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1

NÚBIA PRADO DE CARVALHO

VIÚVA-NEGRA, MISS MARVEL E TEMPESTADE –


PERFORMANCES HISTÓRICAS DA MARVEL COMICS SOBRE
O FEMININO PARA AULAS DE HISTÓRIA NO ENSINO MÉDIO

Universidade Federal de Mato Grosso


Abril de 2021
2

NÚBIA PRADO DE CARVALHO

VIÚVA-NEGRA, MISS MARVEL E TEMPESTADE – PERFORMANCES


HISTÓRICAS DA MARVEL COMICS SOBRE O FEMININO PARA AULAS
DE HISTÓRIA NO ENSINO MÉDIO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação Profissional em Ensino de História em
Rede Nacional na UFMT como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de mestre em Ensino
de História
Orientadora: Profa. Dra. Ana Maria Marques

CUIABÁ-MT
2021
3

FICHA CATALOGRÁFICA

Dados Internacionais de Catalogação na Fonte.

C331v CARVALHO, NÚBIA PRADO DE.


VIÚVA-NEGRA, MISS MARVEL E TEMPESTADE – PERFORMANCES
HISTÓRICAS DA MARVEL COMICS SOBRE O FEMININO PARA AULAS DE
HISTÓRIA NO ENSINO MÉDIO / NÚBIA PRADO DE CARVALHO. -- 2021
239 f. : il. color. ; 30 cm.

Orientador: ANA MARIA MARQUES.


Dissertação (mestrado profissional) – Universidade Federal de
Mato Grosso,Programa de Pós-Graduação Profissional em Ensino de
História, Cuiabá, 2021.
Inclui bibliografia.

Ficha catalográfica
1. Ensinoelaborada automaticamente
de História. de acordo
2. Histórias em com os3.dados
quadrinhos. fornecidos
Estudos de pelo(a)
Gênero. I.Título. autor(a).

Permitida a reprodução parcial ou total, desde que citada a fonte.


4
5

RESUMO

Este estudo tem como objetivo contribuir com análises sobre o contexto do movimento
feminista nas décadas de 1960 e 1970 ao analisar quadrinhos da Marvel Comics, a saber
histórias cujos enredos trazem personagens femininas que se tornaram populares nos
últimos anos pela sua veiculação por mídias diversas como filmes e desenhos animados:
A Viúva-Negra, codinome de Natasha Romanoff, Miss Marvel conhecida atualmente
como Capitã Marvel, alcunha de Carol Danvers e Tempestade/ Ororo Munroe, da equipe
dos X-Men. Far-se-á uma pesquisa exploratória sobre os quadrinhos para estabelecer um
debate sobre a forma como essas narrativas podem ser utilizadas em sala de aula.
Procuramos examinar nessas histórias as relações de gênero que se estabelecem nessa
narrativa e a partir delas propor uma metodologia de ensino que possa ser desenvolvida
por professores do Ensino Médio para trabalhar os movimentos sociais com vistas a
romper com estereótipos ligados a eles, em especial o movimento feminista que foi e é
atacado continuamente por grupos conservadores. Para alcançar esse objetivo partimos
da premissa de que esses artefatos apresentam manifestações sexistas, uma vez que nesse
período elas estarem presente em diferentes veículos culturais, mas procuraremos avançar
nessa discussão ao questionar os espaços público/privado que são estipulados nesses
enredos para homens e mulheres procurando detectar avanços do debate feminista nesses
artefatos utilizando referências como Simone de Beauvoir e Judith Butler.
Palavras-chave: Ensino de História; Histórias em quadrinhos; Estudos de Gênero.
6

ABSTRACT

This study has as aim to contribute with analyzes about the context of the feminist
movement in the 1960s and 1970s. The Marvel Comics are analyzed, stories whose plots
present female characters that have become popular in recent years through their
dissemination through various media such as films and cartoons: The Black Widow, who
is called Natasha Romanoff, Captain Marvel but who initially had as nickname Miss
Marvel Carol Danvers and Storm/Ororo Munroe, the from the X-Men team. Exploratory
research on comics will also be carried out to promote a debate about the way these
narratives can be used in the classroom. We intend to examine in these stories the gender
relations that have been established in this narrative and from them we intend to propose
a teaching methodology that can be developed by high school teachers to work the social
movements with a perspective of breaking with stereotypes linked to them, especially the
feminist movement that has been attacked by conservative groups. To achieve this aim,
we start from the premise that these comics have sexist manifestations, since in this period
of time they have been presented in different cultural vehicles, but we intend to advance
in this discussion by questioning the public and private spaces that are stipulated in these
plots for men and women trying to understand the advances in the feminist debate. For
this, references such as Simone de Beauvoir and Judith Butler have been used.
Keywords: History teaching; Comics; Gender Studies.
7

AGRADECIMENTOS

Esse trabalho só pode ser realizado com o apoio e a contribuição, direta ou


indireta de muitas pessoas. Agradeço a todas elas e em especial aos colegas e professores
do Mestrado Profissional em Ensino de História por todas as discussões e debates sobre
diferentes temáticas que possibilitaram meu crescimento acadêmico.
A professora Dra. Ana Maria Marques pela orientação e contribuição
indispensável dada a esse trabalho por meio da oportunidade em participar do grupo de
pesquisa História e Estudos de Gênero que ela coordena dentro da Universidade e sua
confiança em mim, mesmo quando eu não a possuía.
Ao Programa de Aperfeiçoamento da Capes que financiou por meio de bolsa a
pesquisa e meu período de estudos dentro da Universidade Federal de Mato Grosso.
A minha família, minha rede de apoio, meu marido Rômulo que me mostrou em
inúmeros momentos a importância de ver o meu entorno, de me mostrar que sou uma
mulher forte que pode contribuir com colegas e estudantes da rede pública de ensino.
A mulheres da minha vida: minha mãe, irmã, filha e sogra que mostraram sua
sororidade em inúmeros momentos, seja para ouvir, para ler, para apoiar, ou
simplesmente para estarem junto comigo mostrando que sou capaz.
Aos colegas de trabalho que oportunizaram momentos de reflexão na “Sala dos
Professores” ou em reuniões de planejamento para construirmos nossa proposta de
oficina.
Por fim, mas não menos importante aos estudantes que passaram por salas nas
quais lecionei nesses doze anos de profissão. Todos, de uma forma ou de outra
contribuíram para mudanças significativas em minha carreira e me incentivam a procurar
ser uma profissional melhor.
8

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – The Yellow Kid, de Richard Felton Outcault……………………………….19


Figura 2 – Action Comics #1, Jerry Siegel e Joe Shuster........................................…...20
Figura 3 – Tales of Suspense #52, Stan Lee, Don Rico e Don Heck 1964…………….41
Figura 4 – Primeira aparição da Viúva-Negra.................................................................42
Figura 5 – Apresentação da Viúva-Negra a Tony Stark.................................................44
Figura 6 – Viúva-Negra distrai Tony Stark na luta contra Boris....................................45
Figura 7 – Destino da Viúva-Negra após a luta contra o Homem de Ferro....................46
Figura 8 – Capa Ms. Marvel v.1 #1. 1977......................................................................51
Figura 9 – Discussão entre Carol Danvers e John Jameson sobre a edição de revista
feminina...........................................................................................................................54
Figura 10 – Discussão entre Carol Danvers e John Jameson sobre remuneração..........55
Figura 11 – Desmaio de Danvers em sua transformação em Miss Marvel....................57
Figura 12 – Procura de Miss Marvel para salvar JJJ......................................................58
Figura 13 – Capa Miss Marvel v.1 #20..........................................................................59
Figura 14 – Transformação de Kamala Khan em Miss Marvel.....................................61
Figura 15 – Questionamentos de Kamala sobre sua transformação..............................62
Figura 16 – Primeira aparição de Ororo Monroe em X-Men.........................................68
Figura 17 – Manifestação dos poderes de Tempestade..................................................69
Figura 18 – Charles Xavier e seu contato com Ororo....................................................71
9

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 10

CAPÍTULO 1 – AS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS: DEBATES POLÍTICOS E O


MOVIMENTO FEMINISTA NA DÉCADAS DE 1960 E 1970 ................................... 17
1.1 Histórias em quadrinhos: um produto da sociedade de massa .............................. 17
1.2 Movimentos sociais e o contexto político das décadas de 1960 e 1970 ............... 26

CAPÍTULO 2 – AS performances HISTÓRICAS DA MARVEL SOBRE O


FEMININO ..................................................................................................................... 38
2.1 Viúva-Negra .......................................................................................................... 40
2.2 – Miss Marvel ....................................................................................................... 47
2.3 Tempestade ........................................................................................................... 65

CAPÍTULO 3 - ENSINO DE HISTÓRIA: PROPOSTAS PARA O APRENDIZAGEM


COM HISTÓRIAS EM QUADRINHOS ....................................................................... 73
3.1 A juventude, entre inquietações e impassibilidade ............................................... 73
3.3 Proposta de aplicação de oficinas ......................................................................... 80
3.3.2 Leitura histórica de quadrinhos ...................................................................... 80

CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................... 84

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................... 87

APÊNDICE – CADERNO DE OFICINAS.................................................................... 94

ANEXOS ...................................................................................................................... 125


ANEXO 1 –Tales of Suspense #52 - 1964 ................................................................... 126
Anexo 3 – Ms Marvel v.1 #1 – 1977 ............................................................................ 176
Anexo 4 – Ms Marvel v.3 #1 2014 ............................................................................... 194
Anexo 5 - Miss Marvel v.3 #2 - 2014 ........................................................................... 217
10

INTRODUÇÃO

A História passa nos últimos anos, a partir de um contexto político e econômico


de crises, por uma série de questionamentos baseados no senso comum e numa espécie
de conservadorismo que resulta em um ambiente de embate nas unidades escolares e
veículos de comunicação. É cada dia mais comum vermos nos jornais, revistas e grupos
sociais uma enxurrada de notícias que abordam elementos do movimento feminista e da
educação de maneira negativa, essa desqualificação das conquistas obtidas é repetida em
salas de aula de nosso estado e causam cisões entre diferentes grupos.
Quando partimos para esse ambiente não é difícil identificarmos esse tipo de
discurso sendo replicado por estudantes que, em meio a esse embate, desconhecem as
lutas por esses direitos obtidos através dos movimentos sociais, haja vista que eles têm
pouco espaço no livro didático, ainda o principal recurso utilizado por docentes em sala
de aula.
Nesse sentido faz-se necessário promover discussões que visam desconstruir esse
discurso com rapidez, pois o mesmo traz inferências que exacerbam os conflitos entre os
diferentes grupos sociais, que encontram em alguns adolescentes ambiente propício para
se enraizarem, considerando-se notícias de brigas e tragédias que assolaram nosso país
recentemente1.
Como os Parâmetros Curriculares Nacionais de História2 já estabeleciam na
década de 1990, ao procurarmos construir uma identidade independente nos nossos
alunos devemos também nos atentar para que ele reconheça e crie relações nas quais o
respeito seja o cerne do seu agir em sociedade, ou seja que eles não aceitem ou coadunem
com formas de preconceito, discriminação e exclusão. Ele deve ser solidário com seus
pares e repudiar qualquer tipo de desrespeito ou injustiça.
Os PCNs ainda apontam que o Ensino Médio “deve conter os elementos
indispensáveis ao exercício da cidadania e não apenas no sentido político de uma

1
A mais recente tragédia envolvendo ataques armados em escolas brasileiras ocorreu na Escola Estadual
Professor Raul Brasil em Suzano (SP), tendo como saldo de 10 mortos e 11 feridos em 13 de março de
2019. Os autores do crime eram ex-alunos da unidade escolar e suicidaram-se após a chegada da polícia.
2
BRASIL, Ministério da Educação e Cultura. Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio –
História. 1999.
11

cidadania formal, mas também na perspectiva de uma cidadania social, extensiva às


relações de trabalho, dentre outras relações sociais”3.
Assim quando trabalhamos com essa etapa da Educação Básica as conquistas de
direitos através dos movimentos sociais devem receber atenção especial dos professores,
pois o jovem que passa por momentos de aceitação e formação de uma identidade cidadã
precisa estar ciente de que aquilo que hoje ele tem acesso é fruto de uma luta incessante
de homens e mulheres que buscavam um mundo melhor.
Nesse sentido verificamos que pautados pela questão de igualdade, a política
educacional brasileira visa promover uma sensibilização dos discentes há mais de vinte
anos para os direitos sociais e para a importância de que esses indivíduos tenham
ferramentas para promover a responsabilidade pelo direito do outro, seja ele homem,
mulher, branco, negro, indígena e LGBTQI+.
As Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação Básica4, seguem nessa
premissa ao apontarem, no capítulo sobre o Ensino Médio que
Tendo em vista que a função precípua da educação, de um modo geral,
e do Ensino Médio – última etapa da Educação Básica – em particular,
vai além da formação profissional, e atinge a construção da cidadania,
é preciso oferecer aos nossos jovens novas perspectivas culturais para
que possam expandir seus horizontes e dotá-los de autonomia
intelectual, assegurando-lhes o acesso ao conhecimento historicamente
acumulado e à produção coletiva de novos conhecimentos, sem perder
de vista que a educação também é, em grande medida, uma chave para
o exercício dos demais direitos sociais.

Assim, procuramos com esse trabalho contribuir com análises sobre o contexto
dos movimentos sociais nas décadas de 1960 e 1970, período no qual ele se fortalece e se
expande, para que questionamentos possam ser respondidos e estereótipos sejam
desconstruídos pelos estudantes ao realizarem análises embasadas teoricamente sobre o
mesmo.
Além disso entende-se que esse trabalho proporciona formas de pensar a história
africana e a visão acerca da mulher negra o que se enquadra no que a lei 10.639/2003
aponta, ou seja, a obrigatoriedade do trabalho com a história e cultura africana.
Para tanto, buscaremos analisar esse contexto histórico, bem como os movimentos
sociais e a teoria de gênero a partir dos quadrinhos, um artefato cultural que é estudado
há algum tempo por profissionais das áreas da comunicação visual e educação, além de

3
Idem, Ibidem, p.12.
4
Brasil. Ministério da Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação Básica. Brasília:
MEC, SEB, DICEI, 2013.
12

historiadores que analisam o contexto histórico dessas produções e a forma como esse
contexto é apropriado por essas narrativas visuais, ou como coloca Will Eisner5, arte
sequencial.
Esse tipo de narrativa já foi alvo de desprezo, tida como produções de pouca
qualidade. Contudo esse gênero vem conquistando espaço nas discussões acerca das
metodologias de ensino de história, haja vista serem fontes que permitem o
questionamento da realidade. Além disso a sociedade tem valorizado muito as produções
icônicas, e isso faz com que as HQs sejam, também, muito apreciadas. Suas histórias
mostram, assim como outras formas de comunicação, a maneira como determinados
grupos são vistos, direcionam a opinião de seus leitores transformando-se também em um
meio de dominação política e social. Apesar de existirem divergências sobre quando esse
tipo de escrita surgiu, os primeiros exemplares do gênero de super-heróis foram
publicados em 1939 por Joe Shuster e Jerry Siegel. Eles traziam como personagem
principal Superman, um herói indestrutível, mas com uma única fraqueza, fragmentos de
seu planeta de origem denominados kriptonita. Na sequência dele vários outros
personagens masculinos foram instituídos, contudo poucas foram as heroínas criadas,
sendo a mulher relegada a um papel secundário em muitos dos roteiros apresentados –
corolário do que acontece no mundo real.
O que se verifica nesse tipo de narrativa é que ela se reflete o contexto histórico
no qual foi produzida, proporcionando ao jovem que compreende isso um ensejo em
buscar mais informações sobre o que é ensinado, engajando-o em análises e pesquisas
próprias. Nessa perspectiva as histórias em quadrinhos (HQ) proporcionam uma outra
forma de aprender, mais próxima da linguagem do cotidiano infanto-juvenil, sem deixar
de revelar temas sociais e históricos relevantes que podem ser utilizados por todas
disciplinas, em atividades planejadas ao longo do ano letivo. Como colocada Sobanski et
alii6: os quadrinhos promovem uma aprendizagem divertida e com facilidade de leitura.
As histórias em quadrinhos permitem a constituição de um sentido de identidade ligado a
cultura juvenil que auxilia na compreensão da relação passado/presente.
Explorar esse recurso e valorizar a empatia que as histórias em quadrinhos causam
nos jovens em relação ao conhecimento histórico torna-se essencial para que possamos
alcançar uma aprendizagem histórica significativa.

5
EISNER, Will. Quadrinhos e arte sequencial. São Paulo: Martins Fontes 2010, p.7.
6
SOBANSKI, Adriani de Quadros (et al). Ensinar e aprender História: histórias em quadrinhos e
canções. Curitiba: Base Editorial, 2009.
13

Procuramos desse modo estabelecer alguns parâmetros para a construção de uma


aula de história que compreenda de que maneira os debates de gênero aparecem ou não
nos enredos das histórias em quadrinhos produzidos pela Marvel Comics onde se inserem
personagens femininas nas décadas de 1960 e 1970 e que forneça sentido histórico para
os estudantes do ensino médio.
Para tanto tivemos como objetivos norteadores de nossas análises inicialmente
inventariar as investigações sobre as histórias em quadrinhos enquanto um artefato da
indústria cultural na sua relação com ensino e aprendizagem da história.
Mediante os resultados procurou-se entender como a historiografia aborda os
papeis desempenhados por figuras femininas e as interseccionalidades de gênero e raça e
além disso construir um caderno de aulas-oficinas que analise as personagens femininas
da Marvel Comics e as interseccionalidades de gênero e raça a partir das características
apresentadas nas Histórias em Quadrinhos.
Há vários estudos que versam sobre quadrinhos, analisando-os de diferentes
ângulos, em especial na área de comunicação social. Nessa área destaca-se o núcleo de
estudos da ECA-USP que apresenta uma série de análises sobre esse objeto. É importante
ressaltar que esse núcleo de estudos é um dos promotores das Jornadas Internacionais de
Histórias em Quadrinhos que completaram 10 anos em 2018. Esse evento que procura
dar visibilidade para pesquisas nacionais e internacionais sobre quadrinhos é um dos
maiores nesse segmento em nível nacional.
Entre as análises feitas sobre esse artefato cultural alguns trabalhos foram
significativos para pensarmos como a temática foi sopesada. Dentre aqueles que fizeram
a apreciação dos quadrinhos da Marvel Comics a dissertação de Fábio Vieira Guerra7,
Super-heróis Marvel e os Conflitos Sociais e Políticos nos EUA (1961-1981) apresentada
à Universidade Federal Fluminense (UFF) em 2011, foi importante para pensarmos o
contexto histórico social, pois nela o autor investiga como as transformações na política
externa e interna dos Estados Unidos nas décadas de 1960 e 1970 foram representadas e
elaboradas pelos comics, então uma importante indústria de entretenimento.

7
GUERRA, Fábio Vieira. Super heróis Marvel e os conflitos sociais e políticos nos E.U.A (1961-1981).
Dissertação de Mestrado em História Social. Universidade Federal Fluminense – RJ. 2011.
14

Sobre a análise de personagens femininas foi de grande importância o contato com


as obras de Simone de Beuvoir8 O segundo sexo e de Judith Butler9 Problemas de Gênero:
feminismo e subversão da identidade, além da obra de Grada Kilomba10 Memórias da
plantação para entendermos as diferentes manifestações de preconceito e racismo que
mulheres e em especial mulheres negras enfrentam. A dissertação em literatura e práticas
sociais da Universidade de Brasília (UnB) defendida por Anne Caroline Quiangala 11
intitulada A fantasia deles sobre nós: a representação das heroínas negras nos
quadrinhos mainstream da Marvel também teve uma contribuição importante, pois
mostrou-nos heroínas negras que não fazem parte dos personagens mainstream da
Marvel, mas que também manifestaram elementos importantes para entender o impacto
dos movimentos sociais nessa mercadoria.
Cabe ressaltar que apesar de existirem personagens de mulheres negras nos
quadrinhos, a interseccionalidade racial e de gênero e seus desdobramentos ainda deve
ser melhor investigada nas HQs.
Segundo Hirata12 esse termo foi usado pela primeira vez pela jurista afro-americana
Kimberlé Crenshaw, em 1989, mas sua origem pode ser identificada ainda nos anos de 1970
quando o Movimento Feminista Negro, que teve em Angela Davis um de seus expoentes máximos
que começou a se colocar e questionar o feminismo branco, de classe média e heteronormativo.
De acordo com Crenshaw13

A interseccionalidade é uma conceituação do problema [de sistemas


múltiplos de subordinação] que busca capturar as consequências
estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da
subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo,
o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios
criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de
mulheres, raças, etnias, classes e outras. Além disso, a
interseccionalidade trata da forma como ações e políticas específicas

8
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. 2. ed. Tradução Sergio Millliet. Volume único. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2009.
9
BUTLER, Judith P. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de janeiro:
Civilização Brasileira, 2003.
10
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. 1 ed. Rio de Janeiro:
Cobogó, 2019. p.78-79.
11
QUINGALA, Anne Caroline. A fantasia deles sobre nós: a representação das heroínas negras nos
quadrinhos mainstream da Marvel. Dissertação de Mestrado em Literatura. Universidade de Brasília. DF,
2017.
12
HIRATA, Helena. Gênero, classe e raça Interseccionalidade e consubstancialidade das relações
sociais. Tempo Social, São Paulo, v. 26, n. 1, p. 61-73, june 2014. Disponível em:
<http://www.journals.usp.br/ts/article/view/84979/87743>. Acesso em: 20 jul. 2018.
13
CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação
racial relativos ao gênero. In: Revista Estudos Feministas, 2002, v. 10, n. 1, p. 171-188. Disponível em:
<https://goo.gl/83tXV1>. Acesso em 14 jun. 2018.
15

geram opressões que fluem ao longo de tais eixos, constituindo aspectos


dinâmicos ou ativos do desempoderamento.

É perceptível que a interseccionalidade deve ser levada em consideração quando


trabalha-se com a questão de gênero e raça14, pois de acordo com dados do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística são as mulheres negras as que mais sofrem com ações discriminatórias e
isso ainda fica perceptível no ambiente que doravante procura analisar-se.
Marcelo Fronza15 com suas análises acerca da educação histórica a partir das HQs
e Selma Regina Nunes de Oliveira16 e Valdomiro Vergueiro17 com seus trabalhos sobre
história em quadrinhos enquanto produtos culturais fortaleceram a concepção de que
esses artefatos devem ter uma utilização eficiente em sala de aula. O grande entrave para
isso é a inexperiência, o medo ou mesmo o desconhecimento de como eles podem ser
usados.
Dessa maneira procuraremos contribuir com dois aspectos das pesquisas em
quadrinhos, o primeiro ao trabalhar com a relação de gênero que se estabelecem nessas
narrativas a partir dos quadrinhos elencados e a segunda com a propositura de
metodologias para desenvolver esse tema nas escolas a partir do trabalho dos professores.
Os quadrinhos elencados foram aqueles nos quais percebemos que as personagens
femininas foram criadas no contexto das décadas de 1960-1970 pela Marvel Comics, a
saber, buscamos trabalhar com as personagens: Viúva Negra criada em 1964, Miss
Marvel de 1968 ambas criadas por Jack Kirbi e Stan Lee, e Ororo Munroe, conhecida
como Tempestade e parte da equipe dos X-Men, que integrou essa equipe em 1975 criada
por Len Wein e Dave Cockrum. Essas personagens foram selecionadas pela familiaridade
que os estudantes possuem com elas, pois foram apropriadas por outras mídias como
televisão (desenhos animados) e cinema além dos próprios quadrinhos.
O primeiro capítulo voltar-se-á para a discussão sobre os quadrinhos, como as
narrativas de heróis foram difundidas pelo mundo. Além disso, esse capítulo trará uma

14
Aqui o termo foi usado com o significado atribuído pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africanas
como “a construção social forjada nas tensas relações entre brancos e negros, muitas vezes simuladas como
harmoniosas, nada tendo a ver com o conceito biológico de raça cunhado no século XVIII e hoje
sobejamente superado.” (BRASIL, 2004).
15
FRONZA, Marcelo. A intersubjetividade e a verdade na aprendizagem histórica de jovens
estudantes a partir da histórias em quadrinho. 2012. Tese de Doutorado em Educação – Universidade
Federal do Paraná – Curitiba.
16
OLIVEIRA, Selma Regina Nunes. Mulher ao quadrado: as representações femininas nos quadrinhos
norte-americanos: permanências e ressonâncias (1895-1999). Brasilia: Editora UnB/Finatec, 2007.
17
VERGUEIRO, Waldomiro. Uso das HQs no ensino. In: RAMA, Angela; VERGUEIRO, Waldomiro.
Como usar as histórias em quadrinhos em sala de aula. São Paulo: Contexto, 2004.
16

discussão sobre o contexto histórico das décadas de 1960-70, com foco nos movimentos
sociais em especial o debate feminista que se fortalece nesse período.
O segundo capítulo fará uma análise das personagens elencadas para o estudo, a
partir da análise das HQs nas quais elas são apresentadas aos leitores. São elas: Tales of
Suspense #52 (1964) com Natasha Romanoff/Viúva-Negra, Miss Marvel V.1 #1 (1977)
com Carol Susan Jane Danvers e Ms Marvel v.3, #1, 2 e 3 (2014) com Kamala Khan e
por fim a Giant Size X-Men (1975) com Ororo Munroe (Tempestade). Procuramos com
essa investigação elucidar aspectos e características que foram incorporadas no nosso
produto final, as oficinas direcionadas para o Ensino Médio.
Por fim, no terceiro capítulo apresentamos uma breve caracterização do nosso
público alvo, jovens de 15 a 18 anos que estudam no Ensino Médio. Além disso, foram
elaboradas oficinas que podem ser utilizadas por professores em de História da rede
pública de ensino como novas abordagens para essa temática disponibilizada no apêndice
dessa dissertação.
Essa análise vem do encontro dos interesses de vários professores e em especial
do nosso, uma vez que em diferentes momentos da vida escolar foram essas fontes, os
quadrinhos que permaneceram no imaginário da criança e da jovem, desde os primeiros
quadrinhos da “turma da Mônica” de Maurício de Souza, passando pelas histórias dos X-
Men e chegando aos mangás japoneses. Todas elas mostravam um mundo diverso,
interessante, que a criança/jovem sentia vontade de explorar.
Nesse sentido ao percebermos a possibilidade de explorar esse universo, agora de
uma maneira teórica, analisando personagens caras à nossa memória, foi um elemento
importante para a pesquisa. Além de tudo isso ainda trouxemos um elemento a mais nessa
investigação, as personagens femininas, mostrando como uma professora ou professor
pode utilizar-se desse artefato em diferentes salas de aula para analisar um período que
teve um impacto significativo, política, economicamente e culturalmente. Esses
elementos trazidos à tona suscitaram possibilidades e considerações importantes durante
a pesquisa.
17

CAPÍTULO 1 – AS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS: DEBATES POLÍTICOS E


O MOVIMENTO FEMINISTA NA DÉCADAS DE 1960 E 1970

Esse capítulo se aterá a discussão sobre os quadrinhos também conhecidos como


comics18, focando como as narrativas de heróis foram difundidas pelo mundo. Além disso,
trará uma discussão sobre o contexto histórico das décadas de 1960-70, com foco nos
movimentos sociais em especial sobre o debate feminista que se fortaleceu nesse período.

1.1 Histórias em quadrinhos: um produto da sociedade de massa

Esse tipo de produto cultural tem seu início envolto em controvérsias, haja vista
alguns autores identificarem essa forma de narrativa desde a pré-história, enquanto outros
a situam num período mais recente (século XIX). Contudo, é inegável que elas geram um
mercado que movimenta milhões com as revistas, filmes, peças de vestuário, e outros
produtos.
Limitaremos seu início à indústria de massas19 do século XIX que traz no seu
escopo uma possibilidade rica de interpretação do período em que foram criadas. É
possível perceber, em especial nas revistas de super-heróis, que esses traduzem para o
universo do imaginário, elementos importantes para pensar os movimentos sociais,
políticos e culturais dos períodos em que foram criados e até mesmo a maneira como
esses movimentos foram traduzidos e incorporados a essas narrativas.
De acordo com Edgar Morin20 essa indústria cultural atingiu o ser humano de
maneira distinta, chegando ao seu espaço íntimo. Essa segunda industrialização, como o

18
Comics é o termo utilizado nos Estados Unidos para sequências narrativas com personagens fixos
publicadas em gibis ou comic books que permitem uma condução narrativa maior e mais detalhadas que as
tiras. (XAVIER, Glayci Kelli Reis da Silva. Histórias em quadrinhos: panorama histórico, características e
verbo-visualidade. In: Darandina: Revista Eletrônica. V.10, n.2., dezembro de 2017, p.9.
19
Usamos a definição de Edgar Morin sobre cultura de massas que o autor afirma ser aquela “produzida
segundo as normas maciças de fabricação industrial; propagada pelas técnicas de difusão maciça (que um
estranho neologismo anglo-latino chama de mass media); destinado a uma massa social, isto é, um
aglomerado gigantesco de indivíduos compreendidos aquém e além das estruturas internas da sociedade
(classes, família, etc.). (MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX. 9 ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1997, p.14)
20
MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX. 9 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997,
p.13.
18

autor denominou, penetrou no domínio interior do homem e, a partir dos avanços


tecnológicos, ele foi soterrado por suas mercadorias culturais.

Não há dúvidas que, já o livro, o jornal, eram mercadorias, mas cultura


e vida privada nunca haviam entrado a tal ponto no circuito comercial
e industrial, nunca os murmúrios do mundo – antigamente suspiros de
fantasmas, cochichos de fadas, anões e duendes, palavras de gênios e
de deuses, hoje em dia músicas, palavras, filmes levados através de
ondas – não haviam sido ao mesmo tempo fabricados industrialmente e
vendidos comercialmente. Essas novas mercadorias são a mais humana
de todas, pois vendem a varejo os ectoplasmas de humanidade, os
amores e os medos romanceados, os fatos do coração e da alma21.

Uma característica importante para compreensão da introdução dessa indústria é


o fato de que ela se destina a todos os públicos, infantil e adulto, mas especialmente à
juventude. Podemos considerar inclusive que os próprios temas se encontram numa
dialética entre a produção e o mercado consumidor, no qual verifica-se que entre os
assuntos propostos caberá ao público, na sua recusa ou aceitação, um papel fundamental
para que esses temas perpetuem-se na indústria cultural.
Assim, verifica-se que existe uma identidade de valores nesse mercado
consumidor que fizeram das HQs um produto de grande dinamismo e aceitação, pois
atingiu os diferentes estratos e classes sociais, ao tornar-se um lugar-comum a todos eles.
Os quadrinhos mesclam a linguagem verbal e não verbal. Vergueiro22 identifica o
formato dos quadrinhos como os vemos hoje “Despontando inicialmente nas páginas
dominicais dos jornais norte-americanos e voltados para populações de migrantes, os
quadrinhos eram predominantemente cômicos, com desenhos satíricos e personagens
caricaturais.”
Logo, constata-se que enquanto produtos da sociedade de massas esses quadrinhos
aparecem como uma nova forma de entretenimento que juntamente com o cinema
corroboraram para a exportação do modelo de sociedade norte-americana, haja vista ter
sido nesse país que esse gênero encontrou um campo profícuo para florescer. Isso pode
ser evidenciado quando procuramos identificar o primeiro personagem a aparecer nesse
tipo de narrativa.

21
Idem, Ibidem, p. 14-15.
22
VERGUEIRO, Waldomiro. Uso das HQS no ensino. In: RAMA, Angela; VERGUEIRO, Waldomiro
(orgs). Como usar as histórias em quadrinhos em sala de aula. 4.ed., São Paulo: Contexto, 2018, p.10.
19

Segundo Álvaro Moya23 The Yellow Kid, criado em 1895 por Richard Felton
Outcault é considerado a primeira história em quadrinhos continuada com um
personagem fixo, publicada no New York World, jornal de propriedade de Joseph Pulitzer.
O personagem principal, um menino de baixa estatura, com feições de chinês, uma cabeça
grande e totalmente sem cabelo, com um sorriso zombeteiro e um eterno camisolão,
morador dos cortiços de New York do período, tinha em sua roupa que recebeu a
pigmentação amarela em 1896, um instrumento que exibia frases mordazes que faziam
alusão à fatos políticos.

Figura 1 – The Yellow Kid, de Richard Felton Outcault

Fonte: http://giscreatio.blogspot.com/2012/05/richard-f-outcault-e-o-menino-amarelo.html.
Acesso em: 20 jun 2019.

Verifica-se a partir desse personagem que o contexto histórico da época era


adicionado como um cenário, haja vista ter sido esse um período de grande movimentação
de imigrantes em direção às Américas, mas além disso, sua marca registrada, seu
camisolão também funcionava como um instrumento de crítica a fatos do período.
Esse personagem possibilitou a Pulitzer e a editores posteriores entender um
aspecto importante desse tipo de narrativa: eles alavancavam a vendagem dos jornais.
Eram assim um sucesso editorial que poderia ser explorado por seus criadores.

23
MOYA, Alvaro. Historia das Histórias em Quadrinhos. Porto Alegre: L&PM editores, 1986, p. 23.
20

Rapidamente essas histórias puderam ser vistas com maior frequência entre as
páginas de jornais, e uma disputa judicial levou ao acirramento de conflitos entre Pulitzer
e Hearst pelo direito sobre a autoria do personagem. Isso porque Willian Randolph Hearst,
contratara Outcault para o New York Journal em 1897, após o sucesso do personagem.
Em uma decisão inédita da corte americana que decidiu que o autor poderia usar os
personagens, mas não o nome deles, o Journal pode manter as histórias, mas o nome só
podia ser usado pelo World de Pulitzer.
Várias narrativas sucederam-se às do Menino Amarelo, sendo as primeiras nas
quais aparecerem o conjunto de super-heróis que conhecemos hoje introduzidas com a
criação do personagem Superman em 1938, que, juntamente com o um novo formato de
impressão, os chamados comic books, passaram a se tornar populares junto aos leitores
mais jovens24. O contexto da Segunda Guerra Mundial contribuiu na difusão desse tipo
de narrativa, haja vista os enredos engajarem seus personagens na luta armada, como é o
caso do próprio Capitão América, mas além desse aspecto é pertinente atentar para o fato
de que estes heróis funcionam como um tipo de arquétipo “um conteúdo inconsciente, o
qual se modifica através de sua conscientização e percepção, assumindo matizes que
variam de acordo com a consciência individual na qual se manifesta”25.
Figura 2 – Action Comics #1, Jerry Siegel e Joe Shuster

Fonte: Database da DC. Disponível em: <https://dc.fandom.com/wiki/Action_Comics_Vol_1>.


Acesso em: 20 jul. 2019.

24
ROXO, Lais Coitinho. Girl Power: a representação do Feminino nos Quadrinhos. 2018. Dissertação
(Mestrado em Comunicação) Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora-MG. 2018.
25
JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 2 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000. p.17.
21

Ou seja, os quadrinhos desse período criaram no herói, uma figura comum nas
cosmogonias de diferentes culturas e também algo que faz parte do imaginário coletivo,
uma imagem primordial, uma espécie de figurino-modelo do espírito humano que
organizam a imaginação e é facilmente reconhecível. Esse ser que pode ser descrito como
alguém comum, um ser humano que sacrificou-se para ajudar o outro, alguém
sobrenatural, um deus ou semideus ou ainda alguém escolhido para guiar o grupo em
direção a um futuro melhor tornou-se a concretização da figura do “bem”, na sociedade
maniqueísta ocidental.26
Jung27 aponta ainda que todo acontecimento mitologizado da natureza é, na
verdade, uma expressão simbólica daquilo que a consciência humana consegue aprender
através da projeção, ou seja espelhada nos fenômenos da natureza. Logo esses heróis
cumpriam ainda outra função, ensinar ao público quais deveriam ser as características
cultivadas, numa espécie de sacralização do divertimento.
Vemos assim que dentro do mundo dos quadrinhos a repetição de características,
comportamentos e até mesmo atribuições de deuses e heróis de antigas mitologias e isso
se evidencia com força entre os super-heróis, um tipo específico de projeção dos valores
que devem ser perseguidos pela humanidade.
Em 1954, a compreensão sobre os quadrinhos e o seu papel junto a crianças e
jovens sofreu uma importante alteração com a publicação do clássico The Seduction of
the Innocent, escrito por Dr Frederic Werthan que apontava a leitura dessas histórias
como o principal fator para o aumento da delinquência nos Estados Unidos. De acordo
com Vilela (2012) essa crítica alastrou-se para outras partes do mundo de modo que no
Brasil ganhou projeção na figura de Carlos Lacerda, que através dela procurava atingir
Roberto Marinho, proprietário do jornal O Globo e também da RGE, principal editora de
publicações voltadas para o público infantil.
Para diminuir a guerra contra os quadrinhos em 1960 foi criado o Código de Ética
para essas revistas de maneira que o editor Adolfo Aizen, da EBAL, passou a promover
almoços para políticos e educadores a fim de minimizar os efeitos que a “cruzada” teve
sobre esse tipo de publicação. Além disso, ele ainda passou a investir em HQs que traziam
biografias de santos e “heróis da Pátria”.

26
VIEIRA, Marcos Fábio. Mito e herói na contemporaneidade: as histórias em quadrinhos como
instrumento de crítica social. Contemporânea (Título não-corrente), [S.l.], v. 5, n. 1, p. 78-90, nov. 2015.
ISSN 1806-0498. Disponível em: <https://www.e-
publicacoes.uerj.br/index.php/contemporanea/article/view/17197/12630>. Acesso em: 24 junho 2020.
27
Idem, Ibidem. P.18
22

Ainda nessa década as histórias em quadrinhos receberam um novo formato que


as torna conhecidas até hoje: a continuidade narrativa. Se antes os comic books eram
curtos e com várias histórias independentes, nesse período a Marvel Comics, sob a
coordenação de Stan Lee, transformou as histórias publicadas por eles e pelos demais em
longos episódios de uma grande saga, que poderia ser interminável28.
As Histórias em quadrinhos passaram a ser examinadas pela disciplina de História
a partir da escola dos Annales, em especial a partir das décadas de 1960 e 1970. Podemos
relacionar seus estudos sistemáticos ainda na ótica das mudanças que tiveram momento
nesse período, quando tantas discussões acerca dos jovens e da cultura tiveram efeito.
Uma das referências dessas discussões, Umberto Eco29, desenvolveu dois
conceitos para os consumidores de cultura, os apocalípticos e os integrados. Segundo ele,
o apocalípticos seriam aqueles que rechaçavam qualquer tipo de cultura de massas
elencando como motivos para tanto que esse modelo de comunicação desconsidera as
diferenças culturais; padroniza seu público; desestimula a sensibilidade, cria produtos
para o consumo imediato e torna o público passivo e conformista ao desestimular o
pensamento, sendo vista apenas como uma forma de lazer e entretenimento. Já os
integrados são apontados como otimistas que percebem nela uma forma de obter
informações sobre grupos que até então estavam distante das informações. Além disso
eles acreditariam que as informações da cultura de massa funcionaria como uma forma
de contribuição para a formação intelectual do público, além de atuar como um elemento
de união das sensibilidades dos diferentes grupos.
Eco ainda aponta para o fato que os dois modelos recaem em falhas, mas que de
maneira geral possibilitam uma investigação pertinente sobre esses produtos culturais nos
quais se inserem também os comics e a forma como esses produtos refletem a sociedade.
Importante salientar que entre as consequências do nivelamento proporcionado
pelos avanços tecnológicos, estavam as frustações acerca da noção de indivíduo que se
viu alijado de sua força pela máquina que uniformizava a todos. Nesse sentido as
narrativas dos quadrinhos proporcionaram uma forma de reconquista de seu papel de
protagonista, haja vista identificar nas figuras heroicas como o Superman a si mesmo,
transformando esse tipo de personagem na estética perfeita dessa cultura moderna.

28
VERGUEIRO, Waldomiro. Uso das HQS no ensino. In: RAMA, Angela; VERGUEIRO, Waldomiro
(orgs). Como usar as histórias em quadrinhos em sala de aula. 4.ed., São Paulo: Contexto, 2018, p.48.
29
ECO, Umberto. Apocalipticos e integrados. São Paulo: Perspectiva, 1970, p.46-57.
23

Raymond Willians30, aponta em seus estudos à importância do entendimento do


termo cultura. Através de uma investigação minuciosa da palavra, ele assinala que o
período industrial foi um dos responsáveis pela mudança da concepção de cultura.
Verifica-se que durante o século XIX a palavra cultura começou a identificar-se com a
crítica à sociedade industrial, uma vez que a mesma associava-se a exploração e
dominação de outros povos, designados então como “bárbaros” e portanto “inferiores”.
Dessa maneira identifica-se a associação do termo cultura à resistência a esse processo de
mudança, que amplia a sua identificação com o humanismo e ao desenvolvimento
individual, fazendo oposição à civilização e à sociedade.
Além disso, ele aponta para a relevância do entendimento da cultura ao realizar
suas análises, que são compreendidas enquanto um processo que é mutável e determinado
nas relações estabelecidas pela sociedade. É um lugar de diferenças e ao mesmo tempo
de disputas pelo poder, sendo que nada está concretizado, sujeito a alterações e
influências.
Oliveira31 aponta para a importância que esse tipo de narrativa possuem enquanto
representações. De acordo com ela

Protegidos pela tinta e pelo papel, os personagens das histórias em


quadrinhos materializam representações que são constantemente
retomadas, reatualizadas e normatizadas sob a forma de um simples
exercício de leitura; do jogo lúdico entre palavra e imagem que,
aparentemente desvinculado do mundo real, retoma, recria e
fundamenta modelos e saberes. Modelos, ou antes representações ou
falas que ecoam do discurso das histórias em quadrinhos e saltam de
suas páginas para ordenar o nosso imaginário e constituir o real.

Nesse sentido quando Will Eisner define o que são os quadrinhos32, identificando-
os como uma forma de arte sequencial, ele tenta ressignificar essa narrativa ao estabelecer
uma nova categoria para os quadrinhos, retirando-os de um modelo de classificação
inferior, primário ou como então era tido, uma forma de arte menor. Ao estabelecê-lo
como um tipo de arte alça-o a um estatuto superior de método e comunicação.

30
WILLIANS, Raymond. Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1979
31
OLIVEIRA, Selma Regina Nunes. Mulher ao quadrado: as representações femininas nos quadrinhos
norte-americanos: permanências e ressonâncias (1895-1990). Brasília: Editora da Universidade de Brasília;
Finatec, 2007. p.23
32
[...] os quadrinhos empregam uma série de imagens repetitivas e símbolos reconhecíveis. Quando são
usados vezes e vezes para expressar ideias similares, tornam-se uma linguagem – uma forma literária, se
quiserem. E é essa aplicação disciplinada que cria a ‘gramática’ da Arte Sequencial. EISNER, Will.
Quadrinhos e arte sequencial. São Paulo: Martins Fontes 2010. p. 7
24

Ele ainda completa que mesmo que o texto seja lido, esse tipo de narrativa exige
um tipo de leitura que vai além da decodificação de palavras, mas faz parte de uma
percepção estética e de esforço intelectual. Em suas palavras “O letreiramento, tratado
‘graficamente’ e a serviço da História, funciona como uma extensão da imagem. Nesse
contexto, ele fornece o clima emocional, uma ponte narrativa, e a sugestão de som”33.
Eisner ainda ressalta que não é necessário que haja algum tipo de palavra escrita no
quadrinho para que ele possa ser decodificado, apesar de uma exigência maior do leitor,
é possível que ele seja lido sem prejuízos a sua compreensão.

Scott McCloud34 conceitua as Histórias em quadrinhos como “Imagens pictóricas


e outras justapostas em sequência deliberada destinada a transmitir informações e/ou
produzir uma resposta ao expectador”, percebe-se assim que essa arte voltada para as
classes populares foi e é estimada pelo fato de proporcionarem uma certa identificação
com os personagens criados. Porém a partir do século XXI, pode-se observar um declínio
no consumo dos quadrinho de super heróis, com a intensificação de novos formados de
revistas, em especial as novelas gráficas.
Além disso verifica-se que ambas as definições analisam esse tipo de arte com
uma forma de linguagem própria que passa a ser disseminada na sociedade do século XIX
e XX com sucesso surpreendente.
Segundo Waldomiro Vergueiro35

A inclusão efetiva das histórias em quadrinhos em materiais didáticos


começou de forma tímida. Inicialmente, elas eram utilizadas para
ilustrar aspectos específicos das matérias que antes eram explicadas por
um texto escrito. Nesse momento, as HQs apareciam nos livros
didáticos em quantidade bastante restrita, pois ainda temia-se que sua
inclusão pudesse ser objeto de resistência ao uso do material por parte
das escolas. No entanto, constatando os resultados favoráveis de sua
utilização, por solicitação das próprias editoras -, começaram a incluir
os quadrinhos com mais frequência em suas obras, ampliando sua
penetração no ambiente escolar.

Ainda na década de 1970 tivemos uma expressiva oferta de HQ’s com intuito de
ensinar aos jovens brasileiros os conteúdos históricos. Nesse período houve ênfase na
educação moral e cívica proporcionada por esse instrumento. Temas nacionalistas foram

33
Idem, ibidem, p.10.
34
MCCLOUD, Scott. Desvendando os quadrinhos. São Paulo: Makron Books, 1995, p. 14.
35
VILELA, Marco Tulio Rodrigues. A utilização dos quadrinhos no ensino de História: avanços,
desafios e limites. 2012. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Metodista de São Paulo –
São Bernardo do Campo. p. 89
25

utilizados para incentivar crianças e jovens a desenvolverem sentimentos de


patriotismo36, valendo-se na composição dos quadrinhos de figuras conhecidas da política
brasileira como Getúlio Vargas e Oswaldo Cruz. A obra de Julierme de Castro, que
traduzia manuais didáticos na forma de Hqs foi muito usado no início da década de 1970.
De acordo com Selma de Fátima Bonifácio e Luís Fernando Cerri37
Em meados da década de 1960, o professor Julierme de Abreu e Castroi
lança algumas obras consideradas extremamente inovadoras para
aquele período. Seus livros possuíam textos ilustrados por figuras
coloridas. Os textos (roteiro e legendas) eram produzidos pelo próprio
Julierme, e os desenhos, pelos desenhistas argentinos Eugênio
Colonnese (italiano de nascimento) e Rodolfo Zallaii. No que se refere
à inserção de quadrinhos em livros didáticos, afirmava o autor (1971,
p.8): “A experiência demonstrou a validade do emprego da técnica do
quadrinho no livro didático – a julgar pelas numerosas cartas de
professores em nosso poder e pelo aumento do interesse do estudante
pela História, testemunhado por todas elas.” Neste aspecto, podemos
observar uma preocupação com a qualidade dos desenhos, bem
construídos, e uma presença de cores bastante definidas, que se
apresentam em uma boa proporção, sem excessos. Estes elementos
caracterizam alguns dos aspectos positivos dos quadrinhos
apresentados.
Segundo Bonifácio38 essa tentativa de unir o conhecimento histórico não obteve
sucesso, pois não se estabeleceu uma conexão entre a linguagem dos quadrinhos e as
biografias apresentadas.
Na década de 1990 uma nova tentativa de utilização dos quadrinhos foi realizada
por meio dos PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais), que foram responsáveis pelo
reconhecimento dos quadrinhos como forma de expressão cultural e literária ao
incentivarem o trabalho com este gênero em sala de aula. Sua abordagem ainda estava

36
DUTRA, A. A. C. Quadrinhos de não-ficção. In: INTERCOM – CONGRESSO BRASILEIRO DE
CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO, 26, 2003, Belo Horizonte. Relação de Trabalhos. Belo Horizonte,
2003. p.1-17. 1 CD-ROM.
37
Selma de Fátima Bonifácio e Luís Fernando Cerri. Histórias em quadrinhos: conhecimento histórico
e comunicação de massa no espaço escolar. In: ANPUH – XXIII SIMPÓSIO NACIONAL DE
HISTÓRIA – Londrina, 2005.
38
BONIFÁCIO, Selma de Fátima. HISTÓRIA E(M) QUADRINHOS: análises sobre a História ensinada
na arte sequencial. 2005. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal do Paraná –
Curitiba. p. 85.
26

circunscrita a análise literária, porém atualmente vários professores procuram analisa-las


como produções históricas.
Nesse sentido a indústria cultural americana torna-se em especial nas décadas de
1960-1970 num momento de grande tensão política e econômica, ainda um paradigma
seguido por vários países dentre os quais o Brasil se encontrava e encontra até hoje.

1.2 Movimentos sociais e o contexto político das décadas de 1960 e 1970

O mundo após 1945 não seria mais o mesmo, após uma guerra que provocou a
destruição e o colapso de economias no mundo todo, os Estados Unidos (doravante EUA)
e a União Das Repúblicas Socialistas Soviéticas (doravante URSS) conquistaram a
hegemonia econômica mundial sendo referenciados em obras que analisam esse época
como líderes dos blocos dos países capitalistas e socialistas até 199139, período conhecido
como a Guerra Fria.
A Segunda Guerra Mundial foi um divisor para o mundo após seu encerramento,
uma vez que, após a derrota dos regimes nazista e fascista, EUA e URSS dividiram entre
si suas áreas de influência criando dois grandes blocos. Esses blocos que se alicerçavam
em questões operacionais e tático-militares, haja vista manterem seus aliados a partir da
OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte, capitalista) e do Pacto de Varsóvia
(no qual estavam circunscritos os países influenciados pela URSS, socialista), passaram
a disputar ainda áreas de influência, que resultaram em conflitos indiretos em alguns
territórios mundiais, vide Guerra do Vietnã e o conflito no Afeganistão.
Em 1945, com o final do conflito na Europa percebe-se ainda o início da Era
Nuclear com os ataques a Hiroshima e Nagasaki (respectivamente em 06 e 09 de agosto),
ataques estes que foram justificados pelo governo estadunidense como forma de eliminar
qualquer resistência à assinatura do acordo de rendição dessa nação. Nesse mesmo ano
os líderes britânico (Winston Churchill), soviético (Josef Stálin) e estadunidense (Harry
Truman) reuniram-se para discutir a nova geopolítica mundial, no que ficou conhecido
como conferência de Potsdam.

39
Adotamos aqui como data limite da Guerra Fria a desintegração da União Soviética em várias repúblicas,
apesar do conhecimento que a queda do muro de Berlim em 1989 que reunificou da Alemanha e é tido
como uma metáfora para o desmantelamento do sistema socialista.
27

Contudo, a Guerra Fria não pode ser considerada um período homogêneo da


história mundial, o confronto entre as duas grandes superpotências mundiais, EUA e
URSS determinaram uma série de ações em todo o mundo, estabelecendo condutas,
confrontos e marcando o período entre o fim da Segunda Guerra Mundial (1945) e o fim
da União Soviética.
Segundo Hobsbawm40

A peculiaridade da Guerra Fria era a de que, em termos objetivos, não


existia perigo iminente de guerra mundial. Mais que isso: apesar da
retórica apocalíptica de ambos os lados, mas sobretudo do lado
americano, os governos das duas superpotências aceitaram a
distribuição global de forças no fim da Segunda Guerra Mundial, que
equivalia a um equilíbrio de poder desigual, mas não contestado em sua
essência. A URSS controlava uma parte do globo, ou sobre ela exercia
predominante influência – a zona ocupada pelo Exército Vermelho e/ou
outras forças armadas comunistas no término da guerra – e não tentava
ampliá-la com uso de força militar. Os EUA exerciam controle e
predominância sobre o resto do mundo capitalista, além do hemisfério
norte e oceanos, assumindo o que restava da velha hegemonia imperial
das antigas potências coloniais. Em troca não intervinha na zona aceita
de hegemonia soviética.

Logo percebe-se que inicialmente havia uma proposta de não-enfrentamento


entre essas potências, cada qual dominando áreas específicas do território mundial, ou
influenciando aquelas sob os regimes capitalista e socialista.
Os EUA constituíram sua supremacia em especial após a Segunda Guerra
Mundial, como aponta Vezentini41

Ela [Segunda Guerra Mundial] reativou e expandiu seu parque


industrial, absorveu a enorme massa de desempregados dos anos 30,
além do país sofrer poucas perdas humanas e praticamente nenhuma
destruição material. Sua economia tornou-se mundialmente dominante,
respondendo por quase 60% da produção industrial em 1945, posição
reforçada pela semidestruição de seus rivais (Alemanha, Itália e Japão)
e aliados capitalistas (França e Grã-Bretanha), que tornavam-se
devedores dos EUA.

A economia estadunidense cresceu nesse período, bem como passou a expandir


seu perfil consumista que foi adotado pela sociedade como paradigma ocidental a ser

40
HOBSBAW, Eric. Era dos extremos: o breve século XX (1914-1991).2 ed; São Paulo: Companhia das
Letras,2005, p. 224.
41
VIZENTINI, Paulo G. Fagundes. Da Guerra Fria à Crise. Porto Alegre: Editora da Universidade
(UFRGS), 1990, p.13.
28

seguido, duas políticas para entender essa expansão são a Doutrina Truman e o Plano
Marshall.
A Doutrina Truman foi uma política norte-americana lançada em março de 1947.
De acordo com ela os EUA mantinham uma força militar pronta para agir em caso de um
ataque externo (da URSS) a algum de seus aliados, ou mesmo interferir caso houvesse a
ameaça de um levante interno que pudesse ser desencadeada pelo movimento comunista
interno.
Aliada a essa doutrina o Plano Marshall, que tinha por objetivo auxiliar na
reconstrução da Europa destruída pela guerra com a concessão de empréstimos, garantia
ainda uma relativa estabilidade para o regime capitalista, haja vista estabelecer uma dívida
entre os governos desses países com os EUA que então detinham o controle sobre a
produção de seus aliados europeus.
Nesse sentido, aliados dos blocos capitalista e socialista mantinham uma paz
relativa que se manteve até meados da década de 1970, quando o sistema econômico
social em atuação entrou em crise. É perceptível que para manter essa espécie de paz
armada ambos, URSS e EUA, ignoraram determinadas ações dos seus exércitos desde
que os mesmos não se aproximassem de áreas consideradas de domínio de uma ou outra.
Hobsbawm42 acrescenta que não foi o confronto militar e a corrida armamentista
no Ocidente o impacto principal da Guerra Fria no mundo, mas sim as consequências
políticas desse conflito como a polarização dos países em comunistas e capitalistas e a
criação da Comunidade Europeia, que era então uma forma nova de organização que
integrava economias e até mesmo os sistemas legais de diversos Estados-Nação
independentes.
Essa relação não era percebida apenas nas searas política e econômica, mas
também na organização social dessas nações, como coloca Guerra43

Apesar dos temores constantes dos efeitos dessa revolução tecnológica,


a sociedade estadunidense entendia que sua prosperidade também
passava pela posse das mais avançadas tecnologias. Além dos efeitos
que teria no seu dia a dia seja na agricultura ou na indústria, havia o
objetivo principal de estar à frente dos seus rivais soviéticos em termos
desse conhecimento.

42
HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos: o breve século XX (1914-1991).2 ed; São Paulo: Companhia
das Letras,2005, passim.
43
GUERRA, Fábio Vieira. Super heróis Marvel e os conflitos sociais e políticos nos E.U.A (1961-1981).
Dissertação de Mestrado em História. Rio de Janeiro: UFF, 2011. p.30.
29

Logo, a corrida armamentista, a revolução tecnológica, a expansão do


capitalismo e socialismo impactaram na vida da sociedade e no modo como a indústria
cultural produziu filmes, livros, músicas e Histórias em Quadrinhos que passaram a ter
um apelo fortemente heroico, com protagonistas que exaltavam características de seus
respectivos países e ao final sempre vencessem as disputas contra a ameaça externa.
Outro aspecto pertinente a ser considerado sobre esse período foi o papel
desempenhado pela juventude. Esse grupo que até então não era percebido como uma
grande força, torna-se uma camada social com reivindicações próprias a ser considerado
em especial após sua participação em manifestações estudantis em 1968 e 1969.
De acordo com Hobsbawm44 essa cultura juvenil era uma tripla novidade pois a
juventude era compreendida como o “estágio final do pleno desenvolvimento humano”,
eles não estariam mais circunscritos a um não-lugar cujas referências encontravam-se na
infância ou na idade adulta, mas eram autônomos, críticos e atuantes. Além disso ela
“tornou-se dominante nas ‘economias de mercado desenvolvidas’ em parte porque
representava uma massa concentrada de poder de compra” e também porque inverteram-
se os papeis de conhecimento nessa sociedade. Nesse momento os filhos estavam num
função superior em relação ao conhecimento que seus pais possuíam e tentavam se
desvencilhar de possíveis semelhanças com seus progenitores. Outro aspecto pertinente a
ser analisado foi o internacionalismo dessa nova cultura jovem nas sociedades, o rock, o
blue jeans foram alguns dos aspectos compartilhados por eles e nesse sentido fica claro
que a hegemonia cultural estadunidense, que difundiu-se a partir dos discos, das imagens
e principalmente da circulação de seus estilos entre os próprios jovens.
No final das décadas de 1960 e 1970, algumas mudanças ocorreram no cenário
internacional, motivadas principalmente por derrotas sofridas pelos líderes dos blocos
capitalista e socialista. Segundo Cristina Pecequilo45, esse período por ela denominado de
Détente, foi marcado pela derrota estadunidense na Guerra do Vietnã e pela saída da
China do bloco soviético, o que possibilitou a emergência de novas potências que
procuravam influenciar o cenário mundial como China, Japão e países europeus.
Durante a Guerra do Vietnã verifica-se uma mudança em relação ao combate ao
comunismo, em decorrência do episódio conhecido como Crise dos Mísseis, há o controle
e limitação dos armamentos nucleares.

44
HOBSBAW, Eric. A era dos extremos: o breve século XX (1914-1991).2 ed; São Paulo: Companhia
das Letras,2005 319-321
45
PECEQUILO, Cristina S. A política externa dos Estados Unidos. Porto Alegre. UFRGS, 2003, p.163.
30

Outrossim nesse contexto político e econômico novas mudanças culturais


também puderam ser percebidas em especial acerca das lutas feministas. Como Joana
Maria Pedro46 apresenta, a Revolução protagonizada pelas mulheres foi um dos grandes
eventos do século XX e como tal tem relevância para a análise das relações sociais.
Após a Segunda Guerra Mundial o movimento feminista sofreu modificações
nas suas reivindicações. A guerra transformou a vida das mulheres em especial nos
Estados Unidos e Europa, que passaram a ser as responsáveis por seus lares, haja vista os
homens aturem no front de batalha. Assim percebemos que o modo como a sociedade
concebia os “papeis” a serem desempenhados pelas mulheres começou a se alterar.
Começa o chamado feminismo da diferença que foi marcado pela obra de
Simone de Beauvoir, O Segundo Sexo, publicado em Paris em 1949. Nessa obra
verificam-se os primeiros estudos consistentes de uma mulher sobre o patriarcado,
levantando seus fatos e mitos. Um dos questionamentos levantados por ela que
impactaram foi sua conclusão: “toda história das mulheres foi feita pelos homens”, o que
determinava que as mulheres eram vistas a partir de um estranhamento do padrão
masculino.

No feminismo da diferença, a marcação está na mulher. Diferente da


“primeira onda” igualitarista, que partia da compreensão do homem
como sujeito universal, na “segunda onda” a Mulher (com letra
maiúscula) torna-se o sujeito ativo – que necessita romper com a
condição de dominação masculina. Todavia, logo as mulheres
perceberam não existir um universal Mulher, porque as diferenças de
gênero estavam postas também para negras, velhas, homossexuais e
outras. Ou seja, ser mulher implica considerar os outros
atravessamentos identitários de raça, etnia, geração e classe.
Reivindicava-se, também, a diferença na diferença. Mulheres, então,
seria uma categoria mais abrangente, cujo pluralismo as define.47
O que vemos então é uma tentativa de definição mais abrangente sobre o que
alude o “ser mulheres”, muito mais como um constructo social e histórico longe da
simples dicotomia feminino/masculino.
É ainda nesse período que surge o termo gênero que se alicerça em dois conceitos
importantes: a base material da identidade e a construção social do caráter humano.

46
PEDRO, Joana Maria. Relações de gênero como categoria transversal na historiografia contemporânea.
Topoi (Rio J.), Rio de Janeiro, v. 12, n. 22, p. 270-283, 2011, p.270. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2237-
101X2011000100270&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 13 mar. 2018.
47
MARQUES, Ana Maria. Feminismo e gênero: uma abordagem histórica. In: Revista Trilhas da
História, v. 4, n° 8 jan-jun, 2015, p. 13.
31

Segundo Nicholson48

Na época do surgimento da segunda fase do feminismo, final dos anos


60, um legado da primeira ideia foi a noção, dominante na maioria das
sociedades industrializadas, de que a distinção masculino/feminino, na
maioria de seus aspectos essenciais, era causado pelos fatos da biologia,
e expressa por eles. Essa noção se refletia no fato de que a palavra mais
comumente usada para descrever essa distinção, sexo, tinha fortes
associações biológicas. As feministas do início dessa segunda fase
viram corretamente essa noção como base conceitual do ‘sexismo’ em
geral.

Essa ideia de um sexo biológico que produzia as diferenças entre homens e


mulheres trazia implícito em seu escopo um determinismo tal que seria impossível haver
qualquer tipo de mudança real sobre os papeis desempenhados por homens e mulheres.
Nessa perspectiva as feministas se valeram do conceito gênero como uma constituição
social do caráter humano diferenciando-o de sexo, mas não excluindo completamente um
em relação ao outro. O que foi feito nas décadas de 1960 e 70 foi utilizar o conceito de
gênero de forma suplementar ao de sexo.
Segundo Joan Scott49 o termo gênero pode ser compreendido como

[...] uma maneira de indicar as “construções sociais” – a criação


inteiramente social das ideias sobre os papéis próprios aos homens e às
mulheres. É uma maneira de se referir às origens exclusivamente sociais
das identidades subjetivas dos homens e das mulheres. O gênero é,
segundo essa definição, uma categoria social imposta sobre um corpo
sexuado (8). Com a proliferação dos estudos do sexo e da sexualidade,
o gênero se tornou uma palavra particularmente útil, porque ele oferece
um meio de distinguir a prática sexual dos papéis atribuídos às mulheres
e aos homens. Apesar do fato dos(as) pesquisadores(as) reconhecerem
as relações entre o sexo e (o que os sociólogos da família chamaram)
“os papéis sexuais”, estes(as) não colocam entre os dois uma relação
simples ou direta. O uso do “gênero” coloca a ênfase sobre todo um
sistema de relações que pode incluir o sexo, mas que não é diretamente
determinado pelo sexo nem determina diretamente a sexualidade.
Assim, não é possível entender esse termo desvinculado de seu aspecto
relacional apontado por Scott.
Quando abordamos esse movimento devemos ter claro que ele se juntará a outros
movimentos de contestação como o movimento estudantil na França, as lutas contra a
Guerra do Vietnã nos Estados Unidos que procuravam mudanças. Mais do que essas

48
NICHOLSON, Linda et al. Interpretando o Gênero. Estudos Feministas, v. 8,, n. 2, 2000. P. 9-41.
JSTOR, p.10. Disponível em: <www.jstor.org/stable/43596547>. Acesso em: 13 jul. 2018.
49
SCOTT, J. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Revista Educação & Realidade. Porto
Alegre, v. 2, n. 20, p. 71-99, jul./dez. 1995. p. 3.
32

mudanças verifica-se que esse movimento ressurge pautado na afirmação de que o


“pessoal é político” desmistificando o âmbito do político como algo da esfera pública. Ao
estabelecer esse mote o movimento feminista aponta par a necessidade de discussões
políticas sobre questões que eram tratadas como assuntos específicos do privado.
De acordo com Carole Pateman50

[...] chamou a atenção das mulheres sobre a maneira como somos


levadas a contemplar a vida social em termos pessoais, como se tratasse
de uma questão de capacidade ou de sorte individual [...] As feministas
fizeram finca-pé em mostrar como as circunstâncias pessoais estão
estruturadas por fatores públicos, por leis sobre a violação e o aborto,
pelo status de “esposa”, por políticas relativas ao cuidado das crianças,
pela definição de subsídios próprios do estado do bem-estar e pela
divisão sexual do trabalho no lar e fora dele. Portanto, os problemas
“pessoais” só podem ser resolvidos através dos meios e das ações
políticas.

Apesar desse avanço, verifica-se que ainda persistem grupos que não
reconhecem todas as lutas envolvidas nesses direitos, isso implica ainda nos discursos
sobre a culpabilização da vítima em crimes sexuais ou violência doméstica que
encontraram em veículos de informação espaço privilegiado para desqualificar o Outro
seja ele mulher, negro ou LGBTs.
Nesse período intensificam-se também as discussões sobre os direitos de
afrodescendentes nos EUA. Esse país, claramente separado por leis raciais que
inferiorizavam esse grupo, destinando a eles espaços específicos no ambiente público,
começam a ser questionados. Desenvolveram-se várias lutas alicerçadas no movimento
pelos direitos civis que obtiveram vitórias importantes, como o sufrágio através do Ato
dos Direitos de voto de 1965, além de políticas de ação afirmativa que visavam combater
o racismo.51
O estopim para que a mobilização acontecesse deu-se em Montgomery, cidade
do Alabama, um dos estados do sul dos Estados Unidos, no qual o racismo era eminente.
Em 1° de dezembro, uma mulher negra, Rosa Parks, após um dia de trabalho como
costureira pegou um ônibus para voltar para casa. Ela estava sentada quando exigiram

50
PATEMAN, Carole apud COSTA, Ana Alice Alcantara. O movimento feminista no Brasil: dinâmicas
de uma intervenção política. In: Revista Gênero, v.5, n.2, 2005, p.2.
51
ANDREWS, George Reid. O negro no Brasil e nos Estados Unidos. Lua Nova, São Paulo , v. 2, n. 1, p.
52-56, June 1985 . Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
64451985000200013&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 13 jun. 2019.
33

que ela se levantasse para dar lugar a um homem branco como mandava a legislação 52,
mas ela se recusou a levantar. Parks foi presa por desobedecer a lei, sendo julgada e
condenada. Após esse acontecimento, a comunidade negra, liderados pelo pastor Martin
Luther King Jr decidiu fazer um boicote aos ônibus da cidade. Após mais de 300 dias de
protesto nos quais prisões e atentados da Ku Klux Klan53 tiveram efeito, a Suprema Corte
em 1956, declarou que as leis segregacionistas de Montgomery eram inconstitucionais.
Essa vitória estimulou outras manifestações em estados norte-americanos.
Segundo Purdy54 essas primeiras mobilizações baseavam-se na “desobediência
civil”, um tipo de resistência pacifista usada por Mahatma Gandhi na Índia. Além disso
Luther King imprimiria nessas manifestações uma política moral e religiosa,
transformando as igrejas negras em pontos estratégicos para a mobilização ideológica e
prática do movimento.
Nesse sentido é importante lembrar que várias falas de King Jr mostravam
elementos das lutas pela igualdade, poder, reconhecimento e direitos e oportunidades que
eram almejados não apenas nos estados do Sul, mas também no Norte. Dessa maneira
não demorou para que essas mobilizações também fossem realizadas por estudantes
nesses locais e coordenados pelo Comitê Sulista de Coordenação Não Violenta (Student
Non-violent Coordinating Committee SNCC, em inglês) e pelo Congresso da Igualdade
Racial ( Congress for Racial Equality CORE em inglês), que lutava contra a
discriminação racial no norte. Esses grupos organizaram e ajudaram a forjar um
sentimento de comunidade a partir de suas políticas inclusivas e democráticas, sendo
descrito como uma renovada forma de patriotismo.55
Angela Davis, uma das grandes representantes do movimento pelos direitos civis
nos Estados Unidos, faz referência às lutas encabeçadas por Martin Luther King, mas de
maneira franca aponta para o caráter incompleto da mesma. Ela afirma ainda para os
enfrentamentos que mostram que o cerceamento à direitos, em especial ligados ao

52
De acordo com a política de segregação racial, que foi legitimada pelas leis Jim Crow, haviam espaços
separados para brancos e negros nos ambientes públicos.
53
O grupo segregacionista conhecido como Ku Klux Kan surgiu após a criação da primeira lei “Jim Crow”.
Seu nome provem do termo kylos que em grego significa “círculo”. A Klan estava presentes em vários
estados no Sul dos Estados Unidos e tinham como como mote a defesa da honra, dos costumes e da moral
cristã, contudo para isso realizavam perseguições e linchamentos de negros, chineses, judeus e outras etnias
consideradas inferiores.
54
PURDY, Sean. O século Americano. In: KARNAL, Leandro et al. História dos Estados Unidos: das
origens ao século XXI. São Paulo: Contexto, 2007.
55
Idem, ibidem, p. 274.
34

encarceramento nas prisões, demonstram a vulnerabilidade que os afro-americanos


enfrentam até hoje.
Ela afirma que

Os regimes de segregação racial não foram destituídos pelo trabalho de


líderes, presidentes e legisladores, e sim pelo fato de que pessoas
comuns adotaram um posicionamento crítico na compreensão que
tinham de sua relação com a realidade. Realidades sociais que podem
ter parecido inalteráveis, impenetráveis, começaram a ser vistas como
maleáveis e transformáveis; e as pessoas aprenderam a imaginar o que
significaria viver em um mundo que não fosse tão exclusivamente
governado pelo princípio da supremacia branca. Essa consciência
coletiva emergiu no contexto das lutas sociais.56

Importante salientar que os movimentos sociais nesse período não foram


homogêneos, possuíam homens e mulheres que, alicerçados numa compreensão de que a
sua realidade não era imutável pelo próprio contexto das transformações ocorridas
durante a Segunda Guerra Mundial e da Guerra Fria e de uma certa insegurança
proveniente da mesma, começam a ir para a rua liderados por pessoas que até então
tinham papeis de lideranças locais. Com o assassinato de King Jr. em 1968 verifica-se a
mudança na forma de resistência proposto por ele. Na segunda metade da década de 1960
emergiu o movimento “Black Power”. O termo difundido em 1966 por Stokely
Carmichael, então líder do SNCC, mais que um movimento político esse termo
demonstrava os anseios dos negros norte-americanos para serem reconhecidos como
cidadãos.
Nesse contexto figuras como Malcom X e o Partido dos Pantera Negras para
Autodefesa (o BPP) destacaram-se. Os membros desse partido inicialmente faziam uma
espécie de policiamento da polícia, em Oakland, na Califórnia devido a brutalidade e
violência com a qual essa autoridade agia, observavam os comportamentos de policiais
ao efetuarem prisões e mais importante, patrulhavam as ruas armados o que causava uma
forte impressão na comunidade negra.57
O BPP teve um crescimento acelerado após a morte de King Jr. e Bobby Hutton,
um dos primeiros membros do partido, em 1970 sua presença era encontrada em todas as
grandes cidades estadunidenses. Segundo Ollie A. Johnson58 após 1970 discussões

56 DAVIS, Angela. A liberdade é uma luta constante. 1 ed., São Paulo: Boitempo, 2018, p.35
57
Ollie A. Johnson. Explicando a extinção do Partido dos Panteras Negras: o papel dos fatores internos,
Caderno CRH, 36 (2002), p. 97, disponível em: http://www.cadernocrh.ufba.br/
include/getdoc.php?id=957&article=160&mode=pdf, acesso em 10/06/2019.
58
Idem, Ibidem. p. 98.
35

internas por conta de divergências políticas e ideológicas combinadas à repressão do


governo e campanhas políticas sem resultados positivos precipitaram a dissolução desse
partido em 1982.
Contudo, apesar desses dois movimentos (feminista e negro) trazerem em seu
cerne a reivindicação de direitos, outro movimento permaneceu como um não lugar59, não
reconhecível de imediato: o das mulheres negras.
De acordo com Davis60 o feminismo negro foi um esforço teórico e prático de
demonstrar que raça, gênero e classe são inseparáveis nos contextos sociais em que
vivemos, ou seja, esse movimento se inicia nas intersecções e interconexões entre os dois
movimentos (negro e feminista).
Por esse ângulo podemos verificar ainda que a interseccionalidade foi concebida
a partir do feminismo negro, num cenário interdisciplinar. Quando Crenshaw formulou
esse conceito ela procurou levar em conta que existem múltiplas formas de identidade, e
assim como o movimento feminista é plural, também não é possível desconsiderar essas
características identitárias nas suas análises.
Bilge61 considera que

A interseccionalidade remete a uma teoria transdisciplinar que visa


apreender a complexidade das identidades e das desigualdades sociais
por intermédio de um enfoque integrado. Ela refuta o enclausuramento
e a hierarquização dos grandes eixos de diferenciação social que são as
categorias de sexo/gênero, classe, raça, etnia, idade, deficiência e
orientação sexual. O enfoque interseccional vai além do simples
reconhecimento da multiplicidade dos sistemas de opressão que opera
a partir dessas categorias e postula sua interação na produção e
reprodução das desigualdades sociais.

Há de se compreender que o feminismo negro presente nos movimentos sociais


nas décadas de 1970 e 1980, nasceu de uma busca identitária, a procura de um espaço de
reconhecimento que não era possível no interior dos movimentos sociais de então. Nesse
sentido, o desenvolvimento da categoria de interseccionalidade auxiliou na compreensão
de um aspecto importante, as relações de poder.

59
Usamos aqui o conceito de não lugar de Marc Augé que o define como um espaço não identitário, não
relacional e não histórico. AUGÉ, Marc. Não Lugares – introdução a uma antropologia da
sobremodernidade. Lisboa: editora 90°, 2009.
60
DAVIS, Angela. Idem, p.35
61
BILGE, Sirma apud HIRATA, Helena. Gênero, Classe e Raça Interseccionalidade e consubstancialidade
das relações sociais. Tempo Social, São Paulo, v. 26, n. 1, p. 61-73, june 2014. Disponível em:
<http://www.journals.usp.br/ts/article/view/84979/87743>. Acesso em: 20 jul. 2018.
36

Nesse sentido percebemos aqui um argumento caro a Foucault62, a noção de poder.


Ele aponta para a forma como se estabelecem as relações de poder em seu livro
Microfísica do Poder afirmando que esse poder foi exercido não de uma maneira única e
central, mas numa espécie de rede que abarca toda a sociedade, um modelo de estratégia,
não um privilégio que alguém possui ou algo que alguém se apropria, mas sim uma
espécie de exercício do poder, constituído por manobras técnicas e disposições que
poderão ser resistidas, contestadas, aceitas ou transformadas.
Associado a essa noção de controle temos
Assim, quando as mulheres negras começam a questionar o seu lugar e inquirir
sobre quem pode argumentar nos movimentos sociais, elas se apropriam dessas relações
de poder e começam uma escalada que, por maior e mais difícil de seja deu a elas
identificação enquanto sujeitos.
Djamila Ribeiro63 adverte sobre o quanto a mulher negra teve de procurar um
lugar de fala para si, não reconhecido então pelos movimentos citados anteriormente, mas
dos quais fazia parte. Verifica-se que a mulher negra é antítese da branquitude e da
masculinidade sendo por esse motivo o “Outro do Outro”, ficando circunscrita a um lugar
de extrema vulnerabilidade social como mostram as pesquisas mais recentes sobre a
violência à qual elas estão submetidas e que evidenciam o quanto identidades genéricas
como Homem e Mulher nas pesquisas contribuem para a invisibilização desse grupo
étnico-racial, além da manutenção de políticas públicas insuficientes para que haja
alguma mudança efetiva nessa realidade.
Segundo Bell Hooks64 em seu artigo Olhar Oposicional – expectadoras negras,
muitas vezes o espaço de resistência à essa situação vem do enfrentamento de grupos a
partir de seu olhar de crítica, que interroga a realidade dada e não aceita simplesmente o
que acontece como algo natural, mas que procura investigar e entender esses fatos.

O “olhar” foi e é um lugar de resistência para pessoas negras


colonizadas, em escala global. Os grupos subordinados nas relações de
poder aprendem, por experiência, que existe um olhar crítico que “olha”
para documentar, e que é oposicional. Na luta da resistência, o poder do
dominado para afirmar o agenciamento, reivindicando e cultivando a
“consciência”, politiza as relações com o olhar” – aprende-se a olhar de
certa maneira, para que se possa resistir.

62
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 4 ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984.
63
RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala. Belo Horizonte: Letramento. 2017.
64
HOCKS, Bell. Olhar Posicional. In: BRANDÃO, Izabel (org.). Traduções da cultura: perspectivas
Críticas feministas (1970-2010). Florianópolis: EDUFAL; Editora da UFSC, 2017. p. 495.
37

Nessa resistência a partir das relações de poder e de crítica insinuam-se lugares,


conceitos e categorias de análise que, originados na memória da luta e do empoderamento
das mulheres, traduzem a pluralidade do que foi o movimento feminista e de que modo
ele se configura atualmente, trazendo essas multiplicidades de olhares para as relações de
gênero.
Quando investigamos o contexto histórico das décadas de 1960 e 1970
identificamos nele uma pluralidade de manifestações sociais que despontaram de
diferentes formas nos artefatos culturais criados nesse período. Assim os comics
desenvolvidos pela Marvel trazem em seu escopo ideias históricas de gênero e raça
pertinentes de serem analisadas, em especial algumas das personagens criadas nesse
período com Ororo Monroe, Carol Danvers e Natasha Romanov.
38

CAPÍTULO 2 – AS PERFORMANCES HISTÓRICAS DA MARVEL SOBRE O


FEMININO

Tudo o que os homens escreveram sobre as mulheres deve ser


suspeito, porque eles são, a um tempo, juiz e parte.
(Poulain de la Barre65)

As histórias em quadrinhos geralmente são produtos da criação masculina, que


são voltadas e consumidas por esse público, apesar do número de leitoras ser significativo
e crescente66.
De maneira geral os papeis femininos estabelecidos nesse tipo de narrativa foram
estereotipados. O que é possível identificar em qualquer HQ, são papeis femininos nos
quais temos representadas a mãe, a esposa, a donzela indefesa, entre outras, conforme nos
informa Senna67. Personagens que dificilmente têm voz própria ou desempenham um
grande papel no roteiro. Essas funções mostram como as HQs estão permeadas de ideias
e valores de seus autores. Nessa perspectiva, tenta-se justificar porque a sexualidade
feminina é tão explícita nessas histórias: ela faria parte do imaginário masculino sobre as
mulheres.
Nesse sentido, analisar os personagens de histórias em quadrinhos como ideias
históricas, permite-nos certa compreensão do período retratado e das formas de pensar e
agir das pessoas em dado contexto histórico.
É interessante notar que os quadrinhos da década de 1960 foram analisados por
estudiosos como uma para-literatura que poderiam ser utilizados em pesquisas
sociológicas que ponderavam acerca de sua produção ou valores culturais nelas presentes,
bem como pela forma de recepção que seus leitores faziam.
Entre as personagens femininas, as vilãs aparecem como um dos arquétipos
femininos desde a Antiguidade, geralmente são mulheres maléficas, dotadas de poderes
sobrenaturais destruidores. Vampiras, feiticeiras geralmente vinculadas a forças ocultas,
sobrenaturais. Muitas vezes essas personagens usam seus corpos para conquistarem seus

65
BARRE, Poulain de la, apud BEAUVOIR, Simone de. O segundo Sexo. s/p.
66
CHICO, Márcia Tavares. “Aos amigos ausentes, amores perdidos e velhos deuses”: considerações
sobre o feminino em Sandman de Neil Gaiman. 2017. Dissertação (Mestrado em Literatura Comparada) –
Universidade Federal de Pelotas – Pelotas, RS.
67
SENNA, Nadia da Cruz. Deusas de Papel – a trajetória feminina na HQ do Ocidente, 1999.
Dissertação (mestrado em Multimeios) – Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas,SP.
39

objetivos, seduzindo, são as femme fatales, que exercem atração e repulsa com a mesma
intensidade.
Dentre essas personagens Natasha Romanoff, também chamada de Natasha
Romanova, Natalia Shostakova, Yelena Belova ou Natalia Romanoff é uma personagem
criada por Stan Lee, Don Rico e Don Heck que apareceu pela primeira vez na revista
Tales of Suspense #52 em 1964. Nessa história ela é uma superespiã, aprimorada
geneticamente para lutar pela União Soviética e estreou ao lado do herói Homem de Ferro,
quando foi enviada para assassinar Anton Vanko, missão concluída com sucesso, mas
que resultou na morte se seu colega Boris Turgenov. Para tentar recuperar a confiança da
KGB, Natasha ficou na América tentando seduzir Tony Stark68.
Percebe-se que a vilã mostrava, inicialmente, dois elementos importantes para o
contexto das HQs do período: primeiro era uma espiã soviética no período em que EUA
e URSS mantinham uma política de não-enfrentamento direto pelos riscos inerentes de
um conflito nuclear, mas que tinham nas suas redes de inteligência constantes tentativas
de obter segredos tecnológicos que as alicerçassem a uma posição superior a outra. Além
disso, enquanto vilã trazia característica de sensualidade que faziam parte do imaginário
masculino.
Foi entre as décadas de 1990 e 2000 que ela passa a ocupar uma posição mais
ativa nos Vingadores, quando esse grupo de heróis consegue evitar que ela sofresse novas
lavagens cerebrais e Natasha aproxima-se do lado da Lei e do Estado.
Além dela, outra personagem feminina criada no período pesquisado, foi Carol
Danvers. Conhecida inicialmente como Miss Marvel, ela fazia parte da Força Aérea
Americana e teria sido exposta à radiação de um aparelho alienígena que fez com que ela
“desenvolvesse uma grande força, um sétimo sentido de premonição e ganhasse um
uniforme”, assim nascia esta personagem no final da década de 1970, que receberá a
alcunha de capitã após a morte do Capitão Marvel em 2012.
Stan Lee inseriu vários personagens mais humanizados, ao longo do período em
que permaneceu a frente da Marvel Comics, mostrando-os em situações que envolviam
possíveis conflitos pessoais e amorosos. Um dos destaques de sua liderança foi a criação
do grupo de mutantes chamado X-Men, cujo desafio dos personagens era ser aceitos pela
sociedade com suas diferenças, numa analogia as lutas pelo movimento dos direitos civis.

68
PANINI ComicsGroup. Viúva-Negra. São Paulo: Salvat do Brasil LTDA. 2015.
40

A personagem Ororo Monroe, criada em 1975, integrou o time conhecido com


X-Men, o primeiro a efetivamente retratar uma equipe multiétnica nos quadrinhos, que
além disso apresenta a percepção da diferença entre personagens femininos e masculinos,
dando às mulheres papeis de super-heroínas de destaque. De acordo com o Dicionário
Marvel69, Ororo era descendente de uma princesa de uma tribo do Quênia que se casou
com um jornalista americano. Ao perder os pais em tenra idade, vivera muitos anos
próxima ao monte Kilimanjaro, período no qual seus poderes para controlar o clima e os
elementos emergiram. Ela teria auxiliado várias tribos locais, sendo cultuada como uma
deusa até o Professor Charles Xavier persuadi-la a empregar suas habilidades para
auxiliar a humanidade, ingressando na equipe dos X-Men.

2.1 Viúva-Negra

Conforme mencionado anteriormente, Nathasha Romanoff, também conhecida


pelo público dos quadrinhos como Viúva-Negra, apareceu pela primeira vez em 1964, na
Tales of Suspense #52. Criada por Stan Lee, Don Rico e Don Heck, começou sua carreira
nos quadrinhos como uma vilã.

69
MARTINS, Jotapê; CARVALHO, Helcio. Dicionário Marvel. São Paulo: Editora Abril. 1985, p.145.
41

Figura 3 – Tales of Suspense #52, Stan Lee, Don Rico e Don Heck 1964.

Fonte: PANINI Comics Group. Viúva-Negra. São Paulo: Salvat do Brasil LTDA. 2015

Nessa revista, a história se inicia nas instalações das Empresas Stark, chefiada
por Tony Stark, o Homem de Ferro. Lá tanto ele, quanto Anton Vanko, antigo cientista
soviético e alter-ego do Dínamo Escarlate, trabalhavam na criação de uma nova arma de
raios laser que ainda se revelava ineficiente. Após essas vinhetas aparece um novo
cenário, Moscou, onde o então presidente Nikita Krushev, convoca dois de seus agentes
secretos, Viúva-Negra e Boris para a missão de viajarem para os Estados Unidos e
eliminarem Anton Vanko, Tony Stark e, o próprio Homem de Ferro.
42

A aparição de Natasha é iniciada com o close de uma mão enluvada tocando a


maçaneta para abrir a porta e na sequência sua figura é apresentada ao leitor. O que vemos
é uma mulher jovem, bem vestida, cujo impacto visual proporciona ao leitor uma visão
objetificante da personagem feminina, ela está ali para o seu prazer.

Figura 4 – Primeira aparição da Viúva-Negra

Fonte: PANINI Comics Group. Viúva-Negra. São Paulo: Salvat do Brasil LTDA. 2015

Essas características eram comuns em vilãs dos anos 1950 e 60, mesmo que elas
não tivessem um papel de destaque na narrativa e faziam um contraponto às heroínas
apresentadas de forma a não chamarem atenção para a sua forma física.
De acordo com Oliveira70,
Nem sempre louras, mas sempre transgressoras, as vilãs eram donas de
uma beleza exótica e, na maior parte das vezes, possuíam olhos
levemente amendoados. [...] A beleza da vilã não é angelical; não é
envolta por uma aura infantil, mas sim pelo mistério.

Esse mistério que seduz o herói é utilizado pela personagem com maestria, sendo
mostrado pelas curvas e também pelos cabelos. Como verifica-se ainda hoje, os cabelos
femininos são vistos como fonte de volúpia e afirmação da sexualidade; nos quadrinhos
eles ainda assumem um outro papel, eles determinam se aquela personagem é boa ou má.
Não só o comprimento, mas a cor deles podem mostrar-se imbuídos de um significado
maior dentro da narrativa. No período em que as mocinhas e vilãs não eram identificadas

70
OLIVEIRA, Selma Regina Nunes. Mulher ao quadrado: as representações femininas nos quadrinhos
norte-americanos: permanências e ressonâncias (1895-1999). Brasília: Editora UnB/Finatec, 2007.
43

pela forma de seus corpos, a cor do cabelo podia ser uma distinção clara de seu papel na
história. Primeiramente, convencionou-se adotar os cabelos escuros às mocinhas, pois
essa cor era considerada uma cor sóbria, enquanto o louro associado ao fogo, ao perigo e
ao pecado era definido para as vilãs. Apenas a partir da Segunda Guerra Mundial que esse
padrão se desloca, motivado entre outros, pela emancipação feminina, devido a sua
atuação no mercado de trabalho. Entre os anos de 1950 e 1960 o cabelo louro começou a
ser característico das mocinhas, geralmente apresentado em penteados comportados e os
cabelos escuros fez parte de características físicas de vilãs e adversárias das namoradas
de heróis, logo associavam-se cores escuras, em especial o preto ao conceito de escuridão
e dissimulação71.
Verifica-se assim que os quadrinhos não apenas abordam elementos sociais e
culturais do período no qual foi escrito, mas que causam um impacto social e cultural
grande, pois apesar de suas especificidades, ao serem pensados como uma mídia de
grande alcance público, se tornam um instrumento de construção do imaginário coletivo.
Eco72 afirma isso ao colocar que

Só quando adquirimos consciência do fato de que o consumidor de


estórias em quadrinhos é o cidadão no momento em que deseja distrair-
se através da experiência estilística própria das estórias em quadrinhos,
e que portanto as estórias em quadrinhos são um produto cultural fruído
e julgado por um consumidor, que, naquela ocasião, está especificando
sua demanda naquela direção, mas leva para aquela experiência de
fruição a sua experiência inteira de homem educado também na fruição
de outros níveis, só então a produção de estórias em quadrinhos
aparecerá como sendo determinada por um tipo de procura
culturalmente visada.

Existe assim uma preocupação em pensar que não apenas os quadrinhos refletem
uma sociedade pontuada por valores de seu período, mas que além disso, ao serem um
produto da indústria cultural, carregam em seu escopo uma série de subjetividades, no
que Eco sinaliza, tornam-se elementos de persuasão que se mostram implicitamente como
um sistema que reforça os mitos e valores vigentes.
Douglas Kellner corrobora com isso ao afirmar que

[...] A cultura da mídia e a de consumo atuam de mãos dadas no sentido


de gerar pensamentos e comportamentos ajustados aos valores, às
instituições, às crenças e às práticas vigentes. No entanto, o público

71
ROXO, Lais Coitinho. Girl Power: a representação do Feminino nos Quadrinhos. 2018. Dissertação de
Mestrado em Comunicação. Universidade Federal de Juiz de Fora-MG. 2018, p.41.
72
ECO, Umberto. Apocalipticos e integrados. São Paulo: perspectiva, 1970; p. 59
44

pode resistir aos significados e mensagens dominantes, criar sua própria


leitura e seu próprio modo de apropriar-se da cultura de massa, usando
sua cultura como recurso para fortalecer-se e inventar significados,
identidade e forma de vida próprios. Além disso, a própria mídia dá
recursos que os indivíduos podem acatar ou rejeitar na formação de sua
identidade em oposição aos modelos dominantes.73

Assim Kellner aponta para o condicionamento da sociedade realizado mediante


padrões e modelos fornecidos pela cultura da mídia que se constitui como um discurso
dominante, ou seja, os produtos fornecidos pelas diferentes mídias foram desenvolvidos
no intuito de atender aos interesses de seus donos, assim qualquer tipo de entretenimento
propõem-se enquanto uma espetacularização do cotidiano, que além de mostrar-se
enquanto um paradigma da sociedade, ao mesmo tempo procura fazer com que ela se
identifique com as ideologias nela presentes.
Nesse sentido, a leitura da HQ que introduz a personagem Viúva-Negra mostra-
se permeada pela disputa das grandes superpotências EUA e URSS, quando assinala para
a atuação de espiões soviéticos em solo estadunidense e mais do que isso, a presença de
uma espiã, que procura através de sua figura seduzir o herói, no caso Tony Stark.

Figura 5 – Apresentação da Viúva-Negra a Tony Stark

Fonte: PANINI Comics Group. Viúva-Negra. São Paulo: Salvat do Brasil LTDA. 2015

73
KELLNER, Douglas. A cultura da Mídia. São Paulo: Edusc. 2001, p.11
45

Em meio a trama os espiões conseguem realizar seu intento, capturam Vanko e


depois de vestir a armadura de Dînamo Escarlate começa a destruir a fábrica, na qual
estavam os inventos desenvolvidos pelo cientista soviético e o americano.
Quando Stark é informado que a fábrica está em risco, dirige-se para lá certo de
que a última invenção desenvolvida por Vanko era a responsável pela explosão. Ao
chegar e ser confrontado por Boris, acreditando ser este o cientista soviético é atingido e
capturado. Ao recobrar a consciência no submarino consegue recarregar sua armadura e
regressa a fábrica levando consigo Vanko.
Numa segunda disputa com Boris a Viúva Negra é usada novamente como uma
armadilha ao herói quando finge ter sido atingida e grita em socorro.

Figura 6 – Viúva-Negra distrai Tony Stark na luta contra Boris

Fonte: PANINI Comics Group. Viúva-Negra. São Paulo: Salvat do Brasil LTDA. 2015

Nota-se que é explorada nessa vinheta o heroísmo de Stark, que como cavalheiro
não poderia deixar uma mulher em perigo. Esse elemento ressalta qualidades desse
personagem que inspirariam possíveis leitores da HQ. O que teríamos então é uma
abertura para que os leitores possam projetar suas aspirações. Como afirma Eco74 “trata-
se da identificação privada e subjetiva, na origem, entre um objeto, ou uma imagem, e
uma soma de finalidades, ora cônscias ora incônscias, de maneira a realizar-se uma
unidade entre a imagem e aspirações”

74
ECO, Idem Ibidem, p.242
46

Outro elemento que permeia a narrativa é o sacrifício de Vanko que para evitar
que sua arma caísse nas mãos dos soviéticos a destrói causando sua morte e a de Boris.
Em meio à confusão Natasha consegue escapar, mas está assustada pelas possíveis
consequências de seu fracasso.

Figura 7 – Destino da Viúva-Negra após a luta contra o Homem de Ferro

Fonte: PANINI Comics Group. Viúva-Negra. São Paulo: Salvat do Brasil LTDA. 2015

A personagem consegue ter uma boa aceitação pelo público, tornando-se parte de
várias aventuras do Homem de Ferro e com o passar do tempo exilou-se da União
Soviética deixando de ser uma vilã e uniu-se aos Vingadores. Sua história foi sendo
revelada ao longo de publicações de heróis das quais fez parte, até suas revistas próprias.
Ela faria parte da família Romanov, os últimos czares da Rússia, nascida em 1928 e teria
escapado de um ataque nazista que vitimou toda a sua família sendo criada por Ivan
Petrovich, seu salvador.
De acordo com a Panini75, teria crescido, estudando balé e tinha como objetivo
ser instruída no Bolshoi. Era uma estudante que se destacava em todas as atividades as
quais se dedicava: ginástica, dança, artes marciais, atletismo, estudo de línguas, entre
outros. Quando seu grande amor, Alexi Shostakov, aparentemente morre ao testar um

75
PANINI Comics Group. Viúva-Negra. São Paulo: Salvat do Brasil LTDA. 2015.
47

foguete experimental, Natasha torna-se uma operativa da KGB. Lá ela foi treinada na
Academia da Sala Vermelha e tornou-se uma das suas agentes mais habilidosas. Foi ali
que ela recebeu o codinome Viúva-Negra.
Em várias histórias ela passou por lavagem cerebral e acabou lutando ao lado de
“heróis” e “vilões”. Nessa perspectiva verifica-se a fragilidade feminina sendo enfatizada
pelos roteiristas, pois ela necessitaria de um outro herói para conseguir recobrar sua
memória.

2.2 – Miss Marvel

A heroína conhecida como Miss Marvel foi interpretada por diferentes


identidades/personagens, sendo conhecida durante a década de 1970 por Carol Danvers.
Essa personalidade mostrava-se como uma mulher norte-americana independente que se
envolvia na luta contra vilões, mas que não entendia o que estava acontecendo consigo
mesma. No primeiro comic em que aparece questiona-se sobre estranhos apagões pelos
quais passava.
Sua figura loira e voluptuosa chama atenção na capa da revista, evidenciando
outro aspecto recorrente nas heroínas do período, a sexualização ao qual são submetidas
muitas personagens mulheres dentro dos quadrinhos.
É necessário apontar para essa característica à luz do que foi construído a respeito
das teorias sobre gênero. Simone de Beauvoir (1908-1966) foi uma das investigadoras
que procuraram elucidar uma pergunta há muito recorrente na sociedade e que se torna
mais atual do que nunca: “Mas antes de mais nada: o que é uma mulher 76?” Esse
questionamento se faz contemporâneo quando assistimos as lutas de homens e mulheres
sobre suas identidades de gênero e Beauvoir tenta elucidar esse questionamento ao longo
de seu livro ao analisar a mulher à luz de diferentes teorias.
Nesse sentido cabe ressaltar e identificar o que significa ser contemporâneo de
acordo com Agamben77. Segundo esse autor a identificação de contemporaneidade é
complexa pois traduz um sentido de movimento, haja vista que os indivíduos que

76
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. 2. ed. Tradução Sergio Millliet. Volume único. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2009.
77
AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009, p. 17-25,
48

encontram-se imersos em seu tempo não conseguem interpretar criticamente o que vivem,
não podendo assim serem identificados como “contemporâneos”. É justamente do
estranhamento, da criticidade acerca do que vivem, do apontar para os problemas
políticos e sociais que podemos identificar o ser contemporâneo. Assim percebemos que
nas lutas pelos movimentos sociais encontramos o cerne do estranhamento que pontua a
contemporaneidade.
Entre as diferentes respostas encontradas por ela o que se torna claro é que a
mulher se constitui como o “Outro” do homem, que se mantem como a regra básica e
universal dentro da sociedade. Nesse sentido a mulher foi imiscuída de completa
alteridade, cerceada por mistérios não descobertos e por esse motivo temida em diferentes
contextos históricos.
Campbell78 corrobora com isso ao apontar sua dificuldade de escrever seu livro
“O herói de Mil faces”, haja vista seu problema em encontrar heroínas femininas. Ele
aponta que o herói encontrado em diferentes culturas como um dos arquétipos analisados
por Jung é sempre masculino e que recorreu à análise dos contos de fadas, pois estes
tinham em suas narradoras mulheres que influenciavam na construção desses enredos.
Como ele coloca “Todas as grandes mitologias e boa parte das narrativas míticas do
mundo tem um ponto de vista masculino.”79
Essa ainda é uma das inquietações de Michelle Perrot, que verifica a dificuldade
de investigar a história das mulheres e dos gêneros a partir das fontes históricas, pois elas
trazem uma visão masculina escrita para homens. Como ela aponta:

O “ofício do historiador” é um ofício dos homens que escrevem a


história no masculino. Os campos que abordam são os da ação e do
poder masculinos, mesmo quando anexam novos territórios.
Econômica, a história ignora a mulher produtiva social, ela privilegia
as classes e negligencia os sexos. Cultural ou “mental”, ela fala do
Homem em geral, tão assexuado quanto Humanidade. Célebres –
piedosas ou escandalosas – as mulheres alimentam as crônicas da
“pequena” história, meras coadjuvantes da História.80

Logo, evidencia-se uma das dificuldades que foram encontradas por muitos
pesquisadores: qual foi o papel desempenhado pelo feminino na história e assim
conseguir compreender as diferenças de gênero que fazem parte de nossa sociedade.

78
CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. São Paulo: Cultrix/Pensamento, [1948] 1989.
79
Idem, Ibidem, p.167.
80
Perrot. Michelle. 2006, p. 185.
49

Enquanto Beauvoir associa o feminino com as mulheres, essa identidade de


gênero mostra-se como uma construção que se alicerça na sociedade e na cultura, uma
vez que desde a infância se apontam como devem ser os modos, vestes e até mesmo como
a mulher deve ver o mundo. Como ela afirma “A ideia de feminilidade impõem-se de fora
a toda a mulher precisamente porque se define artificialmente pelos costumes e pelas
modas.”81 Portanto, apesar de cada período histórico ter seu entendimento sobre o papel
feminino, verifica-se que este ainda se mostra como o Outro que se submete ao poder
hegemônico.
Butler82 também aborda o questionamento inicial de Beauvoir no seu livro
“Problemas de gênero”, ela indaga “o que constitui o termo mulheres? O que caracteriza
e define essas mulheres e o que as levaria, afinal, a serem vistas como o sujeito do
feminismo?
Essa teórica problematiza a o termo “mulheres”, pois aponta para uma identidade
única para o feminismo, no qual todas as suas representantes deveriam ter as mesmas
ideias e características, sem exclusões. Como ela afirma:
Por um lado, a representação serve como termo operacional no
selo de um processo político que busca entender visibilidade e
legitimidade às mulheres como sujeitos políticos; por outro lado,
a representação é a função normativa de uma linguagem que
revelaria ou distorceria o que é tido como verdadeiro sobre a
categoria das mulheres.83

Nesse sentido, verifica-se que a categoria mulheres mostra-se excludente em si


mesma, pois promovem-se as mesmas características para o grupo, características essas
que se tornam supressores quando o indivíduo não se classifica dentro das mesmas.
Assim, como ela pontua o sujeito feminista, também se apresenta como um discurso
construído de tal forma que foi necessário nos anos 60 e 70 que aquelas que se viam assim
formassem seu próprio movimento com reivindicações próprias, como foi discutido no
capítulo anterior.
Essa preocupação de Butler tem um sentido maior quando analisamos a questão
de poder exercido por meio das discussões sobre a emancipação política dos sujeitos
femininos. Apenas depois que se entende que o sistema que representa a todos tem

81
BEAUVOIR, 2009, p.882.
82
BUTLER, Judith P. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de janeiro:
Civilização Brasileira, 2003.
83
Idem, Ibidem, p.18.
50

restrições é que se compreende que essa linguagem e política auxilia àquilo contra o qual
se luta.
Ao argumentar isso Butler se aproxima de Foucault quando esse diz
Ora, o que os intelectuais descobriram recentemente é que as massas
não necessitam deles para saber; elas sabem perfeitamente, claramente,
muito melhor do que eles; e elas o dizem muito bem. Mas existe um
sistema de poder que barra, proíbe, invalida esse discurso e esse saber.
Poder que não se encontra somente nas instâncias superiores da censura,
mas que penetra muito profundamente, muito sutilmente em toda a
trama da sociedade. Os próprios intelectuais fazem parte deste sistema
de poder, a ideia de que eles são agentes da "consciência" e do discurso
também faz parte desse sistema. O papel do intelectual não é mais o de
se colocar "um pouco na frente ou um pouco de lado" para dizer a muda
verdade de todos; é antes o de lutar contra as formas de poder
exatamente onde ele é, ao mesmo tempo, o objeto e o instrumento: na
ordem do saber, da "verdade", da "consciência", do discurso.84

Ao analisar essa questão, vê-se que Foucault preocupa-se com o papel


desempenhado por grupos intelectuais acerca da sua utilização na perpetuação de
discursos que buscam combater, assim como Butler que conclui que “[a] identidade do
sujeito feminista não deve ser o fundamento da política feminista, pois a formação do
sujeito ocorre no interior de um campo de poder, sistematicamente encoberto pela
afirmação desse fundamento.”85
Quando analisamos os quadrinhos, em especial os do pós-Segunda Guerra
Mundial, identificamos nesses uma preocupação paternalista entre seus criadores e o
público ao qual se dirigem. Janice Primo Barcellos86 aponta para esse fato em seu estudo
sobre a personagem Aline87 quando identifica que muitos leitores se mantem em sua zona
de conforto e procuram narrativas que propõem a manutenção dos mesmos
posicionamentos em vez de procurarem histórias com posicionamentos distintos.
O que se tem então são personagens femininas criadas em sua grande maioria por
homens e para homens que as apresentam com toda a perfomatividade de gênero que eles
compreendem sobre o que vem a ser o feminino.

84
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. p. 71
85
Butler, 2014, p.23.
86
BARCELLOS, Janice Primo. O feminino nas histórias em quadrinhos. Disponível em:
http://www.eca.usp.br/nucleos/nphqeca/agaque/ano2/numero4/artigosn4_1v2.htm. Acesso em: 06 abr.
2020.
87
Aline foi criada por Adão Iturrusgarai em 1996 e conta a história da personagem principal e seu
relacionamento poliamoroso.
51

Quando vemos essas super-heroínas, verificamos que muitas vezes seus corpos
são recorrentemente estereotipados e sexualizados. Segundo Melo e Ribeiro muitas
mulheres representadas nos quadrinhos preenchem três perfis diferentes
Aparecem como mocinhas indefesas à espera de seu herói, ou são as
vilãs sem escrúpulos que tentam a masculinidade dos heróis com seu
traje minúsculo e sua falta de moral, ou ainda a heroína com superpoder
ou não, que geralmente é jovem e bela, desenhada em 42 posições
sensuais que enfatizam seus atributos físicos.88

Ora esse elemento aparece claramente na capa da primeira versão de Miss Marvel,
nela vemos claramente como o corpo feminino é importante para que a personagem atraia
a atenção de seus leitores.

Figura 8 – Capa Ms. Marvel v.1 #1. 1977

Fonte: CONWAY, Gerry e BUSCEMA, John. Ms. Marvel v. 1, #1. 1977. Arquivo PDF.

88
MELLO, Kelli Carvalho; RIBEIRO, Maria Ivanilse. Vilãs, mocinhas ou heroínas: linguagem do corpo
feminino nos quadrinhos. Revista Latino-americana de Geografia e Gênero. Ponta Grossa, v. 6, n. 2,
ago. / dez. 2015. p. 106.
52

Portanto vemos como as ideias dessas pesquisadoras, de que o corpo feminino foi
construído sócio-culturalmente, são mostradas nesses quadrinhos. As imagens presentes
não apenas nos quadrinhos, mas em toda a cultura popular, de maneira geral mostram-se
como um ciclo no qual se repetem, naturalizando valores e influenciando a maneira na
qual os consumidores percebem o mundo. Elas afirmam que “[a] imagem idealizada da
mulher, ou melhor, do seu corpo, normatizadas nas HQs são na verdade representações
de desejos e fetiches do imaginário masculino”.89
Esse discurso acerca do corpo feminino foi construído historicamente, em especial
no que vemos acerca da sexualidade. Logo ao verificarmos como esses elementos visuais
são construídos ao apresentar uma possível leitura de padrões sócio históricos, torna-se
possível realizar uma análise do discurso que eles apresentam de maneira implícita.
Os corpos femininos nos quadrinhos foram usados por décadas como um meio de
controle acerca da sexualidade feminina e também da masculina. Não é um acaso que
personagens femininas apresentam curvas idealizadas que apontam para os padrões da
cultura de massa. Logo o que vemos é uma forma de leitura que busca que o leitor
decodifique seus significados, no que Foucault90 chamou de dispositivo de sexualidade

Através deste termo tento demarcar, em primeiro lugar, um conjunto


decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições,
organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas
administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas,
morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do
dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes
elementos. Em segundo lugar, gostaria de demarcar a natureza da
relação que pode existir entre estes elementos heterogêneos. Sendo
assim, tal discurso pode aparecer como programa de uma instituição ou,
ao contrário, como elemento que permite justificar e mascarar uma
prática que permanece muda; pode ainda funcionar como
reinterpretação desta prática, dando-lhe acesso a um novo campo de
racionalidade. Em suma, entre estes elementos, discursivos ou não,
existe um tipo de jogo, ou seja, mudanças de posição, modificações de
funções, que também podem ser muito diferentes. Em terceiro lugar,
entendo dispositivo como um tipo de formação que, em um
determinado momento histórico, teve como função principal responder
a uma urgência. O dispositivo tem, portanto, uma função estratégica
dominante.

Assim como outros elementos ao analisarmos o vestuário dessas personagens


encontramos subsídios para pensarmos seus significados no período analisado. O

89
Idem, Ibidem, p. 108.
90
Foucault, 1979, p.43.
53

uniforme vestido por ela lembrava as cores do então Capitão Marvel, mas sexualizado. O
que temos é uma espécie de maiô com recortes na barriga, pouco prático para suas
missões, mas que realça o corpo da heroína, outra característica é seu cabelo relativamente
longo e loiro. Podemos perceber que esses elementos são a primeira forma de contato
com o consumidor, o que chama sua atenção ao se deparar com essa revista nas bancas
tornando-o um possível leitor, ou seja, é a imagem que primeiro o seduz, só depois ele se
rende ou não à narrativa, assim, uma imagem que identifica uma personagem feminina
com muitos dos fetiches masculinos é consumida por esse público com rapidez.
Os quadrinhos mostram muito mais do que apenas uma imagem, mas sim um
modelo dos valores presentes em determinada época. Portanto, os quadrinhos se tornam
formas de reiteração de valores, sejam eles positivos ou não.
De acordo com Nogueira

Uma menina pode se identificar com a Mulher Maravilha por várias


razões: por ela ser mais forte que os homens, por ela ser mais inteligente
ou por ela ser mais bonita. Uma personagem de papel pode vir a ser o
modelo, o mito, que irá guiar as ações de uma criança, que se tornará
um adulto que irá reproduzir de alguma forma estes valores.91

Na apresentação de 1977, o que temos é uma jovem heroína com muitas


habilidades e concomitante a essa face também a enxergamos como uma jovem escritora
muito decidida em relação ao seu trabalho. Na sequência da luta na qual ela é apresentada
ao público, vemos uma Carol Danvers vestida com roupas da moda dos anos 1970 mais
sérias e contidas, uma blusa verde de mangas compridas e uma calça branca “boca de
sino”. Essa vestimenta contribui para mostrar uma personalidade centrada e decidida a
sua figura civil.
Percebe-se com isso, que os roteiros traziam o cotidiano das mulheres, a sua luta
por independência e direitos iguais. Contudo, as ideias apresentadas sobre elas ainda se
mostram como interpretações sobre como os produtores masculinos entendiam os
movimentos femininos. Ora essa é uma das abordagens que aparecem na primeira revista
da Miss Marvel.

91
NOGUEIRA, 2010, p.14.
54

Figura 9 – Discussão entre Carol Danvers e John Jameson sobre a edição de revista
feminina

Fonte: CONWAY, Gerry e BUSCEMA, John. Ms. Marvel v. 1, #1. 1977. Arquivo PDF.

Ao ser contratada como editora de uma nova revista feminina, uma das questões
que são retratadas é a dificuldade de ser levada a sério enquanto profissional, pois seu
chefe John Jonah Jameson ou "JJJ"92, indica a necessidade de trazer um conteúdo
interessante, no caso a aparição de uma nova e misteriosa heroína, identificada no 1°
quadro da narrativa como Miss Marvel. Através do comentário feito por ele e a respostas
dada por ela vemos outro elemento pertinente dessa análise.

92
Conhecido anteriormente pelo seu desempenho em revistas anteriores do Homem-Aranha, como o dono
do Clarim Diário.
55

Figura 10 – Discussão entre Carol Danvers e John Jameson sobre remuneração

Fonte: CONWAY, Gerry e BUSCEMA, John. Ms. Marvel v. 1, #1. 1977. Arquivo PDF.

O que fica implícito na questão da remuneração é que uma mulher deve lutar e se
posicionar frente a uma figura de autoridade caso queira ser levada a sério e ter suas
reivindicações atendidas. Isso aconteceria

[...] porque as personagens femininas que passam a habitar os


quadrinhos, independentes e liberadas, não são uma criação das
mulheres, mas uma projeção masculina sobre os modelos reivindicados
por mulheres no mundo todo. Deste modo, tal projeção masculina não
consegue escapar de uma outra representação: aquela que eles
consideram como feminino.93

Apesar dessas situações aparecerem na década de 1960/70 permanecem


contemporâneas, haja vista que ainda encontrarmos na sociedade uma diferenciação em
remunerações ofertadas a homens e mulheres para o mesmo emprego94. Muitas

93
BARCELLOS, 1995, s/p.
94
Segundo os dados da Pesquisa Nacional por amostra de Domicilio (Pnad), divulgado pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) relativa ao quarto trimestre de 2018, o mercado de trabalho
brasileiro mostra-se abusivo com as mulheres em relação as vagas disponíveis e aos salários pagos. As
informações mostram que a taxa de desemprego nesse período foi de 11,6%, dos quais homens representam
10,1% e as mulheres 13,5%. Além disso, as mulheres recebem 70% dos rendimentos dos homens. (RITA,
56

reproduções sobre o feminino buscam características fáceis de serem identificadas com


uma mulher, assim uma mulher com vestimentas usadas nesse período por elas e com
longos cabelos loiros torna-se fácil de ser identificada pelo público masculino. Logo,
como uma grande parte do público que consome essa mercadoria é masculino eles devem
conseguir identificar uma mulher sem grandes dificuldades, sem levar em consideração
que essas histórias serão lidas por muitas mulheres que não necessariamente se
identificam com essas personagens.
Assim, percebemos nessa figura feminina, quando transformada em heroína, a
construção de um objeto erótico para o leitor. Sua vestimenta é desenhada para o prazer
do olhar masculino, apresentada com um forte apelo sexual, em especial em cenas nas
quais curvas, decotes e posições são construídos nesse intuito. Logo ela é construída como
um espetáculo na narrativa normal, sendo determinante em momentos de tensão,
transformando-se em uma contemplação erótica. Se verificarmos o discurso produzido
por homens nesse período entende-se que mesmo enquanto protagonista sua importância
na trama é menosprezada, o que interessa são as emoções que ela provoca.
De acordo com Roxo95
Tradicionalmente, a exibição feminina funciona em dois níveis: como
objeto erótico para os personagens dentro da narrativa e como objeto
erótico para o espectador. O homem controla a fantasia no dispositivo
e também surge como representante do poder em outro sentido: como
portador da aparência do espectador, transferindo-o para esse papel.
Isso é possível através dos processos em movimento e enquadramentos,
estruturando a história em torno de uma figura controladora, do
personagem principal, da âncora que segura e comanda toda a narrativa
do começo ao fim, com quem o espectador pode se identificar. À
medida que o espectador se conecta com o principal protagonista
masculino, ele automaticamente projeta seu olhar para o seu
semelhante, sua visão substituída, de modo que o poder do protagonista
masculino controla os eventos com o poder ativo do olhar erótico,
ambos dando um sentido satisfatório da onipotência.

Vê-se que o foco no olhar é feito por meio da figura humana, assim, essa figura
deve exibir-se em posições ou mesmo situações dispensáveis na trama, ou seja, desde que
consiga prender o leitor utilizam-se de artimanhas como posições impossíveis ou ainda
em uniformes que não estão em acordo com as ações que a personagem desempenha na
trama.

Bruno Santa. Diferença de salário entre homens e mulheres atinge todas as classes sociais. In: Correio
Brasiliense; Brasília;08 mar. 2018; seção economia. Disponível em:
https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/economia/2019/03/08/internas_economia,741635/difer
enca-salarial-homens-e-mulheres-atinge-todas-as-classes-sociais.shtml. Acesso em 08 dez.2020
95
Roxo, 2018, p.46.
57

Assim, o que vemos em 1977 na primeira edição de Miss Marvel é uma heroína
habilidosa apesar de jovem e uma escritora confiante em sua capacidade enquanto
jornalista. Contudo a narrativa não consegue ser tão atrativa ao leitor pois a trama se torna
frágil com a amnésia seletiva que acomete a personagens em momentos convenientes,
pois não causa nela angústia e sim uma certa curiosidade.
Esses elementos causam estranheza quando nos deparamos com o fato de que ela
não sabe quem é, mas tem certeza que é uma guerreira Kree, assim como sabe que seus
conhecidos estão em perigo. Algumas perguntas são jogadas no ar, pois ao desmaiar
quando se transforma em Miss Marvel, qual é o momento e lugar onde ela se troca? como
a troca da identidade de uma heroína para uma civil ocorre. Apesar de algumas respostas
aparecerem em edições posteriores, todos esses elementos não tornam esse um enredo tão
atrativo.

Figura 11 – Desmaio de Danvers em sua transformação em Miss Marvel

Fonte - CONWAY, Gerry e BUSCEMA, John. Ms. Marvel, v. 1, #1. 1977. Arquivo PDF.

Vemos em Carol uma mulher madura, decidida e confiante, ela se apresenta como
uma profissional centrada, mas também aberta e agradável como se vê quando ela e Mary
Jane96 conversando, quando ela menciona ter trabalhado anteriormente como escritora. Já
como Miss Marvel suas lutas resolvem-se facilmente, pois ela é forte e ágil, lutar mostra-
se como algo natural. São nesses momentos em que percebemos como são enfatizadas

96
Personagem feminina reconhecida como a namorada de Peter Parker nos quadrinhos do Homem-
Aranha.
58

suas características físicas, os enquadramentos dão destaque aos seus quadris, peito e
barriga o que é feito de maneira proposital para enfatizar o corpo feminino de uma
maneira sexual. A personagem mantem-se assim em uma dualidade entre dois
estereótipos utilizados anteriormente nos quadrinhos a mocinha recatada e a sensual
heroína.

Figura 12 – Procura de Miss Marvel para salvar JJJ

Fonte: CONWAY, Gerry e BUSCEMA, John. Ms. Marvel, v.1 #1. 1977. Arquivo PDF.

A publicação do quadrinho da Miss Marvel manteve-se até 1979 e nesse período


a personagem teve apenas uma alteração na sua imagem de heroína, a mudança do
uniforme que passou a ser um maiô preto com um raio amarelo e um longo tecido
vermelho marcando a cintura, além disso foram inseridas luvas e botas pretas até o meio
das coxas e a máscara usada anteriormente permaneceu. Apenas em 2012 essa Carol
Danvers voltou à ativa com o codinome de Capitã Marvel.
59

Figura 13 – Capa Miss Marvel v.1 #20

Fonte - CONWAY, Gerry e BUSCEMA, John. Ms. Marvel v.1 #20. 1978. Disponível em
<https://www.vulture.com/2019/03/carol-danvers-journey-to-captain-marvel-in-costumes.html>. Acesso em: 20
jan. 2020

Conseguimos ver a diferença ainda na forma como essa personagem foi


desenvolvida mais recentemente, quando analisamos a figura da última Miss Marvel,
papel desempenhado atualmente por uma garota paquistanesa chamada Kamala Khan. De
acordo com sua narrativa essa garota teria assumido o lugar de Carol Danvers após ela
ter assumido como nova Capitã Marvel em 2012. Despois de mais de 35 anos entre uma
personagem e outra é interessante notar que o leitor de uma época é diferente do atual,
assim a narrativa também aborda uma sociedade diferente com preocupações diversas.
Contudo, a recepção de uma nova personagem muçulmana pela sociedade
americana, inicialmente, não foi isenta de críticas. Segundo Melo97, Stephen Colbert em
seu programa –The Colbert Report – foi um dos maiores censuradores dessa nova Miss
Marvel, dos comics e dos muçulmanos. Ele proferiu vários comentários sexistas nos quais
colocava que uma heroína muçulmana era uma derrota na guerra cultural que os Estados
Unidos travavam, além de afirmar que ela viria a substituir uma personagem que “era

97
MELO, G. B. F. de. Kamala e o caminho da empatia para a aceitação da alteridade nos
comics. Literartes, [S. l.], v. 1, n. 8, 2018. Disponível em:
https://www.revistas.usp.br/literartes/article/view/137811. Acesso em: 11 dez. 2020.
60

completamente americana: loira, valores familiares e com dois arredondados músculos


peitorais (fazendo um claro gesto de seios com as mãos)”. Por fim ele ainda acrescenta
que a nova Miss Marvel terá perdido na versão muçulmana a facilidade da exploração
sexual de sua figura feminina. Apesar disso as vendas do primeiro volume mostram seu
sucesso entre os leitores.
Segundo a Marvel Wiki98 essa jovem nascida em Jersey City, filha de pais
paquistaneses, tinha muitos conflitos por se sentir diferente de sua família. Ela é retratada
como uma nerd e fã de super-heróis, tendo seguido a carreira de Carol Danvers desde
antes que ela começasse a usar o nome de Capitã Marvel. Sua transformação teve efeito
após ter ido a uma festa sem o consentimento de seus pais, na qual fora ridicularizada.
Enquanto voltava para sua casa foi envolvida pela Névoa Terrígena liberada por Raio
Negro, o rei dos inumanos.
Logo que a Terrigênese99 (processo pelo qual humanos com algum DNA Kree
podem despertar habilidades únicas) se iniciou, Kamala teve uma visão na qual apareciam
Carol Danvers juntamente com o Homem de Ferro e o Capitão América. Nela Danvers a
questiona de porque desobedeceu seus pais e o que ela queria ser na vida, no que ela
responde: “Eu quero ser você!”. Nesse momento, ao sair de seu casulo, ela se transforma
literalmente em Carol Danvers, usando o uniforme antigo de Miss Marvel, seu poder
sendo o de transformar-se no que quisesse.

98
MARVEL WIKI. Kamala Khan. Disponível : https://marvel.fandom.com/pt-
br/wiki/Kamala_Khan_(Terra-616). Acesso em: 29 out. 2020.
99
A exposição a névoa terrígena ou Terrigênese (às vezes chamada de “T-Gen”, Terrigenisis ou
Terrigenação) é uma processo que permite que os Inumanos da Terra, seres de uma espécie humanoide,
descendentes de humanos normais, que há muitos séculos foram modificados em experiências realizadas
pelos alienígenas conhecidos como Kree, inalam o gás obtido com o uso dos Cristais de Terrrigênese, para
ativar seus genes desumanos e ascender como meta-humanos.
61

Figura 14 – Transformação de Kamala Khan em Miss Marvel

100

Fonte - WILSON, G. Willow; ALPHONA, Adrian e HERRING, Ian .Ms. Marvel v.3, #1. 2014. Arquivo PDF.

A partir de então, ela mantém o codinome de Miss Marvel, uma vez que Danvers
já havia assumido o título de Capitã Marvel e começa sua jornada como heroína,
mostrando conflitos próprios de jovens do século XXI, como o desejo de fazer parte, de
se enquadrar na sociedade. Ao mesmo tempo que ela tenta se adaptar, o que se percebe é
que ela se sente cada vez mais infeliz, pois em sua jornada de autoconhecimento ela
começa a compreender que o que faz dela diferente é também o que a define como
especial e única.
O ponto de vista de uma jovem paquistanesa vivendo dentro da comunidade
estadunidense e cercada de conflitos entre a pressão familiar pela manutenção de
tradições e o anseio de experimentar todas as coisas novas que aquela sociedade poderia
oferecer é uma constante nessa narrativa. Isso é um momento de reflexão importante, pois

100
No balão lê-se :Hmmmm...é muito tarde para mudar de ideia?
62

a perspectiva adotada pela personagem é a mesma experimentada pela editora101 Sana


Amarat, preocupações femininas escritas para um personagem feminina que já inicia seu
percurso questionando situações que anteriormente passavam ao largo do roteiro, devido
ao intuito de roteiristas e quadrinistas que tinham a preocupação mais voltada para a venda
de uma mercadoria para o público exclusivamente masculino.

Figura 15 – Questionamentos de Kamala sobre sua transformação

Fonte - WILSON, G. Willow; ALPHONA, Adrian e HERRING, Ian .Ms. Marvel v. 3, #2. 2014. Arquivo PDF

Ao analisarmos esses questionamentos da personagem acerca de sua


transformação verificamos ainda que os mesmos fazem parte da das vivências juvenis,
discutidos por Pais102 em suas análises acerca da sociologia da juventude. Para ele a
cultura juvenil corresponde aos valores aos quais os jovens de diferentes meios e
condições sociais aderem por reconhecerem-nos como elementos de pertencimento
legitimados pela convivência com o grupo.
Logo, quando Kamala questiona-se vemos reproduzida na personagem vivências
que perpassaram a vida de sua criadora e apresentam-se como situações cotidianas de
jovens em diferentes ambientes, o constante questionamento acerca de si e de seu lugar
em meio aos grupos sociais. Essa nova roupagem dada a ela ainda possibilita uma
identificação maior com o público juvenil, possibilitando novas conexões com eles.

101
Um editor de quadrinhos é responsável pela discussão com o roteirista acerca da história, mostrando-lhe
quais os possíveis caminhos que o argumento deverá seguir; verifica com o desenhista se a anatomia do
personagem está com problemas ou se o cenário está de acordo; é ele quem direciona a trama para o seu
público-alvo e acompanha a colorização dos desenhos. GUSMAN, Sidney. A diferença entre editor e editor.
2009. Disponível em: <http://universohq.com/beco-das-hqs/a-diferenca-entre-editor-e-
editor/#:~:text=informativa%20faz%20no%20seu%20dia,aplicado%20%C3%A0s%20hist%C3%B3rias%
20em%20quadrinhos.&text=estrangeira%2C%20o%20que%20impossibilita%20essa,termo%20apropriad
o%20para%20a%20fun%C3%A7%C3%A3o.>. Acesso em 10 jan. 2021.
102
PAIS, José Machado. As correntes teóricas da sociologia da juventude. In: Culturas Juvenis. Lisboa:
Imprensa Nacional, 1996. P. 54
63

Em 2015 o título concorreu ao 5º EisnerAwards (considerado o “Oscar” dos


quadrinhos), e levado um Hugo Award103 de MelhorGraphicStory, além de ter rendido
um Joe ShusterAward104 para o desenhista Adrian Alphona e uma
AngoulêmeInternationalComics Festival105 para Alphona e Wilson, como uma série de
HQ.
O que vemos nessa personagem é uma profunda identificação dos leitores com
ela, suas dúvidas e inquietações, uma personagem que não se rende a um discurso
universalista, mas procura fornecer perspectivas do global e do local, de uma sociedade
pós-moderna que tem algo a dizer sobre si. Ela traz imersa em suas atitudes toda a questão
do hibridismo cultural que segundo Toro106, não comporta nem a sua cultura original
(muçulmana), nem a cultura do espaço geográfico no qual ela se encontra
(estadunidense), mas sim uma terceira cultura, consequência do contato das duas
anteriores que a faz muito mais tolerante e disposta a negociar sua alteridade.
Stuart Hall107 ao analisar a questão caribenha de hibridismo cultural afirma que

[...]a cultura não é apenas uma viagem de redescoberta, uma viagem de


retorno. Não é uma “arqueologia”. A cultura é uma produção. Tem sua
matéria-prima, seus recursos, seu “trabalho produtivo”. Depende de um
conhecimento da tradição enquanto “o mesmo em mutação” e de um
conjunto efetivo de genealogias. Mas o que esse “desvio através de seus
passados” faz é nos capacitar, através da cultura, a nos produzir a nós
mesmos de novo, como novos tipos de sujeitos. Portanto, não é uma
questão do que as tradições fazem de nós, mas daquilo que nós fazemos
das nossas tradições. Paradoxalmente, nossas identidades culturais, em
qualquer forma acabada, estão à nossa frente, Estamos sempre em
processo de formação cultural. A cultura não é uma questão de
ontologia, de ser, mas de se tornar.

Kamala nesse sentido mostra-se como um personagem complexo, pois ao


contrário de seus familiares que ainda estão presos a cultura muçulmana, tem consciência
do seu redor, do que acontece na cultura muçulmana e na estadunidense, ela não
hierarquiza uma ou outra como vê os demais fazendo, mas age como uma negociadora
entre ambos. Uma negociação que é entrelaçada por conflitos de poder e que não serão

103
Mais importante prêmio de ficção científica do mundo.
104
Prêmiação canadense entregue anualmente, desde 2005, pela realização de destaques na criação de
histórias em quadrinhos, graphicnovels, webcomics e quadrinhos varejistas e editores.
105
Maior festival de quadrinhos da Europa, considerado por muitos como o “Cannes” dos quadrinhos. É
realizado anualmente desde 1974 em Angoulême na França.
106
TORO, Fernando de. El desplazamiento de la literatura, la literatura del desplazamiento y la
problemática de la identidad. Extravío:Revista electrónica de literatura comparada, núm.5. Universitat
deValència, 2010. Disponível em: <http://www.uv.es/extravio>. Acesso em: 05 jan.. 2021.
107
HALL, Stuart, Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG;
Brasilia: Repressentação da Unesco no Brasil, 2003. p.44
64

unificadas, mas se interconectam, pertencem a uma cultura e ao mesmo tempo a várias


outras.
O que temos com essa nova heroína é uma consciência de suas diferenças entre os
demais heróis, diferença essa que tem seus conflitos mais difíceis quando não se encontra
transfigurada em Miss Marvel, mas sim em sua identidade civil, uma personagem que
reflete como poucas os mesmos conflitos de seus jovens leitores, gerando uma empatia
que a tornou um símbolo importante nos Estados Unidos, um instrumento de combate ao
preconceito nesse país.
Ao mesmo tempo vemos nela questões complexas a respeito de como, nos Estados
Unidos da América, esse hibridismo aparece, pois apesar de serem mostradas várias cenas
nas quais Kamala apresenta um dilema identitário, vemos que o discurso conciliatório do
hibridismo aponta para a preservação da cultura estrangeira.
Assim ao mesmo tempo que temos elementos típicos dos quadrinhos norte-
americanos vemos ainda um discurso embutido neles, no qual procura-se a docilidade
daquele que era visto até então como inimigo, como Foucault108 coloca, ao conhecer,
catalogar e adestrar um corpo procura-se adaptá-lo e torna-lo passível de ser manipulado.
Assim em meio aos discursos do hibridismo cultural dessa personagem, vemos também
a defesa das diferenças e da integração que fortalece o discurso estadunidense de
democracia, um país que governa o resto do mundo a partir de uma postura de
aceitação.109
Portanto, o que vemos nessa personagem é novamente a manifestação de
acontecimentos recentes da história mundial, em especial a dos movimentos pelas
liberdades civis que não foram mitigados, mas sim instigados a lutar por uma sociedade
mais igualitária, pontuando novamente os Estados Unidos enquanto um lugar de
oportunidades .

108
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 36. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2009.
109
ZIZEK, Slavoj. Bem-vindo ao deserto do real: cinco ensaios sobre o 11 de setembro e datas
relacionadas. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003.
65

2.3 Tempestade

Os movimentos públicos realizados pela comunidade negra nos Estados Unidos


nas décadas de 1960 e 1970 tiveram efeito na criação de personagens negros nos
quadrinhos, mas inicialmente esses personagens eram masculinos, como o Pantera Negra
(1966) e Luke Cage (1972), apenas em 1973 surge uma personagem feminina negra
denominada Misty Knight, e dois anos depois a Marvel incorpora uma personagem negra
ao grupo de mutantes conhecido como X-Men, Ororo Monroe, também conhecida como
Tempestade.
De acordo com Lauretis110 essa ideia é um produto de variadas tecnologias sociais,
sendo cinema e televisão, e discursos institucionais, como o acadêmico, capaz de
controlar o campo do significado social, promover e implantar a construção de gênero.
Se projetarmos isso ao campo dos quadrinhos, é possível compreender que de uma
maneira geral a representação feminina não se dá apenas na valorização de determinados
atributos físicos, mas na ausência de características, como a falta de protagonistas negras
até 1980, onde não era mais possível excluir essa etnia dos principais papéis da história
É relevante apontar que a criação tardia da personagem Ororo Monroe, uma
mulher africana e também uma das líderes dos X-Men, foi um dos resultados provenientes
das mudanças na tradição dos quadrinhos em especial para o questionamento dos
conceitos de liberdade, de preconceito racial e de gênero.
Ela foi a primeira personagem feminina a fazer parte de uma equipe mainstream
da Marvel, contudo, apesar de ter pele negra seus traços faciais são mais próximos das
populações brancas, agradando aos leitores masculinos que consumiam os quadrinhos, ao
mesmo tempo que trazia elementos que fortaleciam o ideário que ligava mulheres negras
à estereótipos sexuais ou mesmo bestiais. Ao longo de muitas narrativas verifica-se a
intencionalidade dos roteiristas de associá-la à elementos de força, mas principalmente
de fragilidade ao trazerem de maneira recorrente sua claustrofobia, sua única fraqueza.
Esse elemento também é percebido nas personagens da Viúva-Negra e Miss Marvel e em
outras que não são foco de análise nessa dissertação.
Essa fraqueza pode ser explicada também devido aos estudos que são realizados
na década de 1960 sobre a família negra, mais especificamente ao estudo feito pelo

110
LAURETIS, Tereza de. A Tecnologia do Gênero. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
66

governo em 1965 que teve como resultado o Relatório Moynihan, que relacionava vários
dos problemas sociais e econômicos da comunidade negra com a estrutura familiar
matriarcal predominante nela.111
Esse relatório enfatizava que além de vários outros problemas provenientes da
escravidão, o cerne que impedia essa parcela da população a se estruturar estava na
ausência de autoridade masculina. Assim, identificamos nesse estudo um problema
recorrente na sociedade branca e patriarcal, a culpabilização de pessoas que não tinham
condições de uma defesa efetiva sobre os estereótipos e falácias que eram registrados
sobre si.
Quando olhamos o primeiro aparecimento dessa personagem verificamos que o
visual dado a ela foi criado num contexto de modificações dos traços dos grandes heróis
da Marvel. De acordo com Lima112 a personagem Tempestade surgiu da fusão de outras
duas personagens de Outsiders: Quetzal e Typhoon, mas após seu ingresso na equipe dos
X-Men ela adquiriu os poderes conhecidos atualmente e que fizeram com que os
brasileiros, muitos dos quais se identificam com origens africanas, reconhecessem nela a
orixá Iansã113. Ela se destacou entre os personagens desse período, pois era negra, mulher
e uma das principais lideranças de uma das grandes equipes de quadrinhos da década de
1970 e das posteriores.114
Segundo Quiangala115
Considerando esse racismo engendrado (COLLINS, 2000), isto é, a
interseccionalidade entre raça e gênero, comparar mulheres de forma
generalizante decorre de uma falsa simetria analítica que visibiliza a
experiência e visão de mundo de mulheres brancas e silencia
experiências de mulheres racializadas e/ou que performem feminilidade
de forma diferente da prescrição hegemônica.

111
Davies, Mulheres, raça e classe, p. 32
112
LIMA, Sávio Queiroz. Garra de Pantera: os negros nos quadrinhos de super-herói dos EUA. In:
Identidade!, São Leopoldo, v.18 n. 1, p. 90-102, jan.-jun. 2013.
113
Iansã é uma das orixás femininas mais cultuadas no Brasil dentro da religião de matriz africana chamada
de Candomblé. De acordo com as crenças de seus seguidores ela estaria ligada as forças da natureza como
os demais, sendo associada à figura de “Santa Bárbara” uma vez que é uma mulher guerreira que usa uma
espada na mão, além de ser a protetora das tempestades e possuir em suas vestes a cor vermelha. (DANTAS,
Rafael, Jesus da Silva. O poder feminino de Iansã e o esquecimento do negro no Museu. Anais do Seminário
Nacional de Sociologia da UFS. 25 a 27 de abr. 2018. Disponível em:
<ri.ufs.br/bitstream/riufs/12909/2/poderFemininoIansaEsquecimentoMuseu.pdf>. Acesso em 20 nov.
2020.
114
ROZ, Savio. Tempestade: a Iansã dos quadrinhos. Disponível em:
https://savioroz.wordpress.com/2018/07/16/tempestade-a-iansa-dos-quadrinhos/>. Acesso em 20 nov.
2020.
115
QUINGALA, Anne Caroline. A fantasia deles sobre nós: a representação das heroínas negras nos
quadrinhos mainstream da Marvel. Dissertação de Mestrado em Literatura. Universidade de Brasília. DF,
2017. P. 59.
67

Portanto verificamos como o racismo é abordado nesses comics como uma forma
de classificação no qual elementos mais desumanizantes são características de alguns
personagens e mostram de que forma o contexto histórico foi incorporado neles.
Podemos identificar esses elementos em personagens como Luke Cage que
apresenta uma versão estereotipada do modelo de masculinidade negra, ou seja, é
evidenciado a todo momento suas características físicas e sociais: grande, forte, ex-
membro de gangue cuja prisão injusta o submeteu a experimentos científicos que legou-
lhe superforça e pele invulnerável. Nota-se que mesmo essas características apontadas
como positivas são relacionadas em momentos de suas histórias com elementos
animalescos, além disso são evidenciados em suas narrativas muitos envolvimentos com
personagens femininas, mostrando-o como um objeto sexual.
Outro elemento para o qual se deve atentar são os discursos ideológicos que são
apresentados por meio dessa personagem. Pois a África apresentada nesse quadrinho era
uma África primitiva, na qual as crenças estavam acima da ciência, uma vez que a
personagem se apresenta como uma espécie de deusa. Então nos perguntamos: essa
construção foi feita para quem? Por que essa personagem feminina e negra, uma das
primeiras a compor uma equipe mainstream da Marvel, foi caracterizada assim? Ou seja,
verificamos que essa personagem não demonstra apenas o discurso sobre a África, mas
sim que ela reproduz um discurso colonialista acerca desse continente e sobre como uma
mulher negra se apresentaria.
68

Figura 16 – Primeira aparição de Ororo Monroe em X-Men

Fonte- LEE, Stan; Wein, Len e Cockrum, Dave. Giant Size X-Men #1. 1975. Versão em PDF

É interessante, assim, verificar como essa personagem foi vista inicialmente para
os consumidores das HQ’s da Marvel, como foi a recepção dessa nova personagem num
contexto histórico-social de lutas e disputas da comunidade negra norte-americana.
Oliveira116 é uma das pesquisadoras que aponta para o fato de que
[...] a história em quadrinhos é um jogo de recriação no qual os autores
se reapropriam de representações para construir uma forma de discurso
aparentemente inédita, em que, a cada quadrinho, a interação da
imagem com o texto institui modos de ser e de estar no mundo.

Deste modo como os leitores deveriam ver as sociedades africanas nesse


contexto? Eram tribais, supersticiosas e crédulas. Carentes de conhecimento
“civilizado”/científico, argumento utilizado em vários momentos históricos para justificar
a ocupação e dominação de territórios.

116
OLIVEIRA, 2007, p. 141
69

Figura 17 – Manifestação dos poderes de Tempestade

Fonte1- LEE, Stan; Wein, Len e Cockrum, Dave. Giant Size X-Men #1. 1975. Versão em PDF

Quando observamos a primeira aparição dela na HQ dos X-Men, verificamos


como a sexualização da personagem estava presente nessa narrativa, demonstrando ainda
como ideias preconcebidas sobre a pessoa negra eram projetadas em diferentes
mercadorias produzidas para a sociedade de massas. Como aponta Kilomba117
No racismo cotidiano, a pessoa negra é usada como tela para projeções
do que a sociedade branca tornou tabu. Tornamo-nos um depósito para
medos e fantasias brancas do domínio da agressão ou da sexualidade. É
por isso que, no racismo, a pessoa negra pode ser percebida como
“intimidante” em um minuto e “desejável” no minuto seguinte, e vice-
versa “fascinantemente atraente” a princípio, e depois “hostil e “dura”.
Em termos freudianos, os dois aspectos da “agressão” e da
“sexualidade” têm sido reprimidos e reprojetados de forma massiva em
outros grupos raciais. Tais processos permitem que o sujeito branco
escape de sua historicidade de opressão e se construa como “civilizado”
e “decente”, enquanto “Outras/os” raciais se tornam “incivilizadas/os”
(agressivos) e “selvagens” (sexualidade).

117
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. 1 ed. Rio de Janeiro:
Cobogó, 2019. p.78-79.
70

O que verificamos assim é que nesse momento, o sujeito Negro é visto como um
algo ruim, trazendo características que a sociedade branca, ocidental buscava reprimir,
chegando a transformá-lo em discussões proibitivas como a sexualidade e a
agressividade. Assim percebe-se que a branquitude consegue se ver como moralmente
superior, civilizada e livre de consequências trazidas pelos fatos históricos. Portanto, o
que se apresenta nessa personagem é a fantasia branca sobre como a Negritude Feminina
deveria ser.
O fato dela aparecer despida nessa vinheta mostra como os seus criadores
gostariam que seu público a compreendesse, ela ainda aparece em um plano total e de
ângulo de visão contre-plongé, ou seja, uma ação vista de cima para baixo que a mostra
muito forte em relação aos seus adoradores que a estão vendo de baixo e que é muito
comum nas histórias de super-herois.
Outro elemento dessa figura que contribui para uma distinção sexualizada da
personagem é o cabelo longo com o qual ela se apresenta. Segundo Oliveira118 os cabelos
femininos são utilizados como um símbolo sexual que alicerça a legitimidade ou
estigmatização de uma identidade. Para a classificação da fase etária feminina eles são
usados como referência, em especial a sua cor e seu comprimento, assim mulheres jovens
são ilustradas com cabelos longos e a partir da maturidade há um encurtamento de suas
madeixas. Logo, o que se observa é um simbolismo que associa sexualidade a esta
característica feminina. Isso fica ainda mais evidente quando ponderamos sobre
quadrinhos posteriores dessa personagem, no qual ela adota o corte de cabelo moicano.
Ao avaliar essa personagem, não pode-se furtar de analisá-la a luz da
interseccionalidade. Ao apontarmos para uma investigação de uma mulher negra,
percebe-se inicialmente que ela é vista primeiro como negra e em seguida como mulher,
esses dois fatores colocam a percepção dela em uma posição distinta das demais.
De acordo com Kilomba119

[...]“Raça” não pode ser separada do gênero nem o gênero pode ser
separado da “raça”. A experiência envolve ambos porque construções
racistas baseiam-se em papéis de gênero e vice-versa, e o gênero tem
um impacto na construção de “raça” e na experiência do racismo. O
mito da mulher negra disponível, o homem negro infantilizado, a
mulher muçulmana oprimida, o homem muçulmano agressivo, bem
como o mito da mulher branca emancipada ou do homem branco liberal

118
OLIVEIRA, 2007, p. 163-164
119
KILOMBA, 2019, P. 94
71

são exemplos de como as construções de gênero e de “raça” interagem.


(grifo da autora)

O que verificamos assim é uma forma de opressão específica, na qual os efeitos


sentidos são distintos daqueles sentidos pelo sujeito negro ou pela mulher branca. Essas
características mostram o quão impossível é analisar uma personagem ou ainda uma
pessoa através de uma única identidade. Nesse sentido a problematização dessas
construções se torna essencial nas aulas de história, ambiente no qual estudantes oriundos
de diversos grupos sociais encontram espaço privilegiado para discussões.
Ao analisarmos ainda a construção dessa personagem, faz-se mister pensar em
como a juventude desse período influenciou sua construção, como esse elemento
possibilita associarmos a aula de história com a realidade de alunos e alunas que chegam
no ambiente escolar acreditando ser este um espaço de memorização completamente
distinto de sua realidade. Ao fazermos pontes com assuntos que eles lidam no seu
cotidiano e ao mesmo tempo apontarmos para assuntos que fazem parte do seu lazer, eles
conseguem perceber-se como sujeitos históricos que lidam com processos históricos
mediados por relações de poder que se manifestam em diferentes esferas de sua vida
cotidiana.
Cabe ainda evidenciar como o personagem mutante Charles Xavier retrata todo o
discurso colonialista de superioridade frente a alteridade, ao incitá-la a conhecer uma
ambiente maior que o habitado e “Real”, pois ela viveria em uma fantasia.

Figura 18 – Charles Xavier e seu contato com Ororo.

Fonte - LEE, Stan; Wein, Len e Cockrum, Dave. Giant Size X-Men #1. 1975. Versão em PDF
72

Além disso, a atitude de Charles Xavier traz referências de outro discurso


arraigado no imaginário norte americano, a ideia de que a população norte-americana é o
povo eleito e que deve, assim cumprir “seu destino manifesto” que é a de levar o progresso
a outras sociedades. Assim percebe-se a importância que os recursos culturais tinham no
discurso norte-americano ao difundir seus valores, algo que alguns estudiosos sobre o
período chamam de guerra branda.120
Cabe ressaltar a relevância da análise desse enredo, quando se investiga como
essas personagens são apresentadas nessas narrativas e como torna-se pertinente olha-las
por meio de leituras específicas de quadrinhos121. Logo ao propormos qualquer atividade
de leitura de quadrinhos, devemos esclarecer aos estudantes que nada que aparece em
uma história está desvinculado de um sentido ou uma intencionalidade ou mesmo de
trazerem em seu escopo significados mais complexos sobre a experiência do período por
ele vivido.
Assim, começamos a engendrar um processo de desnaturalização122 das ideias
históricas sobre as mulheres negras nas HQ’s ao iniciarmos um procedimento de
compreensão sobre como os conceitos coloniais aparecem nas tramas de super-heroínas.
Além disso, verificamos como valores inventados pelos grupos hegemônicos são
incorporados na sociedade.
Dessa maneira o que vemos em todas as figuras femininas retratadas foram ideias
que revelam as construções históricas e sociais que permeiam os produtos culturais. Nesse
sentido é importante que ao trabalharmos com estudantes do Ensino Médio
proporcionemos momentos de discussão dessas mercadorias para que eles consigam fazer
uma leitura crítica da sociedade. Assim, o capítulo seguinte apresenta algumas propostas
de oficinas que poderão ser trabalhadas com esse público.

120
GALDIOLI, Andreza da Silva. A cultura norte-americana como um Instrumento de Soft Power dos
Estados Unidos: o caso do Brasil durante a Política de Boa Vizinhança. Dissertação de Mestrado
(Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da UNESP, UNICAMP, PUC-SP). 2008, p.58.
Diponível em:
https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/96282/galdioli_as_me_mar.pdf?sequence=1. Acesso
em: 06 dez. 2020.
121
Para tanto torna-se essencial analisar esses roteiros através de uma leitura específica como a proposta
por Eisner (...), Mccloud (...) e O’Neil (2005)
122
DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016 [1982]
73

CAPÍTULO 3 - ENSINO DE HISTÓRIA: PROPOSTAS PARA O


APRENDIZAGEM COM HISTÓRIAS EM QUADRINHOS

A escola enquanto instituição social deve ser pensada em seus múltiplos


interesses, especialmente em suas determinações políticas, sociais e psicológicas, talvez
esse seja uma dos maiores desafios enfrentados no século XXI, pois ela é vista por muitos
como o ambiente ideal para solidificar os princípios de uma sociedade moderna e justa,
que oferece igualdade de condições para desenvolver as diferentes potencialidades dos
estudantes.
Um ambiente acolhedor e ao mesmo tempo instigante é aquela no qual se
consegue fazer a mediação entre crianças e jovens e o conhecimento historicamente
acumulado, numa relação que mostra-se permeada por progressos pessoais e intelectuais.
Esse capítulo trabalhará com a caracterização do público alvo do ensino médio,
uma breve avaliação sobre as propostas da educação histórica para etapa do ensino básico
além de propostas de trabalho com Histórias em quadrinhos para esse grupo.

3.1 A juventude, entre inquietações e impassibilidade

Vejo na TV o que eles falam sobre o jovem não é sério


O jovem no Brasil nunca é levado a sério (...)
Sempre quis falar, nunca tive chance
Tudo que eu queria estava fora do meu alcance (...)123

No Brasil, a partir da década de 1990, iniciou-se um processo de redemocratização


que mudou o foco do pensamento educacional para a aprendizagem dos alunos e começou
a pensar o currículo como uma construção social. Nessa perspectiva houve a aprovação
da Nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) em 1996, que tornou a educação
um direito básico e universal do cidadão brasileiro.
No escopo dessas mudanças percebe-se que o ensino de História também se
alterou, haja vista que este passou a ser influenciado nas salas de aula pela 3ª geração dos
Annales que já eram discutidos nas universidades. Essa mudança abriu espaço para que
vozes de personagens que antes não apareciam nos livros didáticos fossem ouvidas, obras

123
Charlie Brown Jr. Não é sério.
74

que passaram a abordar temas como cotidiano, família, cultura material e outros objetos
que não apenas a história política.124
As intensas discussões que levaram a formulação dos Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCN) colocavam o ensino de História como veículo privilegiado para a
discussão das identidades, numa perspectiva multiculturalista, que associava-se também
com a formação de um cidadania crítica da realidade social. Nesse sentido verifica-se que
houveram momentos nos quais o contexto social influenciou na promoção de relações
entre as Universidades e o ensino de História nas escolas.
Contudo não existe consenso se essas alterações foram de todo benéficas uma vez
que como coloca Selva Fonseca125 teria ocorrido uma restrição do objeto da disciplina,
sendo uma reforma que primou pelo aspecto econômico que procurava formar indivíduos
aptos para atender as demandas da produção. O relativo esvaziamento político da história
ensinada então seria um dos elementos que contribuíram assim para um novo momento
de crise da disciplina.
Caimi126 aponta para uma dificuldade que aconteceu nas décadas de 1990 e 2000
em relação à ausência de uma Base Nacional Comum Curricular (BNCC), nesse momento
o mercado editorial supriu essa lacuna transformando os livros didáticos numa espécie de
currículo mínimo, ou “currículo editado”127 que, criado por uma editora, é uma versão
impressa e simplificada para difundir os códigos fundadores da nação.
A construção da BNCC no Brasil ocorreu num momento de intensa polarização
política, e crise social e econômica. Essa situação impediu o debate necessário para que
a base fosse bem fundamentada. Percebemos isso quando lemos a primeira e a quarta
proposta da Base Nacional Comum Curricular e verificamos quão díspares são as duas
propostas.
O fragmento da 1ª versão da Base Nacional Comum Curricular propõe que
O componente curricular História tem por objetivo viabilizar a
compreensão e a problematização dos valores, dos saberes e dos

124
MATHIAS, Carlos Leonardo Kelmer. O ensino de História no Brasil: contextualização e abordagem
historiográfica. História Unisinos, São Leopoldo, vol. 15, nº 1, janeiro/abril de 2011. p.47
125
FONSECA apud MATHIAS, 2011, p.47
126
CAIMI, Flávia Eloisa. A História na Base Nacional Comum Curricular pluralismo de ideias ou guerra
de narrativas? Revista do Lhiste, Porto Alegre, num.4, vol.3, jan/jun. 2016, p. 86 – 92.
127
O currículo editado é aquele presente em manuais didáticos utilizados por professores em suas aulas,
muitas vezes sendo o único instrumento que esse profissional tem a sua disposição para referencia-las. Di
FRANCO María Graciela; SIDERAC, Silvia; DI FRANCO, Norma. Del curriculum ensenado al
curriculum editado. In: Revista Praxis Educativa, v. 10 n.10, p. 81-87. Disponível em: <
https://cerac.unlpam.edu.ar/index.php/praxis/article/view/482/415>. Acesso em 15 de jan. 2021.
75

afazeres de pessoas, em variadas espacialidades e temporalidades,


em dimensões individual e coletiva.
[...]
Uma questão central para o componente curricular história são os
usos das representações sobre o passado, em sua intersecção com
a interpretação do presente e a construção de expectativas para o
futuro. As análises históricas possibilitam, assim, identificar e
problematizar as figurações construídas por e sobre sujeitos em
suas diferentes noções de tempo, de sensibilidade, de ritmos. A
reflexão sobre os usos do passado remete a memória do
patrimônio e aos seus significados para os indivíduos nas suas
relações com grupos, povos e sociedades.128

Assim essa primeira versão confrontava o ensino de história da forma como era e
é trabalhado nas escolas no qual o passado é visto como um processo factual de
conhecimento, centrado na história europeia.
Essa versão ainda trazia a centralidade da História do Brasil
[...] Assim, parte-se, nos anos iniciais, dos saberes necessários à
apropriação histórica do tempo e ao desenvolvimento de
conhecimentos para a compreensão contínua de processos
históricos cada vez mais complexos. Para tanto, enfatiza-se a
História do Brasil como alicerce a partir do qual tais
conhecimentos serão construídos ao longo da Educação
Básica.129

Nessa perspectiva a proposta aprofundava o que os PCN’s colocavam, ao trazer


como elemento central o desenvolvimento das identidades, mas ao mesmo tempo
apresentava problemas que foram maximizados devido à crise política que polarizava as
discussões em discursos político-partidários.
Caimi130 argumenta que esse contexto político foi decisivo para a publicação de
outras versões da base, em especial da disciplina de História que é um locus privilegiado
sobre o que é válido ensinar sobre o passado e consequentemente qual é o discurso
legitimado no presente.
Quando analisamos a 4ª e última versão da BNCC percebe-se o retorno da história
historicizante, com currículo tradicional pautado em procedimentos básicos: o ensino
factual e cronológico centrado na história europeia.

128
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E DA CULTURA. Base Nacional Comum Curricular (BNCC). 2016
129
Idem Ibidem
130
CAIMI, Flávia Eloisa. A História na Base Nacional Comum Curricular pluralismo de ideias ou guerra
de narrativas? Revista do Lhiste, Porto Alegre, num.4, vol.3, jan/jun. 2016, p.87
76

O processo de ensino e aprendizagem da História no Ensino Fundamental – Anos


Finais está pautado por três procedimentos básicos: pela identificação dos eventos
considerados importantes na história do Ocidente (África, Europa e América,
especialmente o Brasil), ordenando-os de forma cronológica e localizando-os no espaço
geográfico. As relações de poder mantêm-se nessa versão que desconsidera as pesquisas
acadêmicas sendo um retrocesso no ensino de história.
Contudo o elemento que mais fortemente demonstra a crise pela qual essa
disciplina passa no Brasil atualmente é a lei 13.415, de fevereiro de 2017, conhecida
popularmente como Reforma do Ensino Médio. Essa legislação se justificaria pelos
índices que a educação brasileira teria atingido em avaliações internas e externas, além
do alto índice de evasão nas escolas. O que não é mencionado pelos seus defensores é o
relativo sucesso da proposta de ensino dos Institutos Federais de Educação, o que permite
questionar o argumento apresentado pelo governo.
A lei 13.415 de 16 de fevereiro de 2017 mostra algumas das alterações dessa
reforma que mantem como obrigatórios nos três anos do ensino médio apenas o estudo
da língua portuguesa, matemática e língua inglesa.
Nela, como coloca Rodrigues Junior131, a disciplina escolar de história perde seu
caráter obrigatório no Ensino Médio, que só será ensinada àqueles que optarem pelo
itinerário formativo de ciências humanas e sociais aplicadas.
Além disso essa reforma não estabelece mecanismos para alterar as estruturas
organizacionais das escolas permitindo que a mesma se efetive, tornando-se nada mais
que um reforma inconsistente.
Dado o exposto verifica-se que a disciplina de História nas escolas novamente está
em cheque, muitos de seus conteúdos voltam-se para a reprodução de uma história factual
que mantem a perspectiva defendida pelo poder político instituído, no qual o
questionamento da realidade pouco existe e as memórias a serem recordadas estão
fadadas à manutenção das desigualdades sociais, devemos nos mobilizar para trazer
nossos estudantes, jovens que estão no Ensino Médio a entenderem que são responsáveis
pelo seu futuro e que só a partir de uma visão crítica de mundo poderão obter as
ferramentas para muda-lo.

131
RODRIGUES JUNIOR, Osvaldo. A luta da memória contra o esquecimento: a reforma do Ensino Médio
e os (des)caminhos do ensino de História no Brasil. In: Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.7, nº13
jul-dez, 2017. p.3-22. P.15
77

Por esses motivos a escola pode e deve se tornar um logradouro de possibilidades,


mesmo que essas advenham da iniciativa de professores e professoras que buscam
proporcionar aos seus educandos momentos de questionamento, possibilidades e críticas.
Nossos educandos não podem se conformar com a lógica da reprodução capitalista, a eles
deve ser dada a oportunidade de terem seus conhecimentos reconhecidos e mobilizados
durante as aulas.
George Snyders132 é um dos teóricos que apontam para a juventude como um
grupo que deve ser respeitado e admirado e que o professor ao estar em contato com ela
deve ser um mediador que proporciona possibilidades para que os discentes se apaixonem
pelo mundo público. A escola precisa nesse sentido abordar temas que provocam reações
adversas, pois só assim eles poderão se proteger das agressões do mundo e ao mesmo
tempo questionar as ideologias dominantes.
Um fator que devemos discernir é que o Ensino Médio só tornou-se reconhecido
como uma das etapas da Educação Básica em 2009133 e apenas em 2013 a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional foi alterada para garantir esse direito aos jovens
brasileiros.
Quando pensamos em todas as mudanças que ocorreram nos últimos anos sobre
esse grupo de estudantes deve-se pensar que essa etapa de escolarização é recente no
nosso país e que está imersa em uma profunda crise identitária que se aprofunda
gradativamente com políticas governamentais que não procuram ouvir os principais
afetados por ela, as juventudes.
O grupo de estudantes que participa do ensino médio é chamado por muitos
simplesmente de juventude como se fossem um grupo coeso com os mesmos
questionamentos e desejos, mas para aqueles que trabalham com eles diariamente isso
não está nem perto de ser uma realidade.
Percebemos que existe uma preocupação em situar essas juventudes enquanto
formas distintas de ser e estar, enfim, de o jovem se portar frente ao mundo. Nesse sentido
Pais (2003)134 assinala para o fato de que o atual contexto social proporciona múltiplas
juventudes, uma vez que vivemos em conjuntura de grande fluidez, nas quais as

132
SNYDERS, Georges. Feliz na Universidade: estudos a partir de algumas biografias. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1995.
133
O Ensino médio foi reconhecido como uma das etapas da educação básica através da emenda
constitucional 59 de 11 de novembro 2009, que alterou o art. 208 da Constituição Federal para incluir a
obrigatoriedade e gratuidade dessa etapa de ensino, bem como dispor de recursos para seu funcionamento.
134
PAIS, J. M. Correntes teóricas da sociologia da juventude. In: PAIS, J. M. Culturas juvenis. 2. ed.
Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2003, p. 47-82.
78

transformações inseridas nela apresentam-se como performances quotidianas, ou seja,


vemos que essa produção cultural da juventudes está inserida em grande medida nas inter-
relações entre os jovens como indivíduo e como grupo.
As diretrizes curriculares são generalizantes e operam com conceitos
universalistas que buscam um determinado tipo de cidadão que foi estabelecido através
de padrões históricos de trabalho e conhecimento. Contudo esses conceitos universalistas
não dão conta de trabalhar questões pertinentes aos diversos públicos de jovens oriundos
de grupos sociais distintos cujos interesses se perdem em meio a currículos que não foram
pensados para atendê-los.
De acordo com Dayrell e Carrano
Apesar dos avanços sociais ocorridos no Brasil na última década, ainda
assistimos a uma realidade em que as políticas públicas ainda não
lograram superar as desigualdades sociais que ainda persistem e que
afetam diretamente as trajetórias de vida de milhões de jovens. É parte
dessa juventude que chega, a cada ano ou semestre, ao ensino médio,
trazendo para o seu interior os conflitos e contradições de uma estrutura
social excludente que interfere em suas trajetórias escolares e impõem
novos desafios à escola.135

Nesse ínterim concordamos com Snyders136 quando esse aponta para a


necessidade da escola ser um logradouro que permita a esses jovens uma satisfação que
não encontrariam em outro lugar, uma espécie de refúgio para quem tem no ambiente de
convívio familiar ou mesmo no trabalho situações de apreensão, medo e insegurança.
Como ele mesmo aponta, apesar de ser uma utopia para muitos é importante sonhar com
mudanças significativas, que tragam a alegria para dentro dos colégios, pois só assim
conseguiremos diminuir o absenteísmo e abandono escolar.
Nesse sentido, ainda é importante relembrar Paulo Freire e sua educação
libertadora. Esse brasileiro reconhecido em tantos países pela sua proposta pedagógica
foi menosprezado recentemente por políticas educacionais que se expressam pela sua
condenação. Todavia não podemos esquecer que sua pedagogia propõem-se a libertar
grupos que foram depreciados por muitos anos e ainda carregam o julgamento de
preconceitos institucionalizados.
Como ele afirma
a educação libertadora, problematizadora, já não pode ser o ato
de depositar, ou de narrar, ou de transferir, ou de transmitir

135
DAYRELL, Juarez; CARRANO, Paulo. Juventude e Ensino Médio: quem é este aluno que chega à
escola. In: DAYRELL, Juarez; CARRANO, Paulo e MAIA, Carla Linhares. Juventude e Ensino Médio.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014, p. 114.
136
Idem, ibidem.
79

"conhecimentos" e valores aos educandos, meros pacientes, à


maneira da educação "bancária", mas um ato cognoscente. ... O
antagonismo entre as duas concepções, uma, a "bancária" [grifos
do autor], que serve à dominação; outra, a problematizadora, que
serve à libertação, toma corpo exatamente aí. Enquanto a
primeira, necessariamente, mantém a contradição educador-
educando, a segunda realiza a superação.137

Freire não é o único a apontar para a importância de novos posicionamentos dentro


de nossas unidades educacionais. Bell Hooks138 já apontava a importância de sua proposta
de educação e afirma que:
Quando a educação é a prática da liberdade, os alunos não são os
únicos chamados a partilhar, a confessar. A pedagogia engajada
não busca simplesmente fortalecer e capacitar alunos. Toda sala
de aula em que for aplicado um modelo holístico de aprendizado
será também um local de crescimento para o professor, que será
fortalecido e capacitado por esse processo. Esse fortalecimento
não ocorrerá se nos recusarmos a nos abrir ao mesmo tempo em
que encorajamos os alunos a correr riscos.[...]

Logo percebe-se a importância de atentar para o que os teóricos da educação


histórica trazem na perspectiva da sala de aula. Pesquisadores como Jörn Rüsen no
contexto internacional e Maria Auxiliadora Schmidt, Marlene Cainelli e Marcelo Fronza
aqui no Brasil investigam a importância da construção da aprendizagem histórica
realizada pelos alunos com o apoio dos professores. O que temos em suas investigações
é a busca por entender o ensino de história levando em consideração não apenas o
interesse no passado, mas também as perspectivas teóricas que orientam a pesquisa; as
várias fontes que podem ser utilizadas bem como suas metodologias e técnicas de
pesquisa; as diferentes “ideias históricas” que são apresentadas em diferentes narrativas
e por fim como esses conhecimentos históricos podem ser vistos no contexto
sociocultural, ou seja, quais são as funções didáticas exercidas por eles junto aos
estudantes.
Seguindo essa abordagem procurou-se estabelecer algumas conexões com os
documentos selecionados na investigação de maneira que os mesmos pudessem ser
utilizados em salas de aula variadas, mas que pudessem contar com um enfoque comum,
os estudos de gênero aplicados na sala de aula.

137
Freire, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005. p. 78.
138
HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: WMF
Martins Fontes, 2013. p. 35.
80

3.3 Proposta de aplicação de oficinas

Ao longo dessa dissertação, muitos elementos acerca de temáticas históricas


foram investigados e pensados a partir de algumas epistemologias. Esses temas vestem-
se de urgência da investigação uma vez que muitos deles foram emaranhados em
discursos midiáticos de maneira torpe e sem qualquer preocupação com as consequências
disso para estudantes que estão construindo suas categorias de análise.
Vemos isso constantemente em falas e postagens que cerceiam as conquistas
femininas e do movimento negro ao minimizarem o preconceito que impera na sociedades
brasileira e que foi combatido por tanto tempo por eles.
Nesse sentido, é importante esclarecer e manter para eles referências teóricas para
que suas análises possam ser realizadas com embasamento, para que eles possam filtrar
os exageros e distorções disponíveis em mídias sociais.
Logo o que propomos a partir de agora são sugestões de oficinas que poderão ser
utilizadas nas salas de aula do Ensino Médio durante as aulas de História e até mesmo
como propostas interdisciplinares entre a História e outras disciplinas do currículo
escolar.
Inicialmente verifica-se a necessidade de realizar uma breve iniciação da leitura
crítica dos quadrinhos com os professores, uma vez que o que indicamos não é uma
simples leitura recreativa, na sequência serão apresentadas as oficinas.

3.3.2 Leitura histórica de quadrinhos

Ao ir a uma banca de jornal ou mesmo procurar em sites HQs de diferentes


editoras não é incomum sermos atraídos pelas capas chamativas com personagens
coloridos em ações que instigam-nos a ler um pouco mais.
Como essas narrativas apresentam-se com uma leitura fluída, muitos se rendem
ao seu apelo e levam para casa momentos únicos de prazer e aventura. Mas, e se esses
quadrinhos fossem pensados como narrativas históricas também os encararíamos da
mesma forma? Será que o envolvimento proposto pelas suas capas seria o mesmo?
Devemos deixar de lado alguns preconceitos que ainda podem permear nossa prática
didática e inserir fontes históricas das mais diversas em nossas salas de aula, entendendo
que a história não está circunscrita apenas ao livro didático, apesar desse instrumento ter
a sua importância também. Vamos buscar um pouco além e trazer personagens fictícios
81

que mobilizam discursos políticos e sociais do período no qual foram escritos. Vamos
sensibilizar nossos alunos para uma leitura crítica acerca de diferentes momentos da nossa
história.
Quando lemos uma quadrinho como um documento histórico a primeira pergunta
a ser feita é: Quem são os autores?139 apesar de ser uma questão nova quando falamos de
um documento histórico, muitas vezes não nos atentamos para a importância de conhecer
os escritores, desenhistas e roteiristas dessas histórias, pois elementos de suas vidas
podem estar inseridos nos heróis e heroínas por eles criados. Nem sempre encontramos
tais informações disponíveis, pois esses profissionais geralmente não estão tão envoltos
com a publicização de sua figura. Mas, é relevante pontuar que essas investigações podem
resultar em informações valiosas acerca dos personagens por eles criados.
Além disso, devemos nos mobilizar ainda para identificar o período e o lugar no
qual foram produzidas essas histórias, pois os quadrinhos desenvolvidos na França e Itália
terão características distintas daqueles produzidos nos Estados Unidos por exemplo.
Mesmo o Brasil que durante as décadas de 1960, 1970 e 1980 inspiram-se em modelos
norte-americanos trouxeram para seus personagens como a “Turma do Pererê”, um
movimento que procurou ocupar seu espaço.140
Outro elemento, não menos importante é identificar ainda quais são os valores, as
ideologias que estão circunscritas nesse quadrinho, enfim que discursos permeiam as falas
dos personagens que foram apresentados, pois ao mesmo tempo que temos um autor que
expressa suas ideias elas estão entrelaçadas com o discurso daquela época, seja para
refutá-lo ou confirmá-lo.
Isso fica mais evidente quando analisamos os quadrinhos escritos por homens
sobre mulheres pois vemos que mesmo de maneira subjacente aparece a perspectiva
masculina sobre essa personagem, muitas vezes em uma posição inferior àquela ocupada
pelos homens, isso fica claro quando percebemos que muitas delas são objetificadas
mesmo quando são as personagens título dos quadrinhos.

139
As perguntas selecionadas nesse primeiro direcionamento aos colegas que utilizarão os quadrinhos
basearam-se na proposta de Tulio Vilela para a leitura de quadrinhos nas aulas de história, elas estão
presentes no na obra Como usar as histórias em quadrinhos na sala de aula organizado por Angela Rama
e Waldomiro Vergueiro. VERGUEIRO, Waldomiro. Uso das HQs no ensino. In: RAMA, Angela;
VERGUEIRO, Waldomiro. Como usar as histórias em quadrinhos em sala de aula. São Paulo: Contexto,
2004.
140
GOMES, I. L. (2012). Quadrinhos e pensamento social brasileiro: mitos de origem em Pererê e a defesa dos
quadrinhos brasileiros. História Social, 1(20), 63-82. Disponível em: <
https://www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/rhs/article/view/418>. Acesso em: 17 dez. 2020
82

Se analisamos a própria Miss Marvel que será objeto de algumas oficinas


posteriormente vemos que em sua primeira aparição ela aparece como uma personagem
sexualizada enquanto heroína, que é vista por alguns dos espectadores como uma garota,
e não uma mulher. Já quando temos a heroína em 2014, sua personagem está muito mais
complexa, trazendo para si questionamentos que não eram vislumbrados no período
anterior.
Assim como Miss Marvel, vemos isso em vários personagens quando nos
debruçamos sobre suas leituras em contextos históricos distintos. Portanto é necessário
fazer o questionamento como as características desses personagens mostram o discurso,
hegemônico ou não da sua editora.
A quem se destinam esses quadrinhos? Talvez essa seja uma pergunta para a qual
acreditamos ter a resposta sem muitas indagações, mas ter conhecimento mostra-nos
assim como na questão anterior os meandros pelos quais não apenas as narrativas estão
sendo escritas dessa forma, mas quais são as ideias que elas querem reforçar. Quando
investigamos essas inquietações percebemos porque a construção de determinados
personagens é feita desse modo.
O que temos então é uma tentativa de identificação com elementos que fazem
parte da vida do leitor, assim o que vemos nas HQs do período investigado é que as
diferentes tramas, enredos, personagens e atitudes evocados nessas narrativas são
identificáveis pelos seus leitores como fatos que podem ocorrer em suas vidas.
Por fim temos que fazer o exercício de indagar qual é a finalidade dessa História
em quadrinhos pois enquanto produtos da indústria de massas ela tem como finalidade
inicial ser vendável, todavia por mais que isso ocorra inicialmente, muitas histórias em
quadrinhos podem ser consideradas verdadeiras obras de arte. Will Eisner141 já afirmava
que esse tipo de narrativa era uma arte sequencial e McCloud142 também aponta que os
quadrinhos são muito mais que desenhos, que eles produzem sentido aos seus leitores
pois eles se identificam com os mesmos.
Além disso muitas vezes essas histórias mostram com seus diálogos, informações
que podem ser vistas como educativas, ou mesmo como críticas veladas a discursos
políticos. Assim, não causa estranheza que muitos leitores consigam se identificar com a
exclusão sofrida por personagens dos X-Men por eles serem mutantes, com a simpatia de
Carol Danvers em sua figura civil ou ainda com o questionamentos de Kamala Khan

141
EISNER, Will. Quadrinhos e arte sequencial. São Paulo: Martins Fontes 2010.
142
MCCLOUD, Scott. Desvendando os quadrinhos. São Paulo: Makron Books, 1995.
83

acerca de tradições familiares haja vista ocorrerem variadas formas de não-pertencimento


na sociedade do período no qual a HQ foi criada e mesmo atualmente.
No apêndice do trabalho apresentamos o caderno de oficinas com propostas de
atividades a serem trabalhadas com o Ensino Médio.
84

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Muitos desafios se somam ao ofício do docente de História na educação pública


no Brasil, desde jornadas exaustivas, infraestrutura problemáticas dentro dos ambientes
escolares, estudantes que enfrentam o dilema de conciliar estudo com uma rotina de
trabalho enfrentadas por adultos, alguns com uma família para sustentar. A tudo isso
somam-se a precarização do ensino mediante a fala de um projeto que proponha olhar os
jovens nas suas especificidades e procure atendê-los.
Em meio a essas problemáticas muitas unidades escolares procuram incentivar a
cada dia projetos que proporcionem aos seus discentes a oportunidade de se tornarem
protagonistas de seu conhecimento. Atividades que procurem mobilizar suas experiências
prévias e, concomitantemente, procurem sensibilizá-los para o conhecimento científico.
Nesse sentido o Mestrado Profissional em Ensino de História proporcionou um
momento ímpar de reflexão sobre a prática docente que permitiu nossa contribuição para
o ensino de História, que necessita ser fortalecido num contexto de insegurança
educacional. É impossível trabalhar e desejar que nossa profissão se consolide enquanto
nós professores formos vistos como inimigos, ou meros reprodutores de discursos.
Essa formação efetivamente melhorou a prática docente de vários dos seus
egressos, podendo citar para tanto minha própria experiência, pois ao nos permitir uma
reflexão sobre nossos trabalhos após vários anos longe dos bancos das Universidades,
senti o ensejo de rever meu processo de ensino, minhas limitações. Ponderar sobre
problemas como racismo, machismo e intolerância religiosa tão recorrentes atualmente
foi de grande importância para contribuir com propostas para superar tais questões.
No bojo de todas essas dificuldades, vemos como a narrativa histórica pode ser
transformadora, fazendo com que nossos estudantes iniciem um procedimento de
desnaturalizar processos que parecem, mas não são, naturais.
Esse trabalho, tenta assim, articular epistemologias históricas com a prática de sala
de aula, tomando cuidado com a forma como essas teorias são tratadas com os estudantes.
Não nos propomos aqui a sermos meros reprodutores de conteúdo, mas sim produtores
de estratégias instigantes para serem adotadas com os estudantes.
Devemos recordar que o Ensino de História no Brasil tem uma trajetória marcada
pelos interesses do Estado sobre a formação do cidadão brasileiro. Independente do
período analisado, percebe-se que o conceito de cidadão esteve relacionado a um modelo
85

acrítico, que pudesse aceitar com passividade as decisões de políticos que pouco se
interessavam com os brasileiros comuns. Nesse sentido, a educação auxiliou na
manutenção de realidades que quando questionadas posteriormente pela disciplina de
História, motivou sua crise enquanto código disciplinar que só conseguiu se reerguer no
fim da década de 1980. Nesse sentido, as Histórias em Quadrinhos (HQs) foram utilizadas
em diversos momentos, como meras reproduções de valores do Estado, procurando
inculcar na educação de crianças e jovens uma conduta passiva, norteada para a
valorização do trabalho como forma de ascensão social.
Nesse trabalho procuramos apresentar uma perspectiva diferente das Histórias em
Quadrinhos, como artefatos culturais importantes e passíveis de análise, não só por
docentes, mas também aos nossos discentes.
Assim, ao procurarmos maneiras distintas de construir aulas de história que
abarcassem a forma como os debates de gênero apareciam nos enredos de quadrinhos
produzidos pela Marvel Comics nas décadas de 1960 e 1970, no qual se inserem
personagens femininas, verificamos como essas HQs podem fornecer um sentido
histórico para os estudantes do ensino médio.
Ao evidenciarmos as personagens Viúva-Negra, Miss Marvel e Tempestade,
procuramos diferentes versões do feminino que se revelaram muito semelhantes nos
papéis desempenhados por essas heroínas nos enredos, mostrando-nos como o discurso
sobre as funções de mulheres eram similares nesse período, só sofrendo uma mudança
efetiva, recentemente, nos quadrinhos da Miss Marvel protagonizados por Kamala Khan.
Apesar dessas limitações ainda é possível entender e identificar em jovens do
Ensino Médio, assoberbadas por tarefas cotidianas, uma identificação com essas heroínas,
com personagens femininas que mostram características de heroísmo nessas narrações
fictícias cuja leitura pode tornar-se uma nova possibilidade de prazer.
Infelizmente, devido às dificuldades em 2019, somadas a outras provocadas pela
pandemia em 2020, não foi possível implementar as propostas sugeridas nesta dissertação
em prática com estudantes do Ensino Médio, como era a intenção inicial. Alguns
momentos de reflexão sobre quadrinhos enquanto produtos da indústria cultural, que
como tal são veículos de uma agenda própria, no entanto, já haviam sido realizadas com
turmas do 1° ano desse nível de ensino e revelaram que essas turmas conseguem
identificar a objetificação das personagens femininas nessas narrativas.
Alguns grupos ainda conseguiram compreender que muitas heroínas foram
criadas como uma resposta aos movimentos sociais. Portanto, entende-se que esses
86

estudantes devem ser estimulados com esse tipo de atividade até para que eles consigam
ter uma leitura crítica de sua realidade.
A oportunidade de levar outros documentos para que eles façam uma investigação
sobre fontes históricas, também é uma forma de que eles compreendam que o nosso
metier não se baseia em falácias, mas sim em pesquisas realizadas de maneira cuidadosa,
considerando toda uma metodologia própria.
A fundamentação teórica em leituras sobre os estudos de gênero foram
enriquecedoras para a proposta da pesquisa, uma vez que a partir delas foi possível uma
análise mais profícua das personagens. Aqueles personagens que não foram o alvo
principal das análises ainda proporcionaram questionamentos sobre a interseccionalidade
de gênero e raça, e até mesmo como o pensamento colonial se manifestava nesses enredos.
Além disso essas leituras ainda possibilitaram uma nova visão das possibilidades
que a sala de aula pode proporcionar, pois no produto final dessa dissertação procuramos
apresentar trabalhos de poderão ser realizados com estudantes de escolas públicas e
particulares brasileiras levando esses estudos em consideração.
Observa-se que em aulas tradicionais de história muitas vezes os estudantes
sentem-se tolhidos de se manifestarem, transformando-as em momentos monótonos,
apesar de termos manuais didáticos que colocam abordagens diferentes, não se limitando
a apresentar os marcos tradicionais da História, esses não devem se tornar o único recurso
na sala de aula. Assim, apresentamos neste trabalho uma proposta mais dinâmica de
ensino, transformando estudantes em pesquisadores e pesquisadoras, possibilitando o
desenvolvimento do seu senso crítico. A proposta apresentada trabalha com três oficinas,
que busca analisar dois movimentos sociais, feminista e negro, a partir de incorporações
de personagens dos quadrinhos, além proporcionar um questionamento acerca das ideias
femininas da Marvel Comics.
Espera-se que esta dissertação auxilie professores e professoras a trabalharem
essas temáticas em sala de aula, não com intuito de substituir suas metodologias, mas sim
como forma de complementação dos processos de construção do conhecimento.
87

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APÊNDICE – CADERNO DE OFICINAS


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ANEXOS
126

ANEXO 1 –TALES OF SUSPENSE #52 - 1964


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Anexo 2 – Giant Size X-Men 1975


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ANEXO 3 – MS MARVEL V.1 #1 – 1977


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ANEXO 4 – MS MARVEL V.3 #1 2014


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ANEXO 5 - MISS MARVEL V.3 #2 - 2014


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