médicos várias vezes que achava que o câncer estava se espalhando, que conseguia senti-lo avançando dentro dela, mas eles não encontraram nada de errado. “A paciente afirma que se sente razoavelmente bem”, um médico escreveu em seu boletim, “mas continua reclamando de um vago mal-estar abdominal inferior. [...] Nenhum sinal de recaída. Retornar dentro de um mês.” Não há indicação de que Henrietta o tenha questionado. Como a maioria dos pacientes dos anos 1950, ela concordava com tudo que seus médicos dissessem. Aquela era uma época em que a “mentira benevolente” constituía uma prática comum — com frequência os médicos escondiam até mesmo as informações mais fundamentais de seus pacientes, às vezes não fornecendo nenhum diagnóstico. Acreditavam ser melhor não confundir ou aborrecer os pacientes com termos assustadores que eles não pudessem entender, como câncer. Os médicos sabiam das coisas, e a maioria dos pacientes não os questionava. Especialmente pacientes negros de enfermarias públicas. Na Baltimore de 1951, a segregação era lei e se entendia que pessoas negras não deviam questionar o julgamento profissional de pessoas brancas. Muitos pacientes negros já se sentiam satisfeitos só de estar recebendo tratamento, uma vez que a discriminação nos hospitais era generalizada. Não há como saber se o tratamento de Henrietta teria sido diferente se ela fosse branca. De acordo com Howard Jones, Henrietta obteve os mesmos cuidados de qualquer paciente branco. A biópsia, o tratamento com rádio e a radioterapia eram comuns na época. Mas diversos estudos mostraram que, na comparação com pacientes brancos, pacientes negros eram tratados e hospitalizados em estágios mais avançados de suas doenças. E, uma vez hospitalizados, recebiam menos analgésicos e apresentavam uma taxa de mortalidade mais elevada. Tudo que sabemos ao certo são as ocorrências registradas no prontuário médico de Henrietta: algumas semanas depois de o médico informar que ela estava bem, Henrietta retornou ao Johns Hopkins dizendo que o “mal-estar” de que se queixara da última vez se transformara em uma “dor” dos dois lados. Mas a anotação do médico foi idêntica à de duas semanas antes: “Nenhum sinal de recaída. Retornar dentro de um mês”. Duas semanas e meia depois, o abdômen de Henrietta doía, e ela mal conseguia urinar. A dor tornava difícil andar. Ela voltou ao Johns Hopkins, onde um médico introduziu um cateter para esvaziar sua bexiga e depois a mandou para casa. Três dias depois, quando ela retornou reclamando outra vez da dor, um médico pressionou seu abdômen e sentiu uma massa “dura e pedregosa”. Um raio X mostrou que ela estava presa à parede pélvica, quase bloqueando a uretra. O médico de plantão chamou Jones e vários outros médicos que haviam tratado de Henrietta. Todos a examinaram e olharam o raio X. “Inoperável”, disseram. Poucas semanas depois que uma anotação anterior declarou que ela estava saudável, um dos médicos escreveu: “A paciente parece cronicamente doente. Obviamente está sentindo dor”. Mandou que ficasse de cama em casa. Sadie mais tarde descreveria o declínio de Henrietta nestes termos: “Henrietta não se abateu, veja bem, seu aspecto, seu corpo, simplesmente não se abateu. Como algumas pessoas que ficam de cama com câncer e parecem bem mal. Ela, não. A única coisa que você percebia estava nos olhos dela. Os olhos dela estavam dizendo que ela não continuaria vivendo”.
Até esse ponto, ninguém exceto Sadie, Margaret e
Day sabia que Henrietta estava doente. Então, subitamente, todos souberam. Quando Day e as primas voltavam de Sparrows Point para casa depois de cada turno, ouviam Henrietta de um quarteirão de distância implorando que o Senhor a ajudasse. Quando Day a levou de carro de volta ao hospital para tirar raios X na semana seguinte, tumores duros como pedra tomavam conta do interior de seu abdômen: um no útero, um em cada rim e na uretra. Apenas um mês depois de uma anotação em seu prontuário médico dizer que ela estava bem, outro médico escreveu: “Em vista da rápida extensão do processo da doença, a perspectiva é bem sombria”. A única opção, ele disse, era “mais radioterapia, na esperança de que possamos ao menos aliviar sua dor”. Henrietta não conseguia andar de casa até o carro, mas Day ou uma das primas dava um jeito de levá-la ao Johns Hopkins todos os dias para a radioterapia. Não perceberam que ela estava morrendo. Achavam que os médicos ainda tentavam curá-la. A cada dia, os médicos de Henrietta aumentavam sua dose de radioterapia, esperando que ela reduzisse os tumores e aliviasse a dor até sua morte. A cada dia, a pele no abdômen ficava mais preta, e a dor piorava. Em 8 de agosto, apenas uma semana após seu 31o aniversário, Henrietta chegou ao Hospital Johns Hopkins para seu tratamento, mas dessa vez disse que queria ficar. Seu médico escreveu: “A paciente vem reclamando de fortes dores e parece estar sofrendo. Ela precisa vir de uma distância considerável e o sentimento é de que ela tem o direito de permanecer no hospital onde poderá receber melhores cuidados”. Depois que Henrietta se internou no hospital, uma enfermeira coletou sangue e rotulou o frasco DE COR, guardando-o para a eventualidade de Henrietta precisar de transfusões mais tarde. Um médico colocou os pés de Henrietta em estribos outra vez, para extrair mais algumas células de seu colo do útero a pedido de George Gey, que queria ver se um segundo lote cresceria como o primeiro. Mas o corpo de Henrietta estava tão contaminado com toxinas normalmente eliminadas pelo sistema urinário que suas células morreram imediatamente em cultura. Durante os primeiros poucos dias de Henrietta no hospital, as crianças vinham com Day visitá-la, mas quando iam embora ela chorava e gemia durante horas. Logo as enfermeiras disseram a Day que ele não podia mais trazer as crianças, pois as visitas perturbavam demais Henrietta. Depois daquilo, Day estacionava o Buick atrás do Johns Hopkins à mesma hora todos os dias e se sentava num pequeno gramado em Wolf Street com as crianças, bem embaixo da janela de Henrietta. Ela se esforçava para sair da cama, encostava as mãos e o rosto no vidro e observava as crianças brincando no gramado. Mas após alguns dias Henrietta não conseguia nem ir até a janela. Seus médicos tentavam em vão aliviar seu sofrimento. “Demerol parece não afetar a dor”, um deles escreveu, de modo que tentou morfina. “Isto também não está ajudando muito.” Deu a ela Dromoran. “Este negócio funciona”, ele escreveu. Mas não por muito tempo. No final, um dos médicos tentou injetar álcool puro na espinha dorsal. “As injeções de álcool acabaram em fracasso”, ele escreveu. Tumores novos pareciam surgir todos os dias — nos gânglios linfáticos, nos ossos dos quadris, nos lábios —, e ela passava quase todos os dias com uma febre de mais de quarenta graus. Seus médicos interromperam a radioterapia, parecendo tão derrotados pelo câncer quanto ela. “Henrietta ainda é um espécime miserável”, escreveram. “Ela geme.” “Está constantemente nauseada e reclama que vomita tudo que come.” “Paciente tremendamente perturbada... muito ansiosa.” “Ao que me consta, estamos fazendo tudo que é possível.” Não existe nenhum registro de que George Gey tenha visitado Henrietta no hospital ou que tenha lhe dito algo sobre suas células. E todos com quem conversei que poderiam saber disseram que Gey e Henrietta nunca se encontraram. Todos exceto Laure Aurelian, uma microbiologista que era colega de Gey no Johns Hopkins. “Nunca esquecerei daquilo”, Aurelian disse. “George me contou que se debruçou sobre a cama de Henrietta e disse: ‘Suas células tornarão você imortal’. Ele contou a Henrietta que as células dela ajudariam a salvar a vida de inúmeras pessoas, e ela sorriu. Ela disse que estava contente que sua dor serviria para ajudar alguém.”