes momentos, percebe-se que a ti- nam um papel de protagonismo, tanto no estí-
midez é superada e a confiança e autoestima são mulo aos processos cognitivos-comportamentais
potencialmente reestabelecidas, o que ocorreu bem como na construção de sua autonomia. Esse
devido ao estímulo conferido pelas palmas dos processo de atravessamento do “ser usuário” para
demais usuários. Isto, por sua vez, parece favore- o “ser artista” foi notado no grupo “MusiCAPS”,
cer o aprendizado dos sujeitos sobre os assuntos no qual dois dos seus membros apresentaram
abordados. É perceptível o impacto emocional, composições musicais próprias.
expresso no semblante dos usuários, aspecto já Também foi observado uma maior inte-
abordado por Yang et al.6, quando afirmam que a ração e participação dos usuários componentes
música interfere positivamente na interação entre do grupo “MusiCAPS” em outras atividades ofe-
regiões cerebrais responsáveis pelo rastreamento recidas pelo serviço, além de um fortalecimento
das emoções e melhoria no processamento emo- afetivo e social entre os usuários e profissionais,
cional das pessoas em sofrimento psíquico. reverberando no suporte do vínculo do usuário
Com efeito, defende-se o argumento de ao serviço. Tal observação dialoga com Custodio,
que a música ativa sistemas de recompensa simi- Montesinos e Valeriano-Lorenzo8, quando afir-
lares às produzidas com comida, drogas aditivas mam que a música tem demonstrado benefícios
ou sexo, sendo o sistema dopaminérgico respon- com emoções positivas, apoio na interação social
sável pelo prazer de ouvir música. Por outro lado, e autodisciplina dos usuários, além de estímulo à
o prazer evocado ao produzir música é dado a atividade física.
partir do conhecimento dos subcomponentes Ainda foi registrada a superação da ti-
musicais e sua relação com a estrutura musical7. midez e inibição, melhora na capacidade de con-
Assim, o grupo de música no CAPS se centração e relações interpessoais no processo
apresenta como alternativa de superação do pa- grupal. Entretanto, o uso de música como re-
radigma manicomial, o qual se assentava na pre- curso mnemônico ainda gera dúvidas com rela-
missa excludente e coercitiva, no pressuposto de ção à natureza da memória para música. Ainda

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 32-49, 2023.


Daniel Galeno Machado, José Maria Ximenes Guimarães, Ana Patrícia Pereira Morais, 49
Layza Castelo Branco Mendes, José Jackson Coelho Sampaio

não está clara a razão pela qual a música facilita ticas de humanização do atendimento para pro-
a aquisição de memória, mas a memória musi- mover o protagonismo do usuário na construção
cal mostra-se, senão especial, ao menos diferen- do seu saber.
te, com a existência de usuários que apresentam Dada a relevância da temática estudada,
esquecimento de fatos da própria vida, mas são a produção de novos estudos e discussão acerca

capazes de cantar canções da infância1. do tema abordado é oportuna, considerando que


a literatura em relação à música como estratégia
CONCLUSÃO terapêutica para a educação em saúde mental é
bastante tímida no Brasil. Torna-se viável tam-
A observação da aplicação da música bém, que os próximos trabalhos usufruam de
como estratégia terapêutica para a educação em maior tempo de observações, visto que, com a
saúde mental pôde evidenciar um grande poten- continuidade dessas práticas, aparentemente, as
cial ainda pouco explorado, divulgado e discu- práticas podem apresentar resultados ainda mais
tido no Brasil. Além do mais, tal prática pactua benéficos.
com os princípios da RPB, associando-se às prá-

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Franzoi MAH, Santos JLG, Backes S1517-75992013000100012.


VMS, Ramos RFS. Intervenção
5. Minayo MCS. O desafio do conhecimento:
musical como estratégia de cuidado de
pesquisa qualitativa em saúde. 13 ed. São
enfermagem a crianças com transtorno
Paulo: Hucitec; 2013.
do espectro do autismo em um centro
de atenção psicossocial. Texto & 6. Yang M, He H, Duan M, Chen X,
Contexto Enfermagem, 2016; 25(1): Chang X, Lai Y, et al. The effects of music
e1020015. https://doi.org/10.1590/0104- intervention on functional connectivity
070720160001020015. strength of the brain in schizophrenia.
Neural Plasticity, 2018; e 2821832. https://
2. Lopes EFB. Projeto VER-SUS : Uma
doi.org/10.1155/2018/2821832
vivência na perspectiva do cuidado em
saúde mental no CAPS. R. Interd., 2018; 7. Custodio N, Cano-Campos M. Efectos
11(1): 116-122. de la música sobre las funciones cognitivas.
Rev Neuropsiquiatr., 2017; 80 (1): 60-69.
3. Siqueira-Silva R, Nunes JA. Quando a
terapia se torna arte: Teoria Ator-Rede e 8. Custodio N, Montesinos R, Valeriano-
cocriação musical. Estud. pesqui. psicol., Lorenzo E. Terapia musical en el manejo
2015; 15(4): 1238-1257. https://doi. de síntomas cognitivos, psicológicos y
org/10.12957/epp.2015.20258. conductuales de demencia: una revisión
narrativa. Rev Neuropsiquiatr, 2017; 80(2):
4. Rocha VC, Boggio PS. A música por uma
111–124. http://dx.doi.org/10.20453/rnp.
óptica neurocientífica. Per Musi, 2013;
v80i2.3092.
27:132-140. https://doi.org/10.1590/

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 32-49, 2023.


RELATO DE EXPERIÊNCIA

I Fórum Científico da Saúde Mental e Atenção


Psicossocial do Ceará: relato de experiência da
construção e realização
I Scientific Forum on Mental Health and Psychosocial Care of Ceará: experience report on the
construction and implementation
I Foro Científico sobre Salud Mental y Atención Psicosocial de Ceará: relato de experiencia sobre
la construcción e implementación

André Luís Bezerra Tavares1 , Thiago Sousa Félix1 , Karina Maria


Melo de Saboya1 , Ana Josiele Ferreira Coutinho1 Submetido em:
09/08/2022
1. Escola de Saúde Pública Paulo Marcelo Martins Rodrigues - ESP/CE
Aprovado em:
Autor correspondente: andrelbtavares@yahoo.com.br 21/11/2022

Publicado em:
27/03/2023
Título Resumido: A Construção do I Fórum SMAPS – CE

Conflitos de interesse: Não há qualquer conflito de interesses declarado pelos autores.

RESUMO
Objetivo: Relatar às atividades realizadas para a construção e realização do I Fórum Científico de Saúde Mental e Atenção
Psicossocial do Ceará, junto à Secretaria de Saúde do Ceará (SESA) e à Escola de Saúde Pública do Ceará (ESPCE), ocorrido
em 01 de julho de 2022 em Fortaleza. Relato da Experiência: Trata-se de um relato de experiência que reflete necessidade de
divulgar as ações realizadas no âmbito da Atenção Primária e Saúde (APS) e Redes de Atenção à Saúde (RAS) e da necessidade
de discutir a pertinência da temática no âmbito da saúde mental e atenção psicossocial enquanto política pública do Estado em
um evento que integrou participação social, gestão e formação profissional. Fez parte do fórum a apresentação de 132 trabalhos
científicos e produções artísticas, havendo transmissão virtual de parte da programação. A relevância da iniciativa foi confirma-
da pela grande adesão dos profissionais da saúde, 700 inscrições virtuais e a participação de 200 pessoas no evento presencial.
Ressalta-se como políticos, técnicos e científicos os espaços de partilha e produção de conhecimento que podem consolidar a
formação profissional, permitindo o desenvolvimento de novas habilidades e a construção de vínculos para o aprimoramento
profissional e humano. Conclusão: Sugere-se por fim que tal evento tenha periodicidade para a sua efetivação enquanto cami-
nho para o fortalecimento da política estadual de saúde mental, álcool e outras drogas.

Palavras chave: Saúde Mental. Educação Profissional em Saúde Pública. Atividades Científicas e Tecnológicas.

ABSTRACT
Objective: To report on the activities carried out for the I Scientific Forum on Mental Health and Psychosocial Care of Ceará,
conceived by the Ceará Health Department (SESA) and the Ceará School of Public Health (ESPCE), which took place on July
1, 2022 in Fortaleza. Experience report: This is an experience report that reflects the need to publicize the actions carried out
within the scope of Primary Health Care (APS) and Health Care Networks (RAS) and the need to discuss the relevance of the
theme in the context of mental health and psychosocial care as a public policy of the State in an event that integrated social par-
ticipation, management and professional training. The presentation of 132 scientific scientific works and artistic productions
was part of the forum, with part of the program being broadcast virtually. The relevance of the initiative was confirmed by the
great adherence of health professionals, 700 virtual registrations and the participation of 200 people in the face-to-face event.
It stands out as political, technical and scientific spaces for sharing and producing knowledge that can consolidate professional
training, allowing the development of new skills and the construction of bonds for professional and human improvement.
Conclusion: Finally, it is suggested that this event has a periodicity for its effectiveness as a way to strengthen the state policy
on mental health, alcohol and other drugs.

Keywords: : Mental Health. Education, Public Health Professional. Scientific and Technical Activities.

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 50-57, 2023.


50
André Luís Bezerra Tavares, Thiago Sousa Félix, Karina Maria Melo de Saboya, 51
Ana Josiele Ferreira Coutinho

RESUMEN
Objetivo: Informar sobre las actividades realizadas para la construcción y realización del I Foro Científico sobre Salud Mental
y Atención Psicosocial de Ceará, concebido por la Secretaría de Salud de Ceará (SESA) y la Escuela de Salud Pública de Cea-
rá (ESPCE), que ocurrió en 1 de julio de 2022 en Fortaleza. Informe de experiencia: Este es un relato de experiencia que
refleja la necesidad de dar a conocer las acciones realizadas en el ámbito de la Atención Primaria de Salud (APS) y las Redes
de Atención a la Salud (RAS) y la necesidad de discutir tema en el contexto de la salud mental y la atención psicosocial como
política pública de Estado en un evento que integró participación social, gestión y formación profesional. La presentación de
132 trabajos científicos y producciones artísticas fue parte del foro, siendo parte del programa transmitido de manera virtual.
La relevancia de la iniciativa fue confirmada por la gran adhesión de los profesionales de la salud, 700 inscripciones virtuales y la
participación de 200 personas en el evento presencial. Se destaca como espacios políticos, técnicos y científicos para compartir
y producir conocimientos que consoliden la formación profesional, permitiendo el desarrollo de nuevas habilidades y la cons-
trucción de vínculos para la superación profesional y humana. Conclusión: Finalmente, se sugiere que este evento tenga una
periodicidad para su efectividad como forma de fortalecer la política estatal en materia de salud mental, alcohol y otras drogas.

Palabras clave: Salud Mental. Educación en Salud Pública Profesional. Actividades Científicas y Tecnológicas.

INTRODUÇÃO trucionais, as lives e as webconferências.

D
No contexto da saúde mental, cabe res-
urante os primeiros dois anos da saltar as diversas iniciativas de formação surgidas
pandemia de COVID-19, diversas experiências nesse período e a necessidade de discutir a temá-
inovadoras e afetivas foram conduzidas nos ser- tica no contexto do Estado do Ceará. Para con-
viços de saúde do Ceará para auxiliar no cuidado tribuir com esse desafio, concebeu-se a ideia de
às pessoas em sofrimento psíquico e às que apre- realizar o I Fórum Científico de Saúde Mental e
sentam condições prioritárias em saúde mental, Atenção Psicossocial do Ceará. Este trabalho tem
álcool e outras drogas¹. Muitas ações foram con- por objetivo relatar às atividades realizadas para a
duzidas ainda no sentido de promover a saúde e construção e realização do I Fórum Científico de
prevenir o adoecimento. Saúde Mental e Atenção Psicossocial do Ceará,
A Escola de Saúde Pública do Ceará na tentativa de estimular a participação de vários
manteve sua tradição em qualificar os profissio- profissionais com atuação na Atenção Primária a
nais de saúde do estado para os mais diversos Saúde (APS) e demais integrantes das Redes de
cenários de atuação na pandemia². Com todos Atenção à Saúde (RAS) a mostrar as experiências
os desafios, houve a adaptação ao ensino virtu- desenvolvidas na prestação de serviços e cuidados
al, a criação de novas tecnologias e a condução em saúde mental nos municípios cearenses.
de diversas iniciativas na área de saúde mental
e atenção psicossocial. Além das já consagradas RELATO DA EXPERIÊNCIA
residências em psiquiatria e a multiprofissional
em saúde mental, foram lançados cursos básicos, Em dezembro de 2021, realizou-se a pri-
de aperfeiçoamento, especialização em álcool e meira reunião com a Secretaria de Saúde do Es-
drogas e até inovações como os cursos autoins- tado (SESA) e Escola de Saúde Pública do Ceará

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 50-57, 2023.


I Fórum Científico da Saúde Mental e Atenção Psicossocial do Ceará: relato de experiência... 52

Paulo Marcelo Martins Rodrigues (ESPCE) para Cada trabalho foi avaliado por dois pro-
definir questões estruturais como o alinhamen- fessores-visitantes da ESPCE de acordo com cin-
to conceitual da demanda e seu financiamento, co critérios:
quando foi proposto o tema “Caminhos para 1. Adequação à categoria e ao eixo
o fortalecimento de Política Estadual de Saúde temático selecionado (10 pontos);
Mental, Álcool e outras Drogas”, e o local, a ca- 2. Relevância, atualidade e inovação do
pital Fortaleza. A iniciativa foi pensada para par- conteúdo apresentado (20 pontos);
tilhar e proporcionar um ambiente de integração 3. Metodologia utilizada (20 pontos);
entre os trabalhos desenvolvidos na área da saúde 4. Qualidade da sistematização e
mental no Estado, focando, especialmente, nos organização do trabalho submetido,
egressos das formações da ESP/CE neste campo. observando a capacidade de síntese e
Assim, em março de 2022, o edital do clareza de exposição (20 pontos).
fórum foi publicado na Plataforma Mapa da 5. Relevância dos resultados ou
Saúde (Mapa da Saúde, 2022) para receber as argumentos e sua contribuição (30
inscrições gratuitas dos participantes e seus tra- pontos).
balhos, assim como foi organizada uma comis-
são científica para avaliação dos trabalhos. Fo- Foram recebidas 210 inscrições de tra-
ram definidas duas categorias para inscrição de balhos (180 resumos e 30 produções artísticas),
trabalhos: resumos simples (relatos de pesquisa e das quais 202 foram consideradas válidas. Após o
relatos de experiência) e produções artísticas para processo de avaliação por pares, 168 foram apro-
a “ExpoSMAPS - Arte Sã e Salva” nas modalida- vados e 34 reprovados, sendo então definidas as
des de produções textuais (poesia, cordel, contos, seguintes modalidades para apresentação: comu-
dentre outras), fotográficas, audiovisuais e outros nicações orais com transmissão pelo You tube no
(pinturas/desenhos, artes plásticas, dança, teatro, auditório principal (18 selecionados); E-poster
performances e intervenções). Foram definidos com rodas de conversa nos mini-auditórios (61);
os eixos temáticos: exposição de banners impressos (64) e ExpoS-

• Arte, Cultura e Sociedade; MAPS (vídeos - 5, fotos - 5, livros - 3, cordéis - 2


• Atenção e Cuidado em Saúde Mental e poesias - 7 com rodas de conversa com os au-
• Educação Popular em Saúde Mental; tores após cada exibição). Cada sala contou com
• Ensino na Saúde Mental; a presença de dois representantes da comissão
• Políticas Públicas e Gestão em Saúde científica, que moderaram as discussões e coor-
Mental;

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 50-57, 2023.


André Luís Bezerra Tavares, Thiago Sousa Félix, Karina Maria Melo de Saboya, 53
Ana Josiele Ferreira Coutinho

denaram a dinâmica de cada espaço. No dia do participação dos 700 inscritos no total). Entre-
evento, dos 165 selecionados, 132 comparece- tanto foram convidados para participar do even-
ram e apresentaram suas produções. to presencial apenas os autores das produções
Da variedade de temas que surgiram nos com melhor avaliação como forma de reduzir o
trabalhos, citamos os principais: educação per- número de presentes diante das limitações ainda
manente em saúde; interprofissionalidade; aten- impostas pela pandemia de COVID-19, além de
ção à infância e adolescência; práticas grupais; outros colaboradores. As demais atividades acon-
dependência química; atuação em rede; suicídio; teceram em três miniauditórios, na biblioteca e
abordagem familiar e comunitária; matriciamen- na praça de convivência da instituição. Na praça,
to; populações minoritárias (como quilombolas, foram expostos os banners impressos.
indígenas e LGBTQIA+); práticas inovadoras; Integraram também a programação do
tecnologia e outros. Vale ressaltar que os traba- fórum representantes de diversas instituições do
lhos partilharam a importância dos valores da Estado que formaram duas mesas de abertura:
Reforma da Assistência em Saúde Mental, dos a Mesa de Autoridades que marcou a abertura
direitos humanos e de preservar tais conquistas. solene do evento e a Mesa Científica que apro-
A ESPCE e a SESA, através da Secre- fundou os debates com foco no tema central do
taria Executiva de Políticas de Saúde, realizaram evento.
em 01 de julho de 2022 o I Fórum Científico da A arte esteve presente em todos os mo-
Saúde Mental e Atenção Psicossocial do Ceará mentos, desde a abertura com a intervenção ar-
com o tema “Caminhos para o fortalecimento da tística “Coletivo Brinquedo de Rua: Tecnologias
política estadual de saúde mental, álcool e outras do Encontro – Arte e Cultura e Ancestralidade
drogas”. Do referido título podem ser destacados na Promoção da Saúde Mental” até o encerra-
o elemento científico - que deu ambiência aos re- mento. Dentre outras intervenções podem ser
latos de experiências e debates subsequentes - e a destacadas as do projeto “Eu sou o livro: Livros
ênfase na construção atenção psicossocial que de- humanos na Biblioteca” da ESP/CE; rodas de
nomina a política pública de saúde mental tendo conversa com autores de livros; sarau de Poesias e
um específico significado ético-político no Bra- recitação de cordéis; exposição de fotos, imagens,
sil³. vídeos e outras produções artísticas com rodas de
O evento ocorreu de forma híbrida na conversa entre os presentes, que representaram a
sede da ESP/CE, sendo possível acompanhar I ExpoSMAPS - Arte sã e salva.
remotamente os trabalhos apresentados no au- Participaram do evento presencialmente
ditório principal da instituição, (que permitiu a cerca de duzentas pessoas (140 participantes e 62

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 50-57, 2023.


I Fórum Científico da Saúde Mental e Atenção Psicossocial do Ceará: relato de experiência... 54

colaboradores). De acordo com dados do Mapa cinco regiões de saúde do Ceará, como se pode
da Saúde4, se inscreveram no evento híbrido um observar no gráfico 1.
total de 700 pessoas, com representatividade das

Gráfico 1 - Região de Saúde dos inscritos no I Fórum SMAPS-CE

Fonte: Mapa da Saúde, 2022.

Destaca-se que a grande maioria dos ins- da saúde mental ainda é ligado a áreas específicas,
critos foi composta por profissionais de psicologia, reforçando a necessidade de discussão como tema
conforme gráfico 2, demonstrando como o tema transversal a todas as categorias da saúde5, 6.

Gráfico 2 - Principal formação acadêmica dos inscritos no I Fórum SMAPS-CE

Fonte: Mapa da Saúde, 2022.


Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 50-57, 2023.
André Luís Bezerra Tavares, Thiago Sousa Félix, Karina Maria Melo de Saboya, 55
Ana Josiele Ferreira Coutinho

Dentre os inscritos, 18% relataram ter formação para nível superior intitulada localmen-
feito alguma formação em saúde mental pela ESP/ te SMAPS-CE5, 6 a mais citada, conforme pode ser
CE nos últimos dois anos de pandemia, sendo a visto no gráfico 3.

Gráfico 3 - Formação em Saúde Mental ofertada pela ESP/CE realizada pelos inscritos no período de
2020 a 2022.

Fonte: Mapa da Saúde, 2022.

Assinalaram o encerramento a apresen- um QR code para acesso ao formulário eletrôni-


tação da Orquestra da Vovó Dedé, com adoles- co de avaliação do evento, onde os participantes
centes desse projeto social da periferia de Fortale- puderam discorrer sobre o que acharam positivo
za, e as músicas regionais da Banda de Forró 100 no evento, o que foi ruim e o que poderia me-
Preconceito, formada por pacientes do CAPS do lhorar. Diante de problemas na ampla divulgação
município do Eusébio. Ao final, o coffee break de do formulário, foram obtidas apenas treze respos-
encerramento foi marcado por um acontecimento tas. Percebeu-se uma avaliação positiva do fórum
marcante, quando a orquestra e a banda citadas quanto à organização da programação e do espaço
juntaram instrumentos e tocaram músicas com físico, diversidade de atividades e relevância dos
temáticas juninas em sintonia que só a alegria e a temas abordados. Sem embargo, o maior destaque
amizade podem suscitar, transformando o encer- vai para os momentos de trocas entre profissio-
ramento em uma grande confraternização. nais. Entre as sugestões de melhorias estão apon-
Ao final das atividades foi disponibilizado tamentos como a de que o evento deveria ter uma

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 50-57, 2023.


I Fórum Científico da Saúde Mental e Atenção Psicossocial do Ceará: relato de experiência... 56

maior duração, oferta de almoço, mais interação É significativo perceber que o debate so-
com quem estava participando remotamente e su- bre saúde mental e atenção psicossocial precisa ser
gestões para que o evento volte a acontecer regu- mais aprofundado e debatido em todas as esferas:
larmente. social, cultural, política, técnica, ética, cientifica-
Deve-se ressaltar que, durante todo o fó- mente. Em todas as dimensões se deve refletir a
rum, foi destacado o protagonismo dos profissio- importância do bem-estar psíquico sem esquecer
nais de saúde e trabalhadores do SUS, realçando sua conexão com o bem-estar comunitário e com
a importância desse sistema e dos vários serviços o desenvolvimento social.
que integra. A própria realização do fórum valori- Percebe-se que a temática abordada no
za essas práticas em sintonia com os princípios do evento prescinde de uma articulação no âmbito
SUS e da Reforma da Assistência em Saúde Men- estadual a fim de dar visibilidade às práticas que
tal, objetivando prestar com qualidade serviços de vêm sendo desenvolvidas por profissionais e gesto-
saúde para a população e, especialmente, para os res locais. De modo que é compensador perceber
usuários e seus familiares. a ampla integração de todas as regiões do Estado
encaminhando seus trabalhos, o que incluiu deze-
CONSIDERAÇÕES FINAIS nas de municípios cearenses. Reforça-se assim que
tal evento ocorra de maneira periódica, visando
A saúde mental é assunto que ganha visi- contemplar este espaço de debate e construção de
bilidade sendo de amplo interesse social. A aten- políticas públicas.
ção psicossocial, por sua vez, requer coordenação
de diversos conhecimentos e capacidade de gestão, AGRADECIMENTOS
mostrando-se como uma área de crescentes desa-
fios para os trabalhadores que estão na assistência. Agradecemos à Coordenadoria de Saúde
O I Fórum SMAPS-CE se constitui num Mental, Álcool e outras Drogas (COPOM), Se-
espaço onde se permite mediar essa temática sen- cretaria Executiva de Políticas de Saúde (SEPOS),
do que sua realização pode ser entendida como Secretaria de Saúde do Ceará (SESA) e Escola de
resultado de uma série de articulações e iniciati- Saúde Pública do Ceará (ESP/CE), além de to-
vas que envolvem agentes públicos, instituições dos os participantes, colaboradores, professores,
de ensino, grupos de pesquisa, além da ativa con- gestores, autoridades e pessoas que direta ou in-
tribuição de profissionais de saúde, notadamente diretamente contribuíram para que esse momento
trabalhadores da RAPS. acontecesse em nosso estado.

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 50-57, 2023.


André Luís Bezerra Tavares, Thiago Sousa Félix, Karina Maria Melo de Saboya, 57
Ana Josiele Ferreira Coutinho

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Anais do 1o Fórum Científico de Saúde 5. Tavares ALB, Faria NF, Lopes FES.
Mental e Atenção Psicossocial do Ceará; Cuidados em Saúde Mental e Atenção
2022, jul. 1; Fortaleza (Ce), Brasil. Fortaleza: Psicossocial: avaliação, manejo e seguimento
Escola de Saúde Pública Paulo Marcelo nos territórios (SMAPS CE): manual do
Martins Rodrigues; 2022. aluno. Fortaleza: Escola de Saúde Pública
2. Moreira FJF, Medina LLG, organizadores. Paulo Marcelo Martins Rodrigues; 2021.
Enfrentamento à Covid-19: a construção da 6. Ceará. Cuidados em saúde mental e
coragem coletiva. Fortaleza: Escola de Saúde atenção psicossocial (SMAPS): avaliação,
Pública do Ceará; 2022. manejo e seguimento nos territórios
3. Felix TS. Concepções do psicossocial [Internet]. Fortaleza: Escola de Saúde
e a política de saúde mental brasileira Pública do Ceará; 2020 [citado 2022 Jul
[dissertação]. Fortaleza: Programa de Pós- 26]. Disponível em: https://espvirtual.esp.
graduação em Psicologia, Universidade ce.gov.br/?project=a-lacuna-de-cuidado-em-
Federal do Ceará; 2017. saude-mental-mhgap-avaliacao-manejo-e-
seguimento
4. Ceará. Mapa da Saúde[internet]. .I Fórum
de Saúde Mental e Atenção Psicossocial
do Ceará (SMAPS-CE). Fortaleza (Ce):
Secretaria de Saúde; 2022. [citado 2022
Jul 26]. Disponível em: < https://mapa.sus.
ce.gov.br/projeto/93/ >

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 50-57, 2023.


RELATO DE EXPERIÊNCIA

Treinando instrutores para o uso do Manual de


Intervenção Mental Health GAP (MI-mhGAP) no
Ceará Brasil
Training trainers for using the Mental Health Gap Intervention Guide (mhGAP-IG) in Ceara Brazil
Capacitación de instructores para el uso del Manual de Intervención GAP en Salud Mental (MI-
mhGAP) en Ceará Brasil

André Luís Bezerra Tavares1 , Luís Lopes Sombra Neto2,3 , Kerley


Menezes Silva4 , Eugênio de Moura Campos3 , Sandra Fortes5 Submetido em:
16/08/2022
1. Escola de Saúde Pública do Ceará.
2. Hospital Universitário Walter Cantídio. Aprovado em:
3. Universidade Federal do Ceará. 15/11/2022
4. Secretaria Municipal de Saúde de Caucaia.
5. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Publicado em:
27/03/2023
Autor correspondente: andrelbtavares@yahoo.com.br

Título Resumido: Treinando instrutores para uso do MI-mhGAP no Ceará

Conflitos de interesse: Não há qualquer conflito de interesses declarado pelos autores.

RESUMO
Objetivo: Relatar a experiência das oficinas ToTS-mhGAP no Ceará nos anos de 2018 e 2019. Relato da Experiência: Os
transtornos mentais, neurológicos e por uso de substâncias (MNS) têm elevada prevalência e são responsáveis por uma grande
carga de doença e incapacidade em todo o mundo. Entretanto, ainda se presencia uma lacuna entre o cuidado a ser ofertado
a essas pessoas e os recursos disponíveis nos sistemas de saúde para a devida assistência a estes casos. Diante dessa realidade, a
Organização Mundial de Saúde, lançou o Programa de Ação para reduzir as Lacunas de Cuidado em Saúde Mental (mhGAP)
e elaborou, como instrumento para o manejo integrado dos MNS pelos profissionais não-especialistas na APS, o Manual de
Intervenções mhGAP (MI-mhGAP). Com o intuito de capacitar novos instrutores e supervisores na aplicação do MI-mhGAP,
realiza-se o Treinamento de Instrutores e Supervisores (ToTS), o qual o Ceará foi um dos estados pioneiros ao organizar duas
oficinas que ocorreram em 2018 e 2019, capacitando 81 profissionais de saúde de diferentes categorias profissionais. Conclu-
são: A participação dos discentes selecionados e a divisão por grupos estratégicos mostrou-se oportuna e cumpriu os objetivos
de integrar os serviços na construção de uma proposta coletiva com a participação dos gestores e profissionais para implantação
do manual e do matriciamento nas realidades locais. O grupo expressou interesse em compreender os conteúdos e o uso do
MI-mhGAP e empenhado em seguir com as discussões para o fortalecimento da política de saúde mental e da estruturação da
linha de cuidado da atenção psicossocial no Ceará.

Palavras chave: Saúde Mental. Atenção Primária à Saúde. Serviços de Saúde Mental. Necessidades e Demandas de Serviços
de Saúde. Sistemas de Apoio Psicossocial

ABSTRACT
Objective: To report the experience of the ToTS-mhGAP workshops in Ceará in 2018 and 2019. Experience report: Mental,
neurological and substance use (MNS) disorders have a high prevalence and are responsible for a large burden of disease and
disability worldwide. However, there is still a gap between the care to be offered to these people and the resources available
in the health systems for the proper care of these cases. Faced with this reality, the World Health Organization launched the
Action Program to reduce Mental Health Care Gap (mhGAP) and prepared, as an instrument for the integrated management
of MNS by non-specialist professionals in PHC, mhGAP Intervention Guide mhGAP (mhGAP-IG). In order to train new
facilitators and supervisors in the application of mhGAP-IG, the Training of Trainers and Supervisors (ToTS) is carried out, in
which Ceará was one of the pioneer states by organizing two workshops that took place in 2018 and 2019, enabling 81 health
professionals from different professional categories. Conclusion: The participation of the selected students and the division
by strategic groups proved to be opportune and fulfilled the objectives of integrating the services in construction of a collec-
tive proposal with the participation of managers and professionals for implementation of the manual and the matrix support
in local realities. The group expressed interest in understanding the contents and use of the MI-mhGAP and committed to
continuing the discussions to strengthen the mental health policy and the structuring of the psychosocial care line in Ceará.

Keywords: Mental Health. Primary Health Care. Mental Health Services. Health Services Needs and Demand. Psychosocial
Support Systems.

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 58-67, 2023.


58
André Luís Bezerra Tavares, Luís Lopes Sombra Neto, Kerley Menezes Silva, 59
Eugênio de Moura Campos, Sandra Fortes

RESUMEN
Objetivo: Informar la experiencia de los talleres ToTS-mhGAP en Ceará en 2018 y 2019. Informe de experiencia: Los tras-
tornos mentales, neurológicos y por uso de sustancias (MNS) tienen una alta prevalencia y son responsables de una gran carga
de enfermedad y discapacidad en todo el mundo. Sin embargo, aún existe un desfase entre la atención que se brindará a estas
personas y los recursos disponibles en los sistemas de salud para la adecuada atención de estos casos. Ante esta realidad, la Or-
ganización Mundial de la Salud lanzó el Programa de Acción para reducir la Brecha de Atención en Salud Mental (mhGAP) y
elaboró, como instrumento para el manejo integrado de los MNS por parte de profesionales no especialistas en APS, la Guía
de Intervención mhGAP (GI-mhGAP). Con el fin de capacitar a nuevos instructores y supervisores en la aplicación de la GI-
-mhGAP, se realiza la Capacitación de Capacitadores y Supervisores (ToTS), en la que Ceará fue uno de los estados pioneros
al organizar dos talleres que tuvieron lugar en 2018 y 2019, capacitando a 81 profesionales de la salud de diferentes catego-
rías profesionales. Conclusión: La participación de los estudiantes seleccionados y la división por grupos estratégicos resultó
oportuna y cumplió los objetivos de integrar los servicios en la construcción de una propuesta colectiva con la participación de
gestores y profesionales para la implementación del manual y la matriz de apoyo en las realidades locales. El grupo manifestó
interés en comprender los contenidos y el uso del MI-mhGAP y se comprometió a continuar las discusiones para fortalecer la
política de salud mental y la estructuración de la línea de atención psicosocial en Ceará.

Palabras clave: Salud Mental. Atención Primaria de Salud. Servicios de Salud Mental. Necessidades y Demandas de Servi-
cios de Salud. Sistemas de Apoyo Psicosocial.

INTRODUÇÃO indivíduos. Entretanto, apenas 52,8% destes re-

S
ceberam assistência médica para depressão nos
egundo a Organização Mundial de últimos 12 meses e somente 18,9% estão em
Saúde (OMS)1, os transtornos mentais, neuroló- acompanhamento em psicoterapia.
gicos e por uso de álcool e outras drogas (condi- O Ceará é um dos estados brasileiros
ções prioritárias MNS) têm elevada prevalência e que possuem números preocupantes em relação
são responsáveis por uma grande carga de doença à saúde mental da população. Dados da PNS
e incapacidade em todo o mundo. Entretanto, 20194 apontam que 4,4% dos cearenses en-
ainda se presencia uma lacuna entre o cuidado trevistados com faixa etária acima de 18 anos,
a ser ofertado a essas pessoas e os recursos dispo- possuem diagnóstico médico de depressão. Em
níveis nos sistemas de saúde para a devida assis- relação ao suicídio, dados epidemiológicos de
tência a estes casos. Quase 1 em cada 10 pessoas mortalidade5,6 constataram taxa de suicídio de
tem uma condição MNS, mas somente 1% dos 7,21 pessoas/100 mil habitantes, sendo um dos
profissionais de saúde no mundo atuam na área estados do Brasil com maiores taxas dessa causa
especializada. Essas condições interferem consi- de mortalidade.
deravelmente na funcionalidade dos indivíduos Reconhecendo a necessidade absoluta
na família, no trabalho e na sociedade em geral . 2,3
de oferecer cuidado às pessoas com estas con-
No Brasil, por exemplo, segundo a Pes- dições e apoio para seus cuidadores, bem como
quisa Nacional de Saúde (PNS 2019) , 10,2% 4
de superar as diferenças entre os recursos dispo-
de brasileiros, com mais de 18 anos, receberam níveis e a grande necessidade desses serviços, a
diagnóstico de depressão por profissional de OMS lançou o Programa de Ação para reduzir as
saúde mental, representando 16,3 milhões de Lacunas de Cuidado em Saúde Mental em 2008.

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 46-67, 2023.


Treinando instrutores para o uso do Manual de Intervenção Mental Health GAP (MI-mhGAP)... 60

Em 2010, elaborou-se o Manual de Intervenções lização e implementação do MI-mhGAP, a OMS


para condições MNS (MI-mhGAP), uma ferra- disponibiliza o curso de Treinamento de Instru-
menta técnica para o manejo integrado dos pro- tores e Supervisores (ToTS-Training of Trainers
fissionais não-especialistas dessas condições em and Supervisors). O ToTS é baseado em metodo-
saúde mental prioritárias. O MI-mhGAP versão logias ativas de ensino-aprendizagem, buscando
1.0 foi implementado em mais de 90 países e o desenvolvimento de competências de ensino
traduzido para mais de 20 idiomas. Em 2015, para a formação de profissionais não-especialis-
a primeira versão foi atualizada e lançado o MI- tas na avaliação, manejo e seguimento de pessoas
-mhGAP versão 2.0 em vigor até hoje2 e com com condições prioritárias em saúde mental7.
dois cursos de para sua replicação: um voltado Os ToTS vêm ocorrendo em vários esta-
para instrutores e supervisores (ToTS) e outro dos do Brasil desde 2018, com o apoio da Orga-
para profissionais de serviços de saúde (ToHP). nização Pan-Americana de Saúde (OPAS/OMS)
A abordagem do mhGAP2 consta de in- e do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa
tervenções para a prevenção, identificação, ava- em Atenção Primaria à Saúde da Universidade
liação, manejo e acompanhamento de pessoas do Estado do Rio de Janeiro (LIPAPS/UERJ)
com essas condições prioritárias, identificadas mostrando-se uma importante ferramenta para a
com base em evidências sobre sua efetividade e qualificação da assistência em saúde mental, sen-
a viabilidade de expandir essas intervenções em do o Ceará um dos estados pioneiros, em que já
países de baixa e média renda. As condições prio- foram realizadas duas edições, em 2018 e 2019,
ritárias foram identificadas com base nos crité- analisadas no presente artigo.
rios de que representavam uma carga global de
doença elevada (em termos de mortalidade, mor- RELATO DA EXPERIÊNCIA

bidade e incapacidade), acarretavam alto custo


Foram realizadas duas oficinas de imer-
econômico ou estavam associadas a violações
são com carga horária total de 40 horas/aula
de direitos humanos. Este material foi adaptado
para o treinamento de instrutores e supervisores
pautando-se se em realidades locais e especifici-
(ToTS) do Mental Health Gap (mhGAP) em
dades da população e do sistema de saúde do es-
Fortaleza. A primeira teve sede em Fortaleza,
tado do Ceará.
no período de 31/07/18 à 07/08/18 de 08:00
Com o intuito de capacitar novos ins-
às 18:00, e a segunda no período de 21/10/19 à
trutores e supervisores que seriam responsáveis
25/10/19 de 08:00 às 17:00.
pela formação de profissionais não-especialistas
(ToHP-Training of Health Professionals) na uti-

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 46-67, 2023.


André Luís Bezerra Tavares, Luís Lopes Sombra Neto, Kerley Menezes Silva, 61
Eugênio de Moura Campos, Sandra Fortes

I. Preparação da Capacitação da SOCEP e um profissional de saúde de outra


categoria da SESA/CE com experiência em saú-
O processo de planejamento e organiza- de mental na Atenção Primária à Saúde (APS),
ção do treinamento ocorreu através da formação que ajudaram a facilitar as discussões em peque-
de um grupo condutor ainda em 2017, a partir nos grupos. Os quatro grupos foram divididos a
de experiências prévias de treinamento para pro- partir do critério da macrorregião (Fortaleza, So-
fissionais (ToHP) com a versão 1.0 do MI-mh- bral, Cariri), sendo que um dos grupos englobou
GAP realizado no projeto QualificaAPSUS8. O duas das cinco macrorregiões do estado (Litoral
grupo condutor foi formado por representantes Leste e Sertão Central)8.
da Secretaria Municipal de Saúde de Fortaleza A segunda oficina foi acordada pela
(SMS/Fortaleza), da Sociedade Cearense de Psi- extinta Secretaria Executiva de Saúde Mental
quiatria do Ceará (SOCEP), da Escola de Saúde (SESM/SESA), também com apoio do LIPAPS/
Pública do Ceará (ESP/CE) e da Secretaria da UERJ e da OPAS/OMS, quando foram selecio-
Saúde do Estado do Ceará (SESA/CE). nados seis facilitadores, sendo três médicos psi-
Durante os encontros de planejamento, quiatras e três profissionais de saúde de outras
foi apresentada a proposta do ToTS em parce- categorias sendo uma terapeuta ocupacional e
ria com o LIPAPS/UERJ e a OPAS/OMS, de- duas psicólogas, todas com experiência em saú-
finindo ainda quantidade e perfil das pessoas de mental e capacitadas previamente no ToTS
que seriam convidadas de cada território para de 2018. Foram organizadas duplas de facilita-
participarem do curso. Acordou-se que seriam dores para a condução de três grupos tutoriais,
convidados profissionais da saúde com nível su- um médico e um de outra profissão da saúde,
perior, perfil para docência e com interesse e/ou possibilitando assim maior troca de experiências
experiência em saúde mental e atenção primária com a turma.
para que posteriormente replicassem o material A primeira capacitação foi pioneira no
em seus territórios. país, tendo sido o primeiro ToTS realizado no
Para a primeira oficina, foram então se- Brasil, contando com elementos apenas do cur-
lecionados dois profissionais (um médico e um so de treinamento de instrutores e supervisores
profissional de saúde de outra categoria, ambos do MI-mhGAP (ToTS). Entretanto percebeu-se
com experiência em saúde mental e atenção pri- que os cursistas tiveram dificuldade em compre-
mária) de cada uma das vinte e duas regiões de ender como se dava o treinamento voltado aos
saúde do estado do Ceará. Foram convidados profissionais de saúde (ToHP), que replicariam a
ainda quatro duplas, formadas por um psiquiatra formação em seus serviços e territórios. Então, na

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 46-67, 2023.


Treinando instrutores para o uso do Manual de Intervenção Mental Health GAP (MI-mhGAP)... 62

segunda capacitação, organizou-se o treinamento Em cada grupo formado havia a participação de


em duas partes, uma voltada para a Capacitação facilitadores no intuito de orientar a atividade.
para os Profissionais de Saúde (ToHP) e a outra Todos os grupos construíram propostas e apre-
para o ToTS, sendo dois dias (16 horas) para o sentaram no grupo geral para discussão em con-
ToHP com os módulos específicos de “Depres- junto das ideias apresentadas.
são” e “Suicídio”, além dos módulos gerais in-
trodutórios que inclui o de “Cuidados e Práticas II. Perfil dos Participantes

Essenciais” e três dias (24 horas) da capacitação


Foram convidados para participar das
pedagógica e de supervisão para ser instrutor do
edições de 2018 e 2019 do ToTS no Ceará, res-
ToHP (ToTS) que inclui treinamento em me-
pectivamente, 44 e 54 discentes. Para fins de
todologias ativas de ensino-aprendizagem e de
certificação, foram considerados capacitados os
supervisão. Tal divisão teve um melhor aprovei-
participantes que tiveram 100% de frequência
tamento dos cursistas.
no curso. Dessa forma, cumpriram a carga ho-
Tanto na primeira como na segunda ofi-
rária exigida 33 profissionais de saúde na edição
cina, no último dia da capacitação no período
de 2018 e 48 no curso de 2019, totalizando um
da tarde, os participantes foram divididos em
total de 81 profissionais de saúde, de diferentes
grupos estratégicos para juntos elaborarem uma
categorias e regiões, capacitados no ToTS. Como
proposta de implementação do programa ToHP
se observa na tabela abaixo:
e do matriciamento em suas realidades locais.

Tabela 1 - Categoria profissional dos instrutores e supervisores capacitados no ToTS nos anos de 2018 e
2019 realizados em Fortaleza, Ceará, Brasil

Categoria Profissional ToTS 2018 ToTS 2019 Total


Médicos:
o Psiquiatras 15 02 17
o MFC 02 00 02
o Generalista 02 04 06
Psicólogos 09 13 22
Enfermeiros 04 10 14
Assistente Social 00 10 10
Terapeuta Ocupacional 01 03 04
Fisioterapeuta 00 02 02
Educador Físico 00 02 02
Dentista 00 01 01
Psicopedagogo 00 01 01
Total 33 48 81
Fonte 1 - Pesquisadores
Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 46-67, 2023.
André Luís Bezerra Tavares, Luís Lopes Sombra Neto, Kerley Menezes Silva, 63
Eugênio de Moura Campos, Sandra Fortes

III. Propostas de Implementação do Pro- As principais propostas de implemen-

grama Elaboradas pelos Participantes tação elaboradas pelos grupos nas oficinas foram
registradas pelos organizadores, por meio de ano-
Um dos principais objetivos desta capa- tações das percepções, observações assistemáticas e
citação é tornar os profissionais de saúde agen- produtos das apresentações.
tes multiplicadores do mhGAP para integrar os No ToTS de 2018, as principais propos-
cuidados de saúde mental na Rede de Atenção tas foram dividas pelos pesquisadores em três ca-
Psicossocial (RAPS). Dessa forma, no último tegorias temáticas: seleção dos participantes, or-
dia de treinamento, os participantes elaboraram ganização da capacitação e aplicação do manual
um plano de implementação de capacitações do baseado nas discussões que emergiram no grupo
ToPH e/ou do matriciamento nos seus territórios geral. Assim, como descrito no quadro abaixo:
de atuação de acordo com as realidades locais.

Quadro 1 - Propostas de implementação do programa elaboradas pelos profissionais de saúde


participantes do ToTS, em 2018, realizados em Fortaleza, Ceará, Brasil.

SELEÇÃO DOS ORGANIZAÇÃO DA APLICAÇÃO DO MANUAL:


PARTICIPANTES: CAPACITAÇÃO:

Garantir nas agendas dos Usar tecnologias para facilitar

Selecionar matriciadores profissionais espaços para a comunicação (como aplicativo

capacitação telefônico de comunicação)


Vínculos empregatícios com Mapear diagnósticos locais para
Realizar encontros semanais
longitudinalidade intervenção

Individualizar de acordo com as Pactuar com gestores municipais Utilizar o manual para identificar

realidades locais e da APS as necessidades de treinamentos

Escolher municípios que tenham Articular com os profissionais da


Divulgar nos espaços de gestão
CAPS RAPS
Englobar profissionais das

unidades emergência e

hospitalares

Envolver as residências médicas e

multiprofissionais
Fonte 2 - Pesquisadores

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 46-67, 2023.


Treinando instrutores para o uso do Manual de Intervenção Mental Health GAP (MI-mhGAP)... 64

Já na segunda oficina, foram assistência da SMS/Fortaleza. Neste momento,

organizados três grupos: um formado por surgiram pactuações entre os profissionais

profissionais vinculados à ESP/CE, outro de saúde e gestores com o intuito da busca da

por profissionais e gestores da SESA/CE e o implementação dos programas em suas regiões,

último grupo por gestores e profissionais da como descrito no quadro abaixo:

Quadro 2 - Pactuações para implementação do programa dos profissionais de saúde e gestores


participantes do ToTS, em 2019, realizados em Fortaleza, Ceará, Brasil

PROFISSIONAIS DE SAÚDE GESTORES

Envolvimento integral em suas áreas de atuação Incentivo para busca de recursos e espaços para

para formar um grupo coeso capacitado no ToTS a realização das atividades


Engajamento junto aos gestores para a construção Desafio urgente em que o objetivo principal

estrutural de novos treinamentos em suas regiões seria aproveitar a oportunidade para atingir

de saúde. o maior número de profissionais da APS nas

regiões de saúde
Demonstraram motivação, força de vontade e Produziram discursos positivos e consensuais

responsabilidade para disseminação da utilização sobre as propostas lançadas pelos cursistas,

do Mh-GAP nas suas realidades profissionais. observadas como desafiadoras, porém factíveis.

Fonte 3 - Pesquisadores

IV. Avaliação da Capacitação e a integração dos participantes, possibilitando a


experimentação das práticas e a troca de conheci-
De maneira geral, a oficina teve uma mento e proporcionando uma correlação dos con-
excelente aceitação dos participantes, que a jul- teúdos com a prática diária dos participantes e a
garam relevante e de grande aprendizado. En- aplicabilidade do que é ensinado em seu dia-a-dia.
tretanto, muitos se queixaram da carga horária Os conteúdos específicos dos módulos, a
exaustiva, o que pode ter prejudicado o rendi- clareza do manual e o treinamento do MhGAP em
mento em alguns momentos. geral também foram considerados como pontos
Como principais aspectos positivos os positivos. Além disso, as estratégias de intervenção
discentes referiram a metodologia participativa psicossocial; os passos de avaliação, manejo e segui-

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 46-67, 2023.


André Luís Bezerra Tavares, Luís Lopes Sombra Neto, Kerley Menezes Silva, 65
Eugênio de Moura Campos, Sandra Fortes

mento dos transtornos mentais; a oportunidade As oficinas de capacitação tinham o in-


de conhecer as metodologias ativas e o aprendi- tuito de replicar os conteúdos teóricos na prática
zado sobre os aspectos teóricos da supervisão fo- diária da equipe da Estratégia Saúde da Família
ram relatados pelos participantes como experiên- (ESF). Dessa forma, os participantes das oficinas
cias novas e relevantes, as quais serão certamente deveriam multiplicar os conteúdos nos municí-
utilizadas nas práticas dos serviços. pios e atuarem na reestruturação da RAPS nas
Dentre as sugestões para aprimoramen- suas realidades locais. Essas atividades proporcio-
to da capacitação, algumas se destacaram e re- naram instrumentos, ferramentas, tecnologias de
petiram-se, como disponibilização do manual planejamento e de organização do trabalho para
impresso; maior carga horária para aprofunda- a qualificação da APS9.
mento dos temas e intervalo de tempo durante As capacitações em saúde mental tive-
os turnos para lanches. Outra sugestão que se ram como objetivo desenvolver as habilidades
destacou foi a necessidade de abordar mais mó- e as competências das equipes da ESF para im-
dulos do MhGAP. plantar e/ou implementar:

DISCUSSÃO  A estratificação de risco para a atenção

psicossocial13;
Essa iniciativa fez parte do Projeto
 O manejo clínico em Saúde Mental
QualificaAPSUS Ceará9 que tinha por objetivo
com base no mhGAP2;
apoiar os municípios no fortalecimento da APS
para que as equipes possam cumprir os atributos  A coordenação de fluxos e contrafluxos

do primeiro contato, da longitudinalidade, da na Rede a partir do matriciamento14.

integralidade, da coordenação, da centralização


familiar, da orientação comunitária e da compe- A participação dos discentes seleciona-
tência cultural; cumprir as funções de responsa- dos e a divisão por grupos estratégicos foi bas-
bilização pela saúde da população adscrita, de tante oportuna e pareceu cumprir o objetivo
comunicação nas redes de atenção à saúde e de de integrar os serviços e construir uma propos-
resolução de grande parte dos problemas de saú- ta coletiva com a participação e implicação dos
de da população sob sua responsabilidade; assu- gestores e profissionais para implantação do pro-
mir a coordenação do cuidado nas redes de aten- jeto de maneira descentralizada e regionalizada.
ção à saúde, nas condições crônicas; e participar Foi possível perceber o interesse do grupo em
da rede de atenção às urgências10,11,12. compreender os conteúdos e o uso do manual,

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 46-67, 2023.


Treinando instrutores para o uso do Manual de Intervenção Mental Health GAP (MI-mhGAP)... 66

bem como a disponibilidade dos participantes em psicossocial, e saúde mental na atenção primária à
seguir com as discussões no intuito de fortaleci- saúde, que já atingiu mais de dois mil trabalhado-
mento da política de saúde mental, álcool e outras res da saúde de nível superior do estado do Ceará
drogas e da implementação da linha de cuidado da até junho de 2022 e segue em execução.
Atenção Psicossocial no Ceará.
A partir dessas experiências, a Coordena- CONSIDERAÇÕES FINAIS
doria de Políticas de Saúde Mental, Álcool e outras
Drogas (COPOM) da SESA aprovou um projeto A Rede de Atenção Psicossocial tem a

de capacitação junto à ESP/CE para o quadriênio APS como um dos seus eixos estruturantes por

2020-2023. Dessa forma, pretendia-se propagar a este nível de atenção à saúde ser responsável por

capacitação MhGAP-ToHP para profissionais da inserir a família como foco do cuidado em saúde

Atenção Primária à Saúde e Atenção Psicossocial mental, sendo esta integração em rede um proces-

(CAPS e ambulatórios) das diversas regiões do es- so progressivo e singular que deve ser construído

tado. As oficinas seriam ministradas pelos profis- considerando as especificidades de cada território.

sionais treinados no ToTS, utilizando os módulos Dessa forma, essa capacitação, realizada

de “Introdução”, “Cuidados e Práticas Essenciais”, no Ceará, com profissionais de saúde com atua-

“Depressão”, “Psicose”, “Infantil”, “Uso de Subs- ção principalmente na APS, foi responsável por

tâncias”, “Suicídio” e Outras queixas importantes aperfeiçoar conhecimentos, habilidades e atitudes

da saúde mental”. necessárias para a realização de ações efetivas e de

Diante do cenário trazido pela pandemia qualidade para pessoas com condições prioritárias

da SARS-COV-2, fez-se necessário repensar a exe- em saúde mental, usando o MI-mhGAP na avalia-

cução dessa capacitação já prevista em um modelo ção, manejo e seguimento dos usuários.

presencial usando educação à distância e tecnolo- Além disso, o ToTS apresentou um for-

gias de ensino-aprendizagem remotas. Como re- mato de capacitação com metodologias ativas que

sultado deste novo esforço coletivo, desenhou-se o proporcionou aos participantes o desenvolvimen-

projeto educacional: “Cuidados em saúde mental to de habilidades pedagógicas para serem multi-

e atenção psicossocial: avaliação, manejo e segui- plicadores do manual e realizou a construção de

mento nos territórios”, ou, SMAPS-CE15, sigla propostas para implementação do MI-mhGAP
utilizando recursos disponíveis nos territórios,
que traduz os contextos de saúde mental e atenção
como o matriciamento.

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 46-67, 2023.


André Luís Bezerra Tavares, Luís Lopes Sombra Neto, Kerley Menezes Silva, 67
Eugênio de Moura Campos, Sandra Fortes

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS legislacao-do-ceara/organizacao-tematica/


trabalho-administracao-e-servico-publico/
1. World Health Organization. Mental health item/5495-lei-complementar-n-82-de-20-10-
action plan 2013-2020. Geneva: World 09-d-o-de-16-11-09>
Health Organization; 2013. 9. Governo do Estado do Ceará. Secretária
2. World Health Organization. MI-mhgap: de Saúde. Projeto qualificaapsus Ceará-
Manual de Intervenções para transtornos Qualificando a Atenção Primária no estado.
mentais, neurológicos e por uso de álcool Estratificação de risco e manejo clínico em
e outras drogas na rede de atenção básica à Saúde Mental. Fortaleza: Governo do Estado
saúde. Versão 2.0. Brasília: Organização Pan- do Ceará; 2017.
Americana da Saúde; 2018. 10. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº
3. Brasil. Ministério da Saúde. Cadernos de 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova
Atenção Básica. Saúde Mental. Número 34. a Política Nacional de Atenção Básica,
Brasília: Ministério da Saúde; 2013. estabelecendo a revisão de diretrizes para a
organização da Atenção Básica, no âmbito
4. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. do Sistema Único de Saúde (SUS) [Internet].
Pesquisa Nacional de Saúde. Rio de Janeiro: Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2017.
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; [citado 2022 Jul 15]. Disponível em:
2019. <https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/
5. Ceará. Secretaria da Saúde. Integração das gm/2017/prt2436_22_09_2017.html>
Informações da Secretaria de Saúde do 11. Macinko J, Mendonça CS. Estratégia Saúde
Estado do Ceará – integrasus [Internet]. da Família, um forte modelo de Atenção
Fortaleza (CE): Secretaria da Saúde; 2022. Primária à Saúde que traz resultados. Revista
[citado 2022 Jul 15]. Disponível em: Saúde Debate. 2018;42(1):18-37.
<https://integrasus.saude.ce.gov.br/#/home>.
12. Rotoli, A, Silva MRS, Santos AM, et al.
6. Brasil. Departamento de Informática do Saúde mental na atenção primária: desafios
SUS. SIM: Sistema de Informação sobre para a resolutividade das ações. Esc Anna
Mortalidade [Internet]. Brasília (DF): Nery. 2019;23:(2):47-57.
Ministério da Saúde; 2022. [citado 2022
Jul 15]. Disponível em: <https://dados.gov. 13. Tavares ALB, Andrade AT, Lima RMF,
br/dataset/sistema-de-informacao-sobre- et al. Guia da capacitação complementar:
mortalidade>. estratificação de risco e manejo clínico em
saúde mental, 2017.
7. World Health Organization. Mhgap
Training of Trainers and Supervisors (tots) 14. Brasil. Ministério da Saúde. Guia Prático de
Training manual. Geneva: World Health Matriciamento em Saúde Mental. Brasília:
Organization; 2015. Ministério da Saúde; 2011. 236 p.

8. Ceará (Estado). Palácio de Iracema. Lei 15. Tavares ALB, Faria NF, Lopes FES. Cuidados
Complementar nº 82, de 20 de outubro em Saúde Mental e Atenção Psicossocial:
de 2009. Dispõe sobre a composição das avaliação, manejo e seguimento nos
macrorregiões do Estado do Ceará, para territórios (SMAPS CE): manual do aluno.
efeito de planejamento. Diário Oficial Fortaleza: Escola de Saúde Pública Paulo
[do] Estado do Ceará [Internet]. 2009 Marcelo Martins Rodrigues; 2021.
Out 16 [citado 2022 Jul 15]. Disponível
em: <https://belt.al.ce.gov.br/index.php/

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 46-67, 2023.


RELATO DE EXPERIÊNCIA

Liga acadêmica de saúde mental: relato de uma


experiência de educação interprofissional
Academic mental health league: an interprofessional education experience report
Liga académica de salud mental: relato de una experiencia de educación interprofesional

Carolina Serrati Moreno1 , Raiane Silva Sousa1 , Tauana Ferreira


Ruteski1 , Israel Roberto de Rienzo1 , Amanda Barbosa Ferrador1 , Submetido em:
Jair Borges Barbosa Neto 2,3 30/08/2022

Aprovado em:
1. Universidade Federal de São Carlos - Discente do Departamento de Psicologia
2. Universidade Federal de São Carlos - Docente do Departamento de Medicina
09/02/2023
3. Universidade Federal de São Carlos - Docente do Programa de Pós-Graduação em
Gestão da Clínica Publicado em:
27/03/2023
Autora correspondente: cmoreno@estudante.ufscar.br

Título Resumido: LASM: Um Relato de Experiência Interprofissional

Conflitos de interesse: Não há qualquer conflito de interesses declarado pelos autores.

RESUMO
Objetivo: Apresentar a experiência de construção da Liga Acadêmica de Saúde Mental (LASM) de uma universidade pública
do interior do estado de São Paulo, à luz da interprofissionalidade, da compreensão biopsicossocial de saúde e da integração
entre ensino, pesquisa e extensão. Relato da experiência: A partir de 2019, priorizou-se na LASM a interprofissionalidade, a
qual tem marcado a formação da diretoria de alunos, professores orientadores e participantes envolvidos. Conta com estudantes
e professores das graduações em Enfermagem, Medicina, Psicologia e Terapia Ocupacional. Esse processo foi importante para
possibilitar a maior abrangência e acesso aos conhecimentos no que diz respeito ao aprendizado de estratégias de promoção
de saúde e na realização de atividades de extensão nesses núcleos de saberes. Conclusão: Este novo formato tem garantido a
formação de profissionais capazes de atuar interprofissionalmente, de acordo com as atuações práticas propostas pelo Sistema
Único de Saúde. Portanto, este caráter interprofissional mostrou-se essencial para a nova composição da LASM.

Palavras chave: Saúde Mental; Educação interprofissional; Educação em Saúde.

ABSTRACT
Objective: This article aims to share the building experience of the Academic League of Mental Health (LASM) at a public
university in the state of São Paulo, Brazil, from a perspective centered at interprofessional work, health biopsychosocial
comprehension and the integration between teaching, researching and extension activities, thus, teamwork has become in-
dispensable. Experience report: LASM has prioritized health interprofessional education since 2019, which has marked the
student board formation, guiding professors and the participants involved, LASM is composed of undergraduate students and
professors in Psychology, Occupational Therapy, Nursing and Medicine. This process was important to enable greater coverage
and access to knowledge regarding the learning of health promotion strategy and in carrying out activities to extend knowledge
centers. Conclusion: This new format has ensured professionals formation toward interprofessional work, in accordance with
the practical actions proposed by the Unified Health System (SUS). Therefore, these interprofessional characteristics revealed
to be essential for the new composition of LASM.

Keywords: Mental Health; Interprofessional Education; Health Education.

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 68-77, 2023.


68
Carolina Serrati Moreno, Raiane Silva Sousa, Tauana Ferreira Ruteski, Israel Roberto de Rienzo, 69
Amanda Barbosa Ferrador, Jair Borges Barbosa Neto

RESUMEN
Objetivo: Presentar la experiencia de construcción de la Liga Académica de Salud Mental (LASM) en una universidad pública
del interior del estado de São Paulo, a la luz de la interprofesionalidad, la comprensión biopsicosocial de la salud y la integraci-
ón entre enseñanza, investigación y extensión. Informe de experencia: A partir de 2019, en LASM se prioriza la interprofesio-
nalidad, lo que ha marcado la formación de la mesa de estudiantes, los docentes orientadores y los participantes involucrados.
Cuenta con estudiantes de pregrado y profesores en Enfermería, Medicina, Psicología y Terapia Ocupacional. Este proceso fue
importante para posibilitar una mayor cobertura y acceso al conocimiento en cuanto al aprendizaje de estrategias de promoci-
ón de la salud y la realización de actividades de extensión en estos centros de conocimiento. Conclusión: Este nuevo formato
ha asegurado la formación de profesionales capaces de trabajar interprofesionalmente, de acuerdo con las acciones prácticas
propuestas por el Unificado de Salud. Sistema. Por tanto, este carácter interprofesional resultó ser fundamental para la nueva
composición de LASM.

Palabras clave: Salud Mental; Educación interprofesional; Educación para la salud.

INTRODUÇÃO (LASM) da Universidade Federal de São Carlos

A
(UFSCar) é organizada a partir desta autonomia
s ligas acadêmicas são entidades de seus discentes para com seu processo de ensi-
formadas por estudantes universitários com o no-aprendizagem. É também consonante com os
propósito de vivenciar a integração do tripé que ideais do Sistema Único de Saúde (SUS), que a
constitui a Universidade pública: o ensino, pes- partir de sua construção sócio-política estabelece
quisa e extensão1. De acordo com a sua temática, a interdisciplinaridade e o trabalho interprofis-
e com o tripé no ensino público, as ligas buscam sional para a sua solidificação3,4.
aproximar o estudante de diversos cenários da A concepção ampliada de saúde adota-
prática profissional, sempre com o apoio de em- da pela LASM engloba as determinações sociais,
basamento teórico1. Desta forma, essas entidades culturais, econômicas, biológicas e políticas5.
buscam oferecer uma formação complementar Já ao se pensar em saúde mental, temática foco
ao da sua graduação aos discentes, de acordo desta liga, pensa-se na definição da Organização
com a sua área de interesse . 2
Mundial de Saúde (OMS) de um “estado mental
A coordenação das ligas é realizada por de bem estar que possibilita que as pessoas lidem
docentes, e elas podem ser uniprofissionais ou com os estresses da vida, notem suas habilida-
multiprofissionais, contando com a autonomia des, aprendam e trabalhem bem e contribuam
dos discentes para conduzir a sua gestão. A dife- para a sua comunidade”6. Assim, a saúde mental
rença das ligas acadêmicas para os demais proje- é pensada de forma integrada, considerando os
tos acadêmicos está na autonomia confiada aos determinantes de saúde citados. Para respaldar o
discentes para conduzir o seu processo de aper- trabalho, o marco teórico adotado pela liga é o
feiçoamento e de ensino-aprendizagem em uma da atenção psicossocial.
determinada área2. A partir da lei da reforma psiquiátrica
A Liga Acadêmica de Saúde Mental brasileira, Lei federal nº 10.216, de 06/04/2001,

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 56-77, 2023.


Liga acadêmica de saúde mental: relato de uma experiência de educação interprofissional 70

é disposto um redirecionamento, no país como po, sob a lógica da atenção psicossocial, o cui-
um todo, do modelo assistencial em saúde men- dado interprofissional ganha forças. As ligas aca-
tal e os direitos das pessoas ditas portadoras de dêmicas têm sido uma forma de integrar alunos
transtornos mentais, de forma a indicar que os de graduação de diferentes núcleos à prática do
cidadãos sejam tratados preferencialmente em cuidado compartilhado, sendo compostas por
serviços comunitários, humanizados e respeito- grupos de alunos e docentes, dentro de um cam-
sos. Além disso, a lei também dispõe a respon- po de saber comum.
sabilidade do Estado no desenvolvimento da A partir destas considerações teóricas,
política de saúde mental7. Com base nesta lei, a o presente trabalho objetiva compartilhar a ex-
Portaria nº 336/2002 do Ministério da Saúde in- periência da Liga Acadêmica de Saúde Mental
dica os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) (LASM), da Universidade Federal de São Carlos
como serviços centralizados da atenção psicosso- (UFSCar), uma universidade pública situada no
cial8, onde são realizados os cuidados aos usuá- interior do estado de São Paulo.
rios dos serviços, atendendo às suas necessidades Para a realização do presente estudo,
e singularidade. utilizou-se a técnica de Relato de Experiência,
O cuidado integral consiste na inter- caracterizado por apresentar uma descrição de
profissionalidade, atento às diversas áreas cons- um fato a partir de uma experiência individual
tituintes da saúde, demandando olhares e fazeres ou em grupo11. Visa-se descrever as atividades
diversos que, quando relacionados, concretizam realizadas na Liga Acadêmica de Saúde Mental
a prática interprofissional. Por outro lado, a (LASM) entre os anos de 2016 a 2020, destacan-
formação fragmentada norteia o cuidado frag- do o seu enfoque em interdisciplinaridade, tanto
mentado, destoando da concepção de atenção no contexto presencial quanto remoto.
integral à saúde. Sendo assim, a Educação Inter-
profissional (EIP) e o trabalho colaborativo bus- RELATO DA EXPERIÊNCIA
cam superar esta fragmentação tanto no cuidado
quanto na formação, no contexto das instituições A LASM objetiva a integração entre

educacionais e dos currículos acadêmicos9, sendo ensino, pesquisa e extensão no campo da saúde
mental, sob a lógica da atenção psicossocial e a
a via pela qual os estudantes, entendidos como
EIP. Vincula-se a quatro departamentos da uni-
profissionais em período de formação, aprende-
versidade: Enfermagem, Medicina, Psicologia e
rão, de maneira integrada, a atuar em equipe10.
Terapia Ocupacional. Dividiremos sua história
Entendendo a saúde mental como cam-

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 56-77, 2023.


Carolina Serrati Moreno, Raiane Silva Sousa, Tauana Ferreira Ruteski, Israel Roberto de Rienzo, 71
Amanda Barbosa Ferrador, Jair Borges Barbosa Neto

em duas fases, a primeira do ano de 2016 até nal no ambulatório da Unidade Saúde Escolar
o de 2019 e a segunda, de 2019 até o final de da Universidade Federal de São Carlos (USE -
2020, tendo como foco a educação interprofis- UFSCar). Cada semana uma dupla de estudan-
sional para esta divisão. tes era responsável por sistematizar um caso, em
A LASM iniciou-se como uma iniciati- formato de um disparador, o qual era discutido
va de graduandos do curso de medicina, sendo em uma reunião entre ligantes e docentes, que
ligada ao Centro Acadêmico deste curso. Em seu problematizavam e refletiam sobre ele.
início, optou-se pela lógica de silos profissionais, Depois, eram realizadas buscas na li-
não se integrando com outros cursos. Apesar do teratura e, em um segundo encontro, à luz das
docente coordenador e alguns estudantes insis- evidências científicas levantadas, eram realiza-
tirem em um formato interprofissional, em vo- dos síntese e compartilhamento do material es-
tação, optou-se por manter-se composta apenas tudado. Em outras situações-problemas alguns
por estudantes da medicina no primeiro e segun- conteúdos e/ou habilidades eram desenvolvidas,
do anos. Em 2018, foram incluídos ligantes de como: luta antimanicomial, Rede de Atenção
enfermagem, medicina, psicologia e terapia ocu- Psicossocial (RAPS), cuidado centrado na pes-
pacional, mas não na sua gestão. Em 2019, em soa, ecomapa e genograma, e Projeto Terapêu-
seu quarto ano de funcionamento, abriu-se final- tico Singular (PTS). Isto possibilitou com que
mente a possibilidade de inclusão de estudantes os alunos trocassem experiências em relação às
dos quatro cursos na sua gestão, possibilitando práticas que ocorriam em seus respectivos cursos
a efetivação das ideias de núcleo e campo de sa- e ampliando o conhecimento sobre o cuidado e
beres12. o funcionamento da rede utilizando metodolo-
Além do foco na EIP em saúde, a gias ativas, que propiciam a construção do saber
LASM sempre prezou por manter as atividades interprofissional, não aprofundando os conheci-
pedagógicas orientadas por metodologias ativas mentos apenas em uma área de formação1,13.
de ensino-aprendizagem13, o protagonismo de Foram realizadas simulações da prática
seus integrantes e a articulação com atividades emergencial, com temáticas variadas, como risco
práticas. No início, nas atividades de ensino- de suicídio e agitação psicomotora, por exemplo.
-aprendizagem, a situação-problema era cons- Nelas, um estudante atuava como um usuário do
truída pelos próprios ligantes da medicina, que serviço, através de roteiros pré-estabelecidos, e
realizavam atendimentos em conjunto com uma outros como profissionais de saúde. O restante
equipe interprofissional e estudantes de gradua- dos ligantes assistiam à simulação e em técnica de
ção da medicina, psicologia e terapia ocupacio- “congela e descongela”, que envolvia o feedback

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 56-77, 2023.


Liga acadêmica de saúde mental: relato de uma experiência de educação interprofissional 72

das ações que estavam sendo realizadas, visando terprofissionalidade, com o compartilhamento
dar o suporte aos estudantes que estavam aten- de experiências teóricas e práticas pelos ligantes.
dendo para que pudessem alterar ou não a ação Este modelo, apesar de interessante do ponto de
que estavam realizando. Ao final da simulação, vista pedagógico, gerou uma baixa adesão de par-
discutia-se o atendimento realizado, levantando ticipação e relatos de desmotivação dos alunos
pontos a serem estudados. Num segundo mo- que participavam da Liga.
mento, após estudo e levantamento da literatura, Mediante a isto, em 2019, houveram
realizava-se a nova síntese do problema dispara- modificações nas atividades inicialmente pensa-
do na simulação. Esta atividade possibilitou que das e as atividades de extensão da LASM pos-
os ligantes pudessem desenvolver o trabalho em sibilitaram o contato prático com diversas áreas
equipe e resolução de problemas, habilidades ne- de saúde mental, visando suprir as demandas da
cessárias na prática profissional no trabalho in- comunidade interna e externa da universidade,
terprofissional¹. que chegavam até os diretores por meio de cen-
Em 2019, houve mudança de compo- tros acadêmicos e professores de diversos cursos
sição da gestão, abolindo-se o processo seletivo de graduação.
para ingressar na LASM, sendo que todos que Assim, os alunos voltaram a se envol-
se inscreviam eram incluídos aos ligantes. Ou- ver ativamente no processo de aprendizagem,
trossim, optou-se pela construção conjunta das questionando, discutindo, resolvendo proble-
temáticas dos encontros. Desse modo, todos os mas reais e desenvolvendo possíveis projetos em
participantes elegiam os temas para a discussão. grupo15. Esta mudança foi definitiva, já que se
Esse modelo inclusivo e participativo revela uma mostrou eficiente para a estimulação dos alunos
postura acolhedora e inclusiva da liga em conso- à construção do conhecimento e retomada de
nância com o ideal de universidade acolhedora14, seu protagonismo no processo de aprendizagem.
em prol do cuidado em saúde mental da comu- Internamente, entre os integrantes da
nidade universitária e de seus membros. diretoria da liga, ocorreu o desenvolvimento de
A partir de 2019, no primeiro momento reuniões e intervenções em um dos cursos de
as atividades aconteciam em encontros quinze- área de exatas da universidade, sendo realizada
nais presenciais, com todos os ligantes, nos quais parceria com o Centro Acadêmico do mesmo
discutiam-se temas específicos, seguindo um curso, de forma a lidar com questões ligadas à
texto base, escolhido por um dos coordenado- saúde mental dos alunos. Foram realizadas parce-
res. Foram realizadas construções teóricas mais rias com o Centro de Integração Empresa-Escola
aprofundadas dos temas de saúde mental e in- (CIEE), da cidade de São Carlos-SP, com a temá-

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 56-77, 2023.


Carolina Serrati Moreno, Raiane Silva Sousa, Tauana Ferreira Ruteski, Israel Roberto de Rienzo, 73
Amanda Barbosa Ferrador, Jair Borges Barbosa Neto

tica de prevenção ao suicídio, além de uma capa- modo, como nova estratégia de ensino, foi aplica-
citação de Saúde Mental para os funcionários da da a metodologia pedagógica ativa, dividindo-se a
área de Saúde do município de Araras/SP. Assim turma em pequenos grupos, facilitados por estu-
como, foram realizados atendimentos huma- dantes da diretoria da LASM.
nizados e interdisciplinares, com a presença de Devido à pandemia do Covid-19, houve
psicólogos, enfermeiros e assistentes sociais, no interrupção das atividades presenciais, mas logo
serviço de acolhimento da USE, se baseando na os integrantes da LASM inclinaram-se a estender
Política Nacional de Humanização16. Essas ati- as atividades para plataformas on-line, já que era
vidades realizadas tanto com o público externo necessário o isolamento social. Assim, as reuni-
quanto o interno da universidade, propiciaram ões quinzenais com discussões teóricas voltaram
que os ligantes fossem expostos na prática à im- a ocorrer, desta vez abertas para todo o público
portância da EIP na construção e o papel de cada universitário, tendo como foco a própria situa-
profissional no cuidado da atenção psicossocial¹. ção de isolamento, o que possibilitou a abertura
Paralelamente, seguindo os três pilares de um espaço de conversa e troca de experiências
fundamentais da universidade pública – ensi- pessoais. Foram realizadas reuniões com temáticas
no, extensão e pesquisa – também se priorizou escolhidas pelos estudantes, e ministradas por do-
às pesquisas. Estas iniciaram-se com a coleta e a centes especialistas nos assuntos abordados, tam-
organização dos dados produzidos a partir da re- bém abertas ao público, para que pudessem ter
alização das demais atividades durante o segun- um contato maior com a prática e a teoria relacio-
do semestre do ano de 2019. Para isso, a equi- nadas aos temas.
pe participou de congressos científicos, sendo Além disso, foi criada uma página on-line
publicados e apresentados resumos e relatos de de discussão no modelo fórum virtual, para com-
experiência. Isto fez com que a equipe pudesse partilhamento de materiais, esclarecimentos de
trocar conhecimentos com outras ligas, discentes dúvidas e discussões, com as temáticas abordadas.
e docentes, propiciando assim a divulgação cien- Também se organizou um evento aberto ao públi-
tífica e construção de saberes interprofissionais co, à distância e on-line, no qual se discutiu, prin-
para além dos estudantes ligantes. cipalmente, a temática da Luta Antimanicomial.
Em 2020, foram realizadas pesquisas Foram realizadas lives e palestras gravadas com
por meio de questionários on-line para compre- especialistas. Mesmo no período de suspensão das
ender o. Os principais resultados sinalizaram a atividades na universidade, a LASM perseverou
não integração entre teoria e prática como algo em sua demanda de disponibilizar um espaço de
negativo e desmotivador aos participantes. Desse aprendizado para a comunidade externa e interna

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 56-77, 2023.


Liga acadêmica de saúde mental: relato de uma experiência de educação interprofissional 74

da universidade. seja, a partir do trabalho colaborativo das diversas


É inexorável, também, a capacidade áreas constituintes da saúde, há a possibilidade de
da equipe de modificação das atividades da liga diferentes olhares e fazeres diante daquela demanda
de acordo com o contexto vivenciado, já que se que nos é posta e, juntas, oferecem uma atenção
priorizou o bem-estar mental de seus membros, integral à saúde. Desse modo, temos a relevância
que passavam por um cenário muito diferen- de um trabalho interprofissional, a equipe profis-
te do habitual, que é marcado por sofrimento sional (a partir de suas especificidades) junto com o
emocional do público-alvo da liga – universitá- indivíduo que demanda auxílio, juntos, constroem
rios, em sua maioria17. os possíveis caminhos de cuidado para este sujeito.
Temos aqui, o potencial de uma Liga Aca-
DISCUSSÃO dêmica interprofissional em saúde, pois possibilita
que profissionais em período de formação apren-
O ser humano é um sujeito completo dam, de maneira integrada, a atuar em equipe de
e complexo. Completo pois, ao mesmo tem- forma participativa e inclusiva; tanto por meio do
po que, enquanto indivíduo, se re(faz) a partir Ensino (discussões de caso e outras atividades pau-
de seus modos de produção de sua compreen- tadas na Metodologia Ativa), na prática a partir
são de mundo, também é um sujeito social na Extensão e na pesquisa compreendendo, por exem-
medida que se relaciona com o outro a partir plo, a importância de levantamento epidemiológi-
de seus diferentes papéis sociais (pai e/ou mãe, co para a gestão em saúde.
amigo(a), filho(a), neto(a), etc.) - onde essas re- Não obstante, a pandemia veio a transfor-
lações intersubjetivas produz um sujeito ativo mar as relações humanas a nível global. Tivemos
integrante de uma cultura, de uma sociedade que reaprender a nos relacionarmos com o outro,
e, consequentemente, parte da história huma- seja por meio de medidas de cuidado, como a
na. É complexo pois seu desenvolvimento vai adoção de máscara facial e distanciamento social,
se construindo a partir de suas experiências, por quanto utilizando-se de novas ferramentas, como
meio da interrelação entre fatores sociais, bioló- as possibilitadas pela internet e aparelhos eletrô-
gicos, psicológicos, econômicos, este sujeito vai nicos. Toda essa mudança abrupta tem efeitos na
se transformando e transformando o mundo à saúde mental. Consequentemente, faz-se ainda
sua volta, de forma dialética, ao longo de toda mais importante o cuidado interprofissional, tanto
a sua vida. Portanto, um cuidado fragmentado para juntos, compreendermos essa nova realidade
não é suficiente para, de fato, cuidar desse ou- que nos foi posta, podendo oferecer os melhores
tro que demanda suporte, auxílio, vínculo - ou

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 56-77, 2023.


Carolina Serrati Moreno, Raiane Silva Sousa, Tauana Ferreira Ruteski, Israel Roberto de Rienzo, 75
Amanda Barbosa Ferrador, Jair Borges Barbosa Neto

caminhos de cuidado, quanto também, juntos, Romper com a lógica da especialização


nos cuidarmos e nos fortalecermos quanto se- precoce é um desafio para todos os envolvidos,
res humanos que somos - entendendo que antes pois estas práticas já estão enraizadas na estrutu-
mesmo de profissionais de saúde, também somos ra acadêmica, em que seus participantes, tanto
sujeitos inseridos em uma realidade que nos afeta docentes quanto discentes, em sua maioria, ad-
tanto quanto afeta qualquer outro ser humano. quirem sua formação pautada nesta ideia. Para
No sentido de tornar-se instrumento isso, é necessário um constante movimento de
de exploração da autonomia, da criticidade, da resistência para que seja possível repensar e re-
criatividade e do comprometimento, em detri- modelar esta estrutura, que, muitas vezes, mos-
mento de práticas isoladas que induzem ao risco tra-se insuficiente para lidar com as demandas da
de especialização precoce20, a LASM, desde sua comunidade interna e externa à universidade.
fundação, dedica-se para que o protagonismo
dos estudantes e a atuação na prática sejam in- AGRADECIMENTOS

tegradoras dos diversos cursos de graduação e


Agradecemos aos estudantes e docen-
libertadora da lógica biologicista e de especiali-
tes que participaram ativamente da LASM e
dades. Ademais, preza-se pela emancipação dos
também à Pró-Reitoria de Extensão da Uni-
estudantes no sentido de atuarem na prática com
versidade Federal de São Carlos (processo:
autonomia, experimentando, atuando e mode-
23112.002896/2021-32).
lando o ensino, a pesquisa e a extensão na uni-
versidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS v12i5a234589p1486-1490-2018>.

1. Silva JVS, Santo Júnior CJS, Santos LDL, et 3. Câmara AMCS, Cyrino AP, Cyrino
al. Liga acadêmica interdisciplinar de saúde EG, et al. Educação interprofissional no
mental: ampliando a formação e as práticas Brasil: construindo redes formativas de
no campo da atenção psicossocial. Medicina educação e trabalho em saúde. Interface.
(Ribeirão Preto) [Internet]. 2021;54(2). 2016;.20(56):5-8. Disponível em: <https://
Disponível em: <https://doi.org/10.11606/ doi.org/10.1590/1807-57622015.0700>.
issn.2176-7262.rmrp.2021.174130>. 4. Peduzzi M. O SUS é interprofissional.
2. Silva DP, Raimundo ACL, Santos Interface. 2016;20(56):199-201. Disponível
IMR, et al. Proposição, fundação, em: <https://doi.org/10.1590/1807-
implantação e consolidação de uma 57622015.0383>.
liga acadêmica. Rev enferm UFPE. 5. Dias IV, Batista SHSS, Uchôa-Figueiredo
2018;12(5):1486-92. Disponível em: LR, et al. Educação interprofissional e
<https://doi.org/10.5205/1981-8963- formação em saúde: pontes e diálogos.

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 56-77, 2023.


Liga acadêmica de saúde mental: relato de uma experiência de educação interprofissional 76

In: Uchôa-Figueiredo LR, Rodrigues em: <https://doi.org/10.1590/S0080-


TF, Dias IMAV, editors. Percursos 623420130000400029>.
interprofissionais: formação em serviços no
11. Casarin ST, Porto AR. Relato de Experiência
programa de residência multiprofissional
e Estudo de Caso: algumas considerações.
em atenção à saúde. Porto Alegre (RS):
Journal of nursing and health. 2021;11(2):1-
Editora Rede Unida, 2016. p. 107-
3. Disponível em: <https://periodicos.ufpel.
23. Disponível em: <https://portolivre.
edu.br/ojs2/index.php/enfermagem/article/
fiocruz.br/percursos-interprofissionais-
view/21998>.
forma%C3%A7%C3%A3o-em-
servi%C3%A7os-no-programa- 12. Campos GWS. Saúde Pública e saúde
resid%C3%AAncia-multiprofissional-em>. coletiva: campo e núcleo de saberes e práticas.
Ciência Saúde Coletiva. 2000;5(2):219-30.
6. World Health Organization [Organização
Disponível em: <https://doi.org/10.1590/
Mundial de Saúde]. Mental health:
S1413-81232000000200002>.
strengthening our response [Saúde mental:
fortalecendo nossa resposta] [Internet]. 2022. 13. Lima VV. Espiral construtivista: uma
Disponível em: <https://www.who.int/en/ metodologia ativa de ensino-aprendizagem.
news-room/fact-sheets/detail/mental-health- Interface. 2017;21(61):421-34. Disponível
strengthening-our-response>. em: <https://doi.org/10.1590/1807-
57622016.0316>.
7. Brasil. Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001.
Dispõe sobre a proteção e os direitos das 14. Venturini E, Brandão Goulart MS.
pessoas portadoras de transtornos mentais e Universidade, solidão e saúde mental.
redireciona o modelo assistencial em saúde Interfaces - Rev. de Ext. UFMG [Internet].
mental. Diário Oficial da União 9 abr 2001. 2016;4(2):94–136. Disponível em:
Disponível em: <https://www.planalto.gov. <https://periodicos.ufmg.br/index.php/
br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10216.htm>. revistainterfaces/article/view/18985>.
8. Vieira Filho NG, Nóbrega SM. A atenção 15. Barbosa EF, Moura DG. Metodologias ativas
psicossocial em saúde mental: contribuição de aprendizagem na educação profissional
teórica para o trabalho terapêutico em rede e tecnológica. B. Tec. Senac [Internet].
social. Estudos de Psicologia. 2004;9(2):373- 2013;39(2):48-67. Disponível em: <https://
7. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/ www.bts.senac.br/bts/article/view/349>.
S1413-294X2004000200020>.
16. Brasil. Ministério da Saúde. Política Nacional
9. Rios DRS, Sousa DAB, Caputo MC. de Humanização da Saúde [Internet].
Diálogos interprofissionais e interdisciplinares Documento Base, 1ª ed. Brasília (DF):
na prática extensionista: o caminho para a Ministério da Saúde; 2013. Disponível
inserção do conceito ampliado de saúde na em: <https://www.gov.br/saude/pt-br/
formação acadêmica. Interface-Comunicação, acesso-a-informacao/acoes-e-programas/
Saúde, Educação [Internet]. 2019;23. humanizasus>.
Disponível em: <https://doi.org/10.1590/
Interface.180080>. 17. Gundim VA, Encarnação JP, Santos FC, et
al. Saúde mental de estudantes universitários
10. Peduzzi M, Norman IJ, Germani ACCG, durante a pandemia de Covid-19. Rev.
Silva JAM, et al. Educação interprofissional: baiana eferm. [Internet]. 2020;35. Disponível
formação de profissionais de saúde para o em: <https://periodicos.ufba.br/index.php/
trabalho em equipe com foco nos usuários. enfermagem/article/view/ 37293>.
Revista da Escola de Enfermagem da
USP. 2013;47(4):977-83. Disponível

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 56-77, 2023.


Carolina Serrati Moreno, Raiane Silva Sousa, Tauana Ferreira Ruteski, Israel Roberto de Rienzo, 77
Amanda Barbosa Ferrador, Jair Borges Barbosa Neto

18. Cavalcante ASP, Vasconcelos MIO, Lira GV, de reorientação da formação profissional
et al. As ligas acadêmicas na área da saúde: em saúde no Brasil. Saúde em Debate.
lacunas do conhecimento na produção 2019;43(spe.1):86-96.
científica brasileira. Rev. Bras. Educ. Med.
20. Silva SA, Flores O. Ligas acadêmicas no
2018;42(1):199-206.
processo de formação dos estudantes.
19. Freire JR, Silva CBG, Costa MV, et al. Revista Brasileira de Educação Médica.
Educação interprofissional nas políticas 2015;39(3):410-25.

Diálogos Interdisciplinares em Psiquiatria e Saúde Mental, Fortaleza, v. 2, n. 1, p. 56-77, 2023.

Você também pode gostar