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15/04/2011 Morfologia social ou geografia humana
civilizações, recebeu ela do exterior as suas regras imperativas. Recebeu-as, não das condições
geográficas, mas do poder dominante, superior, do Estado — da sociedade política no seu
conjunto(5). Uma vez dada a organização familiar, nada mais provável que a cultura do arroz nos
países do Extremo Oriente, onde é predominante, tenha contribuído para manter e aumentar o
seu poder e a sua influência; mas não devemos ir mais longe e repitamos com DURKHEIM —
desta vez sem reservas nem limitações: não há dúvida de que as influências geográficas estão
longe de ser desprovidas de importância; «mas não parece que tenham o tipo de preponderância
que se lhes atribui... Entre todos os traços constitutivos dos tipos sociais não há nenhum, que nós
saibamos, que elas possam explicar). E acrescenta: aliás, como seria isso possível. «uma vez que
as condições geográficas variam de lugar para lugar, enquanto se encontram tipos sociais
idênticos (abstração feita das alterações individuais) nos mais diversos pontos do globo?
Ainda um exemplo. Em tal matéria não se deve recear multiplicar os exemplos. A habitação
humana, a casa, é, evidentemente, um dos traços mais notáveis destas «paisagens humanizadas’
que se nos apresentam e que precisamente o geógrafo deve estudar: é tão familiar a nossa vista
nas regiões ocidentais que a sua ausência prolongada nos faz verdadeiramente sofrer: numa
solidão selvagem e desolada, nos cabos extremos dessa Armórica que um mar feroz assalta
infatigavelmente, um moinho estendendo as suas duas asas em cruz na linha do horizonte rígido e
nu faz sentir não se sabe que sentimento de confiança e de paz: um pouco daquela emoção que,
nos altos planaltos do Tibet, sentiu um Perceval Landon, em marcha sobre Lhassa, ao contemplar,
por acaso, a frágil silhueta de um salgueiro de verdes folhas. Ora diremos nós (e já foi dito) que
esta casa, esta habitação do homem, por muito adaptada que esteja, quer pelo seu aspecto, quer
pelas suas disposições e materiais, ao solo em que assenta e ao clima em que se encontra, é um
fato geográfico? Claro que não! Um fato humano, se assim se quiser—o que não é a mesma
coisa.
Há geografia num campo de trigo. Um campo de trigo não é um fato geográfico. Pelo
menos, só o é para um geógrafo. Este não tem de estudar a "casa",mas somente o que nela há
de geográfico — e nem tudo é geográfico numa casal e competirá porventura à geografia
determinar qual é a idéia essencial dessa mesma casa. Seria certamente demasiado fácil alinhar
aqui uma série de citações que revelariam em alguns geógrafos uma preocupação medíocre
com tudo o que lhes não diz respeito, uma espécie de desprezo jovem, cândido e um tanto
irritante de vizinho— nada menos que uma propensão um tanto incômoda para usar palavras e
fórmulas simultaneamente cortantes e sumárias. Munidos de duas ou três grandes chaves para
todo o serviço, quantos não vão estouvadamente pelo mundo, experimentando-as sucessivamente
em todas as portas que encontram Ficam felicíssimos quando se lhes depara uma que o
instrumento abre o melhor que pode. «A primeira necessidade do homem é a água. Quando a
água superficial é rara, como em Beauce, na penuriosa Champanha, e nas regiões calcárias, em
geral, as aldeias agrupam-se em grandes aglomerados á volta de alguns pontos de água
existentes, ou então escalonam-se muitas vezes por vários quilômetros ao longo dos cursos de
água. Quando a água é abundante e surge por toda a parte, como na Ille-de-France, Limousin,
Bretanha, País de Gales, etc., as habitações disseminam-se ...". Depois vêm dois extratos de um
mapa em grande escala para comprovar o texto; e eis formulada uma lei geral, uma lei
geográfica constante, de que nada vem limitar a aplicação ou precisar o alcance. Ora é evidente
que, «se a água surge à menor perfuração, as casas poderão distribuir-se pelo campo e que
semelhante isolamento será menos fácil no caso contrário». Poderão ... de fato, só se trata de
possibilidades. E se é indiscutível a influência do meio físico local, quer isso dizer que se exclua
qualquer outra Porventura não se poderá dar o caso. por exemplo, de pormenores de
construção e de disposição, e às vezes a própria estrutura da aldeia, terem sido concebidos num
outro solo, num outro clima, por uma população de emigrantes; Não pode porventura suceder
que os recém vindos tenham edificado e disposto as suas habitações segundo a forma
consagrada na sua região de origem? Não se poderá verificar o fato de esse tipo se ter
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modificado, dado que a experiência não permitiu que se conservasse intacto, embora sem se
obliterar por completo ? De fato, vejamos a região de Caux: população disseminada a oeste e
concentrada a leste: as condições físicas num lado e noutro são, contudo. quase idênticas e nada
impediria que a leste se estabelecessem albufeiras e que a oeste se perfurassem poços de água.
A herdade cauchesa. de tipo tão constante, está sem dúvida adaptada ás necessidades da
exploração local. Mas outras herdades, construídas segundo um plano diferente, também se
adaptariam perfeitamente. Observações de geógrafo, dir-se-á. Elas provam à evidência que o seu
autor não está, por seu turno, disposto a contentar-se com as grandes chaves de que falávamos
atrás. Provam simplesmente que, ainda em muitos. casos, investigadores seduzidos a seguirem só
a sua pista nem sempre ignoram a arte dos corretivos nem a necessidade de, por vezes, olhar
para o lado do vizinho. Nesta questão da casa há uma tendência espontânea para desprezar, se
não para negar, as influências étnicas que um MEITZEN tinha apresentado sem análise critica, mas
que não deixam por isso de existir, ou as influências históricas, que não são todas forçosamente
(étnicas» e cuja ação é necessário definir quando a análise geográfica é incapaz de satisfazer;
desconhecimento inconsciente ou propositado do jogo das tradições. da ação persistente das
causas sociais não terão os sociólogos razão em censurar aos geógrafos estes defeitos tão
conhecidos? Defeitos de uma ciência jovem, exuberante e que não sabe, ao limitar o seu próprio
domínio, respeitar por via indireta o domínio do vizinho.
Recapitulemos. Agora compreende-se melhor aquilo que os partidários da morfologia social
querem dizer quando denunciam «essa disciplina de grandes ambições que a si própria se designa
por geografia humana». Na sua pena, a censura de ambição implica duas acusações diferentes.
Os geógrafos querem explicar pela geografia, ou, pelo menos, reivindicam como seu campo de
investigação as sociedades humanas, das menores às mais vastas, das mais rudimentares às mais
complexas; ao ouvi-los dir-se-ia que todos os grupos sociais são justificáveis por meio da sua
ciência, quando, de fato, não é isso que sucede: na realidade, em boa lógica escapam á sua
influência todos os agrupamentos não territoriais. Por outro lado, no que se refere aos próprios
grupos sociais que estão incontestàvelmente relacionados com os seus métodos, pretendem
explicar um número demasiado grande das suas manifestações por meio da geografia e só pela
geografia. Abusos manifestos, que, por seu turno, serão ignorados por uma ciência sociológica
de perspectivas modestas e marcha prudente — porque essa tem objetivos limitados e
antecipadamente definidos...
Quanto ao primeiro ponto, já nos explicamos. Nada há de decisivo nas acusações que se
fazem ou podem fazer ã geografia. Há grupos humanos em cuja gênese o solo, enquanto solo
bruto, solo puro, se assim se pode dizer, representa um papel insignificante, uma vez que esses
grupos não têm solo seu, ou, mais exatamente, uma vez que não talharam o seu bocado
particular no tecido universal. Mas há outros fatores geográficos além do «solo» influir na vida das
sociedades. E à influência destes últimos fatores não escapam, de modo algum, os homens
componentes de grupos não territoriais de que se está falando — e que, aliás, se intercalam
igualmente noutros grupos, esses então de base territorial. E acaso escaparão realmente esses
primeiros grupos não territoriais à própria influência do solo? Se não escapam, não é a
morfologia social que nos poderá informar sobre as modalidades da influência exercida nem
sobre as suas conseqüências, uma vez que se proíbe a si própria de se ocupar de outra coisa que
não sejam formas. Haverá necessidade de escolher? Não se concebe por que razão se terá de
escolher. Na verdade verifica-se, afinal, que não há equivalência entre os dois termos cuja escolha
nos é proposta.
Quanto ao segundo ponto: «Quando se passa em revista», escreve Durkheim a propósito de
Ratzel. «tal multiplicidade de fatos com o único objetivo de investigar que papel representa, na sua
gênese, o fator geográfico, é se necessàriamente levado a exagerar-lhe a importância,
precisamente porque se perdem de vista os outros fatores que também intervêm na produção
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desses fenômenos». Objeção muito sensata. Mas o «necessariamente» é, sem dúvida, um pouco
forte. Que se aplique a Ratzel, é muito possível. Em todo o caso, conviria não generalizar nem
pretender atribuí-lo funcionalmente a todos os geógrafos. (Na feição atual dos nossos velhos
países históricos cruzam-se e interferem causas de toda a ordem. O seu estudo é delicado.
Determinam-se ai grupos de causas e efeitos, nas nada que se assemelhe a uma impressão total
de necessidade. E patente que, em dado momento, as coisas teriam podido tomar outro curso e
que o curso tomado dependeu de um acidente histórico. Não há motivos para considerarmos a
existência de um determinismo geográfico: o que não significa que a geografia seja por isso urna
chave que possa ser dispensada». E mais adiante: na explicação de fatos bastante complexos
submetidos a circunstâncias diversas de tempo e de lugar, a análise geográfica, tanto como a das
influências étnicas e históricas, deve desempenhar o seu papel: o emprego exclusivo de um modo
de interpretação não poderia satisfazer uma inteligência ansiosa de realidade, e não de sistema).
Onde encontrar, nestas linhas comedidas ou no livro a que elogiosamente se referem e que
recomendam ao leitor, vestígios desse preconceito de <<necessidade>> de que Durkheim falava,
desse exclusivismo de que fala algures MAuss? Ora essas linhas são da autoria de um geógrafo
bem qualificado como tal: Vidal de La Blache.
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sofre grandes eclipses; se é verdade que a dialética de Ratzel não tem receio das mais flagrantes
contradições: terá interesse explicar tudo por meio destes enfraquecimentos de doutrina? Não
pensamos que assim seja. Na nossa opinião, o erro de RATZEL foi ter aceitado com demasiada
facilidade certos problemas na própria forma como eram postos pela tradição. O seu vício foi o
de não pensar em rever com seriedade os seus termos e o seu enunciado. Ele e os seus
discípulos, assim como os geógrafos de outras escolas, na medida em que merecem e justificam
as críticas acima reproduzidas, são talvez, e antes de mais, somente vítimas: vítimas de
circunstâncias de ordem cronológica independentes da sua vontade; mais claramente, vitimas da
história.
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explicar, mas de o justificar. Efetivamente, presidia às suas investigações um ingênuo finalismo,
assim como a idéia, mais ou menos consciente, de que uma espécie de necessidade prévia
impunha aos Estados a forma que tinham...
Assim, no quadro tradicional das cinco panes do mundo inscreviam-se com normalidade
remos e repúblicas. Compartimentos estanques, rígidos e providencialmente pré-formados, feitos
para os receber e bem dotados de «fronteiras naturais», recebiam-nos na realidade. De resto,
notemos que as primeiras tentativas daqueles que, no inicio do século, se esforçaram por
instaurar, com o nome de geografia comparada, uma disciplina mais verdadeiramente cientifica
não eram de molde a desviar os historiadores das suas concepções.
Quando KARL RITTER procurava pôr as formas geográficas em contraste umas com as
outras, fazia-o com os continentes, as velhas «partes do mundo», essas criações da mais antiga
história que ele enfrentava. Via complacentemente nos continentes outros tantos (indivíduos
terrestres». E à África maciça, de civilizações rudimentares, opunha ele a Europa recortada,
precoce e requintada, velho tema tantas vezes retomado desde então; tomava-se o todo, como se
a Europa. a Ásia, a África, a América, «unidades’ desconhecidas dos modernos geólogos.
botânicos ou zoólogos, tivessem sido, na verdade, outra coisa mais do que coleções de
fragmentos heterogêneos — agregados díspares de peças e bocados.
De pura forma parecerá esta questão das divisões. Mas, na realidade, é primordial. Ela entra
em relação, como já foi excelentemente demonstrado, com a própria concepção que se faz da
geografia — e é preciso reler, a este respeito, o notável artigo de Vidal de La Blache «As divisões
fundamentais do solo francês, publicado em 1888 numa revista pedagógica e mais tarde
reproduzido, a guisa de introdução, no início de um manual de ensino secundário. Mas no tempo
de Ratzel, e mesmo mais tarde, ninguém se apercebia do problema.
Foi em vão que, a partir do final do século XVIII, um Gettard, um MONNET, um Giraud-
Soulavir entreviram a preciosa noção de região natural: Gallois, no seu livro decisivo, estabelece-a
de uma forma incontestável. Foi em vão que, mais tarde, um COQUEBERT de MONTBRET, um
Omalius d'Hallot procuraram dividir as regiões "combinando a natureza e o espírito do terreno
com as posições geográficas"; foi em vão mesmo que Caumont, Antoine Passy, Dufrenoy e Elie
de Beaumont (estes últimos em 1841, na sua célebre Explication de la carte géologique)
proclamaram, com singular audácia e previsão, a ligação da geografia tísica com a geografia
propriamente dita, por um lado, e da geografia com a geologia, por outro, e justificaram a
absoluta necessidade para o geógrafo de tomar como objeto de estudo as verdadeiras regiões
naturais: conceitos de geólogos, que os geógrafos do tempo de forma alguma pareciam
entender.
A todos parecia mais simples instalarem-se — à maneira de bernardos-eremitas — nas
velhas conchas da história política e administrativa. Depois de terem descrito a França nas suas
províncias, dissecaram-na nos seus departamentos. E mesmo quando se esforçavam por ir
buscar à natureza algum princípio de divisão mais racional, a idéia puramente política de uma
fronteira linear, de uma linha rígida de demarcação, absorvia as suas preocupações. Já no
princípio deste século o redator geográfico de Statistique genérale et particuliêre de la France,
escrevia o seguinte: Consideramos a França dividida em dez partes principais, a que se deu o
nome de regiões. Este método pareceu-nos tanto mais vantajoso quanto é independente de todas
as divisões que a política ou a administração poderiam considerar úteis. Muito bem; mas
acrescenta logo a seguir: «Cada uma destas dez regiões é composta de um número de
departamentos pouco mais ou menos igual>>.
De resto, para que remontar tão atrás? Não vimos nós ainda os discípulos atrasados de
Buache repartirem também, melhor ou pior, os departamentos pelo leito de Procusta das bacias
fluviais, rigorosamente rodeadas pelas "linhas de divisão das águas", essas cadeias montanhosas
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que, nos mapas, atravessavam os (pântanos do Pripet» ou corriam alegremente de uma ponta à
outra da Europa, «desde o cabo Vaigatz até ao cabo Tarifa>>?
Historiadores ou geógrafos: tanto nuns como noutros, a mesma preocupação exclusiva das
formas, no seu sentido mais superficial, no sentido gráfico do termo — naquele sentido que, na
mesma época, lhe era dado por um INGRE5, nas suas controvérsias estéticas com um DeLACR0IX
—, mas nem a história nem a geografia tinham então os seus DeLACROIX».
Falava-se das relações entre o solo e a história. O solo era, por assim dizer, o solo vazio, o
solo puro, o solo independente da sua cobertura viva de animais, plantas, árvores, seres
humanos. Era o solo-chão, o solo-suporte, o solo, grande tecido rígido no qual os Estados tinham
talhado os seus domínios. E segundo que contornos? Eis aquilo que se estudava, o único fato que
preocupava os investigadores.
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Fizemos atrás referência à confusão, inicialmente tão vulgar e, aliás, tão natural, entre as
divisões políticas e as divisões propriamente geográficas. Mas acaso não considerava um
geógrafo, ainda há pouco, como quadro de um estudo «de geografia física e de civilizações
indígenas (era o subtítulo da obra), os limites políticos, ou, antes, administrativos, de um
fragmento de uma seção de colônia francesa, sem qualquer preocupação em procurar. para sua
delimitação e caracterização, o que poderia haver de «regiões naturais>> no vasto território que
assim se submetia á observação?
Já fizemos também referência ao preconceito gráfico», se assim se pode dizer, de um
Ritter quando compara contornos sem se preocupar nada com a sua gênese, «da mesma forma
que, em etnografia, se falaria dum negro ou, em botânica, de uma palmeira. Mas nos nossos
dias, e regularmente — ainda há pouco tempo um geógrafo chamava a atenção para o processo
e o denunciava, não vimos nós comparar entre si regiões tão diferentes como, por exemplo, a
Itália e a Coréia ? Encantado da vida, o amador de formas segue nos mapas de pequena escala,
nos Atlas escolares, os contornos dessas duas penínsulas; vê-as, descreve-as como igualmente
alongadas, orientadas de modo semelhante, cortadas da mesma forma por uma cadeia de
montanhas, e, para completar o paralelo, compara, pela sua posição, Seul e Roma, os dois
centros políticos.
Havíamos feito, para terminar, referência ao preconceito de predestinação. Mas quantos
livros não há ainda em França, Inglaterra, Itália, Espanha onde se descrevem estes países como
outros tantos seres geográficos. onde se faz salientar a sua homogeneidade verdadeiramente
providencial, enquanto a Lorena, Borgonha, Franco-Condado, Provença representam, por sua
vez, regiões naturais, quadros fabricados por toda a eternidade para alojar as províncias? Como
se nós não devêssemos examinar com a mais minuciosa atenção crítica a lista dos próprios
países, essas unidades de base, velhíssimas unidades terrestres, designadas, por vezes, por
remotíssimos nomes!
Assim se perpetuam velhos preconceitos. Assim se continuam a formular, na forma
tradicional, problemas que o tempo renova sempre. E precisamente o erro de Ratzel —na medida
em que há erro — reside aí. O autor da Antropogeografia não se libertou inteiramente de uma
tradição bastarda; ou, mais exatamente, depois de lhe ter dado, na parte mais fecunda e
propriamente geográfica da sua obra, o golpe mais importante, não a soube repelir por
completo.
Há na Antropogeografia —dizia Durkheim— três ordens distintas de questões — a terceira
das quais muito diferente das duas primeiras. Isto é exato, e a própria observação, a verificação
desta diferença, talvez pudesse ter levado o seu autor a uma longa reflexão. Da mesma forma,
Vidal de La Blache, ao estudar o lugar do homem na geografia, diz que (estudar no homem um
dos poderosos agentes que trabalham na modificação das superfícies é uma questão
propriamente, puramente geográfica», questão essa, acrescentaremos nós, que, como
precursor, BUFFON viu com clareza e pos com grande vigor. Outra questão completamente
diferente é «saber que influência exerceram as condições geográficas sobre os destinos
humanos, e particularmente sobre a sua história». No dizer de RATZEL, era procurar os
princípios da aplicação da geografia à história. Num e noutro lado a distinção é a mesma. O erro
do professor de Leipsig foi bem o de não ter escolhido entre as duas questões — de as ter
recolhido, examinado e apresentado ao mesmo tempo no seu livro.
E receamos bem que não suceda assim só na Antropogeografia, mas talvez mesmo na
Politische Geographie. Não é este, evidentemente, o lugar próprio para renovar uma crítica muitas
vezes feita — e bem feita — às idéias ramalhudas e por vezes contraditórias de Ratzel sobre o
papel predominante que na vida dos organismos políticos representaria o espaço puro, o espaço
tomado em si mesmo e independentemente dos caracteres geográficos que nós julgávamos
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serem inseparáveis desses mesmos organismos. Mas se RATZEL elaborou esta teoria, a tal ponto
criticável que ele mesmo, no seu próprio livro, por outra via, a destruiu, fe-lo levado por uma
idéia política; é que se lhe impunha uma concepção tradicional; é que, abrangendo numa visão
global todos os Estados dispersos à superfície do globo, reduzia-lhes a sua vida múltipla, rica e
variada a uma única manifestação; ao desejo, à esperança, à permanente avidez de extensão—
termo científico para designar simplesmente a ambição conquistadora, esse sinal essencial,
segundo RATZEL, esse critério infalível da vitalidade e grandeza dos Estados. Mas quem não
reconhece aqui, apesar de uma transposição sábia e muito filosófica, a velha atitude que há pouco
caracterizamos, a preocupação predominante e simplista das formas exteriores, dos limites
graficamente definidos, dos <<contornos>> — a docilidade, numa palavra, às sugestões da
história política e territorial?
Ao fazer referência a um livro de ARNOLO GUY0T, J.J.Ampere escrevia que GUYOT tentou
explicar a história pela geografia. Vigorosamente, VIDAL DE LA BLACHE, que cita a frase, declara
que essa pretensão, se fosse desenvolvida, não seria mais razoável do que a de dispensar a
geografia na explicação da história. Nada mais exato. Fatos históricos e fatos geográficos são
hoje, para nós, duas ordens distintas de fatos. É impossível, é absurdo querer intercalar uns na
série dos outros, como outros tantos elos de anéis intermutáveis. Há dois encadeamentos; que
permaneçam separados; porque, de contrário, que necessidade há de os distinguir?
Apreender e revelar, em cada momento da sucessão, as complexas relações que os
homens, autores e criadores da história, mantêm com a natureza orgânica e inorgânica, com os
múltiplos fatores do meio físico e biológico. é o papel característico do geógrafo quando se aplica
aos problemas e às investigações humanas; vamos tentar mostrá-lo de urna forma mais ampla. E
mesmo essa a tarefa do geógrafo. Só terá outras por usurpação e capitulação. No início, em
plenos meados do século, os historiadores não viam com nitidez que assim era. E onde o
poderiam ter apercebido? A geografia — que só existia como ciência descritiva, como
nomenclatura — punham somente questões no exclusivo interesse dos seus trabalhos. E eles
mesmos respondiam, a maior parte das vezes, como historiadores: aliás, os geógrafos do seu
tempo não teriam respondido de outra forma. Mas quando hoje há geógrafos que, esquecidos
dos progressos realizados pelo seu próprio esforço, se demoram ainda em semelhantes
problemas, sempre postos de maneira tradicional — e quando há sociólogos (com reserva de
algumas restrições e delimitações "razoáveis") que se tornam, no fundo, pura e simplesmente
candidatos à sua sucessão —, é, sem dúvida, fácil de apreender simultânea- mente a origem e o
vício de semelhante situação. Assim como claramente se vê que o debate sobre o método e a
própria historização dos fatos tem mais valor do que uma simples curiosidade.
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tas outras ciências naturais)), na idéia da unidade terrestre, tem por missão especial investigar
como é que as leis físicas e biológicas que regem o mundo se combinam e se modificam ao
aplicarem-se às diversas partes da superfície do globo. Ela tem por tarefa especial estudar as
expressões mutáveis que a fisionomia da Terra toma, conforme os lugares).
A definição teria seduzido ALEXANDRE DE HUMBOLOT, fundador da geografia botânica,
sempre tão preocupado, nas suas viagens e nos seus escritos, com a análise das paisagens. E
bem sabido como Vidal de La Blache era pessoalmente excelente nessa análise e também como
tinha meditado longamente a obra de Humboldt, tal como a de RITTER. Notável coincidência: lia-se,
na mesma data, numa tese geográfica interessante e original, a afirmação seguinte: De bom
grado diríamos que na análise da paisagem está toda a geografia>>; e mais adiante: <As idéias de
um biogeógrafo nascem todas da contemplação da paisagem>>. Fórmulas interessantes, embora
se lhes possam pôr algumas reservas; mas acaso não excluirão, não porão fora do domínio
geográfico todo o conjunto de problemas que o ligam ao homem e às sociedades humanas? De
modo nenhum, e o próprio geógrafo de quem acabamos de citar duas frases reveladoras da
influência de um geobotanista —Ch. FLAHAULT— faz uma confissão implícita: <<Os outros meios
de conhecimento: exame de estatísticas, análise histórica da evolução dos agrupamentos
humanos, segundo os documentos de arquivos, servem somente para precisar, para completar,
para retificar as idéias que extraímos do estudo direto da natureza». Evolução dos agrupamentos
humanos segundo os documentos de arquivos? Mas que vêm fazer os arquivos na paisagem? E
que o homem, pelo mesmo título que a árvore —e ainda melhor, e ainda mais, e de outra forma
—, é um dos fatores essenciais da paisagem.
O homem é um agente geográfico, e não o menos importante. Contribui para revestir,
conforme os lugares, a fisionomia da Terra com essas «expressões mutáveis» que a geografia
(tem por tarefa especial» estudar. Desde há séculos e séculos, pelo seu labor acumulado, pela
audácia e decisão das suas iniciativas, -o homem apresenta-se-nos como um dos mais poderosos
artífices da modificação das superfícies terrestres. Não há força que não utilize, que não submeta
à sua vontade; não há região, como se tem dito, que não apresente os estigmas da sua
intervenção. Atua sobre o solo isoladamente; atua mais ainda coletivamente — por intermédio de
todos os seus agrupamentos, dos mais restritos aos mais vastos, desde os agrupamentos
familiares aos políticos. E tal ação do homem sobre o meio é precisamente o que de humano
entra no âmbito da geografia.
A geografia é, repete incisivamente Vidal de La Blache no artigo que citamos anteriormente,
(a ciência dos lugares, e não a ciência dos homens». Análises históricas da evolução dos
agrupamentos humanos segundo os documentos de arquivos... Sim, o geógrafo deve recorrer a
tais análises, a tais documentos; mas aquilo que lhes deve pedir não é que o informem sobre o
papel do solo nessa evolução, nem sobre a influência que as condições geográficas puderam ter
exercido no decurso dos tempos sobre os destinos e sobre a própria história dos povos; deve
procurar ser por eles ajudado a determinar qual a ação que os povos, os agrupamentos, as
sociedades dos homens puderam exercer e exerceram de fato sobre o meio. (Para explicar os
fenômenos geográficos de que o homem foi testemunha ou artífice é necessário estudar a sua
evolução no passado, com a ajuda da documentação dos arquivos. A declaração é de A.
Demangeon. Vê-se que, também ele, para tomar a sua perspectiva não abandona o terreno
geográfico.
"A geografia", continua Vidal de La Blache, «interessa-se pelos acontecimentos da história na
medida em que estes põem em ação e revelam, nas regiões em que se produzem, propriedades,
virtualidades que, sem eles, teriam ficado latentes. Definição nítida, estrita e egoistamente -
geográfica, como se vê. E desta vez o ponto de vista é perfeitamente claro. «A geografia é a
ciência dos lugares, não a dos homens>>. Eis aqui, na verdade, a tábua de salvação.
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Retomemos agora a críticas que acima expusemos. Depois destes comentários terão ainda
algum alcance? Evidentemente que não.
Certamente que já o verificamos: quem estuda a ação das condições geográficas sobre a
estrutura dos grupos sociais corre o risco de se perder ao atribuir valor primordial, e não só
decisivo, mas único, a essas condições geográficas. Corre o risco de ver aí a causa de certa
estrutura social cuja ubiqüidade parece ignorar. Mas quem altera os termos da questão e põe o
problema de saber, não já qual é a ação dos grupos sociais sobre o meio geográfico, mas antes,
com mais escrúpulo e precisão — a geografia é a ciência dos lugares —, quais os traços de uma
dada paisagem, de um dado conjunto geográfico diretamente determinado ou historicamente
reconstituído, que se explicam ou podem explicar-se pela ação continua, positiva ou negativa, de
um certo grupo ou de uma certa forma de organização social; quem, por exemplo; ao verificar
antigamente a extensão antinatural de certas culturas em regiões que parecem excluí-las,
relaciona este fato com o regime de isolamento, em que todos os grupos humanos procuram,
acima de tudo, bastar-se a si próprios, sem nada comprar a outros: se acaso for prudente, não
corre o risco de erro, confusão ou generalização abusiva. Digo eu: se for prudente; mais valeria
dizer: se não for exclusivista. Na verdade, na região de Morvan, a vinha —que era tão corrente na
Idade Média que uma comuna do cantão de Toulon-sur Arrouz, Sanvignes (Sint l’inea, como diz um
manuscrito do século xiv), ia buscar o nome à sua total, radical, absoluta e quase única
incapacidade em alimentar esta planta quente — resulta bem de um regime de isolamento, tal
como sucede na Normandia ou na Flandres; mas é necessário ainda destacar, quando se fala em
tal, a influência exercida sobre esta cultura paradoxal pelo hábito de misturar mel, canela e
coentros com o vinho, o que o transformava numa mézinha e enfraquecia a rudeza nativa dos
mais ingratos sumos de uva.
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Capítulo 1 do livro "A Terra e a Evolução Humana", Ed. Cosmos, Lisboa, 1955
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