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8.

“Um espécime miserável”


1951

No princípio de junho, Henrietta contou a seus


médicos várias vezes que achava que o câncer estava se
espalhando, que conseguia senti-lo avançando dentro
dela, mas eles não encontraram nada de errado. “A
paciente afirma que se sente razoavelmente bem”, um
médico escreveu em seu boletim, “mas continua
reclamando de um vago mal-estar abdominal inferior. [...]
Nenhum sinal de recaída. Retornar dentro de um mês.”
Não há indicação de que Henrietta o tenha
questionado. Como a maioria dos pacientes dos anos
1950, ela concordava com tudo que seus médicos
dissessem. Aquela era uma época em que a “mentira
benevolente” constituía uma prática comum — com
frequência os médicos escondiam até mesmo as
informações mais fundamentais de seus pacientes, às
vezes não fornecendo nenhum diagnóstico. Acreditavam
ser melhor não confundir ou aborrecer os pacientes com
termos assustadores que eles não pudessem entender,
como câncer. Os médicos sabiam das coisas, e a maioria
dos pacientes não os questionava.
Especialmente pacientes negros de enfermarias
públicas. Na Baltimore de 1951, a segregação era lei e se
entendia que pessoas negras não deviam questionar o
julgamento profissional de pessoas brancas. Muitos
pacientes negros já se sentiam satisfeitos só de estar
recebendo tratamento, uma vez que a discriminação nos
hospitais era generalizada.
Não há como saber se o tratamento de Henrietta
teria sido diferente se ela fosse branca. De acordo com
Howard Jones, Henrietta obteve os mesmos cuidados de
qualquer paciente branco. A biópsia, o tratamento com
rádio e a radioterapia eram comuns na época. Mas
diversos estudos mostraram que, na comparação com
pacientes brancos, pacientes negros eram tratados e
hospitalizados em estágios mais avançados de suas
doenças. E, uma vez hospitalizados, recebiam menos
analgésicos e apresentavam uma taxa de mortalidade
mais elevada.
Tudo que sabemos ao certo são as ocorrências
registradas no prontuário médico de Henrietta: algumas
semanas depois de o médico informar que ela estava
bem, Henrietta retornou ao Johns Hopkins dizendo que o
“mal-estar” de que se queixara da última vez se
transformara em uma “dor” dos dois lados. Mas a
anotação do médico foi idêntica à de duas semanas
antes: “Nenhum sinal de recaída. Retornar dentro de um
mês”.
Duas semanas e meia depois, o abdômen de
Henrietta doía, e ela mal conseguia urinar. A dor tornava
difícil andar. Ela voltou ao Johns Hopkins, onde um
médico introduziu um cateter para esvaziar sua bexiga e
depois a mandou para casa. Três dias depois, quando ela
retornou reclamando outra vez da dor, um médico
pressionou seu abdômen e sentiu uma massa “dura e
pedregosa”. Um raio X mostrou que ela estava presa à
parede pélvica, quase bloqueando a uretra. O médico de
plantão chamou Jones e vários outros médicos que
haviam tratado de Henrietta. Todos a examinaram e
olharam o raio X. “Inoperável”, disseram. Poucas
semanas depois que uma anotação anterior declarou que
ela estava saudável, um dos médicos escreveu: “A
paciente parece cronicamente doente. Obviamente está
sentindo dor”. Mandou que ficasse de cama em casa.
Sadie mais tarde descreveria o declínio de Henrietta
nestes termos: “Henrietta não se abateu, veja bem, seu
aspecto, seu corpo, simplesmente não se abateu. Como
algumas pessoas que ficam de cama com câncer e
parecem bem mal. Ela, não. A única coisa que você
percebia estava nos olhos dela. Os olhos dela estavam
dizendo que ela não continuaria vivendo”.

Até esse ponto, ninguém exceto Sadie, Margaret e


Day sabia que Henrietta estava doente. Então,
subitamente, todos souberam. Quando Day e as primas
voltavam de Sparrows Point para casa depois de cada
turno, ouviam Henrietta de um quarteirão de distância
implorando que o Senhor a ajudasse. Quando Day a
levou de carro de volta ao hospital para tirar raios X na
semana seguinte, tumores duros como pedra tomavam
conta do interior de seu abdômen: um no útero, um em
cada rim e na uretra. Apenas um mês depois de uma
anotação em seu prontuário médico dizer que ela estava
bem, outro médico escreveu: “Em vista da rápida
extensão do processo da doença, a perspectiva é bem
sombria”. A única opção, ele disse, era “mais
radioterapia, na esperança de que possamos ao menos
aliviar sua dor”.
Henrietta não conseguia andar de casa até o carro,
mas Day ou uma das primas dava um jeito de levá-la ao
Johns Hopkins todos os dias para a radioterapia. Não
perceberam que ela estava morrendo. Achavam que os
médicos ainda tentavam curá-la.
A cada dia, os médicos de Henrietta aumentavam
sua dose de radioterapia, esperando que ela reduzisse os
tumores e aliviasse a dor até sua morte. A cada dia, a
pele no abdômen ficava mais preta, e a dor piorava.
Em 8 de agosto, apenas uma semana após seu 31o
aniversário, Henrietta chegou ao Hospital Johns Hopkins
para seu tratamento, mas dessa vez disse que queria
ficar. Seu médico escreveu: “A paciente vem reclamando
de fortes dores e parece estar sofrendo. Ela precisa vir de
uma distância considerável e o sentimento é de que ela
tem o direito de permanecer no hospital onde poderá
receber melhores cuidados”.
Depois que Henrietta se internou no hospital, uma
enfermeira coletou sangue e rotulou o frasco DE COR,
guardando-o para a eventualidade de Henrietta precisar
de transfusões mais tarde. Um médico colocou os pés de
Henrietta em estribos outra vez, para extrair mais
algumas células de seu colo do útero a pedido de George
Gey, que queria ver se um segundo lote cresceria como o
primeiro. Mas o corpo de Henrietta estava tão
contaminado com toxinas normalmente eliminadas pelo
sistema urinário que suas células morreram
imediatamente em cultura.
Durante os primeiros poucos dias de Henrietta no
hospital, as crianças vinham com Day visitá-la, mas
quando iam embora ela chorava e gemia durante horas.
Logo as enfermeiras disseram a Day que ele não podia
mais trazer as crianças, pois as visitas perturbavam
demais Henrietta. Depois daquilo, Day estacionava o
Buick atrás do Johns Hopkins à mesma hora todos os dias
e se sentava num pequeno gramado em Wolf Street com
as crianças, bem embaixo da janela de Henrietta. Ela se
esforçava para sair da cama, encostava as mãos e o
rosto no vidro e observava as crianças brincando no
gramado. Mas após alguns dias Henrietta não conseguia
nem ir até a janela.
Seus médicos tentavam em vão aliviar seu
sofrimento. “Demerol parece não afetar a dor”, um deles
escreveu, de modo que tentou morfina. “Isto também
não está ajudando muito.” Deu a ela Dromoran. “Este
negócio funciona”, ele escreveu. Mas não por muito
tempo. No final, um dos médicos tentou injetar álcool
puro na espinha dorsal. “As injeções de álcool acabaram
em fracasso”, ele escreveu.
Tumores novos pareciam surgir todos os dias — nos
gânglios linfáticos, nos ossos dos quadris, nos lábios —, e
ela passava quase todos os dias com uma febre de mais
de quarenta graus. Seus médicos interromperam a
radioterapia, parecendo tão derrotados pelo câncer
quanto ela. “Henrietta ainda é um espécime miserável”,
escreveram. “Ela geme.” “Está constantemente
nauseada e reclama que vomita tudo que come.”
“Paciente tremendamente perturbada... muito ansiosa.”
“Ao que me consta, estamos fazendo tudo que é
possível.”
Não existe nenhum registro de que George Gey tenha
visitado Henrietta no hospital ou que tenha lhe dito algo
sobre suas células. E todos com quem conversei que
poderiam saber disseram que Gey e Henrietta nunca se
encontraram. Todos exceto Laure Aurelian, uma
microbiologista que era colega de Gey no Johns Hopkins.
“Nunca esquecerei daquilo”, Aurelian disse. “George
me contou que se debruçou sobre a cama de Henrietta e
disse: ‘Suas células tornarão você imortal’. Ele contou a
Henrietta que as células dela ajudariam a salvar a vida
de inúmeras pessoas, e ela sorriu. Ela disse que estava
contente que sua dor serviria para ajudar alguém.”

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