Você está na página 1de 277

ALÉM DA EXCLUSÃO

Universidade do Estado da Bahia - UNEB

José Bites de Carvalho


Reitor

Carla Liane N. dos Santos


Vice-Reitora

Sandra Regina Soares


Diretora da Editora

Conselho Editorial

Atson Carlos de Souza Fernandes


Liege Maria Sitja Fornari
Luiz Carlos dos Santos
Maria Neuma Mascarenhas Paes
Tânia Maria Hetkowski

Suplentes

Edil Silva Costa


Gilmar Ferreira Alves
Leliana Santos de Sousa
Mariângela Vieira Lopes
Miguel Cerqueira dos Santos
Suzana Maria de Sousa Santos Severs

Série Teses e Dissertações


Volume 9

ALÉM DA EXCLUSÃO
a convivência entre cristãos-novos e cristãos-velhos
na Bahia setecentista

Salvador
EDUNEB
2016
© 2016 Autora
Direitos para esta edição cedidos à Editora da Universidade do Estado da Bahia.
Proibida a reprodução total ou parcial por qualquer meio de impressão, em forma idêntica, resumida ou modificada,
em Língua Portuguesa ou qualquer outro idioma.
Depósito Legal na Biblioteca Nacional
Impresso no Brasil em 2016.

Ficha Técnica

EDITORA DA UNIVERSIDADE DO REVISÃO TEXTUAL


ESTADO DA BAHIA - EDUNEB Suzana Severs

Coordenação Editorial, Normalização


documentária e bibliográfica, e
Revisão de provas
Ricardo Baroud

Coordenação de Design, Projeto gráfico,


Diagramação e Criação de capa
Sidney Silva

Ficha Catalográfica - Sistema de Bibliotecas da UNEB


Bibliotecária: Fernanda de J. Cerqueira – CRB 162-5
Severs, Suzana Maria de Sousa Santos
Além da exclusão: a convivência entre cristãos-novos e cristãos-velhos na Bahia
setecentista/ Suzana Maria de Sousa Santos Severs. – Salvador: EDUNEB, 2016.
276 p. – (Teses e dissertações, v. 9)

Contém referências e apêndices.

ISBN 978-85-7887-312-7

1. Cristãos-novos - Bahia. 2. História social. 3. Religiosidade. I. Título.

CDD: 209.2

Editora da Universidade do Estado da Bahia – EDUNEB


Rua Silveira Martins, 2555 – Cabula
41150-000 – Salvador – BA
editora@listas.uneb.br
www.uneb.br
Aos meus pais e avós, por razões do coração.
À Anita Novinsky, sem ela nada seria possível.
À Félix Nunes de Miranda, por onde tudo começou.
Sumário

Prefácio 9

Apresentação 11

Introdução 13

Capítulo I – A sociedade
A POPULAÇÃO CRISTÃ-NOVA DA BAHIA SETECENTISTA 22
Levantamento Populacional 27
Naturalidade 32
Residências 39
Solidariedade e convivência 49
Relações sociais entre cristãos-novos e cristãos-velhos 58
Participação em irmandades 62
Um distanciamento da política local 64

Capítulo II – Atividades socioeconômicas e riqueza


OCUPAÇÕES ECONÔMICAS 69
As diversas atividades econômicas e o comércio 71
O contexto das ocupações econômicas na Bahia setecentista 76
O comércio 77
A mineração e as artes e ofícios 79
Os agentes da economia “baiana” 80
Senhores de engenho cristãos-novos 80
Lavradores cristãos-novos 81
Homens de negócios cristãos-novos 83
Mercadores e tratantes cristãos-novos 85
A DINÂMICA EMPRESARIAL DE AGRICULTORES E COMERCIANTES
NA BAHIA 86
Agricultores: senhores de engenho e lavradores 86
Lavradores 88
Homens de negócios 89
Contratadores 91
Mercadores e tratantes 91
Práticas comerciais diversificadas 94
Um adendo: cristãs-novas na economia colonial 94
Outra dinâmica: o empréstimo de dinheiro 96
O comércio cotidiano de escravos 100
O comércio de tecidos 101
AVALIAÇÃO SOCIOECONÔMICA: BENS E CONFISCO 105
Avaliação dos bens móveis e imóveis inventariados 106
Bens de raiz 107
Bens móveis 109
Dívidas e créditos 112
Escravos: um bem 113
Mercadorias: outro bem 114
O confisco: um problema para os cristãos-novos 115

Capítulo III – A memória religiosa judaica


OS “CRIMES”: O JUDAÍSMO SECRETO 121
A transmissão do judaísmo 126
A “salvação da alma” e culpabilidade 131
AS PRÁTICAS RELIGIOSAS JUDAICAS 135
As orações 146
Alguma crítica religiosa 150

Capítulo IV – O Estaus “baiano”: prisioneiros e punições


O ESTAUS “BAIANO” 157
A ambiguidade dos agentes da Inquisição: Os Familiares do Santo
Ofício 162
O sofrimento de João de Morais Montesinhos 169
Levantamento e perfil dos presos e denunciados (1700 a 1748) 174
As denúncias 180
A violência, o medo e as estratégias de defesa 189
As sentenças 196
O julgamento 199

Conclusão 209

Referências 213
FONTES PRIMÁRIAS MANUSCRITAS 213
FONTES PRIMÁRIAS IMPRESSAS 214
OBRAS DE REFERÊNCIA 216
BIBLIOGRAFIA ESPECÍFICA 217
BIBLIOGRAFIA GERAL E AUXILIAR 226
Apêndices
APÊNDICE A – Cristãos-Novos residentes na Bahia, presos e denunciados
à Inquisição (Séc. 1700-1748) 235
APÊNDICE B – Cristãs-Novas residentes na Bahia, presas e denunciadas à
Inquisição (1700-1748) 255
APÊNDICE C – Carta de João de Morais de Montesinhos aos Inquisidores
de Lisboa, de seu próprio punho 263
APÊNDICE D – Carta de apresentação de Montesinhos ao Tribunal de
Lisboa, de seu próprio punho 273
APÊNDICE E – Carta de Francisca Henriques, de próprio punho, coagindo
Antonio Cardoso Porto a casar-se com sua filha 275
Prefácio

Foi com enorme satisfação que li, após 14 anos, a tese de doutorado de Suzana Severs, defen-
dida na Universidade de São Paulo. Como a base de seu trabalho são informações extraídas de
fontes primárias, com exceção de alguns dados estatísticos, em nada essa tese se desatualizou e
transformou-se em livro.
O cenário principal onde esta história se desenvolve é a Bahia na época colonial. O tem-
po é a primeira metade do século XVIII, quando o Tribunal do Santo Ofício da Inquisição
estava no auge de suas atividades. A população cristã-nova foi a mais visada pela Inquisição.
Foram usadas pela autora, como fontes, parte do acervo baiano, o Arquivo Público da
Bahia e da Cúria Metropolitana, o Arquivo Municipal de Salvador e o Arquivo Municipal Ca-
choeira. Os documentos permitiram que fossem reconstituídos o cotidiano da sociedade baia-
na, as atividades mercantis, a vida familiar, social e religiosa.
Cristãos-novos chegavam à Bahia sozinhos, sem família, eram acolhidos por parentes e
amigos que conheciam da mesma vila natal, que lhes davam os primeiros auxílios. A Colônia
oferecia grandes oportunidades e muitos cristãos-novos enriqueceram adquirindo terras, pro-
priedades e um status social elevado.
Eram homens integrados na sociedade colonial, casavam-se com mulheres de família
de renome, e com o tempo seu judaísmo enfraqueceu, até desaparecer completamente, dando
lugar a agnósticos, descrentes, céticos ou até mesmo ateus, cujos descendentes constituem hoje,
o povo brasileiro. Contudo, uma grande parte era os desintegrados, principalmente os cristãos-
-novos que permaneceram fiéis a sua religião de origem, o judaísmo. Estes mantiveram-se
eternamente vinculados a fé de seus antepassados e mesmo após séculos, ainda os encontramos
atualmente, seguindo os preceitos lembrados do judaísmo. Era um grupo desintegrado, apesar
de aparentemente se manterem cristãos. Suas vidas, sempre sigilosas, encobertas, tinham de ser
sempre manipuladas, o que lhes conferia uma angústia permanente. Desintegrados do mundo
em que viviam, esperavam sua redenção, que viria com o messias. Para este grupo, o dia mais
sagrado, era o sábado, o Shabat, que guardavam sagradamente, e também os dias de jejum e a
festa da “Rainha Esther”, em torno da qual, construíram uma série de mitos sincréticos, por ela
também ter tido uma vida encoberta.
Suzana Severs procurou reconstituir o cotidiano dos cristãos-novos na Bahia setecentis-
ta, seus bens, suas roupas, seus móveis, suas joias, os utensílios domésticos, objetos pessoais,
etc. Procurou transcrever as orações, traduzindo e analisando seu sentido.
Apesar de haver no Brasil, uma grande mescla de etnias, a principal aversão dos por-
tugueses era contra os judeus, como eram chamados os cristãos-novos suspeitos de praticar
secretamente o judaísmo. Não encontramos na Bahia explosões populares, era do clero católico
e dos jesuítas que vinha o maior ódio.
Nos séculos XVI e XVII, a situação dos cristãos-novos era muito mais segura do que no
século XVIII, quando sua posição enfraqueceu na Câmara e aumentou o número de obras an-
tissemitas. Os cristãos-novos fugitivos eram procurados nas selvas e sertões brasileiros, porém

9
a maior parte nunca foi encontrada, eram os “mandados não cumpridos”. Suzana Severs lembra
que quando a população baiana foi procurada para denunciar, recusou-se a participar, sendo
o governador da Bahia, Antonio Teles da Silva, obrigado a apelar para seu exército, que forçou
o povo a denunciar.
Os estudos inquisitoriais sofreram considerável progresso nos últimos anos. Escreveu-se
durante 500 anos sobre a história do Brasil, sem mencionar a Inquisição e os cristãos-novos. Os
arquivos da Inquisição eram altamente secretos e só a partir da década de 60/70, foram abertos
para o grande público.
As fontes que se abriram para o estudo da ação do Santo Ofício no Brasil, nos permi-
tiram conhecer um outro Brasil, que não havia sido estudado até os dias atuais. No entanto,
existem historiadores brasileiros que negam o monstruoso Tribunal e veem nos seus bárbaros
procedimentos, o ideal dos inquisidores em salvar as almas. Revisionistas que negam o Holo-
causto, agora também negam a Inquisição.
Processos, cartas secretas, memoriais, testemunhos, constituem hoje riquíssimo mate-
rial para provar que os cristãos-novos eram queimados inocentemente, e tem como testemu-
nhos, o Padre Antonio Vieira.
Uma das mais lúcidas e esclarecidas declarações sobre a desumanidade do julgamento,
sobre a corrupção do Santo Ofício, sobre as falsas manipulações, sobre as mentiras nos proces-
sos, foram escritas por um funcionário de “dentro” do Tribunal, Pedro Lupina Freire.
A Inquisição conseguiu impor-se durante tantos séculos, com tal força, porque satisfazia
as frustrações. Valeu-se da religião para legitimar a ordem arbitrária e as torturas, sobre a qual o
sistema político de dominação se fundava. A religião preencheu uma função político-religiosa.
Os estudos inquisitoriais são atualmente objeto de grande interesse de acadêmicos, es-
tudiosos, leigos, intelectuais e artistas e com as novas fontes inquisitoriais, a história do Brasil
necessita ser revista e reescrita.
Hoje, no Brasil, um fenômeno vem despertando enorme curiosidade em milhares de
descendentes dos convertidos em 1497, que buscam conhecer suas origens, os costumes e ri-
tuais dos antepassados. Autodenominam-se bnei anussim, que em hebraico significa “filhos
dos forçados”. Ainda não foi realizado nenhum censo para conhecermos seu número, mas suas
histórias são tão fabulosas, que parecem ficção. Comportam-se como judeus, denominam-se
judeus, possuem sinagogas, e vivem um drama, talvez sem paralelo na história da humanidade.
O livro de Suzana Severs é uma valiosa contribuição para um melhor entendimento
da complexidade de uma sociedade onde se encontravam costumes, rituais e crenças diferen-
tes, com um regime absolutista retrógado influenciado por homens cuja mentalidade fanática,
ignorante, corrupta era ainda cruel e sádica. Os cristãos-novos lutaram em todas as frentes,
sofreram todas as torturas, todas as vicissitudes e carências, e ainda uma perseguição durante
gerações e gerações. Os marranos não tinham opções, mas havia um imperativo que era vi-
ver. Suzana fornece-nos dados importantes e abre novos caminhos para uma visão mais clara
e completamente diferente dos cristãos. A vida empurrou os descendentes de judeus para o
comércio, mesmo que as suas tendências os levassem para outras paragens. Os cristãos-novos
eram indomáveis, revolucionários e incansáveis trabalhadores.

Anita Waingort Novinsky


São Paulo, maio de 2016
10
Apresentação

Catorze anos se passaram desde que esta pesquisa foi apresentada ao Programa de Pós-gradu-
ação em História social, do Departamento de História da Universidade de São Paulo. Apre-
sentar ao público o resultado dessa pesquisa sempre foi a intenção da então doutoranda e de
sua orientadora, Profa. Dra. Anita Waingort Novinsky. No entanto, demasiadas circunstâncias
sempre adiaram esse propósito. Tal delonga deixou de lado senão o ineditismo da tese ao me-
nos a originalidade de algumas conclusões que outros historiadores, mais experientes do que
eu, levaram a público antes de mim. De certo modo orgulho-me desse trabalho corroborar
com outros da mesma linha, por isso fizemos questão de manter o texto original da tese atua-
lizando a bibliografia e indicando ao leitor as novas proposituras interpretativas de temas que
abordados; além das pequenas alterações de estrutura e redação. Enfim, espero com isso remir-
-me ante colegas que sempre me pediram a tese para ler e eu nunca a disponibilizei esperando,
talvez ilusoriamente, apresentar-lhes em uma roupagem menos densa. Mesmo assim espero
que o leitor chegue até as últimas páginas.
Os agradecimentos são imensos a diversas pessoas que direta e indiretamente contribu-
íram para que tese e livro chegassem à conclusão. Primeiramente, à iídiche mama e magnífica
orientadora de sempre Profa. Dra. Anita Waingort Novinsky, a quem guardo uma imensa gra-
tidão por ter acolhido a mim e ao meu trabalho com generosidade ímpar durante todos os anos
de convivência acadêmica e mais tantas décadas de amizade pessoal. Meu carinho também
se estende a muitas outras pessoas, dentre elas, a Sonia Novinsky, amiga que me apoiou nas
difíceis horas de trabalho árduo e de saudades de casa; à amiga e colega Lina Gorenstein e sua
família, cujos braços sempre estiveram abertos à mim. Aos meus colegas de curso, contempo-
râneos de mestrado e doutorado, por todo o companheirismo e audição; aos professores que
passaram por minhas bancas de qualificação e defesa, tanto de mestrado quanto de doutora-
do – vocês não imaginam o quanto contribuíram nessa pesquisa! À amiga Ana Maria Freitas
Teixeira pela sempre disponibilidade de ler os originais e sugerir, com a sinceridade necessária,
as mudanças impreteríveis, assim com a Maria Clara Lima, mais que revisora, uma cúmplice
de longos meses colocando os pontos nos “i”. À minha família pelos longos anos de ausência
sentida; a Andy Severs, companheiro sempre presente que com carinho, amor e paciência (e
muitos downloads!!!) criou, e continua criando, condições para que eu concluísse a tese e de-
pois este livro.
Agradeço o apoio financeiro da FAPESP, fundamental à dedicação exclusiva à pesquisa
e desenvolvimento da tese. Ao Programa de Pós-graduação em História Regional e Local da
Universidade do Estado da Bahia, em especial à Profa. Dra. Sara Oliveira Faria quem estimu-
lou, cobrou e fez acontecer o resultado final deste livro. Muito obrigada a todos,

Suzana Maria de Sousa Santos Severs


Salvador, maio de 2016

11
Introdução

Depois de apresentar a dissertação de mestrado Marranos e Inquisição (Bahia, século XVIII),1


que tratou de aspectos socioeconômicos e religiosos da vida de uma família cristã-nova portu-
guesa estabelecida na Bahia em 1700 até então anônima à historiografia – os Nunes de Miranda
–, sentimos a necessidade de conhecer mais amplamente a vida dos cristãos-novos na Bahia
setecentista, assunto não esgotado sistematicamente em estudos que contemplem a História da
América portuguesa, a História dos Judeus ou a História da Inquisição moderna.
Tal interesse surgiu das observações sobre a dinâmica econômica desta família, das for-
mas de relacionamento com cristãos-velhos e, sobretudo, das articulações que fez valer para
transpor as condições persecutórias e discriminatórias vivenciadas pela população cristã-nova
e poder se vincular à sociedade colonial da Bahia.
Os processos inquisitoriais contra seus membros levaram ao conhecimento de outros
cristãos-novos que, igualmente, viveram na capital da colônia durante as primeiras décadas do
século XVIII e que ficaram de fora deste trabalho por não fazerem parte da família em foco,
ainda que fossem tratados quando estavam mais intimamente relacionados a ela.
Mediante os nomes de cristãos-novos denunciados nos cárceres pelos Nunes de Mi-
randa, muitas vezes sob tortura, e estendendo a pesquisa a fontes impressas, buscamos outros
dossiês que trouxeram mais e novas informações sobre esta população que agora começa a ser
conhecida. Assim, ampliamos o grupo de cristãos-novos da Bahia setecentista e aprofundamos
o estudo sobre sua vinculação a uma sociedade permeada pela repressão inquisitorial e por
dispositivos estatais discriminatórios.
A participação dos cristãos-novos na sociedade baiana colonial e a presença de um ór-
gão repressivo, a Inquisição, interferindo em seus modos de vida, seus comportamentos, as-
sim como dos cristãos-velhos, cerceando a propagação de novas ideias e dificultando alcançar
aspirações de ascensão social, ou as quebrando assim que as alcançavam, são fatores que não
podem passar despercebidos pela História.
Os cristãos-novos viveram, simultaneamente, a condição de grupo dominante e grupo
perseguido. Eram brancos, em uma sociedade cuja hierarquia social pautava-se também em
diferenças de cor da pele, colonizadores vindos de Portugal ou gerações nascidas na colônia.
Embora permanecessem submetidos a leis de “pureza de sangue” que os excluíam oficialmente
de uma série de cargos e funções públicos, de participar de ordens militares, religiosas e mesmo
assistenciais ou irmandades; alguns estavam bem situados econômica e politicamente a ponto
de podermos considerá-los parte de uma burguesia colonial em ascensão. Foram perseguidos,
presos, torturados por serem considerados hereges e apóstatas em potencial ao catolicismo e
não estavam isentos de atitudes preconceituosas por parte do restante da população.
Neste panorama baiano setecentista encontramos os cristãos-novos objeto deste estudo.
Homens e mulheres que viveram na capital da colônia permanente ou temporariamente, a

1 Dissertação defendida pelo Departamento de Línguas Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo, abril 1997.

13
maioria vinda do norte de Portugal em fins do século XVII e, especialmente, no começo do
seguinte; outros já naturais da terra. Homens e mulheres sobre os quais foi possível conhecer
suas vidas por serem presos ou denunciados ao Santo Ofício, passando assim a fazer parte de
uma história que tirou do anonimato seus nomes, suas ações, suas ideias, comportamentos e
sentimentos.
A reconstrução, ainda que fragmentada em alguns casos, da vida e dinâmica dos cris-
tãos-novos na sociedade global é viabilizada pelo rigor burocrático sob o qual se pautou o exer-
cício inquisitorial, as regras e a estruturação do corpo do processo. Esse se distingue em sessões
direcionadas a concentrar a fala dos réus em matérias concernentes à crença, religiosidade e
tradições, redes de parentesco, relações familiares e sociais, ocupações e relações econômicas,
bens e riqueza, dentre outros aspectos.
O período selecionado para abordar a temática, entre 1700 e 1748, percorre os anos em
que o Santo Ofício voltou a atuar com maior determinismo contra cristãos-novos após um in-
terregno de relativa diminuição das perseguições, sendo aqueles entre 1720 e 1740 os de maior
índice de prisões na Bahia. A atividade da Inquisição voltou a arrefecer depois desta fase e em
1773 a distinção entre cristãos-novos e cristãos-velhos foi legalmente eliminada pelo Marques
de Pombal.
Os processos inquisitoriais analisados nesse estudo, movidos, todos, pelo Tribunal de
Lisboa contra cristãos-novos residentes na capitania da Bahia, nomeadamente em Salvador,
revelaram a dinâmica dos empreendimentos econômicos e o cotidiano de suas atividades, as
solidariedades e rivalidades, as sociabilidades e hostilidades, a convivência com cristãos-velhos
e seus antagonismos; bem como sua memória religiosa e cultural, seus pensamentos e senti-
mentos, como viam a si mesmos e como eram vistos pelos outros.
A pesquisa sobre cristãos-novos nunca se esgota. Partindo de informações e reflexões
suscitadas pela documentação inquisitorial, prosseguimos a investigação em outras fontes
primárias manuscritas e impressas. Informações complementares, especialmente em relação
à vida de prisioneiros do Santo Ofício antes e depois do cárcere, nos levaram a buscar em acer-
vos baianos documentações mencionadas pelos próprios réus em seus processos e outras que
os pudessem inserir na conjuntura socioeconômica e política da capital da Colônia e Recônca-
vo baiano na primeira metade do século XVIII. Tratava-se de litígios judiciais envolvendo os
próprios réus, certidões cartoriais sobre transações comerciais e filiações a irmandades religio-
sas; alguns deles transcritos na íntegra, outros apenas citados e indicado o registro em órgãos
competentes da época. Para este fim, pesquisamos nos Arquivo Público do Estado da Bahia
(APEB), Arquivo Arquidiocesano da Cúria Metropolitana de Salvador (AACMS), Arquivos
Municipais de Salvador e Cachoeira e o arquivo da Câmara Municipal de Cachoeira.
Foram poucos os cristãos-novos contemplados com informações procedentes dessas do-
cumentações. No entanto, elas foram preciosas no sentido de encontramos notícias referentes
a episódios ocorridos depois do encarceramento, como o registro de uma cristã-nova comer-
ciando escravos na rota da Bahia para o Rio de Janeiro, meio à inscrição de centenas de homens
no Livro de Passaportes e Guias 1718-1719(APEB).
De importância singular também foi um documento encontrado no Gemeente Archief,
em Amsterdam, pelo Prof. Dr. Gerard Nahon que chegou a nossas mãos por intermédio da

14
Profa. Dra. Anita W. Novinsky. Trata-se de uma cópia de escritura de testamento nomeando
duas cristãs-novas moradoras na Bahia, penitenciadas pelo Tribunal de Lisboa, como herdeiras
de um tio materno que vivia em uma comunidade de judeus ibéricos na Holanda. Pudemos
assim constatar a conexão entre membros de uma família cristã-nova dispersa pelo mundo.
Além das fontes manuscritas citadas acima, fontes primárias impressas foram igualmen-
te indispensáveis ao levantamento da população cristã-nova e o descortino de sua vida. Cita-
mos, sem querer nos estender, as publicações de Anita Novinsky, Luís de Bivar Guerra e Luís
Lisanti.2
Com esse material reconstitui-se diversos aspectos da vida desses indivíduos e suas re-
lações com a sociedade baiana setecentista. Mediante a ordenação de dados fornecidos pela
fala dos réus, dos denunciantes, das testemunhas dos fatos relatados, considerando também
o discurso do Inquisidor, os documentos analisados foram exequíveis para responder nossas
indagações a respeito do objetivo proposto. É fundamental inserir os cristãos-novos na história
da América portuguesa setecentista e entender em que medida esse grupo social se distinguiu
do resto da população portuguesa, os cristãos-velhos, com os quais conviviam cotidianamente.
Trata-se, portanto de um trabalho prosopográfico.
Com a disponibilidade on line, pelo Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT),
em Lisboa, do fundo Tribunal do Santo Oficio que reúne digitalizada toda a documentação
do Tribunal do Santo Ofício de Lisboa, ampliou-se a pesquisa nos processos e outras fontes
inquisitoriais, mas não serão aqui contabilizadas senão para ajustar alguns dados, uma vez
que descaracterizaria a pesquisa original. Algumas personagens da tese foram desdobradas em
artigos, como as histórias de Antonio Cardoso Porto,3 enquanto heresiarca, ou João de Morais
Montesinhos,4 que reclamava dos Familiares do Santo Oficio, ou ainda soa religiosidade crip-
tojudaica.5
Os capítulos deste livro obedecem a ordem original da tese de doutoramento. O pri-
meiro capítulo traz o perfil dos cristãos-novos que viveram na Bahia setecentista. Um levanta-
mento populacional apontando suas procedências, áreas residenciais, deslocamentos dentro da
cidade, convivência familiar, as dificuldades enfrentadas pela população para atuar nas esferas
políticas e religiosas da Colônia, mostrando as estratégias utilizadas para fazerem-se reconhe-
cer socialmente.

2 NOVINSKY, Anita. Inquisição: inventário de bens confiscados a cristãos-novos no Brasil: século XVIII. Portugal:
Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 1978; Inquisição: rol dos culpados: fontes para a História do Brasil: séc. XVIII.
Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1992; Inquisição: prisioneiros do Brasil, séculos XVI-XIX. Rio de Janeiro:
Expressão e Cultura, 2002. GUERRA, Luís de Bívar (Org.). Inventário dos processos da Inquisição de Coimbra
(1541-1820). Paris: Fundação Calouste Gulbenkian; Centro Cultural Português, 1972. 2 v. (Fontes Documentais
Portuguesas IV. Leitura e Introd. Luís de Bívar Guerra); LISANTI, Luís. Negócios coloniais: uma correspondência
comercial do século XVIII. Brasília, DF: Ministério da Fazenda, 1975. 5 v.
3 SEVERS, Suzana. Um heresiarca na Bahia setecentista: judaísmo e Inquisição. Práxis. Revista eletrônica de história
e cultura, Salvador, v. 4, n. 5, p. 107-115, jan./dez. 2011.
4 SEVERS, Suzana M. S. S. “Sapatos ao mato”: o sentimento de “um triste homem que vem preso” pelo Santo Ofício.
Politéia: História e Sociedade, Vitória da Conquista, v. 11, n. 1, p. 105-125, jan./jun. 2011.
5 SEVERS, Suzana. Memória e religiosidade marrana na Bahia colonial. In: COUTO, Edilece S.; SILVA, Marco
Antonio N. da; SOUZA, Grayce M. Bonfim. Práticas e vivências religiosas: temas da história colonial à
temporalidade luso-brasileira. Salvador: Edufba; Vitória da Conquista, BA: Edições UESB, 2016. p. 281-296.

15
Relações sociais entre os próprios cristãos-novos e entre estes e os cristãos-velhos foi
outro aspecto trabalhado. Apontamos para a solidariedade de cristãos-novos já estabelecidos
na Bahia em receber seus confrades recém-chegados. O depoimento de cristãos-velhos nas
sessões contradita e coartada apontam para contatos de vizinhança, amizades e compadrio.
O capítulo seguinte investiga a distribuição e desenvolvimento das atividades de presos e
denunciados, distinguindo os vários níveis hierárquicos de cada categoria socioeconômica, as
inter-relações e engajamento na economia baiana e a dinâmica no exercício de suas ocupações.
Observamos ainda algumas mulheres realizando atividades econômicas.
Bens e riqueza dos réus inventariados também são avaliados neste capítulo. Os bens são
classificados em escravos, imóveis, móveis, mercadorias estocadas, roupas, armas, artefatos em
ouro, prata e pedras preciosas, utensílios domésticos, objetos de uso pessoal, dinheiro e miu-
dezas em geral. Pela descrição das peças e uso que delas faziam, podemos conhecer o estilo de
vida dos cristãos-novos. Demonstramos ainda nesse capítulo, como o confisco de bens era ma-
nipulado pelos inquisidores para intervir no desenvolvimento dos negócios dos cristãos-novos
e as alternativas que os réus encontravam para proteger seu patrimônio.
O criptojudaísmo é assunto do terceiro capítulo. Apresentamos os ritos e cerimônias que
conheciam e como os observavam; como eram transmitidas as práticas religiosas; o sentido da
religião de seus antepassados na construção da identidade judaica ou na negação da mesma; a
ambiguidade íntima do cristão-novo; o conteúdo das orações judaicas registradas durante as
confissões revelando a consciência da origem e história judaica fazendo-os sentir a continuida-
de da perseguição aos judeus.
O quarto capítulo concentrou-se na observação de alguns fatos singulares do procedi-
mento das diligências na Bahia e o comportamento dos funcionários no uso de suas atribui-
ções. Inclui-se neste contexto a convivência com Familiares do Santo Ofício, executores da
vigilância e prisão de suspeitos, muitas vezes seus vizinhos, e um caso de antijudaísmo. Na
sequência da ação Inquisição na Bahia, observamos os prisioneiros e as punições. Apresen-
tamos um levantamento e uma avaliação do perfil socioeconômico de presos e denunciados,
bem como as sentenças imputadas correlacionando a postura que o réu adotava durante os
interrogatórios com a qualidade da condenação. Enfocamos ainda o discurso de alguns réus
expressando o medo de serem presos e as formas que usavam para driblar a ameaça de prisão.
Quando esse capítulo foi nomeado com a expressão “Estaus baiano” se quis aludir à
abordagem pretendida, isto é, discorrer e avaliar, com base nos processos inquisitoriais con-
sultados, o desempenho de oficiais e agentes da Inquisição na Bahia durante o reinado de D.
João V e seu Inquisidor-mor D. Nuno da Cunha de Ataíde e Melo, que exemplificassem ajus-
tes à realidade colonial nos termos de fazer cumprir as ordens vindas do Tribunal do Santo
Ofício de Lisboa, o qual jurisdicionava a América portuguesa, ou um pouco em fugir-lhes a

16
regra.6 No entanto, outras pesquisas vieram à tona antes da publicação dessa tese, e ampliaram
consideravelmente as informações e interpretações trazidas aqui a respeito da organização e
funcionamento da Inquisição na América portuguesa. Ressalte-se as obras de Sonia Siqueira,7
Bruno Feitler,8 Grayce Mayre B. Souza9 e Aldair C. Rodrigues,10 dentre outros tantos artigos
publicados por não menos eminentes historiadores brasileiros e estrangeiros.
Ressalte-se que optamos pela atualização ortográfica das citações coevas ao século XVIII
uma vez que o propósito não é uma fidelidade paleográfica, mas a mensagem transmitida, por
isso a pontuação original foi mantida.
Em apêndice, encontram-se além das cartas escritas pelos réus que foram citadas no
texto, os quadros de cristãos-novos e cristãs-novas presos e denunciados. Neles, houve uma re-
cente atualização de dados, graças à digitalização dos documentos inquisitoriais, sobretudo os
processos, do Tribunal de Lisboa no site do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, ampliando
o número de prisioneiros, homens e mulheres, sem contudo interferir nas conclusões da pes-
quisa, uma vez que se manteve a mesma proporcionalidade em relação ao computo original da
pesquisa entre presos/as e denunciados/as.

6 Não se trata aqui de estudar suas estruturas de funcionamento tampouco aprofundar-me em análises sobre seus
funcionários e colaboradores, assuntos amplamente contemplados em diversas obras dentre as quais destaco,
para o funcionamento e organização inquisitorial moderna, BETHENCOURT, Francisco. História das inquisições:
Portugal, Espanha e Itália: séculos XV-XIX. São Paulo: Cia. das Letras, 2000; MARCOCCI, Giuseppe; PAIVA, José
Pedro. História da Inquisição Portuguesa: 1536-1821. Lisboa: A esfera dos livros, 2013. Sobre o Brasil e a Bahia:
SIQUEIRA, Sonia. A Inquisição Portuguesa e a sociedade colonial. São Paulo: Ática, 1978, e da mesma autora, O
momento da Inquisição. João Pessoa: Ed. Universitária, 2013; FEITLER, Bruno. Nas malhas da consciência: Igreja
e Inquisição no Brasil: Nordeste, 1640-1750. São Paulo: Alameda; Phoebus, 2007; SOUZA, Grayce Mayre Bonfim.
Para remédio das almas: comissários, qualificadores e notários da Inquisição portuguesa na Bahia colonial. Vitória
da Conquista, BA: Edições UESB, 2014.
7 SIQUEIRA, S. O momento da Inquisição. João Pessoa: ed. Universitária, 2013.
8 FEITLER, Bruno. Nas malhas da consciência. Igreja e Inquisição no Brasil. Nordeste, 1640-1750. São Paulo:
Alameda; Phoebus, 2007.
9 SOUZA, Grayce Mayre Bonfim. Para remédio das almas: comissários, qualificadores e notários da Inquisição
portuguesa na Bahia Colonial. Vitória da Conquista, BA: Edições UESB, 2014.
10 RODRIGUES, Aldair Carlos. Igreja e Inquisição no Brasil: agentes, carreiras e mecanismo de promoção social:
século XVIII. São Paulo: Alameda, 2014.

17
Capítulo I

A sociedade
A POPULAÇÃO CRISTÃ-NOVA DA BAHIA SETECENTISTA

A Bahia no século XVIII, como nos séculos anteriores, continuou recebendo cristãos-novos
vindos de Portugal. A conjunção de fatores que marcou esses deslocamentos em direção à Co-
lônia nos séculos XVI e XVII manteve-se determinante também para o período setecentista.11
Além da constante ameaça inquisitorial, levando cristãos-novos para fora da Península ibérica,
o que chama a atenção, como atrativo para o assentamento na Colônia no início desta centúria,
é a possibilidade de uma afirmação econômica e social graças às amplas possibilidades abertas
pelo avanço do capitalismo comercial e pelo extrativismo mineral, embora em menor incidên-
cia no que diz respeito à Bahia.
Thales de Azevedo e Anita Novinsky confirmam a influência que o ouro exerceu nesse
sentido. Ao comentar sobre o aumento populacional da Bahia a partir do levantamento das
listas de passaportes emitidos a portugueses que para lá se dirigiram, Azevedo constatou que
[...] As minas atraíam cada dia maior número de pessoas, ávidas de enriquecer. De
Portugal chegavam numerosas pessoas, em cada navio [...] porquanto na ocasião [até
1732, pelo menos] assinalava-se verdadeiro êxodo para o Brasil [...].12

Novinsky, entretanto, pesquisando em fontes inquisitoriais, ressalta o fluxo de cristãos-


-novos que buscava o ouro na região sudeste sem, contudo, deixar de assinalar que estavam
imbuídos do mesmo interesse:
[…] The Jewish interest In that region was the same as that of the rest of the population:
gold. The gold rush led to an increase In immigration and a high rate of mobility. In the
eighteenth century, the greatest number of New Christians registered In the Inquisition

11 Não apenas os cristãos-novos como a população lusa em geral sofreram as consequências das campanhas
militares da Restauração e da Guerra da Sucessão em Espanha, implicando no aumento da crise no meio rural,
já desgastado pelos desastres naturais, sobretudo no Norte de Portugal (Minho, Beiras e Trás-os-Montes);
em especial os cristãos-novos das Beiras e Trás–os-Montes, onde a atuação inquisitorial se fez mais forte nas
primeiras décadas setecentistas. Acresce-se a estes fatores tradicionais apontados pela historiografia, a singular
atração para o ultramar atlântico durante o século XVIII influenciado pelas melhores condições de vida que
a América portuguesa ofertava, seja em razão da busca por metais preciosos – a qual se estendeu pelo século
XVIII à fora – seja pelo incentivo familiar trazendo parentes para juntar-se àqueles já estabelecidos na conquista
brasílica. Cf. RUSSEL-WOOD, A. J. R. A emigração: fluxos e destinos. In: BETEHNCOURT, F.; CHAUDHURI,
K. História da expansão portuguesa. Lisboa: Círculo de Leitores, 1998. v. 3, p. 158-168; RUSSEL-WOOD, A. J. R.
Ritmos e destinos de emigração. In: BETEHNCOURT, F.; CHAUDHURI, K. História da expansão portuguesa.
Lisboa: Círculo de Leitores, 1998. v. 2, p. 114-125; FLORY, Ray jean Dell; SMITH, David G. Bahian merchants
and planters in the seventeenth and early eighteenth centuries. Hispanic American Historical Review, v. 58, n. 4,
p. 571-549, 1978.
12 AZEVEDO, Thales. Povoamento da cidade do Salvador. Salvador: Itapuã, 1969. p. 185-186. Também Russel-
Wood aponta para a mesma tendência. RUSSEL-WOOD. A emigração..., op. cit., p. 163.

20
archives were concentrated In the two states most directly affected by the gold rush, Rio
de Janeiro and Minas Gerais.13

No grupo de cristãos-novos identificado por esta pesquisa (cerca de 174 homens e no-
venta mulheres), o comércio desponta como fator atrativo, um dos mais preponderantes, para
o estabelecimento na Capitania da Bahia. Não apenas comerciantes constituem a maior parte
da população arrolada, segundo exposição mais adiante, como o comércio foi atividade pre-
cedente a qualquer outra, sobretudo à mineração, dentre aqueles chegados nos primeiros anos
setecentistas.14
A busca de oportunidades para comerciar na capital da Colônia, inclusive com predis-
posição a ocupar o mercado ultramarino, foi almejada, por exemplo, por Antonio Cardoso
Porto, cristão-novo português que, após viver muitos anos próximo a Baiona (França) e ne-
gociar entre este e os reinos ibéricos, chegou a Salvador em 1715 pretendendo restabelecer-se
financeiramente.
A falência nos negócios em França o fez retornar a Portugal e imediatamente embarcar
para a “cidade da Bahia”.15 Em sua bagagem levava peças de finos tecidos franceses para vender,
uma procuração autorizando-o a cobrar uma dívida a favor dos homens de negócios Olivier &
Medicci16 e a indicação de um cristão-novo português da comunidade judaica de Saint-Esprit-
-les-Bayonne para contatar seu irmão, o mercador Luís Henriques, quem mais tarde tornou-se
seu genro e inimigo, como se verá mais à frente. Nesses detalhes, percebe-se a sua intenção, e
talvez mesmo a certeza íntima, de transformar tecidos, procuração e contato com o mercador
em passaporte seguro para firmar-se definitivamente, e com sucesso, na praça comercial e so-
ciedade baianas, como aconteceu.
Outros motivos que muitas vezes particularizaram a transferência destes cristãos-novos
portugueses para a Bahia podem ser apontados sob o ponto de vista social ou familiar, quando
eram chamados ou recebidos por parentes que já viviam aí em boas condições socioeconômi-
cas, ou não.17 Aqueles que herdavam o meio social e os contatos pessoais necessários encontra-
vam menos dificuldades para se estabelecerem social e economicamente.
Manuel Mendes Monforte é talvez o caso mais ilustrativo desta situação. Médico já re-
conhecido em Portugal, tendo inclusive sido convocado pelo Visconde de Barbacena, então

13 NOVINSKY, Anita. Jewish roots of Brazil. In: ELKIN, J.; MERKX, G. (Ed.). The Jewish presence in Latin America.
Boston: Allen A. Unimeris, 1987. p. 40. Os interesses dos judeus nesta região eram os mesmos que os do resto
da população: ouro. A corrida ao ouro levou ao incremento da imigração e uma elevada mobilidade. No século
XVIII, o maior número de cristãos-novos registrado nos arquivos inquisitoriais concentrava-se nos dois estados
[sic] mais diretamente afetados pela corrida ao ouro, Rio de Janeiro e Minas Gerais. [Traduzido pela autora].
14 Alguns dos cristãos-novos que se tornaram mineiros chegaram ao Brasil ainda crianças, como Antonio Fernandes
Pereira e Jerônimo Rodrigues, que também era mercador. ANTT/TSO/IL Proc. nos 10481 e 10003.
15 “[...] por se achar diminuído de cabedais por algumas perdas que tinha experimentado, se resolveu a passar para
este Reino de Portugal e chegando a Lisboa se embarcou para a Bahia [...]”. ANTT/TSO/IL Proc. n° 8.887.
16 Não foi possível identificar vinculação alguma do consórcio Olivier & Medicci com a tradicional Casa italiana
dos Medicci.
17 Russel-Wood acentua a “dimensão familiar” como um dos maiores atrativos da emigração lusa para a América,
apontando-a como um fenômeno característico para o século XVIII. RUSSEL-WOOD, A. J. R. A emigração... op.
cit., p. 158.

21
governador de armas de Penamacor,18 a ir sanar uma epidemia que grassava a região pelos idos
de 1694, Monforte atravessou o oceano quatro anos depois (em 1698) para realizar o casamen-
to prometido com uma prima, filha de seu tio e homônimo, um rico senhor de engenho do
Recôncavo. Tornando-se senhor de engenho e homem de negócios bem-sucedido, enriqueceu
e ingressou na elite baiana da qual seu tio já fazia parte.19
A maioria dos cristãos-novos estudados não teve a mesma sorte de encontrar parentes
ricos que lhes garantissem ascensão social. Contudo, sempre desfrutavam do abrigo familiar,
só partindo quando, no livre correr da vida, seus interesses pessoais os mandavam para outros
caminhos, ou quando o Santo Ofício traçava a rota do cárcere.
Os irmãos Pedro, Ventura e Álvaro Ferreira da Silva, desde que chegaram à Bahia, na dé-
cada de 1740, viviam no sítio de um tio materno, o abastado homem de negócios e lavrador de
cana, Diogo Henriques Ferreira, cuja conceituação na sociedade baiana pôde ser medida pelo
privilégio de ser sepultado no interior da igreja Catedral da Sé, onde apenas uma fina camada
social encontrara morada eterna.20
Estes moços, que aparentemente viviam às expensas do tio rico, eram independentes
economicamente. Ventura Ferreira da Silva era artesão especializado na fabricação de ferros –
ferrador; Álvaro dedicava-se à cirurgia, tendo sido empregado em navios por algum período,
do que lhe restou ser conhecido como cirurgião de naus; e Pedro aparece sem ofício definido,
o que sempre implica em alguma prática comercial21. Se teve a chance de acompanhar os negó-
cios do tio, não se sabe.
Álvaro e Ventura Ferreira da Silva deixaram a casa de Henriques Ferreira quando retor-
naram a Portugal presos pelo Santo Ofício; o irmão deles, Pedro, de quem não há notícias de
prisão inquisitorial, sempre permaneceu ao lado de Diogo Henriques Ferreira e foi, certamen-
te, um de seus testamenteiros.22
Antonio da Fonseca, cristão-novo que se dedicou a diferentes ocupações econômicas
logo que chegou na Bahia em 1702, aos 23 anos de idade, foi para a Vila de Cachoeira, onde foi

18 Trata-se de Jorge Furtado de Mendonça, 2º Visconde de Barbacena, filho do Governador-geral do Estado do


Brasil Afonso Furtado de Castro do Rio Mendonça (1671-1675), de quem herdou títulos e o cargo de Governador
das Armas da Província da Beira (onde localiza-se a citada Vila de Penamacor), vindo a falecer em 1708. GAIO,
Felgueiras (1750-1831). Nobiliário de famílias de Portugal. Tomo XX. Braga: Agostinho de Azevedo Meirelles,
Domingos de Araújo Affonso (Ed.); Pax, 1938-1941, p. 46.
19 A história de Manuel Mendes Monforte, o tio, é desconhecida. Quando seu sobrinho chegou a Salvador já era
reconhecido dentre os grandes senhores de engenho da Bahia, hospedando em suas terras gente ligada à Igreja.
ANTT/TSO-IL-Proc. nº 675.
20 Diogo Henriques Ferreira foi sentenciado pelo Santo Ofício em 1728, recebendo condenação menos severa por
ter sido réu “apresentado”. Faleceu em 1751, recebeu todos os sacramentos católicos e foi sepultado igreja da
Sé, deixou 30 missas de corpo presente em três capelas de Portugal. Livro de Óbitos da Freguesia da Sé, fl. 172,
Arquivo Cúria Metropolitana de Salvador.
21 Em geral, observando a sessão inventário, nos processos inquisitoriais, constata-se que os prisioneiros sem
atividade econômica definida sempre têm registradas pequenas e esporádicas práticas comerciais.
22 A certidão de óbito de Diogo Henriques Ferreira nomeia três sujeitos como testamenteiros, um deles, mencionado
como sobrinho do falecido foi registrado com o nome de Pedro Álvares da Silva. Uma confusão talvez de
sobrenomes por seu pai chamar-se Pedro Lopes Álvares, ao que se infere ser Pedro Álvares da Silva o mesmo
Pedro Ferreira da Silva. Livro de Óbitos da Freguesia da Sé, fl. 172, Arquivo Cúria Metropolitana de Salvador.

22
acolhido pela avó de seu meio-irmão paterno, Clara Lopes. Antonio teve larga estadia em sua
casa até mudar-se para a vizinha Rio Fundo,23 ao ir trabalhar como ajudante de ordenança de
partido de um sargento-mor cristão-velho que mais tarde veio a ser seu sogro.24
A estabilidade do apoio de Clara Lopes e seus três ou quatro filhos a Antonio da Fonseca
dava-lhe abertura para hospedar-se com eles sempre que passava pela Vila de Cachoeira. Em
uma destas temporadas conviveu com parentes e amigos da família, vindos de Portugal, e assim
pôde ver a disponibilidade familiar em abrigar recém-chegados.25
Os irmãos Fernandes Camacho, Antonio e Joseph, vieram reunir-se em casa de outro
irmão, Francisco, morador também na Vila de Cachoeira há algum tempo, para atuarem no
comércio. Antonio faleceu prematuramente; Joseph enquanto solteiro, interessado em expan-
dir seus negócios, esteve presente na vida familiar de Francisco e, depois de casado, já com dois
filhos, retornou a Portugal.26
João Gomes de Carvalho, outro mercador português que comerciou na Colônia, foi re-
cebido em casa do capitão de navio Joseph da Costa, onde viviam a esposa, a mãe, a irmã e
alguns dos irmãos deste. Carvalho foi tomado como membro da família e desta convivência
resultou seu casamento com a irmã do anfitrião, Luísa Maria Rosa.
Diogo de Ávila Henriques, conhecido como “o Jangada”, surpreendeu por sua história
contrária ao amparo que se tem verificado nesse grupo de cristãos-novos. Enfatizou que seus
primos, os irmãos Gaspar Henriques e Diogo de Ávila negaram-lhe hospedagem quando che-
gara à Bahia, ainda moço com cerca de 16 anos de idade e desprovido de recursos financeiros.
Acabou sendo abrigado por dois cristãos-velhos dos quais não se conhece a razão do relacio-
namento, tampouco da disposição em ajudar-lhe.
O primeiro a acolhe-lo foi o mestre de obras Pedro Marques Guisão, o qual se alojava no
Mosteiro de São Bento onde realizava uma reforma em suas dependências.27 Depois dessa tem-
porada de quase um ano no mosteiro que, parece, passou despercebida por um beneditino cha-
mado a depor sobre esta questão nos artigos de defesa, Ávila Henriques viveu em companhia
do advogado Martinho Barbosa de Araújo, servindo-lhe de escrevente até o falecimento deste.
Esse relacionamento indiferente que “o Jangada” dizia ter com seus primos inverteu-se
algum tempo depois ao firmarem uma sociedade comercial que veio a favorecer principalmen-
te o próprio Ávila Henriques. Não mais na qualidade de recém-chegados, porém ainda pro-
curando consolidar-se no comércio, contaram com o apoio do cunhado de Gaspar Henriques,
João de Morais Montesinhos, e do amigo Jerônimo Rodrigues, cristãos-novos mercadores que
conheciam muito bem a dinâmica comercial da Colônia, onde sempre viveram, um por ser
natural da Bahia, o outro por ter chegado na infância. Delineia-se, assim, mais um tipo de

23 Atual município de Muniz Ferreira. Dista cerca de 100 km da cidade de Cachoeira, Recôncavo baiano. FERREIRA,
J. Pires (Org.). Enciclopédia dos municípios brasileiros. Rio de Janeiro: IBGE, 1958. v. 21, p. 76.
24 Sargento-mor Thomé de Meirelles Machado. Não fica claro se Violante da Silva, esposa de Antonio da Fonseca,
era sua filha ou enteada, filha do primeiro marido de sua esposa, a cristã-nova, D. Bernarda.
25 “[...] assistiam alguns parentes [...] vindos de Portugal [...]”. ANTT/TSO-IL Proc. n° 10484.
26 Joseph Fernandes Camacho era casado com Ana de Miranda, prima inteira de Ana Bernal de Miranda,
personagem que será citada mais adiante.
27 Não foi possível encontrar em documento algum pesquisado, nem mesmo do arquivo beneditino de Salvador,
referências a este mestre de obras.

23
suporte a cristãos-novos que vai além da simples condição de moradia e acolhimento familiar.
Registros de transações econômicas encontradas em inventários mostram a constituição de
relações entre recém-chegados e sediados na Bahia há mais tempo, independente de vínculos
de parentesco, favorecendo ao assentamento na Colônia.
No caso dos primos Diogo de Ávila Henriques e Gaspar Henriques, a experiência de
comércio com as Minas adquirida por Jerônimo Rodrigues foi-lhes útil. Juntos, investiram
em diversas carregações de escravos para o Rio de Janeiro e as Minas Gerais, sendo Rodrigues
sócio ao mesmo tempo que intermediário e negociador, valendo-se de seu vasto conhecimento
no sudeste da Colônia.28 Gaspar Henriques, por sua vez, cuidou de fazer-se conhecer nas Minas
ao servir como intercessor nas transações de seu cunhado João de Morais Montesinhos.29
O assentamento dos recém-chegados na Colônia dependia de contatos pessoais com os
já aí residentes. As relações socioprofissionais existentes (e o parentesco) bem como as novas
relações constituídas por intermédio de terceiros eram fundamentais a uma intercomunicação
que se tornava profícua nesse início de vida ultramarina. Assim sendo, os recém-chegados
contariam ao mesmo tempo com o apoio de seus conhecidos e daqueles que, em um primeiro
momento, ser-lhes-iam estranhos.
Estranho a Diogo de Ávila Henriques e a Antonio Cardoso Porto foi o cristão-novo Luís
Henriques, mercador experiente com fama de “esperto e vivo” e caráter duvidoso, estabele-
cido em Salvador na última década dos seiscentos, a quem ambos foram recomendados, por
diferentes pessoas, a procurar para atender distintos propósitos. Ávila Henriques precisava de
um suporte para encaminhar, como procurador, uma ação impetrada pelo comerciante Fran-
cisco Pinto, seu vizinho em Portugal, a fim de receber a herança de um advogado da Vila de
Cachoeira, Gabriel da Silva Barbosa. Orientado pelo próprio Francisco Pinto a pedir ajuda a
Luís Henriques, Ávila Henriques transferiu-lhe o encaminhamento da ação, uma vez que tinha
pressa em receber os honorários e os trâmites correriam com maior rapidez nas mãos de quem
melhor conhecia a dinâmica e os funcionários de órgãos judiciais de Salvador.30
Cardoso Porto, por sua vez, planejava mudar-se para o Brasil quando ainda vivia na comu-
nidade cristã-nova da região de Baiona, França. Por meio da indicação de um irmão de Luís Hen-
riques, também lá morador, tornaram-se vizinhos e parceiros nos seus primeiros negócios na Co-
lônia, envolvendo inclusive transações internacionais. A parceria acabou fracassando por fatos não
muito evidentes, mas que incitaram desejos assassinos em Luís Henriques contra Cardoso Porto.
Percebe-se aqui um conflito gerado por uma situação competitiva desequilibrando a rela-
ção entre recém-chegado e já residente, ou já estabelecido, o qual se vê cedendo seu espaço con-

28 ANTT/TSO-IL Proc. nº 2121. Interessante é que Jerônimo Rodrigues era analfabeto, sem mesmo saber assinar o
nome, rubricando-o por sinal; mesmo assim, mostrou-se um mercador bem-conceituado em seu ofício. Apesar
de seu processo inquisitorial não ter inventário (ANTT/TSO-IL Proc. nº 10003), seus negócios foram comentados
em processos de outros cristãos-novos da Bahia.
29 ANTT/TSO-IL Proc. nº 6486.
30 Segundo um escrivão da Fazenda Real, Antonio Gomes de Araújo, encarregado dos procedimentos legais deste
pleito, Luís Henriques era a pessoa qualificada para tomar a frente no encaminhamento da ação, posto que, “como
esperto e vivo que era e ter mais conhecimento da terra, faria com mais atividade a tal cobrança”. ANTT/TSO-IL
Proc. n° 2121.

24
quistado a um estranho, a alguém que vem de fora e com quem não havia vínculos mais fortes de
parentesco ou até prévia amizade suficientemente consolidada para compartilhar esta conquista.
No entanto, um primeiro contato com Luís Henriques foi fundamental para estes dois
cristãos-novos recém-chegados, muito embora suas relações tivessem sido bastante contur-
badas. Diogo de Ávila Henriques obteve o êxito esperado em sua missão e Cardoso Porto foi
introduzido ao mundo dos negócios coloniais.
Condutas como estas mostram em um primeiro momento uma reação positiva de
cristãos-novos já residentes na Bahia em acolher os que acabaram de desembarcar. Víncu-
los afetivo-familiares, como entre Gaspar Henriques e João de Morais de Montesinhos, tanto
quanto Manuel Mendes Monforte e seu tio, facultaram a ingressão destes novos moradores
aos círculos sociais, em alguns casos precedendo as parcerias econômicas, levando também a
uniões matrimoniais.
Casamento entre primos de diferentes graus de parentesco, ainda que não tenha sido ob-
servado como um comportamento habitual dentre estes cristãos-novos, fortaleceu a aceitação de
Gaspar Henriques, por exemplo, ao universo familiar do qual fazia parte, mas que se mantivera
distante afetiva e geograficamente até chegar à Bahia. Gaspar Henriques casou-se com Ana Go-
mes Coutinho, irmã de João de Morais Montesinhos. O sobrenome comum ao avô de um e de
outro, Joseph de Morais Montesinhos e João de Morais Montesinhos, respectivamente, sugere-
-lhes algum parentesco de segundo ou terceiro grau. Confirmando esse parentesco, haveria, par-
ticularmente, a oportunidade e a confiabilidade para poder desenvolver negócios em família.
A história de Manuel Mendes Monforte difere diametralmente de Gaspar Henriques.
Foi o acerto prévio de casamento com sua prima direta, Maria Ayres, que o fez emigrar para
a Bahia, como dito anteriormente. E, por meio do matrimônio, talvez mesmo por causa dele,
teve imediatamente as condições ideais para consolidar-se definitivamente na sociedade baiana
como senhor de engenho.
Uma razão que recobria a transferência de cristãos-novos portugueses para a Colônia foi
a perseguição inquisitorial, que em conjunção a outros fatores constituiu a base, talvez a mais
relevante, para que essa transferência ocorresse séculos afora, não importando tanto as insta-

25
bilidades políticas e econômicas da Metrópole, o sucesso da conquista americana, tampouco a
motivação particular de cada um.31
Dentre esses cristãos-novos estudados, cuja maioria veio do norte de Portugal, havia o
temor de serem presos pela Inquisição ainda quando se encontravam em suas Vilas de origem,
posto que além de estarem mais próximos dos Tribunais, tinham, todos eles, pessoas em seu
meio social que responderam ou estavam a responder a processos no Santo Ofício e, portanto,
tornavam-se seus denunciantes em potencial. Este temor era tão real que as suas prisões, exe-
cutadas na Bahia, decorreram em grande parte das denúncias feitas por tais pessoas, morado-
ras em Portugal, às quais eles tanto temiam fossem forçadas a delatar-lhes em suas confissões.
No Estado do Brasil, em alguns casos talvez, conseguiram apenas retardar o aprisionamento.
A família Nunes de Miranda é o exemplo mais claro e concreto de deslocamento promo-
vido pela perseguição inquisitorial. De uma família da qual se arrolou 69 membros em cinco
gerações, entre 1669 e 1700, entraram 37 parentes em Salvador logo no primeiro ano do século
XVIII.32 Ao que tudo indica, chegaram à Bahia sem nenhum contato antecipado com cristãos-
-novos já residentes, o que em certo sentido dificultar-lhes-ia a introdução no meio social e
econômico. O único Nunes de Miranda previamente estabelecido na capital da Colônia o fora
por razões de degredo e dele não há notícia alguma.33
A saída da Península Ibérica foi-lhes emergente. Desde meados do século XVII, ao me-
nos, a família vinha sendo submetida sucessivamente a tribunais das Inquisições portuguesa e
espanhola e, nesta última, alguns parentes foram penitenciados dois anos antes de aportarem
em Salvador. O médico Francisco Nunes de Miranda, preso poucos meses após ter chegado à

31 D. Luiz da Cunha chama a atenção em seu Testamento Político, escrito entre 1747 e 1749, para a devastadora
emigração dos moradores de vilas ao norte de Portugal por influência da ação do Santo Ofício: “Da mesma sorte
dissera que V. A. acharia certas boas povoações quási desertas, como por exemplo na Beira Alta os grandes lugares
da Covilhã, Fundão e cidade da Guarda e Lamego; em Trás-os-Montes a cidade de Bragança e destruídas de suas
manufacturas. E se V. A. perguntar a causa desta dissolução, não sei se alguma pessoa se atreverá a dizer-lha com
a liberdade que eu terei a honra defazê-lo; e vem a ser que a inquisição prendendo uns por crime de judaísmo
e fazendo fugir outros para fora do reino com os seus cabedais, por temerem que lhos confiscassem, se fossem
presos, foi preciso que as tais manufacturas caíssem, porque os chamados cristãos-novos os sustentavam e os
seus obreiros, que nelas trabalhavam, eram em grande número, foi necessário que se espalhassem e fossem viver
em outras partes e tomassem outros ofícios para ganharem o seu pão, porque ninguém se quis deixar morrer de
fome”. CUNHA, D. Luiz da. Testamento político... São Paulo: Alfa-Ômega, 1976. p. 63-64. Ainda que considere
plausível esta justificativa, Russel-Wood minimiza a influência inquisitorial na movimentação demográfica do
Norte de Portugal: “Contudo, em caso nenhum se pode atribuir essa redução demográfica apenas à intervenção
da Inquisição. As ramificações económicas negativas do Tratado de Methuen e a incapacidade da Beira para
competir com o afluxo dos lanifícios manufacturados em Inglaterra foram outros factores contribuintes”. RUSSEL-
WOOD, A emigração..., op. cit., p. 163.
32 A história desta família, sua transferência para a Bahia e envolvimento com a Inquisição foi tema de minha
Dissertação de Mestrado. SANTOS, Suzana Maria de Sousa. Marranos e Inquisição: (Bahia, século XVIII). 1997.
185 f. Dissertação (Mestrado em Língua Hebraica, Literatura e Cultura Judaicas) Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1997.
33 Trata-se de Antonio Nunes, condenado a degredo para o Brasil em 1693, não se sabe a razão; era pai e avô do
grupo familiar emigrado, dentre os quais se destaca um de seus filhos, o médico Francisco Nunes de Miranda.
Possivelmente, Francisco já encontrara um primo em segundo grau vivendo na Bahia, Antonio Rodrigues
Romano ou Nunes Romano, cuja relação de parentesco com a família foi apontada por um cristão-novo não
parente, mas não foi registrada em algum processo da família consultado.

26
“cidade da Bahia”, em 1700, afirmou em confissão à Mesa do Santo Ofício que mais de 40 pa-
rentes já haviam sido presos.34
Observa-se, portanto, que a transferência desses cristãos-novos para a capital da Colônia de-
correu de uma situação persecutória estabelecida no reino português no começo do século XVIII
e das possibilidades de crescimento econômico favorecido pelo comércio e mineração. Além de
receberem o acolhimento de parentes e amigos, estavam longe dos Tribunais inquisitoriais.

Levantamento populacional
O número de cristãos-novos que migrou para a Colônia em todos os tempos é incalcu-
lável. Os censos populacionais que começaram a ser regulares apenas em meados do século
XVIII não informavam a origem étnica dos recenseados, antes dividiam-nos em brancos, ne-
gros e índios, em homens, mulheres e crianças (estas a partir dos sete anos de idade), em “almas
comungantes” ou não.35
Documentos que ressaltam essa população portuguesa e luso-brasileira são processos
e outros apontamentos do Santo Ofício (fontes mais completas e usuais), os processos de ha-
bilitações de genere e as fintas – estas inexistentes desde que o Marquês de Pombal ordenou a
destruição de seus originais e impediu a circulação ou citação de suas cópias.36
Em termos gerais, segundo cálculos do antropólogo Thales de Azevedo, durante o início
dos setecentos havia em Salvador 8 mil habitantes brancos e nos arredores da cidade contavam-
-se 12 mil brancos, 8 mil índios fora de suas aldeias e 4 mil negros africanos.37 A população
urbana e a rural adjacente a Salvador era, portanto, constituída por 20 mil moradores brancos.
Citando Oliveira Viana, T. de Azevedo assinalou 3 mil famílias brancas vivendo entre a “cidade
da Bahia” e cercanias, em 1699.38 Os assentamentos dos livros eclesiásticos de 1706 mostram
que havia 21.601 “almas de confissão”.39 A estimativa populacional total para 1724 aponta 80
mil habitantes brancos, negros e índios em Salvador e Recôncavo baiano.40
Os cristãos-novos, evidentemente, estavam inseridos neste cálculo de 20 mil brancos
que Thales de Azevedo disse povoar a área urbana de Salvador e suas proximidades no início

34 ANTT/TSO-IL Proc. n° 1292.


35 SCHWARTZ, Stuart. Segredos internos. São Paulo: Cia. das Letras, 1988. p. 86-88.
36 Chama-se Habilitações de genere os processos de investigação sobre a origem étnica dos pleiteantes a cargos
e funções públicos, religiosos ou militares que seguiam as legislações de pureza de sangue. Fintas, eram listas
onde se registravam nomes e dados pessoais de cristãos-novos e suas famílias a fim de lhes serem cobradas taxas
para obtenção de “favores” reais extensivos à toda população cristã-nova. Muitas vezes, dizem alguns autores,
os responsáveis por esta arrecadação, usando de má-fé, incluíam nelas famílias cristãs-velhas, sendo este um
dos motivos que levou o Marques de Pombal a requerer sua destruição em 1768. CARNEIRO, M. Luiza Tucci.
Racismo e preconceito no Brasil Colônia. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1983. p. 183, 243-244. As Habilitações de
genere, como as fintas, estavam sujeitas a serem burladas, não constituindo portanto, fontes fidedignas para se
conhecer a população cristã-nova, ou parte dela.
37 AZEVEDO, Thales, op. cit., p. 160.
38 AZEVEDO, Thales, op. cit., p. 160, nota 118.
39 Ibidem, p. 185.
40 Stuart Schwartz adota esta estimativa feita pelo Pe. Gonçalo Soares de França, contemporâneo do século XVIII.
SCHWARTZ, Stuart, op. cit., p. 86.

27
do século XVIII.41 Anita Novinsky avalia que até a segunda metade do século XVII, ao menos
20% da população livre e branca de Salvador era cristã-nova. Possivelmente, essa proporção
aumentou no século seguinte como resultado de casamentos mistos e da migração promovida
pelo avanço às minas auríferas,42 sem deixar de lembrar o acirramento da perseguição inquisi-
torial no tempo de D. João V.43
O cômputo de cristãos-novos presos no Brasil para o século XVIII, aponta-nos ainda
Anita Novinsky em suas pesquisas nas fontes inquisitoriais, apresenta uma maior proporção
de portugueses moradores na Bahia e no Rio de Janeiro;44 a mesma tendência é vislumbrada
em relação aos locais de nascimento, sendo naturais da Bahia e do Rio de Janeiro, a maioria
dos cristãos-novos presa pelo Santo Ofício lisboeta.45 Na contabilidade geral de cristãos-novos
presos a partir do Brasil, seu levantamento informa 449 naturais da terra brasílica contra 365
nascidos em Portugal – e poucos na Espanha.46
A população cristã-nova que se tornou conhecida por esta pesquisa resultou do levan-
tamento em 32 processos inquisitoriais movidos contra residentes na Capitania da Bahia no
período de entre 1700 a 1748; e as listagens de prisioneiros e denunciados ao Santo Ofício, pu-
blicadas por diversos historiadores em fac-símiles ou catálogos,47 ampliou a projeção demográ-

41 AZEVEDO, Thales, op. cit., p. 160 e 194.


42 “Dans la première moitié du XVIIe siècle, à Bahia, ils constituaient environ 20% de la population blanche. Cette
proportion augmenta considérablement au XVIIIe siècle, tant en raison des marriages mixtes, qui faisaient croître
le nombre des nouveaux chrétiens, que par l’immigration des Portugais qui s’intensifia pendant le siècle de la ruée
vers l’or, surtout dans la région de Minas Gerais et de Rio de Janeiro”. NOVINSKY, A. Nouveaux chrétiens et Juifs
séfarades au Brésil. In: MECHOULAN, H. (Dir.) Les Juifs d’Espagne: histoire d’une diaspora, 1492-1992. Paris:
Liana Levi, 1992. p. 653-672. p. 655.
43 A política inquisitorial neste período assolou o Norte de Portugal quase despovoando-o, como atestam alguns
autores contemporâneos, levando a população a se asilar nas conquistas ultramarinas, sobretudo na América.
Como já assinalamos, a este respeito, a posição de D. Luiz da Cunha embaixador português do século XVIII.
44 NOVINSKY, Anita. Inquisição: prisioneiros do Brasil, séculos XVI-XIX. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura,
2002. p. 31.
45 Ibidem, p. 28.
46 O total de prisioneiros é de 778 homens e 298 mulheres. Somamos o total de naturais do Brasil nas duas tabelas
apresentadas por Novinsky, uma em referência aos homens e outra às mulheres. NOVINSKY, Anita. Inquisição:
prisioneiros do Brasil, séculos XVI-XIX. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 2002. p. 28-30. Em pesquisa mais
recente, Novinsky localizou 1819 “[...] nomes de cristãos-novos residentes no Brasil no século XVIII, dos quais
721 eram mulheres e 1098 homens”. NOVINSKY, Anita. Gabinete de investigação: uma “caça aos judeus” sem
precedentes. São Paulo: Humanitas; Fapesp, 2007. p. 13.
47 CARVALHO, Flávio Mendes. Raízes judaicas do Brasil: o arquivo secreto da Inquisição. São Paulo: Nova Arcádia,
1992; VARNHAGEN, F. A Excertos de várias listas de condenados pela Inquisição de Lisboa, desde o ano de 1711
ao de 1767 compreendendo só brasileiros ou colonos estabelecidos no Brasil. RIHGB, tomo VII, p. 54-86, 1931.
WOLFF, Egon; WOLF, Frieda. Dicionário Biográfico I: judaizantes e judeus no Brasil: 1500-1808. Rio de Janeiro:
IHGB, 1986; GUERRA, Luís de Bívar (Org.). Inventário dos Processos da Inquisição de Coimbra (1541-1820).
Paris: Fundação Calouste Gulbenkian; Centro Cultural Português, 1972. 2 s. [Fontes Documentais Portuguesas
IV. Leitura e Introd. Luís de Bívar Guerra]; NOVINSKY, Anita. Inquisição I: inventários de bens confiscados a
cristãos-novos: fontes para a história de Portugal e do Brasil. Lisboa: Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 1978;
NOVINSKY. Inquisição: rol dos culpados. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1992 Fontes para a História do
Brasil. Séc. XVIII; NOVINSKY, A. Inquisição: prisioneiros do Brasil... op. cit.; NOVINSKY, A. W. Gabinete... op.
cit.

28
fica fornecida por esses manuscritos. Não se trata, porém, de um levantamento definitivo, pois
não recobre toda a população cristã-nova da Capitania da Bahia e seu Arcebispado,48 sequer da
cidade de Salvador neste quartel setecentista, deixando de fora todos aqueles não registrados
pela Inquisição portuguesa.
Os cristãos-novos arrolados nessas fontes compõem uma população de 264 pessoas,
compreendendo 174 homens e 90 mulheres moradores na Capitania da Bahia e seu Arcebis-
pado. Se for levado em conta aqueles que fixaram residência em outras capitanias e foram
declarados “assistentes” nesta – da mesma forma que havia moradores da Bahia que permane-
ciam por um determinado período em outros lugares –, o grupo identificado aumenta em 16
indivíduos, passando o total para 280 pessoas, equivalendo então a 188 homens, 92 mulheres.
Como o interesse deste estudo é conhecer a população efetivamente estabelecida na capital da
colônia, ou que se apresentava como tal, e não aquela que pode ser caracterizada como tempo-
rária, considera-se o primeiro computo exposto.49
Tendo-se em vista a cidade de Salvador e seu termo contarem com uma população de 8
mil brancos nas primeiras décadas do século XVIII, conforme a estimativa de Tales de Azevedo
apresentada, o grupo que foi apurado nessas fontes inquisitoriais representaria uma proporção
de 3,3%, muito longe dos 20% que Anita Novinsky encontrou para o século anterior.50 Por quê?
Razões para esta discrepância quantitativa encontram-se no anonimato de cristãos-no-
vos não (mais) envolvidos com a Inquisição e a mobilidade provocada por motivos diversos,
sobretudo, práticas comerciais, e que se completam com a tendência ao enredamento de todos
os presos e denunciados em cada um dos diferentes processos inquisitoriais.
A população que ficou anônima aos registros inquisitoriais certamente era bem superior
numericamente do que a apresentada aqui. Aqueles que conseguiram esconder sua origem ju-
daica valendo-se de casamentos com cristãos-velhos, ou outros meios, passaram despercebidos
pelo Santo Ofício. Anita Novinsky também observou em um estudo sobre os cristãos-novos
da Bahia seiscentista: “[...] os cristãos-novos de condição humilde, empregados, artesãos, que
chegaram a mesclar-se freqüentemente com a população negra ou índia e os que lograram
alcançar altas posições, ansiosos por apagar sua origem, casavam com cristãos-velhos. [...]”.51
Os Antunes, influente família cristã-nova do século XVI e que foi a mais perseguida du-
rante a visitação inquisitorial de 1591, conseguiram, em suas futuras gerações, despistar-se do
Santo Ofício. O patriarca, Heitor Antunes, rico senhor de engenho que viera para a Bahia em
companhia de seu amigo particular, Mém de Sá, governador-geral do Brasil, teve sua esposa e
filhas penitenciadas no Tribunal de Lisboa, a primeira sentenciada à morte, em decorrência da
visitação de 1591. O título de Cavaleiro da Casa Real que trouxera de Portugal não evitou que
sua esposa e filhas fossem submetidas à perseguição e julgamento inquisitoriais.52
48 O Arcebispado da Bahia compreendia, além da própria capitania, termos que mais tarde circunscreveram-se ao
território da Capitania de Minas Gerais.
49 A lista nominal dos cristãos-novos levantados por esta pesquisa encontra-se no Apêndice. Distinguiu-se os
efetivamente presos daqueles que foram apenas denunciados e/ou mencionados nos processos consultados.
50 NOVINSKY, Anita. Nouveaux chrétiens et Juifs sefarades au Brésil..., p. 655.
51 NOVINSKY, Anita. Cristãos novos na Bahia. São Paulo: Perspectiva, 1972. p. 60.
52 A história desta família foi tema da tese de doutoramento de Ângelo Adriano Faria de Assis, publicada sob o
título Macabeias da colônia. Criptojudaísmo feminino na Bahia. São Paulo: Alameda, 2012.

29
Uma vez fora dos cárceres, os filhos de Heitor Antunes, Leonor, Brites e Jorge, uniram-se
a fidalgas famílias cristãs-velhas e seus descendentes não portaram mais o sobrenome Antu-
nes e sim a ascendência dos Moniz Barreto, dos Faria e dos Ferreira Betencourt, gente que se
destacou na produção açucareira, nos altos postos militares e na governança da Colônia nos
séculos XVI e XVII.53
Um dos seus netos, Diogo Muniz Teles, filho de Leonor e Henrique Muniz, desposou
Catarina Vitória, filha do cristão-novo “mercador de canas” Manuel Gomes Vitória.54 E, seu
filho, bisneto de Heitor Antunes, Antonio Muniz Barreto, com título de fidalgo da Casa Real,
desposou uma filha de Gonçalo Homem de Almeida, cristão-novo de projeção na administra-
ção da Colônia, sendo Ouvidor no Rio de Janeiro e advogado e síndico na Câmara da Bahia.55
Outra filha de Leonor, Inês de Menezes, casou-se com o capitão e Familiar do Santo Ofício
Antonio Coelho Pinheiro.56
Articulações como estas acabavam ocultando sobrenomes de cristãos-novos implica-
dos com a Inquisição e omitindo a sua presença na sociedade. Sem dúvida, a proteção contra
prisão e confiscos estava, até certo ponto, garantida. Se os cristãos-novos burlavam leis que os
impediam de casar com cristãos-velhos e os desposavam para despistar a Inquisição, para esta,
seus descendentes continuariam a preencher as listas de suspeitos, pois lhe era considerada a
origem judaica.
Na Bahia, no entanto, essa premissa inquisitorial não encontrou ressonância, pois, den-
tre a população cristã-nova arrolada para o século XVIII, descendentes de famílias proeminen-
tes desde épocas anteriores não figuram nos róis de denunciados, senão, alguns poucos foram

53 Leonor casou-se com Henriques Muniz, filho de Egas Muniz Barreto, um dos primeiros povoadores da Bahia, de
família servil à Casa Real; Brites casou-se com Sebastião de Faria, que como seu sogro, era Cavaleiro da Casa Real
e amigo particular do governador Mém de Sá. Sebastião fundou o engenho Freguesia que no século XX tornou-se
o Museu Wanderlei Pinho. (Fr. Jaboatão, em seu estudo genealógico sobre as principais famílias baianas, engana-
se ao afirmar à página 277 ser Leonor filha de Sebastião de Faria e Custódia de Faria, esta, na verdade, sua irmã,
conforme está à página 205. Segundo as genealogias elaboradas pelo próprio Frei e confirmada à página 766,
esta Leonor é filha de Heitor Antunes). Jorge Antunes desposou Joana de Souza Bettencourt, filha do fidalgo e
Comendador da Ordem de Cristo, Francisco Álvares Ferreira de Bettencourt. CALMON, Pedro. Introdução e
notas ao Catálogo Genealógico das Principais Famílias, de Frei Jaboatão. Salvador: EGBA, 1985. v. 1, p. 205, 269,
277; v. 2, 764, 766.
54 Ibidem, p. 285. NOVINSKY, Anita. Cristãos-novos na Bahia: 1624-1654. São Paulo: Perspectiva, 1972. p. 173.
Manuel Gomes Vitória será denunciado à Inquisição em 1711 pelo capitão-mor de Parati, Miguel Telles da Costa.
55 Sobre Antonio Muniz Barreto, ibidem, p. 278. E sobre Gonçalo Homem de Almeida, NOVINSKY, op. cit., p. 71-72.
Também, CALMON, op. cit., v 1, p. 286-287. Gonçalo foi denunciado na Inquirição de 1646. NOVINSKY, op. cit.,
p. 139. E era casado com a cristã-velha, Maria de Sá. CALMON, op. cit., p. 281.
56 Ibidem.

30
lembrados pelo capitão-mor de Parati, o também cristão-novo Miguel Telles da Costa, quando
das suas confissões57. No entanto, nenhum deles foi processado pelo Santo Ofício.58
A mobilidade também insinua uma reduzida estimativa demográfica, posto que a popu-
lação branca em geral transitava frequentemente, e por longos períodos, por todo o território
colonial graças a intensidade e o pluralismo de suas atividades econômicas.59 João de Morais
Montesinhos, cristão-novo natural da Bahia em constante negociações com as Minas Gerais,
ao declarar o também comerciante de Salvador, Miguel da Cruz, como um de seus supostos
cúmplices em práticas judaicas, disse que ele “é morador na Bahia donde vai as Minas em que
assiste muito tempo e ouviu viera para este Reino”.60 A amostragem populacional para os habi-
tantes da Bahia setecentista deve compreender esses deslocamentos.
Difícil asseverar que todos viveram permanentemente na “cidade da Bahia” e adjacên-
cias, principalmente no que concerne à população masculina. Nas confissões ao Santo Ofício
encontram-se vários denunciados que não viviam na mesma região que seus delatores, antes os
conheceram e conviveram durante viagens pela colônia. O que implica, muitas vezes, em diver-
gências de informações a respeito do local de residência de uns e outros, já que a ausência na
Capitania era contada em meses e mesmo alguns cristãos-novos chegaram a ter suas próprias
casas nas Vilas e povoados aonde comumente iam.
Sobre as mulheres, outras dinâmicas também as levavam para fora da Bahia. O desam-
paro subsequente à prisão no Santo Ofício dos pais, maridos ou daqueles que lhe proviam o
sustento, a pobreza causada pelo confisco de bens ou mesmo, eventualmente, fugas e faleci-
mentos, sempre as induziam a buscar apoio em casa de parentes moradores em outras regiões
ou outros Reinos. Circunstâncias como essas aconteceram com algumas cristãs-novas cujas
histórias foram tiradas do anonimato.
Catherina da Paz, cristã-nova portuguesa que também vivera no Recôncavo baiano com
o seu marido, Antonio de Miranda, depois de sentenciada e já viúva, não voltou mais à Bahia.
De Lisboa, cidade que teve como cárcere, retornou para sua terra natal, a Vila de Almeida.
Luiza Maria Rosa, logo que se casou com o comerciante João Gomes de Carvalho, retornou

57 Miguel Telles da Costa denunciou 35 cristãos-novos moradores na Bahia, sendo 17 membros de cinco famílias
da elite baiana dos seiscentos: os Gomes Vitória, Betencourt, Homem de Almeida, Muniz Teles (ramo dos
Muniz Barreto), e Álvares de Vasconcelos. Sobre a trajetória deste capitão-mor, consultar BROMBERG, Rachel.
Inquisição no Brasil: um capitão-mor judaizante. São Paulo: FFLCH/USP; Centro de Estudos Judaicos, 1984.
Este livro foi republicado como MIZRAHI, Rachel. Miguel Telles da Costa: capitão-mor judaizante de Paraty. São
Paulo: Maayanot, 2015.
58 NOVINSKY, A. Inquisição: rol dos culpados: fontes para a História do Brasil: séc. XVIII. Rio de Janeiro: Expressão
e Cultura, 1992. Passim.
59 No entanto, para os cristãos-novos setecentistas estudados não parece ter sido a fuga um dos fatores de
deslocamentos, uma vez que, ao sentirem-se ameaçados, procuravam logo apresentarem-se ao Santo Ofício, ainda
que não o fizessem efetivamente, há depoimentos onde esta intenção ou aconselhamento é confirmado.
60 ANTT/TSO-IL Processo nº 11769. O próprio Montesinhos é equivocadamente referido como morador nas
Minas Gerais. Cf. FERNANDES, Neusa. A Inquisição em Minas Gerais no século XVIII. 2. ed. Rio de Janeiro:
UERJ, 2004. Corrobora com a leitura documental a citação de Antonio Marques de Almeida, em seu Dicionário
Histórico dos Sefarditas Portugueses [Lisboa: Campo da Comunicação, 2009], à p. 180: “Quando foi preso pela
Inquisição, João de Moraes [Montezinhos] residia na Rua do Areal na freguesia de S. Pedro, na Bahia. Porém, os
seus negócios também se estendiam ao Rio de Janeiro e Minas Gerais”.

31
a Portugal, por volta de 1720, atendendo a necessidade do esposo em dar continuidade aos
negócios muito mais vinculados ao mercado europeu. Maria Bernar (ou Bernal) de Miranda,
órfã e solteira com quase quarenta anos de idade em 1729, deixou a casa de sua irmã Ana Ber-
nal, cunhada de Luiza Ma. Rosa, e foi viver no Rio de Janeiro com o seu irmão Manuel Nunes
Bernal, capitão de navio.61
Abre-se aqui um parêntesis. Os deslocamentos facultados por interesse comercial dos
homens, tal como aconteceu aos respectivos cônjuges de Luiza Maria Rosa e Ana de Miranda,
João Gomes de Carvalho e Joseph Fernandes Camacho, deixa transparecer uma conveniência
maior em continuar os negócios na metrópole, a fim de, talvez, criar possibilidades de uma
conexão comercial entre a Europa e seus parceiros na Bahia.
Ao procurar-se uma amostragem demográfica para os cristãos-novos da Bahia setecen-
tista foi levada em conta a reclusão dos penitenciados em Lisboa. Embora continuassem con-
firmando residência na Bahia, viviam confinados em Lisboa por condenação inquisitorial que
os obrigava a não deixar a cidade sem consentimento prévio da Mesa do Santo Ofício.62 Nunca
mais poderiam, oficialmente, partir para a Colônia e outros Reinos, mesmo o vizinho espanhol
cuja Inquisição mantinha estreitos laços com a portuguesa favorecendo o aprisionamento de
fugitivos para ambas as partes, sobretudo nas regiões de fronteira. Conforme Pilar Huerga
Criado, “Los tribunales situados a ambos lados de ella estaban condenados a enternderse y a
colaborar si pretendían realizar sus funciones con alguna eficacia”.63
Mesmo com este movimento populacional deve-se salientar que a estimativa encontra-
da, apontando para 264 cristãos-novos, é expressiva, uma vez que foram considerados para
esse trabalho apenas os presos na Bahia e os que tiveram denúncias confirmando suas residên-
cias nessa Capitania e Arcebispado. Muitos outros, e as próprias confissões dão prova disso,
iam e vinham periodicamente, tanto podiam ser considerados moradores na Bahia, nas Minas
Gerais, no Rio de Janeiro, ou em qualquer outra parte onde assiduamente assistiam, como
aconteceu a João de Morais Montesinhos. A dinâmica empresarial destes cristãos-novos foi
assaz ativa para marcar sua presença em território “baiano” e colonial.

Naturalidade
Ponto que merece ser ressaltado neste levantamento populacional é a naturalidade dos
cristãos-novos arrolados, já que é evidente tratar-se majoritariamente de indivíduos nascidos
em Portugal e, neste sentido, sua vinculação à sociedade baiana deve perceber o enraizar-se
na Colônia, constituindo família e dando conta de engrenagens sociais e econômicas já aí es-
tabelecidas. Porquanto, o cotidiano colonial em muito diferenciava o da metrópole, ainda que
houvesse aspectos similares entre ambos.

61 ANTT/TSO-IL Processos números 2424, 1820 e 11329.


62 A sentença “cárcere e hábito penitencial perpétuo” – pena aplicada à maioria dos cristãos-novos – significava
em ter por cárcere perpétuo a cidade de Lisboa. Nem sempre eram autorizados os pedidos de licenças para irem
a outros lugares ou retornarem à Bahia. LIPINER, Elias. Santa Inquisição: terror e linguagem. Rio de Janeiro:
Documentário, 1977. p. 33.
63 CRIADO, Pilar Huerga. En la raya de Portugal: solidariedad y tensiones en la comunidad judeoconversa.
Salamanca: Ed. Univ. Salamanca, 1993. p. 225.

32
No cômputo dos 264 cristãos-novos, homens e mulheres, que esta pesquisa apurou como
moradores na Bahia durante a primeira metade do século XVIII, seja em caráter temporário
ou permanente, 127 (ou 48,1%) eram portugueses. Destes, 121 indivíduos, ou 45,83% do total,
eram de Vilas ou freguesias ao Norte e a Oeste de Portugal, sobretudo aquelas fronteiriças à Es-
panha, situadas nas regiões de Beira Alta, Beira Baixa e Trás-os-Montes, tais como Mogadouro,
Guarda, Celorico, Escalhão, Covilhã, Castelo Branco, Castelo Rodrigo, Vila de Almeida, Vila
Nova de Foz Côa, Pinhel, citando as mais comuns.64
Em proporção bastante inferior estavam os provenientes de Lisboa (quatro pessoas ou
3,14% do total de 127 portugueses) e uma pessoa do Porto, todos homens. Uma parcela relati-
vamente grande de portugueses (35 pessoas ou 27,55%) não teve sua Vila de origem identifica-
da, sendo registrado apenas como oriundo “do Reino”, e apenas foi encontrado um coimbrense
vivendo na Bahia neste período, ainda que três dos 60 prisioneiros moradores na Bahia tenham
sido processados pelo Tribunal de Coimbra. Possivelmente, foram capturados quando, de volta
a Portugal, se encontravam em Vilas e povoados sob esta jurisdição inquisitorial.
Ano a ano estes cristãos-novos desembarcavam no porto de Salvador. Foi possível detec-
tar, com mais exatidão, o ano de entrada de penitenciados cujos processos inquisitoriais trazem
sessões de coartadas (quando o réu tentava provar não estar presente no período e local em que
lhe deram as culpas). Sabe-se, com certeza, que Manuel Mendes Monforte chegou a Salvador
no dia 26 de abril de 1698; Diogo de Ávila Henriques, o Jangada, em princípios de novembro
de 1719; Antonio Cardoso Porto em 27 de maio de 1715 no mesmo navio em que Gaspar Fer-
nandes Pereira retornava para Cachoeira, onde morava. Os 37 membros da família Nunes de
Miranda que se transferiram para a Bahia chegaram por volta de 1700, 34 deles permaneceram
entre a capital da Colônia e o Recôncavo e três mudaram-se logo e definitivamente para o Rio
de Janeiro.65
Com base nas coartadas foi possível conhecer aproximadamente o ano de chegada de
alguns denunciados ao comparar-se o tempo e o lugar que seus vários delatores disseram
ocorreram as práticas heréticas realizadas conjuntamente. Reportando-se o confitente há, por
exemplo, cinco anos antes de sua prisão efetuada em 1726, fica-se sabendo que determinado
indivíduo já morava na Bahia em 1721 ou bem antes disso.66 O ano de 1721 ficou sendo então
uma referência para sua presença na Bahia.
Neste sentido, como 63,3% das 60 prisões de moradores na Bahia foram efetivamente
cumpridas entre as décadas de 1721 e 1734, os cristãos-novos denunciados a esta época já resi-

64 Como mencionado anteriormente, D. Luiz da Cunha, em seu Testamento Político, ressalta o despovoamento
dessas regiões e a sua pobreza, colocando como uma das razões as prisões executadas pelo Santo Ofício. CUNHA,
D. Luiz, op. cit., p. 63-64. Russel-Wood relativiza esse argumento, justificando o êxodo deste período também por
conta da fraqueza da indústria lanifícia e sequelas econômicas decorridas da Guerra de Sucessão da Espanha.
RUSSEL-WOOD. A emigração..., op. cit., p. 163.
65 Encontravam-se no Rio de Janeiro já entre 1706-1710, dois filhos e um sobrinho homônimo do médico Francisco
Nunes de Miranda, preso em 1700 poucos meses após desembarcar no porto de Salvador. Outros membros da
família bem mais tarde, como David de Miranda e seu primo Pedro Nunes de Miranda, após primeira condenação
no Santo Ofício, em 1716.
66 Como a maioria das prisões ocorreram entre os anos 1720-1732, tem-se em vista que os denunciados como
moradores da Bahia, já viviam aí antes disso.

33
diam na Capitania há alguns anos. Com isso pode-se concluir que a maior parte dos cristãos-
-novos arrolados chegou na Bahia nos primeiros vinte anos do século XVIII.
Registra-se a entrada de 38 pessoas em 1700. Exceto Diogo Nunes Henriques, os demais
eram a família Nunes de Miranda, já mencionada anteriormente; entre 1701 e 1709 outras 14
estavam na Bahia e, na década seguinte identifica-se mais 12 pessoas; 18 cristãos-novos mo-
ravam na Capitania bem antes de serem denunciados entre os anos de 1721 e 1733. Por estes
dados salienta-se que entre 1730 e 1739, quando já se sentiam os anos críticos da perseguição
inquisitorial no Brasil, foram apenas identificadas a chegada de seis cristãos-novos. Em 1739
foi a vez de Álvaro Ferreira da Silva e, em 1741, de seu irmão, Ventura Ferreira da Silva, último
cristão-novo português identificado na documentação consultada, a aportar na Bahia. Pode ter
havido outros ainda não localizados.
É mister ressaltar mais uma vez que estes dados dizem respeito exclusivamente aos
cristãos-novos que se pôde conjecturar, com pequena margem de erro, o momento de sua
transferência para a Colônia. Trata-se, portanto, apenas de uma amostragem sem pretender
conclusões que encerrem os primeiros decênios setecentista como os de maior chegada de
cristãos-novos na capital da Colônia.
Nesse movimento migratório, os homens representavam 77,16% dos 127 portugueses
que vieram para a Bahia, enquanto as mulheres apenas 22,83% dessa população. Isso se traduz,
em números absolutos, a 98 homens e 29 mulheres naturais do Reino. Não havia uma faixa
etária característica a estes cristãos-novos recém-chegados. Eram jovens e adultos. Diogo de
Ávila Henriques foi o mais moço, que se conhece, a chegar na Bahia no auge dos seus quinze ou
dezesseis anos de idade. Veio sozinho em posse de uma procuração para cobrar uma herança e
de uma carta de recomendação destinada a um Desembargador da Relação da Bahia.67 Antonio
Cardoso Porto foi o mais velho, com 49 anos de idade; já houve oportunidade de comentar os
primeiros anos de ambos na Colônia.
Menores de quinze anos, a princípio, parecem ter vindo com seus pais, como Jerônimo
Rodrigues que chegou ainda bem pequeno ou Manuel Nunes da Paz, aos doze anos. Tal não foi
o caso dos primos em grau remoto, próximos em idade, Antonio e Gaspar Fernandes Pereira
que por volta dos dez anos de idade cada um deles, deixaram a casa de um tio em Lisboa para
viverem no Recôncavo baiano, o primeiro em casa da avó Clara Lopes e o outro com a filha
desta, Luiza Maria Pereira.68
Cristãs-novas portuguesas fixaram residência na Bahia acompanhando seus pais ou es-
posos. Formaram um pequeno grupo de 29 mulheres, quase todas oriundas de seis famílias: os
Nunes de Miranda, os Álvares Cardoso, as filhas e parentes de Joseph Cardoso (sua esposa era
uma Nunes de Miranda), Diogo Nunes Henriques, Simão Rodrigues Nunes, Antonio Rodri-
gues Campos. Clara Lopes parece ter sido uma exceção neste grupo, uma vez que é bem certo
ter vindo juntar-se a seus descendentes em Cachoeira quando viúva. Os processos inquisito-
riais em que é citada deixam transparecer uma condição de matriarca.
Este baixo índice de mulheres portuguesas na Colônia foi tratado por Thales de Azevedo
que ressaltou a proibição da Coroa, em 1732, do retorno de mulheres à Portugal “a não ser com

67 O Desembargador Xavier Lopes Vilela, cristão-velho, manteve amizade com Ávila Henriques até este ser preso.
ANTT/TSO-IL Proc. n° 2121.
68 Eram meios-irmãos paternos de Antonio da Fonseca. Luiza Pereira era esposa de Francisco Fernandes Camacho.

34
os maridos quando estivessem estes devidamente autorizados a regressar ao reino”.69 E, acres-
centa, “de outra maneira o desequilíbrio entre o número de mulheres e homens só tenderia a
agravar os problemas de moralidade e povoamento da Colônia”.70 Aliás, contribuiu para esta
discrepância o fato da grande quantidade de homens solteiros virem para o Brasil em busca de
ouro e daqueles que deixavam a cidade para embrenhar-se pelos sertões.71
É notório que a maior proporção de portugueses diz respeito a homens solteiros, reve-
lando um índice de 50,9% dentre os 98 apurados, dos quais 20,4% casaram-se na Bahia com
mulheres daí naturais ou suas conterrâneas.72 E 30,5% continuaram solteiros até, ao menos, o
tempo de suas prisões e delações. Contrapõem-se a este índice uma proporção de 10,20% que
entrou na Bahia já casada e de 13,9% da qual não foi possível identificar o local de celebração
dos casamentos.
Os cristãos-novos casados sempre vinham acompanhados por suas esposas. Ao se com-
parar o índice de cristãos-novos que se casaram em Portugal (uma média de dez casais ou
10,20% dentre os 98 homens portugueses) com aqueles em que não foi possível identificar o
local de residência de suas mulheres (14 casais ou 14,28% desse mesmo cômputo) encontra-se
apenas dois indivíduos cujas esposas viviam em Portugal: Gaspar Fernandes Pereira que viveu
no Recôncavo desde sua adolescência e teve seu casamento arranjado com uma moça de Por-
tugal, Josefa Teresa Rosa, e um Manuel Soares de Carvalho, veio desacompanhado.73
As mulheres que vieram solteiras, de poucas pode-se constatar posterior casamento, e
quando realizado, os cônjuges eram cristãos-novos portugueses. Ana Bernal de Miranda foi
desposada pelo lisbonense Joseph da Costa; uma prima de Ana Bernal, Ana de Miranda, que
também cresceu na Colônia, teve como marido Joseph Fernandes Camacho, natural da Vila
Nova de Foz Côa, como seus irmãos Francisco e Diogo Fernandes Camacho que desposaram,
respectivamente, Luísa Maria Pereira, filha da citada Clara Lopes, e Branca Cardoso (ou Lo-
pes), filha do advogado Domingos Álvares Cardoso. Nesse grupo analisado, os casamentos
sempre foram realizados entre cristãos-novos, apesar da sociabilidade estar presente na convi-
vência com cristãos-velhos, como se verá adiante.
Naturais da Bahia contam-se 93 cristãos-novos, sendo 47 homens e 46 mulheres, perten-
centes a diferentes famílias, sejam daquelas aí presentes há algumas gerações ou filhos de pais
que saíram de Portugal no século XVIII; 25 deles ainda eram crianças quando foram citados
nas genealogias de seus parentes ou mesmo foram denunciadas à Inquisição.74

69 VARNHAGEN apud AZEVEDO, Thales de, op. cit., p. 186.


70 Ibidem.
71 Ibidem. NASCIMENTO, Anna Amélia V. Dez freguesias da cidade de Salvador: aspectos sociais e urbanos do
século XIX. Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia; Empresa Gráfica da Bahia, 1986. p. 63-64.
72 Em 19 casamentos firmados na Bahia, oito foram com cristãs-novas baianas e seis com portuguesas.
73 Manuel era comerciante de mercearia. Viúvo em Angola, casou-se em Portugal. Fugia da Bahia acusado de um
furto e, por isso, em Portugal mudou seu nome para Antonio da Fonseca de Magalhães. ANTT/TSO-IL Proc. n°
11769.
74 Treze meninas e 12 meninos, filhos de Félix Nunes de Miranda, Francisco Rodrigues Dias, Gaspar Henriques,
Francisco Fernandes Camacho, Antonio Cardoso Porto, e Manuel Mendes Monforte (sobrinho), o sobrinho,
Jerônimo Rodrigues, que foram citadas nas genealogias de seus pais e irmãos.

35
De antigas famílias da elite açucareira, influentes na política e administração da Colônia
no século XVII encontram-se 17 cristãos-novos com sobrenomes Gomes Vitória, Betencourt,
Homem de Almeida, Muniz Teles, Álvares de Vasconcelos, Cavalo de Carvalho, quase todos
com laços de parentesco entre si, compondo uma geração que se reconhece pela manutenção
dos nomes de seus ancestrais, como Diogo Muniz Teles, Manuel e Antonio Gomes Vitória,
Marcos de Betencourt, André Cavalo, sobre os quais trata-se a seguir.
Diogo Muniz Teles e seu irmão Sotério Teles de Menezes são a quinta geração dos se-
nhores de engenho quinhentistas Heitor Antunes, cristão-novo, e Egas Muniz Barreto, cris-
tão-velho.75 Diogo teve vários homônimos séculos afora, um dos quais foi seu avô materno,76
filho de Leonor Antunes e genro de Manuel Gomes Vitória (I) – lavrador de cana no início
dos seiscentos. Este Gomes Vitória foi avô paterno dos irmãos Antonio e outro Manuel Go-
mes Vitória (II). Antonio, por sua vez era homônimo de um tio paterno. Com esta repetição
de nomes é possível ver a continuidade de famílias cristãs-novas que se mesclaram com
cristãs-velhas.
Os Gomes Vitória entrelaçaram-se também com os Homem de Almeida, casando-se
uma neta de Manuel Gomes Vitória (I), Branca Teles, com Amaro Homem de Almeida, filho
do já citado Gonçalo Homem de Almeida, cuja esposa Maria de Sá era cristã-velha. Deste
matrimônio nasceu um outro Diogo Muniz Teles, que veio a desposar Tereza de Ulhôa, filha
Antonio Gomes Vitória – já citado – e sua esposa Mariana de Mesquita ou Ulhôa.77
André Cavalo, senhor de engenho no século XVIII, provavelmente é o terceiro e últi-
mo homônimo de sua família, neto materno do capitão André Cavalo de Carvalho, que foi
Juiz da Câmara de Salvador por alguns anos.78 Sua mãe era irmã de Marcos de Betencourt.79
Marcos de Betencourt, por sua vez, teve como homônimo o seu neto, também senhor de
engenho que aparece denunciado nos processos inquisitoriais do século XVIII, filho de Mar-
garida Teles e do militar cristão-velho, Coronel Luís Melo de Vasconcelos.80 Marcos de Be-
tencourt, o neto, não foi preso.

75 CALMON, op. cit., v. 1, p. 269, 278, e v. 2, p. 642.


76 Diogo Muniz Teles, o avô, foi denunciado à visitação de 1618. Era fidalgo da Casa Real e serviu como capitão na
defesa contra os holandeses, oferecendo seu engenho para fortificar o exército da Bahia. CALMON, op. cit., v. 1,
p. 278, 286, 288, 315. v. 2, p. 642. Sobre Manuel Gomes Vitória, v. 2, p. 290-291.
77 CALMON, op. cit., v. 1, p. 291.
78 Sobre André Cavalo, o neto: CALMON, op. cit., p. 455, 458; Sobre o avô, consta como Juiz Ordinário da Câmara
de Salvador nos anos 1626, 1636, 1645, 1651 e 1659. RUY, Affonso. História da Câmara Municipal da cidade do
Salvador. Salvador: CMS. 1996. p. 337-342. E CALMON, op. cit., p. 457. O assento da família, na Bahia, data ao
menos de 1608 ou antes, segundo investigação genealógica de Fr. Jaboatão. CALMON, op. cit., v.1, p. 390, 397.
79 Marcos de Betencourt, o avô, foi sargento-mor atuante na defesa dos engenhos da Bahia ameaçados pelos
holandeses; em Matoim, durante essas lutas, foi responsável pela proteção dos barcos portugueses que aí se
refugiavam. Foi indicado para vereador da Câmara de Salvador, em 1673, mas não aceitou o cargo. CALMON,
op. cit., p. 230 e 455
80 Este Luís Melo de Vasconcelos era filho de outro Luís Melo de Vasconcelos, que foi Capitão da Ordenança em
Salvador. CALMON, op. cit., p. 345-346.

36
Toda essa geração foi denunciada ao Santo Ofício no início do século XVIII pelo capi-
tão-mor de Parati, Miguel Telles da Costa,81 e não participava da rede social dos cristãos-novos
da Bahia, seus naturais ou portugueses que, presos, denunciaram a quase totalidade da popu-
lação arrolada por esta pesquisa.
O capitão-mor ainda delatou outros 18 cristãos-novos, dentre os quais Manuel Mendes
Monforte, tio e sobrinho, senhores de engenho gozando do mesmo status socioeconômico das
principais famílias baianas aqui mencionadas. Monforte, o sobrinho, preso pelo Santo Ofício
em 1721, ao contrário de Miguel Telles da Costa, não denunciou tais cristãos-novos membros
de antigas famílias da Bahia com os quais, possivelmente, relacionava-se socialmente.
A lista de cristãos-novos “baianos” é composta sobremaneira por filhos de portugueses
estabelecidos na Bahia no início do século XVIII. Subtraindo-se aqueles oriundos de antigas
famílias baianas não mencionadas nos processos inquisitoriais consultados, denunciadas por
Miguel Teles da Costa, contam-se 22 homens e 17 mulheres formando a primeira geração bra-
sileira de dez cristãos-novos, quase todos comerciantes.
Eram descendentes diretos de Félix Nunes de Miranda, Luís Henriques, Francisco Fer-
nandes Camacho, Jerônimo Rodrigues, Antonio Cardoso Porto, Luís Mendes de Morais, Fran-
cisco Rodrigues Dias, Gaspar Henriques; do também advogado, Domingos Álvares Cardoso, e
do senhor de engenho Manuel Mendes Monforte (o sobrinho). Compõe também esta geração
baiana do início dos setecentos, os filhos de cristãos-novos que já estavam na Capitania desde o
século passado, como senhor de engenho Manuel de Vargas e o comerciante Luís de Morais de
Montesinhos. Toda esta prole com idade de até trinta anos e, com apenas uma exceção, todos
ainda solteiros.82
Sem referência familiar conhecida encontravam-se outros naturais da Bahia. André de
Pina, filho de um Simão Rodrigues, lavrador de cana, que pelo sobrenome pode ser parente de
Isabel Luiza de Pina, esposa de Manuel Mendes Monforte, tio do médico homônimo.83 E as es-
posas de Antonio Gomes Vitória, Luís Henriques (homônimo daquele casado com a castelhana
Francisca Henriques), Antonio da Fonseca (da qual não se sabe se cristã-nova ou cristã-velha) e

81 BROMBERG, Rachel. Inquisição no Brasil: um capitão-mor judaizante. São Paulo: FFLCH/USP; Centro de
Estudos Judaicos, 1984, p. 109-112.
82 Filhos do comerciante Félix Nunes de Miranda aparecem como o mais velho da geração – Manuel Nunes de
Almeida, seu primogênito – e com o único casamento identificado – Leonor de Miranda, que foi desposada pelo
cristão-novo Manuel Furtado Oróbio.
83 Fr. Jaboatão informa sobre alguns Pina na Bahia colonial, dentre eles Fr. Vicente do Salvador, sobrinho de um
chantre, Jorge de Pina (século XVI), mas não se pôde comprovar ser essa a ascendência dos cristãos-novos André
e Isabel Luiza de Pina. CALMON, op. cit., p. 758.

37
de Julião de Abreu, quem, aliás, não apareceu vinculado a nenhuma das famílias identificadas.84
Bem como Catherina Paredes, possivelmente vinculada à família Paredes, do Rio de Janeiro.85
Os naturais da Bahia, em geral, identificavam a cidade de Salvador como local de nas-
cimento. Os soteropolitanos totalizaram 43% dos 93 baianos apurados, contra 48% que nasce-
ram em outras partes da Capitania, sendo o Recôncavo a mais citada, com a Vila de Cachoeira
(9,6% dos nascimentos) e Cotegipe (0,6%).86
A população cristã-nova identificada constitui um pequeno universo quando se olha
para o fato de que foi o envolvimento com a Inquisição que fez esses homens e mulheres se
tornarem visíveis à História. Porquanto, haviam muito mais cristãos-novos – tanto portugue-
ses que chegaram no século XVIII como as gerações nascidas no Brasil, quarta e quinta dos
pioneiros da colonização – que entraram nesta centúria sem se envolverem com a Inquisição.
Os cristãos-novos mais antigos da Bahia, estudados por Novinsky,87 desapareceram do
grupo dos setecentos, formado por migrantes e seus descendentes sem relações de parentesco
ou sociais com cristãos-novos há gerações aí sediados. O que se nota é que esta população
arrolada constando de 264 cristãos-novos moradores na Bahia, seja portuguesa ou brasileira,
encerrava-se em si mesma nas confissões, na lista de presos e denunciados da Inquisição que
foi apurada por esta pesquisa.
Poucos cristãos-novos nascidos em outras partes da Colônia vieram a compor este grupo
identificado.88 Da Paraíba,89 o filho de uma família de cristãos-novos lavradores que foi quase
toda processada pelo Santo Ofício, José da Fonseca Caminha, foi viver como minerador em
Pedra dos Angicos, Arcebispado da Bahia.90 Da Capitania do Rio de Janeiro passaram para Sal-
vador a esposa de Luís Mendes de Morais, Maria Coutinho e seu irmão Amaro de Miranda Cou-

84 Julião de Abreu casou-se com uma cristã-nova da Bahia, Andreza da Fonseca, e foram morar no Rio de Janeiro.
85 A família Paredes, do Rio de Janeiro, foi estudada pela historiadora Lina Gorenstein Ferreira da Silva, porém não
consta o nome desta cristã-nova em nenhuma das genealogias que apresentou, deixando, portanto, a dúvida de
ser ela um membro da família fluminense. SILVA, Lina Gorenstein Ferreira da. “O sangue que lhes corre nas veias”:
mulheres cristãs-novas do Rio de Janeiro, século XVIII. 1999. Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1999; e no premiado Heréticos e
impuros: a Inquisição e os cristãos-novos no Rio de Janeiro, século XVIII. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de
Cultura, 1995. Em recente pesquisa na documentação inquisitorial disponível on-line no site do Arquivo Nacional
da Torre do Tombo, certificou-se tratar-se de Catarina Pereira, uma cristã-velha, bígama, natural e moradora na
Freguesia de São Bartolomeu, Recôncavo baiano. ANTT/TSO-IL Proc. nº 1009.
86 Cotegipe era uma área rural próxima a Salvador onde Manuel de Vargas tinha engenho e seus parentes foram os
que declararam serem daí naturais.
87 NOVINSKY, Cristãos-novos na Bahia. op. cit.
88 Nascidos em outras Capitanias e moradores na Bahia foram três homens e duas mulheres.
89 Os cristãos-novos da Paraíba foram pesquisados pelos historiadores Fernanda M. Lustosa e Bruno Feitler, em
seus respectivos trabalhos de pós-graduação: LUSTOSA, Fernanda Mayer. Raízes judaicas na Paraíba colonial:
séculos XVI a XVIII. 2000. 158 f. Dissertação (Mestrado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2000; FEITLER, Bruno. L’Inquisition et les nouveaux-
chrétiens dans la société brésilienne au XVIIIe siècle: la capitainerie de Paraíba. 1997. Dissertação (Mestrado) –
École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris, 1997.
90 Pedra dos Angicos passou a chamar-se São Francisco, hoje município do norte mineiro. FERREIRA, Jurandyr P.
(Org.). Enciclopédia dos municípios brasileiros: Minas Gerais: v. 27. Rio de Janeiro: IBGE, 1959.

38
tinho, e Mariana de Sá, casada com um Felipe Rodrigues, do qual não se conhece a história, bem
como a esposa de um cristão-novo natural das Minas Gerais, que aparece vivendo na Bahia.
Estrangeiros ao Reino de Portugal foram alguns cristãos-novos castelhanos que se in-
tegraram à convivência na Bahia.91 Salienta-se as mulheres que, casadas com portugueses,
acompanharam seus maridos na mudança para a Colônia, algumas já trazendo filhos. Estas
mulheres foram Isabel Bernar (ou Bernal), Francisca Henriques e Brites Henriques casadas
respectivamente com o médico Francisco Nunes de Miranda e com os comerciantes Luís Hen-
riques e Diogo Nunes Henriques.92 Além delas, Paula Manuela e Guiomar da Rosa, mãe e filha,
vieram da região de Andaluzia. Viúva, Paula foi desposada por um Joseph Rodrigues, também
castelhano que já vivia em Salvador, e Guiomar por Jerônimo Rodrigues, sobre quem já se falou
anteriormente.93
Castelhano, parente de Brites Henriques, foi o cristão-novo comerciante, Diogo Fernan-
des Cardoso, natural de uma Vila próxima a Medina del Campo, que, na Bahia, casou com a
cristã-nova portuguesa, Branca Lopes (ou Cardoso), moradora no Recôncavo, irmã do advo-
gado Gabriel Alvares Ferreira.94
Salvador foi também a porta de entrada para cristãos-novos que, alguns anos depois de
chegados à Colônia, foram estabelecer-se definitivamente na Capitania do Rio de Janeiro e na
região das Minas Gerais, ainda a ela vinculada. Na conjuntura econômica em que viveram era o
ouro que, talvez, os animava a ir em direção ao sudeste. Indivíduos que constaram do cômputo
populacional da Bahia por aí habitarem durante primeira década setecentista foram os comer-
ciantes Antonio do Vale de Mesquita, Francisco Nunes de Miranda, sobrinho do médico citado,
seu primo Francisco de Miranda Henriques, Antonio Sá de Almeida, Francisco Ferreira Isidro
(que em 1706 morava em Cachoeira, Recôncavo baiano), o advogado Ignácio Cardoso de Aze-
redo, dentre outros. Pessoas que em maior ou menor intensidade continuaram a manter contato
com amigos, parente e parceiros de negócios residentes na capital da colônia e seu entorno.
Esta distinção entre cristãos-novos naturais da Bahia e reinóis é uma ressalva proposital,
significativa no sentido da percepção do esforço que uns fizeram em comparação a outros para
ingressar na sociedade local, tentando encetar uma intercomunicação com os já aí estabeleci-
dos. Os “baianos” já dominavam as idiossincrasias da cultura e relações econômicas locais, os
de fora precisavam de seu apoio para darem conta do novo. O acolhimento e uma solidarieda-
de foram inevitáveis para a sobrevivência dos recém-chegados na Colônia.

Residências
Os cristãos-novos examinados neste trabalho estavam espalhados pelas diversas fregue-
sias de Salvador, demais áreas do Recôncavo e regiões mineradoras. Não havia uma freguesia
eminentemente habitada por cristãos-novos como as judiarias ou aljamas em Portugal me-

91 Encontrou-se sete castelhanos vivendo na Bahia, dois homens e cinco mulheres.


92 Apesar do sobrenome em comum, Henriques, não há notícia de laços de parentesco entre eles.
93 Na lista de denunciados ainda se encontra uma mulher natural de Castela chamada Rosa, da qual não houve mais
informações, que bem pode ser Guiomar da Rosa, citada.
94 Fernandes Cardoso teve um homônimo que preso pelo Santo Ofício, o qual enlouqueceu no cárcere.

39
dievo. Com alguma distinção de riqueza, embora sem sinal evidente de segregação étnico-
-religiosa, cristãos-novos e cristãos-velhos, perseguidos e Familiares do Santo Ofício, eram
comumente vizinhos de rua, de porta.95
A topografia da cidade de Salvador a divide em parte alta e parte baixa. Como observou o
antropólogo Roberto DaMatta, essa separação antes de revelar um aspecto meramente geográfico
insinua ou mesmo se traduz em uma valoração socioeconômica classificatória, onde os “de cima”
estão mais bem situados – social, econômica e até topograficamente – que os “de baixo”.96
Na parte alta, em 1757, já nitidamente distinta da parte baixa, fazendo-lhes fronteira a
freguesia de N. Sra. da Conceição da Praia, a “Praia”, como chamavam, funcionavam governan-
ça, instituições públicas, militares e religiosas e viviam as famílias mais abastadas tanto como
os menos enriquecidos.97
A parte baixa, habitada pela população menos favorecida, era área de intensa movimen-
tação mercantil, por onde entravam e saíam as mais diversas mercadorias também negociadas
nas lojas de varejo aí estabelecidas.98 Até meados do século XVIII, Salvador contava com seis
freguesias, três das quais eminentemente urbanas e próximas umas das outras, e algumas das
consideradas como subúrbio da cidade, foram residência dos cristãos-novos estudados.99
O que, a princípio, pareceu reger as escolhas dos locais de moradia pelos cristãos-novos
pesquisados foi o tipo de atividade econômica desempenhada, uma tendência da Colônia vi-
sível desde o século XVI e não exclusiva a este segmento da população. Conforme ressaltou
Anita Novinsky,
Durante os dois primeiros séculos da colonização portuguesa a maior parte dos
criptojudeus residiam nas áreas rurais de plantações de açúcar […] e cerca de 60%
dos engenhos de açúcar no Estado [sic] da Bahia pertenciam a judeus que eram
reconhecidos pelas autoridades locais como experts na produção de açúcar.100
[Traduzido livremente pela autora].

Se durante os séculos anteriores a população cristã-nova optava por viver em áreas ru-
rais, uma vez que nelas acontecia toda a vida econômica da Colônia com a produção açucareira
e outras atividades daí decorrentes, no século XVIII a preferência desloca-se para os centros
urbanos próximos aos portos, dado à intensificação do comércio ultramarino, ainda que mui-
95 Descrevendo a cidade de Salvador no início do século XIX, Anna Amélia Nascimento, diz que “Todas as freguesias
continham diversos tipos de pessoas, embora se pudesse observar nelas a predominância de certos caracteres de
uma ou mais categorias sociais”. No século XVIII este também era o perfil da cidade. NASCIMENTO, Anna
Amélia, op. cit., p. 70.
96 DAMATTA, Roberto. A casa e a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. Rio de Janeiro: Guanabara,
1987. p. 32, 33.
97 A “Praia” foi a primeira denominação da cidade baixa. PEIXOTO, Afrânio. Breviário da Bahia. 2. ed. [s.l.]: Liv.
Agir Ed., 1946. p. 28. NASCIMENTO, op. cit., p. 32.
98 Ibidem, p. 33.
99 Como N. Sra. da Piedade de Matoim, São Bartolomeu de Pirajá, por exemplo. Ibidem, p. 39.
100 “During the first two centuries of Portuguese colonization, the greater number of crypto-Jews resided in rural
areas on sugar plantations [...] And about 60% of the sugar mills in the state of Bahia were owned by Jews, who were
recognized by local authorities as experts in sugar production” FRANÇA, Eduardo apud NOVINSKY, Jewish Roots
of Brazil, 1987. p. 36, nota 6.

40
tos dos comerciantes estivessem ligados à agricultura e mineração. Mesmo divididos entre a
zona rural e a urbana, seguindo a necessidade das atividades empreendidas no momento, era a
cidade de Salvador o local escolhido para residirem.
A freguesia da Sé era a mais importante da cidade e uma das suas áreas mais nobres,
onde vivia a elite dos senhores de engenho.101 Nela, situavam-se as sedes do poder civil e reli-
gioso, Câmara Municipal, Santa Casa de Misericórdia, conventos, irmandades, o Colégio dos
Jesuítas, a Casa da Moeda. No quadrilátero do Terreiro de Jesus estava a igreja Catedral e, em
contínuo, o largo de São Francisco, com a igreja e a Ordem Terceira de São Francisco próxima
à dos dominicanos. Vizinhos a estas instituições, estabelecimentos comerciais e moradias de
desembargadores, juízes, senhores de engenho, bem como clérigos ou mesmo pessoas anôni-
mas à sociedade baiana compartilhavam as mesmas ruas e travessas.
A freguesia da Sé foi a preferida pelos senhores de engenho e ricos lavradores de cana
para manterem suas casas da cidade, pois poderiam conviver intensamente com seus confrades
e pessoas influentes e ainda efetuar a comercialização de seus produtos. Manuel Mendes Mon-
forte e Manuel Lopes Henriques, donos de engenho e comerciantes não só de açúcar, controla-
vam seus negócios sediados na cidade de Salvador.102
Ambos possuíam terras em Matoim, freguesia suburbana de Salvador, caminho para
o Recôncavo, e casas urbanas na freguesia da Sé. Monforte, “no canto do Terreiro de Jesus”,
onde provavelmente atendia seus clientes como “médico público da cidade” que era.103 E, Lopes
Henriques, “na rua que vai para o Terreiro de Jesus” em imóvel que comprou à Santa Casa de
Misericórdia.104
Como exportadores, Monforte e Lopes Henriques não perdiam de vista seus interesses
na capital da Colônia, pois a concorrência era, sem dúvida, implacável e a facilidade de comu-
nicação, bem como o contato direto com mercadores no porto, uma condição sine qua non
para a preservação de transações comerciais sempre favoráveis.
A administração do engenho por gente de confiança era uma segurança a mais para
quem se dividia entre a cidade e a área rural. Monforte, por exemplo, contava com a presen-
ça constante de seu tio e sogro, outro Manuel Mendes Monforte, no engenho “o Salgado”, de
quem possivelmente o herdara. A confiança sustentada por relação de parentesco tão próxima,
talvez o deixasse mais livre para fazer sua vida na cidade e expandir os negócios, beneficiando-
-se e ao seu tio. Comodidade que Lopes Henriques não teve já que suas propriedades estavam
entregues a caixeiros, funcionários pagos, e deles dependia a boa continuidade da produção
agrícola.
Vizinhos destes senhores de engenho estavam um cristão-novo e um cristão-velho. O
primeiro, era o próspero lavrador de cana, Diogo Henriques Ferreira, que passava temporadas
em Salvador, malgrado sua esposa Leonor Rodrigues de Castro, ao que tudo indica, continu-
101 Criada em 1552 por D. Pero Fernandes Sardinha. Também foi chamada de São Salvador. NASCIMENTO, op.
cit., p. 34.
102 Lopes Henriques geria seu engenho e fazendas correspondendo-se por carta com seus caixeiros: “havia escrito
ao engenho e dito seu caixeiro [...]”. NOVINSKY, Anita. Inquisição I:..., op. cit., p. 193.
103 ANTT/TSO-IL Proc. nº 675.
104 Chama-se a atenção para o fato da Santa Casa excluir os cristãos-novos de qualquer participação da irmandade
e, paradoxalmente, com eles fazer negócios.

41
asse vivendo no seu sítio em Matoim.105 E o cristão-velho e lavrador de tabaco Jerônimo da
Costa Pinto que, com sua esposa Bárbara da Silva, morava em frente à Ordem Terceira de São
Francisco.106
No Terreiro de Jesus, próximo a suas casas, acontecia uma das três feiras livres da cidade
onde, segundo a descrição do cronista setecentista Luís dos Santos Vilhena, por aí transitavam
as regateiras, mulheres negras a venderem seus quitutes e toda sorte de alimentos.107 Em meio
a esse burburinho de comércio retalhista, Félix Nunes de Miranda tinha a sua “tenda [loja] de
azeite de peixe”108 onde vendia óleo de baleia, combustível indispensável à população local.
A residência de Félix ficava próxima a sua loja, na freguesia de São Pedro,109 cercada
por conventos, igrejas, moradias de médicos, advogados, desembargadores e gente mais pobre
como a quitandeira Maria de Sousa, escrava forra, sua vizinha de rua.110 Essa foi a freguesia
mais povoada pelos cristãos-novos que tiveram seus domicílios identificados, a maioria deles
comerciante.
A primeira morada de Félix Nunes de Miranda assim que deixou o sítio de Peramirim
(sic) em Cachoeira, pelos idos de 1709-1710, foi a Rua do Sodré, em São Pedro. Depois mudou-
-se para a Rua de Baixo de São Bento, nos arredores do Mosteiro que deu nome à rua, perma-
necendo aí com toda a sua família até ser preso pelo Santo Ofício (1729).111
O bairro de São Bento, pela descrição de Vilhena, era “o maior entre todos, e o mais
aprazível [...] com suas ruas espaçosas, asseados templos, e algumas propriedades nobres”.112
Cristãos-novos portugueses recém-chegados optaram por viver nessa freguesia, onde seus
muitos sobrados abrigavam famílias fidalgas.113 Aí encontravam-se os comerciantes Antonio
Cardoso Porto, Diogo Ávila Henriques, os irmãos Miguel da Cruz e João de Matos, e Antonio
Rodrigues, todos desembarcados na Bahia mais ou menos na mesma época, por volta de 1716
e 1719. Indo para a Rua de Baixo, fizeram vizinhança com os também cristãos-novos Joseph
Cardoso e seu filho Jerônimo Rodrigues e Miguel Dias, igualmente comerciantes.
Especializados no comércio com as Minas, exceto Cardoso Porto e Félix Nunes de Mi-
randa, era frequente a ausência destes cristãos-novos da Bahia. Luís Henriques fazia da Vila
de Cachoeira o seu ponto de partida para o sudeste da Colônia, mas sua casa na Rua de Baixo,
onde vivera com esposa e filhos, era a referência de moradia apregoada por todos seus conhe-
cidos.

105 Sítio Santa Inês, voltado à lavoura canavieira. Diogo Henriques Ferreira era também homem de negócios e por
isso estava frequentemente em Salvador.
106 Citados nas contraditas de Antonio da Fonseca. ANTT/TSO-IL Proc. n° 10484. No Catálogo Genealógico
de Frei Jaboatão é mencionado um Jerônimo da Costa Pinto, português da Guarda, casado com Luíza, que era
Capitão de Ordenança. Possivelmente parente deste lavrador. CALMON, op. cit., v. 2, p. 503 e 506.
107 VILHENA, Luís dos Santos. A Bahia no século XVIII. Salvador: Ed. Itapuã, 1969. v. 1, p. 93.
108 ANTT/TSO-IL Proc. nº 2293
109 Ibidem, p. 46; NASCIMENTO, op. cit., p. 81. ANTT/TSO-IL Procs. n°s 2293; 8887.
110 ANTT/TSO-IL Procs. n°s 2293; 8887.
111 Filho de Félix, Miguel Nunes de Almeida vivia transitando entre outros lugares do Recôncavo e Salvador,
operando no comércio, inclusive em Minas Gerais, e ajudando a seu pai na venda do óleo de baleia.
112 VILHENA, op. cit., v. 1, p. 45-46; NASCIMENTO, op. cit., p. 81.
113 NASCIMENTO, op. cit., p. 34.

42
Já os citados irmãos, dada as longas estadias em terra mineira fizeram-se ser notados
como moradores nas Minas “sem domicílio certo”, apesar de Miguel da Cruz ter sido comu-
mente visto nos arredores do Rio das Mortes. João de Matos, que lidava com a mineração,
vivera parte do tempo no Ribeirão do Carmo, Minas Gerais e nas Minas de Pitangui, sertão da
Bahia.
Diogo de Ávila Henriques, assim que se firmou economicamente, alugou uma casa na
Rua do Areal, mantendo-se na mesma freguesia de São Pedro onde fora acolhido pelo mestre
de obras Pedro Guisão e pelo advogado Martinho Barbosa de Araújo. Com ele, viveu por um
período os seus primos Diogo de Ávila, até desavenças os separarem, e Bernardo Ferro, hóspe-
de que logo partiu para as Minas Gerais.
Esta freguesia era ideal para Ávila Henriques que vivia frequentando os cartórios da ci-
dade, todos situados nas redondezas, para dar entrada e encaminhar os litígios que impetrava
como requerente de causas, ou por interesse próprio nas disputas de negócios em que pleiteava
ressarcimento de dívidas não pagas, reapropriações de mercadorias e outras questões as quais
nem sempre foram julgadas a seu favor.
Ao escolher a Rua do Areal para instalar-se, Ávila Henriques não deve ter levado em
conta a proximidade com a casa de seus parentes distantes, os Montesinhos, e seu outro primo
Gaspar Henriques, mas sim a circunvizinhança com um escrivão dos Agravos e Apelações,
e com proprietários do ofício de escrivão moradores na Sé, como o foi o da Chancelaria da
Relação, o da Ouvidoria Geral, ou ainda da Fazenda Real. Além de advogados, meirinhos,
funcionários de cartórios, gente de quem Diogo de Ávila Henriques se servia nas suas querelas
judiciais.
Antonio Cardoso Porto é outro exemplo de como a condição financeira determinava a
escolha dos locais de residências. Assim que chegou na Bahia, em 1715, sem nada conhecer da
vida colonial, foi morar perto da casa de Luís e Francisca Henriques, “em umas casinhas para o
fim da rua de baixo, indo para a Quitanda”, no lugar que chamavam “Quitanda de São Bento”.114
À medida que ia estruturando seus negócios, passava a morar cada vez mais perto dos
comerciantes mais ricos e do porto. Quando foi preso, já um rico comerciante, vivia defronte
da Alfândega, na Rua da Praia, freguesia de N. Sra. da Conceição, a meio caminho entre as
freguesias de São Pedro e da Sé, de onde podia ser vista toda a movimentação portuária, o que
lhe facilitaria o controle das carregações a ele destinadas ou por ele enviadas.
A Conceição da Praia era eminentemente a freguesia do comércio, concentrando casas
comerciais, armazéns, trapiches, a Alfândega e toda a infraestrutura necessária à prática mer-
cantil, desde a fabricação de embarcações até a revenda de artigos ao varejo. Nas palavras de
Vilhena “a maior parte dos comerciantes mais ricos da Bahia moram nesta freguesia”, segundo
Nascimento, “morada dos negociantes especialmente portugueses”.115
Adiante, na freguesia do Passo estava a Fonte dos Sapateiros, denominada Baixa dos
Sapateiros, bairro próximo à Quitanda onde vivera Cardoso Porto. Nela concentravam-se os
artesãos, principalmente os que trabalhavam o couro, com seus curtumes e oficinas vizinhos a

114 Declaração citada pelo Juiz de Fora, amigo de Cardoso Porto, Veríssimo Manuel Robalo Freire, reportando-se
às palavras deste cristão-novo em diálogo que tiveram. ANTT/TSO-IL Proc. n° 8887.
115 VILHENA, op. cit., v. 1, p. 95; NASCIMENTO, op. cit., p. 70.

43
sobrados luxuosos.116 Aí morou e teve seu curtume Antonio de Miranda, curtidor de solas de
couro. Seu tio, o médico Francisco Nunes de Miranda, foi dono de imóveis – terrenos, casas,
curtumes e oficinas de pelames – compradas a um sacerdote do hábito de S. Pedro.117
Antonio de Miranda trocara a Vila de Cachoeira, primeira residência no Brasil, pela
cidade de Salvador, como fez seu primo Félix, sendo seu vizinho Quitanda de São Bento. Es-
tabeleceu aí uma venda para comércio de aguardente, antes de tornar-se curtidor de couros e
passar para a Fonte dos Sapateiros. Comentando sua escolha em ir morar à Rua dos Pelames,
nesta Fonte dos Sapateiros, disse que “assim se entendeu o fazer por haver naquela rua muitos
cristãos-novos e eram todos do mesmo exercício de curtir sola”. Mas não apenas cristãos-no-
vos. O cristão-velho, Domingos Luís, cujo ofício é desconhecido, também vivia na Fonte dos
Sapateiros.118 E não exclusivamente artesãos. Antonio do Vale de Mesquita, mercador cristão-
-novo, antes de partir definitivamente para o Rio de Janeiro, morou também na Baixa dos
Sapateiros.119
Quatro ou cinco anos antes de ser preso (cerca de 1707), Antonio de Miranda mudou-se
para a nobre freguesia de Nossa Senhora da Vitória. A Vitória, criada em 1561, não desenvolveu
características urbanas, sendo local de inúmeras chácaras, vivendas e quintas de importantes
famílias baianas que se preservavam da agitação das freguesias identificadas com o comércio
e serviços.120 Viver na Freguesia da Vitória requeria certa posição socioeconômica que, parece,
Antonio conseguira alcançar, ou driblar, ultrapassando a média dos artesãos baianos.
Não como a intensidade da Fontes dos Sapateiros, mas Vitória foi também um lugar
que teve seus curtumes. Antonio de Miranda não foi o primeiro artesão a se estabelecer neste
bairro de elite. Ele arrendara um curtume já existente no Porto das Vacas, no sítio da Gamboa,
um pouco afastado das casas de veraneio das proeminentes famílias, é de se supor. Vizinho a
ele estava instalado um outro curtume, esse de propriedade de um alemão conhecido como
Diogo Soares que ocupava cargos na Junta do Comércio e morava na Freguesia da Conceição
da Praia. Antonio de Miranda sempre esteve domiciliado em locais que facilitassem o dina-
mismo de suas atividades econômicas, como leva a crer sua afirmação transcrita em parágrafo

116 A Fonte dos Sapateiros, “já desde o século XVIII era o local onde se situavam os curtumes que tratavam de
courama, que era, com frequência, um dos produtos de exportação da Província da Bahia. Ali vamos encontrar
pessoas de profissões relacionadas com o couro, como matéria-prima...”. NASCIMENTO, op. cit., p. 90.
117 Escritura de venda e quitação que faz o Rdo. Pe. Manuel Roiz Braga ao Dr. Francisco Nunes de Miranda de uns
curtumes por preço e quantia de 200 Diz. Livro de Notas, 18A, p. 198, 198v, 199. APEB.
118 Domingos Luís foi testemunha nomeada por Antonio da Fonseca, um lavrador do interior da Bahia, para
responder seus artigos de defesa ao Santo Ofício. ANTT/TSO-IL Proc. n° 10484.
119 Antonio do Vale de Mesquita trocara a Bahia pelo Rio de Janeiro, possivelmente por estar envolvido com o
comércio nas Minas. Por volta de 1705, ainda vivia em terras baianas, no sertão, em algum lugar do termo da Vila
de São Francisco.
120 Viviam nesta freguesia os descendentes de Diogo Álvares, o Caramuru, e do donatário Francisco Pereira
Coutinho. No século XIX, a Vitória continuava sendo “freguesia de elite e de confortáveis vivendas de campo,
não possuía grande número de casas” e era endereço dos comerciantes mais ricos de Salvador. NASCIMENTO,
op. cit., p. 28, 35 e 42.

44
anterior. A Vitória, assim como Bahia colonial, tinha suas contradições que se relacionavam
intimamente.121
A área suburbana de Salvador compreendia, dentre outras, as freguesias de N. Sra. da
Piedade de Matoim e São Miguel de Cotegipe, eminentemente rurais, abrigando engenhos de
açúcar. Sobretudo Matoim chama a atenção para o estudo sobre os cristãos-novos da Bahia,
pois há indícios de que, no século XVI, contava com uma grande população de origem judaica,
abrigando inclusive uma sinagoga improvisada no engenho de Heitor Antunes.122
No século XVIII Matoim ainda era zona açucareira e lá, como também em Cotegipe,
cristãos-novos conhecidos por esta pesquisa tiveram seus engenhos, coincidentemente, todos
Manuel: em Matoim, Manuel Mendes Monforte e Manuel Lopes Henriques; em Cotegipe, Ma-
nuel de Lopes Vargas e seu filho Manuel Mendes.123 Vizinhos a estes estavam a lavoura de cana
de Diogo Henriques Ferreira e do neto de Lopes de Vargas, Gaspar Pereira Montealegre.
Demais cristãos-novos puderam unicamente ser identificados como moradores “cidade
da Bahia”, ou simplesmente diziam que moravam na Bahia, o que deixa a impressão de habita-
rem vagamente qualquer lugar da Capitania. Contudo, informações sobre relações econômicas
e sociais entre prisioneiros e cúmplices deixa transparecer que havia uma tendência generaliza-
da neste grupo de cristãos-novos a se concentrar na capital da Colônia (sobretudo nas fregue-
sias citadas e, por isso, somente elas foram citadas), no Recôncavo e em terras mais afastadas do
litoral em que havia atividade mineradora como Araçuaí, Fanados, Rio de Contas.124 Ou seja,
regiões em pleno desenvolvimento econômico.
O Recôncavo baiano circunscrevendo a Baía de Todos os Santos, foi o local ideal para a
instalação de engenhos e plantações de cana-de-açúcar e, mais tarde, de tabaco, concentrando,
portanto, desde o século XVI, os homens ligados a estas atividades. No século XVIII, cristãos-
-novos agricultores e mercadores, que apareceram nas fontes consultadas, optaram por habitar
principalmente três das cinco Vilas que compunham a região - a saber, Cachoeira, São Francis-

121 Paráfrase a Roberto DaMatta quando amplia a dimensão do barroco brasileiro, considerando-o como “a
capacidade de relacionar intimamente os opostos”. DAMATTA, op. cit., p. 14.
122 Com as denunciações ao primeiro visitador do Santo Ofício na Bahia, ficou registrado na História que em
Matoim houve a primeira sinagoga da Colônia, improvisada e disfarçada, no engenho de Heitor Antunes, vizinho
e amigo do governador-geral Mém de Sá. O engenho de Mém de Sá ficou conhecido como Engenho do Conde.
TAVARES, Luís Henriques Dias. História da Bahia. 10. ed. São Paulo: Ed. UNESP; Salvador: EDUFBA, 2001. p.
154.
123 Este Manuel Mendes atuava no engenho de seu pai e também no comércio, como aliás, era o que também fazia
Monforte e Lopes Henriques.
124 Araçuaí e Fanado foram descobertas como áreas mineradoras em 1727, pertencentes ao Arcebispado da Bahia.
Mais tarde, foram incorporadas administrativamente a Minas Gerais. BOXER, C. R. A idade de ouro do Brasil.
2. ed. São Paulo: Cia. Nacional, 1969, p. 143. Ao tratar das Freguesias do Sertão de Cima, dentre elas a Vila do
Fanado, Vilhena diz que algumas delas estavam sob a jurisdição civil e militar das Minas, e embora “alheias da
jurisdição imediata do governo da Bahia”, pertenciam ao Arcebispado da Bahia. E, Rio de Contas, pertencia à
Comarca de Ilhéus. VILHENA, op. cit., Mapa de todas as freguesias que pertencem ao Arcebispado da Bahia...
Anexo, entre páginas 460-461.

45
co e Santo Amaro -, pois, além de prósperas em termos agrícolas, seus caminhos facilitavam a
comunicação comercial com o nordeste e o sudeste da Colônia.125
A Vila de Cachoeira foi a mais rica e povoada da região. A sua posição geográfica, como
das Vilas vizinhas, levava ao Rio de Janeiro e às Minas Gerais – atravessando as vilas minera-
doras de Minas Novas e Rio de Contas, mais ao interior da Capitania;126 e ao nordeste – Piauí e
Maranhão – cruzando outro centro de mineração, a Vila de Jacobina, que fazia a ligação entre
Salvador e o sertão do Rio de São Francisco (limite com a Capitania de Pernambuco), econo-
micamente voltado, sobretudo, para a pecuária.
Cristãos-novos lavradores, comerciantes e até mesmo mineiros que aí viveram tempo-
rária ou permanentemente fizeram de Cachoeira seu ponto de partida para as Gerais e minas
baianas, como se contatou a partir da observação de suas moradias também nestes lugares.
Residentes em Cachoeira estavam sempre nas Minas Gerais, como Francisco Fernandes Cama-
cho, que além de comerciante disseram ocupar-se também da mineração nas mesmas Minas
Gerais. Já o sobrinho de sua esposa, Antonio Fernandes Pereira, este sim dedicado exclusiva-
mente à mineração, foi presença em Serro Frio (Minas Gerais), antes de se estabelecer defi-
nitivamente em Araçuaí, então terras do arcebispado da Bahia. Seu tio, Francisco Rodrigues
Pereira, era lavrador de tabaco em Cachoeira e comerciante e mineiro quando passava para as
Minas Gerais. O irmão deste, Manuel Lopes Pereira, atuava como tratante de gado e comer-
ciante na Vila de Água Fria, arredores de Cachoeira.127
Diogo Nunes Henriques dividia-se entre a agricultura, o comércio, as minas e a arre-
cadação de dízimos para a Coroa. Dono de fazenda nesta Vila, no sítio Subaé, onde plantava
tabaco e vivia sua família, Nunes Henriques transitava constantemente para Ouro Preto co-
merciando escravos, gado e outras mercadorias.128 Em Ouro Preto tinha a sua pousada e lá foi
capturado pelo Santo Ofício, tornando-se um exemplo de cristão-novo que tanto podia ser
morador na Bahia quanto naquela famosa terra do ouro. Seus sobrinhos Domingos e Antonio
Nunes (homônimo de um membro da família Nunes de Miranda), ambos comerciantes, vi-

125 O cronista setecentista Luís dos Santos Vilhena informa cinco Vilas compondo o Recôncavo, além da três citadas
havia ainda as Vilas de Maragogipe e Jaguaripe. VILHENA, op. cit., p. 477-486. Eram freguesias do Recôncavo
baiano em 1759, segundo José Antonio Caldas, dentre outras, São Gonçalo da Vila de São Francisco, N. Sr.ª da
Piedade de Matoim, São Miguel de Cotegipe, Vila de N. Sr.ª do Rosário de Cachoeira, N. Sr.ª de Oliveira dos
Campos, Santo Amaro da Vila de N. Sr.ª da Purificação. CALDAS, José Antonio apud TAVARES, Luís Henriques
D., op. cit., p. 97.
126 Por Cachoeira era fácil o acesso a Minas Novas, Rio de Contas, Serro Frio e Minas Gerais até chegar ao Rio de
Janeiro, e ao norte passando por Jacobina, adentrava Piauí seguindo até o Maranhão. VILHENA, op. cit., p. 483.
127 Atual município baiano de Irará, Água Fria foi aldeamento jesuíta, esteve sob domínio da Casa da Torre de
Garcia D’Ávila, depois foi incorporada às terras do sertanista João Peixoto Viegas, sendo uma das primeiras vilas
criadas na Bahia (1727), “[...] cujos limites confinavam com os das vilas de Cachoeira e Jacobina e com a cidade
do Salvador”. FERREIRA, J. Pires (Org.). Enciclopédia dos municípios brasileiros. Rio de Janeiro: IBGE, 1958. v.
20, p. 285.
128 Diogo Nunes Henriques é um dos cristãos-novos que acumulava diversas ocupações econômicas. Foi conhecido
como lavrador de tabaco, dono de fazenda na Capitania da Bahia, mercador para as Minas – o que significa estar
sediado na Bahia com relações comerciais nesta região mineradora – e também contratador dos dízimos reais,
para qual função, nada ficou explicito nas fontes.

46
viam em sua casa antes de irem para as Minas Gerais, caminho também seguido por seu filho
Manuel Nunes da Paz, que mineiro e homem de negócios percorria a Colônia.
Em Cachoeira ainda estavam Bartolomeu Nunes Sarapio,129 tratante e soldado infante, e
Gaspar Fernandes Pereira, caixeiro, homem de negócios e mineiro. Na freguesia de São Gon-
çalo desta mesma Vila residiam os tratantes e mineiros Antonio Rodrigues Romano e Luís
Álvares de Oliveira, como também Gregório da Silva Henriques, quem além de comerciante
havia sido carcereiro em Salvador.
Outra importante Vila do Recôncavo baiano, Santo Amaro da Purificação, desenvolveu-
-se em torno da produção de aguardente ao lado da cana-de-açúcar e do tabaco. Situada à mar-
gem do rio Sergipe do Conde, atravessando o sítio de Campinhos chegava-se às Minas Gerais
e ao Rio de Janeiro. Esta foi, segundo Vilhena, “uma das causas por que há bastante comércio
nesta vila; é ela bem povoada, tem bastantes moradores ricos, e poderosos[...]”.130 Aí ficavam as
freguesias de N. Sra. da Purificação de Santo Amaro e Nossa Senhora da Oliveira nos Campos.
Em Nossa Senhora da Purificação de Santo Amaro, moravam Leonor Henriques e seu
segundo marido, Antonio Rodrigues Campos, comerciante e lavrador de tabaco; e Isabel Ro-
drigues, casada com um Luís Henriques.131 Em Nossa Senhora da Oliveira nos Campos, ou
Campinhos, Miguel Nunes de Miranda, irmão de Félix Nunes de Miranda, tinha sua lavoura de
tabaco; o comerciante Francisco Ferreira Isidoro vivera aí até 1710, aproximadamente, quando
se mudou definitivamente para o Rio de Janeiro, e o mineiro João Lopes de Mesquita, também
conhecido como João Carlos de Abreu deixou a região para ir viver no Serro Frio, Minas Ge-
rais, por volta de 1729.
A terceira Vila do Recôncavo onde estes cristãos-novos residiam foi a Vila de São Fran-
cisco ou Vila Sergipe do Conde, seu nome original.132 Apesar de ser área de engenhos, como
toda a terra em torno de Salvador, aí não foram encontrados engenhos de cristãos-novos co-
nhecidos, apenas a lavoura de milho de Pedro Nunes de Miranda, depois transferida para uma
fazenda, chamada Calheiros, na Comarca do Rio das Mortes, Capitania do Rio de Janeiro. Pe-
dro abandonara o comércio em Salvador tornando-se lavrador, assim que retornou de Lisboa
penitenciado pelo Santo Ofício.
Simão Rodrigues Nunes era meirinho nessa freguesia e mantinha uma roça em Cachoei-
ra, a despeito da distância que as separavam. Domingos Álvares Cardoso, requerente de causas
ou advogado, instalara-se com toda a sua família em Sergipe do Conde, inclusive seu filho Ga-

129 Ou Bartolomeu Nunes Lavradio. Tal duplicidade de nome foi identificada a partir de sua esposa Leonor
Henriques, por casar-se segunda vez com o cristão-novo Antonio Rodrigues Campos. ANTT/TSO-IL Procs. n°s
2139; 9968.
130 VILHENA, op. cit., p. 481
131 Este, homônimo daquele casado com Francisca Henriques que vivia em Salvador.
132 Originalmente denominada Vila de Sergipe do Conde. Depois que recebeu o convento de Santo Antonio dos
capuchos passou a chamar-se Vila de São Francisco do Sergipe do Conde. Em 1730, o Conde de Sabugosa separou
dela o sítio de Santo Amaro, transformando-o na Vila de Santo Amaro da Purificação. Ibidem, p. 479.

47
briel Álvares Pereira que estava constantemente em Salvador “sendo dos melhores advogados
da cidade da Bahia”.133
Distritos mineiros, Jacobina e Rio de Contas (a conhecida Vila de N. Sr.ª do Livramen-
to do Rio de Contas), parte rochosa do interior da Capitania, teve dentre seus moradores os
comerciantes cristãos-novos João Mendes de Morais, irmão de João de Morais Montesinhos,
em Jacobina, e Luís Mendes de Sá, em Rio de Contas, este vivendo “vagamente no caminho da
Bahia para as Minas”.134
Apesar de parte do ouro exportado pela Bahia sair dessas jazidas e a região abrigar por
volta de 2 mil mineradores, a produção aurífera ainda era pequena à época do descobrimento
dessas minas, uma vez que fora proibida pela Coroa a favor do desenvolvimento das Gerais.135
Como essas Vilas eram pontos convergentes de comércio entre Bahia e Minas Gerais, esses
cristãos-novos contribuíram para o dinamismo dessa relação.
Minas Novas do Araçuaí e Minas Novas dos Fanados, também a meio caminho entre
Bahia e Minas Gerais e igualmente firmadas na mineração, produziam pedras preciosas em
maior escala que o ouro saído de Jacobina.136 Em Araçuaí viveram cristãos-novos mineradores,
a exemplo de Antonio de Sá, estabelecido no sítio de Barra de Água Limpa, Antonio Fernandes
Pereira, que transitou por Cachoeira e Serro Frio antes de firmar-se aí, e o médico Manuel Dias,
denunciado pelo mesmo Fernandes Pereira. Mineiro e lavrador, Manuel Nunes Sanches cui-
dava das lavras minerais nas Minas Novas de Fanados e Araçuaí e de uma plantação de milho
que tinha na roça de outro cristão-novo, Pedro Nunes de Miranda, em Campos de Cachoeira
das Minas Gerais.
Na Vila de São Francisco da Barra de Sergipe do Conde (hoje São Francisco do Conde),
recôncavo baiano, Antonio da Fonseca fixou-se na fazenda Malhada, de propriedade do mais
famoso Comissário do Santo Ofício na Bahia, João Calmon, permanecendo aí como lavrador,
criador de gado e tratante entre 1719 a 1728, quando foi preso.
A trajetória de Antonio da Fonseca revela um constante movimento migratório na Co-
lônia. Depois de ter vivido em Cachoeira, logo que chegou ao Brasil, passou para o Rio Fundo
como lavrador e envolveu-se com a pecuária. Diziam que era um ótimo comerciante de gado.
Cerca de oito anos depois (em 1713) no Rio Fundo, foi para a Vila de São Francisco viver em
terras desse Comissário do Santo Ofício, fato que em nada afetou, nem negativa nem positi-
vamente, sua vida profissional e suas relações sociais, muito menos sua causa no Santo Ofício.

133 Diogo de Ávila Henriques, ao querer enfatizar ser seu inimigo, disse que mesmo Álvares Ferreira “sendo um dos
melhores advogados da cidade da Bahia”, nunca o procurou para tratar de suas causas na justiça. ANTT/TSO-IL
Proc. n° 2121.
134 ANTT/TSO-IL Proc. n° 11769.
135 TAVARES, Luís Henriques D. op. cit., p. 196. Segundo Tavares, esta proibição decorreu a predileção da Coroa
em concentrar a extração de ouro nas ricas jazidas de Minas Gerais. Porém, C. R. Boxer expõe como razão maior
a proteção contra ataques à Bahia e evitar a transferência de mão de obra escrava empregada no açúcar e tabaco
do Recôncavo para as minas. BOXER, op. cit., p. 143.
136 As principais pedras eram topázio, ametista, água-marinha, dentre outras. “[...] entra a maior parte do ouro de
Minas Novas, assim como pedras [...]”. VILHENA, op. cit., v. 1, p. 57.

48
Pôde-se constatar a presença de, ao menos, cinco famílias cristãs-novas – os Nunes Hen-
riques, os Fernandes Camacho, os Lopes Pereira, os Álvares Pereira uma parte da família Nu-
nes de Miranda – e muitos indivíduos solteiros espalhados pelo Recôncavo.
Os Fernandes Camacho uniram-se por matrimônio à família Lopes Pereira, casando-se
Francisco com a filha de Clara Lopes, Luísa Pereira, e à família Nunes de Miranda, com a união
de Joseph da Costa e Ana Bernal de Miranda. Miguel Nunes de Miranda, primo desta Ana e
irmão de Félix Nunes de Miranda, sem nunca ter se casado, gerou dois filhos com uma escrava,
reconhecendo-lhes a paternidade.137 Não se tem informação de que estes viviam em sua casa.
Ao se contar o número de cristãos-novos com residência confirmada em Cachoeira,
chega-se a um resultado de 44 pessoas, consideradas individualmente e não enquanto família,
uma vez que as fontes não subsidiaram informações neste âmbito.
A residência desses cristãos-novos, definida a princípio pela ocupação econômica a que
serviam, os dispersaram por toda a Capitania da Bahia e os levaram para outras regiões da
Colônia. Morando na mesma rua ou em regiões distantes uma das outras por horas de viagem
em estradas praticamente inóspitas, eles mantiveram vínculos sociais e profissionais que foram
revelados, a despeito do infortúnio das prisões e denunciações ao Santo Ofício, por terem em
comum a mesma origem étnica, quiçá a mesma crença religiosa, os diferenciando do restante da
população portuguesa e atribuindo-lhes a dupla e ambígua condição de marginal e colonizador.

Solidariedade e convivência
Vivendo na mesma casa ou visitando-se mutuamente, a convivência familiar era cons-
tante. Os Inquisidores inspecionavam, nos interrogatórios, as razões dos encontros, interes-
sados em conhecer a proximidade dos réus com seus supostos cúmplices. As visitas sociais a
parentes e amigos, com uma assiduidade que já fazia parte do cotidiano ou vez por outra para
tratarem de negócios, fomentavam o convívio e consolidavam os vínculos afetivos.
A convivência familiar descrita nas confissões mostrou a religiosidade judaica refor-
çando laços de parentesco e sociais. A celebração de festividades e cerimônias, reunindo em
uma mesma casa pessoas afins para participarem de rituais religiosos, era um veículo para o
estreitamento das relações. Celebrações do Dia Grande (Yom Kipur) e Páscoa do pão ázimo
(Pessach) eram as que mais cumpriam esse propósito social.
A celebração da Páscoa do pão asmo, como também a denominavam, vem descrita em
pormenores inéditos a outras confissões por Pedro Nunes de Miranda, um cristão-novo que
respondeu a dois processos no Santo Ofício acusado de criptojudaísmo e teve diversos parentes
aprisionados. Pedro Nunes de Miranda reportou-se ao tempo em que ainda ele e sua família vi-
viam em Portugal quando 13 pessoas, incluindo seus pais, alguns irmãos, primos e amigos, je-
juaram e cearam juntos nas noites de solenidade. Na Bahia repetiu-se o mesmo evento por duas
vezes. No primeiro reuniram-se nove pessoas dentre parentes e amigos; e, dois anos mais tarde
mais quatro convivas foram celebrar o Dia Grande em sua casa. A cumplicidade ou a confiança
que esta intimidade favorecia servia de base aos Inquisidores na busca de novos suspeitos.

137 ANTT/TSO-IL Proc. n° 2293.

49
As relações familiares e sociais entre cristãos-novos foram reveladas também por pesso-
as estranhas ao seio familiar. Nas Contraditas138 e Coartadas, os amigos, vizinhos e conhecidos
de rua revelaram as inimizades entre cristãos-novos – e as amizades que se posicionavam a
partir delas –, descortinando outro lado das relações familiar e social desses indivíduos, pois a
tônica de seus relatos dirigia-se a assuntos que versavam os artigos de defesa dos réus e eles se
referiam, invariavelmente, às inimizades.
Cristãos-novos, tentando provar sua inocência no correr dos processos, constituíam ar-
tigos de defesa enumerando testemunhas que poderiam lhes prestar um depoimento favorável
– o que transmite uma ideia de confiança do réu em sua testemunha para livrá-lo ou amenizar
sua vida no cárcere. Algumas se acautelavam diante das autoridades inquisitoriais procurando
beneficiar seus amigos prisioneiros; outros tentavam provar exatamente o contrário do que
versava o artigo de defesa ou negava qualquer tipo de relação com o réu.
Tal comportamento, a princípio, não parece se correlacionar a algum comprometimento
de “classes sociais”, com a licença que este conceito encerra, tampouco a intimidações por esta-
rem diante de oficiais da Inquisição. Observa-se sentimentos de amizade, simpatia, inimizade
ou desinteresse guiando as falas dos depoentes ao narrarem o relacionamento que testemunha-
ram entre os próprios cristãos-novos, mostrando suas relações mais íntimas e, por outro lado,
marcando as relações entre cristãos-novos e cristãos-velhos.
O olhar de alguns cristãos-velhos extrapolava o que era notório, o que os próprios cris-
tãos-novos lhes contavam, para penetrar em suas casas, observando a privacidade ou o que
dela deduziam munidos de um imaginário, por vezes condicionado por uma visão de mundo
católica.
Tal invasão, diga-se assim, não era necessariamente voltada à perscrutação da vida do
“outro”, senão uma bisbilhotice, um costume das sociedades ibéricas e suas colônias, chegando
a ser um fenômeno cultural observado por dois críticos ao Antigo Regime, que viveram em
diferentes épocas – o Padre Antonio Vieira (no século XVII) e o Embaixador D. Luís da Cunha
(no século XVIII) –, como um dos “vícios” portugueses que a Inquisição soube muito bem
aproveitar.139
Este comportamento, segundo Norbert Elias, advém de uma relação dialética onde pre-
valece a necessidade de “uns” – os estabelecidos – se posicionarem diante e em contraposição
aos “outros” – os outsiders – criando um campo de forças por meio da busca de informações e
da imagem que formam de si e do outro.140
Cristãos-velhos convocados para testemunhar conflitos familiares em torno da contes-
tação do matrimônio de dois casais cristãos-novos montaram suas narrativas em meio ao que
ouviram por parte dos envolvidos, às bisbilhotices e aos olhares invasivos, e puderam mostrar

138 Sessão do processo inquisitorial onde o réu articulava uma defesa, com a intenção de confirmar que a sua prisão
resultava de maledicências e falsas acusações de seus inimigos e, portanto, era infundada. Para ajuizar os artigos
de defesa, os Inquisidores exigiam que o réu elegesse cristãos-velhos como testemunhas dos fatos narrados.
139 VIEIRA, Pe. Antonio. Os judeus e a Inquisição. VIEIRA, Pe. Antonio. Obras escolhidas: v. IV, obras várias (II).
Pref. e notas António Sérgio e Hernani Cidade. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1951. E CUNHA, D. Luís da.
Testamento político... Revisão e nota introdutória de Nanci Leonor. São Paulo: Alfa-Ômega, 1976.
140 ELIAS, Norbert; SCOTSON, J. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma
pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

50
histórias de inimizades e rivalidades, um pátrio poder quase sem força, a violência contra a
mulher e um pouco dos bastidores da vida doméstica.
A escolha dos esposos para as cristãs-novas Ângela de Mesquita e Ana Bernal de Mi-
randa foi tomada à revelia daqueles a quem estavam submetidas ao pátrio poder. Ângela, a seu
pai; Ana, moça órfã e com irmãos ausentes, a quem seu primo Félix Nunes de Miranda, talvez
o mais velho, via-se no dever de proteger.
O casamento de Ângela de Mesquita, filha dos cristãos-novos Luís e Francisca Henri-
ques, com o homem de negócios Antonio Cardoso Porto, foi história peculiar e polêmica. Luís
Henriques não aceitava o casamento em razão da inimizade com o futuro genro, surgida por
diferentes interesses comerciais. Cardoso Porto não se deu conta deste problema até o mo-
mento em que soube da intenção de Luís Henriques em assassiná-lo durante uma viagem que
fariam às Minas Gerais.
O rancor entre ambos se tornou público. Seus conhecidos diziam que Luís Henriques
não se poupava em afirmar que “haveria de dar um olho ao Demo para tirar dois de Antonio”141,
e que Cardoso Porto, quando ouvia estes comentários, retrucava “com palavras mais coléricas
contra Luís Henriques, até pondo-o de judeu”142, segundo o comentário de um cristão-velho,
expressando assim a dimensão do extremo da ofensa para a sociedade ibérica, que era o ser
“impuro de sangue”.
Por outro lado, a esposa de Luís Henriques, Francisca Henriques, não comungava com
os rancores do marido e, desprezando tal inimizade, nutria ela mesma uma forte amizade por
Cardoso Porto, interessada que estava em fazê-lo seu genro. Com o seu apoio, Cardoso Porto
continuou frequentando a sua casa como sempre fez desde que chegou na Bahia, não se intimi-
dando com o ódio e a ameaça de morte que lhe sobrevinha.
Luís Henriques protestava contra o comportamento da esposa em tratar Cardoso Porto
com “familiaridade de filho”,143 pondo-o portas à dentro, permitindo seu acesso ao interior da
casa, aos quartos de dormir, cuidando de suas enfermidades, enfim, hospedando-o em sua
ausência, tendo duas filhas mulheres em idade para casar. Via o seu poder ser ignorado nas
atitudes tomadas a sua revelia e sem seu consentimento.144 Sua reação foi violenta, como era
costume aos homens reagir quando sua honra e seu poder estavam ameaçados, sobretudo pela
esposa, que lhe devia obediência e submissão.
O envolvimento de Cardoso Porto com a família de Luís Henriques logo tornou-se pú-
blico e malvisto. A vizinhança comentava que Ângela de Mesquita havia sido desonrada por

141 ANTT/TSO-IL Proc. n° 8887.


142 Ibidem.
143 ANTT/TSO-IL Proc. n° 10156.
144 Grácia Rodrigues, cristã-nova amiga da família ouviu queixas de Luís Henriques, “não achando bem Francisca
Henriques hospedá-lo, tendo duas filhas mulheres”. E, a um amigo cristão-velho “se queixara que o dito réu tinha
entrada em sua casa com descrédito de uma sua filha”. ANTT/TSO-IL Proc. n° 8887.

51
ele, “sem constrangimento judicial, intervindo nisto o gosto e consentimento de Francisca
Henriques”,145 segundo um cristão-novo amigo de Luís Henriques.146
Ciente dos rumores que afetavam a honra de sua filha, Luís Henriques o expulsou de
casa ameaçando-o com uma faca, no dia em que, retornando de viagem, encontrou-o portas
à dentro, visitando os aposentos de Francisca Henriques por cuidar-lhe de uma enfermidade.
Este episódio agravou mais ainda o ódio a Cardoso Porto e expôs as desavenças familiares com
a esposa, que parecem ser anteriores a estes acontecimentos.
À expulsão de Cardoso Porto sobreveio a desestruturação do casal. Francisca, descon-
tente com este comportamento, rompeu relações com o marido e este reagiu abandonando
a família.147 A discórdia entre ambos foi tão grande que ela receava ser assassinada por Luís
Henriques. Por isso, censurou e rompeu amizade com Félix Nunes de Miranda, quando este o
livrou da cadeia onde cumpria pena por dívidas com a Fazenda Real.
Francisca Henriques posiciona-se neste momento como uma mulher vitimada pelo ca-
ráter violento do marido – o qual era completamente apoiado pelos valores da sociedade ibero-
-colonial, sobretudo em se tratando de mal comportamento da esposa – ao mesmo tempo em
que se rebela contra esta condição, mostrando-se disposta a atingir os seus objetivos: defender-
-se do marido e casar a filha com um rico mercador.
A sombra da vingança de Luís Henriques só mais tarde foi tranquilizada quando foi
degredado para o Ceará por querelas nos negócios. Para casar sua filha, Francisca consentiu
um relacionamento amoroso que, certamente, favoreceu a desonra de Ângela por parte de
Cardoso Porto. Francisca Henriques e Luís Henriques diante da situação já pública, cada um a
seu modo, forjaram meios para a realização do matrimônio. A amizade que todos diziam que
Francisca tinha por Cardoso Porto pareceu ter mudado de tom. Ao sentir a gravidade da situ-
ação e talvez prevendo o afastamento do pretendente deixando sua filha desonrada, Francisca
escreveu-lhe uma carta coagindo-o psicologicamente ao matrimônio e com ameaça explícita
de prisão, em caso de recusa.148
Luís Henriques teve outra atitude. Se por um lado não media esforços para prejudicar
Cardoso Porto, por outro, indiretamente, o obrigou a casar-se. Na inimizade, também notória,
entre Luís Henriques e Cardoso Porto, Henriques denunciou duas vezes Cardoso Porto como
contrabandista de tecidos e, em uma delas, escreveu ao Vice-Rei D. Pedro Antônio de Noronha,

145 Ibidem.
146 Trata-se de Félix Nunes de Miranda, comerciante, sentenciado à pena máxima pelo Santo Ofício em 1731. Junto
com sua esposa Grácia Rodrigues, depuseram nas Contraditas de Antonio Cardoso Porto. Um caso excepcional
para os processos inquisitoriais consultados, posto que a Inquisição exigia, em seu Regimento de 1640, apenas
cristãos-velhos para ajuizar os artigos de defesa dos prisioneiros.
147 Ao ser abandonada pelo marido, Francisca Henriques passou a contar com a ajuda financeira de Cardoso Porto,
conforme indicam algumas testemunhas no processo dele e passagens em seu Inventário. ANTT/TSO-IL Proc.
n° 8887.
148 Carta em apêndice.

52
1º Marquês de Angeja, assumindo cumplicidade e coautoria na contravenção. Comprovando-
-se a inocência de Cardoso Porto nos dois casos, Luís Henriques foi preso e condenado.149
Mesmo com essas complicações judiciais, não poderia deixar sua filha desonrada pe-
rante a sociedade, a vizinhança; apesar de afastar-se da família mais ou menos neste período,
propagou a todos os conhecidos que Cardoso Porto havia “estuprado”150 sua filha Ângela de
Mesquita e, diante da notoriedade da situação, este viu-se obrigado a desposa-la. O cristão-ve-
lho, Veríssimo Robalo Freire, Juiz de Fora de Salvador, amigo íntimo e confidente de Cardoso
Porto, viu de perto as dificuldades pela qual passou, sentindo-se ameaçado a casar, tendo que
andar escondido.151
A predisposição de Cardoso Porto para o casamento foi opinião controversa nos relatos
das testemunhas; para ele, no entanto, foi uma obrigação da qual não pôde se esquivar. Suas
palavras, anotadas pelo Notário da Inquisição, explicita uma paradoxal consequência da ani-
mosidade com Luís Henriques, que “continuava com o seu depravado ânimo a perseguir o réu,
acusando e denunciando haver este estuprado sua filha Ângela de Mesquita, com quem casou
para remir sua vexação”.152
A inimizade que inicialmente rivalizava Cardoso Porto e Luís Henriques, com essas vi-
cissitudes estendeu-se à toda família, justificando os rancores que dizia sentir por Francisca
Henriques e a indiferença por sua esposa. Situações que para ele poderiam ter levado falsas
acusações ao Santo Ofício e consequentemente à sua prisão.
Esperando talvez ser contestado por um discurso quase geral das testemunhas que abor-
dariam o assunto, e justificando o nascimento de seus três filhos com Ângela de Mesquita,
Cardoso Porto declarou que apesar de viverem distantes, “apartados”, mantinham um relacio-
namento superficial e ocasional, “por temor da justiça e não dar escândalo ao povo”.153
O “povo” estava atento ao que se passava na vida íntima do casal. Pessoas com as quais
tinha uma mera camaradagem de rua, funcionários de órgãos judiciais onde sempre encami-
nhava seus pleitos, conhecidos de vista, estavam convictas de sua amizade com Francisca Hen-
riques, por que o viam, como também sua esposa e filhos, a frequentar sua casa e muitas vezes
demorar-se por alguns dias. Com um depoimento que pareceu demonstrar maior proximidade
ao réu, Antonio Gomes de Araújo, escrivão da Fazenda Real, achava tais desavenças infunda-
das em razão dele nunca ter ouvido notícia contrária, “antes sim, pelo ver eram amigos”.154
149 Estas denúncias contra Cardoso Porto rendeu a Luís Henriques duas prisões. A primeira, além de Cardoso
Porto provar inocência, conseguiu a prisão de Luís Henriques por uma antiga dívida não ressarcida. Da prisão
Henriques elaborou a segunda denúncia remetendo-a ao 3º Vice-Rei do Estado do Brasil e, desta, comprovou-se
que as mercadorias que dava como contrabandeadas foram adquiridas legalmente por ele mesmo, a um mercador
da Bahia. ANTT/TSO-IL Proc. n° 8887.
150 Estupro, no século XVIII, significava “cópula com virgem” ou “com mulher casada”. Verbete: Estupro.
BLUTEAU, R. Diccionario da lingua portuguesa... 2 tomos. Lisboa: Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1789. p.
573. Disponível em: <www.brasiliana.usp.br>. Acesso em: 6 jan. 2011.
151 Nas palavras de Veríssimo Robalo Freire, “Antonio Cardoso Porto andava oculto e algumas vezes de noite fora
à casa dele testemunha e falando-lhe sobre este casamento lhe dizia que não tinha outro remédio mais que casar
com Ângela, do que infere se veria avisado para esse fim”. ANTT/TSO-IL Proc. n° 8887.
152 Palavras de Cardoso Porto nos seus artigos de defesa. Ibidem.
153 ANTT/TSO-IL Proc. n° 8887.
154 Ibidem.

53
Os vizinhos, que não se furtavam ao hábito das conversas nas portas das casas, tinham
maior oportunidade de espreitar o dia a dia com mais detalhes, a exemplo de Pedro Gomes da
Silva, comerciante de loja e vizinho de Cardoso Porto na Freguesia da Praia quem sabia as oca-
siões em que Ângela de Mesquita ia à casa de sua mãe – por doença ou para ajudá-la a preparar
os pães e os bolos que vendia e cuja farinha era fornecida por Cardoso Porto – e que quando lá
pernoitava mandava todas as refeições para o seu marido.
Em meio a vários testemunhos desfavoráveis ao que tentava provar aos Inquisidores,
Cardoso Porto angariara simpatia nas questões contra Luís Henriques, o mais hostil de seus
inimigos. Houve quem comentasse que Luís Henriques era uma pessoa
[...] de perverso e daninho ânimo e que para o destruir chegou a denunciar de sua
própria fazenda com fundamento de que era de Antonio Cardoso Porto só pelo o
destruir, como foi do pacote de lenços da Índia, sendo que na realidade eram do
mesmo Luís Henriques, o que tudo se convenceu por sentença.155

Desta forma, Cardoso Porto casou-se com Ângela de Mesquita. Em seus artigos de de-
fesa na prisão queria provar ter com ela e sua família uma profunda inimizade, a fim de buscar
uma saída para minar a acusações que lhe imputaram. No entanto, várias testemunhas destes
artigos, cristãos-velhos e dois cristãos-novos156 atestaram uma relação familiar amigável.
Menos polêmico e dramático foi a contestação do casamento de Ana Bernal de Miranda
com Joseph da Costa, por seu primo mais velho Félix Nunes de Miranda, quem provavelmente
a assistia por ser órfã de pai e mãe e seus irmãos andarem pelos caminhos do comércio co-
lonial. Os comentários que se seguiram pela vizinhança assim como a própria declaração de
Félix, não justificaram a inimizade com Joseph da Costa, apenas atestaram-na.
A pública amizade entre eles deu lugar às desavenças, que chegou a envolver agressões
físicas, quando Félix se posicionara contrário a tal união. Vizinhos de Nunes de Miranda re-
lataram essa história, cada um com sua versão. Bernardo Cabral de Melo, um cristão-velho
escrivão da Arrecadação do tabaco, vizinho de Félix há muitos anos, sabia “por ser público” que
por causa do casamento estes dois cristãos-novos “puxaram as espadas [...] e não se trataram
mais”; Luiza Teixeira, mulher parda “liberta e senhora de si”, vizinha e amiga da esposa de Félix
Nunes, Grácia Rodrigues, comentava que depois do casamento consumado, Joseph da Costa e
Félix retomaram a convivência a fim de manterem uma aparência social, “porém não era com
a amizade e a felicidade primeira e que era mero cumprimento.” do mundo.157
Outra oportunidade para desentendimentos entre os dois foi presenciada por Luiza Tei-
xeira, já que ela tinha “entrada na casa do réu”. Ainda a propósito deste casamento, Joseph da
Costa irritou-se com a intromissão de Félix Nunes de Miranda em seus assuntos familiares ao

155 ANTT/TSO-IL Proc. n° 8887.


156 Excepcionalmente dois cristãos-novos foram chamados a testemunhar no processo de Antonio Cardoso Porto,
uma vez que pelo Regimento da Inquisição então vigente, pessoas dessa qualidade não eram facilmente admitidas.
“[...] e será o Réu advertido, que faça nomeação em Cristãos velhos, e que não sejam [...] nem pessoas infames, e
que fossem presas pelo S. Oficio [...]; porém sendo a matéria da contradita de qualidade, que se não possa provar
por outras pessoas, neste caso se lhe admitirão quaisquer que nomear; [...]”. REGIMENTO do Santo Ofício de
1640. Revista do IHGB, Rio de Janeiro, v. 157, n. 392, p. 693-884, jul./set. 1996. p. 693-884, 790.
157 ANTT/TSO-IL Proc. n° 2293.

54
este pedir-lhe, em nome de Ana Bernal, que não levasse certa escrava para as Minas Gerais por
ser a contragosto da esposa. Joseph da Costa “quis dar no réu com uma faca”, e assim o faria se
não fosse a intervenção de seu cunhado João Gomes de Carvalho.158
Em outra ocasião da vida familiar de Félix Nunes de Miranda, Luiza Teixeira presenciou
momentos de intimidade. Descreveu o desespero de Guiomar da Rosa, esposa do seu amigo
Jerônimo Rodrigues, ao entrar em sua casa, suplicando-lhe em lágrimas para interceder a favor
de seu marido que estava a ponto de perder, a favor de Diogo de Ávila Henriques, os escravos
que comprara para negociar nas Minas:
[...] viu ela testemunha por estar nesta tarde em casa do réu, vir a dita Guiomar da Rosa
chorando muitas lágrimas, dizendo que o dito Jangada [Diogo de Ávila Henriques] se
levantava com os escravos de seu marido, e que pedia ao dito Félix Nunes lhe valesse
naquele aperto.159

Esta passagem introduz outra rivalidade – não mais de ordem social e sim comercial –
dentro deste grupo de cristãos-novos que, não por simples coincidência acabaram constituin-
do a comunidade cristã-nova da Bahia, no início dos setecentos.160 Elas foram reveladas apenas
nos casos dos cristãos-novos que articularam defesa, por eles mesmos e por suas testemunhas.
A história desta disputa de Jerônimo Rodrigues no foro civil de Salvador, foi assunto de-
cantado nos processos inquisitoriais tanto de Félix Nunes como de Diogo de Ávila Henriques,
mas omitido daquele movido contra o próprio Jerônimo em razão do encaminhamento que
teve seu processo inquisitorial, sem articulação de artigos de defesa.161
Amigos, vizinhos, funcionários das instâncias judiciais de Salvador, contaram que Je-
rônimo Rodrigues havia comprado 36 escravos para negociar nas Minas Gerais, porém como
devia uma grande parcela de dinheiro a um outro mercador da Bahia, receava que os mesmos
lhe fossem embargados para ressarcimento da dívida.162 A solução que encontrou foi pedir a
Diogo de Ávila Henriques, de quem até este momento era sócio em algumas transações comer-
ciais, privando de bom relacionamento, para que os registrasse em seu nome.
Diogo de Ávila Henriques, no entanto, traiu a confiança nele depositada negando-se a
devolver os escravos que já estavam em Cachoeira a caminho das Gerais para serem negocia-
dos sem conhecimento e autorização de Jerônimo Rodrigues. Ao saber desta atitude, Jerônimo
providenciou reaver judicialmente a posse dos escravos, encontrando, porém, dificuldades em
158 ANTT/TSO-IL Proc. n° 2293.
159 Ibidem.
160 Apesar das denúncias que originaram as prisões partirem de parentes e amigos prisioneiros moradores em
Portugal, os cristãos-novos da Bahia se inter-relacionavam, todos. Sucessivamente, ao serem presos denunciavam
uns aos outros, formando a comunidade identificada nos processos inquisitoriais pesquisados.
161 Uma das razões que se ventila para nem todos os cristãos-novos apresentarem defesa ante o Santo Ofício é
o prolongamento do tempo no cárcere, já que deveriam esperar todas as tramitações dos interrogatórios às
testemunhas para serem julgados. Mais breve seria o tempo prisão confessando de imediato os crimes e cúmplices.
Diogo de Ávila Henriques permaneceu detido durante quase cinco anos e Félix Nunes de Miranda, dois anos e
meio. Jerônimo Rodrigues por ser réu “apresentado” não ficou recluso e teve seu processo concluído em pouco
mais de três meses.
162 Jerônimo Rodrigues devia dois contos e quinhentos mil réis ao cristão-velho Manuel Simões Lisboa, vizinho de
Félix Nunes de Miranda.

55
comprovar que apesar de registrados em nome de Diogo de Ávila Henriques ele era o interes-
sado e único pagador.
Neste momento, Félix Nunes de Miranda entrou em ação. Não apenas atendendo ao
pedido de Guiomar da Rosa, mas em nome da própria amizade com Jerônimo Rodrigues que
não sabia ler e escrever e, valendo-se de contatos com gente da governança, conseguiu uma
ordem do Vice-Rei, certamente Vasco Fernandes César de Meneses,163 para que o Juiz de Fora
prendesse Ávila Henriques até que os escravos fossem devolvidos.
Assim procedendo, Ávila Henriques assinou uma declaração dizendo que os escravos
não lhe pertenciam e foram, finalmente, restituídos a Jerônimo Rodrigues em diligência execu-
tada na Vila de Cachoeira pelo sargento-mor e Familiar do Santo Ofício, Sebastião Álvares da
Fonseca, com quem Félix tinha um antigo e bom relacionamento desde o tempo em que foram
vizinhos no Recôncavo baiano.
Histórias anteriores à de Jerônimo Rodrigues fizeram Diogo de Ávila Henriques ser co-
nhecido em Salvador antes “pela sua esperteza”164 do que por ter se lançado da Capitania de
Pernambuco até a da Bahia em uma jangada, aventura que lhe rendeu popularidade com o
apelido de “o Jangada”. Sua personalidade era controversa como a de Luís Henriques. Não lhe
faltavam adjetivações negativas atribuídas por seus inimigos cristãos-novos e cristãos-velhos:
caviloso e velhaco, foram as mais frequentes.
Um processo civil aberto contra ele por um cristão-velho, Agostinho de Castro Ribeiro,
queria provar os falsos testemunhos dos quais se valia para ter ganho de causa nas demandas
que impetrava em Salvador, todas as conhecidas contra cristãos-novos. A mais divulgada des-
tas demandas foi o processo movido na Ouvidoria Geral do Cível como Procurador de Francis-
co Pinto e esposa, moradores em Portugal, para cobrar uma herança que diziam ter direito por
falecimento de Gabriel da Silva Barbosa, advogado morador em Cachoeira,165 caso comentado
anteriormente a propósito da solidariedade entre estabelecidos e recém-chegados.
O interesse pessoal de Ávila Henriques na ação – receber o pagamento de 14 mil cruza-
dos – o levou a articular estratégias que acabaram gerando as inimizades que declarou. A pri-
meira delas foi dar autorização a Luís Henriques para executar os trâmites legais da cobrança,
porque ele, recém-chegado à Bahia, não tinha contato suficiente com pessoas que pudessem
agilizar a causa, e não lhe pagar os 200 mil réis prometidos pelos serviços prestados. A estra-
tégia mais contestada foi propor a Félix Nunes de Miranda que, na qualidade de testamenteiro
de Gabriel da Silva Barbosa, jurasse falsamente no encaminhamento do processo, em troca de
100 mil réis.

163 Dado ao período em que ocorreu esta história deduz-se que era governador o conhecido Conde de Sabugosa,
quem governou de 1720 à 1735. Nessa mesma época, o primo de Félix Nunes, Manuel Bernal fora preso por
ordem desse vice-rei Vasco Fernandes. SOUZA, Grayce M. B., op. cit., p. 223.
164 ANTT/TSO-IL Proc. n° 2121.
165 Francisco Pinto movera esta ação junto a sua esposa. Era morador em Viade, um lugar perto de Azevo, terra
natal de Ávila Henriques. Gabriel da Silva Barbosa, ao que tudo indica era cristão-velho. Seu testamenteiro foi
Félix Nunes de Miranda, cristão-novo. Nas Contraditas de Ávila Henriques, de onde estas informações foram
extraídas, houve quem alegasse que era uma dívida e não uma herança que Francisco Pinto mandara cobrar. No
entanto, a maioria das testemunhas, como atestados de órgão judiciais, confirmam tratar-se de uma herança.
ANTT/TSO-IL Procs. n°s 2121; 2293.

56
A indisposição com Félix Nunes de Miranda, conhecido como homem honesto, foi o
testemunho que o Familiar do Santo Ofício Agostinho de Castro Ribeiro esperava para poder
provar na Ouvidoria Geral do Cível seus atos ilícitos, beneficiando-se também do testemunho
do filho de Félix, Miguel Nunes.
O desdobramento do processo foi a extensão da inimizade aos amigos e parentes de
Félix Nunes de Miranda cujos laços que os uniam, segundo Diogo de Ávila Henriques, faziam-
-nos assentir o juramento que lhe era contrário. Dentre essas pessoas estavam Joseph da Costa,
Luís Henriques e suas famílias, as quais, por razões diferentes, Félix Nunes de Miranda também
se dizia inimigo.166 Aliás, não houve fato relatado que mencionasse animosidades entre Ávila
Henriques e Joseph da Costa. No entanto, entre Félix Nunes e Joseph da Costa, e entre Diogo
de Ávila Henriques e Luís Henriques, testemunhas apontaram certa rivalidade.
Diogo de Ávila Henriques ainda professou profunda inimizade por seus primos, os ir-
mãos Diogo de Ávila e Gaspar Henriques. O primeiro por questões de dívidas comerciais.
O outro, pela já famosa história de ter lhe negado abrigo estando “casado e vivendo de casa
posta”.167 Rancores estes que vão de encontro às sociedades comerciais que firmaram entre si,
desde o tempo que Ávila Henriques era um recém-chegado a Salvador, nelas incluindo também
Jerônimo Rodrigues, com quem mais tarde, em 1725, teve aquela demanda sobre os escravos.
Estas rivalidades litigiosas foram atestadas pelos órgãos judiciais envolvidos, em docu-
mentos que se tornaram provas recolhidas por um Comissário do Santo Ofício na Bahia, e
foram anexados aos respectivos processos. O que ressalta ao questionamento, porém, são os
desfechos das inimizades, nem sempre correspondendo àqueles que estes cristãos-novos que-
riam mostrar, pois foram ajuizados, às vezes subjetivamente, por seus relatores que guardavam
ânimos e desânimos pelos réus.
Oficiais de órgãos judiciais em Salvador por onde passaram todos os litígios mencio-
nados, discutiram em seus depoimentos os bastidores das amizades e animosidades, cada um
deles avaliando e deduzindo as relações e querelas pelo que liam nos documentos, escutavam
das partes envolvidas e pelo que viam.
Como escrivão da Chancelaria da Relação da Bahia, Luís da Costa tinha conhecimento
de alguns dos litígios de autoria de Diogo de Ávila Henriques e que se desdobravam em alu-
sões a inimizades com Félix Nunes de Miranda, Joseph da Costa, Gaspar Henriques e Luís
Henriques. Inimizades estas que Luís da Costa interrogava embasado no que via, e viu Ávila
Henriques ir à casa de Joseph da Costa acompanhado de seu primo Gaspar Henriques, como
também ao vê-lo falar com Félix Nunes de Miranda deduziu que não era inimigo de Luís Hen-
riques por que este era testemunha a seu favor em várias de suas causas judiciais.
Antonio Gomes de Araújo conhecera Diogo de Ávila Henriques e Antonio Cardoso Por-
to na Fazenda Real de Salvador, onde era escrivão e estes sempre iam cuidar de processos judi-
ciais que impetravam. Das conversas sobre os pleitos, as razões que os moveram e as diligências
que executou em suas causas, Gomes de Araújo ponderou sobre a veracidade das inimizades.

166 Aliás, sempre que apresentavam Contraditas, os réus estendiam as inimizades às pessoas próximas ao inimigo
principal, considerando que essas também seriam suspeitas em levantar falsos testemunhos para provocar a
prisão.
167 ANTT/TSO-IL Proc. n° 2121.

57
Para ele, como dito anteriormente, Cardoso Porto não era inimigo de sua sogra, apesar
de bastante avesso ao sogro, a Ávila Henriques e seus primos, os quais, por sua vez, estavam
muito próximos a Luís Henriques pelos testemunhos falsos que fazia em juízo para beneficia-
-los. O que, aliás, levou a Antonio Gomes de Araújo, como Meirinho das execuções da Fazenda
Real, a processar Luís Henriques por este o ter caluniado, chamando-o de ladrão e “falsário em
matérias pertencentes ao seu ofício”.168
A visão, e não somente o olhar do sargento-mor Joseph Rodrigues Pereira, chegou ao
quintal de seu vizinho Gaspar Henriques ao presenciar que ele e o primo Diogo de Ávila Henri-
ques conversavam com “grande galhofa [...] demonstrando muita amizade”.169 Manuel de Souza
Gaya, que morava defronte de Ávila Henriques, mas “nunca teve trato”170 com ele, estava bem
ciente que Diogo era padrinho de um dos filhos de Gaspar Henriques.
Um Francisco Álvares Machado, assim como o soldado Manuel da Silva Tinoco, pa-
reciam anotar a frequência com que os cristãos-novos se visitavam; Francisco percebera que
Ana Bernal e Guiomar da Rosa, respectivas esposas de Joseph da Costa e Jerônimo Rodrigues,
visitavam-se “muitas vezes”171 e Manuel perdera a conta de quantas vezes viu seu vizinho Félix
Nunes de Miranda e o primo deste, Joseph da Costa, entrarem um na casa do outro, tratando-
-se como amigos.172 Já o sargento-mor e familiar do Santo Ofício Sebastião Álvares da Fonseca,
via que Félix “não tratava nem politicamente com Joseph da Costa”.173
Depoimentos desencontrados, mas com uma conotação bem específica. Quando as tes-
temunhas se lançavam a contar o que sabiam – seja pelo ver seja por ouvirem falar – sobre os
acontecimentos narrados nos artigos de defesa, estavam dizendo que tiveram oportunidade de
se relacionar com estes réus e apresentam, de modo sublinear, a qualidade deste relacionamen-
to. É a partir daí que se observa a vinculação destes cristãos-novos com a sociedade envolvente
sob o olhar da distinção social que atravessava a relação entre cristãos-novos e cristãos-velhos.

Relações sociais entre cristãos-novos e cristãos-velhos


A convivência entre cristãos-novos e cristãos-velhos foi fundamental para apreciar as re-
lações sociais estabelecidas, suas qualidades e com elas caminhar para a observação da entrada
que esses cristãos-novos tiveram na sociedade baiana setecentista. Estes indivíduos transita-
vam por todos os níveis socioeconômicos interagindo com religiosos, desembargadores, juízes,
funcionários da Coroa, comerciantes e toda sorte de gente rica ou pobre. Angariaram simpatias
e animosidades.
Um artifício processual da Inquisição portuguesa – as Contraditas e Coartadas – dava
ao prisioneiro a oportunidade de convocar cristãos-velhos companheiros de ofício, vizinhos,
conhecidos e amigos a tratarem de assuntos sobre sua vida pública – às vezes remetendo a epi-

168 ANTT/TSO-IL Proc. n° 8887.


169 ANTT/TSO-IL Proc. n° 2121.
170 Ibidem.
171 Ibidem.
172 ANTT/TSO-IL Proc. n° 2293.
173 Ibidem.

58
sódios bem privados. Em meio aos depoimentos direcionados às questões levantadas pelo réu
descobrem-se convivências e sociabilidades.174
A primeira interpelação feita pelos oficiais da Inquisição aos depoentes era se eles co-
nheciam os cristãos-novos que haviam embarcado para o Santo Ofício na última frota. Rara-
mente negavam ter notícia de que aquele seu conhecido era de origem judaica, como o fez um
Desembargador do Tribunal da Relação da Bahia, Xavier Lopes da Silveira, ao amigo Diogo
de Ávila Henriques que lhe frequentava a casa desde que chegou de Lisboa, em 1723, por re-
comendação escrita de amigos portugueses em comum. Silveira disse que “sempre o teve por
cristão-velho até ser preso”.175
A maior parte das testemunhas, todavia, afirmava conhecer e cumprimentar aqueles
cristãos-novos que os convocavam a depor em seus processos. Um tratamento cordial que não
rechaçava os interlocutores por sua origem étnica, até ao menos um deles ser levado aos cárce-
res da Inquisição, parece ter sido um costume corriqueiro à sociedade baiana setecentista em
se tratando da população cristã-nova e cristã-velha apreciada neste estudo.
As relações sociais delineadas pelos depoimentos de cristãos-velhos eram quase sempre
firmadas do lado de fora das casas, raramente guardando uma intimidade porta a dentro. Da
maioria desses relatos depreende-se que os contatos eram ocasionados por os verem andando
nas ruas, por os encontrarem em órgãos públicos da cidade ou casas de amigos em comum e,
sobretudo, por serem vizinhos.
A frequência com que se deparavam nas mesmas ruas, nos mesmos caminhos, nos mes-
mos lugares, criou-lhes o hábito de se cumprimentarem dando oportunidades de, vez ou outra,
conversarem. Relacionamentos que tiveram essa origem não se estenderam para além da ca-
maradagem de rua, como bem explicitou o sacerdote do hábito de São Pedro, João Rabelo de
Souza, limitando sua amizade com Antonio de Miranda às “ocasiões em que ia dizer Missa e
falava com ele acerca de seu negócio e trato de curtumes”.176
Outros cristãos-velhos, apesar de conhecerem muito bem os acontecimentos de domí-
nio geral da vida destes cristãos-novos, e por vezes algo da vida doméstica, a ponto de serem
nomeados para depor nas Contraditas, disseram não haver entre eles nenhum tipo de relação,
sequer se saudavam nas ruas.
A comunicação na vizinhança era um costume. Cristãos-velhos que depuseram no pro-
cesso de Antonio Cardoso Porto e Antonio de Miranda acentuaram as conversas entre vi-
zinhos, quase sempre direcionadas a negócios. Cristãos-velhos também relataram encontros
ocasionais com cristãos-novos que lhes desabafavam os problemas familiares, daí também di-
zerem conhecer sua vida íntima. Apesar de haver certa relação social, não tinham o hábito ou a
liberdade de se visitarem mutuamente em suas casas, reservando tal familiaridade àqueles com
os quais eram muito mais próximos.

174 Os cristãos-velhos acabavam sendo os porta-vozes do relacionamento com cristãos-novos, em decorrência de


todo um procedimento processual que levava estes a falar apenas da convivência com outros cristãos-novos, seja
na confissão formal seja nos artigos de defesa, a fim de mostrar cúmplices e inimigos. Os cristãos-velhos eram
as pessoas autorizadas pela Inquisição (Regimento de 1640) a ajuizarem os argumentos dos réus e daí pôde-se
abstrair o tipo de relacionamento que os aproximavam.
175 ANTT/TSO-IL Proc. n° 2121.
176 ANTT/TSO-IL Proc. n° 5002.

59
Em todos esses encontros as relações eram cordiais e nunca relatavam ofensivas ou dis-
córdias antes as reservavam para apontar as rivalidades entre os próprios cristãos-novos que
vieram a domínio público, como foi discorrido anteriormente. Em apenas um caso foi propa-
gado um comentário que comprometia a causa de um cristão-novo na Inquisição177.
Amizades com cristãos-velhos que gozavam de posição social privilegiada não foram
difíceis de encontrar dentre aqueles que apresentaram defesa. Nota-se o estreitamento dessas
relações nos casos em que seus amigos cristãos-velhos demonstravam boa vontade em benefi-
ciar-lhes, seja nas causas judiciais que impetravam no fórum civil, seja diante das autoridades
inquisitoriais, lhes confirmando os artigos de defesa, notando sua personalidade.
Joseph da Costa, capitão de navio e homem de negócios envolvido com o tráfico de es-
cravos, era amigo íntimo de Francisco Xavier da Silveira, possivelmente cristão-velho, que vivia
entre a Bahia e Portugal. Xavier da Silveira era o dono do navio negreiro que Costa comandava
em viagens da Bahia para Angola e Costa da Mina. Apesar de ter sido preso em 1754 por dever
dinheiro à Fazenda Real, em 1762, Xavier da Silveira assumiu o comando da Fortaleza de Aju-
dá. Com certeza era um homem de negócios com contatos na Coroa.178
Durante as viagens de Joseph da Costa era Francisco Xavier da Silveira quem atendia às
necessidades de sua família, pagando-lhes despesas, e também administrando os seus negócios
paralelos ao comércio de escravos. Firmaram uma sociedade, onde um cuidava dos interesses
do outro.
Uma amizade que merece apreciação especial foi aquela firmada por Antonio Cardoso
Porto e Veríssimo Manuel Robalo Freire, Juiz de Fora da Bahia, magistrado e fidalgo da Casa
do Rei. Estreitos laços os uniam desde que se conhecerem na nau que os trazia, a primeira vez
(1715), para a Bahia, a ponto deste Juiz tornar-se padrinho de seu primogênito. Disse Robalo
Freire que logo o “tomei como meu companheiro”179 quando se conheceram no navio.
A primeira sentença que Cardoso Porto obteve nos litígios impetrados contra o seu
sogro Luís Henriques fora dada por Robalo Freire (1727). Certamente contribuiu com sua
influência para o sucesso do companheiro nas demais querelas que estivessem fora de sua al-
çada. Quando interrogado pelos Inquisidores a respeito das inimizades cultivadas por Cardoso
Porto, somente não confirmou aquela com Francisca Henriques, sua sogra, o que aliás não foi
atestada por nenhuma das testemunhas.
Curioso nesta amizade é a coincidência de sobrenomes entre seu amigo Veríssimo Ro-
balo Freire e o seu Procurador no Santo Ofício, o Licenciado Jacinto Robalo Freire, ambos
naturais de Lisboa, presumindo-se parentes, quiçá irmãos. Relações diametralmente opostas
ligaram um cristão-novo a dois prováveis irmãos: um, funcionário da Coroa, amigo íntimo do
réu; outro, funcionário da Inquisição, que não levou até o fim sua tarefa de Procurador do réu
no Tribunal de Lisboa, pedindo dispensa, sem justificativa alguma, à Mesa do Santo Ofício, um
ano depois que assumiu a função na causa de Cardoso Porto.

177 Um boticário, Manuel Rabelo de Andrade, tendo se recolhido no engenho de Manuel Mendes Monforte em
Matoim, o ouvira proferir uma heresia e, “de tão escandalizado e admirado” que ficou, saiu a divulga-la e foi
denunciá-lo a um Comissário do Santo Ofício de Salvador. ANTT/TSO-IL Proc. n° 675.
178 VERGER, op. cit., p. 192, 198, 203.
179 ANTT/TSO-IL Proc. n° 8887.

60
Félix Nunes de Miranda também se valeu de amizades com figuras da governança usan-
do de sua influência para socorrer amigos cristãos-novos em querelas judiciais, como o caso
citado do roubo de escravos a Jerônimo Rodrigues. Foi por sua intervenção que o Vice-rei
Marquês de Angeja favoreceu Rodrigues.
Dentre os ilustres conhecidos de Diogo de Ávila Henriques, quando ainda morava em
Lisboa, estava um Secretário da Embaixada da China, Francisco Xavier de Bica, de quem foi
Procurador em uma causa judicial, chegando a frequentar sua casa. Na Bahia, seus amigos não
foram menos ilustres. Cita-se o desembargador Joseph Caminha Falcão e seu filho Ignácio
Diogo de Caminha; o desembargador da Relação da Cidade do Porto, Diogo Mendes Duro
de Esmeraldo, conhecera Ávila Henriques quando servia como Ouvidor Geral do Cível e Juiz
de Fora de Salvador, entre os anos de 1725 e 1727. Na função de Ouvidor foi requisitado por
ordem do Santo Ofício a fazer o inventário e o sequestro dos bens de Ávila Henriques. Outro
membro da Relação, agora da Bahia, o desembargador Xavier Lopes Vilela afirmou em seu
depoimento nas contraditas deste réu que desconhecia ser Ávila Henriques cristão-novo.
Sacerdotes, estudantes na Universidade de Coimbra e, sobretudo, funcionários de ór-
gãos judiciais em Salvador, estavam na sua lista de amigos e conhecidos. Nem todos, porém,
afirmavam particular amizade que extrapolasse o contato requerido por suas funções públicas.
Religiosos seculares e regulares vinculados à igreja da Sé da Bahia e autoridades leigas
conservaram estreito contato com Manuel Mendes Monforte por mais de vinte anos, cada um
deles. Conheceram Monforte desde sua chegada a Salvador, em 1698, o Mestre-Escola Domin-
gos Coelho de Lima, o Cura, e desembargador da Relação eclesiástica João Borges de Barros,
o Deão, e também o Provisor Sebastião do Vale Pontes, o cônego prebendado Francisco da
Rocha Sá. Dentre os leigos, os desembargadores da Casa da Suplicação de Lisboa, Luís da Costa
de Faria e André Leitão de Melo, este outrora desembargador do Tribunal da Bahia, e um alfe-
res do Regimento da Junta de Lisboa, que também residira em Salvador no começo do século
XVIII, Manuel Rodrigues da Costa.
Monforte ficou conhecido por estas pessoas em virtude de sua condição de médico,
mesmo não assistindo a todas elas. O Mestre-escola e Cura da Sé fez questão de salientar que
seu relacionamento não era meramente profissional por lhe ter cuidado de uma enfermidade e
a um sobrinho, mas também pessoal: “além de o tratar como um conhecido seu”.180 O cônego
prebendado, que o conhecia “por falar e conversar como médico público que era”,181 e o Deão
da Sé tornaram-se padrinhos de crisma, um do próprio Monforte e outro de um dos seus filhos.
Ambos lhe reservavam familiaridade. Frequentavam sua casa inclusive visitando-o quando do-
ente e reconheceram nele uma honestidade que louvaram em seus depoimentos.
Como morador na freguesia da Sé e seu paroquiano, era o Cura desta igreja, Domingos
Coelho de Lima quem acompanhava o cumprimento das obrigações religiosas de Monforte e
celebrava o batismo de seus filhos. A usual interlocução entre eles sempre culminava, segundo
o próprio Domingos, em matéria religiosa.
Manuel Mendes Monforte apresentou relações íntimas firmadas com um grupo social
diferenciado. Sua situação socioeconômica enquanto senhor de engenho, homem de grandes

180 ANTT/TSO-IL Proc. n° 675.


181 Ibidem.

61
negócios e médico notório na cidade, bem como sua filiação a algumas das principais irman-
dades de Salvador, dentre elas a do Santíssimo Sacramento da Sé, donde foi mordomo, talvez
o fizessem sobressair socialmente face aos demais cristãos-novos já citados que, dificilmente,
tinham comunicação com o alto escalão da Igreja.
Relações de compadrio foram salientadas nessas amostragens de convivência entre cris-
tãos-novos e cristãos-velhos. O compadrio era um comprometimento sócio religioso estabe-
lecido entre pais e padrinhos quando do batismo de crianças ou na crisma, entre o crismado
e o padrinho que gerava obrigações. Os padrinhos de dois dos três filhos de Antônio Cardoso
Porto foram o citado Juiz de Fora, Veríssimo Robalo Freire e, outro, o sacerdote do hábito de
São Pedro e vigário costado da freguesia e matriz de São Pedro, Rev. Francisco Pinheiro Bar-
reto, quem testemunhou no processo de Cardoso Porto dizendo-se “compadre do réu por lhe
ter batizado um filho”182 e seis anos depois se tornou Comissário do Santo Ofício na Bahia.183
Eram personalidades de destaque na sociedade baiana do início do século XVIII. Vale lembrar
que sacerdotes desta ordem religiosa secular eram também agentes da Inquisição que atuavam
nas diligencias inquisitoriais da Bahia como escreventes.
Esses exemplos demonstram que as relações sociais com cristãos-velhos, mesmo reli-
giosos, ocorriam em uma convivência íntima e amigável. Os depoimentos que essas pessoas
deram às autoridades inquisitoriais sobre o comportamento católico de cristãos-novos que os
apresentaram como testemunhas de defesa, sempre lhes eram favoráveis, mostrando-os como
bons católicos, ainda que afirmassem saberem da origem cristã-nova deles. As reflexões acerca
dos episódios estudados levam a considerar que, apesar de haver uma discriminação legal, a
documentação examinada revela que o preconceito não aparece com força no cotidiano sete-
centista da “cidade da Bahia”.
As relações sociais entre cristãos-novos e cristãos-velhos, ainda que não tenham sido
encontrados exemplos de casamentos entre eles, estavam firmadas em bases de amizade e vín-
culos de compadrio. Cristãos-novos, independentemente da posição socioeconômica que go-
zavam, tinham entre seu círculo de amizades figuras proeminentes da sociedade local, autori-
dades civis e mesmo religiosas, uns mais próximos outros mais distantes.

Participação em irmandades
Nos termos das instituições religiosas como as irmandades, a Santa Casa de Misericór-
dia parece ser a única a aplicar severamente o seu estatuto baseado na “pureza de sangue”, ainda
que não tenha encontrado informações sobre as demais. Cristãos-novos não eram admitidos
em seus quadros nem como irmãos nem como funcionários, sendo os candidatos submetidos
a investigações sobre sua ascendência étnico-religiosa.

182 ANTT/TSO-IL Proc. n° 8887.


183 Francisco Pinheiro Barreto recebeu o juramento de Comissário do Santo Ofício em 1737, na Bahia, diante do
antigo Comissário, João Calmon. MOTT, Luís. Um nome em nome do Santo Ofício: o Cônego João Calmon,
Comissário da Inquisição na Bahia Setecentista. Universitas, Revista da Universidade Federal da Bahia, n. 37, p.
15-31, jul./set. 1986. p. 21. SOUZA, Grayce M. B. Para remédio das almas: comissários, qualificadores e notários
da Inquisição portuguesa na Bahia colonial. Vitória da Conquista, BA: UESB, 2014.

62
Médicos como Francisco Nunes de Miranda ou o também senhor de engenho Manuel
Mendes Monforte estiveram excluídos dessa irmandade. Francisco ainda lhe prestou serviços
indiretamente atendendo um de seus filiados e enviando a cobrança de seus honorários à Santa
Casa. Monforte, que chegou a ser mordomo da irmandade da Catedral da Sé, principal igreja
da cidade, esteve distante de incorporar-se à Santa Casa de Misericórdia.
Após a realização do matrimônio prometido,184 Monforte fundou as bases para sua esta-
bilidade na elite baiana buscando reconhecimento social ao ingressar na irmandade do Santís-
simo Sacramento, uma das mais importantes da Bahia, vinculada à igreja Catedral da Sé e em
três outras menores.
Logo foi eleito mordomo para realização das comemorações da Semana Santa de 1701.
Nesta função, que obrigava seus participantes ao dispêndio de contribuições financeiras, Mon-
forte doou 500 mil réis. Nas irmandades de N. Sr.ª da Fé de Santo Antônio, também vinculada
à igreja da Sé, e de Santos Cosme e Damião, na igreja de N. Sr.ª da Palma, assumiu a função
de juiz no primeiro ano de sua filiação.185 Manuel Mendes Monforte contribuía para todas elas
com doações em dinheiro e patrocinava restaurações de peças sacras, chegando a pagar pelos
reparos na sede da irmandade de Santos Cosme e Damião.
É extremamente significativo que esse cristão-novo bem sucedido socialmente tenha se
tornado irmão da irmandade de N. Sr.ª do Rosário dos Pretos, única onde a presença de negros
era permitida. Monforte ingressou quase um mês antes de sua prisão pelo Santo Ofício (1721),
tempo que foi suficiente para filiar seus escravos e provar com isso, aos inquisidores, ser um
bom católico.
Contudo, não há notícias de que tenha participado do quadro de médicos da Santa Casa
de Misericórdia (que dominava a assistência médica nas colônias portuguesas). Tampouco
chegou a ocupar cargos ou exercer funções administrativas no Vice-reinado da Bahia. Até que
ponto ser cristão-novo o impediu obter livre trânsito nessas instituições?
Outro cristão-novo, um lavrador de pouca riqueza, Antônio da Fonseca, procurou inte-
grar-se à comunidade em que vivia em alguma região marginal ao Rio São Francisco, partici-
pando de três irmandades menores.186
Antônio foi membro da irmandade das Almas da Capela. Atuou como Procurador e
serviu às irmandades do Santíssimo Sacramento e N. Sr.ª do Carmo, situadas no interior da
Capitania, em uma fazenda de propriedade de João Calmon, Comissário do Santo Ofício na
Bahia, quem inclusive dirigiu diligências inquisitoriais contra o próprio Antônio da Fonseca.
O trabalho de Antônio nestas irmandades o tornou conhecido pela comunidade local
como um bom católico e um homem caridoso. Seu desprendimento canalizava-se aos cuida-
dos dos doentes e amparo a pobres e órfãos. Um dos seus vizinhos refere-se a ele dizendo aos
funcionários da Inquisição que “muitas vezes se conhecia por grande porque tirava de seus

184 É apropriado assinalar a conquista de prestígio social por Manuel Mendes Monforte. Ele chegou à Bahia em
1698, motivado particularmente pelo acerto de casamento com uma filha de seu tio que era senhor de engenho.
ANTT/TSO-IL Proc. nº 675
185 Respectivamente em 1699/1700 e 1711/1712.
186 ANTT/TSO-IL Proc. n° 10484.

63
filhos para dar aos pobres, sendo ele mesmo um”.187 Seria este o parâmetro de prestígio social
da comunidade em que vivia?

Um distanciamento da política local


É importante acrescentar que não houve subsídios, informações, que localizassem esses
cristãos-novos na vida política da Bahia no primeiro quartel do século XVIII. Um dos fatores
aventados para esse fenômeno, que contradiz a participação de cristãos-novos na política baia-
na dos seiscentos, é a sua intensa mobilidade pelo interior da Capitania como comerciantes,
mineradores ou lavradores afastados do centro urbano, ou a condição de serem majoritaria-
mente pessoas vinda de Portugal, que chegavam a todo momento e não tinham ainda a preten-
são ou a oportunidade de interferirem na governança local.
Desde o século XVI, cristãos-novos e cristãos-velhos aliavam-se na condução das dire-
trizes político-econômicas da Colônia. Facultados pelo domínio da agroindústria açucareira,
tornaram-se a “elite da terra”. Um rápido exemplo foi Heitor Antunes, um dos mais ricos e
prestigiados senhor de engenho do século XVI. Ao chegar à Bahia junto com Mém de Sá, de
quem era amigo particular, já trazia consigo o título de Cavaleiro da Casa Real.
Outro cristão-novo, esse de origem espanhola, foi Felipe de Guillem. Cavaleiro da Or-
dem de Cristo, residindo na capitania de Ilhéus desde antes da chegada de Tomé de Sousa,
Felipe foi o primeiro vereador da Câmara da Bahia logo após a sua criação, em 1550.188 Outros
cristãos-novos também ocuparam o cargo de vereança neste e no século seguinte, como Diogo
Muniz Teles, vereador por diversos anos e juiz ordinário.189
A atuação de cristãos-novos na vida política da Bahia ficou mais visível no século XVII.
Em seu estudo sobre os cristãos-novos da Bahia na primeira metade dos seiscentos, a historia-
dora Anita Novinsky pôde avaliar a atividade política desses indivíduos não apenas na Câmara,
como também enquanto elementos-chave no combate à invasão holandesa.190
Nessa época sobressaíram diversos cristãos-novos que, ao lado de cristãos-velhos eram
denominados “homens bons”, ou seja, detentores de honra e riqueza, exercendo influência di-
reta junto aos governadores-gerais na condução da política da Coroa na Colônia.
Um cristão-novo que teve um papel fundamental na Bahia seiscentista foi Diogo Lopes
Ulhôa. Considerado como homem de “maior conceito e experiência”, Diogo foi convocado di-
versas vezes pela Câmara para discutir assuntos referentes a impostos, preço do açúcar e outras
decisões de cunho econômico-financeiro.191 Aliás, o grande prestígio que Diogo Ulhôa con-
quistou junto ao governador-geral Diogo Luís de Oliveira (1627-1635), lhe rendeu inimizades
e apelidos irônicos como “mimoso” ou “conde-duque do Brasil”.192

187 187 ANTT/TSO-IL Proc. n° 10484.


188 SALVADOR, J. G. Os cristãos-novos, povoamento e conquista do solo brasileiro (1530-1680). São Paulo: Pioneira,
1986. p. 18, 114. RUY, Afonso. História da Câmara Municipal da Cidade do Salvador, Salvador: Câmara Municipal
de Salvador, 1996. p. 337.
189 Em 1625, 1629, 1636 foi vereador e em 1641 juiz ordinário. Ibidem, p. 337-340.
190 NOVINSKY, Anita. Cristãos-novos na Bahia: 1624-1654. São Paulo: Perspectiva, 1972.
191 Ibidem, p. 81.
192 Ibidem, p. 80 e 126.

64
Outro também mencionado como um dos “homens bons” da Bahia seiscentista que par-
ticipou ativamente das decisões da Câmara da cidade, desde 1626, foi Matheus Lopes Franco.
Próspero e proeminente membro da “elite da terra”, ingressar em sua família era um símbolo
de ascensão social. Assim, em fins do século XVII, a família Calmon aliou-se aos Lopes Franco
por matrimônio. Os Calmon eram conhecidos como cristãos-velhos e deles provem João Cal-
mon, Comissário do Santo Ofício na Bahia durante várias décadas do século XVIII.
Não se pode deixar de citar, para esse mesmo período, uma personalidade que teve papel
decisivo na condução da vida política da Colônia: o advogado Gonçalo Homem de Almeida,
que conquistou poder político tanto no Rio de Janeiro como na Bahia, aonde chegou em 1606.
No Rio de Janeiro foi ouvidor e cuidava dos negócios de Antônio Cardoso de Barros, filho do
governador Cristóvão de Barros. Na Bahia, foi procurador da Justiça eclesiástica, síndico da
Câmara e conselheiro do governador Diogo Luís de Oliveira.193 Gonçalo era irmão de Antônio
Homem de Almeida, um famoso professor da Universidade de Coimbra que foi queimado pela
Inquisição portuguesa como herege, cuja tragédia levou seus contemporâneos a chamá-lo de
Praeceptor Infelix.194
Um fato importante na história é que cristãos-novos fizeram parte das fileiras dos luso-
-brasílicos que defenderam a Bahia contra a invasão holandesa de 1624 e das posteriores ame-
aças. Alguns historiadores abordam o papel dos cristãos-novos nesse episódio como aliados
batavos, uma vez que esses ofereciam certa liberdade religiosa. Estudos sobre cristãos-novos,
no entanto, têm revelado que foi fundamental o empenho de cristãos-novos na reconquista da
Bahia e Pernambuco pelos portugueses.
Contribuíram não só financeiramente, doando recursos ou construindo navios, com
também doaram suas próprias vidas. Um deles foi Pero Garcia, senhor de três engenhos de
açúcar, morto em combate contra os holandeses. Em 1643, o rei D. João IV concedeu a sua filha
um prêmio pelo desempenho de seu pai durante a guerra. Outros também foram agraciados
com títulos de nobreza ou dinheiro.195
Quando Maurício de Nassau, sediado em Olinda, pretendia conquistar o Recôncavo
baiano, os já citados Matheus Lopes Franco e Diogo Lopes Ulhôa, dentre outros, por exemplo,
tiveram a iniciativa de construir, cada um deles, “lanchas para a defesa dos engenhos e proteção
do território”.196
Essa atitude, segundo demonstrou Anita Novinsky em seu citado estudo sobre cristãos-
-novos da Bahia seiscentista, contraria a tendência de muitos historiadores que, firmados em
estereótipos e preconceitos asseveram que esses indivíduos foram os maiores colaboradores
dos holandeses nos conflitos bélicos travados na Bahia e em Pernambuco.
No século XVIII, o destaque para o comércio sem, contudo, extrair a agroindústria açu-
careira do cenário econômico, fez ressaltar timidamente na vida política da Bahia, os homens
de negócios. Muitos, vinculados ao mercado internacional, pareciam voltarem-se mais para

193 NOVINSKY, Anita. Cristãos-novos na Bahia... op. cit. p. 123, nota 73.
194 Ibidem, p. 112.
195 SALVADOR, José Gonçalves. Os cristãos-novos: povoamento e conquista do solo brasileiro: (1530-1680). S.
Paulo: Pioneira, Ed. USP, 1976. p. 30.
196 Ibidem, p. 126.

65
seus empreendimentos comerciais, porém, aliados à “elite da terra”, seja por alianças matrimo-
niais ou por sociedade econômica, cresceram em sua força política.
Sem pertencerem ao quadro da Câmara da Cidade de Salvador, mas com contatos es-
treitos com personalidades da política baiana setecentista, pode-se citar Manuel Mendes Mon-
forte, médico e senhor de engenho, amigo de clérigos e desembargadores como o sacerdote do
hábito de São Pedro, Pe. Antônio de Vargas Cirne e os desembargadores Dr. André Leitão de
Melo, João Borges de Barros, Luís da Costa de Faria, como dito.
Sua projeção social na Bahia foi, certamente, favorecida pelo parentesco com um rico
senhor de engenho, mas também pela notoriedade que adquiriu como médico, tratando de
figuras importantes da sociedade e da gente comum, e como homem de negócios.
Ou ainda, o mercador Antônio Cardoso Porto, homem de não muitas posses, amigo
íntimo do juiz de fora, proeminente magistrado e fidalgo da Casa do Rei, Veríssimo Manuel
Robalo Freire, a quem fez padrinho de um de seus filhos. Os estreitos laços que os uniam fa-
voreceu Cardoso Porto em algumas causas litigiosas levadas a cabo na justiça cível da Bahia.
Esses exemplos pontuais, coletados em cada século da Bahia colonial, são uma pequena mos-
tra da atuação política conjunta e sociabilidades existentes entre cristãos-novos e cristãos-velhos.
Sobre os cristãos-novos setecentistas, pode-se dizer com boa vontade que, ainda que se mantives-
sem distantes da oficialidade de uma vida política pública na Câmara da “cidade da Bahia”, estavam
perto dos representantes da Coroa. Talvez suas vozes e ideias pudessem ser ouvidas.
Os cristãos-novos não formavam uma comunidade fechada em si mesma. Estavam
vinculados, associados, sociabilizando-se com o resto da população baiana, especialmente a
cristã-velha que, para a Inquisição, teria o papel de delatora. Não há o que objetar contra esses
exemplos de cordialidade nas relações pessoais entre esses segmentos populacionais. Contudo,
não se pode generalizar essa sociabilidade sem perigo de afirmar inexistência de um preconcei-
to latente contra cristãos-novos, demonstrado por algumas instituições que não permitiam sua
participação, mas no âmbito da população havia sim certa cordialidade cotidiana.

66
Capítulo II

Atividades socioeconômicas
e riquezas
OCUPAÇÕES ECONÔMICAS

Um dos parâmetros para se avaliar a incorporação dos cristãos-novos à sociedade baiana sete-
centista é observar o engajamento profissional na conjuntura econômica vigente e as relações
socioeconômicas estabelecidas com na dinâmica colonial além das operações mercantis esta-
belecidas com cristãos-velhos. A historiadora Kátia Mattoso, estudando os vinte inventários
de cristãos-novos presos pela Inquisição, publicados por Anita Novinsky,197 mostrou que eles
estavam integrados e adaptados à conjuntura econômica da Bahia setecentista. Resta agora
saber se ela, de fato, ocorreu e como ocorreu. Assim, é possível conhecer tanto a dinâmica
dessas pessoas face à economia colonial e baiana, como as solidariedades e rivalidades entre
os próprios cristãos-novos e entre estes e os cristãos-velhos, uma vez que o contato entre esses
segmentos populacionais era, de certa forma, regulado e observado pela Inquisição.
O cenário econômico a Capitania da Bahia, durante as primeiras décadas do século
XVIII, mostra uma indústria açucareira concentrada no Recôncavo ainda se mantendo no
ranking de maior produtora do Brasil, mesmo tendo sofrido uma retração na produtividade
comparativamente ao início dos seiscentos.198 O avanço do comércio ultramarino, abarrotando
o porto com navios e mercadorias, agitava a praça de Salvador atraindo pequenos e grandes
comerciantes interessados principalmente em escravos e tecidos. O ouro extraído das minas
do interior, como Jacobina e Rio de Contas, promovia uma conexão entre mineiros e comer-
ciantes, exigia uma intensa relação de compra e venda de escravos, suprimentos tecnológicos,
vestuário e alimentos corroborando para o fomento de uma economia intracolonial.
Nesse panorama, apresentado em linhas gerais, a maioria dos cristãos-novos identificada
por este estudo, residindo temporária ou permanentemente seja em Salvador ou no interior da
capitania desde 1700 a 1748, aparece desempenhando mais de uma atividade econômica. Para os
prisioneiros da Inquisição, as diferentes ocupações que lhes foram atribuídas pelos seus denun-
ciantes, ou mesmo aquelas que vinham registradas nas capas dos processos inquisitoriais, não
correspondiam, em certos casos, à qual eles próprios discorriam no correr dos interrogatórios.199
Observando-se o fato da denúncia referir-se a episódios ocorridos até mesmo décadas
antes do momento da prisão do réu investigado, é aceito o argumento de que as atividades
econômicas que lhes conferiam foram exercidas em algum momento de suas vidas, ao me-
nos durante o tempo que tiveram contato com seus denunciantes. Mesmo sem que se possa
detectar aquela ocupação profissional desempenhada mais amiúde, dada a ausência de infor-
mações tornando inexequíveis investigações mais profundas sobre suas vidas econômicas, não
há senão a alternativa de considerar igualmente pertinentes todas as atividades atribuídas nas

197 MATTOSO, Kátia. Inquisição: os cristãos novos da Bahia no século XVII. Ciência e Cultura, n. 4, v. 30, p. 415-
427, abr. 1978. NOVINSKY, A. Inquisição I: inventários de bens confiscados a cristãos novos. Lisboa: Imprensa
Nacional; Casa da Moeda, 1978.
198 O brasilianista Stuart Schwartz considera que esta posição da indústria açucareira da Bahia foi conquistada
nos anos de dominação holandesa em Pernambuco, quando engenhos foram destruídos e seus proprietários
retiraram-se para a capital da Colônia fazendo lá novos investimentos. SCHWARTZ, Stuart. Segredos internos:
engenhos e escravos na sociedade colonial (1550-1835). São Paulo: Cia. das Letras, 1988. p. 157, 158.
199 Especialmente nos interrogatórios para formação do Inventário e, inclusive, em outras sessões do processo,
como as Contraditas.

69
confissões de seus delatores. Considera-se, portanto, válidas, todas as ocupações econômicas
pelas quais os réus ficaram conhecidos.
Procurando descortinar as ocupações econômicas de um maior número possível de
cristãos-novos e observar, mais amplamente, em que setores essas personagens atuaram, foi
preciso abranger a população cristã-nova para além daquela não citada nos processos inqui-
sitoriais pesquisados, mas registrada em outras fontes inquisitoriais publicadas ou não, desde
que assistissem200 ou residissem na Capitania da Bahia.201
A preocupação inicial foi, portanto, reconhecer entre os diversos ofícios aquele que po-
deria ser classificado como o principal – ou seja, de dedicação exclusiva. Assim, chegar-se-ia
perto de uma definição de grupos socioeconômicos com perfis mais ou menos delimitados, o
que permitiria uma avaliação menos complexa sobre a incorporação à sociedade em que viviam.
Não obstante, dada a dinâmica do que foi a economia colonial, sobretudo na Bahia do iní-
cio do século XVIII, e nela a expansão do capitalismo mercantil, tornou-se desnecessário classi-
ficar as atividades em principal ou secundária pois, ao constatar-se que a maioria se dedicava a
várias ocupações ou era apresentada por seus denunciantes exercendo concomitantemente di-
ferentes atividades, pode-se dizer que, entre o grupo de cristãos-novos pesquisado, todos os in-
divíduos estavam envolvidos em ocupações que circunstancialmente eram as mais rendosas ou
convenientes ao seu próprio momento econômico e financeiro ou às contingências da Colônia.
Que dizer, por exemplo, do médico Manuel Mendes Monforte, que atuava igualmente no
exercício da medicina, nos negócios de seu engenho de açúcar e no comércio internacional? Cer-
tamente, as transações com o açúcar e outras mercadorias eram-lhe mais lucrativas que o atendi-
mento a doentes. Classifica-lo-ia-se como médico, senhor de engenho ou homem de negócios? É
mais verossímil ao mundo colonial considerá-lo influente nestas três esferas profissionais.
Essa diversidade do que foi a economia colonial favorecendo a atuação simultânea em
diversos setores também permitia o desempenho de uma única atividade. Tal foi o caso de arte-
sãos, mineradores, lavradores e bacharéis formados pela Universidade de Coimbra – médicos,
advogados. Porém, nada impedia que, eventualmente, essas atividades estivessem associadas à
outra. Em geral, práticas comerciais foram as mais usuais como alternativa econômica ocasio-
nal aos que se definiam em apenas uma única ocupação.

200 “Assistir” significando “estar presente”. BLUTEAU. Diccionario da lingua portugueza. Tomo I. Lisboa: Officina
de Simão Thaddeo Ferreira, 1789, p. 132. Compreende-se nesta pesquisa o “viver ou estar temporariamente em”.
201 Sobre essas fontes, com suas respectivas referências bibliográficas nas “Referências”, destacam-se, sobretudo
NOVINSKY, Anita, op. cit.; NOVINSKY, Anita. Inquisição: rol dos culpados: fontes para a história do Brasil: séc.
XVIII. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1992; NOVINSKY, Anita. Inquisição: prisioneiros do Brasil séculos
XVI-XIX. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 2002; NOVINSKY, Anita. Gabinete de investigação: uma “caça aos
judeus” sem precedentes. São Paulo: Humanitas; FAPESP, 2007. Fontes inéditas para a História do Brasil e de
Portugal – IV; onde estão listados cristãos-novos presos e denunciados que viveram na Bahia durante o século
XVIII. Também CARVALHO, Flávio Mendes. Raízes judaicas do Brasil: o arquivo secreto da Inquisição. São
Paulo: Nova Arcádia, 1992; AZEVEDO, J. Lúcio de. Notas sobre o Judaísmo e Inquisição no Brasil. RIHGB, Rio
de Janeiro, tomo 91, v. 145, p. 680 e segs, 1926; VARNHAGEN, F. A. Excertos de várias listas de condenados pela
Inquisição de Lisboa, desde o ano de 1711 ao de 1767 compreendendo só brasileiros ou colonos estabelecidos no
Brasil. RIHGB, tomo VII, 1931, p. 54-86; WOLF, Egon; WOLF, Frieda. Dicionário Biográfico I: judaizantes e judeus
no Brasil: 1500-1808. Rio de Janeiro: IHGB, 1986; GUERRA, Luís de Bívar (Org.). Inventário dos processos da
Inquisição de Coimbra (1541-1820). Paris: Fundação. Calouste Gulbenkian; Centro Cultural Português, 1972. 2 v.

70
As diversas atividades econômicas e o comércio
Somam-se 174 cristãos-novos localizados em todas as fontes consultadas. O primeiro
passo para o desenvolvimento desta matéria foi distingui-los entre presos e denunciados e ela-
borar quadros das ocupações por eles desenvolvidas, discriminando-as conforme as múltiplas
designações com as quais foram identificados.
Os quadros seguintes apresentam distintamente os presos e os denunciados. Os primeiros
são citados nominalmente (Quadro 1), pois são em torno de seus processos inquisitoriais que
se fundamentam as considerações apresentadas. Os denunciados estão separados entre aqueles
mencionados nos processos pesquisados (Quadro 2) e os encontrados em outras fontes inquisi-
toriais que foram impressas (Quadro 3), por uma facilidade metodológica em lidar com os dados.

Quadro 1 – Ocupação econômica dos presos


Nome dos presos Ocupações econômicas
1 Álvaro Ferreira da Silva Cirurgião das naus
2 Antonio Cardoso Porto Mercador
3 Antonio da Fonseca Lavrador de roça, mandioca, criador de gado, tratante
4 Antonio Fernandes Pereira Mineiro
5 Antonio Lopes da Costa Homem de negócio; escrivão de nau e homem do mar.
6 Antonio de Miranda Curtidor
7 Antonio Roiz Garcia Homem de negócio
8 David de Miranda Homem de negócios, tratante, rendeiro
9 Diogo de Ávila Homem de negócio
10 Diogo de Ávila Henriques Homem de negócio; procurador de causas
11 Diogo Henriques Ferreira Homem de negócio e lavrador de cana
12 Félix Nunes de Miranda Homem de negócio, tratante, contratador de azeite, vive de seu
negócio, dono de venda de azeite de peixe
13 Francisco Nunes de Miranda Médico
14 Gaspar Henriques Mineiro e mercador
15 Ignácio Cardoso de Azeredo Dono de partido de cana e advogado
16 Jerônimo Rodrigues Mineiro, tratante
17 João da Cruz Curtidor, mineiro, vive de seu negócio, tratante, mercador
18 João de Morais Montesinhos Tratante, foi escrevente de um tabelião.
19 Joseph da Costa Homem de negócio e capitão de navio, comissário para Angola
20 Manuel Mendes Monforte Médico, senhor de engenho e homem de negócios
21 Manuel Nunes da Paz Homem de negócio, mineiro, tratante, mercador
22 Manuel Nunes Sanches Mineiro, lavrador de milho
23 Miguel Nunes de Almeida Tratante, mineiro, tratante para Minas
24 Pedro Nunes de Miranda Lavrador de milho, mercador, tratante
25 Simão Rodrigues Nunes Meirinho
26 Thomas Pinto Correia Tratante
Fonte: ANTT/TSO-IL Procs. números: 2459, 8887; 10484, 10481, 6540, 5002, 6292, 7489, 7484, 2121, 9130, 2293,
1292, 6486, 5447, 10003, 9089, 11769, 10002, 675, 9542, 11824, 9248, 9001, 1001, 1004, respectivamente.

71
Quadro 2 – Ocupação econômica dos denunciados
Número de denunciados por
Ocupação econômica
ocupação econômica
Comerciantes (homens de negócios, mercadores, pequenos
comerciantes, lojistas, tratantes, tendeiros, caixeiros, contratadores). 58
Cirurgião 1
Artes e Ofícios (curtidor de couros, ourives, ferrador). 3
Dono de estanco de azeite de peixe 1
Religioso (ermitão – cuida de uma ermida) 1
Estudante na Universidade de Coimbra 3
Lavrador (cana, tabaco, milho, roça) 5
Senhor de Engenho 2
Advogado 2
Médico 1
Mestre de armas, esgrimidor. 1
Mineiro 5
Requerente de causas 1
Militar (soldado) 2
Sem ofício 7
Total 93
Fonte: ANTT/TSO-IL Procs. números: 2459, 8887; 10484, 10481, 6540, 5002, 6292, 7489, 7484, 2121, 9130, 2293,
1292, 6486, 5447, 10003, 9089, 11769, 10002, 675, 9542, 11824, 9248, 9001, 1001, 1004, respectivamente.

Quadro 3 – Ocupação econômica dos citados em fontes publicadas


Número de denunciados por
Ocupação econômica
ocupação econômica
Advogado 1
Médico 2
Boticário 1
Artes e ofícios (cordeiro, músico) 2
Militar (capitão de cavalos, de fortaleza, soldado) 4
Comerciantes (homens de negócios, mercadores, pequenos
comerciantes, lojistas, tratantes, vendeiros, tendeiros, caixeiros,
contratadores) 25
Senhor de Engenho 4
Lavrador (cana, tabaco, milho, roça) 4
Mineiro 1
Religiosos (sacerdote do hábito de São Pedro) 4
Vive de mandar fazer casas p/ alugar 1
Vive de pescarias 1
Sem ofício 8
Total 58
Fontes202

202 Fontes listadas em nota 2.


72
Ressalta-se que 13 dos denunciados nos 32 processos analisados foram presos pela In-
quisição e tiveram seus inventários publicados.203 Sobre esses, como seus negócios e bens são
avaliados neste capítulo, constrói-se um quarto quadro, não sendo válido para o cômputo das
ocupações econômicas, já que estas estão inseridas nos Quadros 2 e 3.

Quadro 4 – Ocupação econômica dos presos com inventários publicados


Nome dos presos Ocupação econômica
1 Antônio de Sá de Almeida Tratante
2 Antonio do Vale de Mesquita1 Mercador, contratador p/ Minas.
3 Diogo Nunes Henriques2 Lavrador de tabaco, dono de fazenda, contratador dos
dízimos Reais, mercador, tratante nas Minas, mineiro.
4 Diogo Rodrigues3 Tendeiro
5 Domingos Nunes4 Tratante
6 Duarte da Costa da Fonseca5 Mineiro
7 Francisco Ferreira Isidro6 Tratante, homem de negócio, mineiro.
8 Francisco Rodrigues Dias Curtidor
9 José da Fonseca Caminha Mineiro
10 Luís Mendes de Sá Tratante ou sem ofício
11 Manuel Lopes de Carvalho7 Sacerdote do hábito de São Pedro
12 Manuel Lopes Henriques Senhor de Engenho, homem de negócios.
13 Marcos Mendes Sanches Lavrador de milho
Fontes204
Notas:
1 Morador no Rio de Janeiro, embora “assistisse” na Bahia, onde tinha constante contato com mercadores aí
residentes. ANTT/TSO-IL Proc. nº 4440.
2 Em 1689 já se encontrava na Bahia; desde 1716, aproximadamente, vivia em Ouro Preto. ALMEIDA, A. A.
Marques (Dir.). Dicionário Histórico dos Sefarditas portugueses. Lisboa: Campo da Comunicação; Cátedra de
Estudos Sefarditas A. Benveniste, 2009. p. 323-324.
3 Pode ser o cristão-novo conhecido como Dioguinho Hebreu, cujo processo inquisitorial está registrado em
ANTT/TSO-IL Proc. nº 5336, como sendo morador na Bahia. Foi preso em 1712 quando estava no Rio de
Janeiro. ALMEIDA, A. A. Marques, op. cit., p. 603-604.
4 Viveu em Ouro Preto, e assistiu na Bahia, onde tinha negócios. Ibidem, p. 489-490.
5 Quando preso, em 1735, vivia no Rio de Janeiro e possuía negócios na Bahia. Ibidem, p. 272-273.
6 Quando preso, em 1726, morava em Ribeirão do Carmo, hoje Mariana, Minas Gerais. Ibidem, p. 350-351
7 A origem de Manoel Lopes de Carvalho é controversa. Todavia, foi processado e condenado à morte por ser
judaizante; morreu dizendo-se judeu. GONÇALVES JUNIOR, Adalberto. No ventre da baleia: o mundo de um
padre judaizante no século XVIII. 2006. Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia e Ciências
Humans, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006.

203 NOVINSKY, Anita. Inventários de bens confiscados a cristãos novos: fontes para a história de Portugal e do
Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 1976.
204 Os cristãos-novos apresentados neste quadro não tiveram seus processos inquisitoriais consultados, apenas o
foram seus Inventários publicados por NOVINSKY, Anita, op. cit., p. 59, 63, 89, 93, 96, 100, 111, 117, 158, 176,
196, 191, 215, respectivamente; e também pelas anotações em ALMEIDA A. A. Marques, op. cit., p. 132, 323-324,
603-604, 489-490, 272-273, 350-351.

73
Esses dados expressam a flexibilidade de atuação econômica dos homens desta época,
uma consequência do próprio sistema capitalista comercial e do papel das Colônias ultrama-
rinas neste mesmo sistema.205 As diferentes atividades econômicas eram exercidas simultanea-
mente e, em certo sentido, dependiam umas das outras.
Tomando o comércio como referência ocupacional dos cristãos-novos da Bahia setecen-
tista, uma vez que 59,88% dos investigados podem ser considerados comerciantes, o Quadro 5
aponta para as diversas ocupações econômicas exercidas concomitantes à mercancia e apresen-
ta também o número absoluto de indivíduos em cada uma delas. É preciso, porém, atentar para
o notório fato de que muitos participam, ao mesmo tempo, de mais de uma dessas variantes.

Quadro 5 – Comércio e outras ocupações econômicas – exercício simultâneo


Número relativo de
Comércio e outras atividades econômicas
cristãos-novos
Navegação:
Capitão de navio 2
Escrivão de nau 1
Agricultura:
Lavradores 9
Senhor de engenho 2
Dono de roça ou fazenda 2
Pecuária:
Criador de gado 1
Vaqueiro 1
Mineração 17
Artes e ofícios:
Curtidor de couro 2
Militar:
Soldado 1
Capitão-mor 1
Medicina 1
Atividades não classificadas formalmente:
Carcereiro 1
Procurador de causas 1
Escrevente de tabelião 1
Rendeiro 1
Contratador de dízimos reais 1
Comissário para Angola 1
Fonte: ANTT/TSO-IL Procs. números: 2459, 8887; 10484, 10481, 6540, 5002, 6292, 7489, 7484, 2121,
9130, 2293, 1292, 6486, 5447, 10003, 9089, 11769, 10002, 675, 9542, 11824, 9248, 9001, 1001, 1004.

205 Embora hoje considere também que a duplicidade de ocupações econômicas fora um reflexo da visível dinâmica
mercantil essencialmente intracolonial, atendente às demandas internas da América portuguesa.

74
Dentre esses cristãos-novos denunciados, 40,11% estavam envolvidos exclusivamente
em uma única atividade, apresentada como dedicação exclusiva, ainda que sobre ela o comér-
cio seja inerente, como no caso dos produtores agrícolas, os artesãos, os mineiros e mesmo
aquele que vivia da pesca. O Quadro 6 traz a indicação quantitativa, incluindo também aqueles
que aparecem sem ofício declarado.

Quadro 6 – Presos e denunciados exclusivos a uma única atividade econômica


Ocupação econômica Número de cristãos-novos
Advogado 4
Médico 4
Boticário 1
Cirurgião 2
Agricultores:
Lavrador (cana, tabaco, milho) 7
Senhor de engenho 5
Contratador de canas 1
Mineiro 7
Militar
Capitães de cavalo 1
Capitães de fortaleza 1
Soldado 4
Religiosos
Sacerdotes do hábito de São Pedro 3
Ermitão (cuida de ermida) 1
Artes e Ofícios
Curtidor de couro 2
Ferrador 1
Ourives 1
Cordeiro 2
Músico 1
Estudante na Universidade de Coimbra 3
Meirinho 1
Requerente de Causas 1
Mestre de armas, esgrimidor 1
Manda fazer casas para alugar 1
Pescador 1
Sem ofício declarado 15
Total 71
Fonte: ANTT/TSO-IL Procs. números: 2459, 8887; 10484, 10481, 6540, 5002, 6292, 7489, 7484, 2121,
9130, 2293, 1292, 6486, 5447, 10003, 9089, 11769, 10002, 675, 9542, 11824, 9248, 9001, 1001, 1004.

75
Ora, antes de procurar conhecer a movimentação desses indivíduos no desempenho de
suas atividades – tema discutido na segunda parte deste capítulo – é preciso discorrer sobre o
que cada setor econômico representava para a Capitania da Bahia durante o início do século
XVIII.

O contexto das ocupações econômicas na Bahia setecentista


Na virada do século XVII para o XVIII, comércio e mineração dividiam espaço com a
indústria açucareira. Esta, no entanto, viu retomado o seu fôlego produtivo ainda que não na
mesma intensidade que a fez perdurar até a crise de 1670-1680. À cana-de-açúcar vinculava-se
o tabaco, moeda de troca por excelência da mão de obra escrava. O ouro, monopólio portu-
guês, que agitou a política com a Inglaterra fazendo desenvolver as regiões auríferas, levou para
aí o comércio em larga escala.
Senhores de engenho formavam a elite econômica e social da Colônia. A indústria açu-
careira que dirigiam, neste momento ainda em forte concorrência com as Antilhas, continuava
a alimentar a Europa. Proprietários de terra, de escravos e do açúcar atuavam também no
comércio engajados na exportação das safras e importação de mão de obra, além de outras
mercadorias que passaram a fazer parte, mais amiúde, do seu rol de negociações.
Os lavradores eram produtores agrícolas de menor porte e muitos deles estavam sob
dependência dos senhores de engenho, no que concerne à disponibilidade de terra para tra-
balhar. Distribuíam-se em diferentes categorias conforme a posse da terra e a especialização
do cultivo. Podiam ser donos de suas próprias fazendas e sítios e, com isso, negociar livre-
mente o total da colheita. Esses eram considerados bem-sucedidos e, às vezes, chegavam a
aproximar-se, relativamente, do perfil socioeconômico dos senhores de engenho. Lavradores
de cana e de tabaco eram, usualmente, donos de terra e estavam hierarquicamente acima
dos lavradores de outras culturas. Lavradores sem-terra, em contrapartida, pagavam para
desenvolver sua plantação, entregando uma porcentagem da safra a seu concessionário.206
Diferente desses eram os donos de partido de cana, cuja condição de arrendatários de terra
dava-lhes maior liberdade de lucro.
Os variados plantios também foram levados em conta na definição das categorias de
lavradores. Encontravam-se na Colônia e dentre os cristãos-novos já apresentados nos qua-
dros, lavradores de cana, lavradores de tabaco e lavradores de roça. Estes últimos eram tam-
bém qualificados de acordo com o produto cultivado, sendo então denominados lavradores
de milho, de mandioca ou ainda de subsistência, o que subentende lavradores de diversos
gêneros.
Os proprietários de terra, plantadores de tabaco e, inclusive, de cana-de-açúcar eram
mais destacados social e economicamente que os plantadores de cereais – “lavradores de roça”
– voltados para a cultura de subsistência e consumo local. A exportação dos produtos aproxi-
mava aqueles agricultores aos senhores de engenho e homens de negócios. Podiam inclusive

206 Schwartz diz que esta porcentagem chegava a ser até metade da produção total. E, se o senhor da terra ainda
assumisse outras despesas do lavrador na comercialização da cana, recebia também parte dos subprodutos
extraídos. SCHWARTZ, Stuart, op. cit., p. 27, 28.

76
ser considerados “mercadores-agricultores” e, neste caso, estariam dentre os homens ricos da
Colônia. Intermediavam estes dois extremos os pequenos agricultores, senhores de suas terras
e colheitas.207
Para a economia baiana a lavoura ocupou um espaço fundamental no abastecimento de
gêneros à cidade de Salvador. Contudo, a produtividade não era suficiente para atender toda
a demanda local que então passava a depender de cereais e carnes vindos do sul da capitania,
de capitanias do sul e mesmo de Portugal, a exemplo da farinha de trigo (ou farinha do reino,
como se diz ainda hoje no Nordeste), registrada na contabilidade de homens de negócios como
mercadoria para consumo próprio.
Paralelo a essas práticas agrícolas, o comércio vinha se firmando cada vez mais e teve
na capital da Colônia seu polo de difusão mais movimentado. A Bahia exercia uma grande
penetração comercial de norte a sul do Brasil, sendo destinada às Minas a maior parte das mer-
cadorias negociadas por sua população.208 A extração aurífera e diamantífera requeria das capi-
tanias portuárias a importação de seus suprimentos – sejam tecnológicos e humano, alimentar
e vestuário. Os negócios empreendidos giravam em torno da redistribuição de tecidos, gêneros
alimentícios, sem falar em escravos, instrumentos de produção e ainda outras mercadorias de
menor consumo, movimentando assim o comércio intracolonial.
Tais artigos provinham não só da metrópole e colônias africanas, como de outros reinos,
principalmente Inglaterra e França. Alimentos e couro eram também adquiridos no interior
da capitania e na vizinha Porto Seguro. Farinha de mandioca, grãos, carnes supriam a deman-
da interna. As exportações, não é novidade, supriam Portugal e costa da África com açúcar e
tabaco e, pouco antes de 1700, passaram a incluir ouro e pedras preciosas. Comércio legal e
contrabandista eram parceiros. A alta de impostos, a impossibilidade de negociar diretamente
com mercadores europeus de além-Pirineus, incentivou comerciantes e mineradores do Brasil
a desviarem-se do controle do Estado.

O comércio
Diante de um cenário econômico mundial de supremacia do capitalismo mercantil, a
Capitania da Bahia, e nela a cidade de Salvador, fez destacar as práticas comerciais – em qual-
quer ramo e extensão – como atividade mais exercida pela população em geral. Os cristãos-
-novos foram também os operadores deste sistema econômico na América portuguesa e os
contatos internacionais que estabeleceram, não apenas com Portugal, favoreceram o desenvol-
vimento da capital da colônia, onde muitos passaram a residir permanentemente.

207 FLORY, Rae J. D. Bahian society in the mid-colonial period: the sugar planters, tobacco growers, merchants and
artisans of Salvador and the Reconcavo, 1680-1725. 1978. Tese (Doutorado) – University of Texas, Austin, 1978.
p. 193-194.
208 O comércio entre Bahia e Minas esteve quase paralisado entre 1702 e 1711 por regulamentações previstas
no Regimento das Minas. Anulado este impedimento, a Bahia passou a ser um dos principais fornecedores de
tecidos e outras mercadorias para as Minas Gerais, ao lado, claro, do Rio de Janeiro. ZEMELLA, Mafalda P. O
abastecimento da Capitania das Minas Gerais no século XVIII. 2. ed. São Paulo: HUCITEC; EDUSP, 1990. p. 79.
(Estudos Históricos; v. 19). Ver também FURTADO, Júnia F. Homens de negócio: a interiorização da metrópole e
do comércio nas Minas setecentista. São Paulo: HUCITEC, 1999.

77
Os comerciantes eram, sem dúvida, a força motriz da economia baiana dos setecentos.
Eram eles que detinham o capital investidor seja para grandes, médios ou pequenos empreen-
dimentos. Juntos a senhores de engenho fizeram grandes parcerias. Anita Novinsky ressalta
que o comerciante da América portuguesa, no século XVIII, atuava “tanto na esfera da produ-
ção como nas transações com o estrangeiro ou ativando o comércio interno”.209
O primeiro embate trazido a essa matéria são as várias classificações dos tipos de co-
merciantes. Em um estudo sobre a economia portuguesa ultramarina no século XVII, Frédéric
Mauro delineou três tipos de mercadores que podem ser aplicados como paradigma de obser-
vação àqueles estabelecidos na Colônia americana por se tratar de economias interdependentes
que, pode-se dizer, tiveram os mesmos agentes.210
Encontram-se nas considerações deste historiador os “mercadores-banqueiros” ou
“grandes financistas”, como ele prefere denominar o rico investidor que, pelo comércio de-
sempenhado em ampla escala gerava o capital a ser utilizado nas iniciativas privada ou estatal.
Este tipo não foi encontrado dentre os cristãos-novos da Bahia setecentista se comparados
aos exemplos que referenciam suas conclusões. Talvez como “pequeno mercador-banqueiro”
encontre-se Manuel Mendes Monforte, senhor de engenho e homem de negócios, já mencio-
nado, que também emprestava dinheiro a juros.
Outra classificação é “grandes mercadores”, aqueles invariavelmente inseridos na im-
portação e exportação de âmbito local, intracolonial ou ultramarino. Detêm também um alto
capital circulante e influentes contatos comerciais nas praças europeias onde atuavam.
Por fim, o “mercador médio” dedicado ao comércio de determinados artigos, mas nego-
ciando ocasionalmente muitos outros. Seu capital é inferior aos demais, contudo, desenvolve
fortuitamente transações internacionais avultadas. Perto deles estão os lojistas ou pequenos
mercadores que suprem a demanda retalhista local.
Na capital da Colônia, os pequenos comerciantes estavam voltados para o consumidor
varejista, negociando em estabelecimentos comerciais ou nas ruas da cidade como ambulantes.
Podem ainda estar incluídos nesta categoria aqueles que faziam da compra e venda uma prática
ocasional, o que com certeza atingia a população baiana em geral.
Os mercadores, por sua vez, assim como os tratantes, encontram-se entre os “merca-
dores médios” de que fala Frédéric Mauro.211 Atuavam em menor proporção que os homens
de negócios na exportação e importação e, na maioria das vezes, adquiriam suas mercadorias
entre os homens de negócios ou diretamente aos produtores agrícolas. Comprando no atacado,
repassam-nas aos comerciantes de loja e outros mercadores que atendiam o mercado retalhista.
Os comerciantes de loja estavam firmados em casas comerciais atendendo a população local.
O tratante, por seu turno, foi uma designação específica atribuída ao mercador de es-
cravos que operava no mercado interno à Colônia, adquirindo-os e repassando-os em algumas

209 Traduzido pela autora. “[…] tanto en la esfera de la producción como en las transacciones con el extranjero o
activando el comercio interno”. NOVINSKY. La Inquisición y la burguesía brasileña (s. XVIII). CHELA, Cusco,
n. 4, p. 71, 1989.
210 MAURO, Frédéric. Nova História, Novo Mundo. São Paulo: Perspectiva, 1969.
211 MAURO, op. cit., p. 132, 133.

78
dezenas.212 Redundante, portanto, seria a forma “tratante de negros”, como mostram os quadros
apresentados. A incidência, no entanto, com que este termo aparece nas fontes pesquisadas,
especificando o trato com mercadorias secas e molhadas, e não exclusivamente escravos, induz
à compreensão de tratante como sinônimo de mercador.213
Às vezes, “tratante” é definindo como “tratante de mercearia”, “tratante de diferentes
gêneros” ou ainda “tratante de gado”. Foge assim de uma acepção mais restrita, talvez porque
todos negociassem as mercadorias que aparecessem, não apenas escravos. Mercadores e tratan-
tes que transportavam suas mercadorias para outras regiões eram denominados “comboieiros”
ou “carregadores”.
Estes foram os tipos de comerciantes mais comuns na população identificada. Homem
de negócio, mercadores, tratantes e comerciantes de loja, são acepções definidas de acordo
com o ramo, extensão de negócio desenvolvido e cabedal disponível. As várias designações que
recebiam estavam conforme a natureza do negócio exercido em momento determinado.
Muitos dividiam outras ocupações econômicas com a mercancia e por ela ficaram conheci-
dos pelos seus denunciantes. A liberdade de ir e vir, um entrosamento entre a oferta e a procura, a
facilidade em comprar e vender, ampliou a prática comercial na Bahia neste início de século XVIII,
que já era uma atividade corriqueira aos moradores da capital da Colônia desde o século XVI.
Diante dos casos que estudou, Mauro concluiu que todos os comerciantes empreendiam
em maior ou menor escala o mesmo tipo de comércio, ou seja, atuavam tanto no mercado
atacadista como retalhista, estavam envolvidos em exportações e importações quaisquer que
fossem suas dimensões e, desempenhavam o papel de financista com empréstimos de dinheiro,
embora esta fosse uma prática incomum aos inventariados deste estudo.
Os comerciantes cujas atividades estão apresentadas nos Quadros 1 e 4 inserem-se em
duas classificações sugeridas por Mauro: grandes mercadores e mercadores médios. Porém, tal
qual ainda adverte esse historiador, e os exemplos mostram, todos os tipos de práticas comerciais
mesclavam-se na vida econômica desses comerciantes, também eficientes em outras ocupações.

A mineração e as artes e ofícios


A mineração foi a grande exploração lucrativa de Portugal, depois do pau-brasil e da
indústria açucareira. Na Capitania da Bahia encontravam-se regiões auríferas como Jacobina,
Rio de Contas, Araçuaí cuja produtividade extrativista no começo do século XVIII era bem
menor que a das Gerais porém, servia igualmente para fomentar a economia local, regional e
colonial, incrementar o comércio e diversificar as atividades da população.
Aliava-se a esses setores as artes e ofícios – indústria manufatureira e de serviços. Ou-
rivesaria e curtição de couro estavam lado a lado com mineradores, lavradores de tabaco e
mesmo comerciantes. O ouro era lapidado para ser vendido e o couro curtido agremiava-se

212 O historiador Ronaldo Vainfas, ao referir-se à conotação quinhentista do termo, diz que tratante “significava,
na época, o traficante de escravos africanos, tratador”. VAINFAS, R. (Org.). Confissões da Bahia: Santo Ofício da
Inquisição de Lisboa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 100, nota 42.
213 Conforme Bluteau “o que trata, negocia”. BLUTEAU, R., op. cit., p. 485.

79
indiretamente ao comércio de escravos, uma vez que era frequentemente empregado para em-
balar os rolos de tabacos trocados por escravos em África.214
Os artífices eram ao mesmo tempo comerciantes, negociadores diretos de seu produto
final. Encontram-se neste setor, relacionados nos quadros apresentados, ourives, ferradores,
curtidores de couro, cordeiros, talvez músicos e, próximos a eles, os boticários e cirurgiões.215
Que dizer sobre as demais profissões ou funções encontradas nas fontes consultadas?
Médicos, advogados, requerentes ou procuradores de causas, rendeiros, funcionários de ór-
gãos judiciais como meirinhos e escreventes ou ainda religiosos, militares (capitães, soldados),
quando no exercício dessas ocupações estavam fora das caracterizações traçadas.
Formavam um grupo de profissionais que se abstinha dos lucros comerciais obtidos
pelos demais. Empregados de órgãos judiciais e militares recebiam soldo fixo por parte da
governança; os religiosos viviam às expensas da Igreja; os requerentes de causas tinham uma
participação nos ganhos dos litígios que intercediam ora como procuradores ora como “despa-
chantes”. Médicos e advogados, contavam com a sua clientela e, em geral, dedicavam seu tempo
ao comércio e agricultura, de onde, possivelmente, originavam-se os maiores proventos.
Observa-se, porém, que advogados podiam, teoricamente e desde que não tivessem
comprovada ascendência judaica, atuar como juízes e desembargadores junto a órgãos do go-
verno como o Tribunal da Relação, a Fazenda Real e outras instâncias da Coroa. Os médicos,
pela mesma razão, estavam interditos de atuarem na Santa Casa de Misericórdia.
Cristãos-novos denunciados apresentaram outros ofícios: pecuaristas (criadores de
gado, vaqueiros), escrivães de naus, caixeiro, chocolateiro, ermitão, estudantes, carcereiros,
mestre de armas, esgrimidor, pescador. Em número reduzido e sem informações adicionais de
seus delatores não foi possível os conhecer no desempenho dessas atividades.

Os agentes da economia “baiana”


Mais ou menos expostos os setores da economia colonial, apresenta-se agora seus agentes.
Quem foram estes homens que participaram do desenvolvimento econômico da Capitania da
Bahia nos setecentos? Foram selecionados dentre os cristãos-novos presos, aqueles cujos proces-
sos inquisitoriais trazem informações mais detalhadas sobre suas vidas econômicas, constituin-
do, portanto, os exemplos mais exequíveis para discorrer sobre a dinâmica de suas atividades.

Senhores de engenho cristãos-novos


Os únicos senhores de engenho da Bahia, identificados dentre os presos pelo Tribunal
de Lisboa, Manuel Mendes Monforte e Manuel Lopes Henriques, foram grandes homens de
negócios – e Monforte ainda portava o título de médico, como dito. Apesar de suas prisões

214 Segundo a brasilianista Rae Flory, a ourivesaria de ouro e prata era a atividade mecânica mais importante
de Salvador, pois mantinha uma estreita relação com a mineração do interior baiano e favorecia a prática do
contrabando. FLORY, op. cit., p. 284-285.
215 Classificação a partir de Rae Flory, que insere como artes e ofícios o cirurgião-barbeiro e não apenas a
denominação “cirurgião” como encontrada nos processos. E boticário por ela denominado “farmacêutico”.
Ibidem. Inclui-se músico por ser uma atividade de prestação de serviço e de habilidade.

80
ocorrerem em diferentes anos, Henriques em 1709 e Monforte em 1721, viveram a mesma
época e foram sócios em um empreendimento comercial.
Como médico, Monforte tratava igualmente de autoridades civis e religiosas e da gente
comum da Bahia. Porém, nunca participou do quadro de médicos da Santa Casa de Miseri-
córdia – talvez por ser cristão-novo.216 Em seu engenho, sua maior tarefa era a negociação do
açúcar que produzia, quando então assumia o papel de homens de negócio concentrado na
exportação e importação de açúcar e tecidos.
Monforte ainda operava no campo financeiro ou próximo ao “mercador-banqueiro”,
como Frédéric Mauro sugere para aqueles que emprestavam dinheiro a juros. Além dessas
ocupações, muitas vezes atendia a população local em requerimentos de licença matrimonial
a serem solicitados ao poder papal. Provavelmente era um tipo de atividade assistencial que
Monforte desempenhava junto à gente comum, graças a contatos na Europa que poderiam
providenciar este tipo de documentação.
Manuel Lopes Henriques, de quem só foi possível conhecer o inventário inquisitorial,
foi um cristão-novo natural de Covilhã, já estabelecido em seu engenho no Recôncavo baiano
desde o século anterior. Rico senhor de engenho, mantinha conexões mercantis, sobretudo
com Lisboa, negociando o açúcar. No âmbito social, como membro da elite da terra, suas re-
lações estendiam-se à antiga e tradicional família baiana Muniz Barreto, com a qual, inclusive
negociou, adquirindo fazendas e colaborando como procurador numa cobrança de dívida.217
Henriques era tio do lavrador e mercador, Diogo Henriques Ferreira, e parente distante do
cirurgião Álvaro Ferreira da Silva, ambos moradores na Bahia e sentenciados pelo Tribunal de
Lisboa. Apesar desses laços eles não formaram entre si uma parceria empresarial.

Lavradores cristãos-novos
Os lavradores cristãos-novos penitenciados pelo Santo Ofício na primeira metade do
século XVIII, encontrados nesta documentação, dedicavam-se simultaneamente a outras ativi-
dades – em geral práticas mercantis, mas também mineração, pecuária e advocacia. Ao tempo
de suas prisões não viviam todos na Capitania da Bahia. Dos sete identificados, deve-se ressal-
tar, quatro deles já haviam se transferido para a região das Minas Gerais e para a cidade do Rio
de Janeiro onde desenvolveram suas lavouras. O Quadro 7 mostra seus locais de residência e
especialização agrícola:

216 O estatuto desta instituição interditava a ingressão de cristãos-novos e outros grupos marginalizados. A primeira
condição para um indivíduo ser aceito na irmandade, é “que seja limpo de sangue sem alguma raça de Mouro, ou
judeu não somente em sua pessoa, mas também em sua mulher se for casado, como está determinado, e se usa
na pratica, e usa na Irmandade de Misericórdia por um acordão da mesa, e junta que está no livro primeiro dos
acordos a fol. 254 feito em 25 de maio de 1598, e confirmado por outro acordo de Mesa e junta feito a 8 de junho
de 603 [...]”. RUSSEL-WOOD, A. J. R. Fidalgos e filantropos: a Santa Casa da Misericórdia da Bahia: 1550-1755.
Brasília, DF: Ed. UnB, 1981. p. 95.
217 A família Muniz Barreto, ocupava posição de destaque na sociedade baiana dos seiscentos. Seus membros
exerciam cargos políticos, detinham um grande prestígio social e uma enorme riqueza proveniente da indústria
açucareira. Há indícios de ser uma família com um ramo cristão-novo. CALMON, Pedro. Introdução e notas ao
Catálogo Genealógico das Principais Famílias, de Frei Jaboatão. Salvador: EGBA, 1985. 2 v.

81
Quadro 7 – Lavradores: residência e especialidade agrícola, depois de saídos da Bahia
Lavrador Residência após sair da Bahia Especialização agrícola
Ribeirão do Carmo, Capitania
Pedro Nunes de Miranda Lavrador de milho
do Rio de Janeiro
Ignácio Cardoso de Azeredo Cidade do Rio de Janeiro Dono de partido de cana e advogado
Rio das Mortes, Capitania do
Marcos Nunes Sanches Lavrador de roça
Rio de Janeiro
Vila de Ouro Preto, Capitania Lavrador de tabaco, dono de fazenda
Diogo Nunes Henriques
do Rio de Janeiro e h. de negócios.
Fontes: ANTT/TSO-IL Procs. n°s 9001, 5447, 11824; NOVINSKY, A. Inquisição I, op. cit., p. 89, 92.

Nenhum dos lavradores apontados no Quadro 7 manteve algum tipo de relação eco-
nômica com a Bahia. Seus inventários processuais remetem a contatos e negócios firmados
na região fluminense; portanto, ainda que tenham vivido durante muitos anos na capital da
Colônia e aí tivessem fortes vínculos familiares, segundo confissões e denúncias, não serão
considerados lavradores participantes da economia baiana.
Pedro Nunes de Miranda, por exemplo, havia sido comerciante em Salvador onde vivia
toda sua família. Após ter recebido a primeira condenação pelo Tribunal de Lisboa (1716) foi se
estabelecer como lavrador de milho nas Minas do Ribeirão do Carmo, capitania do Rio de Ja-
neiro. A antiga ocupação mercantil – negociava vários artigos – e o forte laço de parentesco que
os vinculava à Bahia, sendo seus irmãos e primos mercadores e comerciantes, não foram razões
para reaproximá-lo desta praça comercial, nem por negociações de sua safra tampouco por
práticas mercantis ocasionais, que diversificaria seu ramo de atividade. Pedro é considerado
neste estudo apenas como mercador, quando ainda vivia na capital da Colônia (1700-1714).218
Outro lavrador, dentre esses arrolados, foi Diogo Nunes Henriques, conhecido por seus
denunciantes como “dono de fazenda na Bahia”.219 A leitura de seu inventário sugere ser uma
fazenda de pasto, já que por volta 1708 – quase 20 anos antes de ser preso – ainda vivendo em
Cachoeira, Recôncavo baiano, arrematou 14 escravos e 80 cabeças de gado.220 Acredita-se que
conciliava pecuária e plantação de tabaco na primeira década dos setecentos.
Homem ativo e inquieto, Diogo Nunes Henriques estava apto a desempenhar aquilo que
lhe parecesse, no momento, mais conveniente sob o ponto de vista econômico. Acumulava,
outrossim, atividades como mercador, com o trato para as Minas e contratador dos dízimos
reais – i.e. coletor de impostos da Coroa.
Os lavradores cristãos-novos, cuja documentação tornou factíveis as observações sobre
suas vidas e atividades econômicas foram Antonio da Fonseca, Manuel Nunes Sanches e Diogo
Henriques Ferreira.

218 Anos referentes à chegada à Bahia e à primeira prisão no Tribunal de Lisboa, de onde saiu em 1716.
219 ANTT/TSO-IL Proc. nº 7487
220 “[...] arrematação que ele lhe fez em quatorze escravos segundo lhe parece e oitenta cabeças de bois mansos e
vacas de parir e carros, o que tudo constará [...]”. ANTT/TSO-IL Proc. n° 7487; NOVINSKY, Inquisição I, op. cit.,
p. 91.

82
Antonio da Fonseca foi lavrador de roça e, segundo comentários de um contraparente,
lidava com mais dedicação ao “negócio de cavalos e bois que era o seu modo de vida”,221 ou
ainda, nas palavras de um compadre cristão-velho, “Antonio costumava fazer seus negócios de
compra e venda de cavalos para o que era bastante esperto e diligente [...]”.222
Manuel Nunes Sanches, irmão de outro lavrador, Marcos Mendes Sanches, era ao mes-
mo tempo mineiro e lavrador de milho sem conexões comerciais explícitas. A princípio parece
que essas ocupações não se sobrepujavam uma à outra, pois percebe-se em seu inventário que
ele atendia igualmente às demandas de suas atividades. Caracterizava-se como produtor inde-
pendente, dono de terras e lavra de ouro, garantindo-lhe certa riqueza.223
Diogo Henriques Ferreira, por sua vez, pode ser identificado na categoria “mercador-
-agricultor”, uma vez que aliava o comércio à lavoura de cana-de-açúcar e de tabaco – princi-
pais culturas, e algumas vezes foi reconhecido por seus denunciantes como senhor de engenho.
A relação de parentesco como seu tio, o senhor de engenho Manuel Lopes Henriques, prova-
velmente o favoreceu no mundo dos negócios.
Apesar de seu processo inquisitorial não ter trazer a sessão inventário (o que dificulta
especulações sobre suas atividades), Henriques Ferreira foi citado naquele de Fernando Gomes
Nunes, um mercador do centro-oeste da Colônia, como um dos beneficiários de uma parceria
destinada à exportação de produtos secos da Bahia para a Vila de Goiás, cujo transporte e re-
venda ficou a cargo do próprio Fernando, tudo valendo em torno de 672.000 réis.224

Homens de negócios cristãos-novos


Uma pequena biografia dos dois maiores homens de negócios que se conseguiu levantar
nesse grupo de cristãos-novos, Joseph da Costa e Antonio Cardoso Porto, pretende fornecer
um background para suas vidas econômicas, antes de situá-los na dinâmica comercial da Co-
lônia, sobre a qual se falará adiante.
Joseph da Costa havia sido um soldado de cavalos quando ainda vivia em Portugal.
Pouco tempo antes de chegar ao Brasil, por volta de 1711, já trafegava por Angola. Ao aportar
em Salvador (1712), começou sua carreira mercantil importando escravos em transações co-
merciais com um dos mais importantes homens de negócios lisboeta, Francisco Pinheiro, com
o qual manteve contato comercial por longo período.225
Sua ascensão socioeconômica ocorreu ao assumir a função de capitão em um navio ne-
greiro cujo proprietário era o cristão-velho morador em Salvador, Francisco Xavier da Silveira,

221 ANTT/TSO-IL Proc. nº 10484


222 Ibidem.
223 ANTT/TSO-IL Proc. nº 11824
224 ANTT/TSO-IL Proc. nº 4058; NOVINSKY, Inquisição I, op. cit., p. 105-107.
225 Grande comerciante lisboeta, Francisco Pinheiro teve publicadas suas correspondências com seus agentes
espalhados pelo império ultramarino português em LISANTI, Luís. Negócios coloniais. 5 v. Brasília, DF: Ministério
da Fazenda, 1975. Júnia Furtado ressalta seu empreendorismo lembrando que ele era analfabeto e “[...] como
muitos outros grandes comerciantes, desfrutava, de fato, de intimidade com o poder e possuía livre trânsito na
Corte do Rei”. FURTADO, op. cit., p. 38.

83
seu sócio e amigo,226 a quem pertencia outros tantos navios negreiros, chegando a enviar, anu-
almente, entre 1727 e 1732, um navio para Costa da Mina.227
Apesar de não ser explícita o tipo de relação entre Joseph da Costa e o dono deste navio, no
que concerne ao gerenciamento do comércio de escravos, foi nesta função que ele se firmou como
negociante de escravos, tanto em Salvador, onde vivia, como em Recife, onde mantinha uma
“loja” ou escritório, o que demonstra sua consolidação na praça comercial pernambucana. Com
esse homem de negócios Joseph da Costa constituiu uma parceria verificada em quase todas as
transações comerciais realizadas, além de incumbi-lo das despesas de seu lar, quando ausente.228
A sociedade entre Joseph da Costa e Francisco Xavier da Silveira dava-lhes autonomia
para operarem por conta própria ou um em nome do outro. Costa enviava-lhe escravos, tecidos
e dívidas para pagar. Silveira remetia carregações para Nova Colônia do Sacramento declaran-
do Costa como principal beneficiário. Além disso, assumia suas dívidas e foi, algumas vezes,
seu procurador e fiador em débitos contraídos com a Fazenda Real. Sendo esta relação baseada
em amizade, e pertencendo a Xavier da Silveira o navio negreiro comandado por Joseph da
Costa, este cristão-novo não apenas assumia o papel de capitão de navio, como também era
parte interessada nos lucros com o comércio de escravos, sendo portanto um dos traficantes de
escravos da Bahia setecentista.
Finalizando sua apresentação, ainda lhe restou um título de “administrador de um con-
trato real”, segundo informou sua esposa Ana Bernal de Miranda, mulher instruída nos negó-
cios do marido. Joseph da Costa faleceu em Luanda, em 1744, 15 anos depois de penitenciado
pelo Santo Ofício.229
O outro grande homem de negócios da Bahia foi Antonio Cardoso Porto. Este portu-
guês criado em Castela iniciou suas atividades econômicas na adolescência, patrocinado por
um rico castelhano administrador do Estanco Real do tabaco, Sebastião Rodrigues Cascaes, de
quem dizia, falsamente, ser filho legítimo. As viagens que realizava de Salamanca, onde mora-
va, à Celorico, sua terra natal, eram sempre como acompanhante de um mesmo mercador de
tecidos, amigo deste Cascaes.
Mais velho e já dominando o ramo, Cardoso Porto tornou-se um comerciante inde-
pendente. Nos anos em que residiu em Salamanca ia constantemente à Celorico e outras vilas
portuguesas próximas, comprando e vendendo artigos têxteis – cobertores de lã, sedas, anil,
dentre outros – a antigos homens de negócios que conhecera no princípio de sua carreira.
226 Francisco Xavier da Silveira era natural de Covilhã, Portugal, e morava na Preguiça, freguesia de N. Sr.ª da
Conceição, onde concentravam-se as residências de grandes comerciantes e as principais casas de comércio de
Salvador. ANTT/TSO-IL Proc. n° 10002.
227 “Entre 24 de outubro de 1727 e 5 de abril de 1732, Francisco Xavier da Silveira enviara seis vezes os seus navios
para fazer resgate de escravos na Costa da Mina. Seus nomes eram Na. Sa. da Boa Morte e S. Caetano, S. Francisco
Xavier e Na. Sa. do Bom Sucesso, Na. Sa. do Livramento e Na. Sa. do Bom Sucesso”. VERGER, Pierre. Fluxo e
refluxo do tráfico de escravos entre o Golfo do Benin e a Bahia de Todos os Santos: dos séculos XVII a XIX. 3. ed.
São Paulo: Corrupio, 1987. p. 208, nota 74.
228 Em depoimento nas contraditas do processo contra Diogo de Ávila Henriques, Francisco Xavier da Silveira
disse que “Joseph da Costa andava embarcado por capitão de um navio dele testemunha que navegava para
Angola” e que ele lhe havia “recomendado a assistência a sua mulher e casa”. ANTT/TSO-IL Proc. nº 2121.
229 Ana Bernal de Miranda assim o declara quando precisou requisitar licença aos Inquisidores para retornar à
Bahia e cuidar dos negócios de seu marido que acabara de falecer. ANTT/TSO-IL Proc. n° 2424.

84
Estabelecendo-se posteriormente e por pouco tempo em uma Província mais ao interior de
Castela, abandonou o comércio com Portugal e voltou-se para os reinos de Navarra e França,
dando continuidade aos negócios com tecido e introduzindo o tabaco em suas transações,
embora em menor escala.
Ao romper a Guerra de Sucessão espanhola (1701-1713), Cardoso Porto mudou-se de-
finitivamente para a França, onde ampliou seu comércio de tecidos e tabaco investindo nos lu-
gares de Baiona, Biscaia, Bordéus, e mesmo Paris, chegando a alcançar, outra vez, os reinos de
Navarra e Aragão. As justificativas que deu à expansão de seu comércio foram a proximidade
geográfica e a facilidade de deslocamento entre essas terras.
Quase falido, o retorno a Portugal foi a opção mais viável que encontrou para retomar
os negócios. Ao chegar em Lisboa conseguiu ser procurador dos famosos homens de negócios
portugueses Vicente Olivier e Thomas Caetano de Médicis, em uma cobrança de dívida a ser
efetuada na Bahia. Assim, Antonio Cardoso Porto, depois de percorrer os reinos espanhóis e
de França, desembarcou em Salvador dando prosseguimento ao comércio de tecidos e diversi-
ficando seu ramo de negócios.

Mercadores e tratantes cristãos-novos


Os cristãos-novos, cujos relatos sobre os empreendimentos econômicos em seus pro-
cessos inquisitoriais fornecem substrato empírico a esta matéria, dada à riqueza e minúcia de
informações, foram Gaspar Henriques, também considerado mineiro, mas sem nenhum relato
sobre esta atividade, seu primo Diogo de Ávila Henriques, de alcunha o Jangada; Antonio Roiz
Garcia e Thomas Pinto Correia.
Jerônimo Roiz, outro mercador da Bahia, apesar de não trazer inventário em seu proces-
so, mesmo seus bens tendo sido confiscados, pôde ter sua prática comercial avaliada a partir
dos processos contra Gaspar Henriques, Diogo de Ávila Henriques e Félix Nunes de Miranda,
nos quais está registrado em sociedades econômicas e em litígios judiciais.
Empreendendo o comércio lojista, encontrou-se Félix Nunes de Miranda, comerciante
bem conhecido pela população cristã-nova da Bahia dada também à função de testamenteiro
e ao papel de intermediador em diversos litígios judiciais entre mercadores. Destes litígios
decorreram inimizades que culminaram, possivelmente, nas denúncias contra ele feitas por
várias pessoas ao Santo Ofício, além dos seis parentes presos mais ou menos na mesma época
que ele, coagidos a inculpá-lo.
Félix encarregou-se do testamento de vários moradores da Bahia, cristãos-novos ou sem
origem étnica assinalada. Um deles foi o seu único irmão, Miguel Nunes de Miranda (ou de
Almeida), morador na Vila de Cachoeira. Félix foi também conhecido por autoridades civis
locais, mantendo amizade com desembargadores e juízes, aos quais solicitava intervenções em
causas judiciais a favor de amigos cristãos-novos.
Outros cristãos-novos presos, arrolados neste estudo, não tiveram inventários formados
pelos Inquisidores ou não discorreram sobre a execução de seus negócios, limitando-se a listar
bens e apresentar vagamente dívidas e créditos; ou ainda, não declararam relações comerciais
que pudessem ser consideradas significativas para a economia baiana, ou seja, enumeraram
apenas pequenas e eventuais transações de compra e venda.

85
A DINÂMICA EMPRESARIAL DE AGRICULTORES E COMERCIANTES
NA BAHIA

Agricultores: senhores de engenho e lavradores


Sediados na cidade de Salvador, de onde geriam seus negócios, os senhores de engenho Manuel
Mendes Monforte e Manuel Lopes Henriques mantinham produtivos os seus engenhos loca-
lizados na região de Matoim, Recôncavo baiano.230 Para Monforte, ventila-se a possibilidade
de seu interesse maior estar voltado às operações comerciais onde a produção de açúcar para
exportação ocuparia um pequeno lugar.
O destino do açúcar que fabricavam era sempre a exportação para Lisboa, à exceção de
uma remessa, declarada em inventário, que Monforte enviara à Ilha Terceira. Operações efetu-
adas mais ou menos em período próximo às suas prisões chegaram a um montante superior a
51 caixas de açúcar, além de algumas remessas não quantificadas, somando-se as exportações
realizadas por cada um deles. Henriques ainda possuía caixas de açúcar armazenadas em seu
engenho, cujo total não foi informado nas fontes consultadas.
O Quadro 8 traz um resumo das transações com açúcar realizadas individualmente por
Monforte e Henriques. Deve-se ter em conta que as informações que deram aos inventários
foram evasivas a ponto de não mencionarem a frequência com que as exportações eram feitas,
tampouco o volume exato da mercadoria.

Quadro 8 – Exportações de açúcar realizadas por Manuel Mendes Monforte


Quantidade Qualidade Destino Recebedor
11 caixas Açúcar batido Ilha Terceira João Gomes da Silva
“Remessas” - Lisboa Cristiano Abrão Vandelvir
Fonte: ANTT/TSO-IL Proc. n° 675.

Quadro 9 – Exportações de açúcar realizadas por Manuel Lopes Henriques


Quantidade Qualidade Destino Recebedor
38 ou 40 caixas ou mais Açúcar branco Lisboa Rodrigo de Sande
Manuel Maximiliano de
“Umas caixas” - Lisboa
Meira
Fonte: NOVINSKY, Anita. Inquisição I, op. cit., p. 191, 196.

230 Matoim foi a região que abrigou a maior parte dos cristãos-novos denunciados durante a Primeira Visitação
do Santo Ofício à Bahia, 1591-1593. Há indícios que nas terras do grande senhor de engenho, Heitor Antunes, aí
localizada, havia uma sinagoga improvisada. Livro de Denunciações do Santo Ofício na Bahia apud WIZNITZER,
Arnold. Os Judeus no Brasil Colônia. São Paulo: Pioneira; EDUSP, 1966. p. 17.

86
Descreviam a qualidade do produto em açúcar branco e mascavado na forma “batido”,
cada um apresentando um valor de mercado diferenciado, que variava também “em confor-
midade com os mercados exteriores, transportes, valor das safras e outras circunstâncias. A
diferença de cotações entre o branco e o mascavado variava de 20 a 40%”, informa Simonsen
tratando do século XVII, baseado nas afirmações de Antonil.231
O valor que eles arrecadaram com essas exportações é praticamente impossível de ser
precisado uma vez que, além de não quantificarem o exato das exportações, apresentaram di-
ferentes preços e referenciais de moeda nas negociações. Para o valor de uma arroba de açúcar
vendida em seu engenho, Manuel Lopes Henriques deu como parâmetro 16 tostões, mas não
informou sua qualidade nem o momento que adotou esta cotação. Acredita-se que na década
de 1720 antes de ser preso. Manuel Mendes Monforte referiu-se a 1.920, em moeda não espe-
cificada, o preço de uma arroba.
Uma arroba de açúcar no Brasil setecentista, pelo demonstrativo de Roberto Simonsen,
equivalia a 14,745 quilos e, cada caixa aproximadamente uma média de 35 arrobas.232 Portanto,
um percentual mais que aproximativo para o montante da produção desses senhores de engenho
indica 1.785 arrobas exportadas, arrecadando um mínimo de 7.140 cruzados ou 2.856.000 réis.233
Obviamente estes valores estão longe de expressar o total de açúcar exportado e o lucro,
já que não foram dados um arrolamento e uma contabilidade completos dos efetivos destes
senhores de engenho em seus inventários inquisitoriais. A intenção aqui é, entretanto, fornecer
apenas uma noção do que foi a indústria açucareira para esses cristãos-novos.
Como senhores de engenho e homens de negócios ocupando o mesmo território, a mes-
ma praça comercial, firmaram juntos uma sociedade da qual também participava como sócio
e caixeiro, o caixeiro de Lopes Henriques, Manuel de Sampaio e Freitas. Empregaram nesta
empresa, cada um deles, 8 mil cruzados.234
Com o fim da sociedade, pouco mais de um ano após seu estabelecimento e sem ainda
terem as contas concluídas, Monforte foi ressarcido em 4 mil cruzados, pagos em mercadorias,
“em açúcar como em fazenda de loja”.235 Permanecem ocultos a natureza e os objetivos deste
empreendimento conjunto.
Tanto um quanto outro ainda tiveram em comum o mesmo agente em Lisboa, Rodrigo
Sande e Vasconcelos, homem de negócio que servia a diferentes diligências. O contato com
Manuel Lopes Henriques firmara-se no âmbito comercial, recebendo e redistribuindo o açú-
car e o tabaco que este lhe enviava, e ainda como procurador na metrópole para execução de
cobrança. Já com Monforte, Rodrigo Sande associava-se ao seu irmão, Manuel de Sande, para

231 ANTONIL, Cultura e Opulência no Brasil apud SIMONSEN, Robert. História econômica do Brasil (1500/1820).
4. ed. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1962. p. 109-110.
232 SIMONSEN, op. cit., p. 463, 110, respectivamente.
233 Este cálculo baseia-se no preço da arroba dado por Manoel Lopes Henriques de 16 tostões. Adota-se, para
este cálculo, o tostão em moeda de prata portuguesa equivalente a 100 réis no Rio de Janeiro, século XVIII.
Portanto 1.000.000 réis corresponderiam a 2.500 cruzados no Brasil. Conversão baseada nos valores indicados
em SIMONSEN, op. cit., p. 464.
234 Sociedade mencionada apenas no processo de Monforte, ANTT/TSO-IL Proc. nº 675 e NOVINSKY, Inquisição
I, op. cit., p. 201.
235 NOVINSKY, op. cit., p. 201.

87
tratarem, como correspondentes, de negócios que Monforte mantinha em Roma, ele também
intermediário de terceiros. Assim eram conseguidas as dispensas matrimoniais no Vaticano,
encaminhadas por moradores da Bahia a Monforte quem, por sua vez encarregava os irmãos
Sande, os quais igualmente se valiam de outros para executarem o serviço, encarecendo as-
sim os custos de execução dos trâmites; um deles custou ao solicitante, um morador da parte
baiana do Rio São Francisco, nada menos que 5 mil cruzados. Valor que foi repartido entre os
agentes da operação e ainda uma parte pôde ser devolvida ao beneficiário.
Dessa pequena explanação sobre o desempenho desses cristãos-novos como senhores de
engenho, pode-se dizer que seus negócios com o açúcar estavam em pleno desenvolvimento à
época de suas prisões. Não se encontravam economicamente estagnados em um único tipo de
produção ou negócio, senão ampliavam seus interesses em direção ao comércio de grande por-
te. E, no caso de Manuel Mendes Monforte, outras atribuições ainda lhe cabiam como médico
e prestamista, como é tratado adiante.

Lavradores
Lavradores estabelecidos na Bahia foram Antonio Fernandes Pereira, Manuel Nunes
Sanches e Diogo Henriques Ferreira. A ausência de informações em seus processos inquisito-
riais, especialmente nos inventários, sobre suas vidas econômicas como plantadores impossibi-
lita maior abrangência do tema. Aliás, Diogo Henriques Ferreira, conhecido em Salvador como
lavrador de tabaco e dono de fazenda, não traz sequer inventário, uma vez que seus bens não
foram sequestrados, como dito anteriormente.236
Manuel Nunes Sanches, único que pode ser avaliado como homem rico, apresenta duas
propriedades: uma roça e lavra de ouro e outra destinada exclusivamente à lavoura, provavel-
mente de milho, como mencionou alguns de seus denunciantes. As dívidas de Nunes Sanches
e de Fernandes Pereira mostram transações comerciais de mercadorias para consumo próprio.
Pelo que se pode conjeturar acerca desses dois lavradores da Bahia, o primeiro era um produtor
independente, enriquecido, enquanto o outro configurava uma relação, diga-se grosso modo,
de “vassalagem” como o dono da terra em que plantava, o citado Comissário do Santo Ofício,
João Calmon.
Havia, no entanto, muitos outros lavradores em terras baianas, dos quais nada mais pode
ser dito além da diversificação das atividades econômicas exercidas. Assim, tomando como
referencial a lavoura, encontra-se entre os denunciados:

236 Uma razão, aparente, para o não sequestro de seus bens foi a sua elevada condição socioeconômica, observada
no seu registro de óbito, onde informa seu sepultamento nas dependências Igreja da Sé, local onde eram enterradas
ilustres figuras da sociedade baiana. Diogo Henriques faleceu em março de 1751, recebeu todos os sacramentos e
deixou 30 missas de corpo presente pagas em três paróquias de Portugal. Livro de óbitos da Freguesia da Sé, 1734
a 1762. fl. 172, Cúria Metropolitana de Salvador.

88
Quadro 10 – Lavradores da Bahia nas diversas ocupações econômicas
Especificidade da ocupação econômica Cada uma das ocupações

Contratador de canas* 1

Lavrador e comerciante (homem de negócio, mercador, tratante,


6
contratador)

Lavrador, comerciante e mineiro 1

Total 8
Fontes237
Nota: * não foi encontrada uma definição para esta função.

É evidente a atuação no comércio da maioria dos lavradores. Para Rae Flory, comércio
e lavoura eram atividades simbióticas visto que o lavrador deveria negociar ele mesmo seu
produto. Além disso, a lavoura permitia que outras ocupações tivessem lugar em períodos de
entressafra e quedas de mercado.
Um caso é Antonio Fernandes Pereira, mineiro e proprietário de duas roças, uma nas
minas de Araçuaí, Arcebispado da Bahia e outra em Serro Frio, na região das Minas Gerais
das quais não menciona o produto cultivado, podendo mesmo ser uma “roça” de ouro, ou seja,
uma lavra.
Para os lavradores do Recôncavo, a prática comercial foi facilitada por ser a principal Vila
da região, Cachoeira, o centro de produção e caminho que unia Salvador às outras partes da Co-
lônia, sobretudo às minas das Gerais. Ver-se-á em outra parte que essa Vila era muito procurada
pelos mercadores da Bahia como entreposto de produtos e centro de armazenamento.

Homens de negócios
Os dois cristãos-novos que, pelos seus inventários, se destacam como homens de ne-
gócio no comércio ultramarino de larga escala, sobre os quais já foi discorrido, são: Joseph
da Costa, enriquecido pelo tráfico de escravos em Angola e Costa da Mina, e Antonio Car-
doso Porto, quem antes de vir ao Brasil já havia montado um circuito comercial envolvendo
negociações de tecido e tabaco entre Portugal, Espanha e França. Ao lado desses homens de
negócios, encontram-se os senhores de engenho também abordados anteriormente, Manuel
Mendes Monforte e Manuel Lopes Henriques, dedicados ambos à exportação de açúcar e im-
portação de tecidos.
O comércio estabelecido por Joseph da Costa e Antonio Cardoso Porto era movimen-
tado, como é sabido, por negociações com tecidos e escravos. Escravos eram a prioridade de
Joseph da Costa enquanto que a importação de tecidos ocupava a maior parte das transações

237 Ver nota 2.

89
efetuadas por Cardoso Porto. Ambos, porém, lidavam em diferentes proporções com essas e
outras mercadorias.
Esses homens de negócios adotaram diferentes meios para aquisição dos produtos que
comercializavam. Antonio Cardoso Porto lançava-se em compras por atacado em Salvador, ou
os recebia de companheiros situados em Portugal e ainda se servia de quatro mercadores para
arrematar escravos em seu nome no mercado da cidade. Uma única vez apenas ele mencionou
uma viagem que fez a Castela ou outra terra espanhola e lá se abasteceu de tecidos para vender
na Bahia, isto em 1724.
O que falta nas informações a respeito de suas transações comerciais é justamente a
indicação de seus fornecedores e algumas vezes, precisão das mercadorias. Os relatos sobre
as várias carregações que enviara para África – Angola, Costa da Mina e Benin – não trazem
anotados os produtos exportados. Pelo seu histórico de comerciante de tecidos entre Espanha,
França e Portugal e consequentemente dos contatos que aí firmou antes de chegar ao Brasil,
supõe-se a mercancia com fazendas.
Pode ser que Antonio Cardoso Porto também estivesse envolvido com o tráfico negreiro,
enviando tabaco e mandando trazer escravos, agenciado por outros mercadores, pois estava
muito próximo à cultura do tabaco pela fábrica de enrolar fumo que possuía em sociedade com
dois outros homens de negócios, um deles Jácome Joseph, criado do Vice-Rei Vasco Fernandes
César. Não se pode asseverar, contudo, ser este o grande comércio por ele empreendido, ao
contrário do que o foi para Joseph da Costa.
Joseph da Costa atuou durante quase 30 anos no tráfico de escravos. Foram inúmeras
as viagens que fez à Angola e à Costa da Mina trazendo escravos e incidentalmente tecidos.
Provia a Bahia e Pernambuco, onde aportava, e daí destinava os escravos a outras praças, como
o exemplo que deu de uma remessa de quatro africanos para serem enviados por Francisco
Xavier da Silveira à Nova Colônia do Sacramento, por sua conta e risco.
Há ainda, dentre as mercadorias que negociava, alguma exportação de joias em pequena
escala, mencionada por sua esposa, Ana Bernal de Miranda quem, ao arrolar seus bens, apon-
tou um par de brincos de diamantes, três pares de argolas – certamente em ouro – e outras
miudezas que um advogado angolano, morador na Bahia, entregou a Joseph da Costa para
vender em Angola.238
O contrabando andava junto com o comércio legal, não podendo deixar de atingir esses
homens de negócios. Antonio Cardoso Porto foi acusado por seu sogro, Luís Henriques, de
comprar ilegalmente tecidos e artigos afins a mercadores franceses aportados em Salvador.
Um grande processo litigioso entre ambos deu ganho de causa a Cardoso Porto, que não teve
o contrabando comprovado.
A circunstância que envolveu Joseph da Costa na prática contrabandista foi outra. As
muitas idas e vindas aos portos africanos promoveu seu envolvimento com mercadores ingle-
ses da Royal Company Adventures of England. Em 1718, seu nome aparece no livro de contas
do forte Williams, em Ajudá, ligado “às operações Adventures to Brazil”.239 Trocavam negros,

238 ANTT/TSO-IL Proc. nº 2424.


239 VERGER, op. cit., p. 44.

90
principalmente da Costa da Mina, por ouro brasileiro e tabaco de primeira qualidade, artigos
monopolizados e destinados oficial e unicamente a Portugal.
O que esses cristãos-novos, incluindo os senhores de engenho Manuel Mendes Mon-
forte e Manuel Lopes Henriques, tinham em comum era a prática comercial voltada para os
mercados internacionais em empreendimentos que requeriam uma alta soma de capital e con-
tato com mercadores de outras terras, como o caso de Antonio Cardoso Porto, contrabandistas
ingleses, com Joseph da Costa. Essa foi a característica que os fizeram se distinguir dos demais
tipos de mercadores, que até mesmo poderiam ser mais ricos.

Contratadores
Em geral, dada a alta movimentação de capital, homens de negócio dispunham de recur-
sos para tornar-se um concessionário da Coroa no monopólio dos produtos controlados mais
efetivamente pelo Estado ou na cobrança de impostos. Neste caso eram denominados “contra-
tadores”. Como responsáveis pelo envio direto de divisas aos cofres reais, empenhavam-se na
regularização e incentivo de produção e comercialização.
Contratadores identificados entre os presos da Bahia são: Diogo Nunes Henriques, men-
cionado anteriormente como lavrador de tabaco que agora aparece como contratador dos dízi-
mos reais; Félix Nunes de Miranda, um comerciante de loja citado como contratador de azeite
de baleia; e Joseph da Costa, cuja natureza do contrato arrendado é desconhecida.
Nenhum deles traz informações em seus processos sobre esta atividade, sendo apenas
reconhecidos como tais por seus denunciantes. No caso, porém, de Joseph da Costa, é a sua
esposa quem o qualifica como “administrador de contrato real”.240
Outra conotação para “contratador” talvez esteja embutida no termo “contratador para
Minas”, como Antonio do Vale de Mesquita foi classificado241. Que seria “contratador para Mi-
nas”? Seu inventário deixa a hipótese de ser uma espécie de contratação de um mercador para
transportar mercadorias para outros locais, neste caso, as Minas Gerais. E então a atividade
estaria mais próxima daquela empreendida por mercadores e não por homens de negócios na
acepção aqui empregada, ou seja, voltados para o comércio ultramarino.

Mercadores e tratantes
O primeiro cenário que se mostra interessante ao se tratar da atuação de mercadores
e tratantes na economia colonial é a rede comercial que estabeleciam. O exemplo seguinte
mostra a conexão entre os parentes Diogo de Ávila Henriques, Gaspar Henriques e o amigo
Jerônimo Rodrigues.
Associados ou em empreendimentos individuais, todos se especializaram no comércio
negreiro partindo de Salvador para abastecer as minas auríferas das Gerais. Acrescentavam
aos comboios de escravos várias peças de tecido e miudezas de uso pessoal. Nas carregações
conjuntas, Gaspar e Jerônimo sempre aparecem como condutores e interessados nos lucros;
240 ANTT/TSO-IL Proc. n° 2424.
241 Este cristão-novo transferiu-se para o Rio de Janeiro nos primeiros anos do século XVIII, como já mencionado.
ANTT/TSO-IL Proc. n° 4440.

91
Diogo de Ávila Henriques patrocinava a compra de escravos ou despendia maior capital que os
demais nessas aquisições. As mercadorias que comerciavam eram sempre adquiridas em Salva-
dor. Nos seus inventários não há menções a comércio direto com África, tampouco quem eram
seus fornecedores na Bahia. Os tecidos eram comprados a mercadores ou homens de negócios,
sobre os quais não se pôde obter nenhuma informação.
Escravos e fazendas eram sempre vendidos em pequenas quantidades nas Minas Gerais,
sobretudo a Vila de São José das Minas do Rio das Mortes, destino certo de Gaspar Henriques
em várias carregações. Lá, contava com o apoio de um mercador da região, Bernardo da Sil-
va, a quem sempre confiava os “escritos” – recibos de suas vendas – para posterior cobrança.
Em algumas ocasiões, Gaspar Henriques ainda se responsabilizou pela comercialização, nas
Minas, de escravos pertencentes a seu cunhado, João de Morais Montesinhos. O rendimento
que Gaspar Henriques obtinha nestas carregações era a comissão de 5% sobre o valor total das
vendas, 3% a menos do que usualmente eram pagos aos comboieiros – percentual que cobrava
a Montesinhos por ele ser seu cunhado, como afirmou textualmente: “mas que ele declarante,
por serem carregações de seu cunhado, só lhe levava à 5%”.242 Encontra-se aqui um primeiro
exemplo explícito das relações de parentesco interferindo no mundo dos negócios.
Para transportar as mercadorias às Minas ou qualquer que fosse a região, donos de car-
regações, aqueles que compravam as mercadorias e obtinham delas os maiores lucros, valiam-
-se de mercadores, ditos carregadores, que, comissionados, não apenas conduziam como efe-
tuavam, eles mesmos, as revendas, a redistribuição.
Jerônimo Roiz é um exemplo desse tipo de mercador, tanto quanto Gaspar Henriques,
conduzindo escravos para Diogo de Ávila Henriques. A única carregação que Jerônimo tentou
formar por sua própria conta, contando com 36 escravos para Minas, foi impedida de seguir
viagem em decorrência de um litígio que o acusava de ter se apropriado indevidamente desses
escravos que, segundo as testemunhas desta causa, não lhe pertenciam, mas apenas estavam
sob sua guarda.243
Diogo de Ávila Henriques efetuou, ainda, um singular negócio de exportação para a
cidade do Porto de mais de 3 mil “meis de sola”.244 Seu pai, Jorge Henriques Moreno, a quem
Diogo destinou a mercadoria para recebimento e venda, negou-se a negociá-la possivelmente
por razões decorrentes de brigas pessoais entre pai e filho, demonstrando a ausência de soli-
dariedade por laços de parentesco contrário ao que expressou a negociação entre os cunhados
Gaspar Henriques e João de Morais Montesinhos.
Para dar andamento ao repasse das mercadorias, procurando resolver a situação, Diogo
de Ávila Henriques recorreu então a Joseph da Costa Viana, um homem de negócios cristão-
-velho, que também não aceitou o trato. A intenção de Ávila Henriques, porém, não era iniciar
uma conexão comercial, mas sim reverter o lucro da venda em pagamento de “letras” que devia
a mercadores portuenses e “baianos”.

242 ANTT/TSO-IL Proc. nº 6486; NOVINSKY, Inquisição I, op. cit., p. 123.


243 ANTT/TSO-IL Proc. n°s 2293; 2121.
244 Couro de boi curtido e preparado para fabricação de calçados ou outros artigos. ANTONIL, André João. Cultura
e opulência do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1982. p. 215.

92
Constam sete débitos a serem ressarcidos por esta via. Cinco delas acabaram por ser
recambiadas à Bahia, por falta de pagamento na cidade do Porto. Uma delas, no valor de 5 mil
cruzados, teve uma trajetória igualmente singular, pois era devida ao Tesoureiro dos Defuntos
e Ausentes da Bahia, Manuel da Fonseca Rabelo, mas deveria ser quitada no Porto através de
um seu procurador aí estabelecido. Diogo, ao que tudo indica, não teve seu objetivo satisfeito;
não se conhece o destino da mercadoria, o lucro obtido, tampouco a liquidação dos débitos. O
total devido, além dos 5 mil cruzados citados, aproximava-se a 1.120.000 réis, quase o mesmo
valor que tinha a receber de outras negociações comerciais entre Bahia e Minas Gerais, estes
em torno de mais de 1.194.000 réis.
Os “meis de sola” que seguiram para Portugal haviam sido confeccionados pelo curtidor
de couro Antonio de Miranda, quem dela trata em seu inventário, como bem que não lhe per-
tencia, dizendo que armazenava em seu curtume os 350 “meis de sola” e as 300 peças de couro
que Diogo lhe havia entregado para curtimento – serviço que chegava à casa dos 100 mil réis.
Segundo Antonio de Miranda, Diogo adquiriu parte do couro da mão de Diogo Fer-
nandes Cardoso, um comerciante castelhano que vivia em Salvador, e outra parte comprou a
Antonio Rodrigues Romano, lavrador de tabaco na Vila de Santo Amaro, Recôncavo baiano. O
couro era empregado para enrolar o tabaco, e ambos tornaram-se os principais produtos agrí-
colas da região destinados à exportação e, neste comércio, intentou Diogo de Ávila Henriques
a fazer freguesia em Portugal.
Antonio Rodrigues Garcia foi outro tipo de mercador. Concentrava o seu comércio de
tecidos, cavalos e esporadicamente escravos na região da Vila de São Francisco do Conde,
Recôncavo. Mercador de diferentes mercadorias, ainda se interessava pelo comércio de gado,
posto que adquiriu 100 cabeças sem ter sequer uma terra para pasto.
Envolvido exclusivamente com o comércio de escravos foi Thomas Pinto Correia e, jun-
to à Joseph da Costa, podem ser classificados como os únicos comerciantes de escravos en-
contrados neste rol de cristãos-novos. Thomas Correia realizava este comércio entre final do
século XVII e início do XVIII e Joseph, mais tarde, na década de 1720, aproximadamente.245
Thomas Pinto Correia mantinha uma parceria com seu irmão, Manuel Pinto Correia
e com um Antonio Ferreira de Ataíde, também moradores em Salvador, responsáveis pelo
recebimento das carregações que chegavam de Angola. Nem sempre o resgate de escravos era
um negócio próprio, no qual Ataíde e seus sócios seriam os beneficiários. Algumas vezes, ele
foi à África a serviço de outros comerciantes e até mesmo chegou a intermediar um alferes da
Alfândega de Angola em seus negócios na Bahia, trazendo um lote de escravos para vender em
seu nome.246
Apesar de desempenharem a mesma prática comercial, e talvez na mesma intensidade,
o avultante dos negócios de Joseph da Costa – indo além do ramo escravagista – e Thomas
Pinto Correia lhes conferiu qualificações diferenciadas. Este ficou conhecido como tratante ao
mesmo tempo que aquele foi citado como homem de negócios. A avaliação de seus inventários,
no entanto, deixa claro serem comerciantes de escravos, considerando como tais os mercadores
que navegavam, eles mesmos, rumo à África em busca da mão de obra para a Colônia.

245 ANTT/TSO-IL Proc. nº 1004; ALMEIDA, op. cit., p. 188.


246 ANTT/TSO-IL Proc. nº 1004.

93
Práticas comerciais diversificadas
Outras designações ilustram a dinâmica mercantil. Vendeiros, tendeiros, ou simples-
mente vendedor de azeite de peixe, pode referir-se ao pequeno comerciante que Mauro diz
contrapor-se ao “mercador médio”. Vendedor de azeite de peixe especifica o comércio empre-
endido e é destacado pela importância que tinha o óleo de baleia como combustível indispen-
sável à Colônia. Nas fontes pesquisadas, o comerciante que lidava com este produto era assim
reconhecido. Félix Nunes de Miranda foi um vendedor de azeite de peixe estabelecido em uma
tenda – loja – situada na movimentada área do comércio soteropolitano, o Terreiro de Jesus,
onde também provia a população de farinha, possivelmente de trigo, importada de Lisboa,
ainda que em pequena quantidade.247
Vagas denominações como “vive de sua agência” ou “vive de suas fazendas” ou “vive
de seu negócio” estão associadas à ideia de prática comercial. Posto que “agência”, “fazendas”,
“negócios” são vocábulos que denotam atividade mercantil. Também pode juntar-se a essas, a
classificação “sem ofício” quando se compreende que nela está embutida o comércio ocasional.
Pensa-se no caso do sujeito que não sendo filho-família, ou seja, não vivendo às expensas do
pai ou tutor, poderia sobreviver de pequenos e esporádicos negócios. Sem nenhuma definição
ocupacional para o termo, aos qualificados “sem ofícios” gira uma gama de possíveis ocupa-
ções econômicas. Isto é apenas uma hipótese.

Um adendo: cristãs-novas na economia colonial


As mulheres exerceram algum papel na economia colonial, sobretudo aquelas que não
tinham como se sustentar. Mulheres brancas pobres, viúvas, órfãs, escravas libertas, e porque
não dizer aquelas que tiveram seus bens ou de sua família confiscados pelo Santo Ofício, exer-
ciam algum tipo de trabalho para sobreviverem materialmente. Dentre as 11 cristãs-novas que
se teve a oportunidade de conhecer seus processos inquisitoriais, duas delas aparecem desem-
penhando atividades econômicas para seu próprio sustento e uma empreendeu o comércio de
escravos uma única vez.
Essas mulheres foram Brites Lopes, nascida na Bahia que se tornou costureira após a
prisão de seus pais no Santo Ofício; Francisca Henriques, uma castelhana que morava em Sal-
vador e foi abandonada pelo marido; a outra, Maria Bernar (ou Bernal) de Miranda, que depois
da morte de seu pai adentrou-se nas estradas que levavam ao Rio de Janeiro com um comboio
de escravos.
À falta de anotações em seus processos inquisitoriais (apenas uma traz inventário) ou
em outras fontes que pudessem subsidiar especulações sobre suas ocupações, são observadas
as razões sociais que as levaram a este comportamento diferenciado.
Brites Lopes teve que se manter da confecção de roupas, pois com a prisão de seus pais
na Inquisição, entrou em estado de pobreza precisando cuidar de seus irmãos menores. Este
ofício não lhe trazia muito rendimento e, sem apoio algum de parentes na Bahia, partiu para
Lisboa, onde foi morar com um tio materno, levando seus irmãos.
247 Três barris de farinha (aproximadamente 307 quilos, valendo 92.918 réis), importação efetuada ao homem de
negócios lisboeta Francisco Pinheiro. LISANTI, Luís, op. cit., v. 4, p. 456.

94
Francisca Henriques era conhecida na cidade de Salvador como padeira. Desentendi-
mentos com o seu marido, o mercador Luís Henriques, provocados por ciúmes do seu genro
Antonio Cardoso Porto, contra quem Luís Henriques fez denúncias de contrabando a autori-
dades locais, o levou a partir para outra Capitania.
Francisca ficou entregue à própria sorte. A separação informal ocorreu quando os filhos
do casal já eram adultos. O único filho homem vivia como comerciante em Minas Gerais e,
uma das duas moças ainda estava sob pátrio poder. Apesar de pobre, Francisca tinha a seu ser-
viço três escravas e era ajudada financeiramente por seu genro, Antonio Cardoso Porto, quem
a supria da farinha necessária à produção de pão de onde tirava seu sustento – segundo consta
nas anotações de dívidas do inventário desse homem de negócios, contraídas pela compra de
farinha destinadas à Francisca Henriques.248
Maria Bernar de Miranda, por sua vez, guarda uma singularidade em sua história. Filha
de um médico da Bahia, irmã e cunhada de comerciantes bem-sucedidos financeiramente,
Maria Bernar empreendeu uma carregação de escravos para o Rio de Janeiro por sua conta e
risco. A esta altura seus pais já haviam falecido e Maria Bernar encontrara apoio junto a sua
irmã Ana Bernal, casada com o traficante de escravos Joseph da Costa.
O registro desse comércio foi encontrado em documentos não inquisitoriais uma vez
que seus bens não foram sequestrados e, portanto, seu processo não traz inventário. Seu nome
está lançado em meio a centenas de homens e pouco menos que uma dezena de mulheres no
livro de controle das exportações de escravos da Bahia para outras capitanias.249 Maria Bernar
transportara dez escravos da Bahia para a cidade do Rio de Janeiro em empreendimento indivi-
dual, isto é, em seu próprio nome, pagando ela mesma os impostos requeridos, no ano de 1719.
A fonte consultada, contudo, não esclarece se foi a própria Maria quem os levou, pessoalmente,
ao Rio de Janeiro ou atribuiu a realização deste comércio a algum mercador que, no caso, seria
seu intermediário. Contudo, a transação foi firmada em seu nome. O comércio escravagista
realizado por mulheres era um acontecimento raro. Além dela, outras quatro mulheres estão
registradas no mesmo documento, todavia não se sabe se também eram cristãs-novas.
Justificativas para o seu envolvimento neste ramo de negócios não passam de conjectu-
ras. Ainda que seu pai, o médico Francisco Nunes de Miranda já houvesse falecido antes deste
ano de 1719, seus parentes dispunham de uma riqueza razoável para provê-la materialmente.
Hipótese que dificilmente será comprovada é a atribuição nominal da responsabilidade desta
carregação para beneficiar um suposto verdadeiro empreendedor do negócio. Talvez, um dos
seus irmãos ou o seu próprio cunhado, Joseph da Costa, homem envolvido com o comércio
de escravos em conexão direta com portos africanos; ou mesmo, Maria Bernar dispusesse de
recursos financeiros suficiente para realizar uma atividade deste porte.
Esses comportamentos não podem ser considerados atípicos à sociedade baiana sete-
centista, uma vez que mulheres em estado de pobreza podiam engajar-se em determinados

248 Antonio Cardoso Porto devia 150.000 réis referentes a compra de farinha. ANTT/TSO-IL Proc. nº 8.887.
NOVINSKY, Inquisição I, op. cit., p. 70.
249 LIVRO de Passaportes e Guias, 1718-1729, mms. Maço 248. Arquivo Público do Estado da Bahia. Documento
datado em 22 maio 1719.

95
ramos de atividades não competitivos com o mundo masculino, como no caso de Brites Lopes
e Francisca Henriques. Contudo, falta maior aprofundamento nesta questão.

Outra dinâmica: o empréstimo de dinheiro


Sempre que se aborda as atividades de grandes homens de negócios cristãos-novos por-
tugueses, em geral refere-se ao papel de financista que desempenharam frente à Coroa, sobre-
tudo durante o século XVII, aos grandes investimentos capitalistas estatais ou particulares, e
como se aproximaram ou foram aproximados ao poder real, recebendo em alguns casos favo-
recimentos pessoais graças ao capital que punham à disposição dos reis.
Frédéric Mauro menciona o “mercador-banqueiro” caracterizando-o como o momento
do negociante que, ao lado de avultadas transações de compra e venda no mercado colonial e
internacional, fazia do empréstimo a juros uma fonte de rendimentos a ser revertida em seus
próprios investimentos – inclusive novos empréstimos –, gerando mais capital.250 Os juros sem-
pre a 6,25%, tanto no século XVII como no XVIII, era o motu de sustentação deste negócio.251
Mauro destaca dois exemplos, diga-se a princípio, típicos de comerciantes desta nature-
za que viveram o período pré e pós Restauração Portuguesa. Um deles é Duarte da Silva, per-
sonagem amplamente biografada, a quem este historiador considera um eminente banqueiro,
pois atuou como um dos grandes financistas de D. João IV. Por sua disposição, recebeu certo
benefício Real quando preso pelo Santo Ofício.252
O outro, Fernão Martins, distante dos cofres e favorecimentos da Coroa, aplicava seu
capital em empréstimos a negociantes, obtendo extensivos lucros (ainda que aparecem em
seu inventário como créditos a receber), seja em dinheiro ou em mercadorias; nas palavras
de Mauro “Já é, em certa medida, um mercador-banqueiro influente, de radiação nacional e
internacional”.253
Anita Novinsky, ao tratar da posição socioeconômica dos cristãos-novos que viveram
na Bahia no mesmo período que Frédéric Mauro se debruça, delineando-se na Colônia os
conflitos com os holandeses, traz à luz figuras como a de Matheus Lopes Franco e Diogo Lopes
Ulhoa, ricos senhores de engenho e prósperos comerciantes que contribuíram, sem ressar-
cimento ou mercês, no financiamento das campanhas contra as tropas holandesas na Bahia,
nos idos de 1624;254 ou ainda Simão de Leão, que emprestou dinheiro à Câmara de Salvador
provendo-a de recursos nas lutas contra indígenas.255 Eram homens próximos à governança,
aos governadores-gerais que, apesar de desfrutarem uma posição privilegiada na sociedade
baiana, assim como Duarte da Silva, não escaparam dos autos inquisitoriais.

250 MAURO, op. cit., p. 125.


251 Ibidem, p. 126.
252 Ibidem, p. 133; BAIÃO, Antonio. Episódios dramáticos da Inquisição Portuguesa. Lisboa: Imprensa
Nacional; Casa da Moeda, [1919]; CAROLLO, Denise. A política inquisitorial na Restauração Portuguesa
e os cristãos-novos. 1995. Dissertação (Mestrado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1995.
253 MAURO, op. cit., p. 121-127, 133.
254 NOVINSKY, Cristãos-novos na Bahia, op. cit., p. 126.
255 Ibidem, p. 87.

96
Para Bahia setecentista, os homens de negócios cristãos-novos vistos dentre os mais ri-
cos e ativos comerciantes, não tiveram a mesma desenvoltura como financistas ou “mercado-
res-banqueiros”, nem mesmo em pequena escala. Estavam mais propensos a fazer empréstimos
a credores da Bahia, muitos deles militares ou mercadores, do que emprestarem. Poucos foram
os que, esporadicamente, emprestaram pequenas quantias, sempre a juros de 6,25%. Joseph da
Costa, rico participante do comércio internacional, anotou em seu inventário o empréstimo
que fez ao governador de Angola, Paulo Caetano de Albuquerque (1726-1732)256 em mais de
670.000 réis, em moeda dobrões, equivalente, aproximadamente, a 1.675 cruzados.257 A garan-
tia do pagamento era uma letra que Joseph da Costa guardava consigo quando foi preso e a teve
sequestrada pelo Fisco.
Somam-se à Joseph da Costa, os mercadores Antonio Rodrigues Garcia, Antonio Lopes
da Costa, Gaspar Henriques, João de Morais Montesinhos e mesmo o homem de negócios
Antonio Cardoso Porto. Cada um deles expôs uma ou duas transações dessa natureza, empre-
gando pouco capital que variava entre 640 réis a 250.000 réis.258
Outros falam de créditos a receber, porém não esclarecem a proveniência, como o co-
merciante Diogo de Ávila Henriques, que ao passar para as Minas Gerais emprestou 135 oita-
vas de ouro a diferentes pessoas que ainda não o haviam pago no tempo de sua prisão pelo Tri-
bunal de Lisboa. Ou ainda, além de não declararem a natureza dos créditos, os têm vagamente
anotados em seus cadernos ou Livros de Razão, sem “escritos”, como Antonio Fernandes Perei-
ra, a quem poderia ser um grande credor se fosse possível reconhecer de que créditos se refere
quando informa aos Inquisidores “que outras pessoas mais lhe são devedoras de que agora não
se lembra e constará de seu livro”.259 Ou ainda, o lavrador Manuel Nunes Sanches, que declara
“que pelos seus papéis constaria as dívidas a que ele é credor”.260 Que capital passivo a receber
era esse? Provinham de empréstimos ou de vendas?
Manuel Mendes Monforte foi o único nesta população arrolada que se aproximou ao
“banqueiro”, de que fala Frédéric Mauro. A maior parte do seu capital circulante, 61,4% resul-
tou de empréstimos. Cifra que ultrapassava largamente o capital empregado nas exportações e
os devidos de importações ou outros negócios.
Das exportações de açúcar e tecidos (maior parte da exportação era tecidos) Monforte
declarou a receber 842.000 réis; mais 6 mil cruzados que lhe seriam pagos vindos de Portugal
e, as pequenas importações que fez de artigos de uso médico (uma botica), pessoal e doméstico

256 Seu governo findou com a sua morte em 1732. Foi um homem de destaque na Coroa portuguesa. “Serviu na
guerra da grande Aliança; assim em Portugal; como em Catalunha, com singular distinção [...] Foi Sargento mor
de Batalha e Governador da Praça de Elvas [...] Era filho de Manuel Nunes Leitão de Albuquerque, Governador
da Paraíba, e Ilha Terceira, e de sua mulher, D. Joana Mascarenhas”. CORRÊA, Elias A. Silva. História de Angola.
Lisboa: Ática, 1937. v. 1, p. 358, 359.
257 Um dobrão, valendo 32 cruzados ou 12$800 réis. SIMONSEN, op. cit., v. 2, 1944, p. 344.
258 Valores referentes ao empréstimo que fez Antonio Cardoso Porto, 640 réis, a um Joseph Pereira. E, 250.000 réis
foi o montante que Antonio Roiz Garcia deveria receber do empréstimo e da venda de um escravo a Bernardo da
Silva Gramacho, morador no Rio São Francisco (provavelmente a Vila de São Francisco do Conde, no Recôncavo
baiano). ANTT/TSO-IL Proc. n°s. 8887, 6292.
259 ANTT/TSO-IL Proc. n° 10481; NOVINSKY, Inquisição I, op. cit., p. 35.
260 ANTT/TSO-IL Proc. n° 11824, NOVINSKY, op. cit., p. 209.

97
(roupas, miudezas), cujo valor não foi precisamente declarado. Essas operações comerciais re-
presentavam 38,6% do dinheiro circulante, enquanto os empréstimos, já dito, correspondiam a
61,4% ou, em moeda, 8.395.600 réis ou 20.989 cruzados. Uma fortuna para a época.
A clientela que se valia do dinheiro de Monforte vinha de diferentes posições socioeco-
nômicas e de diferentes lugares da Colônia. Nela estavam mercadores, clérigos, militares, um
médico e uma viúva, moradores em Salvador, no interior da Capitania ou ainda nas Gerais.
Alguns pagavam no prazo pré-estabelecido, outros deixavam rolar a dívida. Dentre seus clien-
tes estavam: um sargento-mor que teve Joseph da Costa Viana, importante homem de negócio
cristão-velho, como fiador no empréstimo de 5 mil cruzados; e um arcediago, Manuel Fernan-
dez Varzim, dono da casa onde Monforte vivia, de cuja dívida em 300 mil réis, abatia-se o valor
anual do aluguel, em torno de 102 mil réis.
Os empréstimos corriam a juros de 6,25% sobre o valor total não importando o prazo ou
a forma de efetuação do pagamento.261 Manuel de Figueiredo Mascarenhas, por exemplo, mo-
rador no Recôncavo assumiu a dívida deixada por falecimento de seu filho e teve de Monforte
mais cinco anos para sua quitação.
O prazo era estipulado, entretanto a forma de pagamento, em mercadoria ou espécie,
não. Os juros poderiam ser dispensados no correr na dívida, estabelecendo acordo entre as
partes dada a necessidade do devedor. Luiza Telles de Menezes, filha de tradicional família do
açúcar, por morte de seu marido, Manuel Ferreira de Souza, pagou a Monforte parte dos 400
mil réis devidos, sem contar os juros, entregando-lhe 99,5 arrobas de açúcar.
Jerônimo Rodrigues de Castro residente em Salvador, cunhado de Monforte, devia-lhe
450 mil réis. Em razão de sua pobreza foi beneficiado com um acordo verbal para dispensa
dos juros no caso dele efetuar o pagamento do valor principal. Um dono de loja na cidade da
Bahia, João Marinho de Souza, teve redefinição de seu débito de 85 mil réis, pois estava falido
e já havia pagado os juros anuais, conforme acordo inicial, restando apenas um ano de juros e
o total do valor principal.
As dívidas provenientes dos empréstimos tinham ainda a alternativa de serem trespassa-
das a terceiros, que bem podiam ser credores, devedores ou fiadores daquele que lhes transferiu
o débito, e passavam a ser os pagadores legais. Lourenço Gomes Coelho, capitão-mor do mato
tornou-se assim devedor dos juros sobre 200.600 réis que um Thomé Pereira de Faria tomara
a Monforte. Dinheiro a fundo perdido, talvez tenha sido os 48 mil réis emprestados a um mo-
rador da Bahia, Fernando de Spina, que transferiu o débito em forma de letra para Joseph da
Távora, um alfaiate em Salvador, que fugiu para as Minas sem pagar a Monforte.
A garantia que o credor seria ressarcido era o registro do débito em “escritos” ou “escri-
turas”, onde se declarava o valor principal e eram estipulados os juros e o prazo para pagamen-
to. Ainda assim, vigoravam a confiança e a palavra como bons avalistas. Aos escritos davam-se
procuradores e fiadores os quais podiam mesmo acabar por assumirem as dívidas. A viúva do
Juiz dos Órfãos em Salvador, D. Maria de Burgos, valeu-se de 2 mil cruzados emprestados por
Monforte e teve seu filho como Procurador, ficando ambos responsáveis pela quitação.

261 Percentual em vigor desde, ao menos, o século anterior, tanto na Bahia como em Lisboa. É esta taxa que Frédéric
Mauro dá entre os mercadores-banqueiros de Portugal no século XVII. MAURO, op. cit., p. 132.

98
Outra garantia era o penhor. Um médico, João Pereira de Vasconcelos, assegurou o pa-
gamento com o compromisso do “escrito”, e com um broche ou joia que deixou em poder de
Monforte. Vasconcelos, bom pagador, não lhe devia mais nada além do referente ao ser pago
no ano que Monforte foi preso, 1721.
Fianças e trespasses trazem uma situação de empréstimo singular. O sargento-mor Do-
mingos Ramos da Cunha pegara na mão de Monforte 5 mil cruzados à razão de 6,25% de
juros, como era o padrão. Fez seu fiador Joseph da Costa Viana, mencionado anteriormente.
Falecendo, a condição de pagador do valor dos juros devidos não foi assumida pelo fiador, mas
pela viúva do sargento-mor, quem, por sua vez, transferiu este compromisso sob “palavra” ao
coronel e contratador das baleias, Joseph Rodrigues de Araújo Rocha, quem até a prisão de
Monforte, honrara a dívida pagando-lhe, até então, parte do juro. Veja-se que esse empréstimo
percorre vários caminhos, levando anos para ser liquidado. Dinheiro que permanece como
saldo passivo durante muito tempo, obstando o reinvestimento. Homem com poucos cabedais,
como a maioria dos inventariados, não podiam se valer de tais transações.
Neste exemplo do sargento-mor e noutros percebe-se que à morte do devedor eram
sempre seus herdeiros quem se constituíam os novos devedores ou o pagamento ficava por
conta do testamenteiro, como foi o caso de Sebastião Sutil de Siqueira, cunhado e testamenteiro
de Diogo Pereira da Silva, quem como tal estava obrigado a quitar o restante devido sobre os
juros do principal de 200 mil réis e não havia ressarcido até um ano antes da prisão de Manuel
Mendes Monforte.
Ao avaliar todos esses casos percebe-se que mesmo com todas as garantias dadas pelas
“escrituras” ou “escritos”, sempre assinados pelas partes e sem notícia de registro em órgão ju-
dicial competente, o credor passava anos sem receber o total do pagamento.
Monforte referiu-se muitas vezes a ressarcimentos que ainda estavam ocorrendo um
ano antes de ser preso, porém nunca datou quando o empréstimo fora efetuado. Mortes, fugas,
trespasses, falências, pobreza, tudo isso impedia uma circulação mais dinâmica do dinheiro e,
consequentemente, sua imediata aplicação em outros investimentos.
Quando Frédéric Mauro fala que “O comércio e o banco se ajudam mùtuamente à seme-
lhança do cego e do paralítico”,262 sugerindo uma interdependência financeira imprescindível
ao andamento dos negócios do “mercador-banqueiro” e a inexistência de “banqueiros puros”,
sem outra ocupação econômica, ele estava a falar de Duarte da Silva, banqueiro e comercian-
te simultaneamente; a situação de Monforte leva ao questionamento: como reverter o lucro
dos empréstimos em negócios comerciais se sua maior fortuna provinha desse capital passivo?
Com efeito, conclui-se que os maiores ganhos de Monforte foram obtidos por esses emprés-
timos porquanto, se encontram arrolados no seu inventário, 15 negociações dessa natureza
contra sete com tecidos e três com açúcar, em termos gerais, computando-se as exportações e
as vendas à população local.

262 MAURO, op. cit., p. 133.

99
O comércio cotidiano de escravos
Falar sobre Brasil Colônia sobressai sempre o assunto sobre a comercialização ou tráfico
de escravos africanos. Essa prática corriqueira à população colonial em grande ou pequena
escala, importando-os de África em levas de inúmeras “peças”, usando a linguagem da época,
ou comprando e vendendo em transações que, isoladas, são índices insignificantes para a eco-
nomia, foi também empreendida pelos cristãos-novos que participam deste estudo.
Como já mencionado em outra ocasião, comerciantes de escravos propriamente ditos,
aqueles que embarcavam para a África com a missão de buscar escravos, foram encontrados
nas fontes pesquisadas apenas Joseph da Costa e Thomas Pinto Correia. E mercadores que os
negociavam seja no âmbito da capitania da Bahia ou estendendo o comércio a outras regiões da
Colônia foram Gaspar Henriques, seu primo Diogo de Ávila Henriques e Jerônimo Rodrigues. A
atividade de todos eles já foi discorrida. Agora, a abordagem recai naqueles comerciantes que não
estavam cotidianamente envolvidos neste tipo de mercancia, só a exercendo esporadicamente.
Reporta-se, primeiramente, aos cristãos-novos inventariados Antonio Rodrigues Dias
e Diogo de Ávila, ambos envolvidos com o comércio local. Rodrigues Dias foi um ativo mer-
cador da Vila de São Francisco de Sergipe do Conde, em cujas transações de venda estavam
escravos, tecidos, cavalos e vacas. Dois dos seis pagamentos que tinha a receber provinham da
venda de escravos. Diogo de Ávila, em seu pequeno inventário, arrola duas vendas de escravos
e aquisição de outras mercadorias não discriminadas.
Antonio Cardoso Porto, por sua vez, destacando-se como homem de negócios, além de
diversas carregações contendo mercadorias variadas que enviou a título de exportação para
Angola, Benin e Costa da Mina, teve outrossim apenas um trato declarado de importação de
escravos dessas localidades, mandando-os buscar por meio de intermediário e valendo-se de
navio alheio. O que prevalecia no comércio com África era a exportação de outras mercadorias,
levando a crer serem artigos têxteis que importava de Portugal com bastante frequência ou
mesmo comprava de comerciantes da Bahia.
Em Salvador, Cardoso Porto encarregava quatro mercadores para arrematar escravos em
praça. Há também o registro de apenas uma venda de escravos. Esta foi feita ao mercador Ma-
nuel Nunes da Paz, que já vivendo em Minas Gerais retornou à Bahia para adquirir os escravos
oferecidos por este homem de negócios.
Pequenas e isoladas vendas de escravos foram efetuadas por Félix Nunes de Miranda
e seus primos Antonio de Miranda e Pedro Nunes de Miranda. O primeiro, pequeno comer-
ciante em Salvador dedicado à venda no varejo de óleo de baleia, teve que vender um escravo
pertencente aos herdeiros de seu irmão, do qual era testamenteiro, e obrigado a repassar uma
escrava que se lhe haviam confiado a venda.263
O outro, Antonio de Miranda, curtidor de couro de grande clientela, vendeu uma es-
crava a um morador da Bahia; Pedro Nunes, seu primo, desfez-se de quatro escravos músicos,

263 ANTT/TSO-IL Proc. nº 2293.

100
tocadores de charamela, vendendo-os ao preço de 3 mil cruzados.264 Valor altíssimo, estimado
pela especialização destes africanos.
O escravo, segundo concluiu Jacob Gorender, era um bem que funcionava como capital-
-dinheiro, circulando como moeda, tal como outras mercadorias de significativo valor, como
açúcar e tecidos. Um caso que vem a ilustrar a ideia deste historiador é o pagamento de dívidas
mediante a doação de escravos, como Antonio Fernandes Pereira, por exemplo, um mineiro do
interior da Bahia, que ressarciu com escravos uma dívida de oitocentas oitavas de ouro – uma
pequena fortuna para a época. Disse ele que “em segurança desta dívida lhe deu (a seu credor)
oito negras”.265 Esses cristãos-novos não fugiam à regra imposta pela sociedade escravista.

O comércio de tecidos
Tecidos foi outra mercadoria de grande circulação na Colônia, chegando e saindo do
Brasil ou percorrendo caminhos entre as capitanias. Tal como escravos, praticamente todos os
compravam e vendiam. É um truísmo lembrar que a extensão do comércio escravagista decor-
ria, em termos econômicos, da implantação da mão de obra escrava do sistema colonialista. E
os tecidos? Qual a razão para o desenvolvimento tão acentuado deste comércio?
O século XVIII foi por excelência o momento em que a indústria têxtil portuguesa,
favorecida pelo acordo firmado pelo Tratado de Methuen (1703), ganhou prosperidade. Na
década de 1720, D. João V retomou os esforços para proteger este setor contra a concorrência
estrangeira (inglesa, francesa, holandesa) e impulsionou a produção de seda. Criaram-se os
produtos, criaram-se os consumidores.
A importância da indústria têxtil e sua comercialização para a economia colonial está
vinculada ao comércio ultramarino, “[...] são eles a moeda de troca tradicional para o ouro, os
escravos, o marfim, o açúcar”266 e, na Bahia, o tabaco não era artigo ínfimo nesta economia de
troca, sendo fundamental para o comércio de escravos na costa africana ocidental.
Os mercadores da Bahia absorveram esta manufatura aproveitando-se, inclusive, das
facilidades de comercialização sobretudo nas Minas Gerais, onde o imposto de entrada de te-
cidos não excedia a 1,0%.267 Apesar de suas relações comerciais terem sobrevivido às medidas
restritivas entre os anos 1702 e 1711, regulamentadas pelo Regimento das Minas Gerais,268 mer-
cadores baianos nunca interromperam suas idas e vindas pretendendo o abastecimento desta
região aurífera, mesmo competindo com seus confrades do Rio de Janeiro que dela estavam
bem mais próximos.

264 Charameleiros, ou seja, “tocador de charamela, instrumento musical de sopro semelhante à clarineta moderna”.
ANTONIL, op. cit., p. 93, 211. Esses escravos foram todos vendidos a Silvestre Marques da Cunha, por 3.000
cruzados. ANTT/TSO-IL Proc. nº 9001.
265 ANTT/TSO-IL Proc. nº 10481. NOVINSKY, Inquisição I, op. cit., p. 36.
266 Mauro, op. cit., p. 130.
267 Ibidem, p. 202.
268 De 1702 a 1711, o Regimento das Minas regulava o comércio entre Bahia e Minas, impedindo-os de utilizar os
caminhos que para lá levavam o sertão, apenas permitido para a passagem de gado. Para alcançar essas terras,
o mercador percorria a via de acesso mais longa através da região paulistana, passando pelo Rio de Janeiro.
ZEMELLA, op. cit., p. 79.

101
Quem eram os cristãos-novos comerciantes de tecidos na Bahia setecentista? Eles esta-
vam dentre aqueles homens de negócios dos quais já foram discorridas suas atividades, como
Manuel Mendes Monforte, Antonio Cardoso Porto, outros mercadores que complementavam
suas carregações de escravos para as Minas com tecidos e miudezas, citando Gaspar Henriques
e Diogo de Ávila Henriques. Exclusivo a este ramo de negócios encontra-se o mercador David
de Miranda, importando tecidos de Lisboa para vender em Minas Gerais.
Monforte teve avultadas transações com tecidos e, parece, não estava inclinado a que-
brar as regras do monopólio instituído pela Coroa, nem mesmo quando os adquiria de forne-
cedores estrangeiros. Uma das carregações que seu sócio e correspondente em Lisboa Cristiano
Abrão Vandelvir lhe mandou provinha do norte da Europa; Monforte não soube precisar se de
Hamburgo ou alguma região da Holanda.
Três das cinco exportações que registrou em seu inventário objetivava suprir Angola e
Ilha de São Tomé com tecidos, numa conexão comercial que se iniciava em Portugal de onde
recebia remessas de panos – baetas, bretanhas, tafeciras – e outros artigos têxteis enviados por
Vandelvir. Da Bahia, manteve conexão nestas terras com o homem de negócio Manuel Salzedo,
em Luanda, e com o sargento-mor Lourenço de Sousa Rego, em São Tomé. Não informou o
montante dos produtos comercializados certamente por temor do confisco de seus bens pela
Inquisição.
Outrossim, parte das peças de tecidos que recebia em Salvador chegaram as suas mãos
como pagamento pela exportação de açúcar, realizando uma transação com Vandelvir que
pode ser simplificada no seguinte esquema: Manuel Mendes Monforte produzia açúcar em seu
engenho e o enviava para Lisboa onde tinha consolidado o contato comercial com Vandelvir.
Este, vendia o açúcar em praça europeia e devolvia a Monforte o lucro em tecidos ou mesmo
dinheiro. O transporte dos artefatos era feito por outros mercadores que transitavam os mares
ou por um correspondente de ambos, conhecido como Souza e Silva.
Por esta via, chegava ao porto de Salvador os tecidos que Monforte exportava para fora
da Colônia e mesmo para o interior dela, seja o sertão baiano, onde vendeu uma pequena
quantidade no valor de 72 mil réis, ou para Nova Colônia do Sacramento, uma carregação com
cem peças de tecido de bretanha, cada uma valendo 3.200 réis.
Antonio Cardoso Porto, que já estava neste ramo de negócio desde a adolescência na
Europa, não se especializou na compra e venda de tecidos; antes, introduzia todo tipo de mer-
cadoria em suas agências, tais como alimentos (arroz e farinha de trigo, ou “do reino”), armas,
instrumentos agrícolas e cavalos. No que concerne aos produtos têxteis, eram por ele vendidos
na praça de Salvador luvas de homem, meias, tafetás e lenços da Índia, referindo-se apenas às
enumeradas no seu inventário, sem contar as ditas “carregações” que enviara ao Rio de Janeiro,
Minas Gerais e costa africana.269
Ainda assim, é plausível alegar que os tecidos eram o grosso de seu comércio, dado não
só à específica viagem que fez a Castela, em 1724, para buscar panos, ou às pequenas vendas
efetuadas a moradores de Salvador. Prova essa hipótese também, as instruções que recebeu
de mercadores portugueses sobre o encaminhamento que ele deveria adotar para as peças de

269 ANTT/TSO-IL Proc. nº 8887.

102
tecidos não vendidas. Tais instruções fazem parte das cartas trasladadas em seu processo in-
quisitorial.
Neste ponto encontra-se a conexão entre Antonio Cardoso Porto e Manuel Mendes
Monforte. Sem que nenhum deles tenham aludido um ao outro em suas causas no Santo Ofí-
cio, é em uma dessas cartas supracitadas que se revela a parceria entre eles no comércio de
tecidos ou mais ainda, a proeminência e competência de Monforte também neste setor.
Diz a carta escrita por um comerciante cristão-novo português, João Gomes de Carva-
lho – que viveu e casou em Salvador com uma prima de Joseph da Costa –, e subscrita por um
Manuel cujo sobrenome está ilegível, que Cardoso Porto entregasse a Monforte parte das peças
de tecidos que não houvessem sido vendidas a fim que este as negociasse, além de ressaltar que
certamente a mercadoria seria repassada, sendo Cardoso Porto favorecido com parte do lucro:
[...] no caso que lhe tenham entregue a fazenda, veja se pode dar saída em que se já não
a quarilhou [sic] ou bem o fazer algum troco do resto que lhe ficasse alguns rolos de
tabaco que sejam bons, há fazer muitos [...] e no caso que de todo em tudo não possa
acabar de lhe dar saída em tais termos, o que lhe restar o entregue a [?] doutor Manuel
Mendes Monforte o que escreve me faça mercê tomar entrega dela como também sou
de sentimento que o dito s[enh]or lhe entregue a metade do procedido do que há de
remeter-me [...].270

Este fragmento é essencial para que se perceba a amplitude e a dinâmica do comércio


que corria entre a Colônia e a Metrópole. Fazenda, compreendida neste contexto como teci-
do, era artigo que gerava cabedais não desprezíveis e não deveria ser desperdiçada. Por isso, o
principal beneficiário da carregação que mandou a Cardoso Porto pedia-lhe para “dar saída”. E,
para isso, devia servir-se de Manuel Mendes Monforte.
Ora, se ambos são vistos pelos seus inventários como homens igualmente conectados
com o comércio internacional, esta ressalva à facilidade de Monforte comerciar induz a uma
extensão e solidez de suas conexões, não perceptíveis nas declarações que fez no momento do
inventário, nem em outras sessões do processo inquisitorial.
David de Miranda destaca-se como mercador especializado no trato de tecidos da Bahia
para as Minas, antes de sua primeira prisão no Santo Ofício e, depois dela, sentenciado de novo,
retomou este comércio, desta vez incrementando as importações com Lisboa.271 Ele comprava
peças de tecidos e mandava fazer roupas para atender sua freguesia mineira. Aos Inquisidores
definiu claramente sua atividade econômica dizendo que “como seu trato era levar fazendas
para as Minas, tinha em casa de várias mulheres costureiras e por casa de alfaiates muita roupa
e vestidos que lhe haviam mandado fazer [...]”.272
As dívidas contraídas até sua prisão (1714), todas relacionadas a compra de tecido a
mercadores da Bahia, revelam um caráter regional à prática mercantil exercida. No entanto,

270 ANTT/TSO-IL Proc. nº 8887.


271 David de Miranda era morador na cidade de Salvador. Depois que saiu dos cárceres da Inquisição pela segunda
vez, em 1729, encontrando-se com dificuldades em se estabelecer na praça comercial da Bahia, mudou-se para
a cidade do Rio de Janeiro, onde foi reincorporado às operações comerciais graças a ajuda de parentes. ANTT/
TSO-IL Proc. nº 7489.
272 ANTT/TSO-IL Proc. nº 7489. NOVINSKY, Inquisição I, op. cit., p. 78.

103
após retornar à Bahia sentenciado pelo Tribunal de Lisboa, as dificuldades que encontrou para
retomar suas atividades o levou ao Rio de Janeiro onde, apoiado por um primo, começou a
importar diretamente de Lisboa em conexão com correspondentes do homem de negócios
lisbonense Francisco Pinheiro, situados no Brasil. Com Pinheiro, David de Miranda manteve
longo contato comercial.273
Nesta fase, já vivendo nas Minas do Ribeirão do Carmo, ampliou seu negócio com te-
cidos firmando, inclusive, sociedade com seu primo Francisco Nunes, que já vivia no Rio de
Janeiro. As informações disponíveis sobre a vida econômica de David de Miranda são cartas e
prestações de contas enviadas a Francisco Pinheiro por seus agentes. Pois, estranhamente, em
seu segundo processo inquisitorial, instaurado em 1728, não há inventário.
Os tecidos que importava de Lisboa eram primaveras, saietas, crepes, tafetás, droguetes,
de várias cores – que fazia também diferenciar os preços das peças. Das transações com Fran-
cisco Nunes empregaram juntos mais de 800 mil réis, e naquelas importações que fez individu-
almente o saldo ultrapassava 350 mil réis, isto entre 1721 e 1724.274
O crescimento comercial de David de Miranda foi, talvez, mantido no mesmo patamar
até 1746 quando se encerram as informações a seu respeito nas prestações de contas enviadas a
Francisco Pinheiro. Por outro lado, esses dados talvez só tenham vindo à tona por se tratar de
registros não inquisitoriais e talvez ainda David tivesse um volume maior de negócios.
Esse mercador contribuiu para suprir o comércio mineiro de vestuário e tecidos, que
somente se tornou autossuficiente em fins do século XVIII com o desenvolvimento de plan-
tações de linho e algodão e criação de ovelhas para fornecimento de lã. Criando sua própria
tecelagem, Minas Gerais competiu com tecidos europeus no mercado local.
Em resumo, os mercadores da Bahia estavam basicamente voltados para o abastecimen-
to das Minas Gerais no início de século XVIII. Os principais artigos negociados foram escravos
e tecidos, adquiridos na praça comercial de Salvador das mãos de outros mercadores e homens
de negócios em vendas por atacado. O repasse de mercadorias era, amiúde, em pequena quan-
tidade e atendia a população local. O pagamento nem sempre era oficializado pelos “escritos”.
Muitas das negociações eram firmadas na palavra das partes, demonstrando a prevalência de
uma relação de confiança, mas que também poderia ser rompida levando a litígio judicial, por
exemplo, uma compra não paga devidamente.
Sempre formavam associações entre si, algumas vezes valendo-se das relações de pa-
rentesco, como foi o caso explicitado da família de Gaspar Henriques. As partes interessadas
empregavam mais ou menos o mesmo capital ou cada um era proporcionalmente ressarcido do
investimento, além do que eram igualmente responsáveis pelas perdas e danos.
As nuances que distinguiam essas três situações de comércio – homem de negócio, mer-
cador ou tratante e comerciante – eram, em sentido genérico e talvez metodológico, o mon-
tante de cabedal a ser empregado ou empregado nas negociações, a frequência e o volume das
exportações e importações, como também o mercado que supriam.
Podem ainda ser incluídos no setor comercial as funções de capitão de navio e homem
do mar, pois estes não apenas comandavam as embarcações que os levavam a portos distante

273 LISANTI, op. cit., v. 2, p. 344, 352-355, 491-494.


274 Ibidem.

104
da costa do Brasil, como eram responsáveis eles mesmos pelas negociações nos locais de des-
tino. Muitas vezes ser capitão de navio ou apenas homem do mar facilitou negociações por
conta própria nos locais onde aportavam a serviço de donos de navio e homens de negócios.
O exemplo de capitão de navio e homem de negócio exposto é de Joseph da Costa, já tratado
largamente na qualidade de comerciante de escravos da Bahia.
Ao fim e ao cabo, mercadores e tratantes tinham a mesma função comercial. Não esta-
vam isentos do comércio de escravos, e aqueles que a isso eram especializados aproveitavam o
comboio para transportar diversos outros artigos. Já homem de negócio ficou sendo um termo
restrito ao grande exportador e importador ultramarino.

AVALIAÇÃO SOCIOECONÔMICA: BENS E CONFISCO

Os cristãos-novos da Bahia setecentista não constituíram um grupo social e economicamente


homogêneo. A apreciação do patrimônio material declarado nos inventários – representados
pelos bens móveis e imóveis, dívidas e créditos – permitem perceber uma situação econômica
próxima ao momento da prisão. Contudo, vale lembrar, muitas vezes os valores não eram de-
clarados ou os eram imprecisamente, já que tentavam se resguardar de um total confisco por
parte da Inquisição.275
Algumas vezes é possível chegar a uma estimativa, comparando-se qualidade e natureza
dos objetos descritos com bens similares arrolados em outros inventários ou calculando-os em
base a preços correntes na época, estudados e apresentados em trabalhos de historiadores da
economia colonial.
As dívidas e os créditos por seu turno, quando não explicitados detalhadamente suas
origens e cifras, permitem apenas conhecer nomes de credores e devedores, o que talvez favo-
reça em algum instante definir redes de negócios, mas não conhecer as transações propriamen-
te ditas e nelas situar os inventariados.
Portanto, apesar de imprescindíveis à avaliação do patrimônio material e posição socio-
econômica de cristãos-novos processados, os inventários fornecem apenas uma noção destes
aspectos no momento próximo às prisões, consequentemente, não são um balanço da progres-
são de toda uma vida econômica, são inventários In vitae.
O que irá caracterizar as graduações de riqueza – aqui classificadas, segundo o padrão
adotado pela historiadora Anita Novinsky, em magnatas, ricos, remediados e pobres – parâme-
tros vigentes na Colônia que, segundo Alice Canabrava, compreendem à
[...] totalidade dos haveres ou bens, possuídos pela família, tais como objetos,
móveis, metais, jóias, utensílios e implementos, escravos, animais com valor de troca,

275 Sobre os bens dos cristãos-novos processados pela Inquisição, cf. BRAGA, Isabel M. R. M. Drumond. Bens de
hereges: Inquisição e cultura material: Portugal e Brasil (séculos XVII-XVIII). Coimbra: Imprensa da Universidade
de Coimbra, 2012.

105
propriedades rurais e urbanas, títulos de crédito, não se incluindo, portanto, alimentos,
bebidas, salários que significam rendimentos.276

Os inventários os classificam em bens de raiz e móveis incluindo-se, nesses últimos,


escravos e animais, como refere-se um dos inventariados, dizendo que “não tinha bens de raiz,
e móveis tinha duas negras [...]”.277 Considera-se nesta apreciação as mercadorias armazenadas
– sejam elas secas ou molhadas –, pois constituíam um capital passivo.
As avaliações patrimoniais expostas a seguir referem-se a cristãos-novos com diferentes
níveis de riqueza, sobre os quais se abordou as atividades econômicas. Seus patrimônios serão
avaliados individualmente posto que, os vínculos de parentesco entre alguns deles não se tra-
duziam em propriedades e bens comuns.
A exceção está no caso de Joseph da Costa e sua esposa, Ana Bernal de Miranda, uma
vez que a posse dos bens é compartilhada e provém de uma única fonte de recursos, o capital
de Joseph da Costa. Além do que, foi essa cristã-nova quem apresentou artigos luxuosos, locu-
pletando assim aqueles declarados por seu marido.
Cristãos-novos que podem ser reputados, à priori, como magnatas, detentores de maior
fortuna, são os homens de negócios Manuel Mendes Monforte, Manuel Lopes Henriques (am-
bos também senhores de engenho) e Joseph da Costa. De fortuna média ou homens ricos são
classificados o homem de negócios Antonio Cardoso Porto, os mercadores Diogo de Ávila
Henriques e Gaspar Henriques, os mineiros Antonio Fernandes Pereira e Manuel Nunes San-
ches, este último também lavrador, e o curtidor de couros Francisco Rodrigues Dias.
Os menos abastados – remediados – estão o mercador e lavrador Pedro Nunes de Mi-
randa e seus primos: o comerciante de loja Félix Nunes de Miranda e o mercador de tecidos e
roupas David de Miranda. Também encontram-se o meirinho Simão Rodrigues Nunes, o mer-
cador Antonio Lopes da Costa, irmão de Joseph da Costa, e o cirurgião de naus Álvaro Ferreira
da Silva, dentre outros não menos importantes.
E, destituídos de bens ou em condição de pobres serão aqui tratados o mercador Miguel
Nunes de Almeida, filho de Félix Nunes de Miranda; Diogo de Ávila, irmão de Gaspar Henri-
ques, e o comerciante de escravos em África, Thomas Pinto Correia.

Avaliação dos bens móveis e imóveis inventariados


Para determinar a graduação de riqueza observa-se aqui a composição dos bens e seu
representativo numérico (quantidade e valor quando indicados), confiscado pelo Santo Ofício,
bem como o saldo positivo advindo da diferença entre dívidas e créditos. Os bens declarados nos
inventários distribuem-se essencialmente em bens de raiz (imóveis), mobiliário, roupas, armas,
objetos em ouro, prata e pedras preciosas, louças, dinheiro líquido, alimentos e mercadorias, es-
cravos, animais. Outros, sem classificação definida, foram declarados em pequena quantidade.

276 CANABRAVA, Alice apud LEWKOWICZ, Ida. Confiscos do Santo Ofício e formas de riquezas nas Minas Gerais
do séc. XVIII. In: NOVINSKY, Anita; CARNEIRO, M. Luiza Tucci (Org.). Inquisição: ensaios sobre mentalidade,
heresias e arte. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1992. p. 208-223, 209, 217 - nota 6.
277 Palavras de Simão Rodrigues Nunes em seu Inventário. ANTT/TSO-IL Proc. n° 1001; NOVINSKY, Inventários
I, op. cit., p. 240. Trata-se de bens semoventes.

106
Bens de raiz
Bens de raiz ou imóveis compreendem propriedades agrícolas (terras, fazendas, enge-
nhos, sítios), urbanas (casas de moradia, curtumes, estabelecimentos comerciais) e lavras de
minério (ouro e diamante). Como se pode observar pela exposição, os inventariados que afir-
mavam a posse desses bens eram, em sua maioria, homens que exerciam atividades econômi-
cas fora das cidades. Nessas, prevaleciam os mercadores que quase nunca, mesmo entre os mais
ricos, declaravam sequer a propriedade da casa onde residiam.
Dentre os homens classificados como magnatas apenas Manuel Mendes Monforte e Ma-
nuel Lopes Henriques, ambos senhores de engenho e homens de negócios, registraram seus
imóveis rurais situados em Matoim, Recôncavo baiano, área de desenvolvimento da cultura
açucareira. Monforte é dono um engenho ou fazenda chamado “O Salgado”, mas sua residência
em Salvador era alugada e pertencia ao arcediago Manuel Fernandes Varzim.
Lopes Henriques, mais dedicado à agricultura, teve três fazendas, duas delas de cana e uma
com fins pecuários.278 Além desses, havia ainda o engenho de açúcar que estava em plena produ-
tividade quando foi preso; também menciona ser dono de “casas” em Salvador e de um armazém
para estocagem de mercadorias.279 Registra no inventário engenho “Inovação de Santa Tereza”, na
própria freguesia de Matoim e as duas fazendas de cana, a “Fazenda da Praia” e a “Pau de Gamela”.
Joseph da Costa, possivelmente dada a sua condição de homem de ida e vinda, sugere
apenas ter uma casa residencial em Salvador quando diz “em sua casa na cidade da Bahia”, não
explicitando ser proprietário. Igualmente refere-se à “loja” que mantinha em Pernambuco, não
fornecendo detalhes, tampouco quanto a funcionalidade.280
Imóveis não foi também o bem mais cotado dentre os inventariados de poder aquisitivo con-
siderado elevado, os homens ricos. Antonio Cardoso Porto, por exemplo, homem de negócios bem-
-sucedido não os declarou, tampouco Diogo de Ávila Henriques ou seu primo Gaspar Henriques.
Estes faziam parte unicamente do patrimônio de dois mineiros, um curtidor de couro
e um comerciante. Mineiros, Manuel Nunes Sanches e Antonio Fernandes Pereira, possuíam
lavras de ouro. Sanches, quem pode ser avaliado como homem rico, apresentou dois sítios
como bens imóveis, todos no interior da Capitania da Bahia, ou ainda pertencentes ao Arce-
bispado da Bahia, como Fanados. Um localizado na comarca do Sabão, ao mesmo tempo sítio
de roça e lavra de ouro – este em sociedade com um companheiro – e outro em Minas Novas
de Fanados, onde morava, destinado exclusivamente à lavoura, provavelmente de milho, como
mencionou alguns de seus denunciantes.
Já Fernandes Pereira, concentrou suas atividades mineradoras em Serro Frio, região das
Gerais, onde tinha uma roça – certamente para extração aurífera –, uma morada de casas e par-
te do ouro que corria nas “águas do Morro de Mato Dentro [do Serro Frio]”,281 em parceria com

278 Refere-se a uma “fazenda de pasto”, a qual naturalmente deveria alugar para terceiros.
279 Os valores desses imóveis, quando existentes, encontram-se nos quadros em anexo sobre o patrimônio material
dos inventariados.
280 Por este termo “loja”, subentende-se um escritório, na acepção atual. Ao que se infere estar Joseph da Costa
estabelecido na praça comercial da Capitania de Pernambuco.
281 ANTT/TSO-IL Proc. nº 10481.

107
um Diogo de Aguiar Tiago. Na Bahia, “era senhor e possuidor de uma roça”, também de mine-
ração, na localidade de Minas de Araçuaí, mais tarde pertencente à Capitania das Minas Gerais
O lavrador de milho, Pedro Nunes de Miranda, enquanto foi mercador na Bahia, antes
de 1714, ano em que foi levado à Inquisição, não possuía imóveis; somente adquiriu uma fa-
zenda, onde morava e plantava, ao ir para o Rio das Mortes, Minas Gerais. Sua fazenda, diz,
“[...] em que mora chamada Calheiros [...] consta de matos e terras que se semeiam de milho e
é livre de todo o encargo [...]”.282
O curtidor de couros Francisco Rodrigues Dias possuía o seu curtume e a terra que nela
estava assentado em uma área de Salvador, essencialmente voltada para atividade coureira, a
Fonte da Baixa dos Sapateiros. Antonio de Miranda, também dedicado a esse ofício, prova-
velmente fosse dono de um sítio na Vila de Cachoeira, Recôncavo. Em várias confissões, seus
denunciantes disseram que neste lugar realizavam cerimônias judaicas. Antonio, não declara
esta propriedade em seu inventário, apenas o aluguel do curtume onde trabalhava, na cidade
da Bahia. E o mercador para as Minas, João de Morais de Montesinhos, citou em uma das suas
confissões ser proprietário de uma roça nos arredores de Salvador.283
Nenhum outro inventariado apresenta bens imóveis; aqueles que lidavam com agricul-
tura, plantavam em terras alheias como Antonio da Fonseca que dispunha sua plantação na
fazenda Malhada de propriedade do Comissário do Santo Ofício, João Calmon.
Sem inventário anotado pelos Inquisidores, foi em um registro de escritura que se des-
velou a posse de imóveis pelo médico Francisco Nunes de Miranda.284 De volta a Salvador, um
ano depois de ter saído dos cárceres da inquisição (1701), Francisco comprou terrenos, casas,
oficinas de pelames e curtumes a um sacerdote do hábito de S. Pedro, Pe. Manuel Roiz Braga,
pagos a “dinheiro de contado”, isto é, à vista, 200 mil réis em moedas de prata. Este patrimônio
cuja finalidade é desconhecida, consistia em
60 braças de terra em quadra de trincheira para cima285 aonde chamam a fonte dos
sapateiros286 com casas e oficinas de pelames e curtume; e parte de uma [...] com terras
e propriedade de João Alz. Fonseca com Manuel da Cunha e com religiosos do Carmo.
[...] a qual terra, casas, oficinas [...] e tudo o mais a ele pertencente vendeu a Francisco
Nunes de Miranda, médico [...].287

Localizados em área soteropolitana destinada aos curtidores de couro e outros artesãos,


conjetura-se o emprego dos imóveis em benefício de seus parentes dedicados a esta atividade.

282 ANTT/TSO-IL Proc. n° 9001, 1731; NOVINSKY, Inventários I, op. cit., p. 230.
283 Situada no “Sítio de Camarão, a uma légua da Bahia [Salvador]”. Montesinhos não teve seus bens inventariados
pelos Inquisidores. ANTT/TSO-IL Proc. 11769.
284 Pelames são couros de peles de animais. Curtumes, oficinas para tratamento e curtição de couro. “Escritura de
venda e quitação que faz o Rdo. Pe. Manoel Roiz Braga ao Dr. Francisco Nunes de Miranda de uns curtumes por
preço e quantia de 200 Diz.” Livro de Notas, 18A, p. 198, 198v, 199. APEB.
285 60 braças de terra equivalem a 1.32m. Cálculo tendo como base os padrões de medida apresentados por
RUSSEL-WOOD op. cit., p. 305, 306, Apêndice 4.
286 Região soteropolitana onde, até princípio do século XX, concentrou curtumes e sapateiros. Atual “Baixa dos
Sapateiros”.
287 LIVRO de Notas, 18A, p. 198, 198v, 199. APEB.

108
Ou poderia se tratar de um investimento pessoal, diversificando seus rendimentos de médico,
com o aluguel dos curtumes e pelames.
Comerciantes, homens de ida de vinda, em constantes viagens ao sudeste da Colônia,
talvez não necessitassem constituir “bens de raiz” na cidade de Salvador, ou talvez não os ad-
quirir fosse uma garantia contra o confisco. Diogo de Ávila, por exemplo, apresenta apenas
umas casas de palha sem valor algum, situadas nas Minas, para onde sempre ia a negócios.

Bens móveis
Bens móveis, sem levar em conta aqui escravos e animais (pois são classificados como
semoventes), merecem uma atenção especial, pois muitas vezes compunham-se de peças traba-
lhadas artesanalmente, com detalhes em ouro ou prata, madeiras nobres, tecidos finos e caros,
muitos vindos da Europa, que não apenas mostravam serem artigos valiosos como também
sugeriam um estilo de vida aristocrático. O mobiliário, por exemplo, mesas, cadeiras, tambore-
tes, bofetes, leitos, catres, baús, para falar dos mais citados, em geral, os mais ricos os possuíam
em jacarandá, torneados, ornados, em detalhes de ouro ou em tecidos finos. Antonio Cardoso
Porto e o casal Joseph da Costa e Ana Bernal, possuíam seus leitos em jacarandá, e Cardoso
Porto ainda tinha uma cama da Índia com castão dourado.288 Os leitos também em pau-brasil
pertenciam a Gaspar Henriques e Diogo de Ávila Henriques, aliás, este de Diogo acompanhava
um acortinado de damasco carmesim com franja de retrós.289
Monforte, talvez o mais rico, possuía móveis simples, sendo somente encontrado “es-
critórios” em jacarandá290 e um cofre de cristal, protegido por um baú de veludo, onde eram
guardadas relíquias. No entanto, móveis que caracterizariam a casa em estilo requintada, como
espelhos, penteador, papeleira, penduradores de toalhas, cofre em cristal estavam justamente
entre esses mais abastados. Espelhos pertenciam a Diogo de Ávila Henriques e Antonio Car-
doso Porto. O de Cardoso Porto de em fabricação “ordinária” e o de Diogo, em charão negro,
uma espécie de verniz de laca só produzido na China e no Japão. Um penteador, no valor de 32
mil réis, decorava a casa de Cardoso Porto, e penduradores de toalha foram encontrados nos
bens de Ana Bernal, confeccionado em “pau de marfim com castão de ouro”, bem como uma
papeleira de “pau branco”.291
O catre, espécie de cama dobradiça utilizada durante viagens, sempre presente entre os
bens dos homens de ida e vinda, podiam ser encontrados em jacarandá –aquele de Joseph da
Costa e de Simão Rodrigues Nunes –, ou fabricados em pau-brasil, como o de Antonio da Fon-
seca. Apesar da mesma finalidade – dormir pelos caminhos –, a diferença do valor do catre de
jacarandá pertencente a Joseph da Costa e Simão Rodrigues Nunes é quatro vezes maior. Mais
aristocrático, o primeiro pagou pelo seu catre 16 mil réis, enquanto o outro apenas 4 mil réis, o
que se supõe uma diferença na qualidade e no trabalho artesanal.
288 Ornato de metal, osso, marfim que forma a parte superior de bengalas. BLUTEAU, op. cit., p. 243. Nas camas,
como essa descrita por Antonio Cardoso Porto, o castão (ou gastão) refere-se a detalhe de acabamento, em metal
dourado. Percebe-se uma diferença entre cama e leito, ainda que ambas tivessem a mesma funcionalidade.
289 Este tipo de material do acortinado tinha um estilo luxuoso e aristocrático.
290 “Escritórios” refere-se aqui a mesa para escrever, escrivaninhas.
291 ANTT/TSO-IL Proc. nº 2424.

109
Roupas e joias apresentam-se mais ricamente descritas; não raro aparecem trajes com
botões em ouro, peças em seda (mais comum), outros tecidos luxuosos como crepe, veludo,
holanda (tecido em linho fino), punhos de renda. As joias, sempre em ouro e prata, até mesmo
cristal, diamante e pérolas – em forma de botões, brincos, abotoaduras, fivelas, cordões (fios e
colares), talheres. Não apenas os mais ricos as arrolavam como também os menos abastados
sempre tinham ao menos uma peça dessas entre seus bens. Antonio de Miranda, curtidor de
couro sem grandes recursos financeiros, possuía brincos de ouro, usados por sua esposa Cathe-
rina da Pax, e abotoaduras em prata, valendo ambos 8.550 réis. Diogo Rodrigues, um modesto
tendeiro, com poucos bens, guardava um memorial de ouro que valia 5 mil réis.292
Podendo ainda incluir os talheres em prata na categoria joias, era comum a esses cris-
tãos-novos possuírem algumas colheres. Mais ricos, como Ana Bernal, dispunham de oito pe-
ças, ou Antonio Fernandes Pereira, cujo único bem preciso era uma dúzia de colheres e outra
de facas em prata. Os mais simples sempre arrolavam duas unidades, como Simão Rodrigues
Nunes, Francisco Rodrigues Dias e mesmo Antonio de Miranda, que acrescentou algumas
unidades em seu rol de bens.
O casal Joseph da Costa e Ana Bernal de Miranda revela um vestuário luxuoso e uma
grande quantidade de joias e objetos em metais preciosos. Joseph inclui em seu inventário plu-
mas de chapéu – só utilizadas por fidalgos –, algumas véstias e camisas com punho de renda
fina, e a sua esposa, com suas saias de seda decoradas com ramos de ouro, luvas e até mesmo
cabeleiras, das quais possuía cinco unidades.293 Tais vestimentas lhes conferiam uma elegância
aristocrática e eram mais usadas na metrópole que na Colônia.
Artigos considerados de luxo como rendas e fios de ouro, tiveram sua importação limi-
tada por leis promulgadas em fins do século XVII.294 Isto, porém, não impediu que Ana Bernal
de Miranda, em 1727 – data do seu inventário –, os possuísse em suas vestes, adquirindo-os
possivelmente por meio do contrabando. Classificando uma de suas luxuosas saias com ramos
de ouro em “saia de rua”, Ana Bernal reflete a maneira de vestir da colônia, onde a diferença
entre roupa doméstica e roupa de sair era mais marcante que atualmente.
As joias apresentadas por essa cristã-nova davam-lhe ênfase social; dizia ter sob sua
guarda um par de brincos de diamantes pertencentes a Manuel Monteiro da Rocha, que os
entregou a seu marido, Joseph da Costa, para vender em Angola. Entretanto, possuía cruzes
de ouro com diamantes, botões de cristal engastados em ouro e outros em ouro puro; como
também aljôfares, pérolas pequenas e fios de pérolas e corais, fivelas e cordões em ouro. Des-
ses bens só avaliou as seguintes peças: dois fios de corais compridos que custaram 20 mil réis
e um fio de pérolas no valor de 45 mil réis. Também não foram avaliadas as roupas pessoais,
basicamente confeccionadas em tecidos finos, e as roupas de cama e mesa, cuja qualidade dos

292 Um significado específico para “memorial”, dentro deste contexto, não foi encontrado. Mas este era uma peça
em ouro.
293 Véstia é espécie de casaco curto, folgado na cintura; jaleco, veste. Casaco de couro usado pelos vaqueiros; gibão.
Segundo Bluteau “parte dos vestidos, que cobre o tronco do corpo, com manga, ou sem ellas, traz-se por baixo
da casaca”. BLUTEAU, op. cit., p. 522. Para o século XIX, M. B. Nizza da Silva fala que as cabeleiras não se
distinguiam dos cabelos naturais. SILVA, M. B. M. N. Vida privada e quotidiano no Brasil na época de D. Maria e
D. João VI. Lisboa: Estampa, 1993. p. 239.
294 BOXER, C. R. Império marítimo português: 1415-1825. Lisboa: edições 70, [s.d.]. p. 158.

110
tecidos (bretanha, bretanha com rendas, tafetá, linho, cambraia, dentre outros), insere o casal
Ana Bernal de Miranda e Joseph da Costa no quadro da elite colonial.
Tratando deste assunto para o século XIX, Nizza da Silva observa que esta distinção é
o “resultado visível da adequação entre a forma de trajar e a situação que homens e mulheres
se encontravam”.295 Ou seja, com vestuário de luxo apresentavam-se à sociedade, pois a roupa
era um símbolo para afirmar o prestígio social. Ao classificar os tecidos usados no século XIX,
essa historiadora ainda distingue a classe social de uma pessoa pelo tipo de tecido que usava.
Os aqui expostos na categoria linho (bretanha, cambraia) e seda (crepe, tafetá, veludo) eram
usados pelos mais abastados, simbolizando poder e prestígio social.296
Prestígio social que era regimentalmente negado aos cristãos-novos, principalmente
àqueles saídos dos cárceres do Santo Ofício e até a terceira geração descendente dos condena-
dos à fogueira. Além de não poderem ocupar cargos públicos, religiosos e militares – conforme
as leis de pureza de sangue –, era-lhes proibido utilizar qualquer coisa que os assemelhassem a
fidalgos e aristocratas. O Regimento da Inquisição de 1640, em vigor ainda no século XVIII, é
bem claro quanto a esta situação:
[...] e que em suas pessoas, e vestidos não possam trazer, nem tragam ouro, prata, nem
pedraria, ou vestido de seda, nem andem a cavalo; salvo se forem caminhando, nem
tragam armas ofensivas, posto que sejam obrigados a tê-las; somente poderão usar
espada, depois que forem dispensados; o que tudo cumprirão sob pena de que fazendo
o contrário, serão castigados com as penas que parecerem; e no termo de sua soltura
lhes será declarada a proibição das coisas sobreditas, e como não poderão usar delas
sem licença especial dos Inquisidores.297

Especificamente aos filhos e netos dos condenados à pena de morte, diz o Regimento,
“[...] nem tragam sobre sua pessoa, nem em seus vestidos, e trajes, coisa alguma, que seja insíg-
nia de alguma dignidade, milícias, ou ofício eclesiástico, ou secular”,298 além de não poderem
assumir uma série de cargos e funções públicos. Ana Bernal de Miranda podia então se valer
do privilégio de portar esses tipos de vestimentas por não ter nenhum ascendente direto con-
denado à morte? Um dos seus primos, Félix Nunes de Miranda, foi levado à fogueira em 1731.
Outros seis cristãos-novos inventariados declaram possuir exclusivamente a roupa do
corpo, até mesmo Manuel Nunes Sanches, que não se incluía dentre os pobres. Além dele, o
filho do mencionado Félix Nunes de Miranda, Miguel Nunes de Almeida, que, sem riquezas,
só declarou a roupa do corpo e dívidas por empréstimos. Mais rústicos, talvez, Pedro Nunes de
Miranda, Antonio Fernandes Pereira, Diogo de Ávila e seu primo Diogo de Ávila Henriques
não demonstraram estar preocupados com as vestimentas, embora tivessem capital para ad-
quirir boas peças. Roupas, só possuíam a “de seu uso”.
Os demais inventariados apresentam poucos bens móveis. O único bem declarado por
David de Miranda foram armas. Voltando ao Regimento de 1640, nele é evidente a interdição

295 SILVA, M. B. M. N., op. cit., p. 230.


296 Ibidem.
297 REGIMENTO da Inquisição de 1640. Livro III, Título III, artigo XII.
298 REGIMENTO da Inquisição de 1640, Livro III, Tít. III, art. XIII.

111
ao porte de armas por cristãos-novos, como citado em parágrafo anterior. Infringindo esta
determinação, David de Miranda tinha em seu poder algumas armas: espingardas, clavinas,
espadas e catanas.299
Já Pedro Nunes de Miranda insere em seu rol, além dos bens já citados, um cavalo, uma
rede e uma peça de roupa — vestido de camelão de seda abotoados de ouro. Félix Nunes de
Miranda não declarou bens próprios, mas apenas aqueles que estavam sob sua guarda, cujos
legítimos donos eram os herdeiros de seu irmão Manuel de Almeida. Outros bens pertenciam
a uma Ana Pereira, de quem Félix também foi testamenteiro.

Dívidas e créditos
Dívidas e créditos registrados nos inventários corroboram com o arrolamento de bens
para identificar mais claramente a condição socioeconômica de cada um dos prisioneiros. To-
davia, é preciso notar que os valores expressos não correspondem ao total do patrimônio finan-
ceiro desses cristãos-novos por duas razões.
Primeiro, e principalmente, além de serem contas declaradas por memória, em situação
de prisão, ao réu interrogado não era interessante apresentar todo o seu capital disponível uma
vez que ele, indubitavelmente, seria confiscado em sua totalidade e jamais voltaria a sua mão.
Segundo, por representarem um patrimônio ainda em constituição em vida, ao contrário dos
inventários post-mortem que encerram a condição socioeconômica do indivíduo. Retomadas
as atividades depois de penitenciados, altera-se a condição material.
Manuel Mendes Monforte teve inúmeras transações comerciais efetuadas pouco tempo
antes da prisão. Os créditos que tinha a receber no ano de 1721, quando foi levado ao cárcere
do Santo Ofício de Lisboa, somavam-se, aproximadamente, 24 mil cruzados. A maior parte,
21 mil cruzados, era em razão de empréstimos a juros. O restante provinha de negociações
comerciais efetuadas tanto na praça comercial da Bahia como em outras Colônias portuguesas
e mesmo Holanda.
As dívidas a pagar chegavam perto dos 6 mil cruzados, ficando-lhe portanto um saldo
positivo, ainda que não líquido, estimado em 18 mil cruzados. Uma quantia considerável para
a época. O que lhe aufere um status socioeconômico elevado, na categoria de magnata, confor-
me a classificação de Anita Novinsky, é a disponibilidade de capital para a realização tanto dos
empréstimos quando das importações de mercadorias, ou seja, dinheiro circulante.
As transações comerciais de Joseph da Costa, outro caso, beneficiou-lhe com um ganho
declarado de quase 2.726 cruzados, subtraindo-se os créditos avaliados em 8.506 cruzados e as
dívidas em torno de 5.780 cruzados. Como Monforte, não foi este computo que o inseriu no
rol dos homens mais ricos, porém o ativo desempenho comercial e o dinheiro que investira em
peças valiosas.
Manuel Nunes Sanches e Antonio Fernandes Pereira, mineiros, têm em comum, dentre
suas dívidas, a compra de tecidos pequena quantidade para uso próprio. Manuel ainda arrolou
um débito por compra de escrava. O referencial de moeda utilizado por ambos era a oitava de

299 Clavina é uma espécie de espingarda de cano curto, e catana, uma sorte de espada curva. BLUTEAU, op. cit., v.
1, p. 245, 56, respectivamente.

112
ouro, padrão típico dos mineradores. Antônio incluiu em seus débitos um empréstimo e um
trespasse de dívida.
Todas as transações comerciais e financeiras destes dois cristãos-novos não derivaram
da agricultura, atividade que declararam aos Inquisidores, mas da mineração, como mostra os
inventários. Créditos a receber não aparecem em suas respectivas declarações, sinal de pouco
capital investidor ou omissão aos Inquisidores?
Quanto ao lavrador Antonio da Fonseca, nada mais lhe restava que 347 mil réis em
dívidas derivadas de empréstimos, compra de tecidos e pequenos negócios. Já o mercador
David de Miranda tinha em sua conta débitos a pagar no valor de 1.100.000 réis e um saldo
positivo próximo a 3.900 cruzados, resultante do capital circulante aplicado na aquisição de
tecidos.

Escravos: um bem
A posse de escravos era habitual à Colônia e se constitui um parâmetro de avaliação
do poder aquisitivo. Na primeira metade do século XVIII, o preço corrente de um escravo na
Bahia variava entre 80 e 200 réis. Para os padrões da época, aquele que possuía mais escravos,
sustentava-os e empregava-os, era reconhecido como um homem bem-sucedido.
O trabalho agrícola mostra o relativismo desta concepção. Dois exemplos podem ser
comparados. Primeiro, o lavrador Antonio da Fonseca, que dispunha de pouco capital e quase
nenhum bem de valor, destinava seis escravos para a sua lavoura de mandioca, ao mesmo tem-
po em que, Manuel Mendes Monforte, homem de grandes posses, mantinha dez escravos sob
seu senhorio e, no entanto, era dono de um engenho que estava em plena produtividade. Como
referenciar esse paradoxo do emprego de mão de obra escrava por esses dois agricultores?
A contradição de emprego da mão de obra é ainda maior ao deparar-se com o confrade
de Monforte, Manuel Lopes Henriques, senhor de engenho e terras, dispondo em um único
engenho, o chamado “[...] Inovação de Santa Tereza, na freguesia de Matoim que fabricava com
120 ou 125 escravos entre homens e mulheres, entre bons e maus, grandes e pequenos [...]”.300
Monforte apresenta apenas dez escravos, cinco homens e cinco mulheres.301 Número
bastante exíguo que compromete o trabalho na plantação do serviço de 125 escravos. Porém, a
discrepância da mão de obra destinada à lavoura canavieira empregada por Monforte e Lopes
Henriques leva a supor uma maior produtividade tanto por parte de Lopes Henriques como
por parte de Antonio da Fonseca, quem sequer tinha sua própria terra para lavoura.
Dificilmente, entretanto, Monforte omitisse aos Inquisidores o número exato de escra-
vos que possuía, pois não era o tipo de bem que passasse despercebido pelo Fisco. Supõe-se que
ele mantinha uma pequena produtividade açucareira, se comparada àquela potencialmente
favorecida pelos escravos de Manuel Lopes Henriques e vis-à-vis de Antonio da Fonseca, como
também que seu desempenho estivesse canalizado para o comércio de importação de tecidos
do que propriamente a exportação de açúcar.

300 NOVINSKY, Inventário I, op. cit. p. 191.


301 Ibidem, p. 191-196, 198-206, respectivamente; ANTT/TSO-IL Proc. nº n° 675.

113
Observando esta relatividade da posse e emprego de mão de obra escrava encontram-se
ainda os exemplos de Antonio de Miranda e Joseph da Costa. O número de escravos empre-
gados por Antonio de Miranda em seu curtume de couro, oito, é relativamente maior que o
de Joseph da Costa, que computava um total de 23, divididos entre ele, com 13, e sua esposa,
senhora de dez escravos.302
Como cidadão urbano sem envolvimento com o comércio escravagista, em termos rela-
tivos Antonio de Miranda possuía mais escravos que seu cunhado Joseph da Costa, negociador
direto com a África. E é preciso registrar neste contexto que Thomas Pinto Correia, outro ne-
gociante direto com África, não dispunha mais do que uma escrava que comprou em parceria
com o seu irmão.
Diogo de Ávila Henriques, que enviava comboios de escravos para interior da Colônia,
declarou servir-se simplesmente de um único “moleque”. Seu sócio e parente, condutor de es-
cravos para as Minas, Gaspar Henriques, aproveitava-se de quatro escravas e um “moleque”. E
Álvaro Ferreira da Silva era ajudado em seu ofício de cirurgião por um outro negro africano
barbeiro e sangrador. Mineiros, Manuel Nunes Sanches era senhor de 21, dentre homens e
mulheres, e Antonio Fernandes Pereira lidava com apenas cinco, sendo três mulheres e dois
homens, certamente distribuídos entre a lavoura e a mineração.
Compreende-se que a posse de escravos deve ser sempre observada sob um ponto de
vista que permita relativismos, ainda que para comprar e manter escravos o sujeito deveria
dispor de capital. Mas, paradoxalmente, nem sempre o senhorio era uma pessoa rica. Por outro
lado, é mister lembrar que todos os inventariados eram senhores de escravos, não importando
a atividade que desenvolviam, possuíam ao menos um escravo. Desta apresentação, ressalta-se
Manuel Lopes Henriques como senhor de maior número de escravos (125) e Joseph da Costa,
como o maior comerciante de escravos dentre esses cristãos-novos.

Mercadorias: outro bem


Ainda que seja reservado às mercadorias o lugar de um patrimônio instável, uma vez
que estavam prestes a serem convertidos em dinheiro ou se perderem pelos caminhos das
transações comerciais, é preciso considerar os produtos armazenados por comerciantes, la-
vradores, artesão, pois trata-se de investimento e de bem confiscado. O que guardavam esses
indivíduos em suas casas ou armazéns?
Manuel Lopes Henriques, além do açúcar para exportação, preservava em seu próprio
armazém feixes de cera, barris de azeite e cartolas de farinha, tudo importado de Lisboa, sem
valor expresso. Cardoso Porto não menciona estoques de tecidos como o faz David de Mi-
randa, mas sim frasqueiras com frascos de azeite e vinagre, o que aliás também era produto
reservado por Joseph da Costa. Curtidores de couro, Antonio de Miranda e seu confrade Fran-

302 Os escravos de Joseph da Costa estavam distribuídos entre Bahia (com sete) e Pernambuco (com cinco), onde
reservava um escravo de trabalho especializado como barbeiro e sangrador. ANTT/TSO-IL Proc. nº 10002.

114
cisco Rodrigues Dias, tinham sob seus auspícios méis de sola de fregueses que requisitavam a
confecção de artigos.303 Francisco Rodrigues ainda possuía alguns tecidos.
As mercadorias de natureza dos “secos e molhados” foram encontradas tanto para con-
sumo próprio, tanto quanto para revenda e não estavam intimamente vinculadas ao tipo de
atividade exercida, embora muitas vezes pudessem ser destinadas ao comércio.
Interessante é perceber por exemplo, como no caso de Joseph da Costa, a qualidade do
seco e molhado que dispunha. Trouxe de suas viagens à Angola, barris de biscoitos brancos e,
talvez, de outras partes, um queijo que ele mesmo diz “grande” acondicionado em vasilha de
chumbo; alimentos não acessíveis à população em geral.

O confisco: um problema para os cristãos-novos


O confisco dos bens dos réus, além das decorrências morais que a pobreza delegava aos
penitenciados, havia os obstáculos que se criou nos negócios entre muitos cristãos-novos e
cristãos-velhos. Neste estudo o confisco é tratado em sua interferência no mundo dos negócios.
Gaspar Henriques, em conversa com Pedro Nunes de Miranda, expressou o seu medo
de ir preso e ter os seus bens confiscados, dizendo-lhe que “temia ser preso pelo Santo Ofício
e que portanto lhe pedia que ele aceitasse três créditos que importavam em quatro mil e tantos
cruzados e os cobrasse como próprios”.304
A solução que encontrou não lhe era exclusiva senão uma prática corriqueira dentre os
cristãos-novos que se sentiam ameaçados de prisão. Francisco Rodrigues Dias usou do mes-
mo procedimento com Manuel Mendes Monforte criando um débito fictício de 400 mil réis,
registrando-o inclusive em “escrito”, para garantir a veracidade da transação.
Foi ele mesmo quem confessou aos Inquisidores a sua intenção:
[...] fez o dito escrito [...] na condição de que se fosse algum dia preso por esse Tribunal
o pudesse livrar por este meio de que fossem ao Fisco Real, ou ainda poder acudir com
os mesmos ao remédio de seus filhos, mas ele declarante não deve coisa alguma ao dito
médico, e lhe fez o dito escrito para o dito intento.305

Nestes dois exemplos, que não são os únicos na história dos cristãos-novos, denota-se
uma preocupação maior não em evitar os longos anos que passariam detidos nos cárceres do
Santo Ofício, mas para impedir que o patrimônio fosse desfeito e, desta maneira, garantir al-
gum sustento, amparo familiar e recomeço de suas atividades se saíssem vivos da Inquisição.
Ou seja, o inevitável da prisão já era um lugar comum a esta população que também
aprendera a sair viva confessando culpas e apresentando (supostos) cúmplices. O que preten-
diam era proteger algum dinheiro para facilitar o retorno à sociedade, pois também sabiam que
seria difícil recomeçar as atividades depois de penitenciados. Todavia, mais usual era a omissão
dos bens ou de seus valores reais. Um exemplo ilustra esta prática, podendo inclusive ir além

303 A atividade de Antonio de Miranda era “tirar couros dos tanques para secar”, conforme informou um pescador,
seu conhecido em Salvador. ANTT/TSO-IL Proc. nº 5002.
304 ANTT/TSO-IL Proc. n° 9001, 1732.
305 NOVINSKY, Inquisição I, op. cit., p. 119.

115
dela para voltar-se à estratégia das falsas dívidas, como conjetura-se a respeito de Manuel Lopes
Henriques, dono de três fazendas de cana, um engenho e algumas casas na Bahia.
Esse senhor de engenho cristão-novo foi submetido a dois interrogatórios para formar
seu inventário. No primeiro, declarou seus imóveis e valores, mas foi no segundo, realizado
quase um ano depois, que detalhou a compra das fazendas de cana.306 As fazendas, computadas
todas em 20 mil cruzados, preço fornecido pelo próprio réu, custaram: a chamada “da Praia”,
um conto e novecentos mil réis; outras duas, Pau de Gamela e Caçargal, importando, ambas,
13 mil cruzados e haviam sido arrematadas na “praça da cidade da Bahia” aos herdeiros de
Ouvidor da Comarca, o cristão-velho Antonio Muniz Barreto, com quem Lopes Henriques
mantinha uma boa e antiga relação social.307
A minúcia com a qual historiou o percurso da compra, dos pagamentos efetuados e os
beneficiários do débito, terminou por verbalizar aos Inquisidores a necessidade de quitação
do valor que ainda pendia aos herdeiros do proprietário, calculado por ele mesmo em seis mil
cruzados. Conforme sua declaração: “se deve satisfazer o resto do computo da dita conta do
resto de seis mil cruzados do legado que lhe toca [...] o qual resto se deve entregar a quem os
herdeiros acima ditos fizeram seu procurador [...]”.308
O interesse manifesto pode significar uma forma de salvaguardar do confisco parte de
seu capital; pois, desta maneira, Manuel Lopes Henriques tentaria não deixar seu dinheiro
para os cofres da Inquisição, mas legá-lo a pessoas de sua confiança e merecimento. Interesse
que não teve, por exemplo, em revelar o valor de sua maior e principal propriedade, o ativo
engenho Inovação Santa Tereza e os 125 escravos que nela trabalhavam, ainda que declarasse
o preço que pagou pelas casas que comprou em Salvador à Santa Casa de Misericórdia, 5 mil
cruzados e 100 mil réis.
Porque ora omitiu os valores dos bens e ora os expôs? Não é este um comportamento pe-
culiar a Lopes Henriques. A maioria dos inventariados procederam assim. Uma razão de mais
fácil compreensão é o esquecimento do preço que pagaram pelos imóveis e outros pertences, já
que não era difícil para o Fisco avaliá-los no mercado e levantar o lucro obtido pelo confisco.
Porém, aqui fica a hipótese de que esses indivíduos pretendiam com as omissões dos valores e
dos próprios bens abreviar a sua causa no Tribunal inquisitorial, no que concerne às insistentes
investigações sobre seu patrimônio e mesmo negócios, além de livrar-se de um maior confisco.
Antonio de Miranda, por exemplo, teve três interrogatórios para elaboração do inventário, um
a cada ano, começando imediatamente após chegar ao Santo Ofício.309
De outra maneira, a Inquisição interferia nos negócios da Colônia ao bloquear os bens
de comerciantes. O episódio que pôde ser reconstituído, ao menos em parte, foi aquele ocor-
rido entre David de Miranda e seu fornecedor de tecidos em Lisboa, Francisco Pinheiro. Inú-
meras cartas destinadas ao homem de negócios lisboeta Francisco Pinheiro, pelos seus agentes

306 Os interrogatórios para formação do inventário ocorreram em 30 de dezembro de 1706, logo após chegar aos
cárceres inquisitoriais e, o segundo, a 22 de agosto de 1707. NOVINSKY, Inquisição I, op. cit., p. 191, 194.
307 Ibidem, p. 194, 195.
308 Ibidem.
309 O primeiro interrogatório para formação do Inventário ocorreu em 11 de outubro de 1710, imediatamente após
ser detido, o segundo em 5 de fevereiro de 1711 e o terceiro e último a 25 de janeiro de 1712. ANTT/TSO-IL Proc.
n° 5002.

116
sediados no Brasil, expõem as dificuldades ante o processo burocrático requerido pela Inquisi-
ção para ressarcimento de dívidas efetuadas por mercadores cristãos-novos que foram presos
e tiveram seus bens confiscados.310
O confisco dos bens de Francisco de Miranda, comerciante do Rio de Janeiro, preso pelo
Tribunal de Lisboa, primo e sócio de David de Miranda na importação de tecidos, comprometeu
os haveres a que este tinha direito: mais de 140 cruzados, que passaram para o controle do Fisco
nas Minas Gerais. A fim de reaver esta quantia e pagar as dívidas a Francisco Pinheiro, David de
Miranda requereu ao Fisco a liberação da parte que lhe cabia mediante pagamento de fiança. Seu
credor também entrou com pedido para ser ressarcido. Um ano depois, David tinha conseguido
apenas uma concessão de seus credores para a dilação do prazo de supressão da dívida.
O encaminhamento desta causa foi totalmente anulado com a segunda prisão de David
de Miranda no Tribunal de Lisboa, em 1728. Os agentes deste credor tiveram que refazer todo
o processo burocrático de cobrança ao Fisco. O que era devido por ele e seu primo só seria
pago depois que o Santo Ofício abatesse todas as despesas com os prisioneiros. Seria necessário
requerer aos inquisidores uma certidão indicando estes gastos e encaminhá-la ao Juiz do Fisco.
O que, talvez, só acontecesse após a publicação da sentença do réu. Ao credor era indispensável
solicitar a preferência de pagamento ao Fisco, tão logo o dinheiro fosse liberado pelas autorida-
des inquisitoriais. Assim, evitavam a concorrência de outros credores, também interessados em
seu ressarcimento. Para isso, valiam-se de um verdadeiro “tráfico de influência”.
Estreitos contatos sociais com funcionários do Fisco favoreciam a circulação de infor-
mações. Francisco Pinheiro era frequentemente avisado por um tesoureiro do Fisco sobre as
remessas de dinheiro disponíveis a pagamento de credores. Em uma das cartas a ele dirigidas
seus agentes alertam para o fato de um Juiz do Fisco estar em viagem hospedado em uma fa-
zenda de um outro credor. O que o predispunha a preferência deste em detrimento de Pinheiro.
Mesmo após o auto-de-fé, estando o réu de volta à sociedade, os credores dirigiam-
-se ao Fisco para reaver seu capital perdido e não aos próprios devedores. Os bens e valores
confiscados não retornavam às mãos de seus legítimos donos e, pobres, esses cristãos-novos
não tinham recursos para ressarcir os compromissos firmados antes da prisão. Este foi um dos
entraves que a Inquisição promoveu no mundo dos negócios, seja ele em âmbito colonial ou ul-
tramarino. Não havia nenhuma segurança de que o capital empregado iria ser restituído. Como
bem refletiu Antero de Quental, sobre a situação em que ficou Portugal e Espanha depois de
iniciada a perseguição aos judeus e mouros e estabelecida a Inquisição, “[...] a expulsão dos
judeus e moiros empobrece as duas nações, paralisa o comércio e a indústria [...] a perseguição
dos cristãos-novos faz desaparecer os capitais [...]”.311
Para o cristão-novo, circunstâncias como essas, agravada pelo estigma de processado,
poderia representar sua total exclusão da vida econômica. Contudo, no caso específico de Da-
vid de Miranda, mesmo preso duas vezes pelo Tribunal de Lisboa, Francisco Pinheiro ainda lhe
concedeu uma nova chance de se incorporar no comércio de tecidos, aceitando-lhe em novas
negociações. A última transação entre ambos que pode ser encontrada está registrada no ano
de 1746.

310 Essas cartas encontram-se compiladas em LISANTI, op. cit., v. 3, p. 192-195, 282.
311 Poeta e pensador açoriano do século XIX. QUENTAL, Antero de. Causas da decadência dos povos peninsulares.
5. ed. Lisboa: Ulmeiro, 1987. p. 45-46.

117
Capítulo III

A memória religiosa judaica


OS “CRIMES”: O JUDAÍSMO SECRETO

O desvio à doutrina católica ao qual os cristãos-novos eram incriminados pelo fórum inquisi-
torial português consistia na prática secreta da religião judaica – o criptojudaísmo – simultânea
à crença católica, que professavam diante da sociedade. Para as Inquisições ibéricas modernas,
os cristãos-novos guardavam a crença judaica em seu íntimo, considerando-a verdadeira e
única e a observava clandestinamente em companhia de outros cristãos-novos, principalmente
a família, vista como responsável pela sua comunicação e conservação.
Esta visão não admitia que cristãos-novos tivessem outra maneira de crer em Deus se-
não através do judaísmo, pois este seria transmitido “pelo sangue”, hereditariamente. Assim
sendo, indistintamente, cristãos-novos passavam a ser inconteste e invariavelmente observan-
tes secretos da “Lei de Moisés”, expressão com a qual a religião judaica era designada.312 E, como
tais, irrefutavelmente hereges e apóstatas da fé católica, uma vez que eram cristãos batizados.
Por isso, deveriam ser processados e julgados.
Esta era uma maneira de justificar e legitimar a própria existência da instituição pre-
tendendo-a indispensável para uma coesão nacional em torno da fé única. Os cristãos-novos
sempre foram a razão de ser da Inquisição. Apesar de, desde o Concílio de Trento (1545-1563)
serem julgados outros tipos de desvio ao comportamento e às normas católicas, era o criptoju-
daísmo seu objetivo principal.
Não se pode asseverar que todos os cristãos-novos eram em sua essência criptojudaizan-
tes. O fato dos cristãos-novos afirmarem-se crentes à Lei de Moisés, às vezes sob tortura física,
não significava sinceridade de fé, embora em todos os casos estudados nesta pesquisa os réus,
ao fim e ao cabo, confessarem-se judaizantes posto que somente assim poderiam não serem
condenados à fogueira. Havia quem professava a fé judaica convicta e secretamente da mesma
forma que havia católicos sinceros e mesmo agnósticos e questionadores de qualquer teologia.
Eram plurais como qualquer grupo social.
A fé que traziam interiormente, católica ou judaica, não interessava à Inquisição.313 Cris-
tãos-novos que não admitiam serem judaizantes, ou por questão de verdadeira crença católica
ou para evitar a delação de entes queridos, ou ainda como uma forma de resistência a esta
repressão, ou, enfim, movidos por outros fatores, acabavam perecendo na fogueira como os
cristãos-novos Félix Nunes de Miranda e Rodrigo Álvares.

312 A observância da Lei de Moisés era entendida como a realização de festividades associadas a jejuns, como Dia
Grande, Páscoa do Pão ázimo, Jejum da Rainha Esther, o preceito da Guarda do Sábado, o luto à maneira judaica,
a interdição de alguns alimentos, dentre outros ritos e cerimônias.
313 O que fica evidente durante as confissões à Mesa do Santo Ofício, quando os inquisidores se furtavam a questionar
sobre as práticas religiosas (supostamente) realizadas, para concentrarem-se nos (possíveis) cúmplices, sobretudo
na família nuclear.

121
A impossibilidade de absolvição314 transformava os cristãos-novos em conhecedores da
religião judaica ou do que dela fora preservada na memória; às vezes, um mínimo necessário
para assumir culpas durante a prisão e então abjurar a fé judaica para serem reconciliados.315
Somente assim sairiam com vida dos cárceres. A memória histórico-religiosa judaica estava
presente na vida desses indivíduos que, mesmo distantes de Bíblia e da literatura rabínica, co-
nheciam a religião de seus antepassados graças a transmissão oral.
Muito dos ritos e das práticas religiosas diluiu-se no tempo, perdeu seu sentido original
ou foi adaptado para ser observado em condições adversas. Conhecer as práticas judaicas e
compartilha-las davam aos cristãos-novos a dimensão e a referência de sua distinção na so-
ciedade, de sua identidade, do reconhecimento de uns pelos outros por meio da diferença.
Representava assim a própria consciência da origem histórica judaica.
Era punível pelo Santo Ofício todo um repertório de ritos, cerimônias, hábitos e costu-
mes judaicos, enunciado nos Editais de Fé publicados periodicamente para divulgar o que de-
veria ser denunciado e conclamar as delações e apresentações316 daqueles que queriam confessar
seus erros. Consistiam em:
[...] fazendo ritos, e cerimônias judaicas, a saber, não trabalhando nos Sábados;, mas
antes vestindo-se neles de festa, começando a guarda da sexta-feira à tarde, abstendo-
se sempre de comer carne de porco, lebre, coelho, e peixe sem escama, e as mais coisas
proibidas na lei velha, jejuando o jejum do dia grande, que vem no mês de setembro,
com os mais que os Judeus costumam jejuar, solenizando suas páscoas, rezando
orações judaicas, banhando seus defuntos, e amortalhando-os com camisa comprida
de pano novo, e pondo-lhes em cima uma mortalha dobrada, e calçando-lhes calções
de linho, e enterrando-os em terra virgem, e covas muito fundas, e chorando-os com
sua liteiras, cantando como fazem os Judeus, e pondo na boca grãos de aljôfar, ou
dinheiro de ouro ou prata, e cortando-lhes as unhas, e guardando-as, e comendo
em mesas baixas, e pondo-se atrás da porta por dó, ou fazendo outro algum ato, que
pareça ser em observância da dita lei de Moisés.317

314 A abjuração pode ser tomada como uma modalidade absolutória. Contudo, considera-se uma forma de
condenação, visto que o crente teria que se assumir apostata e herege e renunciar oficialmente à fé religiosa
que lhe atribuíam de antemão. Sendo crente sincero, mais dramática a situação. Abjurar: “Retratar-se, renunciar
solenemente às crenças e erros contra a fé. [...]”. LIPINER, Elias. Santa Inquisição: terror e linguagem. Rio de
Janeiro: Documentário, 1977. p. 14.
315 Reconciliados, reconciliação: “Os confessos que obtinham o perdão dos Inquisidores, sendo readmitidos
na Igreja. Cabia-lhes, todavia, cumprir as penitências recebidas, geralmente confisco de bens, cárcere e hábito
penitencial. Os bens do reconciliado eram sempre confiscados; assim, mesmo na hipótese de ser condenado
apenas por pouco tempo ao cárcere e hábito penitencial, ficava de qualquer modo reduzido à mendicância. [...].”
Ibidem, p. 117.
316 Apresentações, réu apresentado, apresentar. Termo que designa o indivíduo que dirigia-se a uma autoridade
inquisitorial local, os Comissários do Santo Ofício, por exemplo, ou iam diretamente à Mesa do Santo Ofício,
para declarar seus próprios erros, confessar e mostrar arrependimento, “[...] escapando, assim, a procedimentos
inquisitoriais mais rigorosos.” LIPINER, op. cit., p. 25.
317 REGIMENTO do Santo Ofício de 1640, Edital da fé e Monitoria Geral, de que se faz menção no Livro I, Título
3, art. 11.

122
Com estas observâncias perfilavam-se os cristãos-novos hereges. No âmbito das ideias,
corroboravam outros desvios arrolados no Edital de Fé. De forma geral e extensível aos cristãos-
-velhos, retinham uma específica conotação para envolver os réus judaizantes. Referiam-se ao
não reconhecimento de Jesus Cristo como o “verdadeiro Deus, e Messias prometido aos Patriar-
cas, e profetizado pelos profetas [...]”,318 contestações à doutrina e dogmas católicos, sobretudo à
virgindade de Maria, a presença do corpo de Cristo na Eucaristia, a vida além da morte, a legiti-
mação da confissão a sacerdotes, veneração aos santos e suas relíquias, bem como a necessidade
de cumprir as obrigações religiosas; ler livros proibidos dentre os quais a Bíblia, livros rabínicos
e qualquer escrito caracteristicamente de teor judaico, embora seus títulos não estejam expres-
sos no Edital de Fé. Somam-se também as críticas à própria instituição inquisitorial.
Com base nestes atos e formas de pensamento era realizada a confissão do réu e desen-
volviam-se as sessões Crença e In gênere (Generalidades), parte dos processos inquisitoriais
desta natureza, quando o réu era interrogado sobre sua formação, visão e comportamento re-
ligiosos. Confrontavam-lhe a crença católica e a crença judaica, procurando atestar o secreto
judaísmo. Perguntavam, por exemplo, “se no dito tempo dos seus erros, cria no Mistério da
Santíssima Trindade, e em Cristo Senhor Nosso e o tinha por Deus verdadeiro e Messias pro-
metido na lei, ou se esperava ainda por ele, como os judeus esperam”319. As respostas algumas
vezes revelavam ambiguidade e paradoxo.
Pedro Nunes de Miranda, por exemplo, durante sua primeira prisão no Tribunal de Lis-
boa (1713-1716), respondeu que no tempo em que cria no “Deus de Israel”, cria também nos
Mistérios da Santíssima Trindade, nos sacramentos da Igreja e em Cristo, “porque sempre o
houvera como Deus verdadeiro”.320 Os Inquisidores consideraram sua resposta “inverossímil e
repugnante”; porém, esse Nunes de Miranda justificou que tais contradições foram provocadas
“por tentação do demônio, entendendo que assim melhorava a sua causa”.321
Antonio Fernandes Pereira assentiu seu sentimento religioso em três fases de sua vida,
condicionando-as à idade que tinha e então, como subentende-se tacitamente em sua fala, ao
discernimento. Primeiro, aos dez anos de idade, quando um amigo de seu pai lhe falara sobre
o judaísmo dizendo como e porque deveria observa-lo; hesitara entre a melhor crença a seguir:
“por que não tinha inteligência para conhecer qual das duas era a boa [...] em tempo em que ele
declarante teria dez anos de idade, esteve em dúvida qual das leis seria a boa”.322
A segunda fase, entre onze e quatorze anos de idade, imergiu na ambiguidade da fé.
Havia optado pelo catolicismo não se deixando influenciar pelo ensino do judaísmo que lhe
fez uma tia, orientando-lhe a cumprir ritos e cerimônias, comunicando as orações judaicas, e
contando-lhe histórias do tempo bíblico anterior a Jesus Cristo, figura que ele sentia falta nes-
ses relatos. Entretanto, rezava as orações judaicas que conhecia considerando que “isto seria
agradável ao mesmo senhor”323 e, portanto, não cairia em incompatibilidade de crenças.

318 REGIMENTO do Santo Ofício de 1640, Edital da fé e Monitoria Geral, de que se faz menção no Livro I, Título
3, art. 11.
319 ANTT/TSO-IL Processo n° 9248.
320 ANTT/TSO-IL Processo n° 9001.
321 ANTT/TSO-IL Processo n° 9001.
322 ANTT/TSO-IL Processo n° 10481.
323 Ibidem.
123
A terceira e última fase, depois dos quatorze anos de idade, assumindo-se inteiramente
católico, deixara de fazer as orações judaicas, embora continuasse a observar as cerimônias
da “Lei de Moisés” por comprazimento da família, ainda que reconhecesse agir erroneamente
diante da Igreja.
Nessas fases de sua vida, equacionadas nos interrogatórios da sessão processual Crença,
deixou de lado o primeiro contato com o judaísmo quando, aos sete anos de idade, sua mãe
comunicou-lhe todas as observâncias que conhecia e uma longa oração que ele memorizou até
quando foi preso, insinuando assim que a prisão o fez tomar consciência de seus (supostos) er-
ros. A vivência no judaísmo com a mãe estendeu-se até seus nove anos de idade sem suscitar-lhe
dúvidas de crença, como aconteceu um ano mais tarde, ao ter contato com o amigo de seu pai,
pois era a sua mãe quem lhe falava. A confiança era forte aliada na transmissão do judaísmo.
No cárcere, Antonio Fernandes Pereira mostrava-se intimamente católico e alegava ex-
por-se para a família como um criptojudeu. Argumentação contrária a de muitos cristãos-no-
vos da Bahia, cujos interrogatórios sobre conduta e pensamento religiosos foram investigados.
Em geral, revelavam que a “Lei” seguida era a “de Moisés”, embora diante da sociedade, “para
cumprimento do mundo”, mostrassem ser bons católicos. Entretanto, a essência notada no dis-
curso de Antonio Fernandes Pereira é a mesma dos cristãos-novos objeto deste estudo: era em
torno do judaísmo, não importando o que dele conheciam e praticavam, que se posicionavam
diante do mundo católico em que viviam e construíam sua identidade.
A consciência da diferença, afirmada por meio da secreta crença judaica, foi algumas
vezes explicitada nos processos inquisitoriais analisados. Um contraparente de Manuel Mendes
Monforte, morador em Portugal, por exemplo, atribuiu-lhe a proposição de que os cristãos-
-novos, por serem cristãos-novos, nunca poderiam salvar a alma vivendo na Lei de Cristo,
somente observando a Lei de Moisés.324 Nesta mesma direção, um irmão de Joseph da Costa
disse-lhe que se declarava cristão-novo, apesar de seu pai ser cristão-velho, “por se persuadir
que todos os que seguiam esta Lei de Moisés se deviam assim chamar”. Seu tio disse-lhe por
várias vezes que era judeu assim como todos seus parentes, por isso “cria e vivia na Lei de Moi-
sés com intento de nela se salvar”.325 Francisca Henriques, quando ainda morava em Portugal,
escutou de uma amiga também cristã-nova, que por ela ser cristã-nova

324 “[...] a gente da infecta nação não podia salvar-se na Lei de Jesus Cristo e que ele esperava salvação na Lei
de Moisés que essa era verdadeira por ser dada por Deus a Moisés”. ANTT/TSO-IL Processo n° 675. Neste
depoimento de Lázaro Rodrigues Pinheiro, esposo de uma sobrinha de Manuel Mendes Monforte, traz também
a ideia de “gente infecta”, depreendendo que por ser exatamente “infecta” é que não mereceria a salvação na Lei
de Cristo, mas como um castigo, na Lei de Moisés. Uma interpretação da ideia da Inquisição de “raça infecta”.
325 ANTT/TSO-IL Processo n° 10002.

124
[...] era conveniente para a salvação de sua alma [...], crer na Lei de Moisés e em um só
Deus do céu, e que tudo o mais era uma patarata por que só devemos adorar ao Deus
que criou o céu e a terra e não a pau e pedra, como os cristãos faziam [...].326

Por outro lado, havia também cristãos-novos que negavam qualquer correspondência
íntima com o judaísmo. O mesmo Manuel Mendes Monforte, a quem foi atribuída a propo-
sição de que os cristãos-novos somente salvariam a alma como judaizantes, não apenas des-
mentiu ter afirmado isto como demonstrou-se horrorizado diante de tal possibilidade: “[...] até
ouvir isto lhe faz horror”.327 Ele, como outros, negou qualquer realização de prática religiosa
judaica. Diogo de Ávila Henriques, Félix Nunes de Miranda e Antonio da Fonseca são alguns
outros exemplos citados nesta direção.
A rejeição de Ávila Henriques ultrapassava a ideia religiosa para firmar-se também no
âmbito social. Acenava com o afastamento de seus parentes diretos por serem cristãos-novos e
rompeu relações com um primo e um amigo por escolherem cristãs-novas para casar, ao con-
trário de Félix Nunes de Miranda, que procurava distanciar-se do judaísmo ante o Tribunal in-
quisitorial, ao menos, para não envolver sua família. Antonio da Fonseca, negava-se judaizante
considerando a prevalência de sua “parte cristã-velha”, pelo lado materno, em oposição a sua
“parte cristã-nova” paterna, e em consequência disto sempre ter vivido em ambiente cristão-
-velho mesmo após o precoce falecimento de sua mãe.
No princípio de suas confissões, Antonio da Fonseca argumentara somente ter percebi-
do que vivera alguns meses em meio a uma família judaizante quando os Inquisidores, na Mesa
do Santo Ofício, arrolaram-lhe as práticas mosaicas. Depois voltou atrás. Responsabilizou esta
família pela sua instrução no judaísmo e assumiu confraternizarem-se em cerimônias judaicas
as quais descreveu muito bem, inclusive recitando a oração que lhe ensinaram.
Esta negação, todavia, não implicava necessariamente em uma não identificação com
o judaísmo ou com a história dos judeus. Manuel Mendes Monforte tinha o catolicismo no
seu dia a dia. Atuava em diversas irmandades religiosas, as principais de Salvador, e era um
intelectual versado em matérias da fé – possuía uma biblioteca com 200 volumes, dos quais,
infelizmente, não se conhece os títulos nem os autores; há indícios de se tratar de livros sobre
a ciência médica e alguma coisa de teologia. Seus interlocutores eram clérigos e letrados, fre-
quentadores de sua casa. Foi o único cristão-novo, arrolado por esta pesquisa, denunciado na
Bahia não por criptojudaísmo, e sim por ler textos de conteúdo teológico considerado herético.
Durante o “tormento” a que foi submetido, segundo os notários do Santo Ofício, Monforte não
clamava por Jesus, senão bradava os Salmos de David e algumas jaculatórias.
Seu espírito era crítico e certamente apresentava-se como bom católico para manter
sua reputação social. No entanto, no momento dramático da tortura física pedia clemência
326 ANTT/TSO-IL Proc. nº 10156. A ideia da salvação da alma em qualquer crença religiosa como prova da
tolerância entre camadas populares do mundo ibero-americano moderno é discutida em SCHWARTZ, Stuart.
Cada um na sua lei. São Paulo: Cia. das Letras; 2009. Neste estudo, a apropriação da soteriologia católica pelos
cristãos-novos é tratada buscando-se compreender a construção de sua identidade histórico-religiosa, e por
isso subscreve-se a concepção de Lina Gorenstein segundo a qual os cristãos-novos “superposicionaram uma
interpretação judaica a um conceito católico: não Jesus Cristo, mas a Lei de Moisés era o caminho da verdadeira
salvação”. GORENSTEIN, Lina. A Inquisição contra as mulheres. São Paulo: Humanitas; FAPESP, 2005. p. 325-326.
327 ANTT/TSO-IL Proc. n° 675.

125
voltando-se para os Salmos de David. Pode-se pensar aqui em sua identificação com o juda-
ísmo, ainda que estes salmos fossem também apreciados pela Igreja católica, são muito mais
divulgados pelo judaísmo. Depreende-se de sua biografia, das acusações que a ele fizeram, uma
identificação com a história e não com a religião judaica.328
As alegações que Ávila Henriques fez para provar distanciamento de sua família desfez-
-se nos atos da vida, nos estreitos contatos econômicos e sociais com cristãos-novos parentes e
não parentes, bem como o sentir-se cristão-novo ao temer a prisão. O propósito de Félix Nunes
de Miranda em dissociar-se da fé judaica teria outra razão se não relutasse em delatar sua es-
posa e filhos, pois sabia que a admissão da culpa acarretaria, automaticamente, o envolvimento
destes. Antonio da Fonseca, ao que tudo indica, vivera como cristão até idade adulta. Diante
do julgamento, tentara fazer prevalecer este período de sua vida, por isso negou ter judaizado,
confessando-se apenas quando percebeu que este não era o melhor caminho para salvar-se da
Inquisição.
A consideração apreciada com base nestes exemplos é que, seja em uma linguagem reli-
giosa – como a salvação da alma – seja em termos que enfatizam o social e o afetivo, o judaísmo
fundamentava, equilibrava a vida destas pessoas ao delimitar e referenciar a diferença entre uns
e os outros. Vinculavam-se à sociedade que os circundavam, mas eram diferentes. Há vários
casos, vale à pena lembrar, de cristãos-velhos que somente quando seus amigos foram presos
souberam serem eles cristãos-novos.

A transmissão do judaísmo
A consciência da diferença, isto é, o saber sobre as restrições sociais e a perseguição in-
quisitorial, delineador da condição do ser cristão-novo, chegava ao sujeito por meio do ensino
da religião judaica ou do que dela permaneceu ativa na memória familiar, fruto de um tempo
quando o judaísmo ainda podia ser professado livremente na Península Ibérica.
A educação religiosa católica sempre precedia a judaica e era de inteira responsabilidade
dos pais. Logo cedo, porém, quando a criança começava a ter o sentido do discernimento e da
discrição era-lhe revelado, secretamente, a sua origem judaica, a possibilidade da salvação da
alma exclusivamente pela Lei de Moisés e como deveriam observá-la. Eram os ritos, as cerimô-
nias, alguns hábitos e costumes, assim como as orações, que passavam de geração a geração,
atravessando séculos.
No grupo de cristãos-novos estudado, a transmissão do judaísmo ocorreu em uma faixa
etária média entre doze e quatorze anos de idade; em alguns casos excepcionais, mais jovens,
aos sete, oito, dez; e outros, raros, mais tarde aos dezoito, vinte anos de idade. Era mais ou me-
nos o mesmo período em que as crianças judias celebram o Bar-Mitzvá e as católicas a Primeira
Eucaristia. Momento em que assumem as responsabilidades religiosas do mundo adulto – um
rito de passagem, em linguagem antropológica.
O discernimento e a discrição, base do segredo, eram condições indispensáveis para que
a família não fosse delatada à Inquisição. A naturalidade com que uma criança de pouca idade
encararia a observância de uma religião proibida era preservada pela família. Joseph da Costa,

328 ANTT/TSO-IL Proc. nº 675.

126
por exemplo, não assentiu ser um “[...] observante da Lei de Moisés [...]” quando seu irmão lhe
indagou que crença seguia, por considera-lo bastante jovem para ter conhecimento nessa ma-
téria.329 Francisco Nunes de Miranda também enfatizou que seus pais e irmãos mais velhos não
celebravam as cerimônias judaicas em sua presença porque ele era bastante moço, porém, uma
tia, “por muito amor que lhe tinha”, o introduziu no judaísmo.330 A discrição pode ser interpre-
tada como a capacidade em dissimular ao mundo exterior uma fé católica e o discernimento, a
capacidade de entender a diferença de ser cristão-novo.
Nesse grupo de cristãos-novos, a comunicação da religião judaica estava ao encargo de
qualquer pessoa mais velha, em geral íntima à família, não necessariamente uma tarefa dos pais
ou reservada exclusivamente às mulheres, contrariando o costume da família judia tradicio-
nal, onde a mãe exerce a função de educadora religiosa331. Quando Antonio Fernandes Pereira
completou dez anos de idade, o seu pai pediu a um contraparente, não se sabe a razão, para que
o instruísse no judaísmo, apesar de sua mãe já o ter feito um pouco antes. Meses depois quando
foi morar com uma tia no Recôncavo baiano, esta ratificou e aprofundou o ensino detalhando
as formas de celebrar as cerimônias e ensinando algumas orações.
Félix Nunes de Miranda disse que aos vinte anos de idade teve seu primeiro contato com
o judaísmo durante uma viagem que fazia pelo interior da Espanha acompanhando uns tios
paternos. Estes, ao criticá-lo porque não jejuava sendo dia de cerimônia solene, o induziram a
fazer o jejum do Dia Grande (celebrar o Yom Kipur) e a seguir o judaísmo. Mais velho do que
ele, aos 33 anos de idade, Antonio da Fonseca passou a conhecer a fé judaica quando estava
no Recôncavo baiano hospedado, durante alguns meses, em casa de Clara Lopes, avó de seu
meio-irmão paterno. Fonseca parece ter vivido mais intensamente com a família de sua mãe,
que era cristã-velha, e afastado das relações paternas, não teve oportunidade de conhecer o
judaísmo mais cedo.
Diogo de Ávila Henriques, apesar de argumentar que nunca alguém tentou desviar-lhe
da fé católica, confessou o ensino feito por sua mãe quando ele tinha doze anos de idade. Idade
com a qual Antonio Lopes da Costa ficou sabendo o que era viver na Lei de Moisés por um
seu irmão não muito mais velho. Jerônimo Rodrigues, que aos quinze anos começou em sua fé
judaica, a transmitiu para seu filho quando este tinha entre dez e doze anos de idade.
O judaísmo chegou a Joseph da Costa, ao que tudo indica, por diferentes vias. Contou a
um tio materno que o seu pai, de naturalidade francesa e considerado por todos como cristão-
-velho, lhe instruíra no judaísmo quando ele tinha 17 anos de idade. Uma atitude singular a um
não cristão-novo ou não judeu. Talvez André Vareda (ou Vereda), seu pai, fosse descendente

329 ANTT/TSO-IL Proc. nº 10002.


330 ANTT/TSO-IL Proc. nº 1292.
331 Contrariamente ao que ocorreu na Bahia do século XVI, quando as mulheres responsabilizavam-se por esta
tarefa, como demonstrado por ASSIS, Ângelo Adriano Faria de. Macabeias da colônia: criptojudaísmo feminino
na Bahia. São Paulo: Alameda, 2012; para o século XVIII, a Bahia acompanha a tendência constatada no Rio de
Janeiro por Lina Gorenstein, ao computar 20 mulheres e 14 homens como preceptores, sendo que apenas nove
moças foram instruídas no judaísmo por parentes diretos (mãe, avó e pai). GORENSTEIN, op. cit., p. 361-365.

127
de cristãos-novos ibéricos que formaram uma comunidade judaica em Baiona, França332 e, ao
passar para Portugal, não revelou a sua origem. Deixando-se conhecer como cristão-velho era
mais fácil viver neste Reino.
Joseph da Costa revelou, porém, em confissão ao Santo Ofício, que seu primeiro contato
com o judaísmo ocorreu quando foi presenteado com uma biografia de Moisés, redigida em
castelhano. Surpreso, ouviu da pessoa que o presenteou, um homem de negócios português,
que era um bom livro por tratar da Lei de Moisés, acrescentando que toda a família de Joseph
da Costa vivia nela. Deixando subentender que Joseph da Costa não conhecia a história de seus
antepassados e desconhecia que sua família era judaizante. O que é pouco provável. Certamen-
te ele escondia deste seu amigo a sua origem, a sua crença.
Esta biografia de Moisés é também um caso singular na instrução de Joseph da Costa
ao judaísmo. Os escritos judaicos, assim como Bíblia em linguagem vernácula, foram cen-
surados pela Inquisição e quem os fazia circular, clandestinamente, era punido com rigor.333
Os cristãos-novos apreciados, com duas exceções (Antonio Cardoso Porto e Manuel Mendes
Monforte), não tiveram contato com este tipo de literatura. O judaísmo que conheciam era,
como dito anteriormente, a memória familiar preservada por gerações.
Os mais jovens destes cristãos-novos a ter contato com a fé de seus antepassados pa-
recem ter sido Ana Bernal de Miranda, aos oito anos de idade, e Antonio Fernandes Pereira,
aos sete anos de idade. Ana Bernal estava passando uma temporada em casa de uma prima e
a vendo jejuar interrogou o que se passava. Assim, aprendeu o ritual de um jejum que ela não
sabia a qual cerimônia correspondia, somente inteirando-se do assunto tempos mais tarde.
Fernandes Pereira, nas contradições dos relatos sobre seu conhecimento do judaísmo e ao con-
trário de Ana Bernal de Miranda, disse lembrar e confessou o ensino completo que sua mãe lhe
fez quando tinha apenas sete anos de idade.
Interessante foi Ângela de Mesquita, filha de cristãos-novos, que foi instruída no judaís-
mo sem que seus pais tivessem conhecimento. Sua mãe, Francisca Henriques, sabia como viver
a fé judaica, mas nunca lhe havia declarado. Ângela aprendeu a observar a Lei de Moisés, a
jejuar e orar, com uma portuguesa que foi degredada para a Bahia parece que em cumprimento
de pena inquisitorial.334 No primeiro jejum realizado por Ângela, sua mãe nada sabia e notou
que ela estava “alguma coisa mortificada”.335 Ao perguntar-lhe o que acontecia, Ângela contou-

332 NAHON, Gerard. Les “nations” juives Portugaises du Sud-Ouest de la France (1684-1791). Paris: Fundação
Calouste Gulbenkian; Centro Cultural Português, 1981. NAHON, Gerard. Les registre des deliberations de la
nation juive Portugaise de Bordeaux (1711-1787). Paris: Fund. Calouste Gulbekian; Centro Cultural Português,
1981. SILVA, Marco Antonio Nunes da. As rotas de fuga: para onde vão os filhos da nação? In: VAINFAS; R.;
FEITLER, B.; LAGE, L. (Org.). Inquisição em xeque. Rio de Janeiro: Eduerj, 2006. p. 162-177.
333 REGIMENTO da Inquisição de 1640, Livro III, Título XIX.
334 Trata-se de Maria de Oliveira, cristã-nova portuguesa que foi degredada para a Bahia. Como já havia sido
penitenciada pela Inquisição quando morava em Portugal, supõe-se que sua pena foi o degredo. Talvez se trate
de penitenciada pelo Tribunal de Coimbra, em 1706, a degredo para Angola, mas que embarcou para o Brasil.
ANTT/TSO-IC Proc. nº 739. Ângela de Mesquita, única que a citou em confissão, não explicitou seu caso. ANTT/
TSO-IL Proc. n° 5348.
335 ANTT/TSO-IL Processo n° 5348.

128
-lhe que estava cumprindo o jejum do Dia Grande. Neste momento, mãe e filha declararam-se
judaizantes.
Assim, Ângela de Mesquita afastou qualquer possibilidade de ensino por parte de sua
mãe. Francisca Henriques acabava de ser encarcerada no Tribunal de Lisboa, e Ângela ime-
diatamente foi apresentar-se aos Inquisidores. Não queria comprometer a causa de sua mãe,
tampouco de seu marido, Antonio Cardoso Porto, preso no mesmo dia da sogra. Concedeu o
ensino judaico a uma mulher estranha a sua família que já havia sido sentenciada pelo Santo
Ofício.
Algumas vezes os cristãos-novos usavam desse estratagema para não agravar as culpas
contra seus pais ou outros afetos. Miguel Nunes de Almeida, filho de Félix Nunes de Miranda,
usou de artifício similar para não comprometer ainda mais o seu pai. Atribuiu o ensino judai-
co a uma tarefa de sua mãe, Grácia Rodrigues, que nunca fora presa e no tempo da prisão do
marido e do filho estava longe do Reino português, parece que vivendo em Londres. Jamais
Nunes de Almeida mencionou, em confissões ordinárias, que seu pai disse-lhe alguma coisa a
respeito do judaísmo ou participado das celebrações realizadas em sua própria casa. Nunes de
Almeida foi levado a tormento e no fim de seu processo, quando seu pai já havia sido senten-
ciado, mencionou o seu nome.
Antonio Cardoso Porto, assim como os demais cristãos-novos estudados, foi instruído
por sua mãe e por um tio-avô o qual lhe explicava o sentido das solenidades judaicas dizendo
que deveriam ser observadas por serem “jejuns de milagre”, e sempre que tinha oportunidade
mostrava-lhe passagens da Bíblia sobre os milagres “que Deus tinha feito ao povo de Israel”.336 A
sua aproximação com o judaísmo, porém, ocorreu de uma forma excepcional e até agora inédi-
ta entre os cristãos-novos estudados da Bahia setecentista. Antonio Cardoso Porto vivenciou o
judaísmo em sua versão mais tradicional, como um judeu professo, ainda que não circunciso,
quando morou na França.
Cardoso Porto aproximou-se de cristãos-novos ibéricos que viviam no reino francês,
graças ao comércio de tecidos que empreendia entre esse e os reinos de Portugal e Espanha,
onde também morou. Na comunidade cristã-nova em Saint-Esprit-les-Bayonne, Baiona, co-
nheceu um português natural de sua Vila natal, João da Silva, que se tornara judeu professo e
era conhecido como Daniel da Silva, um comerciante com mais de setenta anos de idade. A
identificação e o contato entre ambos foram imediatos e levaram Cardoso Porto a viver nesta
comunidade. Na primeira visita que fez à casa de João ou Daniel da Silva, Cardoso Porto en-
controu uma Bíblia escrita em castelhano. O seu entusiasmo pela leitura foi logo reconheci-
do pelo anfitrião, que prontamente lhe apresentou diversos escritos e livros de reza judaicos,
tornando-se seu preceptor em matéria de fé.
Neste ambiente de relativa liberdade religiosa Cardoso Porto viveu por dezessete lon-
gos anos aproximando-se do judaísmo rabínico. O ponto de partida para sua conscientização,
segundo suas palavras, foram as reflexões e discussões com este sefardim, sempre disposto a
esclarecer-lhe “[...] no que tinha visto nos ditos livros e no que lhe declarava, e no que lia na
mesma Bíblia e dúvidas que se lhe ofereciam [...]”.337 Ao chegar a Bahia, Cardoso Porto trazia

336 ANTT/TSO-IL Processo n° 8887.


337 Ibidem.

129
consigo um conhecimento sobre o judaísmo pouco comum a seus confrades e os transmitia
quando lhe pediam informações e explicações.
Em todas as confissões sobre o ensino (sempre a primeira), a justificativa que davam
para afastar-se da crença católica, na qual foram educados durante a infância, era exatamente
a confiança que a pessoa mais velha inspirava pela sua experiência de vida, respeito e reputa-
ção. O irmão de Antonio Lopes da Costa, Carlos Pereira, não era muito mais velho que ele,
certamente algo menos de dez anos, mas “por ser mais velho lhe dizia o ensino que fosse mais
conveniente para sua salvação, se resolveu logo apartar-se da Lei de Cristo [...]”.338 Jerônimo Ro-
drigues também expressou-se no sentido da gratidão, dizendo que “[...] vendo ele réu o ensino
que sua tia lhe dava e que por lhe dar o sustento e educação, entendeu ele réu o ensinaria no
que mais lhe convinha para a sua salvação, se resolveu a largar logo ali a Lei de Cristo [...]”.339
O mesmo se ouvia da confiança a parentes e não parentes. Antonio Fernandes Pereira foi
ensinado por Manuel Lopes Dourado, amigo de seu pai, e com um relacionamento de contra-
parentesco com sua família em Portugal. Como amigo, Fernandes Pereira considerou
[...] e vendo ele réu o ensino que o mesmo lhe dava e na consideração de ser seu
amigo, e ele então de dez anos de idade, ficou em dúvida sobre qual das religiões seria
a melhor, ainda que dissesse ao mesmo que faria tudo quanto lhe advertia.340

Igualmente correspondia uma prova de amor fraternal dispor-se a transmitir o judaísmo


a alguém, como Francisco Nunes de Miranda compreendeu a atitude de uma tia quando sua
família não lhe comentava sobre as práticas religiosas que realizavam porque ainda era jovem.
Assim também um dos seus irmãos justificou ao sobrinho Pedro Nunes de Miranda, filho do
sobredito Francisco, que lhe ensinava em razão de o haver criado e ter por ele muito amor.
Acredita-se que esses e outros cristãos-novos buscavam uma razão distante da própria
fé para mostrarem-se, ante os Inquisidores, persuadidos a seguirem o judaísmo. A transmissão
das práticas religiosas judaicas era, sim, uma tradição cristã-nova, porém, este tipo de justifi-
cativa que todos, invariavelmente, faziam, ainda que induzidos pelos Inquisidores interessados
em saber de quem partia o conhecimento do judaísmo, deixa a noção de que procuravam com
isso atestar, mais à frente, o arrependimento de seguir a tais apelos de adoção da Lei de Moisés.
A confiança estava também na base das declarações mútuas de “como criam e viviam
na Lei de Moisés para salvação de suas almas” – com esta fórmula, os notários transcreviam as
confissões dos réus. Somente se revelavam entre parentes e entre os amigos com os quais havia
uma forte vinculação ou diante da certeza de tratar-se de um cristão-novo. Os Inquisidores
nunca deixavam de perguntar a razão que tiveram para se declararem mutuamente e sempre
diziam que era por causa da amizade, do parentesco, por se encontrarem com estranhos em
meio a amigos comuns também cristãos-novos.
Com base nesta confiança os Inquisidores incriminavam famílias inteiras – parentes di-
retos e colaterais – nas listas de suspeitos, por gerações, décadas. A culpa de criptojudaísmo
era apenas admitida pelos Inquisidores nas confissões ordinárias, quando congregava outros

338 ANTT/TSO-IL Processo n° 6540.


339 ANTT/TSO-IL Processo n° 10003.
340 ANTT/TSO-IL Processo n° 10481.

130
indivíduos. O caráter comunitário para a celebração de algumas cerimônias, como o Yom Ki-
pur ou Pessach, por exemplo, corroborado com a única possibilidade de serem observadas na
clandestinidade, deixava claro para a Inquisição a reunião familiar – pessoas mais próximas
nas quais a confiança era a chave para compartilharem um ato proibido e punível.

A “salvação da alma” e culpabilidade


A transmissão do judaísmo, ou da Lei de Moisés, era o momento em que o cristão-novo
tomava consciência de sua origem e de sua posição no mundo. Aprendiam sobre as práticas
religiosas que deveriam seguir em observância da Lei de Moisés, os ritos e preceitos necessários
para sua realização e, sobretudo, o motivo pelo qual deveriam adota-la: a única possibilidade
real de salvação da alma.
A ideia de salvação da alma é uma constante na visão religiosa desses cristãos-novos da
Bahia setecentista e corresponde a uma combinação da ideia salvacionista do catolicismo com
a possibilidade única de salvação no judaísmo. Para Cecil Roth, que estudou os cristãos-novos
da América Espanhola, se há uma “teologia marrana”, esta se encerra em uma única frase “que
aparece continuamente em todas as atas da Inquisição e com tal insistência que resulta impos-
sível ignorá-la: que a salvação era possível segundo a Lei de Moisés e não o era seguindo a Lei
de Cristo”.341 Na opinião deste autor a ideia de salvação pela Lei de Moisés tinha o significado
de “uma confissão de fé judaica” 342 em linguagem católica.
A transmissão do judaísmo seguia uma mesma forma de abordagem e orientação reli-
giosa. Primeiro, perguntavam ao jovem em que Lei vivia ou em qual esperavam salvar a alma.
Como sempre respondiam “na de Cristo”, eram então aconselhados a seguir a “Lei de Moisés
por que esta era a boa para a salvação da alma”.343 Diogo Henriques Ferreira e Jerônimo Rodri-
gues ouviram que na Lei de Cristo “não se salvava as almas”.344
Não lhes eram dados algum esclarecimento teológico mais do que o explícito sentimento
de descrença da utilidade da fé católica para conquistar a salvação. Francisco Rodrigues Pereira
concluía em seu pensamento religioso, “que se ficasse na Lei de Moisés porque tinha sido a
primeira e era a boa para a salvação as almas”.345 Por outro lado, crer e cumprir a Lei de Moisés
constituía na delimitação de seu lugar no mundo, na afirmação de sua origem, de sua diferença,
enfim, na revelação da identidade judaica.
Em seguida eram orientados sobre as práticas religiosas e preceitos que deveriam ob-
servar. De forma objetiva, a única intermediação para chegar até Deus era o cumprimento de
ritos, cerimônias e preceitos judaicos, assim como as orações. O mais corrente eram os jejuns
para celebrar o Dia Grande, Capitão (Jejum de Guedalia, realizado por estes cristãos-novos
oito dias antes do Dia Grande), a Rainha Éster e outros durante o ano; a Páscoa dos Judeus ou
do pão ázimo (Pessach) era iniciada com um jejum. Presentes também em todo ensinamento

341 ROTH, Cecil. Historia de los marranos. Madrid: Altalena, 1979. p. 120, 121.
342 Ibidem.
343 ANTT/TSO-IL Processo n° 10484.
344 ANTT/TSO-IL Procs. n°s 9130, 10003.
345 ANTT/TSO-IL Processo n° 10484.

131
estavam a Guarda dos sábados (Shabat), os preceitos alimentares de abstenção de carne de co-
elho, lebre, porco ou peixe de pele e as orações. Sobretudo, recomendava-se atentamente orar o
Pai Nosso “sem dizer Jesus no fim”. As orações nunca se repetiam, embora tivessem um mesmo
teor. O luto judaico e o modo de orar foram muito pouco mencionados e praticados.
A culpa por realizar tais observâncias religiosas foi muito mais percebida como uma
atribuição deste sentimento por parte dos Inquisidores aos réus, do que um sentimento pró-
prio e inerente a eles. A razão que davam para o fato de não confidenciar a observância judaica
aos padres confessores, quase sempre consistia em não verem a crença judaica como um erro.
Outros diziam reconhecer o erro e sentirem certa inclinação para confessá-los, entretanto ale-
gavam que o não faziam em suas paróquias porque os padres não tinham autoridade para dar
absolvição. Isso não implica, necessariamente, na negação da autoridade sacerdotal, ainda que
alguns cristãos-novos a contestassem, e sim na inutilidade da confissão, do expor-se herege,
fundamentada no real impedimento deste clero em julgar matérias destinadas exclusivamente
ao fórum inquisitorial.346
Antonio Fernandes Pereira foi levado por alguma circunstância de sua vida – “por certo
caso que lhe sucedeu” – a confessar ao sacerdote da igreja que frequentava que, embora sua
crença verdadeira fosse a católica, celebrava algumas cerimônias judaicas junto a sua família.
Como o sacerdote não o absolveria sem que antes fizesse essas mesmas declarações ao Santo
Ofício, Fernandes Pereira passou a confessar uma única vez ao ano, por que entendia que “não
confessava bem” ao ter que omitir a observância judaica, e não se apresentou à Inquisição por
“temor e vergonha” de ter desviado-se de Cristo.347
Diferente dele, Joseph da Costa não se sentia culpado em “judaizar”, tanto que somente
alegou aos Inquisidores que abdicara a crença judaica quando o prenderam. Todavia, sabendo
do erro em que estava implicado, revelou que “andava com ânimo já de antes [da prisão] de
se apresentar neste Santo Ofício”, conquanto não procurou um Comissário na Bahia por que
a notícia de sua apresentação tornar-se-ia pública e ele receava ficar “com menos estimação
naquela cidade”.348
O envolvimento de uma pessoa com a Inquisição era, de fato, notório a todos os seus
conhecidos e desconhecidos, deixando marcas, estigmas, não apenas em si como na própria
família, e interferindo nos negócios. Estavam obrigados a guardar segredo de tudo o que ocor-
reu com eles no Palácio dos Estaus, mas a sua prisão era pública e muitas vezes acarretava em
algum distanciamento de seus amigos ou parceiros de ofício por temerem, em certo sentido,
envolvimento com penitenciados.
Lembra-se aqui o caso de David de Miranda que, retornando a Bahia após sua primeira
condenação, teve um pedido de ajuda negado por seu primo, também cristão-novo, para sua

346 Ao ser indagado por que não confessava já que “tinha seus erros por pecado”, Pedro Nunes de Miranda
respondeu: “se os não confessava era porque seus confessores não tinham jurisdição para os absolver”. ANTT/
TSO-IL Processo n° 9001.
347 ANTT/TSO-IL Processo n° 10481.
348 ANTT/TSO-IL Proc. n° 10002.

132
recolocação na atividade comercial.349 A solução que encontrou foi se transferir para a Capita-
nia do Rio de Janeiro e lá formar uma sociedade com um primo e cunhado, Francisco Nunes.350
Joseph da Costa sabia deste episódio ocorrido quase uma década antes de sua prisão, pois era
casado com uma prima direta de David de Miranda.
O arrependimento e o pedido de misericórdia não deixavam de ser anotados pelos es-
crivães. As razões que levavam estes cristãos-novos a retornar ao catolicismo após longos anos
de uma fé reprimida, algumas vezes quando já estavam no cárcere, não eram diferentes umas
das outras. Nas argumentações que foram arroladas constatou-se uma súbita conscientização
de que estavam vivendo em pecado, erroneamente, sobretudo quando diziam que foram “alu-
miados pelo Espírito Santo” de uma hora para outra, ou por lerem em algum lugar que a fé que
seguiam não era aceita por Deus, ou quando estavam doentes, acamados. Jerônimo Rodrigues,
por exemplo, trocou de crença no momento em que “adoecendo perigosamente, alumiado pelo
Espírito Santo, conheceu que ia errado e se resolveu a abraçar a Lei de Cristo”.351
Pedro Nunes de Miranda foi mais direto e nada religioso em sua justificativa. Apesar
de considerar que vivia em pecado e não dava conta a seus confessores porque “não tinham
jurisdição para o absolver”, persistiu na mesma crença e somente “a largou por se ver arrastado
e perseguido e fez propósito de se apresentar neste Tribunal”,352 no entanto, três meses depois
foi preso. Sua argumentação foi a única a desvelar uma tensão antecedente e decisiva para
apresentar-se ao Santo Ofício.
Antonio Lopes da Costa mostrou-se, como Pedro Nunes de Miranda, objetivo, direto e
com uma simplicidade que evoca um sentimento religioso judaico inabalável, apesar de obri-
gado a abjurar mais tarde, como parte de sua sentença no Tribunal de Lisboa. Nunca negou que
era católico “por cumprimento do mundo” e que a crença na Lei de Moisés lhe durou até o dia
em que entrou na prisão do Santo Ofício, “e de presente crê em Cristo Senhor Nosso”.353 Uma
evidência de quem não se deixou convencer e não tinha como lutar sozinho, e encarcerado,
contra um sistema.
Antonio da Fonseca, em quem se percebia uma ambiguidade na crença, depois de um
ano e meio observando a Lei de Moisés, declarou-se de volta ao catolicismo ao estar prestes
a casar-se com uma filha ou enteada de um sargento-mor cristão-velho: “[...] caiu em si e co-
nheceu que andava errado [...]”.354 O seu caso, porém, é mais complexo. Neste episódio pode-se
dizer que havia tomado o judaísmo como fé, chegando mesmo a criticar imagens sacras, depois
de ter passado anos como católico. Largou o judaísmo, no qual identificava seu outro lado, o
lado cristão-novo, por uma praticidade da vida. Sua noiva tinha uma posição social relevante,
em uma Vila do Recôncavo baiano, da qual ele faria parte.355
349 “[...] pedindo-lhe David de Miranda, depois que chegou a esta cidade [Salvador] penitenciado pelo Santo Ofício,
o abonasse em alguns escravos e fazendas para fazer comboio para Minas, o dito Michael Nunes o não quisera
fazer, e daí por diante se não trataram”. ANTT/TSO-IL Proc. n° 7489.
350 Ibidem.
351 ANTT/TSO-IL Proc. n° 10003.
352 ANTT/TSO-IL Proc. n° 9001.
353 ANTT/TSO-IL Proc. n° 6540.
354 ANTT/TSO-IL Proc. n° 10484.
355 Ibidem.

133
Os réus apresentados, que diziam ter culpas a declarar, sentiam-se eles mesmos cul-
pados? Uma questão de extrema subjetividade para o réu. Somente ele conhecia sua própria
alma. João de Morais Montesinhos decidiu ir às autoridades inquisitoriais na Bahia revelar suas
culpas porque “[...] largou a dita crença alumiado pelo Espírito Santo, pelo que viu em alguns
livros que havia lido, conhecendo que ia errado, e tornou a abraçar a Lei de Cristo Nosso Se-
nhor [...]”.356
O contrário da culpa que movia os réus apresentados pôde ser observado no depoimen-
to de dois cristãos-novos. Diogo de Ávila Henriques confessou que somente se apresentaria à
Inquisição para livrar seus bens materiais do confisco.357 Antonio Fernandes Pereira expressou
a intenção de se apresentar porque sentia um “mau receio de que o tinham denunciado no
Santo Ofício”.358
Com essas considerações não se pretende concluir que a culpa inexistia aos cristãos-
-novos e era uma mera criação dos Inquisidores. A culpa surgiu em Diogo de Ávila Henriques
junto ao medo da morte, diante da emergente condenação à fogueira. Procurando confessar
para obter a comutação da pena, usou de palavras emocionadas para mostrar aos Inquisidores
que estava arrependido de ter cometido tais erros e pedir misericórdia: “e lhe pesa de não ter
gênio de chorar para dar com lágrimas sinais de seu arrependimento”.359 Estava tentando salvar
sua vida. Talvez, por isso disse que a crença na Lei de Moisés lhe durara até o momento em de
atarem-lhe as mãos.360
A dúvida que cristãos-novos carregavam dentro de si, diante de uma religião dominante
que eram obrigados a seguir e de outra que estava mais próximo de sua história (ou era a razão
de sua história acontecer), que conheciam no seio familiar, do afeto das pessoas que os cir-
cundavam e que, em última instância, dava um sentido para a condição de grupo perseguido,
deveria em verdade incomodar. A culpa poderia provir da dúvida, da duplicidade de crenças,
da divisão interna, da subjetividade da alma.
A dúvida explicitada por Antonio Fernandes Pereira ao comentar sobre os primeiros
anos de contato com o judaísmo é considerável não por se tratar de uma criança com sete ou
dez anos de idade ou por viver na ambiguidade de duas crenças, uma que dizia viver interna-
mente, outra que expressava no convívio familiar, mas por trazer em si mesmo um sentimento
dissociativo: a que mundo, afinal, pertenço? Foi buscar um alívio ante um sacerdote que o
aconselhou a apresentar-se ao Santo Ofício, para ser julgado. Fernandes Pereira sabia o que
estava por vir e não foi.361
O mesmo questionamento subjetivo nota-se em Antonio da Fonseca, que observou o
judaísmo por um ano e meio, quando já tinha 33 anos de idade. Até esta época, Fonseca via-se
“parte cristão-novo”, prevalecendo em sua autoimagem o lado cristão-velho materno. Depois,

356 ANTT/TSO-IL Proc. n° 11769.


357 “[...] cuidara em se apresentar-se para salvar os seus bens, o que não o fez por que se tem a estar certo de sua
inocência”. ANTT/TSO-IL Proc. n° 2121.
358 ANTT/TSO-IL Proc. n° 10481.
359 ANTT/TSO-IL Proc. n° 2121.
360 “Disse que a crença lhe durou até agora, ao atar-lhe as mãos porque conheceu que morrendo na Lei de Moisés
não podia salvar sua alma e na Lei de Cristo”. Ibidem.
361 ANTT/TSO-IL Proc. nº 10481.
134
descobriu-se judaizante e somente apartou-se da Lei de Moisés em razão do seu casamento
com uma moça que, ao que tudo indica, era cristã-velha. Fonseca precisava então ser acolhido
pelo mundo dirigido pela Inquisição. Para a lógica inquisitorial o lado cristão-novo anulava o
lado cristão-velho. A que lado, então, Antonio da Fonseca pertencia? Como ele passou a se ver?
A ideia do homem dividido, da qual fala Anita Novinsky, emerge em todos esses casos
apresentados.362 Esses cristãos-novos viviam entre dois mundos divergentes, entre duas crenças
religiosas que referenciavam a posição das pessoas na sociedade e acabaram construindo uma
identidade que não se reduzia meramente à negação ou aceitação de um dos dois mundos, de
uma das duas crenças, tampouco a justaposições de ambos. Antes de tudo, construíram uma
identidade peculiar, marrana. É o encontro de dois universos construindo um terceiro, não
pela redução ou fusão, mas por uma nova criação diferenciada.

AS PRÁTICAS RELIGIOSAS JUDAICAS

A investigação sobre a religiosidade dos cristãos-novos da Bahia setecentista notou a presença


forte de um sentimento religioso judaico tanto quanto um distanciamento dele. Essa religiosi-
dade voltava-se para o conhecimento e observância dos principais ritos, cerimônias e preceitos
do judaísmo, os quais lhes eram transmitidos durante o “ensino”, como o Dia Grande, Capitão,
a Páscoa do pão ázimo, o Jejum da Rainha Éster, a celebração da Guarda dos Sábados e o cum-
primento dos rituais de luto, já mencionados. Outrossim tinham conhecimento dos preceitos
da dieta Kosher, mas não se referiam ao impedimento da mistura de carne e leite.363
O jejum do Dia Grande era o mais conhecido e realizado: “fora exatamente dado por
Deus”.364 Também chamavam de Jejum do Senhor.365 Solenidade maior do judaísmo, os cristãos-
-novos lhe davam uma grande importância transformando-o em uma referência do ser ju-
daizante.366 Neste dia, também conhecido como o Dia do Perdão, quando todas as desavenças
deveriam ser superadas com a renovação de um novo parâmetro de relacionamento, alguns
cristãos-novos relataram o costume das visitas de reconciliação.367
Durante uma celebração do Dia Grande, amigos de Diogo Nunes Henriques, que esta-
vam reunidos com ele para o jejum, foram todos à casa de seu cunhado, Joseph Cardoso, para
pôr fim a uma discórdia que os havia separado. Ao chegarem lá, encontraram outra dezena de

362 NOVINSKY, Anita. Cristãos-novos na Bahia. São Paulo: Perspectiva, 1972. p. 141 et passim.
363 A religiosidade cristã-nova foi tema de artigo publicado pela autora. SEVERS, Suzana. Memória e religiosidade
marrana na Bahia colonial. In: COUTO, Edilece S.; SILVA, Marco Antonio N. da; SOUZA, Grayce M. B. Práticas
e vivências religiosas: temas da história colonial à temporalidade luso-brasileira. Salvador: Edufba; Vitória da
Conquista, BA: Edições UESB, 2016. p. 281-296.
364 ANTT/TSO-IL Proc. n° 8887.
365 ANTT/TSO-IL Proc. n° 9130.
366 “O jejum assinala-se sobretudo por características próprias, que sugerem certa religiosidade criptojudaica”.
WACHTEL, Nathan. A fé na lembrança: labirintos marranos. São Paulo: Edusp, 2009. p. 147.
367 “[...] por ser costume entre a gente de sua nação fazer as pazes nas solenidades maiores os que se acham
desavindos [...]”. ANTT/TSO-IL Proc. n° 9001.

135
cristãos-novos que também confraternizavam a mesma cerimônia e todos juntos ajudaram a
promover a reaproximação.368
Parece também que os cristãos-novos da Bahia aproveitavam a ocasião do Dia Gran-
de para socializarem-se. No mesmo dia, Nunes Henriques e seus amigos foram felicitar, por
algum acontecimento, outro cristão-novo, que também celebrava o Dia Grande com outros
convivas. As festividades judaicas, de um modo geral, tinham também a função de estreitar
a convivência entre os cristãos-novos, pela reunião que promoviam, pelo fortalecimento da
identidade judaica.
O Jejum da Rainha Éster era igualmente celebrado em certo clima de solenidade maior
do judaísmo. No judaísmo tradicional, o Jejum da Rainha Éster é considerado uma festividade
menor, todavia ganhou relevância entre os cristãos-novos pela afinidade da história de Éster
com a situação persecutória que enfrentavam. Éster era obrigada a esconder do mundo em que
vivia seu pertencimento ao povo de Israel, assim como os cristãos-novos.369
Os cristãos-novos da Bahia setecentista referiam-se a três dias de jejum em “honra e
louvor à Rainha Éster”. O cumprimento do jejum durante três dias consecutivos circunscreve-
-se em uma prática ortodoxa seguida pelos judeus da seita caraíta, realizando antes da festa de
Purim, essa esquecida pelos cristãos-novos estudados.370 A aproximação com uma prática dos
caraítas não estava na consciência destes indivíduos.371 Continuaram a reproduzir um costume
que foi mantido na longa duração e, com certeza, revivificado pela significação da história de
Éster com a sua própria.
A Guarda dos Sábados, o Shabat, era a mais importante prescrição judaica que os cris-
tãos-novos regularmente mencionavam sua observância. Era o dia de descanso, um dia da in-
trospecção e oração devocional ao Criador. “Guardar os sábados de trabalho como dias santos”,
expressão comum em diversas confissões, evoca a santificação deste dia por Deus, como consa-
grado na Bíblia. A Páscoa do pão ázimo, reverenciando a libertação da escravidão do Egito, era
muito mais falada enquanto um jejum acompanhado de uma ceia, do que a ceia propriamente
dita (o Seder), que é o ápice do ritual celebratório de Pessach para o judaísmo tradicional.
O cumprimento destas festividades pretendiam seguir mais ou menos o calendário lunar
e a hora sazonal utilizados pelos judeus. Os meses de cada cerimônia eram mais conhecidos
do que os dias de sua observância. Quando instruíam os jovens na Lei de Moisés diziam para
cumprir o jejum do Dia Grande e do Capitão no mês de setembro, “o da Rainha Éster que vem
no mês de fevereiro, por três dias consecutivos” e a Páscoa do pão ázimo “alguns dias antes
da dos cristãos”.372 Outros precisavam mais o tempo localizando o Dia Grande “a treze da lua
de setembro”, o Capitão “a três da mesma lua”, ou “oito dias antes do Dia Grande”, o jejum da
Rainha Éster “conforme a lua em um mês antes da Páscoa”, tal Páscoa deveria ser a católica, ou

368 ANTT/TSO-IL Proc. n° 9001.


369 Cecil Roth em um estudo sobre os cristãos-novos hispano-americanos constatou que o jejum da Rainha Éster
ganhou o mesmo grau de importância que o Dia Grande tem no judaísmo tradicional. ROTH, op. cit., p. 130.
370 Festa menor do judaísmo que comemora, alegremente, o Livro de Éster. UNTERMAN, A. Dicionário Judaico de
Lendas e Tradições. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992. p. 212-213.
371 Esther jejuou por 3 dias consecutivos no final dos quais celebravam-se o Purim. Os caraítas seguem rigorosamente
os dias de jejum mas, realizam-no antes de Pessach. Ibidem, p. 94.
372 ANTT/TSO-IL Proc. n° 10003.

136
ainda “que vem pela quaresma”. As horas eram mais fáceis para ser cumpridas com exatidão.
Às 24 do calendário lunar, contavam “de estrela a estrela”, “de um dia a sol posto até o seguinte
as mesmas horas”.
As datas das cerimônias eram divulgadas a viva voz dentre os conhecidos. Os calendá-
rios das festividades judaicas eram conseguidos fora de Portugal. Francisco Nunes de Miranda
contou o caso de um amigo morador na Beira Alta que recebia um calendário judaico de um
cunhado morador na Inglaterra e divulgava as datas a quem interessava. Dentre esses cristãos-
-novos da Bahia setecentista, o único a ter adquirido um desses calendários, com datas para
vários anos, foi Antonio Cardoso Porto quando morava na França.
Em várias de suas confissões, Cardoso Porto contou os casos das pessoas que lhe pediam
informação. São pequenas narrações que mostram um pouco como era feita essa comunicação
na cidade de Salvador. Um dia, passando pela rua de Grácia Rodrigues, apareceu um filho dela
que da porta da casa perguntou-lhe quando caía o jejum da Rainha Éster. Cardoso Porto disse
não saber, provavelmente porque não queria dar publicidade de sua crença.
A cunhada de Cardoso Porto, Branca Rodrigues, indo para a casa dele em sua compa-
nhia, dissera-lhe que estava aborrecida “porque ele não lhe dizia quando era o jejum do Dia
Grande” e Cardoso Porto então falou para ela perguntar à irmã que esta lhe informaria.373 A
mãe de Branca abordou Cardoso Porto dizendo-lhe sabia que ele era observante da Lei de Moi-
sés porque o seu marido lhe disse, e que ele “portanto lhe dissesse quando era o Dia Grande”.374
Em algum lugar da cidade, Cardoso Porto e Francisco Fernandes Camacho encontraram-se e
esse perguntou-lhe quando deveria celebrar o Dia Grande. Cardoso Porto prometeu-lhe res-
ponder depois, e passados alguns dias encontraram-se novamente no mesmo lugar e Fernan-
des Camacho obteve a informação desejada.375
Nem todos os cristãos-novos sabiam com precisão a época certa das celebrações. João
de Morais Montesinhos não se lembrava mais o mês de jejum da Páscoa.376 Luís Henriques co-
mentou que não sabia se observava o Dia grande há tempos.377 Esta desinformação as vezes ge-
rava polêmica entre amigos. Cardoso Porto relatou ainda que andando pelas ruas de Salvador
encontrou-se com o médico cristão-novo Henrique Soares Henriques e seguiram ambos para a
casa do irmão desse que estava doente, Raphael Soares Henriques. Lá, acharam-no discutindo
com outro cristão-novo das Minas Gerais sobre a época certa para celebrar o Dia Grande, sem
chegarem a uma conclusão. Raphael, quando viu seu irmão, louvou sua chegada porque lhes
tiraria a dúvida. Algumas vezes, era perguntando sobre os dias das solenidades que os cristãos-
-novos se reconheciam.
A forma de celebração dessas cerimônias era sempre a mesma, sem notar as especifici-
dades com que cada uma delas é observada em seus ritos e sentido tradicionais. O ritual do Dia

373 ANTT/TSO-IL Proc. n° 8887.


374 Ibidem.
375 Sobre Antonio Cardoso Porto, baseado nas informações aqui contidas, cf. SEVERS, Suzana. Um heresiarca na
Bahia setecentista: judaísmo e Inquisição. Práxis. Revista eletrônica de história e cultura, Salvador, v. 4, n. 5, p.
107-115, jan./dez. 2011.
376 “[...] um jejum na Páscoa que lhe não lembra o tempo em que lhe disse que caía”. ANTT/TSO-IL Proc. n° 11769.
377 Assim relatou Antonio Cardoso Porto em confissão. ANTT/TSO-IL Proc. n° 8887.

137
Grande era parâmetro para as demais cerimônias que incluíam a realização de jejum. Durante
o ensino ressaltavam que “do mesmo modo fizesse o jejum da Rainha Éster [...] e observasse a
Páscoa do pão ázimo”378 e jejum do Capitão seguia na mesma direção. Cada cerimônia, porém,
tinha a sua própria oração.
Sempre realizavam-nas em suas casas congregando parentes e amigos. Antonio da Fon-
seca e Antonio Fernandes Pereira contaram a presença de oito pessoas em casa de Clara Lopes,
na Vila de Cachoeira, por ocasião do jejum do Dia Grande. Antonio Lopes da Costa participou
de outra celebração do Dia Grande, em casa de seu irmão, reunindo dez parentes e amigos.
Pedro Nunes de Miranda compartilhou com mais doze pessoas uma celebração da Páscoa do
pão ázimo, citando apenas alguns exemplos.
A reunião de muitas pessoas apesar de ser um costume seguido, não impedia que cele-
brassem a dois. Pedro Nunes de Miranda e Antonio Fernandes Pereira fizeram juntos um jejum
do Dia Grande. Ângela de Mesquita jejuava sozinha em sua casa celebrando esta mesma soleni-
dade, quando sua mãe juntou-se a ela. Porém, era raro relatarem uma situação como esta. Em
geral, quando as práticas religiosas ocorriam apenas entre duas pessoas, quase nunca definiam
o que celebravam. Isto foi uma característica marcante nas confissões analisadas. Por outro
lado, como já foi discorrido, durante as confissões os Inquisidores induziam à apresentação de
cúmplices e não práticas religiosas.
As cerimônias que tinham o jejum como preceito principal começavam a ser celebra-
das no final da tarde de um dia – “ao sol posto” – quando se abstinham de qualquer alimento
e bebida, porém, antes do sol se pôr, faziam a última refeição. Permaneciam em jejum “até o
dia seguinte as mesmas horas”, quando então davam início a uma ceia preparada com pratos
especiais, sempre à base de peixe de escamas, jamais qualquer outro tipo de carne. A mãe de
Antonio Fernandes Pereira o recomendou a jamais dormir durante o dia quando estivesse je-
juando pela Lei de Moisés.
O cardápio de uma ceia de Dia Grande foi mencionado por Simão Rodrigues Nunes e
Ângela de Mesquita. Nele, incluíam “grãos [...] peixe frito e arroz doce” e ovos.379 O comum a
todas declarações de ensino era referir-se à ceia ressaltando que apenas deveriam comer “peixe
e coisas que não fossem de carne”. Alguns cristãos-novos falavam da necessidade de não ingerir
os alimentos proibidos – carne de coelho, lebre, porco e peixe de pele – nos oito dias antece-
dentes aos jejuns solenes.380
Pedro Nunes de Miranda, cujas confissões são ricas em descrições das cerimônias ju-
daicas, lembrou da informação que alguém passou, que “[...] para os jejuns serem bem feitos
se haviam de abster, os que faziam ao menos, nos oito dias antecedentes, de carne de porco,
gordura e peixe de pele [...]”.381 Diogo de Ávila acenou para a celebração da Páscoa do pão ázi-
mo, afirmando a necessidade de não trabalhar por nove, ou sete dias durante os quais deveriam
comer o pão não fermentado (o pão ázimo).382

378 ANTT/TSO-IL Proc. n° 10003.


379 ANTT/TSO-IL Proc. n°s 1001 e 8887.
380 ANTT/TSO-IL Proc. n° 9001.
381 Ibidem.
382 ANTT/TSO-IL Proc. n° 7484.

138
Ao surgir no céu a primeira estrela da noite, a esta hora também, vestiam-se especial-
mente para a cerimônia. A higiene do corpo e da roupa era reiteradamente afirmada. Cele-
bravam o Dia Grande “preparando-se à véspera com lavar o corpo e vestir camisa lavada”.383 A
roupa limpa ou nova, a “camisa lavada” ou “em folha”, tornou-se um dos sinais de identificação
de um “judaizante” e era uma das recomendações principais para o preceito da Guarda dos
Sábados: “vestindo neles roupa lavada” ou “vestindo na véspera camisa lavada”.384 Brites Pereira
divulgava que para seguir a Lei de Moisés era indispensável a abstenção de carne de porco, o
jejum do Dia Grande e “vestir roupa nova se a tivesse”.385
A “camisa lavada” era uma peça indispensável para o cristão-novo João de Morais Mon-
tesinhos. Uma de suas maiores e mais frequentes queixas contra os Familiares do Santo Ofício,
que trataram do seu traslado do local em que foi capturado até o porto onde embarcou para
o Santo Ofício, foi o descuido com a limpeza de suas roupas, sobretudo suas camisas, que ele
insistentemente pedia para serem lavadas e nunca o foram. Dizia que precisava delas limpas
para a longa jornada até o Tribunal de Lisboa e para apresentar-se dignamente vestido à Mesa
do Santo Ofício.386
Em uma carta aos Inquisidores lisboetas mostrou sua total indignação, sugerindo-lhes
que regulamentassem visitas periódicas dos Familiares do Santo Ofício aos prisioneiros que
aguardavam remoção para o Tribunal, a fim de cuidarem de suas necessidades elementares.
Para Montesinhos, era a roupa limpa. Este seu notável esforço em sempre ter a camisa lavada
sugere uma declaração tácita de observância do judaísmo, do cumprimento da Guarda do Sá-
bado ou de alguma cerimônia, para devidamente observá-la no silêncio do seu cárcere. Como
réu apresentado, o principal interesse de João de Morais Montesinhos era confessar-se o quanto
antes um criptojudaizante.
Encontrou-se a mesma importância da camisa lavada em outra situação adversa ao
cumprimento de preceitos judaicos. Alguns membros da família Nunes de Miranda levaram
para a Bahia a ideia do “jejum sem as brancas”, significando a observância de um jejum sem
a roupa limpa. Em Espanha, quando alguns parentes foram presos pela justiça civil, um deles
que estava prestes a ser condenado à forca, como o foi, pediu para que seu irmão e sobrinhos,
também presos como seus cúmplices, jejuassem “sem as brancas” porque a sua sentença estava
para ser publicada e ele temia o pior.387
Percebe-se neste caso a adaptação para o cumprimento de um preceito, tal era a sua
importância. A camisa lavada foi uma tradição judaica que os cristãos-novos da Bahia, ao me-
nos, procuravam seguir rigorosamente. Aparece este costume desde as confissões registradas

383 ANTT/TSO-IL Proc. n° 9130.


384 ANTT/TSO-IL Proc. n° 10003.
385 ANTT/TSO-IL Proc. n° 5348.
386 Sobre o episódio da prisão de João de Morais Montesinhos, cf. SEVERS, Suzana. “Sapatos ao mato”: o sentimento
de “um triste homem que vem preso” pelo Santo Ofício. Politéia: História e Sociedade, Vitória da Conquista, v. 11,
n. 1, p. 105-125, jan./jun. 2011.
387 “[...] disseram-lhe que Simão Nunes mandara que fizessem três jejuns sem as brancas por que a sua sentença
estava para sair [...] ao que respondeu Francisco Nunes que não entendia o que era jejum sem as brancas, lhe
explicaram dizendo que era fazer jejum sem ter camisa.” ANTT/TSO-IL Proc. n° 1292.

139
durante a primeira visitação do Santo Ofício (1591) e com grande frequência nos processos
inquisitoriais analisados neste trabalho.
A higiene dos trajes para a Guarda dos Sábados era bastante difundida, todavia o que é
mais notório neste preceito é a desobrigação do trabalho, ou o rigor sob o qual alguns cristãos-
-novos chamavam a atenção de outros por estarem ou pretenderem trabalhar neste “dia santo”.
Gaspar Henriques protestou ante Antonio Lopes da Costa por o encontrar na rua, indo “na-
quele dia que era um sábado, fazer várias compras”, para que as fizesse outro dia.388 O próprio
Henriques teve a sua repreensão por parte de Cardoso Porto em um encontro ocasional quan-
do Henriques prontificava-se a fazer algum tipo de trabalho: “aquele dia era o verdadeiro dia
santo em que se não devia trabalhar”.389
O médico Francisco Nunes de Miranda revelou aos Inquisidores seu sentimento em re-
lação à observância da Guarda dos Sábados alegando que o não podia cumprir como desejava
por ter que atender aos doentes aos sábados.390 Esta atitude converge às prescrições rabínicas
possivelmente conhecidas por este cristão-novo, que desobrigavam do cumprimento da guarda
dos sábados caso conflitasse com a necessidade de salvação de uma vida. Nesses casos, o Shabat
não apenas podia ser, mas devia ser violado.391 Em contato com cristãos-novos na Universidade
de Coimbra, onde graduou-se em medicina, aprendeu algumas coisas sobre judaísmo que não
lhe haviam sido transmitidas por sua família, dentre elas estava esta prescrição rabínica.392
O luto judaico, apesar de ser pouco observado, teve uma rica descrição entre seus ob-
servantes. O costume judaico da moeda de ouro na boca do falecido foi transmitido a Diogo
de Ávila por seu tio: “quando morresse alguma pessoa de sua abnegação lhe metesse na boca
um grão de ouro e que depois de enterrada se havia de fazer em casa uma cama e ter uma luz
acessa”.393
Ao falecimento de Antonio Fernandes Camacho, a família de sua cunhada Ana de Mi-
randa, em um compartimento da casa, montou uma farta mesa e colocou uma vela acessa.
Quando Antonio da Fonseca foi visitar esta família, desconhecendo o recente falecimento, per-
guntou por Fernandes Camacho e uma de suas parentas “levando-o a uma câmara lhe mostrou
uma mesa coberta com uma toalha onde estavam coisas de comer em que entrava azeitonas e
algumas frutas e em cima da mesa estava uma candeia acessa”.394 Soube então faziam isto em
sua memória e que “se a candeia dava boa luz era sinal de estar no céu”.395

388 ANTT/TSO-IL Proc. n° 6540.


389 ANTT/TSO-IL Proc. n° 6486.
390 “[...] quando sua tia lhe instruíra na Lei de Moisés, ela também disse que guardasse os sábados de trabalho por
observância o que ele fez em alguns sábados quando lhe foi possível, retendo sempre em seu ânimo a vontade de
os guardar porém, pelo ofício de médico é obrigado a assistir os enfermos não podia guardar os sábados como
desejava em razão das visitas e receitas que fazia aos enfermos”. ANTT/TSO-IL Proc. n° 1292.
391 GOLDBERG, David; RAYNER, John D. Os judeus e o judaísmo. Rio de Janeiro: Xenon, 1989. p. 378.
392 FONSECA, Carlos Eduardo Calaça. “Xstãos novos” naturais do reino e moradores na cidade do Rio de Janeiro
(1650-1710). 1999. Dissertação (Mestrado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1999.
393 ANTT/TSO-IL Proc. n° 7484.
394 ANTT/TSO-IL Proc. n° 10484.
395 Ibidem.

140
Ao que tudo indica, quando cumpriam o luto judaico procuravam fazer no melhor esti-
lo que conheciam. Jejuns de luto eram pouco mais frequentes e talvez mais acessíveis a serem
observados. Os irmãos David e Antonio de Miranda fizeram “um jejum judaico pela alma
de seu pai”, Francisco Rodrigues, que havia ensinado a outro filho alguma reza pela alma dos
mortos.396
Alguns cristãos-novos até mesmo diziam que da Lei de Moisés somente não cumpriam
o ritual do luto. Francisca Henriques sabia que quando falecesse uma pessoa conhecida enco-
mendasse a sua alma a Deus orando o Pai Nosso sem dizer Jesus no fim e mantivesse uma vela,
candeia, acessa na casa do falecido durante sete ou oito dias. De todos os rituais que conhecia,
exceto esse Francisca não observava.397 Diogo de Ávila e seus companheiros, ao comunicarem-
-se observantes da Lei de Moisés, confirmaram fazer todas as cerimônias, “exceto a da oferta
dos defuntos em que não falaram”.398
Interessante é que fora das cerimônias tradicionais do judaísmo que esses cristãos-novos
traziam em sua memória, o jejum realizado para e em qualquer ocasião se tornou uma refe-
rência máxima para os judaizantes.399 Eram jejuns dissociados que qualquer dessas celebrações,
mas com a intenção de pedir ou agradecer a Deus por uma graça alcançada, meramente em sua
reverência, para celebrar a saída da prisão, como no caso citado dos parentes presos pela justiça
civil em Espanha, e sobretudo, o que era mais corrente, para pedir proteção nas viagens que os
mercadores faziam pelos caminhos tortuosos da Colônia ou pelo oceano.
A mãe de Joseph da Costa e Antonio Lopes da Costa guardava o preceito do jejum em
nome de proteção de seus filhos quando partiam de viagem. Ainda quando morava em Lisboa,
Brites Lopes da Costa fez dois jejuns judaicos para seu filho Antonio Lopes da Costa, que par-
tira para a Bahia. Disse a ele que os jejuns que faria em sua intenção era “para que tivesse bom
sucesso”.400 Já morando em Salvador, coincidindo o dia de celebração do Dia Grande com o
mesmo em que seu filho, Joseph da Costa, partiria em viagem a negócios para Costa da Mina,
África, Brites Lopes e outros parentes ofereceram esmolas e ofertaram o jejum para que “Deus
Nosso Senhor desse bom sucesso a seu filho”.401
Essas cerimônias não eram realizadas rigorosamente todos os anos nem todas durante
um ano. A descontinuidade percebida na frequência das celebrações pode estar relacionada à
ingerência do judaísmo na população cristã-nova ou ao próprio procedimento inquisitorial
que não se limitava a quantificar as práticas religiosas criptojudaicas realizadas pelos réus.
Uma única observância era suficiente para enquadrá-los como judaizante e portanto, aos
réus tornava-se desnecessário acentuar todas as vezes em que, por exemplo, celebravam o Dia
Grande. Assim sendo, as confissões tornavam-se essenciais aos Inquisidores pelos suspeitos

396 ANTT/TSO-IL Proc. n° 7489.


397 “[...] exceto o acender a candeia no lugar em que alguma pessoa sua amiga morresse”. ANTT/TSO-IL Proc. n°
10156.
398 ANTT/TSO-IL Proc. n° 7484.
399 “Pode-se atribuir a frequência do jejum entre os judaizantes a razões, em primeiro lugar, práticas. É um rito que
oferecer a vantagem de poder ser observado da maneira mais discreta e corresponde, em suma, ao estilo marrano:
é facilmente encoberto, não é captado do exterior”. WACHTEL, op. cit., p. 147.
400 ANTT/TSO-IL Proc. n° 6540.
401 ANTT/TSO-IL Proc. n° 10002.

141
que elas poderiam revelar e cada vez mais, então, dar elementos e fundamento para sua legiti-
mação e continuidade.
Os cristãos-novos não podiam seguir com rigor a religiosidade criptojudaica. Os séculos
de distanciamento do judaísmo tradicional e de literaturas rabínicas, algumas vezes corrobo-
rado com a ingerência de elementos católicos na formação religiosa desses indivíduos, não
deixaram outra alternativa senão vivenciar a Lei de Moisés segundo a memória.
Não foi difícil encontrar dentre esses cristãos-novos aqueles que lamentavam não poder
seguir a Lei de Moisés como gostariam. A opressão e a falta de maiores esclarecimentos sobre
os ritos, por exemplo, foi uma razão apontada. Luís Henriques e Antonio Cardoso Porto, quan-
do ainda eram amigos, conversavam sobre a vida dos cristãos-novos em França, onde Henri-
ques tinha um irmão conhecido de Cardoso Porto. Henriques queixara-se sobre a situação dos
cristãos-novos em Portugal, dizendo que “só naquele Reino se observavam bem os ritos da Lei
de Moisés e neste se não podiam fazer senão alguns jejuns e que ele só fazia o do Dia Grande e
não sabia se o fazia a tempo”.402
No cotidiano a presença de escravos em casa dificultava uma plena observância por
medo das denúncias que podiam partir deles. Lembra-se o caso do famoso dramaturgo do
Rio de Janeiro, Antonio José da Silva, que acabou condenado a morte por denúncias de uma
escrava. A cautela diante dos escravos foi revelada por Francisca Henriques, esposa do citado
Luís Henriques. Ela contou que alguns de seus amigos da “cidade da Bahia” queixavam-se por
não guardarem o sábado “como desejavam por receio de seus escravos”, mas que era possível
jejuar no Dia Grande.403 A sua família por exemplo, para despistar dos escravos, não jejuava
conjuntamente nesta festividade, pois assim eles sequer percebiam que “se abstinham todos de
comer nos ditos dias”, segundo relatou seu genro Antonio Cardoso Porto.404
Um escravo de um amigo de Antonio de Miranda, nomeado como sua testemunha de
defesa, sem saber exatamente como descrever um Shabat, reparou que em sua casa cozinhava-
-se, às sextas-feiras e sábados, uma panela com carne de vaca, dizendo que era para alimentar
os escravos que trabalhavam no curtume de Miranda, e desta mesma refeição serviam-se ele e
sua esposa: “e com este pretexto faziam também jantar e ceia da mesma carne”.405
Francisco Nunes de Miranda, tio desse Antonio de Miranda, foi mais além em sua de-
monstração de ânimo em cumprir a Lei de Moisés. Já foi mencionado que ele lamentava aos
Inquisidores não poder guardar os sábados de trabalho por ser médico e a vida de um doente
ser mais importante que o preceito; para Francisco Nunes de Miranda o judaísmo que pratica-
va era-lhe muito particular, porque observava as cerimônias quando achava que devia observar
e não exatamente nas épocas regidas pelo calendário judaico. Disse ele a uma amiga cristã-nova
que “jejuava no dia que lhe parecia, que sua família fazia o mesmo”.406
Aos Inquisidores, Francisco Nunes de Miranda alegou que deixara de fazer apenas al-
guns preceitos que não lhe pareciam essenciais à Lei de Moisés como “os comeres proibidos”

402 ANTT/TSO-IL Proc. n° 8887.


403 ANTT/TSO-IL Proc. n° 10156.
404 ANTT/TSO-IL Proc. n° 8887.
405 ANTT/TSO-IL Proc. n° 5002.
406 ANTT/TSO-IL Proc. n° 1292.

142
e “o tempo certo no mês de fevereiro e setembro”, referindo-se ao Jejum da Rainha Éster e Dia
Grande, porque não era essencial celebra-los no dia certo.407 Essas ideias de Francisco Nunes
de Miranda parecem mais próximas de encarar o judaísmo como uma religiosidade vivida,
sentida, sincera, do que uma observada como uma obrigação religiosa. Assim estaria ele mais
convincente aos Inquisidores quanto ao assumir-se judaizante.
Na população cristã-nova da Bahia arrolada por esta pesquisa, um dos prisioneiros dei-
xou provas concretas de seu criptojudaísmo. Trata-se do mesmo Antonio Cardoso Porto, sobre
quem já foi tratada a aproximação intelectual e sentimental com a fé judaica na comunidade
cristã-nova francesa de Saint-Esprit-les-Bayonne.
Seu primeiro contato com o judaísmo foi doméstico, como a maioria dos cristãos-no-
vos investigados. Sua mãe o iniciou na Lei de Moisés a partir da observância do Dia Grande,
atraindo-o para o jejum com uma promessa de presenteá-lo com uma roupa nova caso ele se
dispusesse a jejuar. Nesse momento, Cardoso Porto não sabia que cumpria um ritual cripto-
judeu. Sua consciência só foi despertada três anos depois quando um tio-avô lhe explicou o
que era o judaísmo. A concepção de judaísmo que Cardoso Porto recebeu de sua família foi o
cumprimento da Lei de Moisés, como todos os cristãos-novos.
Explicou-lhe seu tio-avô que ele deveria crer nesta Lei “por ser lei dada por Deus” e as
cerimônias deveriam ser cumpridas por lembrarem os milagres de Deus ao povo de Israel.
Permaneceu assim com esses ensinamentos, celebrando em família as festividades solenes e
servindo de mensageiro de sua mãe para avisar as pessoas da Vila sobre o falecimento de al-
guém. Sua mãe lhe dava uns bilhetes onde escrevia “encomende a alma de fulano a Deus”.408 E
Cardoso Porto, nessa época usando seu nome de batismo, Belchior Mendes Correia ia de casa
em casa entregar o papelzinho. Ele contou que, a princípio, por ser menor de idade, não sabia
o que estava a fazer, somente tomando consciência que era um comunicado para começarem
um luto, anos mais tarde.
O próximo contato de Antonio Cardoso Porto com o judaísmo ocorreu em idade adulta,
na já citada comunidade de cristãos-novos ibéricos em França, onde morou por quase duas
décadas, aprendendo a viver como um judeu religioso tradicionalista. Ao se referir a práticas
judaicas fora de Saint-Esprit-lès-Bayonne, ele disse que “as faria como os judeus as costumam
fazer”, tal sentia arraigado os ensinamentos que teve.409
A dietética Kosher foi uma das expressões maiores do judaísmo em Antonio Cardoso
Porto. Em diferentes momentos, suas confissões aos Inquisidores versaram sobre alimentação.
Durante as viagens pela Europa — Portugal, Espanha e França — suas refeições eram a base de
peixe de escamas preparadas por ele mesmo nos quartos das hospedarias onde instalava um
braseiro. Ele conhecia o modo kosher para o abate de carnes e aves, sabia que delas poderia co-
mer em qualquer ocasião porque não eram desapropriadas, e deixou sinais, em conversas com
outro prisioneiro no cárcere, de que ele mesmo as abatia. No cárcere do Colégio dos Jesuítas da
Bahia, onde esperava para ser removido ao Tribunal de Lisboa, não comia as carnes e aves que

407 ANTT/TSO-IL Proc. n° 1292.


408 ANTT/TSO-IL Proc. n° 8887.
409 Ibidem.

143
lhe levavam, apenas o peixe quando era servido. O seu carcereiro alegou que ele explicava que
não comia derivados de porco, como toucinho, porque lhe causavam “inchaços e achaques”.
As cerimônias e ritos religiosos realizados por ele não fugiam aos costumes descritos an-
teriormente, porém, conhecia hábitos e costumes incomuns a esta população baiana do século
XVIII e os transmitia sempre que procurado, reforçando assim o judaísmo de seus amigos e co-
nhecidos. Seus amigos cristãos-novos pediam informações sobre os ritos relacionados ao casa-
mento, tanto aqueles reservados aos homens quanto às mulheres. Confirmou a João Gomes de
Carvalho que ele e a noiva deveriam jejuar na véspera do casamento e que se ele “tinha muito
dinheiro ou sua mulher” dessem esmolas aos pobres neste dia de jejum. À noiva, quando essa
lhe inquiriu como havia de proceder no dia anterior ao seu casamento, soube que as mulheres
observantes da “lei dos judeus costumavam purificar-se isto é, tomarem um banho apartando-
-se por alguns dias de seus maridos e este banho é em todos os meses depois de lhe passar a sua
conjunção” e quando casadas deveriam sempre cobrir os cabelos.410
O conhecimento sobre o banho ritual no Mikvé não foi localizado em outros processos
inquisitoriais consultados. Trata-se de um costume frequente entre as judias tradicionalistas
baseado na ideia ortodoxa de impureza das mulheres no período da menstruação. Antonio
Cardoso Porto ensinou ainda este e outros rituais a sua esposa, dos quais ele mesmo afirmou
não se lembrar mais o que informou.
Na perspectiva religiosa desse cristão-novo havia ainda a presença de algumas supersti-
ções e hábitos a serem seguidos, por exemplo, não coser lã com linhas brancas, como alertou
a sua esposa, ou vestir linho e lã juntos. E ao seu companheiro de cela nos cárceres de Lisboa
foi incisivo em relação a nunca apagar velas. Era ele quem sabia as datas das principais festivi-
dades, consultando o calendário judaico que trouxe da França, e as divulgava aos interessados,
como mencionado anteriormente.
O interesse de alguns cristãos-novos em se informarem com Antonio Cardoso Porto
demonstra que havia uma predisposição e uma vontade própria para seguirem com mais fideli-
dade do judaísmo que conheciam. Obviamente, este não era um comportamento generalizado
sequer a todos os conhecidos de Cardoso Porto, mas são exemplos de inquietação daqueles que
viviam na fé judaica.
O interesse no judaísmo demonstrado por Antonio Cardoso Porto foi mais uma vez
evidenciado quando declarou a seu companheiro de cárcere que sentia muito não ter sido pre-
so pelo Santo Ofício na mesma época em que lá estava detido o padre judaizante, embora de
origem cristã-velha, Manoel Lopes de Carvalho, para poder ser seu companheiro de cela. Pois,
pelo que ficou sabendo na Bahia sobre este padre, poderia consultá-lo sobre algumas questões
teológicas que ainda não lhe eram claras e “o padre sem dúvida lhe explicaria como ele também
daria outras direções ao padre que porventura ignorasse”.411

410 ANTT/TSO-IL Proc. n° 8887.


411 O Pe. Manoel Lopes de Carvalho, cristão-velho, processado e condenado por ser judaizante; foi levado à
fogueira antes da prisão de Antonio C. Porto. Cf. ARAÚJO JÚNIOR, Adalberto Gonçalves. No ventre da baleia:
o mundo de um padre judaizante no século XVIII. 2006. 211 f. Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo: 2006.

144
O movimento de retorno deste cristão-novo ao judaísmo está também visível nos atos
que proclamavam negação do catolicismo, atos que praticava para furtar-se das obrigações de
católico. Por exemplo, fingia-se de doente das pernas para não genuflectir nas missas e não po-
der andar para comungar. Na desobrigação da quaresma, mandava “um moço” fazê-la em seu
nome e, de posse do escrito da desobrigação, ficava quites com a paróquia. Seu companheiro
de cárcere disse que Cardoso Porto ouvia poucas missas em Salvador fazendo sempre algo que
despistasse sua ausência da Igreja, mas não as enumerou.
Convictamente praticante do judaísmo, pelo que se pôde notar a partir da reconstituição
de sua biografia, foi considerado pelos cristãos-velhos da Bahia como um bom católico e pelos
cristãos-novos como um judaizante que conhecia muito bem o judaísmo. Todas essas anota-
ções e reflexões deixam a ideia que Antonio Cardoso Porto era um marrano. Um homem que
escondia muito bem a sua verdadeira crença, não se enquadrava ao sistema e às ideias de seu
tempo e buscava alternativas para satisfazer seu espírito não conformado.
As confissões dos prisioneiros da Inquisição nem sempre discorriam detalhadamente
(além da declaração do ensino) sobre os ritos, cerimônias e preceitos judaicos observados, o
que não implica em um desconhecimento ou distanciamento da crença, ainda que isto fosse
possível. Para o sistema inquisitorial o fundamental não era a discorrimento das práticas reli-
giosas previstas, arroladas e predefinidas em seu Regimento e Monitórios como heresia, crime
que não cabia contestação. Os cristãos-novos eram criptojudeus e irrefutavelmente observa-
vam tais cerimônias, ritos e preceitos judaicos.
A maior parte das confissões analisadas reveste-se de vagas declarações sobre essas ce-
rimônias já citadas, que eram em essência o que os cristãos-novos podiam conhecer de judaís-
mo ou da Lei de Moisés, como eles referiam-se ao seu conhecimento de judaísmo transmitido
apenas oralmente. Estas vagas declarações são caracterizadas por nomearem seus “cúmplices”
– companheiros e parentes – dizendo “entre práticas que tiveram se declararam como crentes
e observantes da Lei de Moisés [...]” ou outras variações como, “[...] e disseram que faziam as
cerimônias judaicas”.412
O cristão-novo prisioneiro do Tribunal de Lisboa, Antonio Cardoso Porto chamou isso
de “declaração formal de judaísmo”. Ele mesmo explicou no final de uma confissão que
[...] suposto não tivesse mais práticas com elas [as pessoas que citou] que as expressadas
nesta sua confissão, é certo que por estas perguntas e respostas entre os observantes da
Lei de Moisés são declarações formais de judaísmo e por tais as se conhece; e por que
com outras teve mais largas comunicações, o declarou na forma que acima fica dito.413

De fato, nos relatos expressavam assim o reconhecimento do serem cristãos-novos e ju-


daizantes. Cardoso Porto tinha uma consciência plena do que estava a falar. Mesmo sendo suas
confissões o único objeto que os livrariam da pena de morte, e extraídas muitas vezes sob tor-
tura física, não há como asseverar que todos os cristãos-novos eram judaizantes, à exceção de
António Cardoso Porto. Entretanto, conhecendo a extensa polêmica iniciada por Israel Révah

412 ANTT/TSO-IL Proc. n° 8887.


413 Ibidem.

145
e Antonio José Saraiva414 sobre a credibilidade das falas dos réus, conclui-se que este grupo de
cristãos-novos, seja por uma profissão de fé ou por estratégia de defesa diante das autoridades
inquisitoriais, conhecia os ritos, as cerimônias e os preceitos fundamentais da religião judaica
e neles se expressavam.

As orações
As orações faziam parte do cotidiano religioso desses cristãos-novos. Dificilmente um
dos prisioneiros arrolados não tinha memorizada ao menos uma oração que aprendera du-
rante a fase de sua educação religiosa judaica (ou criptojudaica), quando criança, quando ado-
lescente. Algumas eram longas; outras, frases curtas. Compunham a liturgia das festividades,
da Guarda dos Sábados, dos ritos de luto, acompanhavam a realização dos jejuns de qualquer
natureza; com elas encomendavam-se a Deus por qualquer circunstância, ao levantar pela ma-
nhã, antes de dormir.
As orações coletadas nos processos inquisitoriais pesquisados referiam-se a Deus deno-
minando-o “Deus ou Senhor de Israel”, “Grão Senhor”, “Senhor de Moisés”, “Senhor de Abraão”,
“Senhor onipotente”, dentre outras, e principalmente “Adonai”. Adonai, significando “meu se-
nhor”, no judaísmo tradicional é considerado o nome verdadeiro de Deus que, sagrado, não
pode ser usado em vão, somente pode ser pronunciado nas orações. Assim os cristãos-novos
recitavam: “Adonai, seu santo nome que assim nos é declarado e para mais santificado, só em
Ti adorarei [...]”; “[...] o santo nome de Deus Adonai”.415
Deus aparece como criador, governador do mundo, reinando sobre todas as coisas, so-
bre o bem e o mal, louvado e adorado pela sua criação e poder sobre ela, “[...] Vós Senhor que
concluíste este caos tremendo, e feio, escuro e triste com Vosso terrível nome [...]”,416 que tanto
se mostra irado como benevolente:
Onipotente Deus e Senhor Santo, criador de todo o criado, Vós sois Senhor poderoso
a quem o criado todo se temoriza [sic] e estremece, a sombra de Vosso esforço,
porque Senhor grandioso, sempre importante se ostenta, Vossa glória infinita, a real
magnificência e também sustentável se manifesta e publica sobre todos os pecadores
com Vossa ameaça e ira.417

Interessante é um paralelo com a deificação de Jesus que foi encontrado em uma das ora-
ções. A figura de Moisés aparece deificada quando a ele se referem como “Senhor Moisés, ver-
dadeira semelhança do Senhor” com a mesma transposição que os cristãos fazem da imagem
de Deus à Jesus Cristo. A oração continua deixando mais próxima a identificação de Moisés à
Deus como um criador: “[...] que a vida me eis dado para amparo e guardador que somos [sic],

414 Polêmica acerca de “Inquisição e cristãos-novos” entre I. S. Révah e António José Saraiva. In: SARAIVA, A. J.
Inquisição e cristãos-novos. 5 ed. Lisboa: Estampa, 1985. [Anexo, p. 211-291].
415 ANTT/TSO-IL Proc. n° 11769.
416 Ibidem.
417 Ibidem.

146
Senhor Bendito pela graça e poder que do lado do pecado Vos me queirais [...]e os anjos por
mim graças Vos deem e para que me ouçais digam amém.”418
A intermediação a Deus por meio de santos e padres, que os católicos apregoam, foi
também transposta para Moisés, requerendo a este que o livre das privações e da Inquisição:
“Estrela de cima orai, tanto eu pedir me dai, pedi ao vosso servo Moisés me livre de privação e
Inquisições.”419 Neste caso, o poder divino concedido a Moisés como ente capaz de interferir na
direção do mundo, somente cabível a Deus, é igualado ao poder divino atribuído a Jesus pelos
cristãos.
Curiosamente, pedidos explícitos de proteção conta a Inquisição, como já visto, não foi
tema recorrente. Aparece em apenas mais uma oração: “Senhor Deus Shabat tende piedade de
nós, valei-nos, socorrei-nos, livrai-nos de nossos inimigos e da Inquisição”,420 em tom desespe-
rado. Ainda mais curioso o contexto em que era orada. Segundo Ana Bernal de Miranda, quem
a apresentou, contou que esta pequena oração era feita pelas mulheres para oferecer a Deus o
jejum que tinham realizado. Oravam-na seguindo o costume as judias professas: de pé, com as
mãos sobre os olhos, a cabeça um pouco inclinada coberta com um lenço branco. Certamente,
Ana Bernal referia-se à Guarda dos Sábados, pois nomeou Deus como “Senhor Deus Shabat”,
devendo significar “Senhor Deus do Shabat”, que santificou os sábados.
Um dos temas mais recorrentes encontrados nessas orações evoca um sentimento de
culpa seguido por intensos pedidos de perdão e piedade pelos pecados, diante dos quais se po-
sicionavam resignada e humildemente, “Poderoso e Gran Senhor, criador do Universo, senhor
a te me confesso muito grande pecador, e eu por tal me conheço, não me dês o que mereço,
tem de mim piedade conforme a sua bondade. Amém, ao céu vá.”421 Às vezes clamando para
tirar-lhes do caminho do mal: “[...] Um rogo te pedirei, que me atires do pecado [...]”,422 ou “em
rogo te pedirei que me livres do pecado que é inimigo maior”.423
Outra recorrência são os enfáticos rogos de proteção contra os inimigos. A mais ex-
pressiva dessas orações foi citada por Simão Rodrigues Nunes, meirinho do interior da Bahia,
situando-a nas celebrações do Dia Grande. Chama-se Formosura Adonai. A primeira referên-
cia a essa oração foi localizada pelo estudioso Samuel Schwartz em um processo inquisitorial
de 1674. No século XX, o mesmo Schwartz a encontrou como parte do ritual de preparação do
pão ázimo para a Páscoa judaica, recitada pelas mulheres de uma remanescente comunidade
cristã-nova de Belmonte, Portugal.424 Décadas mais tarde, Anita Novinsky e Amílcar Paulo, em

418 ANTT/TSO-IL Proc. nº 9089.


419 Esta oração foi recitada por Álvaro Ferreira da Silva, durante suas confissões no Santo Ofício. Durante seu
encarceramento teve sucessivas crises de loucura, sendo atestado pelos médicos da Inquisição que o confinamento
nos cárceres lhe era maligno. ANTT/TSO-IL Proc. n° 2459.
420 ANTT/TSO-IL Proc. n° 2424.
421 ANTT/TSO-IL Proc. n° 2121.
422 ANTT/TSO-IL Proc. n°10481
423 ANTT/TSO-IL Proc. n° 10484.
424 SCHWART, Samuel. Os cristãos-novos em Portugal no século XX. Lisboa: Instituto de Sociologia e Etnologia das
Religiões/Universidade Nova de Lisboa, 1993. p. 95.

147
visita a esta mesma comunidade, constataram sua permanência. Assim também o fez, em outra
ocasião, Maria Antonieta Garcia, na década de 1980.425
Formosura Adonai evoca poeticamente a proteção a Deus, reconhecendo-o e louvando-
-o como criador zeloso por sua criação. Seu texto traz semelhanças com o Salmo 90, de David,
que é exatamente voltado à proteção de Deus. As semelhanças podem ser vistas nas referências
a Deus enquanto refúgio e consolo, evocação dos anjos para livra-los dos beleguins (ajudante
dos executores das prisões)426 e conduzi-los no caminho da vida e defesas das atrocidades.
A seguir, apresenta-se duas versões de Formosura Adonai. A primeira foi reproduzida
por Simão Rodrigues Nunes em confissão ao Santo Ofício. A segunda foi trasladada de seu
processo inquisitorial, pelos Notários do Santo Ofício, para o de seu amigo Pedro Nunes de
Miranda, com quem, disse, fizera um jejum do Dia Grande. Ambas são idênticas, porém a
segunda versão aproxima-se mais textualmente do Salmo 90 de David.
Formosura de Adonai, Vosso dia sobre nós feito de suas mãos está composto, está
encoberto no alto à sombra do abrasado Adonai, meu castelo, meu abrigo, e meu
amparo. Senhor que em alto pusestes tuas moradas, de ti não chegará mal, nem praga,
nem cheguem às nossas tendas, tens beleguins para nos encomendarmos em todos os
nossos caminhos e carreiras; não fira a pedra a meu pé, mis forças trilharão, a repor-
lha-ão [?]; qual em mim começou e honra-los-ei, estima-los-ei, mostrar-lhe-ei minha
salvação, salvação de ti poderoso Deus de Adonai. Amém senhor.427

Formosura de Adonai, Vosso dia sobre nós feito de suas mãos está composto, está
encoberto à sombra do abastado Adonai, que em meu castelo, meu abrigo, e meu
amparo. Senhor que em alto pusestes mais moradas, assim não chegará mal, nem praga,
nem chegue as nossas tendas, tens belliguins para nos encomendarmos em todas as
nossas carreiras, sobre palma me levarás, não será a pedra sobre meu pé em leão, que
minhas trilhas Senhor e outras do oferecimento. Senhor de Abraão, Senhor.428

Interessante é que em algumas orações expressivas desse sentido de proteção, há um


cenário bíblico remontando à Moisés e a libertação do Egito. Antonio Fernandes Pereira me-
morizou uma longa oração onde se encontra a seguinte passagem:
[...] pois deste a Moisés vingança, atribulaste a Faraó debaixo de tua lança, defendeste
as doze tribos junto do mar chegados de Faraó perseguidos, estes só foram os vivos
que a Moisés retro vieram dando vozes e gemidos, veio-lhe uma vez do céu, a qual
nela vem dizendo, ‘Moisés, Moisés com a sua vara alçada pelo mar entra ferindo, que
logo te irei abrindo caminho por onde passem os teus parentes, e logo verás em mentes
como te vou socorrendo; irmãos meus deixai o mundo e guardai meus mandamentos,

425 NOVINSKY, A.; PAULO, A. The Last Marranos. Commentary The last marranos. Commentary, New York, n.
5, p. 76-81, March 1967. GARCIA, Maria Antonieta. Os judeus de Belmonte: os caminhos da memória. Lisboa:
Instituto de Sociologia e Etnologia das Religiões/Universidade Nova de Lisboa, 1993.
426 Belleguim: o agarrador, que ajuda o alcaide em prisões. BLUTEAU, op. cit., p. 176.
427 ANTT/TSO-IL Proc. nº 1001.
428 “Senhor de Abraão, Senhor” parece ser escrita pelo notário para indicar outras orações feitas durante esse e
outras cerimônias descritas nesta confissão. Continua o notário: “[...] e outras mais as quais dizia também quando
fazia qualquer jejum.” ANTT/TSO-IL Proc. nº 9001.

148
que o que não tem par nem fundo este faz reger os eventos, rege quatro elementos,
céu, sol, lua e estrelas, bem sabe a conta delas, pois as traz o seu mandamento’; [...],
não olvides a Israel, que é o teu povo escolhido, favorecer Senhor, pois no-lo tens
prometido, o faz, o faz, estamos cativos entre mouros e cristãos. Adonai nas tuas mãos
seremos bem socorridos [...].429

Estas súplicas pela libertação seguem em outros exemplos em que a paz eterna é glorifi-
cada. Em uma oração, a libertação traz o gozo da paz na terra, a terra da redenção. Pede para
pôr fim aos tormentos e faz lembrar a Deus a aliança com Abraão. É uma das mais poéticas
orações encontradas na Bahia setecentista:
Bento seja eu de meu pai e de minha mãe e de toda a geração e das bendições do
Senhor, de mi padre Abraão, me benza com a sua mão, serei bento na alma e no
pensamento, livrai-me Senhor do tormento e, de touro toureão[?] por onde formos
e viermos, benta seja a nossa guia, benta a nossa companhia, bentos os passos que
nós dermos, benta a noite, bento o dia em que nós amanhecemos; Vós Senhor nos
prometestes a nosso padre Abraão, juramento lhe fizeste nos Montes do Mouião [sic];
querei-nos Senhor escutar, nós queremo-lo ouvir, que é triste, e mais triste, corridos
de terra em terra nossos inimigos sobre tuas orelhas, sê burlão de nós para te servirdes
de nós; deixa Senhor vir teu maná para que com ele louvemos e santifiquemos o santo
nome de Deus Adonai, Amém Senhor.430

O tema da libertação é ainda encontrado em oração para os mortos, com uma insinua-
ção à libertação da perseguição inquisitorial, pois ela fala em penas e degredos e a subsequente
justiça divina, também um pouco próxima à Formosura Adonai ou ao Salmo de David citado:
Folgança composta assentamento d’altura, limpa e clara com a claridade do Senhor
de Moisés pela alma (de fulano) que deste mundo partiu com vontade e sentença do
Senhor de Israel pois ele há de ser servido tirar-lhe a sua alma de penas e degredos
e pô-la na Sua Santa Glória e ela lá estará pedindo na Glória do Senhor por todos
aqueles que neste mundo ficamos e dele haveremos o remédio que conveniente for a
nossas vidas e almas para sempre do sempre jamais, amém. Os anjos por mim graças
vos dêem e para que me ouçais digam amém.431

Todas essas e outras orações convergem para um mesmo tema de louvor a Deus, graças
à criação do mundo, rogos para o fim do sofrimento e das misérias, pela misericórdia, pela
proteção e pelo perdão. As súplicas de piedade expressam simultaneamente o reconhecimento
do pecado, o sentimento de culpa e a resignação ante ao sofrimento, que é visto como uma
expiação destes mesmos pecados. Sofrimento este somente confortado, aliviado e banido da
alma através do perdão divino, a salvação. Esta salvação, somente alcançada pela benevolência
de Deus, um Deus que se compadece de seus filhos. A Inquisição é o inimigo silencioso contra
quem se pede ao Deus que controla tudo, a defesa, a renovação a libertação do Egito.

429 ANTT/TSO-IL Proc. nº 10481.


430 ANTT/TSO-IL Proc. nº 10156.
431 ANTT/TSO/IL – Proc. nº 9001.

149
Alguma crítica religiosa
Nas confissões desses réus, vez por outra, encontrou-se uma pitada de crítica religiosa
pontuando, em certo sentido, a discordância face a visão religiosa. Os exemplos extraídos apa-
recem como uma contestação às formas católicas de intermediação da relação do homem com
Deus e vice-versa.
Gaspar Henriques transmitia enfático e convincente a seu primo Diogo de Ávila Henri-
ques que a única salvação possível somente poderia ser encontrada na Lei de Moisés “e não na
de Cristo por que nesta se dava poder a um homem para absolver dos pecados”.432 Para ele, em
consequência deste mesmo pensamento, como para seu irmão Diogo de Ávila, a Missa era uma
cerimônia completamente desnecessária. Guardava em si as palavras de um tio, pai de Ávila
Henriques, ao dizer-lhe que “deixasse de ir a Missa porque esta não levava ninguém para o
céu”.433 Diogo de Ávila considerou a Antonio Cardoso Porto não ter interesse em ir ouvir Missa,
preferindo desviar-se do caminho da igreja para passearem juntos.434 Da mesma sorte Diogo
Henriques Ferreira participava das Missas para “contemporizar com o mundo”.435
A autoridade clerical no julgamento dos pecados, o desprezo pela Missa, são censuras ao
homem atuando como representante de Deus, arbitrando em seu nome. Esta censura encontra
um paralelo na adoração dos santos, mostrando o vazio e fictício do seu papel de semideuses,
intercessores do homem perante Deus. Também se ouvia falar para não crer no Santíssimo
Sacramento do altar, “por que não era possível ser como os cristãos diziam”.436 A crença válida
portanto era aquela que dirigia o ser humano diretamente a Deus: “[...] crer na Lei de Moisés
e em um só Deus do céu e que tudo o mais era patarata porque só devemos adorar a Deus que
criou o céu e a terra e não pau e pedra, como os cristãos faziam”.437
A descrença das imagens encontrou nas palavras de João da Cruz a Antonio da Fonseca
o sentido que elas tinham para alguns cristãos-novos. Em alguma circunstância, Cruz falou
meio impaciente para que Fonseca “cortasse um pau no mato e fizesse dele uma imagem para
se adorar”.438 João da Cruz não estava a repreender Antonio da Fonseca. Este, apesar dos anos
vivendo no catolicismo, como disse, e voltando-se para o judaísmo, expressou uma repulsa
extrema pelas imagens sacras. Ao ver uma imagem de Santa Bárbara e outra de São Jerônimo
“disse dentro do seu coração que destruídas fossem as ditas imagens”.439 Uma confissão de culpa
da qual seu único cúmplice era seu sentimento.
Essas críticas e descrenças ao catolicismo não provinham, todas, de criptojudaizantes.
Faziam parte de um pensamento leigo, assim como de judaizantes. A crítica religiosa foi a
razão que levou Manuel Mendes Monforte a passar dois longos anos nos cárceres de Lisboa.
Monforte era um pensador laico interessado em teologia e matérias da fé. Em um império onde
432 ANTT/TSO-IL Proc. n° 2121.
433 ANTT/TSO-IL Proc. n° 6486.
434 ANTT/TSO-IL Proc. n° 8887.
435 ANTT/TSO-IL Proc. n° 9130.
436 ANTT/TSO-IL Proc. n° 2121.
437 ANTT/TSO-IL Proc. n° 10156.
438 ANTT/TSO-IL Proc. n° 10484.
439 Ibidem.

150
quase toda a população era iletrada, Monforte conservava em sua casa na cidade de Salvador
uma biblioteca com cerca de duzentos títulos, os quais, infelizmente, não foram registrados nos
autos inquisitoriais.
Seu conhecimento do latim permitiu ler as Sagradas Escrituras e um manuscrito, redigi-
do por um jesuíta italiano em uma missão na Bahia, Pe. João Matheus Faletti. Por interpretar e
comentar textos bíblicos tendo como base este manuscrito e sermões do Pe. Antonio Vieira e a
Bíblia, e por ter criticado a Inquisição, foi denunciado e preso no Santo Ofício.
O manuscrito do Pe. Faletti referido pelos Inquisidores chamava-se Regno Christi In
Monte Sion cum Martyribus per mille annos de cunho milenarista. Monforte não considerava
seus escritos inéditos mas desenvolvidos a partir do Claves Planphetarum, do Padre Antonio
Vieira. A estima que Monforte depositava neste jesuíta italiano foi lembrada por uma das tes-
temunhas cristãs-velhas inquiridas em suas Contraditas: “dizia bem do povo de Israel, muito
amado de Deus e provera Deus que o fizesse da mesma geração”.440
As ideias heréticas do Pe. Faletti, das quais Monforte foi acusado de divulgar, referem-se
a “amar os inimigos não é preceito divino e o que se refere nos mandamentos é de conselho e
não de preceito que obrigue”. Ou ainda que “só os patriarcas e monges antigos eram verdadei-
ros religiosos”. E também a interpretação apocalíptica “Cristo havia de reinar como os mártires
no Monte Sion por mil anos”.441 Todas essas proposições, vários cristãos-velhos da Bahia afir-
maram terem-nas ouvido de Manoel Mendes Monforte.
Outras afirmações que atribuíram a Monforte a palavra, questionavam a perseguição
àqueles de origem judaica: “Se Moisés ou Josué, general do povo de Deus, fora vivo nem a Por-
tugal nem Castela havia de ser cabo de esquadra”.442 Monforte ficou indignado com a prisão de
um cristão-novo, Amaro de Miranda Coutinho, tio materno de João de Montesinhos, porque
sabia convictamente que Coutinho não era judaizante. E disse na frente de um boticário, que
foi denunciá-lo a um Comissário do Santo Ofício da Bahia “que algum parente seu seria casti-
gado por aquele Tribunal a quem ele teria por mais inocente do que foi julgado”.443
A defesa de Monforte constitui-se na negação da autoria dessas proposições, alegando
que as lera em escritos de jesuítas ou simplesmente ouvira alhures, transmitindo-as sempre em
interpretação católica. Também requer aos inquisidores que se perguntem aos seus denuncian-
tes se, em todas as ocasiões que as comunicou, não assinalava de onde as extraíra e questionava
a veracidade delas.
Sobre a primeira proposição, “amar os inimigos [...]”, Monforte diz que não sabe aonde
ouviu dizerem que “amar os inimigos não era de preceito do decálogo e que de certos religio-
sos”. Mas reportava-se a tal afirmação dizendo que “amar uma pessoa a quem lhe tirou honra,
vida e fazenda não podia ter outro motivo mais, que o de ser dito por Cristo”.444 Tergiversava
uma crítica astuta à Inquisição, pois qual não seria o efeito da perseguição e prisões senão tirar

440 ANTT/TSO-IL Proc. n° 675.


441 Ibidem.
442 Ibidem.
443 Ibidem.
444 Ibidem.

151
a honra dos cristãos-novos estigmatizando-os como “impuros”, tirar suas vidas nas fogueiras e
confiscando os bens, as suas condições materiais de existência?
Aos inquisidores, preocupados mais com as acusações que com a própria confissão, estas
palavras de Monforte teriam um impacto maior em sua causa que apenas o questionamento do
que seria “preceito divino”. Observa-se que o Santo Ofício era um Tribunal que julgava as ideias.
A outra máxima, de que “Cristo haveria de reinar [...]”, de cunho milenarista, Monforte
leu nos escritos do Pe. Faletti e de um beneditino, Fr. Matheus, sobre o qual não houve maiores
informações. E, pondo-se a discuti-la interrogou outro jesuíta da Bahia, Pe. Antonio de Abreu
Cirne, em que terras então Cristo reinaria, em Roma ou em Jerusalém, ouviu do mesmo que
seria em Jerusalém. Abreu Cirne viu-se envolvido na denúncia que o Comissário do Santo
Ofício da Bahia, Antonio Pires Gião preparava para mandar a Lisboa.
A mais explícita crítica contra a perseguição inquisitorial, “se Moisés ou Josué [...]”
Monforte lera em um sermão do Pe. Antonio Vieira e reproduzia suas palavras. Naturalmente,
concordando com este padre, que foi processado por contestar e protestar contra a Inquisição.
As demais asserções não foram comentadas por Monforte, deixando para as testemunhas de
Contraditas as provas de suas palavras nas investigações. Ao fim e ao cabo, esses inquéritos ser-
viram apenas para confirmar depoimentos anteriores e apontar inimigos desse cristão-novo.
As acusações de criptojudaísmo às quais se referiam os inquisidores como “suficientes
para a prisão com sequestro de bens” foram meramente formais. Mesmo sob tortura, Manoel
Mendes Monforte permaneceu calado, rezando jaculatórias e declamando Salmos de David,
sem invocar Deus, Jesus ou santos católicos. Não retorna à Casa do tormento nem há pareceres
neste sentido.
O Deão e Provisor da Sé, Sebastião do Vale Pontes, amigo particular de Monforte há
24 anos com entrada em sua casa, considerado por ele como “amante da justiça”, lançou um
questionamento sobre seus princípios de justiça. Na sua mentalidade firmada em princípios
(ou conceitos) inquisitoriais, estava correta a máxima de Monforte “que se castigassem os maus
e favorecessem os bons”, mas incorreta no que concerne aos métodos do Santo Ofício de fazer
prisioneiros. Ao comentar a prisão de Monforte com o jesuíta Pe. Inácio de Lima, este “atribuí-
ra a dita prisão a que seria o haver falado alguma coisa contra o Tribunal do Santo Ofício”, pois
estando ambos em Matoim, onde Monforte tinha seu engenho de açúcar, o ouvira tecer co-
mentários neste sentido. Então o Deão deduziu que a prisão foi devido a Monforte ter criticado
o Santo Ofício no que concerne às provas para efetuar as prisões, quando soube que um de seus
parentes foi preso. Disse o Deão: “e o juízo que ele testemunha fez ao ouvir isto foi a respeito das
provas e que assentaria em que algum parente seu seria castigado por aquele Tribunal a quem
ele teria por mais inocente que julgado.”445
Na mentalidade do Deão, a máxima de Monforte “que se castigassem os maus e favoreces-
sem os bons” estava correta, porém incorreta quando a transpôs para tratar dos os métodos inqui-
sitoriais de obtenção das provas para execução das prisões, uma vez que um parente seu, segundo
o Deão, “a quem ele teria por mais inocente do que foi julgado” estava preso pelo Santo Ofício.
Manuel Mendes Monforte, médico, homem de negócios e senhor de engenho, foi um
cristão-novo que se firmou na sociedade baiana setecentista fazendo todas as obrigações de

445 ANTT/TSO-IL Proc. n° 675.

152
católico e ajudando financeiramente as irmandades religiosas que participava. As frases que
afirmou ter dito atestam sua identidade judaica. Monforte sentia-se judeu e conhecia as di-
ficuldades de viver num mundo antijudaico. Manoel Mendes Monforte criou uma visão de
mundo própria, marrana. Conhecia as Escrituras e as interpretava baseado nas ideias de dois
jesuítas, um deles ao menos cônscio do terror inquisitorial. Por suas ideias, Manoel foi preso
e condenado. Monforte enquadra-se no pensamento de Anita Novinsky, quando esta diz que
“[...] identificar-se como ‘judeu’ não significava sempre ser criptojudeu, pois a religião perdeu
para os cristãos-novos muito de seu significado”.446 O que dizer então para um homem letrado,
de espírito crítico?

446 NOVINSKY, Anita. Confessa ou morre: o conceito de confissão na Inquisição Portuguesa. Sigila. Revista
Transdisciplinar luso-francesa sobre o segredo, Paris, n. 5, p. 77-86, 2000.

153
Capítulo IV

O Estaus “baiano”: prisioneiros


e punições
O ESTAUS “BAIANO”

No Brasil, assim como em todas as partes do Império português onde não havia tribunais do
Santo Ofício, a Inquisição mantinha um corpo de funcionários e agentes que tornava a sua
presença efetiva. Comissários do Santo Ofício, desde fins do século XVII, assumiam o papel de
autoridade inquisitorial máxima nessas regiões, representantes dos Inquisidores e a eles subor-
dinados diretamente, com poderes limitados. Como auxiliares, dispunham de notários, religio-
sos que serviam como escrivães registrando o resultado das inquirições, e de todo um séquito
de Familiares do Santos Ofício, executores dos mandados de prisão e acompanhantes dos prisio-
neiros em todas as etapas da condução, desde o local da captura até o Tribunal de Lisboa.
Para realizar as diligências processuais, tais como interrogatório a testemunhas, ave-
riguação sobre determinado aspecto da vida dos réus, levantamento de documentos carto-
riais por eles citados, dentre outras, o Santo Ofício de Lisboa elegia três Comissários a fim de
que, na ausência de um houvesse um substituto. Nos processos inquisitoriais pesquisados, seis
cristãos-novos requisitaram investigações na Bahia, dirigidas por três dos cinco Comissários
do Santo Ofício da Bahia nomeados pela Mesa inquisitorial nos autos destes réus, a saber, João
Calmon, Antonio Rodrigues de Lima, Antonio Pires Gião.447 Foi o Comissário João Calmon,
no entanto, quem conduziu a três dessas seis diligências nos anos de 1722, 1729 e 1730.448 Sua
nomeação ao cargo ocorreu em 1701 e desde então tornou-se o Comissário da Bahia “mais
destacado e ‘autorizado’ no seu período”.449
Esta preferência dos Inquisidores lisboetas em continuamente designá-lo responsável
pelas atividades na Bahia foi resultante de sua vinculação a dois prelados – um deles o próprio
Arcebispo e responsável pelas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (1707), D.
Sebastião Monteiro da Vide –, pela sua dedicação ao Santo Ofício e à Igreja, de modo geral, e
também à sua alta posição socioeconômica por ser membro de uma importante família baiana
proeminente graças a indústria açucareira.450
447 Outros dois Comissários foram Gaspar Marques Vieira e João de Oliveira Guimarães. Esse recebeu a confissão
do cristão-novo João de Moraes Montesinhos. Sobre os Comissários do Santo Ofício nomeados para atuarem no
Arcebispado da Bahia, consultar estudo específico de SOUZA, Grayce M. B. Para remédio das almas: comissários,
qualificadores e notários da Inquisição portuguesa na Bahia Colonial. Vitória da Conquista, BA: Edições UESB,
2014.
448 Respectivamente nas causas de Manuel Mendes Monforte, Antonio Cardoso Porto e Diogo de Ávila Henriques.
ANTT/TSO-IL Procs. nºs 675, 8887, 2121. Junto a Antonio Rodrigues de Lima foram os dois Comissários da
Bahia a receberem o maior número de diligências. Esse o segundo a receber o maior número de diligencias,
38, entre 1720 e 1744, contra as 40 diligências recebidas por João Calmon, em menor tempo, entre 1719-1735.
RODRIGUES, A. C. Igreja e Inquisição no Brasil. São Paulo: Alameda, 2014. p. 240.
449 O termo “autorizado” que o autor destaca tinha, no século XVIII, a sinonímia com “respeitável, digno de
veneração e apreço, digno de crédito”. MOTT, Luiz. Um nome em nome do Santo Ofício: O Cônego João Calmon,
Comissário da Inquisição na Bahia Setecentista. Universitas, Revista da Universidade Federal da Bahia, Salvador,
n. 37, p. 15-31 jul./set. 1986. p. 9, 21.
450 MOTT, op. cit., p. 21; “[...] havia uma grande concentração das diligências nas mãos de um pequeno grupo de
comissários [...]. Os mais procurados eram aqueles bem posicionados no aparato institucional das dioceses, com
predomínio dos membros do cabido e da cúspide do oficialato episcopal [...]. Fica evidente, com efeito, o papel
que o cabido e o juízo eclesiástico desempenharam para a viabilização da presença e ação do Tribunal do Santo
Ofício no território da América portuguesa no decorrer do século XVIII”. RODRIGUES, op. cit., p. 346.

157
João Calmon, natural da Bahia, descendente de franceses, lisbonenses e naturais da
Bahia, era neto de outro João Calmon, cujo conceito na elite açucareira aumentou depois de
sua atuação como capitão de mar e guerra na defesa da Bahia contra uma ameaça de invasão
holandesa no período do governo-geral de Alexandre de Sousa Freire (1667-1671).451 Sua mãe,
D. Juliana de Almeida, nascida no Brasil, era filha de Martinho Ribeiro, outro senhor de enge-
nho no Recôncavo baiano.452
Após graduar-se em Direito Canônico na Universidade de Coimbra (1693), João Cal-
mon acumulou diversos títulos eclesiásticos. Foi Cônego, Chantre da Sé Metropolitana em
Salvador, Familiar do Santo Ofício, Comissário da Bula da Santa Cruzada e Juiz de casamentos
enquanto Desembargador da Relação Eclesiástica da Bahia.453 Seu vasto currículo o inclui até
como pregador da Academia Brasílica dos Esquecidos.454 Faleceu em 1737, no pleno exercício
de seu cargo vitalício de Comissário do Santo Ofício, sepultado no Mosteiro de São Bento, em
Salvador, como seus pais.455
Outros Comissários do Santo Ofício ocuparam diversas funções eclesiásticas. João de
Oliveira Guimarães e Antonio Rodrigues de Lima foram Cônegos e Desembargadores da Re-
lação Eclesiástica em Salvador e, este último, também Arcediago e visitador episcopal. Gaspar
Marques Vieira, atuou como tesoureiro-mor da Igreja da Sé da Bahia. Nenhum deles, no en-
tanto, acumulou tantas atividades quanto João Calmon, nem teve o seu desempenho como
Comissário do Santo Ofício.456
Nos pareceres às diligências que João Calmon conduziu na Bahia, referentes a processos de
três cristãos-novos, destaca-se aqui um deles, por perceber sutil intervenção na causa do réu ou
um tergiversado depoimento pretendendo, talvez, favorecê-lo.457 E, o quanto valia a sua palavra!
Este parecer foi redigido no processo contra Manuel Mendes Monforte que, embora
sendo cristão-novo, cursou a Universidade de Coimbra, como João Calmon, graduando-se em
Medicina. Era senhor de engenho e homem de negócios. Herdando de seu tio e sogro, homem
da terra desde o século XVII, uma posição socioeconômica privilegiada, construiu seu próprio
espaço social com afiliação a diversas irmandades religiosas, dentre as quais a do Santíssimo
Sacramento, vinculada à Catedral da Sé, onde João Calmon era Cônego e chantre.458

451 CALMON, Pedro. Introdução e notas ao Catálogo Genealógico das Principais Famílias, de Frei Jaboatão. Salvador:
EGBA, 1985. v. 2, p. 577.
452 Ibidem, p. 579; MOTT, op. cit., p. 21.
453 Ao retornar a Salvador já doutor em Cânones exerceu outros cargos eclesiásticos: Vigário Geral do Presbiterado
de D. João Franco de Oliveira e quarto Arcebispo da Bahia. Também Prior da Ordem Terceira de Nossa Senhora
do Carmo, Provedor da Santa Casa de Misericórdia da Bahia, Provisor e Governador do Arcebispado da Bahia,
Juiz das Justificações de Genere, Conservador das religiões de São Bento e São Francisco. MOTT, op. cit., p. 16;
CALMON, op. cit., p. 587.
454 CALMON, op. cit., p. 580; 587; MOTT, op. cit., p. 22. MOTT, L. Pontas de lança do “Monstrum Horrendum”:
comissários, qualificadores e notários do Santo Ofício na Bahia (1692-1804). In: FEITLER, Bruno; SOUZA,
Evergton Sales (Org.). A Igreja no Brasil. São Paulo: Unifesp, 2011.
455 LIVRO DE ÓBITOS, Freguesia da Sé, 1734-1762, fs. 25, 25v. Salvador: Cúria Metropolitana de Salvador.
456 Sobre Comissários do Santo Ofício na Bahia, c. f. SOUZA, Grayce M. B., op. cit.
457 Luiz Mott e Grayce M. B. Souza, em suas respectivas obras citadas comentam sobre outros pareceres e
intervenções do Comissário João Calmon em causas inquisitoriais.
458 ANTT/TSO-IL Proc. nº 675.

158
Após ouvir os testemunhos sobre o comportamento religioso de Monforte, todos consi-
derando-o um bom católico, este Comissário finalizou as diligências concluindo seu singular
parecer nos termos transcritos:
[...] nem sei de cousa encontrada ao que depõem as testemunhas pelo que julgo dos
autos exteriores de Manoel Mendes Monforte porque algumas vezes o vi nas igrejas
do Colégio dos religiosos padres da Companhia [de Jesus] e na Sé, ouvindo sermão
e assistindo aos ofícios divinos; e me lembra que na irmandade do Sacramento da Sé
foi um ano mordomo do Sepulcro da Ressurreição que se fez com toda magnificência
e grandeza [...] e por estas razões digo que os atos exteriores são de católico e dos
particulares não tenho notícia encontrada, sem embargo de ser conhecido e reputado
por cristão-novo e toda a família dos Monfortes [sic] que residem destas partes e a
mulher com quem é casado que é sua prima por nome Maria Ayres. Isto é o que posso
informar acerca da matéria que se trata [...].459

A posição do Comissário do Santo Ofício é clara e convicta, baseada em sua própria ob-
servação. Para ele, Manuel Mendes Monforte não só dava mostras exteriores de ser um fiel ca-
tólico como, na ausência de rumores que comprometessem a integridade desta imagem – “[...]
e dos autos [atos?] particulares não tenho notícia encontrada [...]” –, não cria o Comissário
João Calmon que em seu íntimo houvesse fé estranha a essa.
O mais interessante neste parecer é a contraposição da ideia inquisitorial, da qual ele
mesmo comungava, de que todo cristão-novo é, de fato, um criptojudaizante, um herege: “[...]
sem embargo de ser conhecido e reputado por cristão-novo e toda a família dos Monfortes
[...]”. Com essa ressalva, João Calmon pareceu concluir ser Manuel Mendes Monforte diferente
dos demais cristãos-novos, agindo, comportando-se, pensando e sentindo o mundo como um
cristão. Um preconceito de revés, no qual se tolera o indivíduo pertencente a um grupo social
discriminado, marginalizado, que tenta se aproximar do mundo que o exclui. Em parecer ante-
rior, concluindo interrogatórios sobre denúncias feitas contra esse réu, manteve-se impassível,
relatando apenas as ocorrências.
A deferência explícita do Comissário João Calmon à pessoa de Manuel Mendes Monfor-
te pode ser pensada sob dois pontos de vista. Primeiro, e mais improvável, certa afinidade por
participarem do mesmo meio social como senhores de engenho e graduados pela Universida-
de de Coimbra, um em Cânone, outro em medicina. Segundo, pela convivência entre ambos,
que não se traduz em intimidade, enquanto membros da igreja Catedral da Sé, um exercendo
funções eclesiásticas, outro atuante na Irmandade e médico do Colégio dos Jesuítas (até 1712,
pelo menos). A vizinhança de Monforte a essa igreja talvez tenha facilitado ao Comissário
observa-lo mais detida e diretamente, e concluído que apesar de cristão-novo, Monforte cum-
pria rigorosamente suas obrigações católicas indo mais além do que era exigido a um bom fiel.
Em nenhum dos outros dois processos inquisitoriais em que tivemos a oportunidade de
encontrá-lo na direção das diligências, verificamos a mesma deferência reportada ao primeiro
parecer da causa de Monforte. Suas apreciações eram sempre objetivas, diretas, sem suscitar

459 Parecer datado em 12 de março de 1722. Ibidem.

159
qualquer espécie de comiseração ao prisioneiro.460 Como, por exemplo, ao encerrar os inter-
rogatórios às testemunhas do processo contra Diogo de Ávila Henriques, o Comissário João
Calmon deteve-se em relatar a atividade considerando que o réu “nesta cidade da Bahia era
conhecido como demasiadamente esperto” e descreveu os fatos conhecidos de uma disputa
deste com outro cristão-novo.461
O cristão-novo Antonio da Fonseca, lavrador, que viveu por longos dez anos em terras
do Comissário João Calmon, na fazenda “Malhada”, não contou com sua participação nas in-
quirições que, de Lisboa, vieram- lhe remetidas para serem feitas às testemunhas dos artigos de
defesa (contraditas e coartadas) moradoras na Vila de São Francisco do Conde, recôncavo baia-
no. A condução das inquirições foi transferida para o Comissário Antonio Pires Gião, que então
designou dois padres residentes nessa Vila para comissionar os interrogatórios.462 Interessante é
que um desses padres fora nomeado pelo próprio réu como sua testemunha de defesa.463
Na ausência de um tribunal estabelecido na América portuguesa, era a “casa de mora-
da” ou “casa de pousada” dos Comissários do Santo Ofício o local onde recebiam as confis-
sões, as denúncias e os depoimentos de testemunhas. O Comissário também estava disposto a
deslocar-se até o depoente no caso em que este, sendo intimado a responder interrogatórios,
estivesse impedido de locomover-se. Contudo, se alguma razão dificultasse ambos, Comissário
e depoente, a deslocarem-se, a perquirição não prosseguia.
Foi o que aconteceu a duas testemunhas nomeadas nos processos inquisitoriais de dois
cristãos-novos. Uma delas não pode comparecer diante do Comissário João Calmon, nem este
ir a seu encontro, pois o caminho que a levava à cidade de Salvador estava bloqueado pelas
chuvas que assolavam a região.464 Outro caso, a diligência foi inviabilizada em razão do Comis-
sário e do depoente se encontrarem enfermos.465 Entretanto, tais acontecimentos não traziam
prejuízo para o Santo Ofício, pois eram inquiridas testemunhas suficientes para responderem
às proposições requeridas e dar continuidade ao processo, como o foi nesses dois casos.
Temendo denúncias de terceiros, alguns cristãos-novos precipitavam-se em confessar
“culpas” ao Comissário do Santo Ofício que, as registrando e as enviando a Lisboa, resultava
em um julgamento mais rápido, uma condenação menos rigorosa e o não confisco de bens,
já que os Inquisidores se davam por satisfeitos apenas com o confessar-se judaizante e delatar
supostos cúmplices. Era a chamada apresentação.466

460 Sobre a atuação dos comissários do Santo ofício nos processos inquisitoriais, cf. SOUZA, Grayce M. B, op. cit.,
p. 261-270.
461 ANTT/TSO-IL Proc. nº 2121. Aliás, este comportamento do Comissário J. Calmon fora também observado por
Luiz Mott em sete processos sob sua responsabilidade. MOTT, op. cit., p. 226-230.
462 Episódio mencionado em SOUZA, Grayce M. B., op. cit., p. 170-171.
463 O bracarense Padre Domingos de Lima, sacerdote do hábito de São Pedro, declarou que não se lembrava do réu
e muito menos tinha-lhe amizade particular. ANTT/TSO-IL Proc. nº 10484.
464 ANTT/TSO-IL Proc. nº 8887. A dificuldade de locomoção pelo interior da Colônia foi por diversas vezes
informada aos inquisidores lisboetas, e mesmo que o Comissário designasse religiosos para inquirir em nome
do Santo Ofício, encontrava obstáculos dada a sua ausência nos sertões ou à incapacitação para realização da
diligência. cf. SOUZA, G. M. B., op. cit., p.171-173, 191 et passim.
465 ANTT/TSO-IL Proc. nº 2121.
466 LIPINER, E. Santa Inquisição: Terror e Linguagem. Rio de Janeiro: Documentário, 1977. p. 25, 84.

160
Nem sempre, porém, Comissários do Santo Ofício eram eficazes nos registros dessas
confissões e encaminhamento aos Inquisidores. Encontra-se na Bahia um caso em que o Co-
missário João de Oliveira Guimarães foi sutilmente criticado pelos Inquisidores de Lisboa por
ter recebido a confissão de um cristão-novo sem que, na carta de apresentação do réu,467 expli-
citasse de qual crime se tratava a culpa. No entanto, como o cristão-novo foi preso e imediata-
mente admitiu-se criptojudaizante, a Mesa do Santo Ofício tolerou tal procedimento.468
Os trabalhos dos Comissários do Santo Ofício da Bahia desenvolviam-se dentro das
expectativas de suas funções. Eram eficientes e procuravam atender as ordens do Santo Ofício
lisboeta, sem demora. Pormenores como esses apresentados são interessantes na medida em
que mostram um pouco da prática do ofício de Comissário: uma presumível compaixão por
outro, a falta de inquirição de uma testemunha e o descaso em anotar a culpa de um réu.
Fora da Colônia brasílica, um funcionário da Inquisição chamou atenção: Jacinto Roba-
lo Freire, Procurador do Santo Ofício de Lisboa. O sobrenome desse Procurador, como a sua
naturalidade lisbonense, era o mesmo do Juiz de Fora da Bahia, Veríssimo Robalo Freire. Por
essa coincidência, conjectura-se um laço de parentesco bastante próximo, talvez irmãos.469 Ve-
ríssimo Robalo Freire era amigo de alguns cristãos-novos, particular e intimamente de Anto-
nio Cardoso Porto, de quem batizou o filho primogênito. Jacinto Robalo Freire esteve presente
em diversas causas de cristãos-novos da Bahia, sendo Procurador do próprio Antonio Cardoso
Porto e de Diogo de Ávila Henriques; Procurador e testemunha de defesa nomeada por Manuel
Mendes Monforte e curador de Thomas Pinto Correa, por ser menor de 25 anos de idade.470
O Procurador era uma espécie de advogado do réu nomeado pelos Inquisidores para
encaminhar as “Provas da Justiça” e articular, junto ao próprio réu, seus artigos de defesa – as
contraditas (momento em que o réu tinha oportunidade de questionar as acusações) e coar-
tadas (quando retorquia sobre a época e o local em que lhe deram as culpas).471 Sobre a causa
do prisioneiro, a ele somente era dado conhecimento do libelo acusatório apresentado pelo
Promotor. Com base nisto, formavam-se os artigos de defesa, cujos fatos e argumentos apre-
sentados pelos réus eram de sua inteira responsabilidade, pois estava obrigado a prestar conta
sobre “a maneira como conduzia a defesa e da justiça e injustiça com que se defendia o réu”.472
Na prática, o Procurador trabalhava para legitimar os procedimentos inquisitoriais. Para o réu

467 Carta de Apresentação é o documento escrito pelo confitente, onde alega ter culpas a declarar ao Santo Ofício e
quais eram, entregue ao Comissário local ou enviada diretamente ao Tribunal.
468 Disseram os Inquisidores: “ainda que o termo de sua apresentação não declare especificamente o crime de
judaísmo do réu, contudo, atendido [?], afirma dele bastantemente, deu a entender ser o mesmo o crime e ter nele
confissão e ter vivido apartado da fé, termos em que não fica a dita sua apresentação equívoca, geral e vaga, como
se mostra a de muitos apresentados perante os Comissários, sem declaração de culpa, sendo presos negam a de
judaísmo”. ANTT/TSO-IL Proc. nº 11769.
469 Entretanto, é preciso cautela, pois os sobrenomes no Antigo Regime português eram criados de “modo
aparentemente aleatório”. SILVA, Ma. Beatriz N. da. Ser nobre na colônia. São Paulo: UNESP, 2005. p. 150.
470 ANTT/TSO-IL Procs n°s 8887, 2121, 675, 1004, respectivamente.
471 LIPINER, op. cit., p. 48, 40 respectivamente.
472 SARAIVA, Inquisição e cristãos-novos. 5. ed. Lisboa: Estampa, 1985. p. 68.

161
não havia defesa, tampouco advogado que o livrasse das acusações nem provasse inocência, ao
contrário, deveria fazê-lo aceitar e declarar a culpa e os cúmplices.473
Aos réus que queriam elaborar defesa, os Inquisidores apresentavam os Licenciados do
Santo Ofício que atuariam como advogado. Cardoso Porto, Mendes Monforte e Ávila Henri-
ques tiveram Jacinto Robalo Freire como Procurador. Na causa de Cardoso Porto, Robalo Frei-
re exerceu a função durante quase um ano e meio e, sem justificativa alguma, foi substituído.
Na ação contra de Ávila Henriques, Jacinto Robalo Freire considerou-se inapto para
prosseguir e três meses depois pediu para ser dispensado alegando que “se dava por suspeito
por justas razões que tinha para não ser Procurador do dito réu [...]”.474 Quais seriam essas
razões? Pode-se pensar em alguma amizade entre Ávila Henriques e o suposto irmão do Pro-
curador, Veríssimo Robalo Freire, interferindo na continuidade dos trabalhos? E, neste caso,
porque permaneceu mais de um ano gerindo a defesa de Cardoso Porto? Infelizmente essas
razões permanecem desconhecidas.
Mesmo como Procurador do Santo Ofício no processo de Manuel Mendes Monforte,
Jacinto Robalo Freire foi nomeado como testemunha de contraditas para versar sobre o tempo
em que eram estudantes na Universidade de Coimbra, Monforte, cursando Medicina, e Robalo
Freire, Direito canônico. As páginas do depoimento foram arrancadas do corpo do processo e
deixado apenas uma pequena parte onde Robalo Freire argumentava que não teve oportunida-
de de conhecê-lo nesta época.475
As diligências inquisitoriais na Bahia foram cumpridas dentro das expectativas do Tri-
bunal de Lisboa. As eventualidades apresentadas – duas inquirições não efetuadas, uma devido
ao fechamento de estrada, outra por doença de testemunha e Comissário do Santo Ofício, e
um Comissário que não explicitou o teor da apresentação de um cristão-novo – são exemplos
isolados de dificuldades encontradas para se proceder as investigações na Bahia, em nada in-
terferindo no desenvolvimento da causa dos réus dependentes das diligências nessa Capitania,
tampouco nos trabalhos dos Inquisidores lisboetas.
Essa relativa deferência encontrada no parecer do mais importante Comissário do Santo
Ofício da Bahia, João Calmon, ao processo de Manoel Mendes Monforte, chamou a atenção
pela sua singularidade, mas não pode suscitar, por ausência de provas, haver um relacionamen-
to pessoal entre a autoridade máxima da Inquisição na Bahia e um cristão-novo. Da mesma
forma se dá o caso do Procurador Robalo Freire, sobre o qual apenas se conjectura uma rela-
ção de parentesco com um cristão-velho Desembargador da Relação da Bahia, amigo de um
cristão-novo. Singularidades próprias à Colônia.

A ambiguidade dos agentes da Inquisição: os Familiares do Santo Ofício


Os depoimentos de alguns Familiares do Santo Ofício nos artigos de defesa dos réus
constituem corpus documental mediante o qual se pôde alcançar a convivência com cristãos-

473 FEITLER, op. cit.; FEITLER, B. Processos e Práxis inquisitoriais: problemas de método e de interpretação.
Revista de fontes, Guarulhos, n. 1, p. 55-64, 2014-2.
474 ANTT/TSO-IL Proc. nº 2121.
475 ANTT/TSO-IL Proc. nº 675.

162
-novos e sentir o tipo de relacionamento estabelecido. Nas histórias que relataram não se nota,
a princípio, um cotidiano de hostilidade entre agentes da Inquisição e os “vigiados” cristãos-
-novos. Para o historiador Antonio José Saraiva, os Familiares do Santo Ofício eram eminentes
defensores da Inquisição, porquanto sua sobrevivência dependia da existência e legitimidade
desta instituição.476
Parte-se da reconstituição da relação criada entre Familiares do Santo Ofício e cristãos-
-novos da “cidade da Bahia” que mantiveram contato social e profissional. Os episódios a seguir
foram relatados nos depoimentos de cinco Familiares sobre três prisioneiros, dentre os sete que
apresentaram contraditas (Diogo de Ávila Henriques, Antonio Cardoso Porto e Félix Nunes de
Miranda)477 requerendo este testemunho envolto do mais elevado prestígio social, pois eram os
mais propícios a abonar a defesa.478
Dentre os Familiares do Santo Ofício que Diogo de Ávila Henriques conhecia em Sal-
vador, foi a Faustino de Carvalho que supôs confiança para falar em sua defesa, no que não
foi satisfeito. O convívio entre ambos foi superficial e ocasional. Conheceram-se nas ruas da
cidade cinco anos após Ávila Henriques ter chegado de Lisboa, e desde então cruzavam-se
fortuitamente nos cartórios, onde conversavam quando iam tratar de negócios. Carvalho co-
nhecia, nessa época, um pouco sobre a vida de Ávila Henriques: onde morava, quem eram seus
amigos e inimigos, o andamento de uma causa judicial que havia impetrado. Acompanhava,
de longe, seus passos.
Chamado para depor sobre a inimizade que Ávila Henriques alegava ter com seu primo
Gaspar Henriques, este Familiar não o favoreceu. Contestou suas afirmações dizendo que eram
muito unidos e que Ávila Henriques foi morar em casa de um advogado, Martinho Barbosa
de Araújo, para servir-lhe de ajudante escrivão e não como asseverava o réu, por não ter sido
acolhido pelo primo. Outro a testemunhar esse artigo foi o Escrivão dos Agravos e Apelações
da Bahia, Manuel Velis da Silveira, que disse “ver Diogo assistir em companhia do Bacharel
Martinho Barbosa de Araújo, já defunto, mas não sabe se o tinha como seu escrevente ou por
fazer essa esmola”.479 Talvez menos informado do que o Familiar Faustino de Carvalho, talvez
mais cauteloso, Silveira não comprometeu a verdade de Ávila Henriques, como o fez aquele.480

476 Familiares do Santo Ofício, como esclarece Saraiva, não eram funcionários, “mas auxiliares [...] que secundavam
os juízes e funcionários” na captura e guarda dos suspeitos. O título de Familiar era bem cobiçado por todos que
pudessem ter comprovada origem cristã-velha, pois a venerada honra de “[...] ‘limpeza de sangue’ atestada pelos
Inquisidores, estava acima de qualquer contestação”, e os colocava em “[...] situação avantajada perante o fidalgo
cuja limpeza de sangue não estivesse bastante e notoriamente atestada.” Além disso, uma série de privilégios que
acompanhava o título dava-lhes uma “[...] posição social preponderante e invejável”, já que eram “[...] protegido
pelo Tribunal, isento de direito comum [...]”. SARAIVA, op. cit., p. 161-162.
477 ANTT/TSO-IL Procs. nºs 2121, 8887, 2293.
478 Nos processos inquisitoriais consultados identificamos oito Familiares do Santo Ofício na Bahia, porém apenas
cinco deles foram nomeados nas Contraditas. Um dos réus que apresentou Contraditas não elaborou artigos de
defesa para ser investigado na Bahia. Sobre o lugar social dos Familiares, c. f. TORRES, José Veigas. Da repressão
religiosa para a promoção: a Inquisição como instância legitimadora da promoção social da burguesia mercantil.
Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 40, p. 105-135, out. 1994. p. 105-135.
479 ANTT/TSO-IL Proc. nº 2121
480 Ibidem.

163
A importância desse episódio assenta-se na vontade crucial de Ávila Henriques em
mostrar aos Inquisidores que não se relacionava com cristãos-novos, inclusive seus parentes,
como o próprio pai que morava em Portugal, Jorge Henriques Moreno, sobre quem disse que
o deixou desprovido de cabedais. Provar que não foi acolhido pelo primo Gaspar Henriques
seria, para ele, um marco do convencimento aos Inquisidores sobre a distância sócio afetiva
que mantinha face aos cristãos-novos. Como não podia esconder sua origem, tentava ser-lhe
antagônico. O que não chegava a ser um paradoxo íntimo, apenas uma estratégia de defesa ma-
lograda, diga-se de passagem, diante dos Inquisidores. Ávila Henriques relacionava-se social
e comercialmente com cristãos-novos, pretendendo inclusive casar-se com uma prima assim
que cumprisse sua pena no Santo Ofício.
Um exemplo de amizade mais próxima entre agente da Inquisição e cristão-novo é entre
o Familiar do Santo Ofício, Capitão Thomas de Paiva Rolha, e Antonio Cardoso Porto. Segun-
do o próprio Familiar, este contato foi possível por serem vizinhos durante os cinco ou seis
anos em que residiram na Rua da Praia, freguesia de N. Sr.ª da Conceição, e como tais compar-
tilharem um dia a dia que facilitava a comunicação, em que as conversas nas portas das casas
eram hábito corriqueiro. Esta mesma relação de vizinhança favoreceu o contato entre Cardoso
Porto e outro Familiar do Santo Ofício, Pedro Martins de Medeiros.481
Thomas de Paiva Rolha falou sobre a vida de Cardoso Porto com uma discrição e pru-
dência não próprias a seu colega Pedro Martins de Medeiros. Narrou o que era público: Car-
doso Porto saíra de Castela “ou outro Reino estranho a Lisboa” e desta cidade embarcara para
Salvador com fazendas para vender. Casou-se com uma filha de Luís e Francisca Henriques e ia
à igreja para cumprir as obrigações católicas. Contou também que as conversas na vizinhança
eram sempre “sobre negócios” e que por isso “não sabe de sua vida e costumes”.482 Já Martins de
Medeiros, justamente por ser vizinho de Cardoso Porto, dizia conhecer sua privacidade e que
ele, ao contrário do que propagava, vivia maritalmente com sua esposa, Ângela de Mesquita.483
Quando Paiva Rolha teve oportunidade de entrar em casa deste cristão-novo no dia em que,
exercendo o papel de Familiar do Santo Oficio, executou sua prisão, revelou esse aspecto da
intimidade, porém em sentido contrário ao que depôs Martins de Medeiros, isto é, mantendo
a discrição.
Neste momento, Thomas de Paiva Rolha encontrou argumentos para concordar com
Antonio Cardoso Porto acerca do relacionamento distante com a esposa, fruto da inimizade
com a família dela, inclusive sua sogra, Francisca Henriques, com quem todos diziam Cardoso
Porto privava de estreita amizade. O Familiar disse então que encontrou Cardoso Porto apenas
em companhia de um escravo, e a sua esposa em casa da mãe, e isto pôde constatar porque as

481 Disse este Familiar que “[...] conhece Antonio Cardoso Porto por ser seu vizinho e há seis anos na Bahia pelo ver
e conversar com ele como vizinho”. O depoimento que mais expressa a frequência destes contatos de vizinhança é
o do comerciante Pedro Gomes da Silva, morador também na freguesia de N. Sr.ª da Conceição da Praia: “por essa
razão [de vizinhança] com ele conversava como fazem os mais vizinhos”. ANTT/TSO-IL Proc. nº 8887.
482 “E em uma ocasião em que se achavam vários vizinhos conversando sobre negócios, costumavam falar os mais
mercadores e não sabe de sua vida e costumes [...]”. Ibidem.
483 “[...] por ser vizinho sabe que Antonio Cardoso Porto vivia portas a dentro com Ângela, fazendo vida marital”.
Ibidem.

164
prisões de Cardoso Porto e Francisca Henriques foram efetuadas por ele, imediatamente, uma
depois da outra.484
Seu depoimento favorável parece ter sido rompido ao comentar que um dia antes destas
prisões viu Cardoso Porto entrar na casa da sogra. Comparando com o depoimento anterior,
o Familiar dizia ser inverdade o rancor que Cardoso Porto alegava aos Inquisidores contra
família da esposa, pois todas as outras testemunhas afirmavam um bom relacionamento entre
eles, inclusive o amigo íntimo que muito o favoreceu na defesa ao Santo Ofício, o Juiz de Fora,
Veríssimo Robalo Freire.
Neste depoimento de Paiva Rolha nota-se uma ambiguidade que pode advir de uma
precaução diante do Comissário do Santo Ofício para não se mostrar demasiadamente inten-
cionado em beneficiar o réu. Precaução que também se valeu usando de sutil perspicácia para
abonar a conduta católica de Antonio Cardoso Porto. Nas duas declarações a este respeito,
argumentou que o observava ir sempre às Missas e cumprir todas as obrigações da Igreja como
faziam os outros vizinhos, só se dando conta de que ele era cristão-novo por ser casado com
mulher reconhecidamente cristã-nova.485
É interessante que este Familiar ao destacar a obediência de Cardoso Porto às obrigações
da Igreja em nada se diferenciando dos demais vizinhos, alegou que nada poderia asseverar
sobre sua conduta dentro de casa, pois ele nunca a visitou. Defendia Cardoso Porto, que era um
cristão-novo, mas o considerava diferente dos demais cristãos-novos, ao menos exteriormente.
Ao afirmar que não conhecia sua “vida e costumes” e que nunca entrara em sua casa,
ou seja, desconhecia o que se passava dentro dela, o Familiar Thomas de Paiva Rolha mostrou
insuficiência de subsídios para discorrer convictamente sobre a intimidade de seu vizinho sem
correr o risco de falso testemunho, e não levantou suspeição de criptojudaísmo. Cardoso Porto
não deixava transparecer se era ou não mal católico.
Apesar da defesa de Paiva Rolha ter sido favorável à causa de Cardoso Porto, esse foi o
único cristão-novo da Bahia que esteve mais próximo do judaísmo tradicional. Ter vivido por
17 anos em uma comunidade judaica na França deu a ele um repertório e uma consciência
judaica que o diferenciava do restante da população cristã-nova arrolada. Paiva Rolha possi-
velmente não soubesse disso. Agiria em defesa de seu vizinho se tivesse essa informação? O
Familiar falava nas entrelinhas, e nelas vislumbra-se empatia por seu vizinho, sobretudo, neste
último depoimento: “não tinha amizade de frequentar a casa”.486 Mas, ela existia.

484 “É verdade que quando ele, como Familiar, foi prender Antonio Cardoso Porto o achara em casa com um
negro e quando foi prender Francisca Henriques, na mesma ocasião, a encontrou com Ângela e essas prisões
imediatamente se fizeram uma atrás da outra”. ANTT/TSO-IL Proc. nº 8887.
485 Aliás, Paiva Rolha foi o único dos Familiares do Santo Ofício aqui citados nomeado para defesa do réu em
comportamento religioso. Diogo de Ávila Henriques não citou Familiares do Santo Ofício e Félix Nunes de
Miranda não apresentou defesa neste sentido. Em seu depoimento disse sobre Cardoso Porto: “[...] e não sabe
de sua vida e costumes e entre os vizinhos vivia como católico e ele testemunha tinha boa opinião por que o viu
ir todos os dias Santos e Domingos ouvir missa a igreja do Corpo Santo como os outros vizinhos iam e só tinha
opinião de ser cristão-novo por ser casado com uma mulher conhecidamente cristã-nova.” Em seguida ratifica:
“[...] como já disse, viu o réu ir a igrejas, assistir missa, assistir alguns sermões e batizar seus filhos como fazem os
católicos. Se também o fazia porta à dentro ele testemunha não sabia por que não tinha amizade de frequentar a
casa.” ANTT/TSO-IL Ibidem.
486 Ibidem.

165
Nessa cordialidade devido à vizinhança, Félix Nunes de Miranda conviveu com dois
Familiares do Santo Ofício: o Sargento-mor Sebastião Álvares da Fonseca, cujo contato esten-
dia-se por “mais de 25 anos na Bahia, por conversarem, e se trataram muitas vezes por serem
vizinhos [...] na Vila de Cachoeira”;487 e o homem de negócios Agostinho do Castro Ribeiro,
conhecidos há quatro ou cinco anos antes de sua prisão ao ir morar na freguesia de São Pedro,
onde Félix sempre viveu desde que se mudou para Salvador, por volta de 1702.488
A constância da relação de Félix com esse Familiar, mesmo morando em lugares distan-
tes, pode ter decorrido da ligação desse com a Vila de Cachoeira onde viviam o irmão, a mãe
e por algum tempo um dos filhos de Sebastião Álvares da Fonseca, além dos negócios que aí
mantinha seja como Procurador de algumas pessoas ou por tratos comerciais. Parentes de Félix
Nunes de Miranda, como seus primos David de Miranda e Ana Bernal de Miranda, igualmente
moradores em Salvador, também conheceram esse Familiar e, tal como Félix, contavam-lhe
as desavenças mais importantes da família, segundo mencionou o próprio Álvares Fonseca.489
Félix Nunes de Miranda foi o único a eleger esse Familiar do Santo Ofício para depor na
sua defesa. Sua prima Ana Bernal de Miranda, apesar de também apresentar defesa, arrolou
estritamente moradores em Lisboa que versaram sobre suas cizânias no Reino, nunca na Co-
lônia. O Familiar Álvares da Fonseca relatou então as histórias dos desafetos de Félix, tal qual
foram por ele narradas, segundo disse, porém, os desfechos não coincidiam com a versão do
processado.
Assim, uma das causas que levou David de Miranda afastar-se de Félix foi o desgosto
ante a agressão física que sua cunhada sofreu quando se desentendeu com Félix. Álvares da
Fonseca lembrava-se do fato, embora não recordasse de ter havido alguma violência, por já ter
muito tempo que lhe contaram a história. Ou ainda, a respeito de outra desavença entre esses
primos, não sabia se ficaram, de fato, inimigos, como ambos disseram-lhe. A inimizade era
relevante para Félix Nunes, como para todos os cristãos-novos que apresentavam contraditas,
visto que era uma forma de tentar convencer os Inquisidores que estavam sendo vítimas de
vinganças.
De todos os artigos de defesa formados por Félix Nunes de Miranda, o Familiar do Santo
Ofício, Sebastião Álvares da Fonseca, confirmou apenas um, porque foi testemunha ocular do
episódio: “sabe pelo ver”. Em outro artigo deixou claro poder tratar-se de uma inverossimilhan-
ça, pois “o que sabe é o que lhe contou Félix”. E não se negou a depor sobre o que “ouviu dizer”,
como era comum às testemunhas de defesa, cujo fundo de veracidade é questionável e poderia
comprometer o réu. O sentido de suas declarações opunha- se à defesa apresentada por este
prisioneiro.490
A vizinhança de Félix Nunes de Miranda com o Familiar do Santo Ofício Agostinho de
Castro Ribeiro teve outra conotação não encontrada nos exemplos anteriores, pois não trata de
uma mera convivência entre vizinhos, mesmo que esta tenha sido a propulsora da relação. Ha-

487 ANTT/TSO-IL Proc. nº 2293.


488 Quando depôs, Agostinho do Castro Ribeiro era morador na freguesia de N. Sr.ª da Conceição da Praia, onde
vivia Antonio Cardoso Porto.
489 ANTT/TSO-IL Proc. nº 2293.
490 Ibidem.

166
via um interesse por parte desse Familiar em utilizar-se das animosidades existentes entre Félix
e Diogo de Ávila Henriques para processar civilmente a este último; o que foi levado a cabo
em razão da disposição de Félix contrária a Ávila Henriques no fervor de uma disputa judicial.
O Familiar Agostinho de Castro Ribeiro andava observando o comportamento de Diogo
de Ávila Henriques, porém não o religioso como era de se prever em alguém com este título,
e concluiu que ele usava métodos não honestos para ganhar as ações civis que impetrava em
causa própria ou na de terceiros, como requerente de causas. Apoiado por Félix Nunes de Mi-
randa entrou com uma Justificação na Ouvidoria Geral do Cível para provar as “velhacarias e
cavilações”, as atitudes de falsário e enganador, como os falsos testemunhos recrutados por de
Ávila Henriques, para beneficiar-se nas causas que atuava.
O depoimento do Familiar Castro Ribeiro é por si só explicativo, e por isso transcrito
na íntegra:
[...] e porque o dito réu [Félix Nunes de Miranda] nesta ocasião buscou a ele testemunha
e lhe disse que o dito Jangada [alcunha de Diogo de Ávila Henriques] era um velhaco e
que visse ele testemunha o como se havia com ele por ser homem caridoso; e querendo
ele testemunha fazer uma Justificação, como na verdade fez no Juízo da Ouvidoria
Geral do Cível e provar as velhacarias e cavilações do dito Diogo d’Ávila Jangada, jurou
o dito réu nesta Justificação contra o dito Jangada, o que este bem percebeu e que por
este e outros motivos eram inimigos capitais, o que sabe pelo ver por ser fato próprio
o que passou com ele testemunha.491

Um jogo de interesses é claramente perceptível neste episódio em que um Familiar do


Santo Ofício e um cristão-novo, Félix Nunes de Miranda, unem-se em ataque contra outro
cristão-novo, Diogo de Ávila Henriques. Rivalidades pessoais aliam as partes interessadas. A
personalidade de “Jangada”, ou suas ações, incomodava a ambos. Castro Ribeiro, sem dúvida,
tirara proveito desta inimizade para viabilizar um processo judicial contra ele. Qual seu inte-
resse? Havia sido vítima das possíveis artimanhas d’o Jangada? Ou o estava a espreitar em sua
função de Familiar do Santo Ofício?
Félix Nunes de Miranda nomeou Agostinho de Castro Ribeiro para responder exclusi-
vamente sobre as demandas que teve com Diogo de Ávila Henriques. E Ávila Henriques, em
nenhum momento de seu longo processo inquisitorial, com quase mil fólios e que levou cinco
anos para ser concluído, nomeou-o para responder suas contraditas, apesar delas envolverem
Nunes de Miranda nos mesmos casos. Ele não poderia se arriscar com um depoimento que
saberia de antemão ser-lhe desfavorável.492

491 ANTT/TSO-IL Proc. nº 2293.


492 Em que medida os artigos de defesa, sejam as coartadas que é ao fim e ao cabo um álibi apresentado pelos réus,
ou as contraditas, que versam sobre inimizades, interferiam no julgamento dos Inquisidores? Seguindo a linha
interpretativa de Antonio José Saraiva sobre o sistema inquisitorial português, a defesa do réu pode ser considerada
como mais uma manipulação para legitimar a arbitrariedade do julgamento dos Inquisidores, usando de artifícios
regimentais e sendo um caminho para os réus declinarem nomes de outros cristãos-novos já que, incluídos nos
artigos de defesa, eram naturalmente citados nas confissões como cúmplices da culpa cometida. Saraiva, no
entanto, não discute o direito de real defesa do réu apenas descreve como se processava aquela autorizada pela
Inquisição. SARAIVA, op. cit., p. 68-71.

167
Ainda no depoimento acima, percebe-se uma sutil tática que deve ter sido utilizada para
convencer Félix Nunes de Miranda, se é que houve essa necessidade, a agir contra Diogo de
Ávila Henriques. Quando Castro Ribeiro reproduziu uma fala do réu, desnecessária ao con-
texto em que a apresentou, em que o próprio réu se colocava como “homem caridoso”, estaria
o Familiar louvando-o ou ironizando seu protesto contra Diogo de Ávila Henriques ao ter se
aproveitado de sua boa vontade, sendo exatamente o que ele também fez? Talvez houvesse
induzido Félix a sentir-se em condição moral superior à Ávila Henriques, e assim conseguisse
dele seu valioso testemunho à justiça civil.
As contradições existiam. As convivências descritas não inibiam ou amenizavam a atu-
ação desses homens que, como Familiares do Santo Ofício, tornavam-se os executores das pri-
sões de seus vizinhos e conhecidos. Antonio Cardoso Porto e Diogo de Ávila Henriques foram
presos por Familiares com os quais havia uma relação amigável anterior.
Faustino de Carvalho, junto a outro Familiar do Santo Ofício, aprisionou com muita
eficiência a Ávila Henriques e seu primo Gaspar Henriques. Contou em seu depoimento que as
capturas ocorreram no mesmo dia e que Gaspar Henriques, ao chegar à casa do primo, saben-
do do ocorrido, providenciou fugir, mas o prenderam “com muito trabalho por que ia fugindo”
pelos fundos da casa onde morava.493 Contradição acentuada talvez tenha sido a de Thomas de
Paiva Rolha, que asseverou a defesa de Antonio Cardoso Porto como sua testemunha nos arti-
gos de defesa, e cumpriu o mandado de prisão dele e de sua sogra. Interessante o depoimento
deste Familiar dizendo que “quando o prendeu moravam na mesma rua”.494
Mediante os testemunhos de Familiares do Santo Ofício nos artigos de defesa destes cris-
tãos-novos percebemos haver certa cortesia entre eles pelo fato de serem vizinhos. Ficam claros
os laços estabelecidos com estes prisioneiros: conheciam-se há longos anos, encontravam-se
nas ruas da cidade, conversavam, ouviam desabafos e confidências, sabiam dos problemas que
os afligiam, aliavam-se conforme as conveniências pessoais. Não foi possível perceber a exis-
tência de hostilidades deliberadas como era de se prever neste tipo de relação entre perseguidor
e perseguido, e mesmo o caso do Familiar Castro Ribeiro e Ávila Henriques parece mais uma
rivalidade inerente ao mundo dos negócios.
Devemos lembrar que Familiares do Santo Ofício eram, antes de tudo, agentes da In-
quisição. Encarregados da vigilância e aprisionamento dos suspeitos de heresias, cabia-lhes,
pois, observar, procurar indícios, espionar, delatar. Deviam estar atentos à vida de todos que os
circundavam, principalmente os cristãos-novos, suspeitos incontestes à Inquisição.
Depreende-se dos relatos descritos que os Familiares tinham elementos para denunciar
seus vizinhos. Conheciam-nos na intimidade, ouviam falar de muita coisa, deduziam o que se
passava no interior de suas casas e, se não comentaram os artigos de defesa sobre comporta-
mento religioso, foi por que não foram nomeados pelos réus. Como já visto, apenas o Familiar
do Santo Ofício Capitão Thomas de Paiva Rolha referiu-se ao catolicismo de Antonio Cardoso
Porto e tergiversou, dizendo simplesmente que não espionava o que se passava em sua casa,
porém publicamente sabia que era bom católico.

493 ANTT/TSO-IL Proc. nº 2121.


494 ANTT/TSO-IL Proc. nº 8887.

168
Não foi encontrado nos processos analisados qualquer atitude contra cristãos-novos que
proviesse de um desejo de cumprimento das obrigações para as quais eram designados, além
da execução das prisões. O comportamento e as atitudes dos Familiares do Santo Ofício não
foram marcados por uma disposição a vigiar constantemente seus vizinhos cristãos-novos,
nos termos de os reconhecerem supostos hereges. Todavia, ao não abonarem as contraditas,
estas testemunhas diferenciadas denunciavam a ambivalência do relacionamento. Não os es-
pionavam ostensivamente, mas também não lhes facilitava a causa no Tribunal inquisitorial,
como foi visto em vários casos. Estariam esses Familiares setecentistas muito mais ingeridos do
prestígio social que tal habilitação lhes concedia, do que em exercer seu papel de intermediário
entre Tribunal e réu?495
Essa ambivalência talvez tenha sido forjada perante o Comissário do Santo Ofício para
não se mostrarem coniventes aos prisioneiros com os quais conviveram. Talvez, como disse o
historiador Antonio José Saraiva, lembrando o autor anônimo das Notícias Recônditas, “O in-
terrogatório destas [testemunhas de defesa] [...], ‘é com umas cautelas e circunstancias tais’ que
as testemunhas, atemorizadas, evitavam parecer demasiado favoráveis aos presos”.496
Os depoimentos desses Familiares do Santo Ofício mostram que havia uma cordialida-
de que foi quebrada apenas pelo cumprimento de uma ordem: a execução das prisões de seus
vizinhos. Tomando de empréstimo uma das ideias de Daniel Goldhagen a respeito das relações
entre não judeus e judeus durante a Alemanha nazista, os agentes da Inquisição como os não
judeus alemães poderiam ter optado por outro caminho que não o de colaboradores da per-
seguição e dizimação de seus semelhantes.497 No Brasil Colônia existiram, de fato, exceções?

O sofrimento de João de Morais Montesinhos498


O extremo dessas relações de cordialidade exemplificadas, ainda que ambíguas, concer-
ne à hostilidade de dois Familiares do Santo Ofício, moradores no Rio de Janeiro, revelada pela
fala de um prisioneiro da Inquisição. O que se passou com João de Morais de Montesinhos,
cristão-novo, comerciante, natural e morador da Bahia, foi um caso isolado nas fontes pesqui-
sadas.499 Apesar de não dizer respeito, diretamente, a comportamentos de Familiares do Santo
Ofício da Bahia, a violência que sofreu e como expressou seu sentimento é um testemunho que
não pode ser menosprezado posto que reflita a alma de qualquer indivíduo subjugado por um
tribunal implacável.
495 Sobre Familiares do Santo Ofício cf. CALAINHO, Daniela, B. Agentes da fé: familiares da Inquisição portuguesa
no Brasil colonial. Bauru, SP: Edusc, 2006; RODRIGUES, Aldair C. Limpos de sangue: familiares do Santo Ofício,
Inquisição e sociedade em Minas colonial. São Paulo: Alameda, 2011.
496 SARAIVA. op. cit. p. 80.
497 GOLDHAGEN, Daniel. Os carrascos voluntários de Hitler. São Paulo: Cia. das Letras, 1997.
498 Esse tópico foi ampliado e publicado pela autora. SEVERS, Suzana M. S. S. “Sapatos ao mato”: o sentimento de
“um triste homem que vem preso” pelo Santo Ofício. Politéia: História e Sociedade, Vitória da Conquista, v. 11, n
1, p. 105-125, jan./jun. 2011.
499 Por ter sido preso na Passagem de Mariana, esse caso de Montesinhos foi contado por dois historiadores que
tratam da Inquisição e seus agentes na Capitania de Minas Gerais. Por ordem crescente do ano de publicação, cf.
FERNANDES, Neusa. A Inquisição em Minas Gerais no século XVIII. 2. ed. Rio de Janeiro: Eduerj, 2004. p. 125-
128; 183-194; RODRIGUES, op. cit., p. 88-89.

169
Estando a negócios nas Minas Gerais, Montesinhos foi preso por ordem do Tribunal de
Lisboa, possivelmente em decorrência da carta de apresentação entregue a um Comissário do
Santo Ofício na Bahia cerca de três anos antes. Sua prisão, talvez, não o tenha surpreendido
como o surpreendeu e indignou o tratamento dado pelos Familiares responsáveis pela sua cap-
tura e embarque aos cárceres da Inquisição.
Em carta de próprio punho aos Inquisidores de Lisboa, João de Morais de Montesinhos
denunciou e descreveu minuciosamente os maus-tratos e as situações humilhantes que lhe
infligiram Eugênio Ferreira, executor de sua captura no Ribeirão do Carmo das Minas Gerais,
e Francisco Garcia Fontoura, quem o conduziu até o Rio de Janeiro onde embarcou para Por-
tugal. Sobre Eugênio Ferreira, Montesinhos relatou o descaso pela sua pessoa, mantendo-o
fortemente acorrentado pelos pés durante os 34 dias em que permaneceu na cadeia aguardan-
do a partida para o Rio de Janeiro e não lhe provendo, mesmo diante de suas insistências, em
suas necessidades mais básicas: a higiene de suas roupas e a ausência dos ferros, já que estava
encarcerado.500
Ressaltou, no entanto, passagens menos dramáticas do contato com este Familiar em
momentos que lhe demonstrou certa benevolência, para acentuar situações mais extremadas
protagonizadas por outro, Francisco Garcia Fontoura. Primeiro, Eugênio Ferreira intercedeu
diante daquele que não deixava Montesinhos fazer suas necessidades fisiológicas mesmo acom-
panhado de guardas.501 Depois, confortando-lhe diante dos grilhões que era obrigado a trazer
por caminhos perigosos, assegurou que Fontoura agia por “razões de cólera”, não por ordem
da Inquisição.
Procedimento que ele lembrou a Montesinhos não ter adotado, deixando-o solto a noite
por caminhos desertos quando o escoltou do local da captura até a Vila do Ribeirão do Carmo.
Com essa ressalva, mostrava ao prisioneiro serem legítimos os grilhões que lhe pôs na cadeia;
segundo ele, o Santo Ofício apenas não ordenava que se amarrassem os presos onde houvesse
perigo de morte.502 Por fim, lamentou o fato de Garcia Fontoura ter se oferecido para conduzi-
-lo ao Rio de Janeiro, pois ele, Eugenio Ferreira, partiria em breve e poderia levá-lo livre de
ferros e vexames.503

500 A pedido de Montesinhos o carcereiro intercedeu junto ao Familiar para mandar lavar sua roupa, sem resultado.
Indignando-se muito, Montesinhos escreveu: “o dito Coelho dirá se a meu peditório foi ele duas ou três vezes a
sua casa a pedir-lho e depois da referida insistência me veio o mesmo dizer a ajuntasse que naquele mesmo dia
tornava por ele; o que nunca fez no decurso do dito tempo.” ANTT/TSO-IL Proc. n° 11769.
501 “Ao amanhecer o dia por não querer o dito condutor que eu fosse fazer certa diligência corporal ao campo com
guardas e já havia de fazer ali no público o repreendeu muito Eugênio Ferreira, Familiar que me prendeu, desta
demonstração de paixão com que comigo se havia e que me deixasse ir”. Ibidem.
502 “[...]certificando-me mais o dito Familiar que estivesse certo que o Santo Tribunal não mandava que os presos
levassem prisões de ferro por aquelas partes onde pudesse acontecer perigo de vida e que o mais era paixão do
condutor”. Ibidem.
503 “[...] dizendo-me mais que eu fora desgraçado em se oferecer por seu gosto o sobredito condutor, porque ele daí
a dez dias havia de partir para o Rio de Janeiro, e assim como me prendera trazendo-me de noite por caminhos
desertos solto com muita cortesia ele me não havia de deitar ferro algum nem fazer-me aqueles vexames, que havia
de admoestar ao dito condutor particularmente[...]”. Cortesia que Montesinhos não encontrou no recolhimento
da cadeia. Ibidem.

170
A evidente preocupação do Familiar do Santo Ofício Eugenio Ferreira em destacar sua
personalidade comparativamente à de Francisco Garcia Fontoura foi, talvez, movida por estar
em presença de outras pessoas que consolavam Montesinhos em seus padecimentos, e se mos-
trar cortês, não hostil. Ou ainda, por receio em infringir um artigo do Regimento da Inquisição
sobre a condução de presos e ser delatado – o que é mais remoto ao se questionar se a Inquisição
investigava o comportamento de seus agentes e os punia em suas infrações, quando estas não
fossem desacatos à instituição ou à fé.504 Montesinhos, ele sim, talvez tenha mostrado indulgên-
cia ao levar em conta as palavras de apoio do Familiar e não o denunciar com mais minúcia.
O Familiar Francisco Garcia Fontoura agiu com hostilidade, violência e abuso de autori-
dade contra Montesinhos e dois outros prisioneiros que conduzia ao Rio de Janeiro. Impôs-lhes
constantes e intensos padecimentos físico e moral: algemou-lhes as mãos, acorrentou-lhes ao
cavalo já agrilhoados nos pés e pescoço. O tormento dos grilhões em nenhum momento foi
aliviado. Nesta condição seguiam em frágeis embarcações durante travessias de mar e rios pe-
rigosos propensos a fortes ventanias. Nas estalagens aonde pernoitavam, além das correntes
e vigilância dos escravos, dormiam no chão em lugares inóspitos incomodados por pulgas e
outros insetos.505 Privava-lhes de alimentos; tomou-lhes as vestes, os sapatos e o dinheiro que o
Fisco entregava para provimento dos presos.
Para celebrar a condução dos prisioneiros do Santo Ofício, no dia da partida de Ribeirão
do Carmo, ofereceu um banquete público aos vizinhos e amigos valendo-se do dinheiro que o
Fisco lhe repassara. Nessa ocasião, Montesinhos e seus companheiros foram submetidos à exe-
cração pública, insultados por alguns dos comensais em clara demonstração de antijudaísmo
consentido pelo Familiar: “chamando-nos cães judeus de rabo e que íamos a queimar [...] que
era melhor ser preso por ladrão público de estradas que pelo Santo Ofício [...]”.506
No olhar de João de Morais Montesinhos esta sequência de padecimentos e aviltamentos
teve uma origem: o Familiar do Santo Ofício Francisco Garcia Fontoura recebeu como grave
ofensa pessoal o assentimento de Montesinhos aos comentários da vizinhança de Ribeirão do
Carmo reprovando-o pela participação em uma briga no interior da capela local durante a
Missa, quando disseram “admirando a atrocidade da afronta”, que se o Santo Ofício soubesse
do evento, ele correria o risco de perder a medalha de Familiar, referindo-se à insígnia.507
A chance que Garcia Fontoura encontrou para reaver e continuar exibindo honradez foi
fazer da condução de Montesinhos ao Rio de Janeiro o caminho para a reconquista de sua re-
504 Ainda que no Regimento da Inquisição não houvesse regulamento específico detalhando o modo de proceder
com prisioneiros em situação de captura, além o de genericamente requerer “não farão agravo, ou vexação, a
pessoa alguma, com o poder de seus ofícios, ou com pretexto dos privilégios de que gozam, nem consentirão que
a façam seus familiares [aqui na acepção de parentes] ou criados”. REGIMENTO da Inquisição de 1640, Livro I,
título I, artigo VIII; Livro I, título XXI, artigo I.
505 “[...] sempre me trouxe lastimado com uma grande corrente, muito grossa ao pescoço passada ao cavalo, e
algemas nas mãos que me lançava de noite dormindo no chão com elas impacientado de imundícies de pulgas e
bichos.” ANTT/TSO-IL Proc. nº 11769.
506 Ibidem.
507 A medalha de Familiar era o símbolo de ostentação do título e deveria ser utilizada na festa de São Pedro Mártir,
nos Autos de fé (inexistentes na América portuguesa) ao prender e conduzir o réu às instâncias inquisitoriais. No
entanto, ressalta Aldair Rodrigues, “[...] a medalha do Santo Ofício era utilizada ao bel prazer dos Familiares”.
RODRIGUES, op. cit., p. 87-88.

171
putação social, perpetrando-lhe maus-tratos e ignomínias. Talvez por medo perder a condição
de Familiar pelo desacato ao lugar santo quisesse mostrar rigor no trato com cristãos-novos
presos e para obter admiração do Santo Ofício.
Isto foi a percepção de Montesinhos quando soube ser sua condução até o local de em-
barque para o Tribunal de Lisboa uma exigência imposta pelo Familiar para cumprir a ordem
de levar ao mesmo navio um outro prisioneiro do Santo Ofício que estava doente. Disse Mon-
tesinhos ser esta a ocasião propícia para vangloria e congraçamento de Garcia Fontoura com
os vizinhos e para vingar-se dele, pois ao tornar pública sua partida de Ribeirão do Carmo,
algemando-o e acorrentando-o à saída da cadeia, mostrava a todos sua autoridade, dignidade
e respeito como encarregado da execução de uma diligência inquisitorial.508
Expressou sua indignação ao modo pelo qual tratava o enfermo, responsabilizando-o por
seu falecimento. Além de não o alimentar, agiu com “a mais ímpia caridade de mofineza” não tra-
tando de suas lesões, negando-se a mandar seu escravo em busca de folhas para a cura, descuidos
que o levou à morte e criou ódio a Montesinhos e a seu companheiro. Montesinhos ressaltou aos
Inquisidores que para descrever os maus-tratos ao enfermo “seria mister muito papel”.509
Os atos de corrupção cometidos por Garcia Fontoura foram deflagrados por este cristão-
-novo. Denunciou-o por reverter a uso próprio o dinheiro que recebeu do Fisco para sustento
dos presos, como foi o patrocínio do banquete público oferecido, deixando-os perecer de fome
inclusive o preso enfermo. No momento de embarcar para Lisboa, Montesinhos descobriu
que seus pertences – agasalho, botas e barrete para o frio –, foram expropriados por Garcia
Fontoura e seu escravo. Reclamando a falta, o Familiar justificou ao Fisco que Montesinhos os
tinha “lançado ao mato”.510
Os 12 mil réis para provimento dos prisioneiros durante o trajeto pelo mar não foram
entregues ao capitão do navio, nem mesmo pagos ao tesoureiro do navio os 40 mil réis da
passagem, como era costume, repassando-o ao dono da embarcação, que não fez aviso da qui-
tação. Sem cobrir as despesas da viagem, Montesinhos e seu companheiro sofreram outros
padecimentos até chegarem a Portugal. Frio, fome e mau acomodamento foram suas queixas
mais constantes.511
Todos esses maus-tratos foram testemunhados e protestados por moradores e autorida-
des locais dos vários lugares onde passavam, sempre indignados com a aspereza do tratamento
508 “[...] para ter ocasião de se vangloriar e apenando [sic] vizinhos para sua companhia reconciliar-se com muitos
que o não tratavam e poder vingar-se de mim; e com efeito no dia da saída das Minas apenou [sic] da parte do
Santo Ofício, cinco ou seis vizinhos além da muita mais gente com que ele dizia naquela função queria fazer uma
saída bemqca [bem feita?], em tal forma a fez que logo à porta da cadeia me algemou, e corrente muito grossa ao
pescoço passada ao cavalo[...]” ANTT/TSO-IL Proc. nº 11769.
509 Ibidem.
510 “Ultimamente chegando ao Rio de Janeiro faltou na entrega que fez dos meus trastes, dois pares de sapatos
que trazia e uma camisa de que tolerou se aproveitasse o seu negro, e na conta que deu ao Fisco disse os tinha eu
lançado ao mato”. Mais adiante, Montesinhos reforçou: “o que foi alheio da verdade nem é crível que um triste
homem que vem preso a dependência de que o provam do necessário, lance ao mato, por desperdício, dois pares
de sapatos que tinha de seu uso.” Ibidem.
511 “[...] havia eu de comer que são feijões a um homem quebrado [...] me não quiseram dar uma colher com que
comesse, nem uma vasilha em que tomasse a minha ração de água para beber, nem uma carapuça grossa para a
cabeça para reparo do frio e vento, a qual não deixa de ter o mais desprezado molequinho que vem no navio [...]”.
Ibidem.

172
deste Familiar. A algumas dessas situações que foram públicas, Montesinhos notou a sensibi-
lidade de pessoas que ofereciam ajuda para amenizar-lhes os padecimentos, confortando-lhes
em suas reclamações, indispondo-se inclusive com o próprio Francisco Garcia Fontoura que
reagia contrário a qualquer auxílio.
Os Provedores de Borda do Campo e Paraíbuna discutiram gravemente com o Familiar
por ele não aceitar os soldados que punham a sua disposição mesmo fora da jurisdição de seus
comandos. Intentavam, dentre outras coisas, ajudar a uma diligência do Santo Ofício e facilitar
o acomodamento dos presos para dormir, já que a falta de soldados era razão alegada para
mantê-los algemados durante a noite. A carência de alimentação, sempre apontada por Monte-
sinhos, foi também motivo de repreensão, agravando-se fato da morte do enfermo. O Provedor
da Borda do Campo protestava para não os maltratar e o de Paraíbuna ressaltou que nunca vira
uma semelhante diligência do Santo Ofício.
O sentimento diante de tais penúrias perpassa toda a missiva aos Inquisidores, e as-
sim se revelou: “Consequentemente, com esses vexames me levava por todo o caminho que,
impacientado deles, confesso que algumas vezes pedi a D’ [Deus] a morte, de que me pesa
grandemente”.512
Para Montesinhos, o cuidado com seus trajes, especificamente camisas, significava poder
embarcar para Lisboa vestido dignamente, com roupas limpas.513 Por outro lado, depreende-se
entre as constantes queixas contra os Familiares do Santo Ofício por não cuidarem devida-
mente de suas roupas, que Montesinhos pretendia, tacitamente, mostrar aos Inquisidores ser
criptojudaizante, pois o uso da camisa lavada era peça indispensável à observância tradicional
do Shabat. Sua apresentação a um Comissário do Santo Ofício na Bahia já dera indícios de que
ele pretendia assumir suas culpas para ter sua causa abreviada na Inquisição.
Diante de todas as privações que viveu durante o encarceramento em Ribeirão do Car-
mo (atual Mariana) e Rio de Janeiro, Montesinhos chegou ao ponto de propor aos Inquisidores
para providenciarem visitas regulares dos Familiares do Santo Ofício das Minas Gerais aos pri-
sioneiros a fim de atender-lhes no que precisasse, enfatizando que tal descaso não era comum
aos Familiares do Santo Ofício da Bahia.514
Segundo o próprio réu, toda penúria que lhe foi imposta derivava de uma vingança
pessoal. No entanto, quem era Montesinhos, o que ele representava? Montesinhos era cristão-
-novo, filho de cristãos-novos. Era um prisioneiro da Inquisição, e isso se traduzia em desonra
e extremo da mais baixa condição humana. Mentalidade bem expressa pela injúria que ouviu
por parte de amigos desse Familiar ao dizerem-no “que era melhor ser preso por ladrão público
de estradas que pelo Santo Ofício [...]”.515

512 ANTT/TSO-IL Proc. nº 11769.


513 Depois, Montesinhos refere-se a um guarda-mor “que foi a pessoa que por piedade me mandou lavar a camisa
que tenho dito por atenção à falta em que me ouvia queixar continuamente de me não me querer o dito Familiar
mandar lavar a roupa para vestir e puder levar para a jornada do caminho [...]”. Ibidem.
514 “[...] cuja lástima é gravemente de se não dar encarrego a qualquer Familiar para que cure do preso, visitando-o
de seis ou em oito dias se carece de alguma coisa precisa, o que se faz em a Bahia ou outra qualquer praça donde
embarcam os presos muito satisfeitos. [...] O que seguro a Vossas Senhorias é este procedimento alheio e muito
contrário ao que se administra na cidade da Bahia, donde é impossível haver queixa.” Ibidem.
515 Ibidem.

173
Nesta lógica, o fato de seguir preso por ordem do Santo Ofício representava que o seu
crime era abjeto, assim como a sua pessoa por o haver cometido. Fica claro o antijudaísmo
perpetrado pela Inquisição e registrado em seu Regimento: “[...] Falarão [ministros, oficiais
e Familiares da Inquisição] com tal advertência na gente da nação, que nunca deles se possa
cuidar, que o ódio, que todos devem ter ao delito, se estende também às pessoas [...]”.516
Os relatos revelam que Garcia Fontoura, autorizado pela Inquisição e por sua personali-
dade reconhecida como “pessoa sem comiseração”,517 usou Montesinhos enquanto cristão-novo
e prisioneiro do Santo Ofício como veículo pelo qual pôde se espelhar às avessas permitindo-
-lhe outorgar a si mesmo uma superioridade, uma honradez, um vínculo ao poder dominante.
Montesinhos expôs o sentimento de “um triste homem que vem preso[...]”. É a própria
palavra do réu chegando à interpretação histórica. São raros os documentos, que refletem a
alma dos prisioneiros. Em meio ao seu desespero, Montesinhos confessou “[...] e assim que
por nesta forma ter padecido estas violências e poucas caridades que quiçá hajam de ser não
notórias a Vossas Senhorias, o que assim é de crer, me obrigou o meu sentimento a expô-las,
não me sendo fácil o esquece-las”.518

Levantamento e perfil dos presos e denunciados (1700 a 1748)


Com a subida ao trono de D. João V e em seguida do Inquisidor-Geral D. Nuno da
Cunha de Ataíde e Melo (1707-1750), empenhados na repressão aos desviantes da doutrina ca-
tólica, há um acirramento da perseguição inquisitorial, sobretudo, contra cristãos-novos. Entre
1707 e 1750, o Santo Ofício penitenciou 3.770 pessoas, 95% a mais em relação ao cômputo de
1.932 penitenciados entre 1682 a 1706,519 anos correspondentes ao restabelecimento da Inqui-
sição e governo de D. João V.
Em todo o reino português os cristãos-novos constituíram quase 60,69% desses 3.770
penitenciados.520 Nas três primeiras décadas setecentista, particularmente as décadas de 1720
e 1730, o Santo Ofício atuou com mais intensidade, aumentando o número de seus colabo-

516 REGIMENTO da Inquisição de 1640, Livro I, título I, artigo VIII. Ao tratar do comportamento a ser adotado
por ministros e oficiais do Santo Ofício, remete a ele também os Familiares do Santo Ofício. Idem, Livro I, título
XXI, artigo I.
517 Opinião de uma testemunha sobre o Familiar Garcia Fontoura. ANTT/TSO-IL Proc. nº 11769.
518 Ibidem.
519 “[...] foram as abjurações em forma características dos réus judaizantes.” E estas corresponderam a 2.288
sentenças do total de 3.770 condenações executadas entre 1707 e 1750”. BRAGA, Maria Luísa. A Inquisição na
época de D. Nuno da Cunha de Ataíde e Melo (1707-1759). Lisboa: Centro de História da Cultura da Universidade
Nova de Lisboa, 1982. p. 186, 188.
520 Ibidem.

174
radores laicos, os Familiares, tanto quanto de seus prisioneiros.521 O reflexo dessa investida
inquisitorial chegou ao Brasil fazendo 555 prisioneiros em diversos crimes, 470 deles (84,6%)
eram judaizantes (268 homens e 202 mulheres).522 Somente para o Rio de Janeiro a estimativa é
de 271 cristãos-novos processados entre 1700 e 1730.523
As prisões ocorriam em Portugal devastando vilas e aldeias, principalmente nas pro-
víncias do norte, como destacou D. Luiz da Cunha, embaixador português contemporâneo
de D. João V, atribuindo à atividade inquisitorial uma das causas do despovoamento e quebra
da economia manufatureira em Trás-os-Montes e Beira Alta, ao levar para o cárcere inúmeras
pessoas e induzir outras tantas a fugir a fim de salvaguardar seus patrimônios do confisco. Eis
o seu relato:
Da mesma sorte dissera que V. A. acharia certas boas povoações quási desertas,
como por exemplo na Beira Alta os grandes lugares da Covilhã, Fundão, e cidade da
Guarda e de Lamego; em Trás-os-Montes a cidade de Bragança, e destruídas as suas
manufacturas. E se V. A. perguntar a causa desta dissolução, [...] e vem a ser que a
inquisição prendendo uns por crime de judaísmo e fazendo fugir outros para fora do
reino com os seus cabedais, por temerem que lhos confiscassem, se fossem presos,
foi preciso que as tais manufacturas caíssem, porque os chamados cristãos-novos os
sustentavam e os seus obreiros, que nelas trabalhavam, eram em grande número, foi
necessário que se espalhassem e fôssem viver em outras partes e tomassem outros
ofícios para ganharem o seu pão, porque ninguém se quis deixar morrer de fome.524

Sob a acusação de realizarem secretamente cerimônias e ritos religiosos judaicos, sessen-


ta cristãos-novos da Bahia, 45 homens e quinze mulheres, ou 21,4% dentre os 280 indivíduos
arrolados por esta pesquisa,525 foram presos pelo Santo Ofício de Lisboa.526 Suas prisões ocor-

521 Anita Novinsky constatou que o aumento das concessões de familiatura para a América portuguesa no século
XVIII (805 habilitandos) reflete o interesse da Inquisição em intervir na colônia. NOVINSKY. A Igreja no Brasil
Colonial: agentes da Inquisição. Anais do Museu Paulista, São Paulo, tomo 33, p. 17-34, 1984. p. 24-25. Veiga
Torres, por sua vez, justifica esse aumento como uma resposta aos anseios de promoção social de uma classe
mercantil que começou a reivindicar seu lugar no Antigo Regime, e demonstra um crescimento inversamente
proporcional entre o número de Familiares do Santo Ofício e o número de prisioneiros, “Com exceção do período
correspondente ao governo do Inquisidor Geral cardeal D. Nuno da Cunha, de reganho excepcional da atividade
repressiva e de alguma quebra na criação de novos Familiares, que contrariava a tendência geral (certamente
devido à política autoritária pessoal desse cardeal) [...]”. TORRES, J. Veiga. Da repressão religiosa para a promoção
social: a Inquisição como instância legitimadora da promoção social da burguesia mercantil. Revista Crítica de
Ciências Sociais, Coimbra, n. 40, p. 105-135, out. 1994. p. 129-130.
522 Em todo o período colonial saíram do Brasil 1.076 prisioneiros da Inquisição, a maioria foi presa no primeiro
quartel do século XVIII. O segundo crime mais punido pela Inquisição na primeira metade do século XVIII foi
bigamia, com 32 penitenciados. NOVINSKY, Anita. Inquisição: prisioneiros do Brasil: séculos XVI-XIX. Rio de
Janeiro: Expressão e Cultura, 2002. p. 28, 39.
523 SILVA, Lina Gorenstein Ferreira da. Heréticos e impuros: a Inquisição e os cristãos-novos no Rio de Janeiro,
século XVIII. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1998. p. 22-23.
524 CUNHA, D. Luiz da. Testamento político. São Paulo: Alfa-Ômega, 1976. p. 63-64.
525 Considera-se nesse capítulo o total populacional de cristãos-novos identificados, 280, e não os 264 com
residência fixa na Capitania da Bahia, como tratado no primeiro capítulo.
526 Todos os penitenciados moradores na Bahia encontram-se arrolados por NOVINSKY, Inquisição: prisioneiros...
op. cit.
175
reram entre os anos de 1700 a 1714 e depois entre 1721 e 1730, quando houve o maior número
de detenções: 35. Doze anos mais tarde, em novembro de 1748, dois irmãos foram levados ao
Tribunal de Lisboa. Outras oito pessoas tiveram suas prisões confirmadas nas confissões de
seus denunciantes, embora desconheçamos em que ano foram executadas. De algumas sabe-
mos apenas o ano em que saíram no auto-de-fé.
O Quadro 11 indica o número de cristãos-novos presos na Bahia a cada ano da primeira
metade do século XVIII (até 1748), para uma melhor visualização daqueles anos em que a per-
seguição foi mais intensa na capital da Colônia. Ressaltamos que nesta amostragem incluímos
apenas o ano da primeira detenção daqueles que foram presos por relapsia, isto é foram presos
duas vezes. Esses terão um outro quadro indicando o ano dos encarceramentos (Quadro 14).

Quadro 11 – Ano de prisão de cristãos-novos da Bahia


Quantidade de cristãos-novos
Ano de Prisão presos por ano
1700 1
1706 1
1708 4
1710 3
1714 3
1721 1
1725 5
1726 11
1727 3
1728 5
1729 7
1730 4
1733 1
1734 1
1748 2
Sem ano de prisão identificado 8
Total 60
Fontes: NOVINSKY, Anita. Inquisição: prisioneiros do Brasil: séculos XVI-XIX. Rio de Janeiro:
Expressão e Cultura, 2002; Processos da Inquisição de Lisboa, arrolados em Fontes e Bibliografia.

Reflete-se na Bahia o que estava a ocorrer em Portugal. Não coincidentemente, a maioria


dos processados era portuguesa. Havia aportado na Colônia durante as três primeiras décadas
do século XVIII, com poucas exceções antes ou depois disso. Sumariamente apresenta-se o se-
guinte índice de naturalidade para esses prisioneiros, distinguindo-os entre homens e mulheres:

176
Quadro 12 – Naturalidade de cristãos-novos presos na Bahia
Naturalidade Homens Mulheres Total
Portugueses 38 8 46
Baianos 3 5 8
Brasileiros 2 - 2
Castelhanos 1 2 3
Sem naturalidade identificada 1 - 1
Total 45 15 60
Fontes: NOVINSKY, Anita. Inquisição: prisioneiros do Brasil: séculos XVI-XIX. Rio
de Janeiro: Expressão e Cultura, 2002; Processos da Inquisição de Lisboa, arrolados
em Fontes e Bibliografia.

A concentração de prisões na Bahia entre 1725 e 1730 encontra também estreita corres-
pondência com a maioria de prisioneiros oriunda do norte de Portugal, parte mais afetada pela
atividade inquisitorial, como disse D. Luís da Cunha. Dentre os 35 penitenciados nestes cinco
anos, seus locais de nascimento estão assim distribuídos:

Quadro 13 – Naturalidade de cristãos-novos presos na Bahia, distinguindo as regiões


portuguesas, Bahia e Castela
Naturalidade Homens Mulheres Total
Norte de Portugal* 20 4 24
Lisboa 1 1 2
Porto 1 - 1
Bahia 2 4 6
Castela 0 2 2
Total 24 11 35
Fontes: NOVINSKY, Anita. Inquisição: prisioneiros do Brasil: séculos XVI-XIX. Rio de
Janeiro: Expressão e Cultura, 2002; Processos da Inquisição de Lisboa, arrolados
em Fontes e Bibliografia.
Nota: * Sobretudo, as Vilas de Mogadouro, Almeida, Nova de Foz Côa,
Lamego, Covilhã e Guarda.

A diferença de proporção entre prisioneiros baianos e portugueses é significativa. Entre


1700 e 1748 contando-se os sessenta prisioneiros, encontra-se uma proporção de 13,3% de
naturais da Bahia presos e 76,6% de portugueses. No ápice da perseguição, entre 1725 e 1730,
este índice calculado sobre os 35 réus portugueses corresponde a 17,1% de “baianos” e 68% de
portugueses vindos das Províncias de Trás-os-Montes, Beira-Alta e Beira Baixa. Nesta época as
mulheres e os naturais da Bahia foram mais frequentemente presos.
Constata-se que a maioria das prisões ocorridas na Capitania da Bahia, especialmente en-
tre 1725-1730 foi contra cristãos-novos de origem portuguesa cujas denúncias foram formuladas

177
por parentes e amigos residentes em Portugal, igualmente presos. Nota-se que a atividade inqui-
sitorial na capital da Colônia foi uma continuidade desta persecução acirrada em Portugal.
Sendo assim, conjetura-se que o baixo índice de “baianos” presos decorre de um possível
distanciamento destes “imigrantes” face aos “antigos” cristãos-novos da Bahia. Em suas confis-
sões não mencionaram os descendentes daqueles que aparecem nas listas dos autos-de-fé da pri-
meira e segunda visitação do Santo Ofício à Bahia, bem como daqueles que foram denunciados
ou processados na Grande Inquirição de 1646 e, no entanto, alguns tinham contato com eles.
Excepcionalmente e em circunstância que não confissão de culpa, mas de elaboração
do Inventário, o senhor de engenho Manoel Lopes Henriques, natural de Covilhã, há décadas
assentado na no Recôncavo baiano, mencionou o nome de Antonio Muniz Barreto, bisneto
daquele senhor de engenho Heitor Antunes que teve sua família penitenciada no século XVI.
Lopes Henriques tinha uma estreita relação com os descendentes de Muniz Barreto de quem
comprara algumas fazendas e em nenhum momento suscitou-lhes culpas de judaísmo.
É provável que os Muniz Barreto não tenham ocultado de Lopes Henriques haver cris-
tãos-novos dentre seus antepassados. Permanece uma indagação sobre o que aconteceu aos
cristãos-novos dos seiscentos dos quais falou Anita Novinsky.527 Assimilaram-se aos cristãos-
-velhos mediante matrimônio, escondendo assim seus sobrenomes e origem?
É preciso ressaltar ainda que do total de sessenta prisioneiros apurados, cinco deles fo-
ram presos duas vezes. Um, pelo Tribunal de Coimbra, cujo ano de prisão não foi identificado.
Outro, pelo Tribunal espanhol de Lerena em 1697 e pelo de Lisboa em 1729, do qual aparece
no Quadro 11 somente a segunda detenção; os demais pelo tribunal lisbonense:

Quadro 14 – Cristãos-novos moradores na Bahia, presos por relapsia


Ano da primeira prisão Ano da segunda prisão (Relapsia)
? (Tribunal de Coimbra) ? (Tribunal de Coimbra)
1697 (Tribunal espanhol) 1729
1714 1731
1714 1728
1726 1737
Fontes: NOVINSKY, Anita. Inquisição: prisioneiros do Brasil: séculos XVI-XIX. Rio de Janeiro:
Expressão e Cultura, 2002; Processos da Inquisição de Lisboa, nos 2293, 2424, 7489, 9001.

Salienta-se que esses quatro cristãos-novos com ano de prisão conhecido eram parentes
entre si, estabelecidos na Bahia em 1700. A família já estava sendo presa por na península ibéri-
ca desde meados do século XVII, e no XVIII as capturas continuaram no Brasil e em Portugal.
Nem todos os sessenta réus, porém, tiveram suas detenções efetuadas na Capitania da
Bahia. João de Morais Montesinhos, natural e morador em Salvador, encontrava-se comer-
ciando na Vila mineira de Ribeirão do Carmo (atual Mariana) quando chegou a ordem para

527 NOVINSKY, Cristãos-novos na Bahia... op. cit., passim.

178
ser cumprida sua prisão; ou Guiomar da Rosa, esposa do comerciante Jerônimo Rodrigues,
moradores também em Salvador, capturada quando estava de passagem pelas Minas.528
Outros sete cristãos-novos, seis homens e uma mulher, ao retornarem provisoriamente
a Portugal ou com o intento de restabelecer moradia em suas vilas natais acabaram sendo leva-
dos ao Tribunal de Coimbra (quatro pessoas), um deles para responder ao segundo processo;529
ou para o Tribunal de Lisboa (três pessoas), como João Gomes de Carvalho e sua esposa que
voltaram à metrópole para começar a vida de casados e Manuel Lopes Henriques que trocou a
Vila de Cachoeira por Lisboa. A mãe desse, Clara Lopes Pereira, antes de ir para o Recôncavo
baiano já havia sido sentenciada por Coimbra, Tribunal que em 1729 condenou também a sua
filha, Luiza Pereira aprisionada quando estava, temporariamente, em Vila Nova de Foz Côa,
terra de seu marido, Francisco Fernandes Camacho.530
Averiguando os Tribunais que julgaram cristãos-novos da Bahia, obviamente o de Lis-
boa teve uma porcentagem muito maior pois a América portuguesa estava sob sua jurisdição:
56 réus foram penitenciados pelo Tribunal de Lisboa e quatro cristãos-novos, todos homens,
processados pelo de Coimbra. O que chama atenção, entretanto, é que a maioria dos réus iden-
tificados era composta por comerciantes, sejam grandes homens de negócios, mercadores de
ida e vinda ou pequenos comerciantes. Observando-se suas atividades econômicas, surgiram
os seguintes números absolutos:

Quadro 15 – Atividades econômicas dos cristãos-novos presos na Bahia


Atividade econômica Número de cristãos-novos presos
Comerciante 24
Minerador 6
Senhor de engenho 1
Lavrador 5
Artesão 4
Médico 2
Cirurgião das naus 1
Boticário 1
Meirinho 1
Total 45
Fontes: NOVINSKY, Anita. Inquisição: prisioneiros do Brasil: séculos XVI-XIX. Rio de Janeiro:
Expressão e Cultura, 2002; Processos da Inquisição de Lisboa arrolados em Fontes e Bibliografia.

528 Os diferentes locais de prisão de cristãos-novos da Bahia deixaram certa confusão a respeito de suas residências.
Especialmente porque como homens de ida e vinda, comerciantes na Colônia sempre passavam longas temporadas
em outras Capitanias. Diogo Nunes Henriques é um exemplo de cristão-novo com casa em Ouro Preto, onde foi
preso, e outra no Recôncavo baiano.
529 Não foi possível identificar o ano em que foi preso. Depois da segunda condenação fugiu para Londres trocando
seu nome para Francisco Martins, sua esposa e filha, contudo, foram sentenciadas. ANTT/TSO-IL Proc. nº 9925.
530 Luiza Pereira e seu marido, Francisco F. Camacho, moraram em vila de Cachoeira onde nasceram seus cinco
filhos. Informações nos processos pesquisados não coincidem o local de sua prisão: Bahia ou Lisboa? Parece que
Luiza Pereira foi relaxada pelo Tribunal de Coimbra. NOVINSKY, Inquisição: prisioneiros do Brasil... op. cit.;
ANTT/TSO-IL Proc. nº 1820.
179
É preciso lembrar que todos os réus desempenhavam mais de uma atividade econômica
sempre vinculada a práticas comerciais. Lavradores eram ao mesmo tempo mineiros, merca-
dores; artesãos também comerciavam não somente seus produtos finais como várias mercado-
rias e, às vezes, iam para as lavras de ouro. Aliás, a mercancia foi única ocupação exercida com
exclusividade entre alguns comerciantes.
Trabalho de Arnold Wiznitzer531 e de Anita Novinsky revelam uma preferência da Inqui-
sição em atuar com veemência em épocas e regiões da Colônia mais desenvolvidas economica-
mente ou, em outras palavras, buscando atividades que sobressaíssem no contexto econômico
de cada época e lugar. Tese que põe por terra a ideia dos cristãos-novos serem naturalmente
inclinados ao comércio, como sugerem alguns estereótipos, e por isso terem papel preponde-
rante no desenvolvimento do capitalismo mercantil moderno, como também aparecerem mais
nos autos da Inquisição, como informa esta citação:
A medida que a colônia brasileira se desenvolvia economicamente aumentava a
fiscalização inquisitorial. Podemos acompanhar o percurso inquisitorial no Brasil nos
séculos XVII e XVIII acompanhando primeiro a rota do açúcar e segundo, a rota do
ouro. Em fins do século XVII, quando o Brasil se tornou o maior produtor de açúcar
do mundo, a Inquisição iniciou a sua investida no nordeste, onde se concentrava a
maior riqueza do Estado e no século XVIII as regiões visadas foram Rio de Janeiro e
Minas Gerais.532

As denúncias
Não houve, na cidade da Bahia, para o período estudado quem fosse ao Comissário do
Santo Ofício denunciar algum dos cristãos-novos arrolados por esta pesquisa, com exceção de
um caso. Os cristãos-novos que aí foram presos se apresentaram ao Comissário ou tiveram seus
mandados de prisão decorrentes de confissões – muitas vezes sob tortura – de parentes, amigos
e conhecidos que viviam principalmente em Portugal e estavam respondendo a processo no
Tribunal de Lisboa ou de Coimbra.533
A população “baiana” não parecia disposta a envolver cristãos-novos nas malhas da In-
quisição. No século XVII, deve-se lembrar, durante a Grande Inquirição de 1646 o governador-
-geral da Bahia, Antonio Teles da Silva, obrigou a população soteropolitana a ir denunciar
judaizantes e outras suspeições de heresia, pois muitos se esquivavam em atender ao chamado
do bispo inquiridor.534
Uma ação inquisitória como esta não ocorreu na Bahia setecentista. Não era a delação
uma atitude corriqueira de cristãos-velhos, escravos e forros, mesmo havendo razões pessoais

531 WIZNITZER, A. Os judeus no Brasil Colônia. São Paulo: Pioneira; EDUSP, 1966, passim.
532 NOVINSKY, Anita. A Inquisição portuguesa a luz de novos estudos. Revista de la Inquisición. Madrid, n. 7, p.
297-307, 1998. p. 303-304.
533 Não houve traslado de confissões ou denúncias anexadas a processos inquisitoriais remetidos pelo Tribunal de
Évora.
534 NOVINSKY, Cristãos-novos..., op. cit., p. 130-131.

180
que a isso pudesse levar, ou forte suspeição de heresia, ou ainda pelo próprio exercício da fun-
ção no que concerne a Familiares do Santo Ofício.
Dois cristãos-velhos, um deles Familiar do Santo Ofício, por motivos diferentes proces-
saram civilmente dois cristãos-novos quando podiam delatá-los ao um Comissário do Santo
Ofício. O Familiar Agostinho de Castro Ribeiro, que parece era inimigo de Diogo de Ávila
Henriques, ao querer processá-lo o fez no foro civil quando poderia denunciá-lo diretamente a
um Comissário. Entretanto, não agiu dessa maneira.
Antonio Gomes de Araújo, cristão-velho, meirinho das execuções da Fazenda Real, ao
ser denunciado pelo cristão-novo Luís Henriques ao Tribunal da Relação da Bahia como la-
drão e falsário no que competia ao seu ofício, processou-o por injúria no Juízo da Provedoria-
-mor. Condenado a degredo para Angola e pagamento de uma alta indenização ao meirinho,
Luís Henriques recorreu no mesmo Tribunal apresentando as provas de sua acusação. Mais
uma vez perdendo a causa, obteve comutação da pena, reduzindo o valor da indenização e
transferindo o degredo para a Capitania do Ceará, onde deveria permanecer por seis anos.535
Há também o caso do cristão-novo Antonio de Miranda que levantou suspeita a um
padre e a seus vizinhos de não ser bom cristão. O padre escandalizou-se quando lhe ouviu
falar que comeria carne se não lhe fornecessem peixe para comer em dia de preceito da Igreja.
Comentando com os amigos o que ouvira, notaram a pouca dedicação de Antonio de Miranda
às obrigações católicas, mas não sabia o padre, até o tempo da prisão de Miranda, que ele era
cristão-novo.536 Não suspeitara?
Narram em outro episódio que, ao encontrarem na praia uma imagem de Jesus e outra
de Santo Antonio, um Miguel Dias, a quem todos conheciam como cristão-novo, e Antonio
de Miranda, debocharam do tal achado. Miranda comentara que estas imagens possivelmente
haviam caído de alguma embarcação que navegava entre Salvador e Recôncavo. Os vizinhos
passaram a desconfiar que o próprio Miranda e esposa as houvessem lançado ao mar. A razão
para esta suspeição não era aquela que recaía a cristãos-novos quando desmistificavam atos
aparentemente milagrosos, pois alegavam não saber da sua origem judaica. A suspeição advi-
nha, nada mais nada menos, do fato do casal ser primo direto, tendo casado por dispensa, e
serem moradores recentes na vizinhança.537 Um escravo a quem Antonio de Miranda recolheu
algumas noites por estar fugindo de uma desavença, certificou em testemunho que em sua casa
preparavam na sexta-feira as refeições do dia seguinte sempre a base de carnes, numa clara
menção ao Shabat, ouvindo de Antonio de Miranda que era para alimentar os escravos que
trabalhavam em seu curtume.
Todas essas pessoas tinham razões e argumentos para delatar esses cristãos-novos ao
Santo Ofício, porém apenas se restringiram a processá-los civilmente e a não favorecerem lhe
serem-lhes favoráveis ao responder os artigos de defesa de alguns deles. Mesmo não sabendo a
origem judaica de Antonio de Miranda, por exemplo, tinham indícios de apostasia ao Catoli-

535 ANTT/TSO-IL Proc. nº 8887.


536 ANTT/TSO-IL Proc. nº 5002.
537 Aliás, em nenhum dos processos inquisitoriais consultados contra membros da família de Antonio de Miranda,
há referência sobre seu parentesco com a esposa, Catherina da Paz.

181
cismo. E aqueles que sabiam se tratar de cristãos-novos, como o Familiar Agostinho de Castro
Ribeiro, por que não denunciou Diogo de Ávila Henriques como criptojudaizante?
O cristão-novo Luís Henriques é um caso curioso. Mesmo tendo fama de desonesto,
criticado por todos inclusive cristãos-novos, seus inimigos não se valeram das diferenças pes-
soais para denunciá-lo ao Santo Ofício. Com razões para executar sua prisão, o Santo Ofício
também nunca o fez. Luís Henriques foi citado como cúmplice de práticas religiosas judaicas
em diversos processos e, segundo uma de suas filhas, chegou a ir às autoridades inquisitoriais
locais apresentar suas culpas.538 Não houve notícia de sua prisão tampouco de mandado não
cumprido.
Denúncia à Inquisição não parece ter sido uma opção para resolver diferenças pessoais,
tampouco para apontar quem deslizava na fé dominante. Apenas um cristão-novo deste gru-
po pesquisado foi apontado por um cristão-velho da Bahia. As acusações não se referiam ao
comumente atribuído criptojudaísmo e sim a proposições heréticas, algumas se reportando ao
milenarismo divulgado pelo Padre jesuíta Antonio Vieira no século anterior.
A denúncia foi contra Manuel Mendes Monforte, já mencionada, que não escondia sua
origem judaica e era reconhecido na cidade de Salvador pela competência em todas as ativida-
des que desempenhava seja como médico, homem de negócios e senhor de engenho e pela sua
dedicação às irmandades que se afiliou. Tinha muitos amigos e clientes ilustres dentre desem-
bargadores, padres e gente da governança.
Dentre os cristãos-velhos com os quais conviveu, uns mais próximos outros nem tanto,
três deles o delataram ao Comissário do Santo Ofício Antonio Pires Gião dez anos antes de ter
seu mandado de prisão expedido por Lisboa. Seus delatores foram um vereador da Câmara de
Salvador, João de Souza da Câmara, um boticário, Manuel Rabelo de Andrade, e um sacerdote
do hábito de São Pedro, Lourenço de Castro Verdelo.539
Em ocasiões diferentes os três ouviram Monforte falar sobre ideias adversas à doutrina
católica, como fazer apologia aos patriarcas bíblicos, questionar ensinamentos da Igreja, cri-
ticar a Inquisição quando foi preso um cristão-novo que sabia não ser judaizante e por não
zelar devidamente de uma imagem de Cristo que mantinha em seu escritório em meio a seus
papéis. Essas acusações foram feitas entre 1711 e 1712, na mesma época em que o capitão-mor
de Parati, Miguel Teles da Costa, foi preso pelo Santo Ofício e confessou que ele e Monforte
haviam declarado mutuamente serem judaizantes.540 Mais ou menos no mesmo período, três
parentes de Monforte que viviam em Lisboa e estavam nos cárceres da Inquisição, confessaram
a mesma culpa. No entanto, quase cinco anos depois, em 1717, o Tribunal de Lisboa recebeu
outra denúncia elaborada pelo mesmo Comissário e prontificou-se a juntar provas contra ele.
Esta segunda denúncia teve uma história controversa. Depreende-se ter sido o próprio
Comissário do Santo Ofício Antonio Pires Gião que a induziu. Conforme o relatório que enca-
minhou aos Inquisidores lisboetas, um sacerdote do hábito de São Pedro e um rapaz conhece-

538 ANTT/TSO-IL Proc. nº 5348.


539 ANTT/TSO-IL Proc. nº 675.
540 BROMBERG, Rachel Mizrahi. Inquisição no Brasil: um capitão-mor judaizante. São Paulo: FFLCH/USP;
Centro de Estudos Judaicos, 1984. Em segunda edição, intitula-se MIZRAHI, Rachel. Miguel Telles da Costa:
capitão-mor judaizante de Paraty. São Paulo: Maayanot, 2015.

182
dor das letras lhe entregaram trechos de um manuscrito herético pertencente a Manuel Men-
des Monforte, de autoria do jesuíta italiano em missão na Bahia, Pe. João Matheus Faletti,541
versando sobre ideias Milenaristas no mesmo teor daquelas pensadas por outro jesuíta, Pe.
Antonio Vieira, episódio sobre o qual já se falou anteriormente.542
Inquiridos o sacerdote e o rapaz, ambos negaram as palavras do Comissário e apresenta-
ram, cada um, sua própria versão para a ocorrência da denúncia. O sacerdote do hábito de São
Pedro, Antonio de Vargas Cirne, contou que dez anos antes havia comentado com o Comissá-
rio Antonio Pires Gião sobre um manuscrito em latim que acabara de ler e não conhecia a au-
toria. O mesmo lhe disse que o autor era o Pe. João Matheus Faletti e pediu-lhe para fazer uma
memória do conteúdo. Ao entregar suas observações foi por ele informado que o manuscrito
versava sobre “matéria proibida”, termo usado.543 O Padre Vargas Cirne declarou-lhe, então, que
Manuel Mendes Monforte havia entregado tal manuscrito a um João Rodrigues Garcia para
trasladar e esse deu-lhe para ler.
O rapaz, João Rodrigues Garcia, serviçal de uma rica senhora de Salvador, negou com-
pletamente que Monforte lhe houvesse feito algum pedido desta natureza. Alegou que vira o
tal manuscrito do Pe. Faletti seis anos antes dessa inquirição, nas mãos do Pe. Vargas Cirne,
e reconheceu a letra do padre autor por este se corresponder com sua senhora para quem ele
lia e respondia as cartas posto que ela não sabia ler nem escrever. A versão apresentada pelo
sacerdote deixa transparecer que o Comissário do Santo Ofício Antonio Pires Gião o induziu
a denunciar o médico pelo temor de suspeitarem a leitura de livros heréticos. O próprio Mon-
forte confirmou ter conhecimento do texto mencionado e seu correlato nos escritos bíblicos.
A sua prisão, no entanto, teve outro elemento propulsor: três confissões de criptojudaís-
mo efetuadas por parentes e contraparentes à Mesa do Santo Ofício na mesma época que essas
denúncias ocorreram na Bahia, por volta de 1711-1712. Todavia, a carta desse Comissário aos
Inquisidores, remetida cinco anos depois, levou ao mandado de prisão que demorou três anos
para ser expedido e um para ser executado. Monforte foi preso em agosto de 1721.
O comerciante Antonio Cardoso Porto teve também uma denúncia anotada em seu pro-
cesso, porém efetuada por um Familiar do Santo Ofício residente em Lisboa. Embarcado no
mesmo navio que o levava e a Diogo Henriques Ferreira da Bahia para Portugal, ouviu desse
cristão-novo que Cardoso Porto casara na Bahia sendo casado na Europa. Acusação investiga-
da pelo Santo Ofício sem comprovação, além dos rumores inverídicos, não chegou a constituir
assunto relevante no processo inquisitorial, mesmo a Inquisição punindo seriamente casos de
comprovada bigamia.
As prisões efetuadas na Bahia tiveram como ponto de partida as confissões de prisio-
neiros residentes na Bahia e nomeadamente em Portugal. Quase todas ocorridas entre 1725 e
1727, um pequeno número pouco depois e menos ainda na década anterior. Ao se verificar a
proveniência dos denunciantes revelam-se os residentes ao Norte de Portugal, sobretudo de Vi-
las e aldeias das regiões de Trás-os-Montes, Beira Alta e Beira Baixa, onde a Inquisição atuava
com grande energia, prendendo ou pondo em fuga seus moradores. Exatamente os locais de

541 Não foram encontradas outras informações sobre esse jesuíta.


542 ANTT/TSO-IL Proc. nº 675.
543 Ibidem.

183
origem de cristãos-novos que chegaram à capital da Colônia nas primeiras décadas do século
XVIII.544
Cristãos-novos apontados por essas pessoas como cúmplices em práticas religiosas ju-
daicas chegaram na Bahia algum tempo antes das denúncias: cinco anos, dez anos, um pouco
mais ou um pouco menos. Diogo de Ávila Henriques e seu primo Diogo de Ávila foram de-
nunciados por seus parentes e amigos presos na Beira Alta.545 Ambos eram naturais de Vilas
vizinhas da Beira Alta, Travasso e Azevo, respectivamente, e moradores em Salvador desde
1719 e 1720, com poucos meses de diferença um do outro.
Diogo de Ávila não teve sequer um dos seus 38 denunciantes morador na Bahia. Espa-
lhavam-se pelas Vilas de Azevo, Trancoso, Travasso, Pinhel, Lamego, dentre outras circunvizi-
nhas. Dentre os 51 prisioneiros que delataram seu primo Diogo de Ávila Henriques como cúm-
plice em criptojudaísmo, 26 eram provenientes destas mesmas localidades. Os demais estavam
por Lisboa, Porto e Bahia.
Gaspar Henriques, irmão de Diogo de Ávila, expressou seu temor em ser preso pelo
Santo Ofício quando recebeu a notícia que um tio estava nos cárceres da Inquisição. Apavo-
rado, desabafou com outros cristãos-novos.546 A um deles chegou a propor “que aceitasse três
créditos que importavam quatro mil e tantos cruzados e os cobrasse como próprios”547 para,
em caso de ser preso e ter seus bens confiscados, o Santo Ofício restituir como pagamento de
dívida e poder usar o dinheiro para sustento de sua família. Quando foi preso, Gaspar tinha
um filho recém-nascido. Essas estratégias de preservação do patrimônio material não eram
estranhas aos cristãos-novos.
Declarações sobre o medo de ser preso são como prenúncios influenciados pela notícia
do encarceramento de potenciais delatores. Em geral, expressavam este medo em momento
próximo à execução das prisões ou da expedição dos mandados de prisão. Ao ser informado da
captura de um amigo, Antonio Cardoso Porto ficou receoso de ser denunciado, como de fato o
foi e outros cristãos-novos da Bahia, todos presos entre 1725 e 1726, amigos de João Gomes de
Carvalho, antigo morador de Salvador, encarcerado quando retornou para Lisboa.548
As prisões em Portugal eram divulgadas em Salvador. Quem recebia a notícia primeiro
encarregava-se de avisar aos outros. O próprio Cardoso Porto, que havia tranquilizado Gaspar
Henriques em seu temor de ser preso, prontificou-se logo a avisá-lo quando soube da detenção
de seu tio, Jorge Henriques Moreno, pai de Diogo de Ávila Henriques.549 Aliás, Diogo de Ávila
Henriques foi informado com muita cautela por Joseph da Costa “de que no Reino se tinham

544 Assunto abordado no primeiro capítulo.


545 Foram 24 parentes e quatorze amigos e conhecidos. ANTT/TSO-IL Proc. nº 2121.
546 Gaspar Henriques disse a Antonio Cardoso Porto que “[...] tinha receios que o Santo Ofício o prendesse por
ter conhecimento de algumas pessoas da Beira que tinham estado presas por este Santo Ofício”. ANTT/TSO-IL
Proc. nº 8887.
547 Ibidem.
548 Em conversa com outro cristão-novo Cardoso Porto disse que “já tinha notícia de que haviam prendido pelo
Santo Ofício a um João Gomes, o qual ele réu tinha conhecimento e receava que o prendessem”. Ibidem.
549 “[...] tinham preso seu tio Jorge Henriques Moreno e que ele também receava que o prendessem.” ANTT/TSO-
IL Proc. nº 6486; Jorge Henriques Moreno, preso em agosto de 1725 pelo Tribunal de Coimbra, denunciou sob
tortura a seu filho Diogo de Ávila Henriques. ANTT/TSO-IL Proc. nº 2121.

184
feitas muitas prisões no Santo Ofício”.550 Talvez esse, movido por compaixão, não quis informar
que seu pai havia sido um dos recentemente capturados. Joseph da Costa percorria portos
d’além-mar negociando escravos e, seguramente, obtinha informações atualizadas vindas de
Portugal.
As confissões dos prisioneiros da Bahia envolviam sempre e invariavelmente as mesmas
pessoas aí moradoras, formando um círculo que se fechava em si mesmo, constituindo, talvez,
uma das razões a influenciar o levantamento populacional desta pesquisa. Esse grupo de pesso-
as, entrecruzado paulatinamente pelos diversos processos inquisitoriais analisados, encadeava
uma teia de relacionamentos de diferentes naturezas: parentela, amizades, parcerias econômi-
cas, contatos fortuitos. Com diferentes condições socioeconômicas, não obstante haver algo
em comum as unindo, reconheciam-se em uma mesma origem judaica e declaravam-se mu-
tuamente criptojudaizantes – ou pelo menos era isso que afirmavam aos Inquisidores. Muitas
vezes sob tortura física, eram obrigados a inculpar todas as pessoas conhecidas, mormente
parentes diretos.
Denúncia por parentes diretos (pais, filhos, irmãos, cônjuge) era a mais apreciada pelos
Inquisidores porquanto caracterizasse legítima culpa de criptojudaísmo. O réu que não denun-
ciasse ao menos o seu núcleo familiar era considerado diminuto, ou seja, suas confissões não
foram completas, reservando-lhe punições severas. Os pais dos réus muitas vezes já haviam
passado pelos cárceres secretos e eram sempre os primeiros a ser denunciados pelos filhos,
sobretudo porque deles advinha o ensinamento religioso, uma das primeiras interrogações dos
Inquisidores. Algumas vezes relutavam muito para incriminar seus entes mais queridos.
Jerônimo Rodrigues, por exemplo, não havia confessado sobre seu filho, Joseph Rodri-
gues Cardoso, no correr de seu processo. Depois de sentenciado pelo Tribunal de Lisboa (16 de
outubro de 1729), retornou à Mesa do Santo Ofício para confessar práticas criptojudaicas que,
disse, realizaram juntos. Falou dele e de outros cristãos-novos da Bahia que foram ou estavam
presos. O que o moveu a tomar essa decisão? A captura de seu filho ocorreu um mês após
promulgada sua sentença. Que lhe restava fazer? Sabendo que seria implicado por alguém que
não mencionou o nome, agravando o fato de ser seu filho, resolveu retornar e confessar que
haviam declarado mutuamente crentes na “Lei de Moisés” quando Joseph Cardoso tinha doze
para treze anos de idade.
O depoimento mais pleno de sentimentos foi o de Félix Nunes de Miranda. Ele não havia
denunciado sequer seus inimigos pessoais. Em vão, defendia-se nas sessões de contraditas. Era
considerado réu diminuto. Às vésperas do auto-de-fé, já com as mãos atadas, como era praxe
nestes casos, dando oportunidade para o réu confessar e ser garroteado antes de acenderem a
fogueira, Félix Nunes de Miranda sabia do seu destino e por isso declarou aos Inquisidores:
[...] pois sendo até agora da razão de sangue o que embargava para descobrir sua
mulher e filhos, como não pode antepor a sua salvação respeito algum humano, chega

550 ANTT/TSO-IL Proc. nº 2121.

185
a dizer o que mais lhe custa, somente por merecer a piedade de o admitirem ao grêmio
da Igreja [...] e que com ele se use de piedade e misericórdia, e mais não disse.551

Félix Nunes de Miranda clamava não haver confessado até o momento que soube da sen-
tença, por que se fizesse o contrário, denunciaria seus entes mais queridos. Para a Inquisição,
como é sabido, a prática religiosa criptojudaica estava sujeita à intimidade familiar. Contudo,
ao encontrar-se à beira da morte anunciada, Félix optou por seguir o conselho da admoestação
feita a cada sessão do processo alertando para não sobrevir “respeito algum humano”, isto é,
não omitir pessoa alguma por mais cara que fosse, por que isso era essencial ao julgamento.
Não houve outra saída, além de aceitar a culpa e denunciar sua família, para “salvar-se”, ele
mesmo, da Inquisição.
Félix Nunes de Miranda foi obrigado a acusar seus filhos e esposa para tentar salvar sua
vida. Um dos seus filhos já estava preso, mas ele não sabia. Relacionou todos os cristãos-novos
que lembrava, relatou práticas criptojudaicas supostamente ocorridas muitas décadas antes.
Porém, não conseguiu alcançar a misericórdia que esperava.
Outro filho seu, Miguel Nunes de Almeida, preso meses depois que ele, procurou não
agravar a causa do pai. À transmissão da memória religiosa judaica sempre atribuída aos pro-
genitores, Miguel indiciou o tio paterno já falecido. Sua mãe e irmãos, que a esta altura se
encontravam “refugiados” em Londres, foram delatados logo na primeira sessão de interro-
gatório, mas retardou a mencionar seu pai.552 Somente deve feito em uma das duas sessões de
tortura a que foi submetido e da qual os Inquisidores não anotaram a confissão no processo.
Sem saber da pena capital aplicada ao pai, omitir seu nome seria, para Miguel, o mesmo que
assinar a sua própria sentença de morte.553
Notável foi a atitude do pai de Diogo de Ávila Henriques e do pai de Gaspar Henriques
e Diogo de Ávila. Os irmãos Jorge Henriques Moreno e Francisco Vaz, moradores em Portu-
gal, ao cogitarem uma apresentação ao Tribunal de Coimbra “ajustaram entre si dizerem de
seus filhos que estavam na Bahia”.554 Por precaução, evitando que seus filhos fossem presos em
consequência de suas confissões, aguardaram até que eles recebessem a carta em que pediam
para não tardarem em ir confessar às autoridades inquisitoriais locais. O final, porém, não foi
o esperado.
Nenhum cristão-novo denunciou espontaneamente outrem aos Comissários da capital da
colônia. Voluntariamente, se é que se pode considerar assim, foram identificados apenas cristãos-
-novos que dirigiam-se aos Comissários locais, ou mesmo diretamente à Mesa do Santo Ofício
em Lisboa, dizer que tinham culpas a confessar. Eram os chamados réus apresentados. As circuns-
tâncias que os levavam a tomar essa atitude estavam alicerçadas no temor de serem denunciados

551 Ao dizer que “não pode antepor a sua salvação respeito algum humano”, Nunes de Miranda referia-se a um
trecho das admoestações da Inquisição que perpassaram os séculos, induzindo o réu a confessar sobre todos e
tudo, dizendo inclusive: “abra os olhos da alma deixando respeitos humanos que os possa impedir”. ANTT/TSO-
IL Proc. nº 2293.
552 ANTT/TSO-IL Proc. nº 9249.
553 Ibidem.
554 ANTT/TSO-IL Proc. nº 6486.

186
pelos recém aprisionados, além de, desta maneira, conquistarem uma penitência menos severa e
um julgamento mais rápido. D. Luiz da Cunha os perfilou magistralmente nesta intenção:
Os que se vão apresentar ao Santo-Ofício não o fazem por arrependidos; mas quando
ouvem que algum seu amigo ou parente foi preso e o poderá acusar, porque ignora
que outros o tenham feito, vai pedir perdão, nomeando tôdas as pessoas que conhece,
ou lhe vem à cabeça, de maneira que sendo inválido o seu testemunho, não ficaria no
secreto as pessoas para fazerem prova contra outras; [...].555

No grupo estudado foram encontrados nove cristãos-novos nesta condição, quatro ho-
mens e cinco mulheres. Manuel Nunes da Paz que viveu na Bahia e em Minas Gerais, ao ir a
Lisboa apresentou culpas de criptojudaísmo ao Santo Ofício.556 Sua apresentação precipitou,
talvez, a de João de Morais Montesinhos, sobre quem foi relatado o sofrimento nas mãos de
um Familiar do Santo Ofício.
Assim que soube do envolvimento de seu amigo na Inquisição, Montesinhos procurou
imediatamente um Comissário do Santo Ofício na Bahia.557 A denúncia de Manuel Nunes da
Paz é a primeira registrada no processo de Montesinhos. A seguinte ocorreu um mês após sua
apresentação. Os Inquisidores, no entanto, mandaram capturar Montesinhos quando houve ou-
tras denúncias. A última confissão em que Montesinhos aparece como cúmplice de criptojudaís-
mo ocorreu em setembro de 1729. Dois meses depois sua prisão foi executada nas Minas Gerais.
A mesma suposição de ser delatada por Manuel Nunes da Paz levou Guiomar da Rosa,
castelhana de nascimento, a se apresentar ao Comissário local. Ela e seu marido, Jerônimo Ro-
drigues, eram parentes em diferentes graus deste cristão-novo com quem tinham boas relações
sociais. Jerônimo Rodrigues sabia que seria delatado pela esposa, como o foi em sua primeira
audiência, e por seu primo Manuel. Porém, hesitou em ir lançar culpas contra a si mesmo,
somente o fazendo mais de um ano após Guiomar da Rosa ser sentenciada e quando já havia
muitas confissões contra ele feitas por parentes e amigos de Portugal e da Bahia.
Ângela de Mesquita e sua irmã Branca Rodrigues foram diretamente aos Inquisidores
de Lisboa quatro dias após a mãe e o marido de Ângela serem entregues ao Tribunal:558 “da sala
mandou pedir audiência pelo porteiro” do Palácio dos Estaus.559 Sabiam que, mesmo sob tortu-
ra, seus nomes seriam revelados e anotados no rol de suspeitos da Inquisição.
Maria Bernar (ou Bernal) de Miranda, parente de muitos penitenciados, um ano antes
que houvessem denúncias formuladas contra ela, apresentou-se a um Comissário do Santo
Ofício no Rio de Janeiro, onde assistia em casa de seu irmão Manuel Nunes Bernal. Permane-

555 CUNHA, D. Luiz da, op. cit., p. 84-85.


556 ANTT/TSO-IL Proc. nº 9542.
557 Manuel Nunes da Paz chegou a Lisboa em setembro de 1727 e em outubro foi ao Palácio dos Estaus. Montesinhos
encaminhou sua apresentação a um Comissário da Inquisição na Bahia em dezembro do mesmo ano. Ibidem;
ANTT/TSO-IL Proc. nº 11769.
558 Cardoso Porto e Francisca Henriques foram entregues ao alcaide do Santo Ofício de Lisboa em 22 de novembro
de 1726, Ângela de Mesquita e Branca Rodrigues apresentaram-se a 26 do mesmo mês e ano. ANTT/TSO-IL
Proc. nº 5348.
559 Ibidem.

187
ceu em liberdade até 16 pessoas denunciarem-na dois anos depois; partiu para Lisboa e teve
processo aberto pelos Inquisidores.560
Nem todos os réus apresentados permaneceram detidos nos cárceres secretos, o que já
era uma vantagem. Ficavam obrigados a ir uma ou duas vezes por dia à Mesa do Santo Ofício,
exceto em dias de feriado, alguns com hora marcada às sete horas da manhã, até a o processo
ser concluído. Passavam-se meses, ou anos, para julgarem a causa e o cristão-novo a cada dia
estava lá, marcando sua presença.
Diogo Henrique Ferreira, apresentou-se em 27 de novembro de 1726 no Tribunal de
Lisboa. Até sair sua sentença, em sete de abril de 1728, ia à Mesa do Santo Ofício duas vezes por
dia. Jerônimo Rodrigues, seu amigo, teve uma passagem menos exigente. Seu processo foi jul-
gado em quatro meses, e todos os dias, às sete horas da manhã, comparecia ao Estaus. Ângela
de Mesquita, esposa de Antonio Cardoso Porto, era obrigada a dar sua presença todos os dias
às oito horas da manhã e às duas horas da tarde. Procedimento não aplicado a João de Morais
Montesinhos e Manuel Lopes Pereira, que ficaram detidos.
Montesinhos foi capturado em Minas Gerais, ou porque já havia denúncias contra ele ou
porque os Inquisidores o queriam ouvir em confissão. Lopes Henriques entrou nos cárceres se-
cretos um ano após sua apresentação, ao ser chamado para responder aos interrogatórios sobre
sua crença. Os Inquisidores consideraram sua prisão necessária, mas ele, como Montesinhos,
teve sua causa como réu apresentado.561
Excepcional foi o caso do médico Francisco Nunes de Miranda. O Tribunal de Lerena
expedira um mandado de prisão contra ele em 1697, em consequência de denúncias efetuadas
por seus sobrinhos presos pelo mesmo Tribunal. Nesta época, morando em Castela com alguns
parentes, Francisco conseguiu fugir para Portugal antes de o mandado ser executado. Por con-
seguinte, o Tribunal de Lerena transferiu a ordem de prisão para o Santo Ofício português, que
a mandou executar em fevereiro de 1700. A esta altura, Francisco já estava a caminho da Bahia,
fugindo do encarceramento.
Assim que desembarcou em Salvador, novembro de 1700, Francisco Nunes de Miranda
foi capturado. Como se apresentara voluntariamente ao Tribunal de Coimbra há mais de trinta
anos, sua causa foi julgada conforme os procedimentos para réus apresentados sob alegação
de ter confessado culpas pela primeira vez sem que houvesse denúncias contra ele. Seus bens
não foram sequestrados, sua pena limitou-se a penitências espirituais e instrução ordinária nos
mistérios da fé. Em 1701 estava de volta à Bahia atuando como médico.
Os processos dos cristãos-novos “apresentados” eram, em geral, mais breves. As causas
mais longas encontradas nesta categoria estenderam-se de um ano e cinco meses a um ano e
oito meses, sendo que o primeiro réu respondeu a processo fora dos cárceres e o outro per-
maneceu detido. A causa de Jerônimo Rodrigues levou exatamente quatro meses e quinze dias
para ser concluído. Na qualidade de reincidente, e por confessar espontaneamente culpas de
desobediência (ausentar-se de Portugal sem autorização do Santo Ofício), Brites Lopes teve seu
segundo processo encerrado em exatos trinta e cinco dias.

560 ANTT/TSO-IL Proc. nº 1820.


561 ANTT/TSO-IL Proc. nº 7201.

188
Os bens desses indivíduos apresentados dificilmente eram confiscados, às vezes seques-
trados. Suas condenações eram relativamente leves em comparação às demais. Ficavam obri-
gados a cumprir penitências espirituais, serem instruídos na doutrina católica, confessarem
e comungarem em dias prescritos pela Igreja; quando se lhe punham o hábito penitencial o
tiravam depois de acabado o auto-de-fé. Entretanto, deveriam requerer licença para saírem do
Reino, muitas vezes impedidos definitivamente impedidos de deixar Lisboa.562
Outros cristãos-novos se dispuseram a assumir culpas, embora não movidos pela “es-
pontaneidade”. Sabiam que seriam acusados, queriam abreviar suas causas e poupar seus bens
do confisco. Alguns cristãos-novos chegaram a mostrar a intenção em ir diante de uma autori-
dade inquisitorial, não o fazendo por diversas razões dentre elas sentirem-se inocente, seja por
serem religiosos católicos, seja por não serem religiosos judaizantes, por não considerarem o
judaísmo matéria de crime, ou tentando livrar-se de severas condenações, como o fez Diogo de
Ávila Henriques dizendo que caso fosse culpado não cuidaria das alfaias de sua casa, e assim
“cuidara em se apresentar-se [sic] para salvar os seus bens, o que não o fez por que se tem a
estar certo de sua inocência”.563 Os exemplos são muitos.
A incerteza do que aconteceria no Palácio dos Estaus não deixava a apresentação se
transformar em uma “arma de defesa” dos cristãos-novos. Poucos se arriscavam, em atitude de
coragem ou de pânico. Manuel Nunes Sanches, mineiro assistente em Araçuaí, foi desaconse-
lhado por um médico cristão-novo a apresentar-se no Santo Ofício, sem dar-lhe razão alguma.

A violência, o medo e as estratégias de defesa


O Santo Ofício dava oportunidade ao prisioneiro em participar de uma mise-en-scène de
legitimação dos procedimentos de condução dos processos, fazendo com que os argumentos e
as acusações nunca fossem refutados assertivamente pelo. Eram os já mencionados artigos de
defesa, coartadas e contraditas, momento em que o réu, sem conhecer o nome de seus delato-
res, questionava a respeito do tempo e do local onde disseram que ocorreu o crime imputado,
apresentava um álibi e testemunhas abonatórias de sua fidelidade à religião católica e tentava
provar que a prisão partia de inimigos interessados em vingança pessoal. Ele contestava o que
lhe era possível saber vagamente, por suposição e apresentava testemunhas que deveriam ser
todas cristãs-velhas, excepcionalmente houve testemunho de cristãos-novos.564
A defesa propiciada pela Inquisição nunca teve o resultado que os réus esperavam, nem
era esta a intenção. Não lhes traziam benefício algum, ao contrário, arrastavam-se por mais
tempo nos cárceres da Inquisição esperando os interrogatórios serem realizados nas mais lon-
gínquas vilas e lugares de Portugal ou do Brasil. Até que ponto a defesa apresentada pelos réus
interferia no julgamento da Inquisição?

562 “E isso mesmo se guardará com os apresentados fora do tempo da graça, que abjurarem na mesa do S. Ofício,
aos quais se não fará sequestro em seus bens, nem lhes serão confiscados, por ser assim conveniente [...]”.
REGIMENTO do Santo Ofício da Inquisição, Livro III, Título I, art. 5.
563 ANTT/TSO-IL Proc. nº 2121.
564 Já mencionado que no processo contra Antonio Cardoso Porto, o casal cristão-novo Félix Nunes de Miranda
e Grácia Rodrigues prestou depoimento considerado válido pelos Inquisidores. ANTT/TSO-IL Proc. nº 8887.

189
Diogo de Ávila Henriques usou de todo o seu direito de defesa. Em várias sessões da
“prova da justiça” elaborou 20 artigos de coartadas tentando provar sua ausência no tempo
e local declarado pelas testemunhas e ser um bom católico. E mais 51 artigos de contraditas
nomeando inimigos e a razão da animosidade, em uma tentativa frustrada de demonstração
da má intenção de seus delatores ao irem denunciá-lo. Nomeou 61 testemunhas de defesa resi-
dentes em Portugal e na Bahia.
Passados cinco anos no cárcere, apresentando e reapresentando artigos de defesa os In-
quisidores de Lisboa irritaram-se com sua persistência e lhe perguntaram sobre sua real pre-
tensão: “se o que alega nos ditos artigos de coartadas e contraditas se passou na verdade ou vem
com eles para embaraçar e dilatar sua causa?”.565 Responde-lhes o réu: “por passar na verdade,
só vem com os ditos artigos por entender que fazem a bem de sua justiça, e não por dilatá-la
ou embaraça-la.”.566
Ávila Henriques continuava sem confessar e a proceder com sua defesa. Os Inquisidores
concluem o seu processo considerando
E posto que o réu artificiosamente pretende debilitar esta exuberante prova da Justiça
com a grande quantidade de coartadas e contraditas com que veio [...] devia ser
entregue à justiça secular e confiscação de todos os seus bens.567

Julgado “herege, negativo e pertinaz”, confessou de mãos atadas a dois dias da promulga-
ção de sua sentença.568 Denunciou inicialmente seus pais, irmã, tios, seguindo um rol de pesso-
as cujo grau de parentesco se distanciava. As declarações de criptojudaísmo, exceto uma ocor-
rida na Bahia, remontavam a Portugal, principalmente a Azevo, sua terra natal, e recobriam
as práticas comuns a todos os processos. Sua pena foi então comutada e saiu vivo do cárcere.
O mesmo procedimento de defesa teve Félix Nunes de Miranda, desafeto declarado de
Ávila Henriques. Como ele, tentou provar que sua prisão decorria dos falsos testemunhos pro-
feridos por seus inimigos e que era um bom católico. Com bem menos artigos de defesa que
Ávila Henriques, os Inquisidores deram o processo por concluso, considerando-o réu “con-
victo, confesso, diminuto impenitente e relapso no crime de heresia e apostasia e que foi e ao
presente é herege e apóstata de Nossa Santa Fé”.569 Mesmo confessando de mãos atadas, como
fez Ávila Henriques, sua pena não foi comutada.
O que funcionava mesmo como defesa contra o Santo Ofício eram as alternativas que
os cristãos-novos, eles mesmos, criavam, descobriam e punham em prática. A fuga era a mais
comum. Cristãos-novos da Bahia temerosos em serem presos como reincidentes (relapsos) e
seus parentes que ainda não haviam sido capturados, partiam para longe do reino português

565 ANTT/TSO-IL Proc. nº 2121


566 Ibidem.
567 Ibidem.
568 Proferida a sentença de morte e o réu já estando de mãos atadas “não pode mais purgar suas diminuições, ou
seja, as omissões, na confissão pelo tormento, e só escapa à morte na hipótese de acertar cabalmente com a culpa
e com as testemunhas.” LIPINER, Elias, op. cit., p. 45.
569 ANTT/TSO-IL Proc. nº 2293.

190
ou arriscavam-se a ir para Angola, como o artesão, minerador e comerciante João da Cruz, que
se mudou da Bahia para Luanda depois de sentenciado pelo Tribunal de Lisboa em 1714.570
Aos sentenciados, mudar para outros reinos ou conquistas portuguesas constituía uma
infração ao Regimento da Inquisição que os impedia de sair do Reino português sem licença
prévia do Santo Ofício.571 Mesmo assim partiam, e partiam também após desconfiarem de te-
rem sido denunciado ou de ter notícias que um parente longínquo foi detido. Partiam mesmo
antes de qualquer suspeição.
Londres foi o refúgio preferido pelos cristãos-novos que saíam da Bahia. Dois filhos de
Manuel Mendes Monforte foram estudar no Reino Unido e não se teve mais notícias deles.
Branca Lopes, ou Cardoso, irmã do advogado Gabriel Álvares da Fonseca, moradores na Vila
de Cachoeira, partiram não se sabe para aonde, mas houve quem informasse que estavam em
Londres.572
A prisão por relapsia, reincidência, de Félix Nunes de Miranda e a subsequente de um de
seus filhos foi motivo para que sua esposa, Grácia Rodrigues, partisse para a Inglaterra levando
os filhos menores.573 Longe das perseguições, talvez Grácia procurasse alguma comunidade
judaica, assim como o fez Francisco Fernandes Camacho, após duas condenações e a sentença
de morte proferida contra sua esposa Luiza Pereira.574
Um relato detalhado de fuga para Londres foi feito pela filha deste casal, Brites Lopes, já
condenada aos dezoito anos de idade. Sua narrativa permitiu reconstituir a história seguinte:
após a execução da pena de morte de sua esposa, Francisco Camacho, ao que tudo indica, es-
tava temeroso por seu destino de réu reincidente. Saiu da Bahia em 1726, avisando a todos que
iria para Algarves, Portugal, e, incógnito, desviou o caminho para Londres. Seus filhos ficaram
entregues à própria sorte. Brites Lopes viu-se sozinha com seus quatro irmãos para cuidar. Seu
irmão mais velho, Antonio, era mais novo do que ela, tinha 16 anos de idade. Morava na Vila
de Cachoeira, região do Recôncavo baiano onde nasceu e para onde retornou depois de cum-
prir pena no Santo Ofício. Vivia pobremente como costureira, com uma freguesia satisfatória
apenas para cobrir as despesas.
Desamparada, sem recursos materiais, alegava não ter parentes na Capitania em con-
dições de abrigá-los. Sua avó Clara Lopes Pereira e seus tios maternos e paternos não mais se
encontravam na vila de Cachoeira. Retornaram a Portugal ou se dispersaram pela Colônia ou
estavam no Santo Ofício. Brites e seus irmãos foram acolhidos por um tio em Lisboa, Manuel
Lopes Pereira, que havia sido comerciante no Recôncavo baiano por alguns longos anos.575
Com a subsequente prisão e confisco dos bens deste tio, Brites e seus irmãos acompanharam,
mais uma vez, o padecimento dos parentes. Seu destino pareceu mudar de rumo ao receber

570 ANTT/TSO-IL Proc. nº 9089.


571 REGIMENTO do Santo Ofício, Livro III, Título XXVII, art. 6.
572 ANTT/TSO-IL Proc. nº 2293.
573 A primeira prisão de Félix ocorreu em 1697, no Tribunal de Lerena, Espanha; seu filho Miguel Nunes de
Almeida seguiu para os cárceres de Lisboa em novembro de 1729, onze meses depois de seu pai. Quando Félix
foi “relaxado à justiça secular”, em 1731, Miguel ainda encontrava-se preso. ANTT/TSO-IL Proc. nº 2292; 9248.
574 O “relaxamento à justiça secular” de Luíza Pereira é registrado na lista de denunciantes contra Maria Bernar de
Miranda. ANTT/TSO-IL Proc. nº 1820. Há indícios de que foi julgada pelo Tribunal de Coimbra.
575 Seu sobrinho e homônimo continuou a residir na Capitania do Rio de Janeiro.

191
uma carta enviada por seu pai da Inglaterra. Francisco Camacho pedia para seus filhos irem
juntar-se a ele em Londres, de onde somente poderia sustentá-los.576 Cautelosamente, ressaltou
que poderiam continuar no catolicismo frequentando as missas da capela do Enviado “deste
reino de Portugal”.577
O sigilo que envolveu a preparação da viagem teve uma conotação de fuga. Antonio,
irmão mais velho de Brites, a persuadiu a ter a mesma atitude do pai informando aos parentes
uma viagem a Algarves. E assim fizeram. Embarcaram em um navio com destino a Londres.
Nem bem zarparam de Lisboa, Brites e outros passageiros sentiram grave mal-estar físico obri-
gando o navio a regressar. Passados 15 dias, certamente temendo que a Inquisição descobrisse
seu propósito de fuga, Brites precipitou-se em ir à Mesa do Santo Ofício revelar sua malograda
viagem. Ela era uma cristã-nova que já havia sido julgada pela Inquisição e isto a impedia de
sair do Reino sem conhecimento prévio dos Inquisidores.
Nas justificativas aos inquisidores contou sobre a fuga do pai, o longo período em que
ficou sem notícias dele e, sobretudo, o estado miserável em que se encontrava:

[...] por ela, Brites Lopes, ser de poucos anos, solteira e pobre e estar
em casa de seu tio Manuel Lopes Pereira que veio preso por esta
Inquisição [...] e haver na dita casa muita família e não ter com que
se sustentar, resolveu embarcar para Londres[...].578

Brites Lopes respondeu seu curto segundo processo em liberdade. Na sentença foi ano-
tada em um Termo de Repreensão, ficando constrangida a não mais sair de Lisboa sem autori-
zação do Santo Ofício.579 Não obstante alegar ter dificuldades para formar uma nova freguesia
como costureira em Lisboa, teve que provar sua obediência à Inquisição prometendo em jura-
mento que iria “buscar um cômodo ou se sustentar de seu trabalho” para não ter mais necessi-
dade de fugir.580 A cidade de Lisboa tornou-se seu cárcere perpétuo.
Ao olhar dos Inquisidores sua saída para Inglaterra, ainda que frustrada, foi considerada
uma fuga. Para o Santo Ofício qualquer penitenciado que partisse de Portugal era um fugitivo.
A Inglaterra era mal vista pela Inquisição, pois havia comunidades judaicas, assim como em
Holanda e França, e no Reino Unido o Catolicismo ainda sobrevivia na clandestinidade. O
comportamento de Francisco Camacho abona a afirmação de Saraiva: “para se por a salvo de
novas prisões, o Cristão-novo que já conheceu o cárcere abandona a pátria na primeira opor-
tunidade. ‘A navegação mais fácil que acha é para a Holanda, Inglaterra ou França’ [...]”.581

576 Segundo relato de Brites Lopes, Francisco Camacho escrevera: “para que fosse ela [...] com seus irmãos para sua
companhia por que da Inglaterra, ele não podia assistir com coisa alguma”. Esta carta não foi anexada ao processo
inquisitorial. ANTT/TSO-IL Proc. nº 9925.
577 “[...] podia servir a Deus porque também em Londres se dizia Missa e faziam os ofícios divinos na capela do
Enviado deste Reino de Portugal [...]”, referindo-se ao culto a D. Sebastião. Ibidem.
578 Ibidem.
579 Ibidem.
580 Ibidem.
581 SARAIVA, op. cit., p. 146.

192
Além da fuga do Reino, a mudança de nome era um estratagema que funcionava bem até
ser descoberto. Aliás, o pai de Brites Lopes ao fugir para Londres mudou seu nome.582 O caso
mais explícito e complexo foi o de Antonio Cardoso Porto.
Antonio Cardoso Porto foi uma personagem que não existia até quando Belchior Men-
des Corrêa, por volta dos vinte anos de idade, percebeu rumores de denúncias contra ele. Era
um cristão-novo. Carregava o nome de seu avô que já havia sido penitenciado pelo Santo Ofí-
cio. O medo de ser preso era latente. Mudou seu nome e escondeu sua filiação cristã-nova.
Conseguiu assim viajar pela Europa sem deixar rastros para a Inquisição. Andou pelo interior
de Portugal, viveu na Espanha, esteve na Holanda e talvez Inglaterra e Alemanha. Foi na França
que se integrou a uma comunidade cristã-nova em Saint-Esprit-lès-Bayonne, permanecendo
aí por quase dezessete anos.583 Ficou conhecido por todos como Antonio Cardoso Porto, filho
de um casal cristão-velho português de Celorico, Raphael da Silveira, cirurgião, e Clara da
Silveira, criado em Espanha por um parente ou amigo desses seus pais, Sebastião Rodrigues
de Cascaes, que o tomou como filho e com quem viveu até os vinte anos de idade na Espanha.
Com esta identidade correram os proclamas de seu casamento na Bahia e houve teste-
munhas que a confirmaram. Assim também compôs sua genealogia no Santo Ofício dizendo
ser filho ilegítimo do referido casal, embora não estivesse completamente certo porque essa in-
formação ouviu daquele que dizia ser seu pai adotivo, Rodrigues de Cascaes. Nas interpelações
dos Inquisidores e nas conversas com seu companheiro de cela, Cardoso Porto apresentou dife-
rentes histórias de sua paternidade cristã-velha e infância na Espanha. Em certo momento, ele
mesmo requereu aos Inquisidores para investigar sua “qualidade de sangue”, embora soubesse
que isto revelaria seus pais verdadeiros, ambos cristãos-novos.584 Adiava assim uma confissão
de fé judaica.
Em Celorico, sua terra natal, informaram sobre sua origem cristã-nova. Seguindo as
pistas das testemunhas de Portugal, pais e nome verdadeiros foram descobertos, até seu irmão
Diogo de Ávila Seixas, sobre quem omitira. Encontraram Ávila Seixas preso no Tribunal de
Coimbra, com prisão efetuada, coincidentemente, dois meses depois de Cardoso Porto ser en-
tregue ao Tribunal de Lisboa. Seu depoimento esclareceu parte da história de Cardoso Porto.
Diogo de Ávila Seixas e Belchior Mendes Correia eram filhos do casal cristão-novo João de
Ávila Seixas e Brites Mendes da Silva, naturais e moradores em Celorico, onde sempre viveram.
Após a morte de sua mãe e já sendo falecido o seu pai, Belchior resolveu partir para a Espanha,
aos vinte anos de idade. Algum tempo depois, Diogo de Ávila Seixas o reencontrou preso em
Madri por negócios envolvendo tabaco e pediu a um tio que morava na Espanha para provi-
denciar sua soltura. Nunca mais tiveram notícias um do outro.

582 Francisco Fernandes Camacho passou a chamar-se Francisco Martins. ANTT/TSO-IL Proc. nº 9925.
583 Sobre esta comunidade de cristãos-novos portugueses e espanhóis retornados ao Judaísmo, o historiador
francês Gerard Nahon publicou uma série de documentos: Les “nations” juives portugaises du Sud-Ouest de la
France (1684-1791). Paris: Fundação Calouste Gulbenkian; Centro Cultural Português, 1981. (Coleção Fontes
Documentais Portuguesas, v. XV). Les Registre des Deliberations de la Nation Juive Portugaise de Bordeaux (1711-
1787). Paris: Fundação Calouste Gulbenkian; Centro Cultural Português, 1981. (Coleção Fontes Documentais
Portuguesas, v. XIV).
584 ANTT/TSO-IL Proc. nº 8887.

193
Cardoso Porto manteve esta identidade exterior até a sessão de tortura que o fez confes-
sar nome e pais verdadeiros. Ao seu companheiro de cela no Santo Ofício, revelou que “fizera
toda essa mudança de nome por conhecer que no próprio teria culpas de judaísmo neste Santo
Ofício”.585 Confuso na prisão, sem saber para que lado articular argumentos de defesa, e não
conseguindo provar ser cristão-velho, disse aos Inquisidores que era judeu professo. Inseguro
nesta tentativa, comentou na cela que se descobrissem a circuncisão diria que ela foi feita aci-
dentalmente, em consequência de brincadeiras de amigos em uma estalagem onde se hospeda-
va.586 Já quase no final de seu julgamento os Inquisidores solicitaram uma perícia médica que
comprovou não haver sinal algum de circuncisão.587
A Inquisição somente podia julgar os cristãos batizados, não um judeu professo. Sendo
cristão-velho não lhe recairia facilmente culpas de criptojudaísmo. Entretanto, Cardoso Porto
estava perturbado e se contradizia. Sabia que para sair com vida dos cárceres era obrigado a
reconhecer culpas. Contou ao seu companheiro de cela, quem tudo informava aos Inquisidores,
que se estes insistissem em lhe atribuir apostasias, ele continuaria na sua defesa, embora isso
pudesse levá-lo à morte. E, para comprovar ser judeu professo, mandaria trazer da Bahia um ca-
lendário judaico adquirido em França, indicando todas as festividades por vários anos e que so-
mente ele sabia decifrar.588 Esta foi a sua última tentativa frustrada de fazer-se passar por judeu.
Cardoso Porto enredou-se sucessivamente em histórias conflitantes. Ora queria provar
ser judeu ora ser cristão-velho, jamais cristão-novo. Por fim, convenceu-se que deveria confes-
sar ser criptojudaizante e declarar seus cúmplices. Depois de cinco anos nos cárceres secretos
do Tribunal de Lisboa, recebeu sua condenação a “cárcere e hábito penitencial perpétuo” e
“abjuração em forma” no auto de fé celebrado no Convento de São Domingos, em 17 de junho
de 1731589 – no mesmo dia em que outros cristãos-novos da Bahia, seus amigos, também foram
sentenciados e puderam testemunhar a fogueira acessa para Félix Nunes de Miranda.
Antonio Cardoso Porto, aliás, Belchior Mendes Correa, refugiou-se em uma identidade
falsa durante quase quarenta anos. Quando ainda morava em França, por volta de 1705, um
primo preso o denunciou ao Santo Ofício de Coimbra, mas como Belchior Mendes Correa
nunca foi encontrado.590 Vinte anos depois sua prisão foi executada em consequência de con-
fissões de réus cristãos-novos da Bahia, porém não como Belchior, e sim Antonio.591 Não foi

585 ANTT/TSO-IL Proc. nº 8887.


586 Ibidem.
587 Para os judeus, circuncidar os recém-nascidos é renovar a aliança de Deus com Abraão, um sinal do
relacionamento firmado entre Deus e o povo de Israel, o qual se comprometeu a seguir as leis divinas, como
Abraão, o guardião delas. A maioria dos judeus circuncida seus filhos. UNTERMAN, Alan. Dicionário judaico de
lendas e tradições. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992, passim.
588 “[...] se o apertassem nesta Mesa e ele visse que lhe arguiam culpas, se havia de defender sempre ainda que o
relaxassem à justiça secular e havia requerer nesta Mesa lhe mandassem vir da cidade da Bahia, e de uma carteira
que tinha com papéis, um papel com números que tinha das festas judaicas que também era kalendário que
lhe servia prá muitos anos futuros, e ele só entenderia e a trouxera de França e com ele se havia de defender e
argumentar com o inquisidor que o processa”. ANTT/TSO-IL Proc. nº 8887.
589 Ibidem.
590 Domingos Rodrigues Pacheco, preso pelo Tribunal de Coimbra em 1704. Ibidem.
591 Essas denúncias ocorreram entre 1725 e 1726. Ibidem.

194
julgado pelas denúncias que fizeram contra Belchior, nem mesmo essas foram referenciadas
em seu processo, exceto a desse primo. Pode-se considerar que este cristão-novo teve sucesso
em sua fuga ao próprio nome? O seu caso é um exemplo de como o medo da prisão era uma
constante na vida desses indivíduos, da qual não se podia negligenciar, pois mais cedo ou mais
tarde, seriam submetidos a julgamento severo.
Alternativa de defesa usada, e desta só há um exemplo declarado, foi o prévio conhe-
cimento, por parte dos réus, das pessoas que deveriam enunciar nas confissões para salvarem
suas vidas, ou seja, de pessoas que já constavam nas listas de suspeitos da Inquisição e com as
quais estavam implicados. Não se sabe por quais métodos obtinham o nome de seus delatores,
uma vez que esta era uma informação secreta, reservada apenas aos Inquisidores. Certamente,
a corrupção de funcionários dos tribunais favoreceu alguns cristãos-novos.
Em um dos interrogatórios durante sua segunda prisão, Pedro Nunes de Miranda relatou
que já estava embarcado no navio que o levaria pela primeira vez ao Tribunal de Lisboa, quan-
do um primo e um amigo conseguiram entregar-lhe uma lista contendo nomes de cristãos-no-
vos sobre os quais deveria mencionar como cúmplices de práticas judaicas.592 E garantiram-lhe
que dizendo “daquelas pessoas cujos nomes lhe davam escrito no rol, se livraria da prisão”.593
Outro caso bastante interessante revela mais uma forma de defesa ante ao medo, o pavor
em ser preso. Antonio Fernandes Pereira, um mineiro da Bahia que andava pelas Gerais, con-
versando com dois amigos cristãos-novos, pediu a um deles para que não o delatasse ao Santo
Ofício no caso de ser preso, e, por escrito, fez o mesmo pedido ao outro amigo.
Estratégias de defesa como esta, mais funcionais e eficazes que aquela dirigida pelos In-
quisidores, circunscrevia sempre o mesmo grupo de cristãos-novos nos autos do Santo Ofício.
O que foi percebido neste estudo reforça a afirmação de João Lúcio de Azevedo, “É de saber que
toda a máquina da repressão assentava nos testemunhos dos próprios perseguidos uns contra
outros”.594 O que não significa ausência de estratégias de resistência, ainda que raramente bem
sucedidas, dando um mínimo de esperança ao réu de sair vivo dos cárceres.
A violência do encarceramento marcou a vida do cirurgião Álvaro Ferreira da Silva, cujo
caso requer uma atenção especial. Seis meses após sua detenção (em 1748) foi acometido de
sucessivas crises de loucura relatadas por seu companheiro de cárcere, seus vizinhos de cela
e carcereiros, e renderam-lhe internações no Hospital Real de Todos os Santos, em Lisboa,
durante os quase sete anos em que esteve sob custódia do Santo Ofício. Quando aparentava al-
guma melhora, os Inquisidores transferiam-no novamente para cela, e mais uma vez os surtos
aconteciam.
Os pareceres dos médicos do hospital tanto quanto os da Inquisição foram taxativos
sobre seu estado de saúde condicionando o surgimento e agravamento da doença a sua perma-

592 O historiador Marco Antonio Nunes da Silva, investigou a comunicação dos presos com o exterior mediante
estratagemas como a circulação clandestina de bilhetes. Essa pode ter sido uma das formas que os cristãos-novos
da Bahia ficaram sabendo sobre seus (possíveis) delatores. SILVA, Marco A. N. Disciplinar em nome de Deus,
resistir pela vontade do homem. Caderno de estudos Sefarditas, Lisboa, v. 12/13, p. 105-134, 2014.
593 ANTT/TSO-IL Proc. nº 9001.
594 AZEVEDO, J. Lúcio. História dos cristãos-novos portugueses. 3. ed. Lisboa: Clássica, 1989. p. 136.

195
nência no cárcere. Insistiram que “sendo recolhido em cárcere fechado, tornará sem dúvida ao
mesmo furor que padecia”.595
Os Inquisidores, interessados em proceder à instrução do processo, não abrem mão da
continuidade da prisão. Os interrogatórios eram feitos em épocas que Ferreira da Silva mos-
trava-se melhor. O Inventário, sempre a primeira sessão que o prisioneiro era interrogado,
somente foi acontecer quase três anos após sua prisão.
Completando sete anos entre o cárcere e o hospital, onde permanecia por mais tempo,
os Inquisidores resolveram atender aos apelos médicos transferindo-o para o “cárcere da peni-
tência, onde estando com mais liberdade, pudesse ser ouvido com toda brevidade para finalizar
seu processo em dois ou três dias se responder com coerência e ouvir sua sentença logo na
Mesa sem esperar mais demora”.596
Recluso nestas condições prosseguiu-se o encaminhamento de seu processo. Confessou,
falou de sua genealogia, e um mês mais tarde, Ferreira da Silva ouviu sua condenação na Mesa
do Tribunal do Santo Ofício de Lisboa: “penas e penitências espirituais”, além de receber licen-
ça para retornar à Bahia.
Os procedimentos inquisitoriais não pouparam sequer um indivíduo com a saúde men-
tal abalada pela própria condição de prisioneiro. O terror instaurado pela falta de perspectiva
de se libertar levou Álvaro Ferreira da Silva a anos de loucura. O longo tempo que a Inquisição
esperou para sentenciá-lo é um exemplo, dentre vários outros, da persistência da perseguição
aos cristãos-novos e da necessidade do Santo Ofício em legitimar sua funcionalidade na Penín-
sula Ibérica da era moderna.

As sentenças
Examinando as sentenças ou a qualidade da condenação imputada a esses prisioneiros,
é possível avaliar a disposição dos Inquisidores para arbitrar e deliberar as punições, malgra-
do elas serem estatuídas pelo Regimento do Santo Ofício.597 O ponto inicial a ser observado
reporta-se à explanação do significado de cada sentença, conforme definido no Regimento, a
fim de melhor compreender sua aplicação.
No cômputo realizado por essa pesquisa, dentre os 60 prisioneiros que residiam na
Bahia, nove deles foram ao Comissário local ou à Mesa do Santo Ofício em Lisboa declarar cul-
pas de judaísmo.598 Esses, quando o processo era aberto e corrido nos trâmites normais, eram
classificados como réus apresentados, alguns, antes mesmo de terem denúncias formuladas; e
réu preso, que compõe o grosso dos prisioneiros, já denunciado, esperou ter seu mandado de
prisão executado.
Os réus apresentados eram, em geral, reconciliados, nomenclatura atribuída aos que não
foram condenados à morte, e sim reconciliados ao grêmio e união da Santa Madre Igreja, sig-
nificando admissão da culpa e aceitação das confissões pelos Inquisidores, especialmente por

595 ANTT/TSO-IL Proc. n° 2459.


596 Ibidem.
597 Regimento editado em 1640 vigorou até 1774, quando houve as mudanças promovidas pelo Marquês de Pombal.
598 Os demais foram capturados por ordem inquisitorial.

196
denunciar os parentes próximos e, caso já fosse delatado, vaticinar contra todos que o tinham
acusado. No grupo pesquisado não há notícias de condenação diferente dessa aos réus apre-
sentados, nem mesmo graves penas como açoites, degredo e galés; ao réu preso, além da re-
conciliação que foi a maioria dos casos dos penitentes da Inquisição portuguesa, havia ainda o
outro extremo, a possibilidade de serem relaxado à justiça secular, ou seja, condenado à pena
de morte por negar ser judaizante e/ou não nomear possíveis suspeitos e culpas.599
Era característico aos réus judaizantes que foram reconciliados fazer a abjuração em for-
ma dos seus erros, jurando nunca mais os cometer. A abjuração em forma traduzia-se em o réu
pronunciar uma fórmula dada pelos Inquisidores de que ele havia admitido completamente as
culpas, confessado os cúmplices e jurado não reincidir nos erros.600 Era a sua retratação, a re-
núncia solene “às crenças e erros contra a fé”.601 Exceto os prisioneiros que foram penitenciados,
e um que morreu no cárcere, os demais abjuraram o judaísmo.602
Havia ainda a abjuração de veemente dada aos réus com erros mais graves, com fortes
suspeitas de desvio da fé, mas sem uma prova cabal do erro. Em caso de reincidência estavam
vulneráveis a punições mais rigorosas.603 A abjuração de veemente foi proferida contra o mé-
dico Manuel Mendes Monforte, cujas acusações de proposições heréticas e leitura de livros
proibidos acabaram sendo vagas e sua causa foi julgada como de forte suspeição.604
A reconciliação abrangia graus de condenação que variavam desde leves punições como
“penas e penitências espirituais” até “açoites”, “degredo”, e “galés”, passando pelas diferentes mo-
dalidades de “cárcere e hábito penitencial”. Atribuída à quase totalidade dos réus apresentados
identificados na Bahia, as “penas e penitências espirituais” comportavam instruções religiosas
nos “mistérios da fé”, confissões sacramentais, obrigatoriedade da comunhão e igualmente da
confissão em dias solenes da Igreja. Todas essas punições vinham invariavelmente acompa-
nhadas de instruções nos mistérios da fé e mais “penas e penitências espirituais que lhe forem
impostas”. Assim não apenas puniam como doutrinavam.
Os “açoites” consistiam no espancamento do penitente sob olhares do povo no dia de
auto-de-fé.605 Era comum o açoite vir acompanhado de “degredo” ou “galés”. Esse rigor não
foi encontrado dentre os penitenciados da Bahia, apenas um a galés e uma mulher a degredo.
Ana Bernal de Miranda, em sua segunda condenação, esteve obrigada a permanecer na ilha
599 O Santo Ofício transferia para a justiça (a justiça civil) a atribuição da sentença para que os juízes “proferissem
a pena consignada na legislação civil, sem embargo da fingida clemência dos Inquisidores, que requeriam se não
procedesse à morte, nem à efusão de sangue [...] AZEVEDO, J. L. História dos cristãos-novos portugueses. 3. ed.
Lisboa: Clássica, 1989. p. 146.
600 Havia seis tipos de abjuração em forma distintos por graduações em ordem crescente da gravidade do crime:
desde a primeira à sexta abjuração em forma. E mesmo uma distinção entre abjuração em forma por Judaísmo e
abjuração em forma por outros crimes, em geral, feitiçaria e heresia. BRAGA, op. cit., p. 179, 213-216.
601 LIPINER, op. cit., p. 14.
602 Igualmente exclui-se deste computo prisioneiros sem sentenças e punições identificadas.
603 “[...] esta abjuração se manda fazer por pessoas contra as quais não resultou prova do delito da heresia, e
somente houve algumas presunções, e ainda menos, porque não foram mais que suspeitas, que são menos que
presunções.” VIEIRA, Pe. Antonio. Obras escolhidas. Lisboa: Sá da Costa, 1951. (Obras Várias (II) Os Judeus e a
Inquisição, v. IV, p. 89).
604 ANTT/TSO-IL Proc. nº 675.
605 LIPINER, op. cit., p. 16.

197
de Cabo Verde durante seis anos. Porém, seu grave estado de saúde impediu-a de viajar sem
correr risco de vida, e exatos um ano depois da publicação da sentença, sob requerimento dos
médicos do Santo Ofício, os Inquisidores autorizaram-na a ir para casa a fim de se curar, sem
sair de Lisboa.606
As punições a “cárcere e hábito penitencial” tinham suas variantes. Por “cárcere” enten-
de-se a obrigação do réu em não se ausentar do Reino, o que era mais comum aos prisioneiros
enfocados nesse estudo, ou da vila, cidade, aldeia onde residia, sem a autorização prévia e
expressa das autoridades inquisitoriais locais. Por sua vez, “hábito penitencial” compreendia a
veste própria que os sentenciados eram obrigados a usar, o chamado sambenito.
A condenação mais aplicada a estes prisioneiros, mesmo proporcionalmente equilibra-
da face às demais, foi “cárcere e hábito penitencial perpétuo”. Ao contrário do que a expressão
remete, o Regimento da Inquisição instituía a retirada do “hábito penitencial” em determinado
período após a publicação da sentença.607 Assim, se a punição era classificada “sem remissão”,
dizia o Regimento que após cinco anos o penitenciado via-se livre de tal constrangimento;
“com remissão”, passados três anos.608 Na prática, isto acontecia?
Conforme versa o mesmo Regimento, sendo decretado “cárcere e hábito a arbítrio dos
inquisidores”, o sambenito era retirado dentre três, seis ou nove meses de cumprida da pena.609
Poderia também vir acompanhado da expressão “com insígnias de fogo”, isto é, a representa-
ção da fogueira com chamas apontadas para baixo, quando o réu teve comutada a sua pena de
morte.610 As chamas para cima indicavam a pena capital. Diogo de Ávila Henriques foi o único
conhecido em cuja sentença veio expressa o uso do hábito penitencial com insígnias de fogo.
Teve sua pena comutada, havia se livrado da fogueira.
Todos os penitenciados que conseguiam se livrar da pena de morte sofriam uma série
de limitações no seu retorno à sociedade. Era-lhes vedado, e a seus descendentes até segunda
geração, ocupar funções públicas, atuarem como médicos, boticários, advogados, procurado-
res, mestre de navio e outras; não podiam usar ouro, prata, pedras preciosas, roupas de seda,
andar a cavalo, portar espadas e outras armas, exceto se fossem obrigados por alguma circuns-
tância.611
Os relaxados, isto é, condenados a morte, recebiam várias qualificações, ou classifica-
ções, que justificavam a punição. Diminuto, negativo, pertinaz, convicto, impenitente eram algu-
mas delas que sempre se traduziam em perseverar no erro, não se arrepender suficientemente
da culpa e não dar mostrar de verdadeiro arrependimento. Especificamente o réu diminuto
era quem não fazia uma completa confissão, omitia culpas e cúmplices de conhecimento dos
Inquisidores; e réu negativo, quem persistia em sua inocência. Se até a hora da celebração do
auto-de-fé houvesse uma confissão que os Inquisidores considerassem satisfatória, o condena-
606 Cinco anos depois, já curada, pede licença para voltar à Bahia e cuidar dos negócios de seu marido, Joseph da
Costa, que acabara de falecer. Os Inquisidores não anotam seu parecer no processo. Não sabemos se Ana Bernal
retornou à Bahia. ANTT/TSO-IL Proc. nº 2424.
607 REGIMENTO da Inquisição de 1640, Livro III, Título III.
608 REGIMENTO da Inquisição de 1640, Livro III, Título III, artigos IV e VII.
609 REGIMENTO da Inquisição de 1640, Livro III, Título III, artigo III.
610 REGIMENTO da Inquisição de 1640, Livro III, Título III, artigo VIII.
611 REGIMENTO da Inquisição de 1640, Livro III, Título III, artigo XII.

198
do recebia a indulgência de ser garroteado antes de ir para a fogueira, do contrário, não havia
saída.
Essas diferentes propriedades de condenações evocam a disposição pessoal do Inquisi-
dor no julgamento. Um critério para atribuição das penas estaria baseado no comportamento
do réu e da sua disposição para responder aos interrogatórios. Confrontando-se alguns casos
encontrados depreende-se que, às vezes, as penas atribuídas a esses réus cristãos-novos foram
consequência da atitude que assumiram diante do Inquisidor no correr dos interrogatórios.
Dentre os 60 penitenciados moradores na Capitania da Bahia, foram identificados cinco
cristãos-novos condenados a morte. Os demais foram penitenciados.612 Todavia, somente foi
possível analisar o processo de condenação da morte contra Félix Nunes de Miranda, estuda-
do comparativamente a outros réus que, como ele, começaram a responder os interrogatórios
dizendo-se inocentes, apresentaram defesa ao Santo Ofício, permaneceram vários anos nos
cárceres e tiveram diferentes punições. Assim, pretende-se abrir discussão em torno da arbitra-
riedade do julgamento dos Inquisidores.

O julgamento
Os cristãos-novos da Bahia, Antonio da Fonseca, Diogo de Ávila Henriques, Antonio
Cardoso Porto e Félix Nunes de Miranda tiveram suas prisões executadas mais ou menos na
mesma época. Cardoso Porto e Ávila Henriques foram presos em um mesmo dia do ano de
1726.613 Antonio da Fonseca um ano depois e Félix Nunes de Miranda, no seguinte.614
Ao chegarem diante dos Inquisidores lisboetas negaram prontamente ter qualquer culpa
a ser julgada pelo Santo Ofício. Malgrado não ser dado conhecimento ao réu sobre a causa da
prisão, a ela reportando-se vagamente, esses cristãos-novos sabiam o que estava acontecendo
e o que estava por vir.615 Seus processos seguiram o mesmo procedimento burocrático. Arro-
laram os bens, disseram sobre sua genealogia, apresentaram defesas. Cardoso Porto e Fonseca
foram torturados. Ambos contestaram sua origem judaica, Fonseca a assumindo parcialmen-
te enfatizou ser meio cristão-novo pelo lado materno e ter sido criado como cristão-velho;
Cardoso Porto insistia em ser cristão-velho, atribuindo-se uma filiação falsa e, antes que os
Inquisidores procedessem a investigação da “qualidade de sangue”, como praxe nestes casos,
ele mesmo pediu a averiguação de sua origem.
Diogo de Ávila Henriques, contra quem havia 51 denúncias de práticas religiosas judai-
cas, disse que não tinha culpa a confessar porque sempre creu na fé católica e nunca alguém

612 NOVINSKY, A. Inquisição: prisioneiros do Brasil, op. cit., et passsim.


613 Ávila Henriques e Cardoso Porto foram presos em 22 de novembro de 1726. Apesar de entregues ao meirinho
do Santo Ofício no mesmo dia, embarcaram da Bahia para Lisboa em diferentes naus. ANTT/TSO-IL Procs. nºs
2121, 8887.
614 Antonio da Fonseca foi preso em 6 de julho de 1728, Félix Nunes de Miranda a 7 de janeiro de 1729.
615 Quando perguntado se sabia por que estava preso, Diogo de Ávila Henriques respondeu: “segundo o que
ordinariamente sucede entende que estava prezo por culpas de judaísmo”. ANTT/TSO-IL Proc. nº 2121. Depois
disso, diziam: “Foi-lhe dito que ele está preso por culpas cujo conhecimento pertence ao Santo Ofício e lhe fazem
a saber que desta Mesa se não manda prender pessoa alguma sem proceder bastante informação, e que esta houve
para ele declarante o ser”. ANTT/TSO-IL Proc. nº 5001.

199
tentou desvia-lo. Félix Nunes de Miranda alegou ser vítima de falsos testemunhos de seus ini-
migos e imediatamente apresentou argumentos discorrendo sobre desafetos com cristãos-no-
vos da Bahia que poderiam o ter denunciado por má-fé.616 Persistiram o tempo todo em contar
suas desavenças procurando uma saída para escaparem das acusações.
Ávila Henriques, Fonseca e Cardoso Porto propuseram a investigação do comportamen-
to católico, sendo inquiridas várias testemunhas tanto na Bahia quanto em Portugal, as quais os
abonaram bons católicos, ainda que um ou outro depoimento não tenha sido favorável. Félix
Nunes de Miranda não apresentou defesa neste sentido. Antonio Cardoso Porto, confundia os
Inquisidores com suas afirmações contraditórias, ora dizendo-se cristão-velho, ora induzindo
seu companheiro de cárcere a denunciá-lo como judeu professo. Sua intenção era não ser con-
siderado cristão-novo e como tal apóstata da fé católica. Se judeu, não poderia ser julgado por
um fórum eclesiástico, não era súdito da Igreja; se cristão-velho, jamais seria um criptojudeu.
Confessou não dizer a verdade no início de sua causa, porque “esperava ver se por este modo
podia livrar seus bens e fazendas”617 do confisco, porém, se resolveu passar de réu negativo,
isto é, negar convictamente que tinha culpa, a confitente por não lhe haver alternativa, mesmo
entendendo que depois de confessar não protegeria mais seus bens. Seriam irremediavelmente
confiscados.
Diogo de Ávila Henriques, como já discorrido anteriormente, levou os Inquisidores a
pensar que pretendia embargar os trabalhos do Santo Ofício com suas dezenas de proposições
de defesa. Antonio da Fonseca manteve sua negação de culpas por quase dois anos, quando
então confessou práticas judaicas e declarou cúmplices. As testemunhas de defesa que nomeou
já haviam discorrido sobre seu bom comportamento católico e abonado as inimizades que
relatara. Meses depois desta confissão foi julgado.
Félix Nunes de Miranda, na condição de réu reincidente, confessou episódios ocorridos
na última década do século XVII, trinta, quarenta anos antes desta prisão em Lisboa, quando
ainda vivia em Castela. Justificou aos Inquisidores que havia sido réu apresentado ao Tribunal
de Lerena por indução de seu tio, o médico Francisco Nunes de Miranda, ao quererem se livrar
da cadeia em que estavam presos eles e outros parentes acusados de um roubo a uma igreja na
cidade de Plasencia, Castela, e temiam uma severa condenação pela justiça comum.
Neste tempo, disse Félix Nunes de Miranda, mostrava a seus tios que era judaizante
por que era jovem e lhes devia obediência, embora em seu íntimo nunca se distanciara da fé
católica. Obviamente esta confissão não foi satisfatória. Havia delações de amigos e parentes
presos há dois, três anos antes que ele, e, como mencionado, um de seus filhos já estava preso
no mesmo Tribunal de Lisboa sem que tivesse conhecimento.
Interessante é o comentário dos Inquisidores sobre um interrogatório com o sentencia-
do João Gomes de Carvalho quando foi chamado para ser reperguntado618 sobre uma confissão

616 “[...] só seus inimigos com inveja o podia faze-lo vir ao Santo Ofício [...] crê firmemente na Lei de Cristo Nosso
Senhor e nela quer viver e morrer como bom e verdadeiro cristão”. ANTT/TSO-IL Proc. nº 2293.
617 ANTT/TSO-IL Proc. nº 8887.
618 Reperguntas: quando o réu estava em vias de ser sentenciado como convicto, isto é, não aceitando suas culpas,
os Inquisidores perguntavam novamente as mesmas coisas às mesmas pessoas que o havia delatado nas suas
confissões. Os réus também podiam pedir para seus delatores serem reperguntados. REGIMENTO da Inquisição
de 1640, Livro II, Título XI, artigos III, IV.

200
na qual declarou cumplicidade de práticas judaicas com Félix Nunes de Miranda, de quem era
amigo quando moravam na Bahia. Os Inquisidores entenderam por seus gestos que Gomes de
Carvalho lhe queria aliviar a culpa:
[...] com especial cautela, cuidou na repergunta fazer menos culpa ao réu, dizendo-lhe
[se Félix Nunes de Miranda] vivia na Lei de Moisés, ele se calara, encolhera os ombros,
bem se deixa ver a malícia da testemunha e que a tal culpa ainda que ficasse só na
fautoria tende para o mesmo fim e indício para cumulativamente fazer a mesma prova
no crime do segundo lapso.619

Esse foi um mecanismo que os Inquisidores se valeram para provar que Félix Nunes
de Miranda era judaizante e não confessava. Consideraram o gesto de seu amigo como um
consentimento da culpa. Ainda que Gomes de Carvalho não tivesse se expressado verbalmen-
te, assim o interpretaram. Por seu sentimento em não querer piorar a causa do amigo ou por
sua malícia, foi considerado pelos Inquisidores como fautor “que na repetição fica em uma
fautoria In omitendo”, ou seja, protegendo os hereges e seus erros.620 João Gomes de Carvalho
não foi processado mais uma vez pelo Santo Ofício, desta por crime de fautoria cuja punição
era severa, e anos depois, em 1741, foi-lhe suspensa a pena de cárcere e mandado-lhe retirar o
sambenito.621
Ávila Henriques e Nunes de Miranda convenceram-se de que a confissão de judaísmo
era o mais conveniente quando receberam a notícia que seriam levados à fogueira. Antonio
Cardoso Porto chegou a confundir os Inquisidores entretanto, diante das torturas sofridas e
do inevitável confisco de seus bens, procurou sair do cárcere com vida e sem degredo ou galés.
Antonio da Fonseca levou dois anos para perceber que o melhor caminho era confessar mesmo
o que não fez, mas confessar.
Ao réu relaxado procediam ao atar-lhes as mãos dois dias antes do auto-de-fé. Em geral,
os autos-de-fé eram realizados aos domingos e desde a sexta-feira o réu entrava no “corredor
da morte”. Não havia escapatória a não ser desatar a confessar tudo e contra todos que viessem
à cabeça com o propósito de acertarem as acusações e os acusadores. Ávila Henriques teve mais
sorte que Nunes de Miranda. Sua confissão foi considerada satisfatória e sua pena de morte
foi comutada para “cárcere e hábito penitencial sem remissão com insígnias de fogo e cinco
anos de galés”,622 a mais grave depois da condenação à morte. Félix Nunes de Miranda foi quei-
mado. Cardoso Porto não teve o peso destas condenações e foi punido com “cárcere e hábito
penitencial perpétuo”.623 Exceto Antonio da Fonseca, cujo processo ainda corria a esta época,
os demais foram expostos no auto-de-fé de 17 de junho de 1731.624 Presenciaram, portanto, ao
falecimento daquele com quem conviveram durante alguns anos na cidade de Salvador, seja
como amigo ou desafeto.

619 ANTT/TSO-IL Proc. nº 2293.


620 Ibidem.
621 ANTT/TSO-IL Proc. nº 8764.
622 ANTT/TSO-IL Proc. nº 2121.
623 ANTT/TSO-IL Proc. nº 8887.
624 Por curiosidade, Félix Nunes de Miranda completara 59 ou sessenta anos de idade, cinco dias antes do auto-de-
fé que o condenou.

201
Algo, porém diferenciava o processo de Félix Nunes de Miranda. O fato de ser réu re-
lapso não interferiria em sua dramática condenação; três primos seus foram sentenciados por
reincidência e tiveram suas vidas poupadas, apesar das duras punições. Félix foi vítima de
denúncias do cumprimento de jejuns judaicos dentro do cárcere. Em outras palavras, houve
culpas de criptojudaísmo formadas contra ele dentro do próprio cárcere. Denúncias suspeitas
quanto a sua própria natureza. Os Inquisidores mandavam Familiares do Santo Ofício vigiar os
réus através de pequenos orifícios na parede. E eles podiam dizer o que bem quisessem.
Félix Nunes de Miranda e outro réu com quem compartilhava a cela foram espreitados
durante algumas semanas por 14 Familiares do Santo Ofício que se revezavam duas vezes por
dia. Através destas minúsculas aberturas na parede da cela, estes colaboradores da Inquisição
disseram que pôde distinguir e concluir que Félix jejuava conforme o rito judaico e orava ges-
ticulando segundo a tradição judaica. Foram oito dias de vigilância, alguns deles durante três
dias consecutivos, registrando oito jejuns judaicos na cela.
Esta era uma modalidade de espionagem e de comprometimento do réu conhecida como
“vigia de cárcere” ou cárcere de vigia.625 O preso sequer suspeitava que estivesse sob observação
e dificilmente confessaria aos Inquisidores que praticara, ou não, ritos considerados heréticos
durante a reclusão. A denúncia de jejuns judaicos no cárcere, para António José Saraiva, era
um dispositivo
[...] posto em andamento quando o Santo Ofício queria assassinar legalmente um réu,
tirando-lhe toda a possibilidade de defesa, de modo que os réus com quem isso se
passava eram quase sempre relaxados. O segredo morria com eles.626

Bastante contundente esta posição no caso específico de Félix Nunes de Miranda. A des-
peito de sua confissão ter sido completa, ele deixou de falar dos jejuns no cárcere, talvez nem
mesmo os tenha feito e foi considerado “réu convicto, diminuto, impenitente e relapso”, ou seja,
não apresentava suficiente arrependimento e omitiu certos erros.
A gravidade da condenação atribuída a Diogo de Ávila Henriques, diferentemente de
Félix Nunes de Miranda e Antonio Cardoso Porto foi a persistência em fazer valer sua palavra,
insinuando um comportamento não aceito pelos Inquisidores. Félix tinha uma acusação de
jejum no cárcere que ele não podia adivinhar. Cardoso Porto confirmou que passava de ne-
gativo a confitente para tentar evitar o confisco de seus bens, já que não havia convencido ser
judeu ou cristão-velho. Ávila Henriques tinha a intenção de minar as denúncias, usando de
todos os meios burocráticos de defesa que estivessem a seu alcance. A atitude desse réu pode
ser compreendida como um desafio aos Inquisidores, uma vez que não se deixou conduzir pela
verdade pretendida da Inquisição até que não teve alternativa.
A atitude de Félix Nunes de Miranda é singular. Ele já havia vivido a reclusão durante de
dois anos na Espanha e conhecia os métodos inquisitoriais, que não diferiam entre o espanhol e
o português. Chegou mesmo a beneficiar um primo com informações sobre seus denunciantes.

625 Sobre a vigia de cárcere, c.f. AMIEL, Charles Os cárceres de Vigia da Inquisição Portuguesa. In NOVINSKY,
A.; KUPERMAN, D. (Org.). Ibéria judaica: roteiros da memória. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura; São Paulo:
Edusp, 1996. p. 141-150.
626 SARAIVA, op. cit., p. 97-98.

202
Como visto, esse cristão-novo relutava em denunciar sua esposa e filhos, pois uma confissão
de judaísmo só era válida envolvendo parentes mais próximos, as pessoas em que a confiança
promovia a prática secreta dos ritos e cerimônias judaicos. Mesmo assim o fez. Todavia, foi
surpreendido por esses vigias de cárcere que o denunciaram antes de proferir alguma palavra,
alguma confissão. Se jejuou ou não na cela, isto não vem a ser o cerne da questão. O que im-
porta é o fato de sua sentença já ter sido arbitrada no dia em que os Inquisidores resolveram
vigia-lo de dentro do cárcere, no dia em que houve a primeira acusação de jejum judaico.627
Aos réus que foram presos por situações semelhantes de reincidência tiveram diferentes
condenações, nem todas tão severas como eram prescritas as punições nestes casos. Avaliamos
especialmente os dossiês dos irmãos Pedro Nunes de Miranda e Ana Bernal de Miranda e de
seu primo David de Miranda. Pedro Nunes de Miranda e David de Miranda tiveram suas pri-
sões efetuadas com diferença de um mês, outubro e novembro de 1714, respectivamente. Ana
Bernal foi bem mais tarde, em 1726.
Ao entrarem no cárcere, depois de terem atendido aos procedimentos exigidos pela bu-
rocracia do processo inquisitorial, iniciaram suas confissões como de praxe. Falaram do ensino
do judaísmo, contando sobre ritos, cerimônias e costumes judaicos. Arrolaram todos os paren-
tes e amigos, sem sequer omitirem os mortos. Ambos haviam recebido de outro primo, Félix
Nunes de Miranda, uma lista contendo os nomes das pessoas que deveriam confessar cumpli-
cidade. E assim procederam. Os Inquisidores não sabiam dessa “ousadia”. Os encarceramentos
duraram pouco mais de um ano, já que havia uma burocracia intensa e os processos dos réus
não eram julgados rapidamente, embora suas causas tenham sido das mais breves encontradas
dentre os 60 prisioneiros aqui falados.628
Mesmo com toda esta “mostra de arrependimento” e confissões satisfatórias, David de
Miranda foi levado a tormento, possivelmente porque lhe havia escapado um nome, um caso
das anotações dos Inquisidores. Seus processos findaram na mesma época, sentenciados no
auto-de-fé do dia 16 de fevereiro de 1716. Foi neste momento que Pedro Nunes, detido um
mês antes de seu primo, soube que não estava sozinho no cárcere. Não houve uniformidade
nos julgamentos. Pedro foi punido a “cárcere e hábito a arbítrio dos Inquisidores”, e David re-
cebeu a pena de “cárcere e hábito penitencial perpétuo”, sem expressas as adjetivações “com ou
sem remissão”.629 Na formalidade do Regimento da Inquisição de 1640, Pedro não ultrapassaria
nove meses para ser dispensado do sambenito, enquanto David permaneceria com a túnica pe-
nitencial por cinco anos. Esta diferença mostra um julgamento que atribuía diferentes níveis de
gravidade a um mesmo crime, a um comportamento similar dos réus, a uma maior ou menor
resistência a confessar.
Por que estas diferenças de condenação? Uma hipótese levantada é o fato de David ter
sido torturado por alguma diminuição. Os dois primos não apresentaram contraditas nem co-
artadas, não foram delatados por “atos heréticos” praticados no cárcere, não relutaram em

627 ANTT/TSO-IL Proc. nº 229.


628 Os processos concluídos em menos tempo, para réus que não se apresentaram, variavam entre sete, oito meses
a um ano. Os que levaram mais tempo variavam entre dois anos a três anos e onze meses, exceto o de Álvaro
Ferreira da Silva que por suas internações em hospital alcançou mais de sete anos.
629 ANTT/TSO-IL Procs. nºs 9001, 7489, respectivamente.

203
falar da família, mencionaram todos os amigos da Colônia e do reino. David de Miranda foi
torturado, embora estivesse sempre admitindo ser criptojudeu. O que condicionou punições
com diferentes graus de severidade, além de uma possível omissão de David a alguma culpa?
A segunda prisão de ambos por relapsia ocorreu com três anos de diferença uma da
outra. Neste meio tempo, a irmã de Pedro Nunes de Miranda, Ana Bernal de Miranda, foi
levada para o Tribunal de Lisboa.630 Era sua primeira vez. Este final da década de 1720 e início
da de 1730 foi o período de maior atividade inquisitorial em todos os tempos, na Colônia e na
metrópole – Ana Bernal foi detida em novembro de 1726, David de Miranda em novembro de
1728 e Pedro Nunes de Miranda em dezembro de 1731. Ana Bernal foi o primeiro membro da
família a ter prisão executada doze anos depois de Pedro Nunes e David de Miranda (1714).
Não foi de Ana Bernal que partiram as acusações contra seu irmão e primo, engendran-
do-lhes uma segunda prisão, tampouco contra seu marido Joseph da Costa, preso um mês
antes de ser sentenciada. Certamente havia já outras culpas nos cadernos dos Promotores, estas
mesmas que a levaram ao cárcere. Ana Bernal de Miranda teve uma causa difícil. Não lhe bas-
tou falar dos cúmplices. Como sempre, faltava alguém. Foi posta a tormento, já quase próximo
à conclusão do processo, insistindo não haver mais nada a confessar. Encerraram o processo
punindo-a “cárcere e hábito penitencial perpétuo”.631
A segunda prisão de Ana Bernal foi mais dramática. Depois da primeira condenação em
1728, não retornou mais à Bahia. Ficou confinada em Lisboa assim como Brites Lopes, citada
anteriormente. Morava com sua irmã, Maria Bernar de Miranda, penitenciada em 1731. O
marido de Ana, Joseph da Costa, continuava a subir e descer o oceano, sediado na cidade de
Salvador. Atribuíram a Ana o nome de Ana Paschoa de Miranda, sem que saibamos a razão.
Seu processo, porém, correu com o nome de batismo.
Quatro acusações a implicaram mais uma vez no Santo Ofício, bem menos que as da
primeira prisão. Doze anos antes foram 16 confissões contra ela provenientes de amigos e pa-
rentes do Rio de Janeiro e, sobretudo, de Salvador, presos no Santo Ofício. Desta vez, todos
que a delataram eram moradores em Lisboa, nenhum parente, nenhum cristão-novo da Bahia.
Três de seus denunciantes eram prisioneiras no Tribunal de Lisboa, o quarto foi um Familiar
do Santo Ofício encarregado de vigiar sua casa em dias de sábado. Procuravam uma suspeição
de Shabat para poder detê-la. Uma prisão anunciada?
Ana Bernal apresentou defesa, contraditas, implicando cristãos-novos lisbonenses. Des-
faleceu durante o tormento, confessou e em 1741 foi condenada à gravíssima pena de “cárce-
re e hábito perpétuo sem remissão” acrescida de “degredo por seis anos para a Ilha de Cabo
Verde”.632 Seus parentes, David de Miranda e Pedro Nunes de Miranda, continuaram compor-
tando-se no segundo julgamento da mesma forma que se comportaram da primeira vez. O
primeiro, restringiu-se a confessar suas culpas na mesma direção anterior: práticas judaicas e
cúmplices. O outro, talvez movido por um desespero de ter sua causa agravada na qualidade
de reincidente, confessou fatos singulares no sentido de que não foram encontrados relatos
semelhantes nos demais processos consultados.

630 ANTT/TSO-IL Proc. nº 2424.


631 Ibidem.
632 Ibidem.

204
Revelou, Pedro Nunes, aos Inquisidores a possível corrupção de seus funcionários que,
apesar do segredo jurado e punição se violado, seu primo Félix Nunes de Miranda conseguiu
e entregou-lhe uma lista com nomes dos seus possíveis delatores, episódio já referido. Revelou
também a tática de prevenção ao confisco acordada a favor de Gaspar Henriques. Esse, pre-
vendo que seria preso, quis salvaguardar seus bens do confisco propondo a Pedro uma dívida
fictícia para que o Santo Ofício lhe restituísse o dinheiro como credor. Pedro, disse até que ao
saber da captura de Gaspar Henriques procurou imediatamente o Fisco em Salvador para en-
tregar o crédito que tinha em mãos, um escrito de dívida, resultando em inimizade com dois
outros cristãos-novos testemunhas do acerto com Gaspar Henriques.633
É possível que estas confissões tenham rendido a Pedro Nunes de Miranda uma segunda
condenação igual à primeira: “cárcere e hábito penitencial a arbítrio dos Inquisidores”. David
de Miranda teve agravada à primeira condenação, “cárcere e hábito penitencial perpétuo”, a
qualidade “sem remissão”, que implicava, como dito anteriormente, o uso do sambenito por
não menos que cinco anos.634
Que atitude ou comportamento diferenciado teve esses cristãos-novos? Ana Bernal de
Miranda demorou mais tempo para começar sua confissão do que seus parentes, assim como o
fez Diogo de Ávila Henriques, cristão-novo referido anteriormente. Ana Bernal e Ávila Henri-
ques procuravam desfazer as acusações daqueles que consideravam ter agido com má-fé. Ana
teve um julgamento mais severo do que Diogo por ser acusada por relapsia, isto é, incorrer nos
mesmos erros pelos quais já havia sido condenada. Porém Ávila Henriques, também conde-
nado a degredo assim como Ana Bernal, não era reincidente como Pedro Nunes de Miranda,
que foi punido com “cárcere e hábito penitencial a arbítrio”. Pedro e seu primo David estavam
na mesma situação e este também foi severamente punido. Os dois puderam voltar à Bahia.
Ana Bernal, depois de curada de uma enfermidade que a impossibilitou de cumprir o degredo,
requereu autorização para voltar a Salvador, sem algum parecer dos Inquisidores.
A irmã de Ana, Maria Bernar de Miranda, e seu pai, o médico Francisco Nunes de Mi-
randa, mais outros cristãos-novos da Bahia, dentre os quais João de Morais Montesinhos e Dio-
go Henriques Ferreira, enquanto réus apresentados dos quais se conhece a condenação, não fo-
ram obrigados a mais que cumprir “penas e penitências espirituais”, tais como serem instruídos
no catolicismo, confessarem e comungarem periodicamente. Também não tiveram seus bens
confiscados e estavam impedidos, todos, de saírem do reino sem autorização do Santo Ofício.635
Réus apresentados, como Jerônimo Rodrigues e Manuel Nunes da Paz tiveram outras
sentenças. Jerônimo Rodrigues a “hábito penitencial tirado depois de lida e publicada a sen-
tença e cárcere a arbítrio dos Inquisidores”,636 ou seja, esses deveriam determinar o lugar de
confinamento de Rodrigues. Parece que ficou em Portugal, pois meses depois de penitenciado
retornou aos Estaus para confessar.637

633 ANTT/TSO-IL, Proc. nº 9001.


634 ANTT/TSO-IL Procs. nºs 9001, 7489, respectivamente.
635 ANTT/TSO-IL Procs. nºs 1820, 1292, 11769, 9130.
636 ANTT/TSO/IL Proc. nº 10003.
637 Ibidem.

205
Manuel Nunes da Paz, que vivia entre Bahia e Minas Gerais, onde se apresentou, teve
“cárcere e hábito a arbítrio dos Inquisidores”, da mesma forma que o reincidente Pedro Nunes
de Miranda.638 As sentenças de Nunes da Paz e Jerônimo Rodrigues foram mais rigorosas que
os demais apresentados, o mesmo rigor dado a um réu preso. Nunes da Paz ficou recluso no cár-
cere e teve seus bens confiscados, enquanto Rodrigues respondeu ao processo sendo obrigado
a comparecer ante a Mesa do Santo Ofício todos os dias e seus bens não foram sequestrados.
Sem uma evidência que engendre justificativas para condenações iguais de casos diferentes, ou
condenações diferentes para casos iguais, a única conjetura é o puro arbítrio dos Inquisidores,
não apenas em tirar o hábito penitencial, mas em proceder ao veredicto.
O confisco de bens era condenação certa e unânime a todos os réus judaizantes. Os casos
de réus apresentados relatados cujos bens não foram confiscados estavam previstos no Regi-
mento da Inquisição em vigor. O critério para definir se esta qualidade de prisioneiro teria ou
não seus bens confiscados baseavam-se na existência, ou não, de ao menos uma acusação regis-
trada no Santo Ofício antes da apresentação do indivíduo. Isto, por sua vez, determinava se sua
sentença seria dada publicamente, em auto-de-fé, ou no secreto da Mesa do Santo Ofício. Ou
seja, o cristão-novo que se apresentasse antes de haver qualquer denúncia contra ele, receberia
a sentença em Mesa e seus bens não lhe seriam confiscados. Foi o que aconteceu, por exemplo,
com Francisco Nunes de Miranda que aos dezenove anos de idade, em 1669, apresentou-se ao
Tribunal de Coimbra. Os Inquisidores de Lisboa consideraram sua apresentação ainda válida e
lhe atribuíram penas menos rigorosas, sem confisco de bens.639
Outra circunstância de apresentação dizia respeito ao réu que já tivesse alguma culpa
anotada. Assim, incorria em ouvir sua sentença em auto público, e por ser público, seus bens
seriam invariavelmente confiscados. Tal situação envolveu Manuel Nunes da Paz com denún-
cias feitas quando foi às autoridades inquisitoriais. Os Inquisidores justificavam que sendo a
culpa notória, isto é, de conhecimento geral, com cúmplices ou testemunhas não cúmplices
que divulgassem o evento e/ou denunciassem, a condenação seria proferida publicamente para
dar conta a todos do sucedido. Neste caso, o castigo incluía a perda dos bens. Do contrário,
“ficando a culpa em segredo, justamente goza o réu do favor de apresentado”.640
Não importava o montante do patrimônio acumulado pelo réu. Miguel Nunes de Almei-
da, filho de Félix Nunes de Miranda só possuía a roupa do corpo e algumas dívidas de emprés-
timo declaradas em seu inventário e teve confisco de bens. Que dizer então do cirurgião Álvaro
Ferreira da Silva? Não bastando o desequilíbrio mental com sucessivas internações em hospital
de Lisboa, que retardou por sete anos o encerramento de seu processo, ficou totalmente des-
provido de bens a ponto de um alcaide do Santo Ofício providenciar roupas para poder sair do
cárcere da penitência.641 O réu pagava, ele mesmo, não apenas as custas do processo (soldo dos
escrivães, meirinhos, Inquisidores e demais funcionários) como também sua estadia. Alimen-

638 ANTT/TSO-IL Proc. nº 9542.


639 ANTT/TSO-IL Proc. nº 1292.
640 REGIMENTO da Inquisição de 1640, Livro III, título I, artigos I – VII.
641 O alcaide encarregou-se por conta própria de mandar fazer um calção e uma vestia para Fonseca sair do cárcere
da penitência, onde os sentenciados aguardavam o momento de ser libertados. ANTT/TSO-IL Proc. nº 10484.

206
tação e vestimenta provinham do prisioneiro que ainda devia levar consigo ao cárcere a cama
e os agasalhos.
A pouca fortuna que cabia a Álvaro Ferreira da Silva, 490 mil réis em bens móveis e
imóveis, foi para os cofres do Santo Ofício. O estado de miséria foi sentido logo nos primeiros
anos de prisão ao ser internado no Hospital Real de Todos os Santos, em Lisboa, por acessos de
loucura decorrentes do encarceramento. O hospital requereu duas vezes aos Inquisidores para
mandarem vestimentas, constatando que ele não tinha sequer roupa para usar. Uma dessas so-
licitações, escrita pelo próprio prisioneiro, requeria seu retorno aos cárceres da Inquisição, pois
se encontrava no hospital “sem ter roupa para vestir nem o mais que necessita”.642 Seu dinheiro,
confiscado, só podia ser manipulado pelo Fisco sob autorização do Santo Ofício. O Fisco lhe
tirou tudo e o Santo Ofício despendeu de tudo. Ao ser sentenciado não possuía sequer um traje
de roupa para sair do cárcere.
O confisco dos bens dos pais de Brites Lopes a deixou e desprovida de recursos mate-
riais, tendo que se sustentar e a seus irmãos, como costureira. O acolhimento recebido do tio
em Lisboa logo foi substituído pela pobreza que a prisão e confisco dos bens deste impôs a ela
e a seus parentes. Presa pela Inquisição porque ia fugindo do reino, já tendo sido sentenciada
uma vez, Brites ficou obrigada a permanecer em Lisboa e a prometer aos Inquisidores cuidaria
de prover-se como costureira.
Diogo de Ávila Henriques expressou objetivamente o sentimento do prisioneiro con-
fiscado em seus bens: “uma vergonha tamanha”.643 Quando já não tinha mais nada a perder
porque estava condenado à justiça secular proceder sua pena de morte, a última tentativa de
salvação foi confessar-se judaizante. Neste momento, expôs que a razão para ter negado ser
criptojudeu era a esperança de sair do Santo Ofício sem ter seus bens confiscados e, uma vez
fora do cárcere, retornar para, voluntariamente, descarregar sua consciência e preservar assim
seu patrimônio, livrando-se também da culpa:
[...] mas por peso e temor não confessou e o determinava fazer depois de sair [da
prisão] e pedir Mesa para isto e não tornar a viver na Lei de Moisés depois que o
prenderam e ficar vivendo na Lei de Cristo, e sempre com a esperança de descarregar a
consciência em saindo por não ficar todo confiscado e passar uma vergonha tamanha
[...].644

Para o cristão-novo não havia saída. Ainda que a população cristã-velha mantivesse fo-
cos de uma relativa sociabilidade, e cristãos-novos e cristãos-velhos pudessem conviver na
Bahia amabilidades, as marcas que a persecução inquisitorial deixavam eram profundas à alma
do prisioneiro e a sua condição de vida. Estas considerações traçadas a respeito das punições
levam a pensar que algumas atitudes dos prisioneiros condicionavam o seu destino nas mãos
dos Inquisidores, a qualidade da pena. Quando os réus se rendiam aos pressupostos de suspei-
ção de heresia e involuntariamente colaboravam para o aumento do número de inculpados,
recebiam sentenças menos rigorosas.

642 ANTT/TSO-IL Proc. nº 10484.


643 ANTT/TSO-IL Proc. nº 2121.
644 Ibidem.

207
Não se deve esquecer, contudo, que tanto no caso de réu apresentado, que não ficava
recluso como Jerônimo Rodrigues ou Diogo Henriques Ferreira, como no caso do “réu preso”,
o estigma de processado acompanhava os penitenciados e sua família, não se dissolvendo com
o retorno ao mundo exterior. Os penitenciados encontravam dificuldades para retomar suas
vidas e acabavam sem bens, na miséria.

208
Conclusão

A pesquisa sobre os cristãos-novos na Bahia durante o primeiro quartel dos setecentos teve ini-
cialmente a intenção de ser uma continuidade dos conhecimentos gerados a partir da pesquisa
de Anita Novinsky sobre os cristãos-novos na Bahia no século XVII645. Contudo, após longos
anos de pesquisa não foi possível localizar fontes que fornecessem elementos para conhecer
o destino que tomou aquela tão ativa e próspera população de origem judaica que viveu nos
seiscentos baianos.
Estudos realizados sobre os cristãos-novos em diferentes regiões do Brasil, como Rio de
Janeiro e Minas Gerais,646 por exemplo, revelaram uma intensa conexão entre os cristãos-novos
espalhados por toda a Colônia, ajudando a uma investigação mais profunda sobre a Bahia. A
documentação inquisitorial oferecida por Anita Novinsky, pois à época da pesquisa original o
fundo documental Inquisição ainda não era disponível on-line pelo Arquivo Nacional da Torre
do Tombo, serviu de ponto de partida para a reconstituição da sociedade e uma reflexão sobre
suas atividades, participação política e cultural no século XVIII. E o que foi encontrado?
Reconstituindo a partir de 32 cristãos-novos que foram presos pela Inquisição pode-se
estabelecer a sua naturalidade, o que revelou uma população de “imigrantes”, fugindo das per-
seguições, procurando chegar à América portuguesa onde, muitas vezes, eram acolhidos por
parentes já anteriormente aí estabelecidos. Uma vez na Colônia, os cristãos-novos encontra-
ram facilidades para sobreviver, pois as condições econômicas favoreciam os empreendimen-
tos comerciais na Bahia.
Um aspecto que chamou a atenção no contexto complexo e pluricultural da Bahia se-
tecentista foi as relações desses cristãos-novos com o segmento populacional cristão-velho.
Repete-se aqui, de maneira concreta, o exemplo citado na mencionada obra de Anita Novinsky
– íntima comunicabilidade tanto na esfera do cotidiano como nas transações financeiras.
Todavia, não foram identificados casamentos exogâmicos dentre esses cristãos-novos.
Talvez, a razão da manutenção dos círculos familiares restritos à origem comum, se deva ao
fato de que a Inquisição sustentava sua estrutura e funcionamento com base na denúncia du-
rante as confissões, fixando famílias e grupos inteiros, por gerações, na lista de suspeitos, clas-
sificando-os como “impuros” e excluídos de honras e cargos de prestígio.
Assim, pode-se inferir que a notória não participação desses cristãos-novos na vida po-
lítico-administrativa local, deva-se, provavelmente, por se constituir em um grupo recém che-
gado à Colônia brasílica e não figurarem nas denúncias dos cristãos-novos já estabelecidos na
Bahia, ao contrário, provirem todas de parentes e amigos residentes em Portugal. Nota-se que
a atividade inquisitorial na capital da Colônia foi uma continuidade desta persecução acirrada
em Portugal, no tempo de D. João V e de D. Nuno da Cunha de Ataíde e Melo.

645 NOVINSKY, Anita. Cristãos-novos na Bahia, op. cit.


646 SILVA, Lina Gorenstein Ferreira da. Heréticos e impuros, op. cit.; GORENSTEIN, Lina. A Inquisição contra
as mulheres, op. cit.; FERNANDES, Neusa. A Inquisição em Minas Gerais no século XVIII, op. cit. E, não sobre
cristãos-novos especificamente, mas falando deles, cf. FURTADO, Júnia Ferreira. Homens de negócios, op. cit.

209
Neste começo dos setecentos, a Bahia despontou no cenário mundial como um dos
principais portos de trocas comerciais ultramarinas. Entravam escravos, tecidos, saíam tabaco,
açúcar, ouro. Esta pesquisa identificou mais de 53% dos homens presos atuando no comércio
exclusiva ou concomitantemente a outras ocupações e treze das quinze mulheres processadas
eram esposas, filhas e irmãs de comerciantes; duas eram esposas de artesãos curtidores de
couro que além de negociarem sua produção negociavam ocasionalmente outras mercadorias.
Na Bahia, como em toda a América portuguesa um dos caminhos fundamentais para
a ascensão social era o nível de riqueza. Os cristãos-novos dedicaram-se principalmente ao
comércio, não por índole judaica como querem alguns autores, mas pelas excelentes oportuni-
dades que o comércio oferecia. Mercadores, financistas e senhores de engenho com amplas co-
nexões internacionais, os cristãos-novos tiveram uma atuação importante no desenvolvimento
econômico da Capitania da Bahia. A maioria dos cristãos-novos da Bahia no século XVIII
não era grande magnata, mas constituía uma média burguesia financeiramente bem sucedida.
Como senhores de engenho, alguns cristãos-novos alcançaram grandes fortunas, pois além de
produtores eram os comerciantes de seus próprios produtos. Contudo, os contatos interna-
cionais de alguns cristãos-novos com importantes comerciantes italianos e franceses aponta
para a necessidade de pesquisas focadas na vida financeira desses indivíduos, pois as pesquisas
ainda não foram exaustivas e o tema mereceria mais investigações.
Uma das mais relevantes atividades na Colônia era o comércio de escravos. Os cristãos-
-novos, como toda a população colonial, estiveram intimamente ligados a esse comércio. Há,
entretanto, uma ressalva a fazer, que contradiz fundamentalmente afirmações estereotipadas
na historiografia e que a conjuntura estudada sob o ponto de vista dos cristãos-novos forne-
ce um exemplo concreto: apenas dois cristãos-novos identificados nessa pesquisa podem ser
considerados “traficantes” por comandarem navios negreiros que não lhes pertencia; um deles
era propriedade de um cristão-velho. Eles faziam a rota Bahia-Angola-Costa da Mina e, pelo
menos um desses traficantes esteve envolvido com o contrabando inglês na costa africana.
Entretanto, contratador de escravos, isto é, signatário de contratos adquiridos diretamente da
Coroa, nos termos considerados da época, não foi identificado neste grupo estudado.
Sobre os crimes cometidos pelos cristãos-novos da Bahia responsáveis pelo encarcera-
mento no Palácio dos Estaus, pode-se concluir que eram personalidades portadoras de enorme
variedade de comportamentos, atitudes e ideias – judaizantes convictos, descrentes, agnósti-
cos, católicos convictos, críticos em relação à Igreja e à Inquisição. Contudo eram judeus por
uma identidade marcada pela memória familiar, coletiva. Os dados apontaram para um judai-
zar em graus diferentes, com maior ou menor consciência do significado original dos ritos e
cerimônias que realizavam e qual a sua ingerência no cotidiano, ao indicar frequência de suas
observâncias. As orações encontradas nos processos revelaram certo conhecimento do judaís-
mo, mesmo que rudimentar, e um depoimento que pareceu de extrema importância pela sua
raridade, uma vez que descreve, com as palavras do réu, as atrocidades a que foi submetido por
um Familiar do Santo Ofício durante sua captura.
Como judaizantes secretos, existem exemplos curiosos da memória judaica relaciona-
da a relatos bíblicos enfatizando especialmente o sentimento de liberdade que lhes provinha
fortemente da experiência histórica do êxodo do Egito. Os acusados de judaísmo e conhece-

210
dores dos procedimentos do Tribunal da Inquisição criaram estratégias de defesa, tanto das
acusações quanto do perigo de confisco de seus bens. Forjavam dívidas, combinavam com
seus correligionários para não se delatarem, trocavam de nome para confusão das autoridades
inquisitoriais locais e reinóis e quando tinham oportunidade embrenhavam-se pelos sertões ou
procuravam outras regiões do mundo para se homiziarem.
As denúncias, caracterizadas de confissões, que eram obrigados a fazer em Mesa do
Santo Ofício quando presos, foi o caminho que levou reinóis a falarem de seus (supostos)
cúmplices então residentes na América portuguesa, tecendo uma malha que envolveu seus
parentes e amigos na Bahia. Assim foi a origem das prisões na capital da Colônia e seus arredo-
res. A corrente se estendia sem fim, e quando apresentados ou presos, os cristãos-novos eram
obrigados, às vezes sob tortura, a apontar seus companheiros na arte de judaizar. A confiança
era uma das bases para a continuidade do judaísmo. Em confiança, considerando que os mais
velhos orientavam para a melhor crença, para a salvação da alma, assentiam no cumprimento
dos ritos e cerimônias. Em confiança, declaravam-se mutuamente seguidores da Lei de Moisés.
Judaizando ou não, todos eram obrigados a conhecer ritos e cerimônias judaicos que compu-
nham o repertório das práticas consideradas heréticas pelos Editais de Fé e Monitórios. A aná-
lise das sentenças leva a inferências sobre sua arbitrariedade, já que as prisões e condenações se
davam não somente tendo como base a religiosidade mas, principalmente, por causa da origem
judaica dos seus antepassados.
As genealogias das famílias envolvidas com a Inquisição foram reconstituídas e revela-
ram que esse grupo cristão-novo foi formado sobretudo por relações de parentesco, por mais
longínquo que fosse o grau de consanguinidade. Identificou-se todos os cristãos-novos luso-
-brasílicos que foram presos e denunciados a partir dos processos inquisitoriais e das listas
nominais publicadas com base em documentação inquisitorial.
Na medida do possível os cristãos-novos que viveram na Capitania da Bahia no início
do século XVIII conseguiram integrar-se em uma sociedade que legalmente os excluía. A ca-
racterística essencial deles – e esta é uma constatação importante – foi o serem “estrangeiros”.
Como tais se confrontavam com os “nativos” e após as primeiras dificuldades venceram e se
integraram no novo “habitat”.
Quem foram esses cristãos-novos da Bahia que responderam a processo inquisitorial
por culpas de criptojudaísmo? Encontram-se pessoas de diferentes condições socioeconômi-
cas. A Inquisição portuguesa, malgrado apoiar-se nos confiscos para enriquecer seus cofres
e financiar suas atividades, não somente aprisionou ricos homens de negócios, senhores de
engenho e suas famílias, como também aqueles que dispunham unicamente da roupa do cor-
po. Uma forma de estar constantemente justificando o propósito de manutenção da doutrina
católica tendo por trás de interesses mais temporais.

211
Referências

FONTES PRIMÁRIAS MANUSCRITAS

ANTT/TSO-IL Processos nº.


Sentenciado Número do Processo
1 Álvaro Ferreira da Silva 2459
2 Ana Bernal de Miranda 2424
3 Ângela de Mesquita 5348
4 Antonio Cardoso Porto 8887
5 Antonio da Fonseca 10484
6 Antonio de Miranda 5002
7 Antonio Fernandes Pereira 10481
8 Antonio Lopes da Costa 6540
9 Antonio Rodrigues de Campos 2139
10 Antonio Roiz Garcia 6292
11 Brites Lopes 9925
12 David de Miranda 7489
13 Diogo de Ávila 7484
14 Diogo de Ávila Henriques 2121
15 Diogo Henriques Ferreira 9130
16 Félix Nunes de Miranda 2293
17 Francisca Henriques 10156
18 Francisco Nunes de Miranda 1292
19 Gaspar Henriques 6486
20 Ignácio Cardoso de Azeredo 5447
21 Jerônimo Rodrigues 10003
22 João da Cruz 9089
23 João de Morais Montesinhos 11769
24 João Gomes de Carvalho 8764
25 Joseph da Costa 10002
26 Manuel Lopes Henriques 7201
27 Manuel Mendes Monforte 675
28 Manuel Nunes Sanches 11824
29 Manuel Nunes da Paz 9542
30 Maria Bernal de Miranda 1820
31 Miguel Nunes de Almeida 9248
32 Pedro Nunes de Miranda 9001
33 Simão Rodrigues Nunes 1001
34 Thomas Pinto Correa 1004
35 Violante Rodrigues de Miranda 11403

213
Livro de Óbitos da Freguesia da Sé, 1734 a 1762, fl. 172, Cúria Metropolitana de Salvador.
Livro de Notas, 18A, p. 198, 198v e 199. APEB.
Livro de Passaportes e Guias, 1718-1729, mms. Maço 248. Arquivo Público do Estado da
Bahia. Documento datado em 22 de maio de 1719.
“Escritura de herança passada por David Israel Bernal a Ana Bernal de Miranda e Maria
Bernal de Miranda” Amsterdã, 24 de outubro de 1775. Documento localizado pelo Prof. Dr.
Gerard Nahon, cedida cópia à Profa. Dra. Anita NOVINSKY e esta à autora desta tese. Geme-
ente Archief, Amsterdã, P.A. 334, 95; p. 117-118.

FONTES PRIMÁRIAS IMPRESSAS

ABREU, Capistrano de (Ed.). 1ª Visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil, pelo licenciado
Heitor Furtado de Mendonça: confissões da Bahia, 1591-1592. Rio de Janeiro: F. Briguet,
1935.
ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo:
Edusp, 1982. (Col. Reconquista do Brasil, nova série, v. 70).
AZEVEDO, J. Lúcio de. Notas sobre o judaísmo e a Inquisição no Brasil. RIHGB, Rio de
Janeiro, tomo 91, v. 145, p. 680 e segs., 1926.
CALMON, Pedro. Introdução e notas ao Catálogo Genealógico das Principais Famílias, de
Frei Jaboatão. Salvador: EGBA, 1985. 2 v.
CARVALHO, Flávio Mendes. Raízes judaicas do Brasil: o arquivo secreto da Inquisição. São
Paulo: Nova Arcádia, 1992.
CUNHA, D. Luiz da. Testamento político; ou, carta escrita pelo grande D. Luís da Cunha ao
senhor rei D. José I antes do seu governo, o qual foi do Conselho dos Senhores D. Pedro II,
e D. João V, e seu Embaixador às cortes de Vienna, Haya e de Paris, onde morreu em 1749.
Revisão e nota introdutória de Nanci Leôncio. São Paulo: Alfa-Ômega, 1976.
DOCUMENTOS HISTÓRICOS DO ARQUIVO MUNICIPAL. Atas da Câmara, 1700-1718.
7° v. Salvador: Pref. Municipal de Salvador, 1984.
DOCUMENTOS HISTÓRICOS DO ARQUIVO MUNICIPAL. Atas da Câmara, 1718-
1731.8° v. Salvador: Pref. Municipal de Salvador, 1985.
DOCUMENTOS HISTÓRICOS DO ARQUIVO MUNICIPAL. Atas da Câmara, 1731-1750.
9° v. Salvador: Câmara Municipal; Fundação Gregório de Matos, 1994.
EYMERIC, N.; PEÑA, F. Le Manuel des Inquisiteurs. Introd. traduction et notes par Louis
Sala-Molins. Paris: École Pratiques des Hautes Études; Sorbonne: Mouton. 1973.

214
FRANÇA, Eduardo d’Oliveira; SIQUEIRA, Sonia. Introdução à Segunda Visitação do Santo
Ofício às partes do Brasil pelo Inquisidor e Visitador o licenciado Marcos Teixeira. Livro das
confissões e ratificações da Bahia. 1618-1620. Anais do Museu Paulista, São Paulo, tomo 17,
1963. Separata.
GAIO, Felgueiras (1750-1831). Nobiliário de famílias de Portugal. Tomo 20. Braga: Agostinho
de Azevedo Meirelles, Domingos de Araújo Affonso (Ed.); Pax, 1938-1941.
GOMES, Plínio Freire. Um herege vai ao paraíso: cosmologia de um ex-colono condenado
pela Inquisição (1680-1744). São Paulo: Cia. das Letras, 1997.
LISANTI, Luís. Negócios coloniais: uma correspondência comercial do século XVIII. Brasília,
DF: Ministério da Fazenda, 1975. 5 v.
LIVRO DAS DENUNCIAÇÕES que se fizerão na Visitação do Santo Offício à cidade do
Salvador da Bahia de Todos os Santos do Estado do Brasil, no anno de 1618. Inquisidor e
Visitador Marcos Teixeira. Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, v. 49, 1927. Rio de
Janeiro: Biblioteca Nacional, 1936.
NAHON, Gerard. Les “nations” juives Portugaises du Sud-Ouest de la France (1684-1791).
Paris: Fundação Calouste Gulbenkian; Centro Cultural Português, 1981. (Col. Fontes
Documentais Portuguesas, v. XV).
NAHON, Gerard. Les registre des deliberations de la nation juive Portugaise de Bordeaux
(1711-1787). Introd. et notes par Simon Schwarzfuchs. Paris: Fundação Calouste Gulbekian;
Centro Cultural Português, 1981. (Col. Fontes Documentais Portuguesas, v. 14).
NOTÍCIAS recônditas do modo de proceder da inquisição com os seus presos (autor
anônimo). In: VIEIRA, Pe. Antonio. Obras Escolhidas, v. 4: obras várias (II): os judeus e a
Inquisição. Lisboa: Liv. Sá da Costa, 1951. p. 139-244.
REGIMENTO do Santo Ofício da Inquisição dos Reynos de Portugal, Ordenado por Mandado
do Ilm° & Rm° Snor Bispo Dom Francisco de Castro, Inquisidor Geral, do Conselho de S.
Magde. Lisboa: Of. Manoel da Silva, 1640.
REGIMENTO do Santo Ofício de 1640. Introdução de Sonia A. Siqueira. Revista do IHGB,
Rio de Janeiro, v. 157, n. 392, p. 693-884, jul./set. 1996.
REGIMENTOS dos comissários e escrivães do seu cargo, dos qualificadores e dos familiares
do Santo Ofício. Introdução de Luiz Mott. Salvador: Centro de Estudos Baianos da UFBA,
1990. (Col. Universitas, n. 140).
SANCHES, Antonio Nunes Ribeiro. Origem da denominação de christão-velho e christão novo
em Portugal. Introdução de Raul Rêgo. Lisboa: [s. n.], 1956.
USQUE, Samuel. Consolação às tribulações de Israel. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
1989.

215
VAINFAS, Ronaldo (Org.). Confissões da Bahia: Santo Ofício da Inquisição de Lisboa. São
Paulo: Companhia das Letras, 1997.
VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. A. Excertos de várias listas de condenados pela
Inquisição de Lisboa, desde o ano de 1711 ao de 1767 compreendendo só brasileiros ou
colonos estabelecidos no Brasil. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de
Janeiro, tomo VII, p. 54-86, 1931.
VIEIRA, Pe. Antonio. Os judeus e a Inquisição In: VIEIRA, Pe. Antonio. Obras escolhidas: v.
4: obras várias (II). Prefácio e notas de António Sérgio e Hernani Cidade. Lisboa: Livraria Sá
da Costa Ed., 1951. (Coleção de Clássicos Sá da Costa).
VILHENA, Luís dos Santos. A Bahia no século XVIII. Salvador: Itapuã, 1969. 3 v.

OBRAS DE REFERÊNCIA

ALMEIDA, A. A. Marques de (dir.). Dicionário histórico dos sefarditas portugueses:


mercadores e gente de trato. Lisboa: Campo da Comunicação; Cátedra de Estudos Sefarditas
Alberto Benveniste, 2009.
BLUTEAU, Raphael. Diccionario da lingua portugueza composto pelo padre D. Rafael Bluteau,
reformado, e accrescentado por Antonio de Moraes Silva natural do Rio de Janeiro. 2 tomos.
Lisboa: Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1789. Disponível em: <www.brasiliana.usp.br>.
Acesso em: 6 jan. 2011.
FERREIRA, J. Pires (Org.). Enciclopédia dos municípios brasileiros. Rio de Janeiro: IBGE,
1958. v. 20, 21.
GUERRA, Luís de Bívar (Org.). Inventário dos processos da Inquisição de Coimbra (1541-
1820). Paris: Fundação Calouste Gulbenkian; Centro Cultural Português, 1972. 2 v. (Fontes
Documentais Portuguesas IV. Leitura e Introd. Luís de Bívar Guerra).
NOVINSKY, Anita. Gabinete de investigação: uma “caça aos judeus” sem precedentes. São
Paulo: Humanitas; Fapesp, 2007. Fontes inéditas para a História do Brasil e de Portugal - IV.
NOVINSKY, Anita. Inquisição I: inventários de bens confiscados a cristãos novos: fontes para
a história de Portugal e do Brasil. Lisboa: Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 1978.
NOVINSKY, Anita. Inquisição: prisioneiros do Brasil: séculos XVI-XIX. Rio de Janeiro:
Expressão e Cultura, 2002.
NOVINSKY, Anita. Inquisição: rol dos culpados: fontes para a história do Brasil: séc. XVIII.
Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1992.
ROMEIRO, Adriana; BOTELHO, Angela Vianna. Dicionário Histórico das Minas Gerais:
período colonial. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.
SALA-MOLINS, Louis. Le Dictionnaire des Inquisiteurs. Valence, 1494. Paris: Galilée, 1981.

216
UNTERMAN, Alan. Dicionário judaico de lendas e tradições. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1992.
WOLFF, Egon; WOLF, Frieda. Dicionário biográfico I: judaizantes e judeus no Brasil: 1500-
1808. Rio de Janeiro: IHGB, 1986.

BIBLIOGRAFIA ESPECÍFICA

AMES, Christine Caldwell. Does Inquisition belong to religious history? The American
Historical Review, v. 110, n. 1, p. 11-37, 2005. Doi:10.1086/ahr/110.1.11.
AMIEL, Charles. Os cárceres de Vigia da Inquisição Portuguesa. In: NOVINSKY, Anita;
KUPERMAN, Diane (Org.). Ibéria judaica: roteiros da memória. Rio de Janeiro: Expressão e
Cultura; São Paulo: Edusp, 1996. p. 141-150.
ARAÚJO JÚNIOR, Adalberto Gonçalves. Cristãos-novos e a inquisição no século do ouro em
Goiás. 1998. 208 f. Dissertação (Mestrado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998.
ARAÚJO JÚNIOR, Adalberto Gonçalves. No ventre da baleia: o mundo de um padre
judaizante no século XVIII. 2006. 211 f. Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006.
ASSIS, Ângelo Adriano Faria de. As “mulheres-rabi” e a Inquisição na Colônia: narrativas de
resistência judaica e criptojudaísmo feminino: os Antunes, macabeus da Bahia (séculos XVI-
XVII). In: VAINFAS, Ronaldo; FEITLER, Bruno; LAGE, Lana (org.). A Inquisição em xeque:
temas, controvérsias, estudos de caso. Rio de Janeiro: Eduerj, 2006. p. 179-191.
ASSIS, Ângelo Adriano Faria de. Macabeias da Colônia: criptojudaísmo feminino na Bahia.
São Paulo: Alameda, 2012.
AZEVEDO, J. Lúcio de. História dos cristãos-novos portugueses. 3. ed. Lisboa: Clássica, 1989.
BAER, Yitzhak. Introduction. In: BAER, Yitzhak. A history of the Jews in Christian Spain:
from the age of reconquest to the fourteenth century: v. 1. Philadelphia: The Jewish
Publication Society of America, 1961.
BAIÃO, Antonio. Episódios dramáticos da Inquisição portuguesa. Lisboa: Imprensa Nacional;
Casa da Moeda, [1919].
BAROJA, J. Caro. Inquisición, brujeria y criptojudaismo. 3 ed. Barcelona: Ariel, 1974
BAROJA, J. Caro. Los judios en la España moderna y contemporanea. Madrid: Arion, 1961.
BENNASSAR, Bartolomé. Modelos de la Mentalidad Inquisitorial: métodos de su “Pedagogía
del Miedo”. In: ALCALÁ, Angel (Org.). Inquisición Española y mentalidad inquisitorial.
Barcelona: Ariel, 1984. p. 174-184.

217
BENNASSAR, Bartolomé. Une fidelité difficile: les nouveaux chrétiens de Bahia et de Rio de
Janeiro aux XVII et XVIII siècles. Historie, Economie et Societé, Paris, v. 7, n. 2, p. 209-220,
1988.
BETHENCOURT, Francisco. História das inquisições: Portugal, Espanha e Itália: séculos XV-
XIX. São Paulo: Cia. das Letras, 2000.
BODIAN, Myriam. Hebrews of the Portuguese nation: conversos and community. In:
BODIAN, Myriam. Early modern Amsterdam (The modern jewish experience). Indianapolis:
Indiana University, 1999.
BRAGA, Isabel M. R. M. Drumond. Bens de hereges: Inquisição e cultura material: Portugal e
Brasil (séculos XVII-XVIII). Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012.
BRAGA, Maria Luísa. A Inquisição na época de D. Nuno da Cunha de Ataíde e Melo (1707-
1759). Lisboa: Centro de História da Cultura da Univ. Nova de Lisboa, 1982.
BROMBERG, Rachel Mizrahi. Inquisição no Brasil: um capitão-mor judaizante. São Paulo:
FFLCH/USP; Centro de Estudos Judaicos, 1984.
CALAINHO, Daniela B. Agentes da fé: familiares da Inquisição portuguesa no Brasil colonial.
Bauru, SP: Edusc, 2006.
CARNEIRO, M. Luiza Tucci. Racismo e preconceito no Brasil Colônia. 2. ed. São Paulo:
Brasiliense, 1983.
CAROLLO, Denise. A política inquisitorial na Restauração Portuguesa e os cristãos-novos.
1995. Dissertação (Mestrado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1995.
CASTILHO, Miguel de. Les officiants de la mort. Temps Modernes, Paris, n. 261, p. 1337-
1372, fev. 1968.
CONTRERAS, Jaime. Family and patronage: the judeo-converso minority in Spain. In:
CRIADO, Pilar Huerga. En la raya de Portugal: solidariedad y tensiones en la comunidad
judeoconversa. Salamanca: Ed. Univ. Salamanca, 1993.
PERRY, Mary Elisabeth; CRUZ, Anne J. (Ed.). Cultural encounters: the impact of the
Inquisition in Spain and the New World. Berkeley: University of California, 1991. p. 127-145.
DELUMEAU, Jean. A confissão e o perdão: as dificuldades da confissão nos séculos XII ao
XVIII. São Paulo: Cia. das Letras, 1991.
ESCAMILLA-COLIN, Michèle. Crimes et chatiments dans l’Espagne Inquisitoriale I. Paris:
Berg International, 1992.
ESCANDEL, Bartolomé. La Inquisition como dispositivo de control social y la Previvencia
actual del “modelo inquisitorial”. In: ALCALÁ, Angel (Org.). Inquisición Española y
mentalidade inquisitorial. Barcelona: Ariel, 1984. p. 597-611.

218
FARINHA, M. do Carmo J. Dias. Os arquivos da Inquisição. Lisboa: Arq. Nac. da Torre do
Tombo, Serv. de Publ. e Divulgação, 1990.
FAUR, José. Four classes of conversos: a typological study. Revue des Études Juives, Paris, v.
149, n. 1-3, p. 113-124, janvier/juin 1990.
FEITLER, Bruno. “Da “prova” como objeto de análise da práxis inquisitorial: o problema
dos testemunhos singulares no Santo Ofício português”. In: FONSECA, Ricardo Marcelo;
SEELAENDER, Airton C. L (Org.). História do direito em perspectiva: do antigo regime à
modernidade. Curitiba: Juruá, 2008. p. 305-314.
FEITLER, Bruno. Les nouveaux-chretiens dans la capitainerie du Paraíba au XVIIIe siècle. In:
MATTOSO, Kátia (Org.). Cahier du Brésil Contemporain, Paris, n. 32, p. 219- 282, 1997.
FEITLER, Bruno. L’Inquisition et les nouveaux-chrétiens dans la société Brésilienne au
XVIIIe siècle: la capitainerie de Paraíba. 1997. Dissertação (Mestrado) – École des Hautes
Études en Sciences Sociales, Paris, 1997.
FEITLER, Bruno. Nas malhas da consciência: Igreja e Inquisição no Brasil: Nordeste, 1640-
1750. São Paulo: Alameda; Phoebus, 2007.
FEITLER, Bruno. Processos e Práxis inquisitoriais: problemas de método e de interpretação.
Revista de fontes, Guarulhos, n. 1, p. 55-64, 2014-2.
FERNANDES, Neusa. A Inquisição em Minas Gerais no século XVIII. 2. ed. Rio de Janeiro:
Eduerj, 2004.
FLORY, Rae Jean Dell. Bahian society in the mid-colonial period: the sugar planters, tobacco
growers, merchants and artisans of Salvador and the Reconcavo, 1680-1725. 1978. Tese
(Doutorado) – University of Texas, Austin, 1978.
FLORY, Rae Jean Dell; SMITH, David G. Bahian merchants and planters in the seventeenth
and early eighteenth centuries. Hispanic American Historical Review, v. 58, n. 4, p. 571-549,
1978.
FONSECA, Carlos Eduardo Calaça Costa. “Xstãos novos” naturais do reino e moradores na
cidade do Rio de Janeiro (1650-1710). 1999. 225 f. Dissertação (Mestrado em História Social)
– Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo,
1999.
FONSECA, Célia Freire A. Comércio e Inquisição no Brasil do séc. XVIII. In: NOVINSKY,
Anita; CARNEIRO, M. Luiza Tucci (Org.). Inquisição: ensaios sobre mentalidade, heresias e
arte. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1992. p. 195-207.
FRANÇA, Eduardo d’Oliveira. Engenhos, colonização e cristãos novos na Bahia. In:
SIMPÓSIO NACIONAL DA ANPUH, 4., 1969, São Paulo. Anais... São Paulo: ANPUH, 1969.
p. 181-242.

219
FREITAS, Jordão de. O Marquez de Pombal e o Santo Ofício da Inquisição. Lisboa: Sociedade
Editorial José Bastos, 1916.
GINSBURG, Carlo. O Inquisidor como antropólogo: uma analogia e as suas implicações. In:
GINSBURG, Carlo. A micro história e outros ensaios. Rio de Janeiro: Bertrand, 1989.
GITLITZ, David. Secrecy and deceit. Philadelphia; Jerusalem: The Jewish Publication Society,
1996.
GORENSTEIN, Lina. A Inquisição contra as mulheres: Rio de Janeiro, séculos XVII e XVIII.
São Paulo: Humanitas; FAPESP, 2005.
GORENSTEIN, Lina. Um Brasil subterrâneo: cristãos novos no século XVIII. In:
GRINBERG, Keila (Org.). Os judeus no Brasil: Inquisição, imigração e identidade. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 137-160.
HERCULANO, Alexandre. História da origem e estabelecimento da Inquisição em Portugal.
Lisboa: Bertrand; Rio de Janeiro: Paulo de Azevedo, [19--]. 3 t.
HERSON, Bella. Cristãos-novos e seus descendentes na medicina brasileira. (1500-1850). São
Paulo: Edusp, 1996.
KAYSERLING, Meyer. História dos judeus em Portugal. São Paulo: Pioneira, 1971.
KRIEGEL, Maurice. Le marranisme: histoire intelligible et mémoire vivante. Annales.
Historie, Sciences sociales. Paris, v. 57, n. 2. p. 323-334, mars/avril 2002.
LEWKOWICZ, Ida. Confiscos do Santo Ofício e formas de riquezas nas Minas Gerais do séc.
XVIII. In: NOVINSKY, Anita; CARNEIRO, M. Luiza Tucci (Org.). Inquisição: ensaios sobre
mentalidade, heresias e arte. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1992. p. 208-223.
LUSTOSA, Fernanda Mayer. Raízes judaicas na Paraíba colonial: séculos XVI a XVIII. 2000.
158 f. Dissertação (Mestrado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2000.
MARCOCCI, Giuseppe; PAIVA, José Pedro. História da Inquisição portuguesa: 1536-1821.
Lisboa: A Esfera dos Livros, 2013.
MATTOSO, Kátia Q. Inquisição: os cristãos novos da Bahia no século XVII. Ciência e
Cultura, n. 4, v. 30, p. 415-427, abr. 1978.
MENDONÇA, José Lourenço D.; MOREIRA, Antonio Joaquim. História dos principais actos
e procedimentos da Inquisição em Portugal. Lisboa: Casa da Moeda, 1980.
MIGUEL, Juan Blazquez. Sinceridad religiosa de los nuevos cristianos: parte II: siglo XV (I).
In: MIGUEL, Juan Blazquez. Inquisición y criptojudaísmo. Madrid: Kaydeda, 1988. p. 48-83.
MIZRAHI, Rachel. Miguel Telles da Costa: capitão-mor judaizante de Paraty. São Paulo:
Maayanot, 2015.

220
MOTT, Luiz. Pontas de lança do “Monstrum Horrendum”: comissários, qualificadores e
notários do Santo Ofício na Bahia (1692-1804). In: FEITLER, Bruno; SOUZA, Evergton Sales
(Org.). A Igreja no Brasil: normas e práticas durante a vigência das Constituições Primeiras
do Arcebispado da Bahia. São Paulo: Unifesp, 2011. p. 203-230.
MOTT, Luiz. 1591-1991: 4° Centenário da Visitação do Santo Ofício ao Brasil. Diário Oficial
Leitura da Imprensa Oficial de São Paulo, São Paulo, v. 10, n. 110, p. 1-3, jun. 1991.
MOTT, Luiz. Um nome em nome do Santo Ofício: o cônego João Calmon, comissário da
Inquisição na Bahia setecentista. Universitas, Revista da Universidade Federal da Bahia,
Salvador, n. 37, p. 15-31, jul./set. 1986.
MOTT, Luiz. A Inquisição em Sergipe; do século XVI ao XIX. Aracajú: Sercore, 1989.
MURAKAWA, Clotilde de A. Azevedo. Inquisição portuguesa: vocabulário do direito penal.
In: NOVINSKY, Anita; KUPERMAN, Diane (Org.). Ibéria judaica: roteiros da memória. Rio
de Janeiro: Expressão e Cultura; São Paulo: Edusp, 1996. p. 151-162.
NAZÁRIO, Luiz. O julgamento das chamas: autos de fé como espetáculos de massa. In:
NOVINSKY, A.; CARNEIRO, M. Luiza Tucci (Org.). Inquisição: ensaios sobre mentalidade,
heresias e arte. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura; São Paulo: EDUSP, 1992. p. 525-546.
NAZÁRIO, Luiz. Autos-de-fé como espetáculos de massa. São Paulo: Humanitas, 2005.
NETANYAHU, Benzion. ¿Motivos o pretextos? La razón de la Inquisición. In: ALCALÁ,
Angel (Org.). Inquisición Española y mentalidad inquisitorial. Barcelona: Ariel, 1984.
NETANYAHU, Benzion. The origins of the Inquisition In fifteenth century Spain. New York:
Random House, 1995.
NOVINSKY, Anita. A gente das bandas do sul. O Estado de São Paulo, São Paulo, 14 abr.
1967. Suplemento Literário.
NOVINSKY, Anita. A Igreja no Brasil Colonial: agentes da Inquisição. Anais do Museu
Paulista, São Paulo, tomo 33, p. 17-34, 1984.
NOVINSKY, Anita. A Inquisição. 7. ed, São Paulo: Brasiliense, 1990.
NOVINSKY, Anita. A Inquisição na Bahia: um relatório de 1632. Revista de História, São
Paulo, n. 74, p. 417-423, 1968.
NOVINSKY, Anita. A Inquisição no Brasil. Revista Problemas Brasileiros, São Paulo, n. 289,
jan./fev. 1992. Separata.
NOVINSKY, Anita. A Inquisição no Brasil: judaizantes ex-alunos da Universidade de
Coimbra. Universidade(s). História, Memória, Perspectivas, Coimbra, v. 4, p. 315-27, 1991.
Comissão Organizadora do Congresso “História da Universidade”.
NOVINSKY, Anita. A Inquisição portuguesa a luz de novos estudos. Revista de la Inquisición,
Madrid, n. 7, p. 297-307, 1998.

221
NOVINSKY, Anita. A Inquisição: uma revisão histórica. In. NOVINSKY, Anita; CARNEIRO,
M. Luiza Tucci Inquisição: ensaios sobre mentalidade, heresias e arte. Rio de Janeiro:
Expressão e Cultura, 1992. p. 3-10.
NOVINSKY, Anita. A pesquisa histórica sobre o cristão-novo no Brasil. Revista de História,
São Paulo, n. 88, p. 493-505, 1971.
NOVINSKY, Anita. Confessa ou morre: o conceito de confissão na Inquisição Portuguesa.
Sigila. Revista Transdisciplinar Luso-francesa sobre o Segredo, Paris, n. 5, p. 77-86, 2000.
NOVINSKY, Anita. Cristãos-novos no Brasil: uma nova visão do mundo. Mélanges offerts à
Frédéric Mauro, Paris, Lisboa, v. 34, p. 387-397, dez. 1995.
NOVINSKY, Anita. Cristãos-novos na Bahia: 1624-1654. São Paulo: Perspectiva, 1972.
NOVINSKY, Anita. Exclusão, resistência e identidade. Revista A Hebraica, São Paulo, p. 40-
43, dez. 1996.
NOVINSKY, Anita. Fontes para a história econômica e social do Brasil: inventários dos bens
de condenados pela Inquisição. Revista de História, São Paulo, v. 48, n. 98, p. 359-392, 1974.
NOVINSKY, Anita. Impedimentos ao trabalho livre no período inquisitorial e as respostas
da realidade brasileira. In: SIMPÓSIO NACIONAL DA ANPUH, 4., 1973, São Paulo. Anais...
São Paulo: ANPUH, 1973. Separata, p. 231-254.
NOVINSKY, Anita. Inquisição, anti-semitismo e fascismo. In: NOVINSKY, Anita;
KUPERMAN, Diane (Org.). Ibéria judaica: roteiros da memória. Rio de Janeiro: Expressão e
Cultura; São Paulo: EDUSP, 1996.
NOVINSKY, Anita. Jewish roots of Brazil. In: ELKIN, J.; MERKX, G. (Ed.). The jewish
presence in Latin America. Boston: Allen A. Unimeris, 1987. p. 33-44.
NOVINSKY, Anita. Juifs et nouveaux chretiens du Portugal. In: MECHOULAN, Henri
(Org.). Les juifs d’Espagne: histoire d’une diaspora, 1492-1992. Paris: Liana Levi, 1992. p. 75-
104.
NOVINSKY, Anita. La Inquisición y la burguesía brasileña (s. XVIII). CHELA, Cusco, n. 4, p.
65-75, 1989.
NOVINSKY, Anita. Les marranes: le judaisme laique dans le Nouveau Monde. Panoramiques,
Cond-sur-Noireau, p. 92-96, 1992.
NOVINSKY, Anita. Marranos e Inquisição: sobre a rota do ouro em Minas Gerais. In:
GRINBERG, Keila (Org.). Os judeus no Brasil: Inquisição, imigração e identidade. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 161-195
NOVINSKY, Anita. New christians, rationalism and de-catholization of the New World. In:
AVILLEZ, Martin (Ed.). The 23. New York: Lusitania Press, 2001. p. 8-15.

222
NOVINSKY, Anita. Nouveaux chretiens et juifs sefarades au Bresil. In: MECHOULAN, Henri
(Org.). Les juifs d’Espagne: histoire d’une diaspora, 1492-1992. Paris: Liana Levi, 1992. p. 653-
672.
NOVINSKY, Anita. O papel da mulher no criptojudaísmo português. In: CONGRESSO
INTERNACIONAL O ROSTO FEMININO DA EXPANSÃO PORTUGUESA. 1994, Lisboa.
Anais... Lisboa: Comissão para a igualdade e para os Direitos das Mulheres, 1994. p. 549-555.
NOVINSKY, Anita. O Tribunal da Inquisição em Portugal. Revista USP, São Paulo, n. 5, p.
91-98, jul. 1987.
NOVINSKY, Anita. Reflexões sobre o anti-semitismo (Portugal, século XVI-XX). In:
CONGRESSO INTERNACIONAL PORTUGAL NO SÉCULO XVIII, DE D. JOÃO V À
REVOLUÇÃO FRANCESA, 1991, Lisboa. Anais... Lisboa: Sociedade Portuguesa de Estudos
do séc. XVIII; Universitária Editora, 1991. p. 451-461.
NOVINSKY, Anita. Ser marrano em Minas Colonial. Revista Brasileira de História. São Paulo,
v. 21, n. 40, p. 161-176, 2001.
NOVINSKY, Anita. Sistema de poder e repressão religiosa: para uma interpretação o
fenômeno cristão novo no Brasil. Anais do Museu Paulista, São Paulo, tomo 29, p. 5-12, 1979.
NOVINSKY, Anita. Some theoretical considerations about the new christian problem. In:
ISSACHAR, Ben-Ami. The sepharadi and oriental jewish heritage. Jerusalem: The Magnes
Press; The Hebrew Universty, 1982. p. 3-12.
NOVINSKY, Anita. The Inquisition and the mythic world of a Portuguese cabalist in the
eighteenth century. In: WORLD CONGRESS OF JEWISH STUDIES, 11. Second Temple
Period to Modern Times. Proceedings... Jerusalem, 1994. v. 1, p. 115-122.
NOVINSKY, Anita. Uma fonte inédita para a história do Brasil. Revista de História, São
Paulo, n. 94, p. 563-572, 1973.
NOVINSKY, Anita; PAULO, Amílcar. The last marranos. Commentary, New York, n. 5, p. 76-
81, March 1967.
ORTIZ, Antonio Domínguez. Los judeoconversos en España e America. Madrid: Istmo, 1971.
PAULO, Amílcar. Os criptojudeus. Porto: Athena, 1970.
PAULO, Amílcar. Os marranos nas Beiras. Revista Beira Alta, Viseu, p. 631-676, 1960.
PEREIRA, Ana Margarida Santos. A Inquisição no Brasil: aspectos da sua actuação nas
capitanias do sul (de meados do séc. XVI ao início do séc. XVIII). Coimbra: Faculdade de
Letras da Universidade de Coimbra, 2006.
PEREIRA, Isaías da Rosa. Considerações em torno da Carta de Lei de D. José I, de 1773,
relativa à abolição das designações de “Cristão Velho” e “Cristão Novo”. Lisboa: [s.n.] 1988.

223
RÉVAH, Israel. Os marranos. In: FALBEL, Nachman; GUINSBURG, Jacó. Os marranos. São
Paulo: Centro de Estudos Judaicos/USP, 1977. p. 91-152.
RODRIGUES, Aldair Carlos. Igreja e Inquisição no Brasil: agentes, carreiras e mecanismo de
promoção social: século XVIII. São Paulo: Alameda, 2014.
RODRIGUES, Aldair Carlos. Limpos de sangue: familiares do Santo Ofício, Inquisição e
sociedade em Minas colonial. São Paulo: Alameda, 2011.
ROTH, Cecil. Historia de los marranos. Madrid: Altalena, 1979.
SALDANHA, António Vasconcelos. Do Regimento da Inquisição portuguesa: notas sobre
fontes de direito. In NOVINSKY, Anita; CARNEIRO, M. Luiza Tucci (Org.). Inquisição:
ensaios sobre mentalidade, heresias e arte. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura; São Paulo:
EDUSP, 1992. p. 97-115.
SALVADOR, José Gonçalves. Cristãos-novos, jesuítas e Inquisição. São Paulo: Pioneira, 1976.
SALVADOR, José Gonçalves. Os cristãos-novos em Minas Gerais durante o ciclo do ouro, 1695-
1755: relações com a Inglaterra. São Paulo: Pioneira, 1992.
SALVADOR, José Gonçalves. Os cristãos-novos: povoamento e conquista do solo brasileiro:
(1530/1680). São Paulo: Pioneira; Ed. USP, 1972.
SALVADOR, José Gonçalves. Os magnatas do tráfico negreiro. São Paulo: Pioneira; Edusp,
1981.
SANTOS, Suzana Maria de Sousa. Marranos e Inquisição: (Bahia, século XVIII). 1997. 185
f. Dissertação (Mestrado em Língua Hebraica, Literatura e Cultura Judaicas) – Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1997.
SARAIVA, Antonio José. Inquisição e cristãos-novos. 5. ed. Lisboa: Estampa, 1985.
SCHWART, Samuel. Os cristãos-novos em Portugal no século XX. Lisboa: Instituto de
Sociologia e Etnologia das Religiões/Universidade Nova de Lisboa, 1993.
SCHWARTZ, Stuart. Cada um na sua lei: tolerância religiosa e salvação no mundo atlântico
ibérico. São Paulo: Cia. das Letras; Bauru, SP: Edusc, 2009.
SCHWARTZ, Stuart. Impérios intolerantes: unidade religiosa e o perigo da tolerância nos
impérios ibéricos da Época Moderna. In: VAINFAS, Ronaldo; MONTEIRO, Rodrigo Bentes
(orgs.). Império de várias faces. Relações de poder no mundo ibérico da Época Moderna. São
Paulo: Alameda, 2009, p. 25-48
SEVERS, Suzana. Defesa e arbitrariedade nas condenações do Santo Ofício da Inquisição a
cristãos-novos da Bahia setecentista. Cadernos de Estudos Sefarditas. Lisboa, v. 15, p. 85-98,
2016. Cátedra de Estudos Sefarditas Alberto Benveniste, Universidade de Lisboa.
SEVERS, Suzana. Memória e religiosidade marrana na Bahia colonial. In: COUTO, Edilece
S.; SILVA, Marco Antonio N. da; SOUZA, Grayce M. Bonfim. Práticas e vivências religiosas:

224
temas da história colonial à temporalidade luso-brasileira. Salvador: Edufba; Vitória da
Conquista, BA: Edições UESB, 2016. p. 281-296.
SEVERS, Suzana. “Sapatos ao mato”: o sentimento de “um triste homem que vem preso” pelo
Santo Ofício. Politéia: História e Sociedade, Vitória da Conquista, v. 11, n. 1, p. 105-125, jan./
jun. 2011.
SEVERS, Suzana. Um heresiarca na Bahia setecentista: judaísmo e Inquisição. Práxis. Revista
Eletrônica de História e Cultura, Salvador, v. 4, n. 5, p. 107-115, jan./dez. 2011.
SILVA, Lina Gorenstein Ferreira da. Heréticos e impuros: a Inquisição e os cristãos-novos no
Rio de Janeiro, século XVIII. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1995. (Col.
Biblioteca Carioca, v. 39, série publicação científica).
SILVA, Lina Gorenstein Ferreira da. “O sangue que lhes corre nas veias”: mulheres cristãs-
novas do Rio de Janeiro, século XVIII. 2v. 1999. Tese (Doutorado em História Social) –
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo,
1999.
SILVA, Marco Antonio Nunes da. As rotas de fuga: para onde vão os filhos da nação? In:
VAINFAS, Ronaldo; FEITLER, Bruno; LAGE, Lana (Org.). A Inquisição em xeque: temas,
controvérsias, estudos de caso. Rio de Janeiro: Eduerj, 2006. p. 161-177.
SILVA, Marco Antonio Nunes da. Disciplinar em nome de Deus, resistir pela vontade do
homem: heresia e liberdade na Inquisição portuguesa: estudos de caso. Cadernos de estudos
Sefarditas, Lisboa, v. 12-13, p. 105-134, 2014.
SILVERMAN, Joseph H. On knowing other people’s lives, inquisitorially and artistically.
In: PERRY, Mary Elisabeth; CRUZ, Anne J. (Ed.). Cultural encounter: the impact of the
Inquisition in Spain and the New World. Berkeley: University of California, 1991. p. 157-175.
SIQUEIRA, Sonia A. A Inquisição portuguesa e a sociedade colonial. São Paulo: Ática, 1978.
SIQUEIRA, Sonia A. O Brasil e os sefardins dos Países Baixos. Revista de História, São Paulo,
n. 88, p. 433-344, 1971.
SIQUEIRA, Sonia A. O momento da Inquisição. João Pessoa: Universitária, 2013.
SOUZA, Avanete Pereira. A Bahia no século XVIII: poder político local e atividades
econômicas. São Paulo: Alameda, 2012.
SOUZA, Grayce Mayre Bonfim. Para remédio das almas: comissários, qualificadores e
notários da Inquisição portuguesa na Bahia Colonial. Vitória da Conquista, BA: Edições
UESB, 2014.
SOYER, François. A perseguição aos judeus e muçulmanos de Portugal: D. Manuel I e o fim da
tolerância religiosa (1496-1497). Lisboa: Edições 70, 2013.

225
TORRES, José Veiga. Da repressão religiosa para a promoção social: a Inquisição como
instância legitimadora da promoção social da burguesia mercantil. Revista Crítica de Ciências
Sociais, Coimbra, n. 40, p. 105-135, out. 1994.
VAINFAS, Ronaldo. Justiça e misericórdia: reflexões sobre o sistema punitivo da Inquisição
portuguesa. In: NOVINSKY, A.; CARNEIRO, M. Luiza Tucci (Org.). Inquisição: ensaios sobre
mentalidade, heresias e arte. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura; São Paulo: EDUSP, 1992. p.
140-157.
VAINFAS, Ronaldo. Trópicos dos pecados: moral, sexualidade e Inquisição no Brasil colonial.
Rio de Janeiro: Campus, 1989.
WACHTEL, Nathan. Fé na lembrança: labirintos marranos. São Paulo: Edusp, 2009.
WACHTEL, Nathan. Mémoires marranes. Paris: Seuil, 2011.
WIZNITZER, Arnold. Os judeus no Brasil Colônia. São Paulo: Pioneira; Edusp, 1966.

BIBLIOGRAFIA GERAL E AUXILIAR

AGUIAR, Durval Vieira de. Província da Bahia: descrições práticas da Província da Bahia,
com declarações de todas as distâncias intermediárias das cidades, vilas e povoações. 2. ed.
Rio de Janeiro: Cátedra; Brasília, DF: INL, 1979.
ALGRANTI, Leila Mezan. Famílias e vida doméstica. In: SOUZA, Laura de Mello e (Org.)
História da vida privada no Brasil: v.1: cotidiano e vida privada na América Portuguesa. São
Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 83-154.
ARENDT, Hanna. Origens do Totalitarismo I: o antissemitismo, instrumento de poder, uma
análise dialética. Rio de Janeiro: Documentário, 1975.
ARIÈS, Philippe. A história das mentalidades In: LE GOFF, Jacques (Org.). A história nova.
São Paulo: Martins Fontes, 1990, p. 154-176.
AZEVEDO, J. Lúcio de. Épocas de Portugal econômico. 2. ed. Lisboa: Clássica, 1947.
AZEVEDO, Thales. Povoamento da cidade do Salvador. Salvador: Itapuã, 1969.
BÉDARIDA, François. La mémoire contre l’histoire. Esprit, Paris, n. 193, p. 7-13, juillet 1993.
BOXER, C. R. A idade de ouro do Brasil. 2. ed. São Paulo: Cia. Nacional, 1969.
BOXER, C. R. A mulher na expansão Ultramarina Ibérica: 1415-1815: alguns factos, idéias e
personagens. Lisboa: Livros Horizontes, 1977.
BOXER, C. R. Império Marítimo Português. 1415-1825. Lisboa: edições 70, [1977].
BOXER, C. R. Relações Raciais no Império Colonial Português, 1415-1825. 2 ed. Porto:
Afrontamento, 1988.

226
BRANDÃO, Maria de Azevedo. Cidade contra Recôncavo. Revista da Bahia. Salvador, v. 32,
nº 28, p. 9-19, jan. 1999.
BRAUDEL, Fernand. Escritos sobre a história. São Paulo: Perspectiva, 1978.
BRAVO, Maria Antonia Del y otros. Diaspora Sefaradí. Madri: Mapfre, 1992.
BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna. São Paulo: Cia. das Letras, 1989.
CAROLLO, Denise. Além do Atlântico e do Mediterrâneo: a atuação de uma rede comercial
no século XVII. In: FURTADO, Júnia Ferreira (Org.). Diálogos oceânicos: Minas Gerais e as
novas abordagens para uma história do Império Ultramarino Português. Belo Horizonte:
UFMG; Humanitas, 2001. p. 127-153.
COATES, Timothy J. Degredados e órfãs: colonização dirigida pela Coroa no império
português. 1550-1755. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos
Descobrimentos Portugueses, 1998.
CORRÊA, Elias A. Silva. História de Angola. 2 v. Lisboa: Ática, 1937.
CORTESÃO, Jaime. Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madri. Lisboa: Livros Horizonte,
1984. 2 v. (Col. Obras Completas de Jaime Cortesão, Série História, v. 21, 22)
DAMATTA, Roberto. A casa & a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. Rio de
Janeiro: Guanabara, 1987.
DAMATTA, Roberto. Relativizando: uma introdução à antropologia social. 5. ed. Rio de
Janeiro: Rocco, 1997.
DORO, Norma Marinovic. Guerra dos mascates, 1710. 1980. 199 f. Dissertação (Mestrado em
História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São
Paulo, São Paulo, 1980.
ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 1993.
EDWARDS, John. Religion and society in Spain, c. 1492. London: Variorum, 1996.
EDWARDS, John. Religious faith and doubt in late medieval Spain: Soria, circa 1450-1500.
Past and Present Revue, London, n. 120, p. 3-25, August 1988.
ELIAS, Norbert; SCOTSON, J. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder
a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
ELIAS, Norbert. O processo civilizatório I: uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1994.
FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
FIGUEIREDO, Luciano. O avesso da memória: cotidiano e trabalho da mulher em Minas
Gerais no século XVIII. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília, DF: Ed. UnB, 1993.

227
FIGUEIREDO, Luciano. O Império em apuros: notas para o estudo das “alterações”
ultramarinas e das práticas políticas no império colonial português, séculos XVII e XVIII. In:
FURTADO, Júnia Ferreira (Org.). Diálogos oceânicos: Minas Gerais e as novas abordagens
para uma história do Império Ultramarino Português. Belo Horizonte: UFMG; Humanitas,
2001. p. 197-254.
FORSTER, Ricardo. A ficção marrana: uma antecipação das estéticas pós-modernas. Belo
Horizonte: UFMG, 2006.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.
FREIRE, Gilberto. Casa grande e senzala: formação da família brasileira sob o regime da
economia patriarcal. 20. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980.
FURTADO, Júnia Ferreira. Homens de negócios: a interiorização da metrópole e do comércio
nas Minas setecentista. São Paulo: Hucitec, 1999.
GARCIA, Maria Antonieta. Os judeus de Belmonte: os caminhos da memória. Lisboa:
Instituto de Sociologia e Etnologia das Religiões/Universidade Nova de Lisboa, 1993.
GODINHO, Vitorino Magalhães. A estrutura da antiga sociedade portuguesa. Lisboa: Arcádia,
1971.
GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. 3. ed. Petrópolis, RJ: Vozes,
1985.
GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4. ed. Rio
de Janeiro: Guanabara, 1988.
GOLDBERG, David; KRAUSZ, Michael (Ed.). Jewish identity. Philadelphia: Temple
University, 1993.
GOLDBERG, David; RAYNER, John D. Os judeus e o judaísmo. Rio de Janeiro: Xenon, 1989.
GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. 5. ed. São Paulo: Ática, 1988
HALBWACHS, M. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.
ISRAEL, Jonathan. European jewry in the age of mercantilism: 1550-1750. Oxford: Clarendon,
1985.
KAPLAN, Yoseph. The travels of Portuguese JEws from Amsterdam to the “Lands of
idolatry”: (1644-1724). In: KAPLAN, Yoseph (Ed.). Jews and conversos: studies in society and
the Inquisition. Jerusalem: The Magnes; The Hebrew University, 1981. p. 197-224.
LANGMUIR, Gavin I. History, religion and antisemitism. Berkeley: University of California,
1990
LANGMUIR, Gavin I. Toward a definition of antisemitism. Berkeley: University of California,
1990.

228
LASCH, Christopher. O mínimo eu: sobrevivência psíquica em tempos difíceis. 4. ed. São
Paulo: Brasiliense, 1987.
LE GOFF, Jacques. A história nova. In: LE GOFF, Jacques. A história nova. São Paulo: Martins
Fontes, 1990. p. 26-64.
LE GOFF, Jacques. Mentalidades: uma história ambígua. In: LE GOFF, Jacques; NORA,
Pierre. História: novos objetos. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1986. p. 68-83
LEFEBVRE, Henri. Critique de la vie quotidienne. Paris: L’Arche, 1958.
LEITE, Serafim. Artes e ofícios dos jesuítas no Brasil: (1549-1760). Lisboa: Brotéria; Rio de
Janeiro: Livros de Portugal, 1953.
LIPINER, Elias. Santa Inquisição: terror e linguagem. Rio de Janeiro: Documentário, 1977.
LIPINER, Elias. Os judaizantes nas Capitanias de Cima: estudos sobre os cristãos novos do
Brasil nos séculos XVI e XVII. São Paulo: Brasiliense, 1969.
LÖWY, Michael. Redenção e utopia: o judaísmo libertário na Europa Central: um estudo de
afinidade eletiva. São Paulo: Cia. das Letras, 1989.
MADEIRA, Mário de Albuquerque. Letrados, fidalgos e contratadores de tributos no Brasil
Colonial. Brasília, DF: Coopermídia; Unafisco; Sindifisco, 1993.
MARTINS, Oliveira. O Brasil e as Colônias portuguesas. Lisboa: Guimarães, 1953.
MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Bahia: a cidade do Salvador e seu mercado no século XIX.
São Paulo: Hucitec; Salvador: Secretaria Municipal de Cultura, 1978.
MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Bahia opulenta: uma capital portuguesa no Novo Mundo
(1549-1763). Revista de História, São Paulo, n. 114, p. 6-20, jan./jun. 1983.
MAURO, Frédéric. Nova história, novo mundo. São Paulo: Perspectiva, 1969.
MAURO, Frédéric. Portugal, o Brasil e o Atlântico: 1570-1670. Lisboa: Estampa, 1988. 2v.
MAX, Frédéric. Prisioneiros da Inquisição. Porto Alegre: L&PM, 1991.
MESGRAVIS, Laima. Os aspectos estamentais da estrutura social do Brasil Colônia. Revista
Estudos Econômicos, São Paulo, n. 13, p. 799-811, 1983.
MICELI, Sergio. Introdução: a força do sentido. In: BOURDIEU, Pierre. A economia das
trocas simbólicas. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1982. p. 7-61.
MOTT, Luiz. Quatro mandingueiros de Jacobina na Inquisição de Lisboa. Revista Afro-Ásia.
Salvador, n. 16, p. 148-160, dez. 1995.
NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. Dez freguesias da cidade de Salvador: aspectos sociais e
urbanos do século XIX. Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia; EGBA, 1986.

229
NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. “Letras de risco” e “carregações” no comércio colonial da
Bahia: 1660-1730. Salvador: Centro de Estudos Baianos da UFBA, 1977.
NOVAIS, Fernando. Estrutura e dinâmica do antigo sistema colonial: (séculos XVI-XVIII). 6.
ed. São Paulo: Brasiliense, 1993
PERES, Fernando da Rocha. Gregório de Mattos e a Inquisição. Salvador: Centro de Estudos
Baianos da UFBA, 1987.
PEIXOTO, Afrânio. Breviário da Bahia. 2. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1946.
PINTO, Luiz de Aguiar de Costa. A Orla, o Mar e as Ilhas. Revista da Bahia. Salvador:
Fundação Cultural do Estado da Bahia; EGBa, v. 32, nº 28, p. 31-39, janeiro 1999.
PINHO, Wanderley. História de um engenho do Recôncavo: Matoim, Novo Caboto, Freguesia:
1552-1944. 2. ed. il. e acrescida de um apêndice. São Paulo: Ed. Nacional; Brasília, DF: INL;
Fundação Nacional Pró-Memória, 1982.
PINHO, Wanderley. História social da Cidade de Salvador: aspetos da história social da
cidade: 1549-1650. Salvador: Prefeitura Municipal de Salvador; Beneditinas, 1968. Tomo 1.
POLIAKOV, León. De Maomé aos marranos. São Paulo: Perspectiva, 1984.
POLIAKOV, León. O mito ariano. São Paulo: Perspectiva, 1974.
POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 2,
n. 3, p. 3-15, 1989.
QUENTAL, Antero de. Causas da decadência dos povos peninsulares. 5. ed. Lisboa: Ulmeiro,
1987.
RAPHÄEL, Freddy. Judaïsme et capitalisme: essai sur la controverse entre Max Weber et
Werner Sombart. Paris: Universitaire de France, 1982.
RODRIGUES, Teresa. Cinco séculos de quotidiano: a vida em Lisboa do século XVI aos nossos
dias. Lisboa: Cosmos, 1997.
ROCHA PITA, Sebastião da. História da América portuguesa: prefácio e notas de Pedro
Calmon. Rio de Janeiro; São Paulo; Porto Alegre: W. M. Jackson - Impressão São Paulo;
Gráfica Ed. Brasileira, 1950. (Clássicos Jackson, vol. XXX).
RUSSEL-WOOD, A. J. R. A emigração: fluxos e destinos. In: BETHECOURT, Francisco;
CHAUDHURI, Kirti. História da expansão portuguesa. Lisboa: Círculo de Leitores, 1998. v. 3,
p. 158-168.
RUSSEL-WOOD, A. J. R. As Frotas de Ouro do Brasil, 1710-1750. Revista Estudos
Econômicos. São Paulo n° 13, p. 701-717, 1983.
RUSSEL-WOOD, A. J. R. Fidalgos e filantropos: a Santa Casa da Misericórdia da Bahia: 1550-
1755. Brasília, DF: Ed. UnB, 1981.

230
RUSSEL-WOOD, A. J. R. Ritmos e destinos de emigração. In: BETEHNCOURT, Francisco;
CHAUDHURI, Kirti. História da expansão portuguesa. Lisboa: Círculo de Leitores, 1998. v. 2,
p. 114-125.
RUY, Affonso. História da Câmara Municipal da Cidade do Salvador. Salvador: Câmara
Municipal de Salvador, 1996.
SALGADO, Graça (Coord.) Fiscais e meirinhos: a administração no Brasil colonial. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
SANTOS, Milton. A formação do Recôncavo urbano. Revista da Bahia, Salvador, v. 32, n. 28,
p. 21-30, jan. 1999.
SCHWARTZ, Stuart. Burocracia e sociedade no Brasil Colonial. São Paulo: Perspectiva, 1979.
SCHWARTZ, Stuart. Free labor in a slave economy: the lavradores de cana of Colonial Bahia.
In: ALDEN, Dauril. Colonial roots of modern Brazil. Berkeley: University of California, 1973.
p. 147-197.
SCHWARTZ, Stuart. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial (1550-
1835). São Paulo: Cia. das Letras, 1988.
SÉRGIO, Antonio. Breve interpretação da História de Portugal. 13. ed. Lisboa: Sá da Costa,
1989.
SERRÃO, J. Veríssimo. História de Portugal. 1640-1750, v. 5, Lisboa: Verbo 1980.
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Vida privada e quotidiano no Brasil na época de D. Maria e D.
João VI. Lisboa: Estampa, 1993.
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Ser nobre na colônia. São Paulo: Edunesp, 2005
SIMONSEN, Robert. História econômica do Brasil (1500/1820). 4. ed. São Paulo: Cia. Ed.
Nacional, 1962. (Col. Brasiliana, série 5, v. 10).
SOBRAL NETO, Margarida. O papel da mulher na sociedade portuguesa setecentista:
contributo para o seu estudo. In: FURTADO, Júnia Ferreira (Org.). Diálogos oceânicos: Minas
Gerais e as novas abordagens para uma história do Império Ultramarino Português. Belo
Horizonte: UFMG; Humanitas, 2001. p. 25-44
SOMBART, Werner. The jews and modern capitalism. New York: Collier Books, 1962.
SOUZA, Laura de Mello e. O diabo na Terra de Santa Cruz. São Paulo: Cia. das Letras, 1986.
STRAUSS, Leo. Why We Remains Jews: Can Jewish Faith and History Still Speak to Us? In:
DEUTSCH, Kenneth L.; NICGORSKI, Walter. Leo Strauss Political Philosopher and Jewish
Thinker. Oxford: Rowman and Littlefield Publishers, 1993, p. 43-80.
TAVARES, Luís Henriques Dias. História da Bahia. 10. ed. rev. ampl. São Paulo: Ed. Unesp;
Salvador: Edufba, 2001.

231
TODOROV, Tzvetan. Nous et les autres: la réflexions française sur la diversité humaine. Paris:
Seuil, 1989.
VENANCIO, Renato Pinto. Comércio e fronteira em Minas Gerais colonial. In: FURTADO,
Júnia Ferreira (Org.). Diálogos oceânicos: Minas Gerais e as novas abordagens para uma
história do Império Ultramarino Português. Belo Horizonte: UFMG; Humanitas, 2001. p.
181-192.
VERGER, Pierre. Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o Golfo do Benin e a Bahia de
Todos os Santos: dos séculos XVII a XIX. 3. ed. São Paulo: Corrupio, 1987.
VERRI, Pietro. Observações sobre a tortura. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
VINCENT, Bernard. ‘Hacer las paces’: les Jésuites et la violance dans l’Espagne des XVIe
et XVIIe siècle”. In: DUVIOLS, Jean-Paul; MOLINIÉ-BERTRAND, Annie. La violence en
Espagne et en Amérique (XVe et XIXe siècles): Actes du colloque international Les Raisons
des Plus Forts. Paris: Presses de l’Université de Paris-Sorbonne, Paris, 1997. p. 189-196.
VOVELLE, Michel. Ideologias e mentalidades. São Paulo: Brasiliense, 1987.
WARD, W. R. Christianity under the Ancien Régime: 1648-1789. Cambridge: Cambridge
University, 1999.
WACHTEL, Nathan. Religiosité marrane et syncrétisme parmi les premiers groupes
des nouveaux-chrétiens au Mexique (XVIè siècle). In: ESCUDERO, José Antonio
(Ed.). Intolerancia e Inquisición. Madrid: Ministerio de Cultura; Sociedad Estatal de
Conmemoraciones Culturales, 2006. Tome 3, p. 401-408.
WEBER, Max. A psicologia social das religiões mundiais. In: WEBER, Max. Ensaios de
sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. p. 309-346.
WEBER, Max. Los tipos de dominación. In: WEBER, Max. Economia y sociedad: esbozo de
sociologia comprensiva. Mexico: Fondo de Cultura Económica, 1996.
WEBER, Max. O caráter geral das religiões asiáticas In: COHN, Gabriel (Org.) Weber,
sociologia. São Paulo: Ática, 1987. p. 142-159.
WEBER, Max. Rejeições religiosas do mundo e suas direções. In: WEBER, Max. Ensaios de
sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. p. 371-410.
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. 5. ed. São Paulo: Pioneira, 1987.
WILSON, Colin. O outsider: o drama moderno da alienação e da criação. São Paulo: Martins
Fontes, 1985.
YERUSHALMI, Y. H. De la cour d’Espagne au ghetto Italien. Paris: Arthème Fayard, 1987.
ZEMELLA, Mafalda P. O abastecimento da Capitania das Minas Gerais no século XVIII. 2. ed.
São Paulo: Hucitec; Edusp, 1990.

232
Apêndices
APÊNDICE A – Cristãos-novos residentes na Bahia, presos e denunciados à Inquisição
(séc. 1700-1748)
Fonte: ANTT/TSO-IL (processos arrolados nas Referências)

Legenda: # (Prisão)
AP: “apresentado” à Mesa do Santo Ofício, ou a autoridades inquisitoriais locais
AF (Auto de fé)
fº/fª (filho/filha de)
V. (Vila)
Freg. (Freguesia de)
Proc. nº (Processo número)
IL (Tribunal da Inquisição de Lisboa)
IC (Tribunal da Inquisição de Coimbra)
235

Xn (cristão-novo); xv (cristão-velho)
(continua)
Ocupação Datas de prisão/Auto
Nome Naturalidade Residência Observações
econômica de Fé/ Proc. nº
1. Alexandre de Lara Lavrador de milho e Guarda Termo da Vila #30 ago. 1734
de cana-de-açúcar de Fanados, AF: 18 out. 1739
Arcebispado da ANTT/TSO-IL Proc. nº
Bahia. 8024
2. Álvaro Ferreira da Cirurgião das naus Fundão Matoim, Ba. # 05 nov. 1748
Silva AF: 05 dez.1754
ANTT/TSO-IL Proc. nº
2459
3. Amaro Homem, Sacerdote do Hábito Bahia Bahia -
Pe. de S. Pedro
4. Amaro de Homem de negócio e Rio de Janeiro Bahia # 06 out. 1710
Miranda lavrador AF: 26 jul. 1711
Coutinho ANTT/TSO-IL Proc. nº
11150
(continuação)

Ocupação Datas de prisão/Auto


Nome Naturalidade Residência Observações
econômica de Fé/ Proc. nº
5. André Cavalo Senhor de Engenho Bahia Bahia -
6. André de Pina Tratante Bahia Bahia
7. Antonio Cardoso Tratante; “vendia Escalhão Salvador - Fº de José
(1) azeite de peixe” Cardoso e
Isabel Nunes,
∞Joana da Cruz
8. Antonio Cardoso Mercador Celorico Salvador - Fº Francisco
(2) Fernandes
9. Antonio Cardoso Homem de negócios Celorico Freguesia da Praia, # 22 nov. 1726 Fº de José
Porto ou Belchior Salvador AF: 17 jun. 1731 Cardoso
Mendes Correa ANTT/TSO-IL Proc. nº ∞Ângela
8887 Henriques
10. Antonio (Lopes Sem ofício Campos de V. de Cachoeira, - Fº Francisco
Camacho) Cachoeira, Ba. Ba. Fernandes
236

Camacho e
Luiza Pereira
11. Antonio Tratante Castela ou V. V. de Cachoeira, - -
Fernandes Nova de Foz Ba.
Camacho Côa
12. Antonio Mineiro Mogadouro Minas Novas de # 12 out. 1730
Fernandes Pereira Araçuaí, Ba. AF: 06 jul.1732
ANTT/TSO-IL Proc. nº
10481
13. Antonio da Lavrador de roça, Mogadouro Rio São Francisco, # 06 jul. 1728
Fonseca lavrador de mandioca, Ba. AF: 06 jul. 1732
criador de gado, ANTT/TSO-IL Proc. nº
tratante 10484
14. Antonio Gomes Mercador de loja Portugal Bahia -
(1)
15. Antonio Gomes Rendeiro V. de Almeida Bahia - Pai de Ana de
(2) Ávila
(continuação)
Ocupação Datas de prisão/Auto
Nome Naturalidade Residência Observações
econômica de Fé/ Proc. nº
16. Antonio Gomes Lavrador Salvador Salvador -
Vitória
17. Antonio Mercador de loja Bahia Bahia - Solteiro
Henriques (1)
18. Antonio Mercador V. de Almeida Bahia - ∞ Maria Nunes
Henriques (2)
19. Antonio Lopes da Homem de negócios, V. Viana do Salvador (morou #30 JUN 1728
Costa foi escrivão de nau e Minho também em AF:06 OUT 1729
homem do mar Angola) ANTT/TSO-IL Proc. nº
6540
20. Antonio de Curtidor Vila de Almeida Salvador # 06 out.1710
Miranda AF 1713
ANTT/TSO-IL Proc. nº
5002
237

21. Antonio Nunes Tratante [Ignorada] Campos de -


Cachoeira, Ba.
22. Antonio Nunes de Vive de pescarias Portugal Salvador -
Gama
23. Antonio Nunes “Navegava” para [Ignorada] Salvador -
Garcia Minas (comerciante)
24. Antonio Sem ofício [Ignorada] Bahia -
Rodrigues
25. Antonio Homem de negócios, V. de Almeida Irará, termo da V. # 03 NOV 1729
Rodrigues lavrador de mandioca de Santo Amaro, AF: 17/06/1731
de Campos e tabaco Ba. ANTT/TSO-IL Proc. nº
(ou Antonio 2139
Rodrigues
Romano)
26. Antonio Homem de negócios Freixedas, Bom Jesus da #03 mar.1732
Rodrigues Garcia Pinhel Lapa, Sertão do AF: 20 set. 1733
Rio S. Francisco, ANTT/TSO-IL Proc. nº
Ba. 6292
(continuação)

Ocupação Datas de prisão/Auto


Nome Naturalidade Residência Observações
econômica de Fé/ Proc. nº
27. Antonio Tratante Lisboa Ermida de N. Srª _ _
Rodrigues da Lapa, sertão
Moreno da Ba.
28. Antonio Homem de negócios, Mogadouro Salvador; AP: 23 jul. 1725
Rodrigues Pereira “navegava” para Coimbra; Minas
Minas Gerais
29. Antonio de Sá de Mineiro V. de Almeida Minas Novas #16 mar. 1734 _
Almeida de Araçuaí, AF: 18 out. 1739
Arcebispado da IL Proc. 8025
Ba; Serro Frio,
bispado do Rio de
Janeiro.
30. Baltasar de Mercador de loja Portugal Salvador -
Almeida
238

31. Bartolomeu Tratante; soldado V. Nova de Foz Salvador; Campos _ 1º esposo


Nunes Sarapio infante Côa de Cachoeira, Ba. de Leonor
(ou Lavradio) Henriques
32. Bernardo “Vive de sua agência” Azevo ou V. Salvador; em 1726 # 06 set. 1728
Rodrigues Ferro de Oliveira do mudou-se para AF: 16 out. 1729
Hospital Rio das Mortes, ANTT/TSO-IL Proc. nº
Minas 9661
33. Carlos da Costa Homem de negócios Lisboa Salvador; Ilha do Faleceu na Ilha
Pereira Príncipe, África de Príncipe, em
1716.
34. Daniel [Criança] Salvador Salvador - Filho de
Antonio
Cardoso Porto
e Ângela
Henriques. 08
anos de idade,
em 1726.
(continuação)
Ocupação Datas de prisão/Auto
Nome Naturalidade Residência Observações
econômica de Fé/ Proc. nº
35. David Mendes da Mercador, homem de Vila Nova de Bahia; Serro Frio, # 12 out. 1730
Silva negócios, tratante e Foz Côa Minas Gerais AF: 17 jun. 1731
mineiro ANTT/TSO-IL Proc. nº
2134(A)
36. David de Miranda Mercador Vila de Almeida Salvador; # 22 out.1714
Depois da 2ª # AF 16 fev. 1716
Vila de N. Sr.ª do # 24 nov. 1728 AF 16
Carmo das Minas out. 1729 ANTT/TSO-IL
do Rio de Janeiro. Proc. nº 7489
37. Diogo de Aguilar Senhor de engenho Bahia Bahia; Minas _ _
Pantoja Gerais
38. Diogo de Ávila Homem de negócios Travassos Salvador # 22 nov. 1726 AF: 16 -
out. 1729 ANTT/TSO-IL
Proc. nº 7484
239

39. Diogo de Ávila Tratante, Homem de Azevo Rua do Areal, # 22 nov. 1726 -
Henriques, o negócios, Procurador Salvador. AF: 17 jun. 1731 ANTT/
“Jangada” de causas TSO-IL Proc. nº 2121
40. Diogo Fernandes Homem de negócios, Cantalapiedra, Salvador; em 1716 # 20 nov. 1726 Enlouqueceu
Cardoso tratante Salamanca, foi para Minas Termo de entrega ao no cárcere
Castela. do Ribeirão do Hospital Real: 25 jan.
Carmo, Minas 1727.
Gerais
41. Diogo Henriques Homem de negócios, Vila de Covilhã Freguesia da Sé, AP: 27 nov. 1726 Não ficou
Ferreira mercador Salvador. AF: 07 abr. 1728 detido, apenas
ANTT/TSO-IL Proc. nº obrigado a ir
9130 duas vezes por
dia à Mesa do
Santo Ofício de
Lisboa.
42. Diogo Moniz (1) Capitão de uma Bahia Bahia -
fortaleza
(continuação)

Ocupação Datas de prisão/Auto


Nome Naturalidade Residência Observações
econômica de Fé/ Proc. nº
43. Diogo Moniz (2) Soldado Bahia Bahia - Parente de
Diogo Moniz
(1)
44. Diogo Moreno Capitão de cavalaria Trás-os-Montes Bahia; AP: 22 dez. 1716
Franco Pernambuco AF: 11 ago. 1717
# 22 jan. 1720
AF: 16 jun. 1720
ANTT/TSO-IL Proc. nº
8807; 8807-1
45. Diogo Nunes Homem de negócios, Freixedas, Campos de # 24 nov. 1728 AF: 16
Henriques Tratante para as Pinhel Cachoeira, Ba. out. 1729
Minas, Lavrador de Vila Rica, MG. ANTT/TSO-IL Proc. nº
tabaco (em 1700), 7487
“dono de fazenda na
Bahia”, contratador
240

dos dízimos reais,


mineiro
46. Diogo Nunes de “Ermitão do Senhor Idanha, a nova Salvador ? -
Paiva dos Perdões da cidade
da Bahia”
47. Diogo Rodrigues, Tendeiro Vila de Vidaxe Bahia # 10 out. 1712 AF: 09
“Dioguinho [sic], França. jul. 1713 ANTT/TSO-IL
hebreu” Proc. nº 5336
48. Diogo Rodrigues [Criança] Bahia Bahia - Fº Francisco
Rodrigues Dias
(curtidor, m.
Bahia) e Brites
Nunes. ##
49. Domingos Requerente de causas Escalhão V. São Francisco - -
Álvares Cardoso de Sergipe do
Conde, Recôncavo
baiano.
(continuação)
Ocupação Datas de prisão/Auto
Nome Naturalidade Residência Observações
econômica de Fé/ Proc. nº
50. Domingos Nunes Tratante Freixedas Campos de #12 out. 1730
Cachoeira, Ba.; AF: 1732
Minas Gerais ANTT/TSO-IL Proc. nº
1779
51. Domingos Nunes Homem de negócios Penamacor Bahia; depois
Penamacor outros lugares da
Colônia
52. Domingos Mercador Fundão Bahia
Rodrigues Manoel
53. Duarte (Mendes [Criança] Salvador Salvador Fº Manuel
Monforte) Mendes
Monforte e
Maria Ayres
54. Duarte da Costa Homem de negócios, V. Chaves, Freguesia N. Sr.ª # 24 set. 1735
241

da Fonseca mineiro Braga do Bom Sucesso, AF: 10 set. 1737


Minas Novas, ANTT/TSO-IL Proc. nº
Arcebispado da 6759
Bahia
55. Félix (de [Criança] Salvador Salvador F° de Félix
Miranda) Nunes de
Miranda
e Gracia
Rodrigues
56. Félix Nunes de Tratante, “vive de seu Vila de Almeida Freguesia de São Inquisição espanhola:
Miranda negócio e de uma Pedro, Salvador # 05 mai. 1697
venda que tem de AF: 10 jul. 1697
azeite de peixe” Inquisição portuguesa:
# 7 jan. 1729
AF: 17 jun. 1731
ANTT/TSO-IL Proc. nº
2292
(continuação)

Ocupação Datas de prisão/Auto


Nome Naturalidade Residência Observações
econômica de Fé/ Proc. nº
57. Fernando [Criança] Bahia Bahia Fº Francisco
(Rodrigues Dias) Rodrigues Dias
e Brites Nunes
58. Francisco [Criança] Salvador Salvador 12 anos de
(Henriques) idade em 1726.
Fº Gaspar
Henriques e
Ana Gomes
Coutinho
59. Francisco de Mercador Bragança Salvador
Albuquerque
60. Francisco Homem de negócios, Vila Nova de V. de Cachoeira, # IC, mas não há notícias Há dois
Fernandes Mercador, Tratante Foz Côa Bahia; fugiu para a de seu processo Francisco
Camacho para as Minas, Inglaterra Camacho no
242

mineiro século XVII,


com filiação
diferente.
61. Francisco Ferreira Homem de negócios V. Nova de Foz Minas do Fanado, # 12 out. 1730
da Fonseca Côa Arcebispado da AF: 06 jun. 1732
Ba. ANTT/TSO-IL Proc.
nº 6
62. Francisco Ferreira Tratante, mineiro, Freixo de Bahia; V. Minas #16 out. 1726
Isidro homem de negócios Numão do Ribeirão do AF: 25 jul. 1728
Carmo, Minas
Gerais
63. Francisco de Sem ofício Castelo Salvador
Miranda (ou Rodrigo,
Francisco Bernal Espanha
de Miranda)
(continuação)
Ocupação Datas de prisão/Auto
Nome Naturalidade Residência Observações
econômica de Fé/ Proc. nº
64. Francisco Nunes “Vende azeite de Salvador Salvador - Fº de Félix
de Miranda (1) peixe” Nunes de
[Criança] Miranda
e Gracia
Rodrigues. Em
1729 tinha 16
anos de idade.
65. Francisco Nunes Médico Vila de Almeida Salvador # 09 nov.1700
de Miranda (2) AF: 19 fev. 1701
ANTT/TSO-IL Proc. nº
1292
66. Francisco Nunes Homem de negócios Vila de Almeida Salvador; Rio de AP: 15 nov. 1729 (Preso e
de Miranda (3) Janeiro Despacho de 14 mar. processado
(ou Francisco 1730, “saiu em liberdade, com o nome
243

Mendes de sendo admoestado a de Francisco


Miranda) cumprir o que lhe fora Mendes de
ordenado” Miranda);
ANTT/TSO-IL Proc. nº primo de David
6962 de Miranda.
67. Francisco Mercador Covilhã Bahia - -
Rodrigues
68. Francisco Curtidor, tratante, V. de Almeida Salvador AP: 23 abr. 1667
Rodrigues (2), o homem de negócios Sentença: 02 mai. 1685
“Chito” ANTT/TSO-IC Proc. nº
3672
69. Francisco Curtidor Guarda # 30 out. 1708
Rodrigues Dias AF 26 jul. 1711
ANTT/TSO-IL Proc. nº
9347
(continuação)

Ocupação Datas de prisão/Auto


Nome Naturalidade Residência Observações
econômica de Fé/ Proc. nº
70. Francisco Homem de negócios V. de Almeida Salvador; Lisboa
Rodrigues
de Miranda
ou Nunes de
Miranda
71. Francisco Homem de negócios, Mogadouro Castanhede, Vila AP 23 jul.1725
Rodrigues Pereira tratante, lavrador de de Cachoeira, Ba. Processo sem sentença
tabaco, mineiro. Portugal ANTT/TSO-IC Proc. nº
7800
72. Gabriel [Criança] Salvador Salvador Fº de Jerônimo
(Rodrigues) Rodrigues e
Guiomar da
Rosa
73. Gabriel Álvares Advogado Escalhão Vila de Cachoeira,
244

Ferreira (ou Bahia


Pereira)
74. Gabriel Henriques Mercador de loja [Ignorada] Bahia
75. Gaspar da Costa Homem de negócios Minas de Ouro Bahia; Sertão das Teve # decretada em
(Pereira) Preto Minas; Minas de 1726.
Cuiabá.
76. Gaspar Fernandes Homem de negócios [Ignorada] Salvador; Minas
Dourado Gerais
77. Gaspar Fernandes Homem de negócios, Mogadouro V. de Cachoeira, # 10 jul. 1725
Pereira caixeiro, mineiro Ba. AF 13 out. 1726
ANTT/TSO-IL Proc. nº
8777
78. Gaspar Henriques Mercador, mineiro Travassos Salvador # 22 nov.1726
AF: 25 jul.1728
ANTT/TSO-IL Proc. nº
6486
(continuação)
Ocupação Datas de prisão/Auto
Nome Naturalidade Residência Observações
econômica de Fé/ Proc. nº
79. Gaspar Lopes Tratante Mogadouro V. de Cachoeira,
Dourado Ba,
80. Gaspar Pereira Lavrador de roça Cotegipe, Bahia Cotegipe, Bahia Apenas denunciado
Montealegre
81. Gregório da Silva Mercador V. Nova de Foz V. de Cachoeira,
Henriques Côa Ba.
82. Henrique [Criança] Salvador Salvador Fº de Antonio
Cardoso Porto
e Angela de
Mesquita
83. Henrique Soares Médico [Ignorada] Salvador
Henriques
84. Ignácio Cardoso Dono de partido de Rio de Janeiro Rio de Janeiro; # 10 out. 1712
de Azeredo cana; advogado Salvador AF 09 jul. 1713
245

ANTT/TSO-IL Proc. nº
5447.
85. Jerônimo (Mendes Estudante de latim Bahia Salvador; Londres Fº de Manuel
Monforte) Mendes
Monforte,
médico, e Ma.
Ayres de Pina.
86. Jerônimo Tratante, mineiro Escalhão Salvador AP 01 jul. 1728
Rodrigues AF 16 out.1729
ANTT/TSO-IL Proc. nº
10003
87. João (da Fonseca) [Criança] Rio São Rio São Francisco, Fº Antonio
Francisco, Ba. Ba. da Fonseca e
Violante da
Silva
(continuação)

Ocupação Datas de prisão/Auto


Nome Naturalidade Residência Observações
econômica de Fé/ Proc. nº
88. João Álvares de Médico Bahia Salvador
Vasconcelos
89. João Carlos de Mineiro Distrito de São Salvador; Serro
Abreu (ou João de Gonçalo, V. de Frio, Mg.
Mesquita) Cachoeira, Ba.
90. João “o Tratante de negros Portugal Bahia
Carrascaes” para as Minas
91. João Batista de Estudante em Bahia Bahia; Coimbra
Miranda Coimbra
92. João Bernal de Médico Vila de Almeida Salvador; Portugal
Miranda
93. João da Cruz Curtidor, tratante, Vila de Almeida Salvador, Ba. # 06 out. 1710 2ª prisão
mineiro, vive de seu AF 26 jul. 1711 decretada em
negócio ANTT/TSO-IL Proc. nº 1728. Morreu
246

9089 indo preso.


94. João Gomes de Homem de negócios, Porto Salvador; Lisboa # 10 jul. 1725
Carvalho tratante AF 13 out. 1726
ANTT/TSO-IL Proc. nº
8764
95. João Henriques Mercador Sendim Bahia
96. João Lopes Álvares Mineiro, tratante Castela ou Bahia; Minas Prisão decretada em
Covilhã Gerais 1726.
97. João de Matos Tratante Maçal do Chão Bahia; Ribeirão AP. 03 out. 1729
Henriques do Carmo, Minas # 20 jun. 1730
Gerais. AF 18 jun. 1741
ANTT/TSO-IL Proc. nº
3752
98. João Mendes de Mercador para o Bahia Jacobina, Bahia
Morais Recôncavo
(continuação)
Ocupação Datas de prisão/Auto
Nome Naturalidade Residência Observações
econômica de Fé/ Proc. nº
99. João (Mendes [Criança] Salvador Salvador Fº de Manuel
Monforte) Mendes
Monforte,
médico, e Maria
Aires
100. João de Miranda Estudante de Bahia Lisboa Fº de José da
gramática Costa e Ana
Bernal de
Miranda
101. João de Morais Tratante para as Salvador Rua do Areal, AP: 13 dez. 1727
Montesinhos Minas Salvador # 28 nov.1729
AF 15 jul.1730
ANTT/TSO-IL Proc. nº
11769
247

102. João (ou José) Homem de negócios Guarda Bahia; Ribeirão AP: 18 mai. 1740
Nunes de Lara do Carmo, MG; AF: 18 jun. 1741
Guarda ANTT/TSO-IL Proc. nº
3751
103. João Nunes Sem ofício Lisboa Bahia; Lisboa;
Ribeiro Inglaterra
104. João Rodrigues de Sem ofício Bahia Lisboa
Menezes
105. Joaquim da Silva Mineiro Bahia Salvador
Henriques
106. Jorge Lopes da Mercador de loja Portugal Bahia Homônimo
Gama daquele ANTT/
TSO-IL Proc.
nº 7941
(continuação)

Ocupação Datas de prisão/Auto


Nome Naturalidade Residência Observações
econômica de Fé/ Proc. nº
107. José [Criança] Salvador Salvador Fº de Manuel
Mendes
Monforte,
médico e Maria
Aires
108. José de Almeida Sem ofício Almendra Bahia
109. José Bernal Estudante na Castelo Rodrigo Salvador; Coimbra
(ou Bernar) de Universidade de
Miranda Coimbra
110. José Cardoso Tratante Escalhão Freguesia da Praia,
Salvador
111. José da Costa Homem de negócios, Lisboa Salvador # 03 jun. 1728
capitão de navio para AF 16 out. 1729
Angola ANTT/TSO-IL Proc. nº
248

10002
112. José Fernandes Mercador Vila Nova de Cachoeira, Bahia # 1725 AF 1727, Processo não
Camacho Foz Côa Inquisição de Coimbra localizado.
113. José da Fonseca Mineiro Paraíba, Pedras dos # 07 dez. 1734. No processo
Caminha Bispado de Angicos, Ba. AF: 24 jul. 1735. diz ser xn, mas
Pernambuco. ANTT/TSO-IL Proc. nº os pais estão
2.608 registrados com
xxvv.
114. José Lopes [Criança] V. de Cachoeira, Vila de Cachoeira, Fº de Francisco
Ba. Ba. Lisboa Fernandes
Camacho e
Luísa Pereira
115. José Rodrigues Chocolateiro, Castela Bahia; Portugal
vendedor de azeite de
peixe
116. José Rodrigues Tratante, mineiro Bahia Salvador; # 20 nov. 1729
Cardoso Curralinho, Minas AF: 06 jul. 1732
Gerais IL Proc nº 19
(continuação)
Ocupação Datas de prisão/Auto
Nome Naturalidade Residência Observações
econômica de Fé/ Proc. nº
117. Julião de Abreu Contrata para Minas Bahia Rio de Janeiro;
Gerais Bahia
118. Luís Álvares de Lavrador de cana Salvador Salvador
Crasto
119. Luís Álvares de Homem de negócios, Mogadouro Salvador; V. de
Oliveira tratante, mineiro Cachoeira, Ba.
Lisboa.
120. Luís Gomes Senhor de Engenho Bahia Bahia
em Jarapaguá [sic]
121. Luís Henriques Tratante para as Vila Flor, Salvador Há informação
Minas Gerais, Portugal não confirmada
homem de negócios, pela
mercador. documentação
que foi
249

apresentado
ao Tribunal de
Lisboa
122. Luís de Melo de [Não informada] Salvador Salvador Pai homônimo,
Vasconcelos capitão de
ordenança de
Salvador em
1657.
123. Luís Mendes Mercador [Ignorada] Salvador
124. Luís Mendes de Homem de negócio Moimenta da Salvador
Morais Beira, bispado
de Lamego
125. Luís Mendes de Sá Comboieiro, tratante Coimbra Minas do Rio de # 24 out. 1738
Contas, Ba. AF: 18 out. 1739
ANTT/TSO-IL Proc. nº
8015
(continuação)

Ocupação Datas de prisão/Auto


Nome Naturalidade Residência Observações
econômica de Fé/ Proc. nº
126. Luís Nunes de Tratante V. de Almeida Bahia
Miranda
127. Manuel de Mercador Bragança Salvador; Portugal
Albuquerque
128. Manuel Cardoso Tratante; vaqueiro no Escalhão Salvador; Alagoas
Piauí de Piauí, distrito
da Paraíba
129. Manuel Dias Médico [Ignorada] Minas de Araçuaí,
Ba.
130. Manuel da Fonseca Cirurgião Porto Bahia
131. Manuel Furtado Tratante, homem de Covilhã Salvador Apresentação
Orobio negócios, “navegador” ao Tribunal
para as Minas de Lisboa não
confirmada
250

132. Manuel Gomes Lavrador Bahia Bahia


Vitória
133. Manuel Hipólito Ourives Bahia Bahia
134. Manuel Homem, Sacerdote do hábito Bahia Bahia
Pe. de São Pedro
135. Manuel Lopes de Sacerdote do hábito Bahia Bahia # 11 dez. 1723;
Carvalho, Pe. de São Pedro AF: [?] 1726
ANTT/TSO-IL Proc. nº
9255
136. Manuel Lopes Homem de negócio, Covilhã Salvador; Matoim, #18 dez. 1706
Henriques Senhor de Engenho Recôncavo baiano AF: 30 jun. 1709
ANTT/TSO-IL Proc. nº
7201
(continuação)
Ocupação Datas de prisão/Auto
Nome Naturalidade Residência Observações
econômica de Fé/ Proc. nº
137. Manuel Lopes Homem de negócios, Mogadouro V. de Cachoeira; AP 08 jul. 1725
Pereira tratante de gados Água Fria, Bahia; # 06 dez. 1726
Salvador; Lisboa AF 25 jul. 1728
ANTT/TSO-IL Proc. nº
11323
138. Manuel Lopes de Senhor de Engenho [Ignorada] (Provavelmente)
Vargas Cotegipe, Ba.
139. Manuel Mendes Mercador Pinhel Bahia
140. Manuel Mendes Tratante Freguesia de Cotegipe, Ba. Fº de Manuel
São Miguel de Lopes de Vargas
Cotegipe, Ba.
141. Manuel Mendes Senhor de Engenho Monforte Salvador Tio do médico
Monforte (1) homônimo
142. Manuel Mendes Médico, Senhor de V. de Castelo Salvador # 21 ago. 1721
251

Monforte (2) engenho, homem de Branco AF: 10 out. 1723


negócios ANTT/TSO-IL Proc. nº
675
143. Manuel Mendes Médico Salvador Salvador; Coimbra Fº do médico
Monforte (3) homônimo
144. Manuel Nunes de Tratante para as Salvador Salvador; Minas
Almeida Minas Gerais, mineiro do Ribeirão do
Carmo; Rio de
Janeiro
145. Manuel Nunes Capitão de navio, Castelo Rodrigo Salvador; Rio de # 05 mar. 1727
Bernal homem de negócios Janeiro AF: 24 jul. 1727
ANTT/TSO-IL Proc. nº
11329
146. Manuel Nunes da Tratante, mercador, Lombardes, Vila de Cachoeira, AP: 29 out. 1727
Paz homem de negócios, Castela Ba; Minas Gerais AF: 16 out 1729
mineiro ANTT/TSO-IL Proc. nº
9542
(continuação)

Ocupação Datas de prisão/Auto


Nome Naturalidade Residência Observações
econômica de Fé/ Proc. nº
147. Manuel Nunes Vive de uma roça, V. Idanha, a Minas dos #12 out. 1730
Sanches lavrador de milho, Nova Fanados, Ba. AF: 06 jul. 1732
mineiro ANTT/TSO-IL Proc. nº
11824
148. Manuel Pinto Tratante Setúbal Salvador; Luanda
Correia
149. Manuel [Criança] Bahia Bahia Fº de Francisco
[Rodrigues Dias] Rodrigues Dias
e Brites Nunes
150. Manuel Soares Tratante de mercearia Portugal Salvador; Portugal
de Carvalho
[ou Antonio
da Fonseca de
Magalhães]
252

151. Manuel da Silva Caixeiro [de Manuel [Ignorada] Salvador; Rio de


Nunes Bernal] Janeiro
152. Marcos de Sargento-mor, senhor [Ignorada] Bahia
Bitencourt de engenho
153. Marcos Mendes Estudante em Salvador Salvador; Coimbra Primo do
Monforte Coimbra, senhor de médico Manuel
engenho [herdeiro] Mendes
Monforte.
154. Marcos [Mendes [Criança] Salvador Salvador; Londres; F° de Manuel
Monforte] Mendes
Monforte,
médico e Maria
Ayres
155. Miguel [Micael] da Vendeiro, homem Maçal do Chão Bahia; Rio de # 29 out. 1727
Cruz de negócios, tratante Janeiro; Lisboa AF: 28 mar. 1728
para as Minas Gerais ANTT/TSO-IL Proc. nº
11330
(continuação)
Ocupação Datas de prisão/Auto
Nome Naturalidade Residência Observações
econômica de Fé/ Proc. nº
156. Miguel Dias (1) Dono de estanque de Almeida Quitanda de
azeite de peixe São Bento, em
Salvador
157. Miguel Dias (2) Soldado, juiz de [Ignorada] Bahia
cadeia
158. Miguel Henriques Médico Salvador Salvador
159. Miguel Nunes Homem de negócio, V. de Almeida Bahia; Minas
tratante para as Minas Gerais; Lisboa
Gerais
160. Miguel Nunes de Tratante, vendia azeite V. de Cachoeira, Freguesia de São # 02 nov. 1729
Almeida de peixe, vendeiro Ba. Pedro, Salvador; AF: 06 jul. 1732
V. de Ouro Preto, ANTT/TSO-IL Proc. nº
Minas Gerais 9248
161. Miguel Nunes Tratante, lavrador de V. de Almeida Campinhos de
253

de Miranda [ou tabaco, vivia de fazer Cachoeira, Ba.


Almeida] viagens para as Minas
Gerais, contratador
162. Miguel [Rodrigues [Criança] Bahia Bahia Fº de Francisco
Dias] Rodrigues Dias
e Brites Nunes
163. Pedro Álvares da Sem ofício Fundão Matoim, Ba.
Silva
164. Pedro Henriques Mercador [Ignorada] Salvador
165. Pedro Nunes de Mercador, lavrador V. Almeida Sítio de 1ª # 22 out. 1714
Miranda Campinhos em AF: 16 fev.1716
Sergipe do Conde, 2ª # 10 dez. 1731
Ba. AF: 06 jul. 1732
ANTT/TSO-IL Proc. nº
9001
(conclusão)
Ocupação Datas de prisão/Auto
Nome Naturalidade Residência Observações
econômica de Fé/ Proc. nº
166. Rafael Nunes de [Criança] Salvador Salvador F° Félix Nunes
Miranda de Miranda
e Gracia
Rodrigues
167. Rafael Soares Advogado [Ignorada] Salvador
Henriques
168. Rodrigo Álvares Boticário Avis Salvador # 18 dez.1706
AF: 30 jun. 1709
ANTT/TSO-IL Proc. nº
999
169. Simão Henriques Advogado [Ignorada] Bahia
170. Simão Rodrigues Meirinho na Covilhã Santo Amaro de # 26 out. 1708
Nunes Freguesia de N. Sra. Sergipe do Conde, AF: 30 jun. 1709
da Purificação de termo da Vila ANTT/TSO-IL Proc. nº
Sergipe do Conde, de S. Francisco 1001.
254

Bahia [São Francisco do


Conde, Recôncavo
baiano]
171. Sotério Telles Soldado Bahia Bahia
172. Tomás Pinto Tratante Setúbal Salvador #06 nov. 1708
Correa AF: 30 jun.1709.
ANTT/TSO-IL Proc. nº
1004
173. Valentim Músico de baixão, Idanha, a Nova Rio de Janeiro; # 10 out. 1712;
Rodrigues Moeda tocador de baião Salvador AF: 09 jul. 1713
ANTT/TSO-IL Proc. nº
5949
174. Ventura Lopes ou Ferrador Fundão Matoim, Ba. #03 nov. 1748
Pereira da Silva AF: 16 nov.1749
ANTT/TSO-IL Proc. nº
10615
APÊNDICE B – Cristãs-novas residentes na Bahia, presas e denunciadas à Inquisição (séc. 1700-1748)
Fonte: ANTT/TSO-IL (processos arrolados nas Referências).

(continua)

Ocupação Datas de prisão/Auto de Fé/


Nome Naturalidade Residência Observações
econômica Proc. nº
1. Ana de Ávila [Ignorada] Salvador AP 1667, Coimbra Informação de apresentação
em ANTT/TSO-IL Proc. nº
7484, Diogo de Ávila
2. Ana [Bernal] de San Felices de los Salvador; 1ª # 26 nov. 1726
Miranda Gallegos, Castela Lisboa AF 25 jul. 1728
2ª # 05 out. 1737
AF 18 jun. 1741
255

ANTT/TSO-IL Proc. nº
2424; 2424-1
3. Ana Gomes Coutinho Salvador Salvador # 06 jan 1729
AF: 26 out 1729
ANTT/TSO-IL Proc. nº 9660
4. Ana Mendes Pinhel Subaé, V. de
Cachoeira, Ba.
5. Ana Mendes de Castela V. de Almeida; # 18 jul. 1725
Campos Bahia AF: 30 jun. 1726
ANTT/TSO-IC Proc. nº 7317
6. Ana de Miranda V. de Almeida Salvador; Vila AP: 11 jun. 1725 Fº Francisco Rodrigues e
Nova de Foz Liberada: 11 jun. 1725 Ana de Miranda
Côa, Portugal ANTT/TSO-IL Proc. nº 6938
7. Ana de Miranda V. de Almeida Salvador; Rio de AP: 27 jun. 1667 Casada com Francisco.
Janeiro; Lisboa AF: 02 mai. 1685 Rodrigues
ANTT/TSO-IC Proc. nº
2712
(continuação)

Ocupação Datas de prisão/Auto de Fé/


Nome Naturalidade Residência Observações
econômica Proc. nº
8. Angela de Meneses Bahia Bahia Casada com Marcos
Bitencourt
9. Angela de Mesquita Salvador Salvador AP: 26 nov. 1726 Casada com Antonio
Processo sem sentença Cardoso Porto
ANTT/TSO-IL Proc. nº 5348
10. Antônia de Meneses Reino (Port Casada com João Álvares de
Vasconcelos
11. Antônia Bahia Bahia Fª de Luís de Melo de
Vasconcelos
12. Bernarda (Rodrigues) [Criança] Salvador Salvador Fª Jerônimo Rodrigues e
Guiomar da Rosa
13. Branca Henriques Bahia Bahia Fª de Manuel Lopes
Henriques e Mariana Soares
14. Branca Lopes (ou Escalhão Recôncavo Fª de Domingos Álvares
256

Cardosa) baiano; Cardoso


Portugal;
Londres
15. Branca Rodrigues Freguesia de São Salvador; Fª de Luís Henriques e
Gonçalo da Vila de Lisboa Francisca Henriques.
Cachoeira, Ba.
16. Brites (Beatriz) de V. de Almeida Bahia; Vila de AP: 13 mai. 1727
Campos Almeida # 20 mai. 1727
AF: 29 mai. 1729
ANTT/TSO-IC Proc. nº 6203
17. Brites Lopes (1) Costureira V. de Cachoeira, Ba. Vila de AP: 05 jun. 1727 Fª de Francisco Fernandes
Cachoeira; Termo de Repreensão: 10 jul. Camacho e Luísa Pereira
Lisboa 1727
18. Brites Lopes (2) Escalhão Salvador; Viúva de Domingos Álvares
Portugal Cardoso
19. Brites Lopes da Costa Porto Bahia; Lisboa # 10 jul. 1725
AF: 13 out. 1726
ANTT/TSO-IL Proc. nº 1559
(continuação)
Ocupação Datas de prisão/Auto de Fé/
Nome Naturalidade Residência Observações
econômica Proc. nº
20. Brites Mendes Salvador Salvador Fª de Manuel Mendes
Monforte, Sr. de Eng° e
Isabel Luísa de Pina.
21. Brites Nunes Covilhã Bahia # 15/12/1708 Casada com Francisco
AF: 30 jun. 1709. Rodrigues Dias.
ANTT/TSO-IL Proc. nº 1008
22. Brites Pereira (Beatriz Mogadouro Salvador # 22 nov. 1726 Mãe de José da Costa,
Pereira) AF 25 jun. 1728 capitão de navio.
ANTT/TSO-IL Proc. nº 9924
23. Catarina da Paz Vila de Almeida Cachoeira; # 01 jan. 1714 Casada com Antonio de
Salvador AF: 14 out. 1714 Miranda, curtidor.
ANTT/TSO-IL Proc. nº
10151
24. Catarina Pereira Freguesia de São Freguesia # 02 nov. 1708 Presa por bigamia apesar de
257

Bartolomeu, Ba. de São AF: 30 jun. 1709 cristã-nova


Bartolomeu, Ba. ANTT/TSO-IL Proc. nº 1009
25. Catarina da Rosa Salvador Salvador Fª Manuel Mendes
Monforte, senhor de
engenho e Isabel Luísa de
Pina
26. Caterina Henriques Bahia Bahia Fª de Manuel Lopes
Henriques
27. Clara Lopes Pereira Mogadouro Vila de Tia de José da Costa
(1) Cachoeira, Ba.
28. Clara Lopes Pereira Castela Lisboa; Mãe de Manuel Lopes
(2) Salvador; V. de Pereira
Cachoeira, Ba.
29. Elena Nunes Pinhel V. de Cachoeira, Irmã de Manuel Nunes da
Ba; Portugal Paz.
30. Estefânia Rodrigues Salvador Salvador; Rio de AP. 1728 Fª de José Fernandes
de Miranda Janeiro; Lisboa #11 ago 1728 Camacho e Ana de Miranda
AF: “contado no auto de O processo não contém
1741”. sentença
(continuação)

Ocupação Datas de prisão/Auto de Fé/


Nome Naturalidade Residência Observações
econômica Proc. nº
31. Francisca [Criança] Salvador Salvador Fª Antonio Cardoso Porto e
Angela de Mesquita
32. Francisca (Bernal de Bahia ou Castela Salvador Fª de Francisco. Nunes de
Miranda) Miranda, médico, Isabel
Bernal
33. Francisca de Campos Vila de Almeida Salvador; Vila AP: 12 dez. 1726
de Almeida AF 25 mai. 1727,
ANTT/TSO-IC Proc. nº
6531
34. Francisca Henriques Padeira Medina del Campo, Salvador # 22 nov. 1726
Castela. AF: 25 jul. 1728
ANTT/TSO-IL Proc. nº
10156
35. Francisca Lopes [Criança] V. de Cachoeira, Ba. V. de Cachoeira, Fª de Francisco Fernandes
258

Ba. Camacho e Luísa Pereira


36. Francisca Nunes [Criança] Salvador Salvador Fª de Félix Nunes de
Miranda e Gracia
Rodrigues
37. Gracia [Criança] Salvador Salvador Fª de Félix Nunes de
Miranda e Gracia
Rodrigues
38. Grácia Rodrigues Vila de Almeida V. de Cachoeira, Casada com Félix Nunes de
Ba. Salvador; Miranda
Londres
39. Guiomar Nunes Vila de Almeida Castela; Fª de Francisco Rodrigues e
Salvador Ana de Miranda
40. Guiomar da Rosa (1) Ayamonte, Castela Salvador # 22 dez. 1727 Casada com Jerônimo
AF 23 mar.1728 Rodrigues
ANTT/TSO-IL Proc. nº 6488
41. Guiomar da Rosa (2) Reino Cotegipe, Bahia Fª de Simão Rodrigues
Nunes
42. Isabel Cotegipe, Bahia Bahia Fª de Manuel Lopes de
Vargas e Isabel Lopes Rosa
(continuação)
Ocupação Datas de prisão/Auto de Fé/
Nome Naturalidade Residência Observações
econômica Proc. nº
43. Isabel Ayres Portugal Bahia
44. Isabel [Mendes Salvador Salvador; Fª de Manuel Mendes
Monforte] Portugal Monforte, médico, e Maria
Ayres
45. Isabel Bernal Castela V. de Almeida; Casada com Francisco
Salvador Nunes de Miranda, médico.
46. Isabel Henriques Bahia Penitenciada pelo St° Of. Denunciada por Ana Bernal
de Coimbra [informações de Miranda (ANTT/TSO-
insuficientes para identificar ANTT/TSO-IL Proc. nº
a qual foi denunciada] 2424)
47. Isabel Lopes Rosa Cotegipe, Ba Cotegipe, Ba Casada com Manuel Lopes
de Vargas, Sr. de Eng°
48. Isabel Luísa de Pina [Ignorada] Salvador Casada com Manuel
Mendes Monforte, senhor
259

de engenho.
49. Isabel Nunes [Ignorada] Bahia Fª de Violante Rodrigues
50. Isabel de Pina Bahia Salvador Fª de Manuel Mendes
Monforte, senhor de
engenho e Isabel Luísa de
Pina
51. Isabel Rodrigues (1) S. Martinho Salvador Casada com Pedro Álvares
Amarante, Port.
52. Isabel Rodrigues (2) Portugal Santo Amaro, Casada com Luís Henriques
Ba; Portugal (não denunciado ou preso)
53. Joana Vila de Cachoeira [?] Bahia Irmã de Gabriel Álvares
Ferreira.
54. Joana Bahia Casada com Miguel de
Mendonça Valadolid
(morador em São Paulo.
ANTT/TSO-IL 9973)
55. Joana Cruz Lamego Salvador Casada com Miguel Dias,
juiz de cadeia
(continuação)

Ocupação Datas de prisão/Auto de Fé/


Nome Naturalidade Residência Observações
econômica Proc. nº
56. Josefa [Criança] Salvador Salvador Fª de Manuel Furtado
Orobio e Leonor Nunes de
Miranda
57. Josefa Teresa Rosa Porto Salvador; # 18 jan. 1726
(ou Josefa Maria Lisboa AF 13 out. 1726
Rosa) ANTT/TSO-ANTT/TSO-IL
Proc. nº 8783
58. Leonor (1) Bahia Fª de um Manuel Esteves,
lavrador de tabaco
59. Leonor(2) Salvador Salvador Fª de Marcos de Bitencourt,
Sr. de Eng
60. Leonor Ferreira (ou Bahia Salvador Fª de Domingos Álvares
Pereira) Cardoso.
61. Leonor Nunes de Bahia Salvador AP: 1728 (informação não Fª de Félix Nunes de
260

Miranda confirmada) Miranda, casada Manuel


Furtado Orobio
62. Leonor Henriques V. de Almeida Castelo AP: 1685 IC (informação não Mãe de Félix Nunes de
(ou Rodrigues) Rodrigo; Santo confirmada) Miranda
Amaro, Ba.
63. Leonor Henriques (1) Bahia Salvador Irmã de Miguel Henriques,
médico
64. Leonor Henriques (2) V. Nova de Foz Côa Irará, termo # 4 nov. 1729 Casada segunda vez com
da V. de Santo AF: 17 jun. 1731 Antonio Rodrigues de
Amaro, Ba ANTT/TSO-ANTT/TSO-IL Campos.
Proc. nº 9968
65. Leonor Mendes [Ignorada] V. de Cachoeira, Casada com Gregório da
Ba. Silva Henriques
66. Leonor Rodrigues de Bahia Matoim, Ba. Casada com Diogo
Castro (ou Henriques Henriques Ferreira
de Castro)
67. Luísa Bahia Salvador Fª de Marcos Bitencourt.
68. Luísa Ferreira (ou [Ignorada] Bahia Fª de Domingos Álvares
Pereira) Cardoso
(continuação)
Ocupação Datas de prisão/Auto de Fé/
Nome Naturalidade Residência Observações
econômica Proc. nº
69. Luísa Maria Rosa Badajoz, Espanha Bahia; Lisboa # 18 jan. 1726 Casada com João Gomes de
AF: 25 jul. 1728 Carvalho.
ANTT/TSO-ANTT/TSO-IL
Proc. nº 4898
70. Luísa Pereira (ou Mogadouro V. de Cachoeira, # 27 jun. 1725 Casada com Francisco
Luísa Maria) Ba. V. Nova de AF: 16 out. 1729 Fernandes Camacho
Foz Côa ANTT/TSO-ANTT/TSO-IC
Proc. nº 6918
71. Margarida Teles de Bahia Bahia Fª de Marcos Bitencourt;
Menezes casada Luís de Mello de
Vasconcelos, lavrador
72. Maria Cotegipe, Ba. Cotegipe, Ba. Fª de Manuel Lopes de
Vargas e Isabel Lopes Rosa.
73. Maria Aires Cotegipe, Ba Salvador Casada com Manuel
261

Mendes Monforte, médico


74. Maria Bernar (ou Castelo Rodrigo Salvador; Rio de AP: 04 set. 1726 Fª de Francisco Nunes de
Bernal) de Miranda Janeiro; Lisboa AF 27 fev. 1731 Miranda, médico e Isabel
ANTT/TSO-ANTT/TSO-IL Bernal
Proc. nº 1820
75. Maria Coutinho Rio de Janeiro Salvador Casada com Luís Mendes
de Morais
76. Maria Freire Escalhão Freguesia da 2ª esposa de José Cardoso
Praia, Salvador
77. Maria da Incarnação Bahia Bahia Cunhada de Manuel
Mendes Monforte, médico
78. Maria de Oliveira Chacim Salvador Penitenciada pelo Tribunal
de Lisboa, degredada para
Salvador (informação não
confirmada)
79. Mariana (1) Cotegipe, Ba. Cotegipe, Ba. Fª de Marcos Bitencourt, Sr.
de Engenho
(conclusão)
Ocupação Datas de prisão/Auto de Fé/
Nome Naturalidade Residência Observações
econômica Proc. nº
80. Mariana (2) Bahia Bahia Casada Antonio Gomes
Vitória.
81. Mariana de Sá Rio de Janeiro Salvador Casada com um Felipe
Rodrigues (não sabe se xn
ou xv)
82. Mariana Soares [Ignorada] Bahia Viúva. Casada 2ª vez com
Manuel Lopes Henriques
83. Paula Manuela Ayamonte, Castela Bahia; Portugal Casada com José Rodrigues,
chocolateiro
84. Rosa [Criança] Rio São Francisco, Ba. Rio São Fª de Antonio da Fonseca
Francisco, Ba.
85. Teodora Nunes [Criança] Salvador Salvador; Fª de Félix Nunes de
Portugal Miranda
86. Teresa Salvador Salvador Fª de Luís de Melo de
262

Vasconcelos e Margarida
Teles de Menezes
87. Violante Bahia Cotegipe, Ba. Solteira. Sobrinha de
Guiomar da Rosa (2)
88. Violante Rodrigues [Ignorada] Bahia Viúva. Denunciada por
Violante Rodrigues de
Miranda
89. Violante Rodrigues V. de Almeida Salvador; Rio de # 04 out. 1726 Fª de Francisco Rodrigues e
de Miranda Janeiro AF: 25 jul. 1728 Ana de Miranda
ANTT/TSO-ANTT/TSO-IL
Proc. nº 11403.
90. Violante da Silva Rio Fundo, Ba. Rio São Casada com Antonio da
Francisco, Ba. Fonseca.
APÊNDICE C – Carta de João de Morais de Montesinhos aos
Inquisidores de Lisboa, de seu próprio punho

Fonte: ANTT/TSO/IL Processo nº 11679.

1ª Carta de João de Morais de Montesinhos aos Inquisidores de Lisboa, na


qual faz queixas contra os familiares do Santo Ofício que o prendeu e conduziu ao
embarque no Rio de Janeiro (de próprio punho, anexada ao processo ANTT/TSO-IL
Proc. nº 11769).

“Ilustríssimos e Reverendíssimos Senhores647,

A queixa que tenho do familiar que me prendeu Eugênio F[e]rr[eir]a, mercador


no Rio de Janeiro, é que fazendo-o nas Minas e tendo-me fechado na cadeia delas 34
dias com uns grandes grilhões nos pés, no decurso deste tempo fui mui maltratado,
não me querendo m[an]dar lavar a roupa pendindo-lho eu 3 vezes, em t[e]r[m]os que
me vi tão precisado que com vozes de piedade pedi diante de um familiar que tive por
meu car[cerei]ro a um homem que na dita cadeia se achava preso com sua mulher,
me mandasse por esmola lavar uma camisa, o que fazendo é a que tive para todo o
decurso do tempo da jornada, e condução para o Rio de Janeiro.
Quanto a que tenho do familiar condutor é. Que no Sítio e Arraial da Pasage
[Passagem] do Ribeirão do Carmo das Minas Gerais donde eu era assistente, sucedeu
4 ou 5 meses antes de minha prisão dentro da capela onde se diz Missa aos moradores
dele, deram com uma ponta de boi na cara a Francisco Garcia Fontoura aí morador,
dito meu condutor, de cuja pancada lançou muito sangue dos narizes dentro da
dita capela e achando-me eu depois do insulto em uma conversa com alguns meus
vizinhos do dito Arraial disseram estes, admirando a atrocidade da afronta, que o
dito Fontoura era familiar do Santo Ofício e que se o Tribunal o viesse a saber, se
arriscava a mandar se lhe tirar a medalha, ao que eu só disse aos ditos vizinhos que

647 Os sinais [?] indicam palavra ilegível, suprimida.

263
assim parecia, do que tendo depois not[ad]o o dito Fontoura, e sucedendo a minha
prisão se foi oferecer para meu condutor, como me disse o P[rocurad]or Fiscal das
ditas Minas, doendo-se de mim por que antevia padeceria com ele alguns vexames no
caminho por ser pessoa de menos comiseração, e tendo os of[icia]is do Fisco que são
nesta atenção preparado e assinalado via certo em que o dito Fontoura partisse diante
com um dos presos que vinha doente por haver de gastar mais tempo no caminho,
o dito Fontoura o não quis fazer dizendo que se não levasse também os outros dois
presos, não queria ser condutor, o que fez em vingança dos ditos vizinhos, e minha;
e então foi forçoso pelo referido ser-lhe entregue a minha pessoa e as dos dois mais,
e no decurso da condução me tratou com muitas lástimas e insuportáveis vexames e
tolerou sermos tratados de outras pessoas seus amigos que levou convidados para o
dia da saída somente, de algumas palavras injuriosas e de mofa, dando-lhes no tal
dia banquete público em que ele mesmo dizia gastara 700 réis; e daí em todos os mais
do decurso da jornada nos faltou com o comer mui vezes dando-nos uma limitação a
quem vinha em jornada de manhã até a noite, tendo recebido do Fisco meia livra de
ouro que são 720 [réis] para o sustento, e com a mesma vontade malidignosa sempre
me trouxe lastimado com uma grande corrente, mui grossa ao pescoço passada ao
cavalo, e algemas nas mãos que me lançava de noite dormindo no chão com elas
impacientado de imundicias de pulgas e bixos; o que vendo algumas pessoas graves
estranhando-lhe aquelas tiranias e faltas de comer com que nos tratava de que nos
vínhamos queixando, o repreendiam com alguma admoestação de maledicência, como
foi o Provedor do Re[gimento/gistr]o da Borda do Campo, Manoel Roiz e o do Registo
de Paraibuna, Joseph P[erei]ra, o primeiro se compadeceu tanto dos vexames que nos
fazia que depois de partido o condutor do seu Reg[ist]o veio busca-lo 2 dias de viagem
onde o achou e lhe ofereceu que levasse 2 soldados Dragões que lhe trazia para o
acompanharem até onde quisesse, e com isso nos aliviar de tantos ferros, e podermos
dormir, o que o dito condutor não quis aceitar e então os ditos provedores se alteraram
de razões pesadas com ele por saberem ter falecido já um dos presos no caminho pela
sua pouca caridade e tratamento vindo doente; e a mim e a outro respondia quando
lhe pedíamos nos não maltratasse tanto, que vínhamos para Tribunal tão Santo que
havíamos de ser ouvidos do que padecíamos; que quanto mais nos maltratasse, e

264
amofinasse maior merecimento para ele que é o que o Santo Tribunal queria e que
por isso daí em diante lhe haviam de ir as ordens das prisões das Minas remetidas
a ele, e finalmente com estas lástimas e ignomias trouxe os dois ao Rio de Janeiro, e
havendo antes de chegar a cidade uma travessia de mar salgado mui largo e perigoso
a que chamam Baía foi o dito condutor tão temerário que nos meteu no bote saveiro
com as correntes ao pescoço e com elas passamos aquela travessia de mar em que se
gastou uma inteira noite, onde se está vendo e cotidianamente se tem visto virarem-se
muitas destas embarcações com os furacões de vento que ali ordinariamente sobrevêm
e assim tão bem da mesma sorte nos fez passar por dois rios em canoas, perigosos,
Paraíba, e Rio do Pillar, e me pareceu e disseram muitas pessoas que Vossas Senhoria
não queriam que nos trouxessem em prisões de ferros pelas partes onde pudesse
acontecer perigo de morte: ultimamente chegando ao Rio de Janeiro faltou na entrega
que fez dos meus trastes, dois pares de sapatos que trazia e uma camisa de que tolerou
se aproveitasse o seu negro, e na conta que deu ao Fisco disse os tinha eu lançado ao
mato, e nesta falta me pos tão carecedor e na de me seqüestrarem também as botas
que havia trazido, que pedindo uns sapatos para o embarque e decurso da viagem me
deram uns de couro de veado brancos do mais ínfimo preço que pela cor nem os pretos
os trazem senão tintos em termos que cheguei a esta Inquisição quase descalço e nos
primeiros dias logo fui socorrido de uns novos com aquela piedade e misericórdia mui
costumada em Vossas Senhorias com que a todos provem do necessário.
Que no dito Rio de Janeiro fui muito mal agasalhado faltando-se-me com o
acomodamento necessário de roupa para o mar, e vestia para o frio de tão prolongada
viagem, e assim também faltando-se-me com os 120 [reis] que o Regimento fiscal
das partes ultramarinas recomenda com específica recomendação se distribuam para
refresco da passagem do mar, aplicando-se aquilo que o preso pedir; e não deixando
eu de mandar lembrar isto ao R[everendissí]mo Comissário por ser um homem doente,
respondeu já não era uso darem-se e assim sem mais coisa alguma me meteram a
bordo para comer como comi feijões da calrorª [caldeira?] do navio, aos quais nem o
mais miserável e pobre servente dele vem só atido por que todos do maior ao menor
fazem da sua soldada de que tiram para o seu rancho de almoços e refresco; e para
mais lástima e mofina minha se juntou dar o tesoureiro os 400 [réis] da passagem ao

265
dono do navio no Rio de Janeiro e não ao capitão como é e sempre foi costume para
tratar do preso donde o dito capitão por isso veio a ter [página rasgada] de dizer
que como o navio recebeu o dinheiro da ração que o navio dá havia eu de comer que
são feijões a um homem quebrado, e com outros até aqueles graves sendo estranho
naquela cidade e que não tinha nem teve quem lhe mandasse dois vinténs de finta e tão
desprovidamente em embarcaram que além de me darem um baú que achavam com
outros bons e ser este que me deram muito velho e inseguro por ter uma só fechadura
tendo eu outros capazes para a segurança do mar me não quiseram dar uma colher
com que comesse, nem uma vasilha em que tomasse a minha ração de água para beber,
nem uma carapuça grossa para a cabeça para reparo do frio e vento, a qual não deixa
de ter o mais desprezado molequinho que vem no navio e assim que por nesta forma
ter padecido estas violências e poucas caridades que quiçá hajam de ser não notórias
a Vossas Senhorias/ o que assim é de crer/ me obrigou o meu sentimento a expo-lhas
não me sendo fácil o esquece-las, peloque diz Sêneca, Pulveregni ladit seribit: sed
mármore ..... sus: a rectidão e Santa caridade de Vossas Senhorias proverão como
lhe parecer justo; que a minha satisfação só será pedir a Deus N. Sr. o que insinua S.
Paulo devemos rogar ao mesmo senhor, injuriarum remedium solla oblívio: Sr.
E expressando com mais clareza as razões das proveniências e pessoas que
sabem de todas matérias acima como Vossas Senhorias foram servidos mandarem-
me o delatasse digo seguindo a mesma ordem da extração deste informe: Que quanto
ao primeiro além do dito familiar não puder negar o que nele se diz e[xata]mente a
pessoa que me deram por meu carcereiro na dita cadeia chamado Ventura Coelho, e o
guarda-mor Antonio Roiz de Souza, cristão-velho que foi a pessoa que por piedade me
mandou lavar a camisa que tenho dito por atenção da falta em que me ouvia queixar
continuamente de me não me querer o dito familiar mandar lavar a roupa para vestir e
puder levar para a jornada do caminho e o dito Coelho dirá se a meu peditório foi ele
2 ou 3 vezes a sua casa a pedir-lho e depois da referida insistência me veio o mesmo
dizer a ajuntasse que naquele mesmo dia tornava por ele; o que nunca fez no decurso
do dito tempo.
Quanto ao segundo do meu condutor digo que a razão que tive para admirar
comigo e com os ditos meus vizinhos a atrocidade da afronta que se lhe fez foi dizer-

266
se ter sido feita naquele lugar sagrado na presença de um grande número de povo
de vizinhos ao levantar todos de ouvir Missa a qual tinha ouvido o mesmo condutor
e preceder que como do muito sangue que lançara disse o capelão estava a igreja
interdita houve de mister lça e autoridade do Reverendo Vigário da Vara daquele
distrito para se benzer e poder se continuar no sacrifício da Missa o qual logo acudiu
tomar conhecimento do caso criminando e devassando do delig[u]e[nte] e pelo
atrevimento e injúria do desacato que fizera do lugar santo. Este foi o motivo que
tive para admirar o acontecimento do caso compugido sempre assim em como os
ditos vizinhos de disgosto do dito condutor e alheio dele criou-se por lhe per[guntar]
que como me tratava como seu ofensor que daria a razão com os mais vizinhos que
diziam ele alguma cousa dele. E sucedendo daí a poucos tempos a minha prisão se
foi o dito condutor mesmo oferecer o serviço para ter ocasião de se vangloriar e
apenando vizinhos para sua companhia reconciliar-se com muitos que o não tratavam
e poder vingar-se de mim; e com efeito no dia da saída das Minas apenou da parte
do Santo Ofício, 5 ou 6 vizinhos alem da muita mais gente com que ele dizia naquela
função queria fazer uma saída bemqça, em tal forma a fez que logo à porta da cadeia
me algemou e corrente muito grossa ao pescoço passada ao cavalo, e chegando ao
sítio onde dormimos fez o grandíssimo bradio que tenho dito com os seus convidados
onde as pessoas que digo nos injuriaram de noite chamando-nos cans judeus de rabo
e que íamos a queimar e outras lástimas e injurias dizendo / ofensas por mofa ou por
admirarem as ignomias e ferros como éramos tratados / que era melhor ser preso
por ladrão pco [porco] de estradas que pelo Santo Ofício / Foram Manoel Ferreira
e Antonio Camelho vizinhos e amigos do condutor o qual tolerava ditas lástimas as
quais ouviu também o preso Joseph Roiz Cardozo que vinha na dita condução. Ao
amanhecer o dia per não querer o dito condutor que eu fosse fazer certa diligencia
corporal ao campo com guardas e já havia de fazer ali no pco o repreendeu muito
Eugênio Ferreira familiar que me prendeu desta demonstração de paixão com que
comigo se havia e que me deixasse ir e por eu dizer e requerer logo ao dito familiar
que o dito condutor era meu inimigo que pedia fosse conduzido por ordem e que me
não mandasse com ele. Então o dito condutor se enfureceu mais jurando-me que em
te ao portal do mar no saveiro me havia de levar com os ferrões e que a corrente

267
havia de ser passada estancada nas cavernas ou seguradouros da embarcação. E
tomando eu por testemunhas daquela prometida violência e tirania ao dito familiar
e a André Roiz Lima que também vinha na companhia vizinho do dito Arraial me
acomodaram estes dizendo-me serem aquelas razões de cólera, certificando-me mais
o dito familiar que estivesse certo que o Santo Tribunal não mandava que os presos
levassem prisões de ferro por aquelas partes onde pudesse acontecer perigo de vida
e que o mais era paixão do condutor, dizendo-me mais que eu fora desgraçado em se
oferecer por ser gosto o sobredito condutor por que ele daí a 10 dias havia de partir
para o Rio de Janeiro, e assim como me prendera trazendo-me de noite por caminhos
desertos solto com muita cortesia ele me não havia de deitar ferro algum nem fazer-
me aqueles vexames, que havia de admoestar ao dito condutor particularmente o que
tudo ouviu também o Promotor Fiscal o Capitão Manoel de Freitas Ferreira morador
em Vila Rica quem foi o que me disse o dito Garcia fizera toda a diligência por ser meu
condutor, rejeitando ir só na condução de outro preso doente se me não levasse a mim.
Que em vários sítios onde dormia como foi no sítio dos Carijós, venda de Antonio
da Silva vendo que os dois presos reparavam e té ignoravam o não quer dar ao doente
uma boceta de marmelada havendo-se com ele com a mais ímpia caridade de mofinesa
sendo só no dia da sua saída pública vanglorioso, nos criou mais ódio por estas notas
de pouca caridade que lhe dizíamos tinha do doente, que para dizer-se a Vossas
Senhorias esta seria mister muito papel; E finalmente há poucos dias de jornada como
lhe não quisesse mandar buscar umas folhas para curar as fontes que o dito doente
pedia nem mandar o seu negro ajudar-lhas a curar se lhe fecharam estas e morreu,
o que presenciava também o outro preso Joseph Roiz e também dizer-lhe eu no dito
sítio com palavras humildes que me havia de queixar a Vossas Senhorias dos vexames
e tiranias que me fazia pois na bastava a corrente e algemas com que estava fechado
em uma camarinha muito segura e com sentinelas e a corrente passada por um buraco
para outra casa senão também havia de mandar deitar o seu negro junto comigo;
Ele me respondeu que quanto mais me amofinasse e maltratasse mais merecimento
teria de Vossas Senhorias e que daí em diante as ordens das prisões haviam de ir só
remetidas a ele e que fizesse embora queixa; E na noite que dormimos em casa do
capitão-mor Manoel Gonçalves Vianna, também lhe pedi me não maltratasse e tanto

268
com aqueles execessivos vexames e tomei por testemunha ao dito capitão-mor e ao seu
capelão já deitado eu no chão em que estava algemado, e com a corrente passada aos
travessões do catre onde o dito condutor só se deitava. Consequentemente com esses
vexames me levava por tudo o caminho que impacientado deles confesso que algumas
vezes pedi a D’ a morte / de que me pesa grandemente / E chegando ao sítio do Registo
da Borda do Campo, o Provedor dele Manoel Roiz e o senhorio do sítio Manoel de
Sáa e um vizinho do capitão Manoel Dias, pessoas todas de bem notória verdade e
inteireza lhe ignoravam e afeavam aqueles vexames com que se havia por ouvirem as
nossas queixas e clamores e com o Manoel de Sáa teve razões pesadas por que lhe
não dava cavalo da parte do Santo Ofício como vinha pedindo e tomando em todos
os sítios por trazer o seu gordo e folgado, a que o dito Sá e Provedor disseram nesta
parte que se ele necessitasse dele lhe dariam o que quisesse da parte do Santo Ofício
porém que bem viam que era por poupar o seu que sempre trazia folgado gordo; o dito
condutor deu por desculpa ao dito Provedor e mais pessoas ditas que dormíamos com
as algemas de noite por que não tinha soldados que o acompanhassem e por então
lhes não deu o dito Provedor por que eram fora do Regº a diligencia. Porém, depois
que nos fomos dele estando nos já dois dias de viagem / se comiserou o dito Provedor
tanto de nós que lhe levou tam longe dois soldados Dragões que tinham chegado / que
acompanhassem ao condutor até donde ele quisesse, contanto que nos aliviasse ao
menos as algemas. O dito condutor então descobrindo de todo a sua má intenção os
não quis aceitar mostrando fazer gosto naquelas violências e então o dito Provedor
e soldados tiveram razões pesadas com ele, dizendo-lhe sempre não nos maltratasse
também com fome como já nos íamos queixado: E chegando ao Regº da Paraibuna,
o Provedor dele Joseph Pereira na mesma confirmidade acima lhe ofereceu soldados
em té o Rio de Janeiro que ele não quis aceitar e o repreendeu dizendo-lhe que havia
dois dias já que tinha notado que ele nos tratava até mal de sustento que lho dissera
uma pessoa que passara insinuando-lhe o que devia de fazer nesta parte por que
entendia ele nunca fizera diligência semelhante e no dito Refº diante de um vizinho dele
chamado Pedro Moreira foi bem visto as vergonhas que custou o compar-nos e para si
4 pãezinhos, e para que se possa conhecer a não boa condição do dito condutor basta
dizer era de tal natureza que tendo dos nossos bens duas oitavas e meia de ouro por

269
dia da dita condução em alguns sítios depois dos presos estarem deitados se punha a
comer milho duro atanazado ao fogo, saindo de uma terra, isto é das Minas e onde se
pudera com pouco custo prover de quantos lombos e regalos ele quisesse. Finalmente
por não molestar mais a Vossa Senhoria digo só que se o dito condutor prometeu
apaixonadamente de me levar com as prisões dos ferros pelo mar e passar os rios
caudalosos, sem paixão nenhuma o fez, sem embargo de quantas admoestações nesta
parte lhe fez o familiar que me prendeu e com eles saltei na cidade do Rio de Janeiro
e nos meteu em uma casa até que a ela vieram outros familiares da terra que no lhos
tiraram e fomos então só sem eles para os conventos. Muita ou a maior parte dos
vexames referidos viu e presenciou um moço natural do Rio de Janeiro onde tem sua
mãe pobre chamado Luís não me lembra do que, que era o dono dos cavalos alugados
em que vínhamos o qual costuma andar no caminho das Minas com seus cavalos em
que leva cargas, e bem conhecido é.
Estando eu no cárcere do Colégio onde me meteram, o familiar Manoel Gomes
foi o que me disse pedindo-lhe os meus sapatos pois que me tomava tão bem as botas
que o dito condutor na conta que dera, dissera eu os lançara ao mato, o que foi alheio
da verdade nem é crível que um triste homem que vem preso a depend[enci]a de que o
provam do necessário lance ao mato por desperdício dois pares de sapatos que tinha
de seu uso.
Que chegando a bordo em presença do dito familiar Jamar Gomes e de outro
ilustríssimo Hmº não sei de que se contou a roupa que vinha no baú adicionada em
um rol que fizeram / se havia de remeter para este Santo Tribunal e diante eles faltou o
barrete grosso e o chapéu que no dito rol se carregava o que vendo o dito Gomes este
desemp[enh]o no outro dia outro companheiro familiar me trouxe a bordo um chapéu
grosso e um frasco de aguardente dizendo-me cada um veio da sua faz[end]a por se
comiserarem de mim me davam.
Não posso deixar Ilustríssimos Senhores de me queixar mais, que além de me
não mandar dar o Reverendíssimo Comissário uma só camisa nova para suprimento
de tão prolongada viagem, inda de ser velhas ou usadas em que me servia em terra
trouxe coatro por lavar por mar, tudo isto nascido de que desde que me meteram

270
no convento onde estive 24 dias nunca mais lá chegou familiar algum a mandar-me
tirar as camisas que eu lá tinha para se lavarem; e as insistências de perseguições
minhas com que importunava ao meu P[adr]e carcereiro a rogo deste me mandaram
duas camisas lavadas, cuja lástima é gravemente de se não dar encarrego a qualquer
familiar para qe cure do preso, visitando-o de 6 ou em 8 dias se carece de alguma coisa
precisa, o que se faz em a Bahia ou outra qualquer praça donde embarcam os presos
mui satisfeitos. Os ditos familiares me disseram estranhando eu o mau provimento, que
o Reverendíssimo Comissário me mandara fazer a quem tinha feito presente, e de que
carecia de preciosidade. Que o dito Reverendo Comissário não duvidava que o fizesse,
porém que o Juiz do Fisco não queria: como que se este devesse incumbir ou estivesse
a seu modo ou carrego o apresto, o acomodamento e remessa dos presos / nas partes
onde há digníssimos comissários / mais que por o cumpra-se a qualquer Portaria que
este lhe enviasse e por ela receber logo o familiar que tratar do preso tudo o que a
Portaria ordenar para seu apresto e embarque, pois se me tinham sequestrados todos
os meus bens e quando acaso os não tivesse, a piedade e misericórdia deste Santo
Tribunal manda tratar com igualdade no preciso acomodamento assim aos que tem
como aos que o não tem etrão é a su mente que experimentem estes padecimentos nem
que se falte a distribuírem-se os 120 réis que o Regimento Fiscal tanto recomenda
para refresco da viagem do mar. O que seguro a Vossas Senhoria é este procedimento
alheio e mui contrário ao que se administra na cidade da Bahia, donde é impossível
haver queixa.

João de Morais Montezinoz

Que suposto o capitão do navio em que vim assinou o recibo dos 400 réis da passagem
o fez por entender lhos entregraria o tesoureiro para que por eles tivesse cuidado de
tratar da minha pessoa, como é e sempre foi costume entregarem-se aos capitães o
qual não recebeu aos ditos 400 réis e os entregou o dito tesoureiro ao dono do navio
que se utilizou delas donde veio acabou em ter razão o dito capitão no que sobre isto
dizia.

271
APÊNDICE D – Carta de apresentação de Montesinhos ao Tribunal de
Lisboa, de seu próprio punho
Fonte: ANTT/TSO-IL Proc. nº 11769.

“Ilustríssimos e Reverendíssimos Senhores


Joam de Morais Montezinhos natural desta cidade da Bahia, solteiro, tratante, filho
legítimo de Luís Mendes de Morais, e de sua mulher Maria Coutinho, já defuntos,
morador em dita cidade e Rua Areal, freguesia de S. Pedro de idade de vinte e cinco
anos para vinte e seis, faz patente e manifesto ao rectissimo e piíssimo Tribunal do
Santo Ofício que iluminado pelo Espírito Santo, vendo quam gravada tem sua alma
por certo pecado que tem cometido contra a Santa Fé cuja averiguação pertence ao
dito Tribunal, arrependido já e como filho humilde e obediente de Igreja, se acusa ao
dito Tribunal do dito pecado e nele o quer declarar não só de si mas também de várias
pessoas incursas no mesmo pecado e não vai já depor no dito Tribunal nesta presente
frota, por se achar incapaz de o puder fazer, o que fará na seguinte com o favor de
Deus. Bahia, dezembro 13 de 1727. Joam de Morais Montezinhoz.”

273
APÊNDICE E – Carta de Francisca Henriques, de próprio punho,
coagindo Antonio Cardoso Porto a casar-se com sua filha648

Fonte: ANTT/TSO-IL Proc. nº 8887.

“Senhor Antonio Cardoso Porto,

Estimarei que vossa mercê pouse com perfeita saúde, conceda-lha N. Sr. muito perfeita
para que do que Deus me faz mercê possa vossa mercê dispor o que for servido que
sempre me há de achar [?] muito certa a seu serviço; só eu até agora não quis bulir
com nada sem primeiro ver a sai determinação, porém agora me parece que já é
tempo como bem sabe que minha filha está difamada com vossa mercê que até agora
não me pareceu que era tão público, porém isso [?] que esvasidade [?] chea [?] e
assim vossa mercê não há de permitir que ela fique perdendo por seu respeito de vossa
mercê, assim veja como quer que seja, que me tenho muitas testemunhas em com vossa
mercê entrava em minha casa, não tem havido pessoa que pusesse boca nem sonbando
[?] meu devo-as por que não o aia [haja] coisa perversa e assim tenha vossa mercê
entendido que se vossa mercê não quiser recebe-la por bem que depois não se queixe,
que me hei de buscar a minhas consciência que bem sabe que não há de razão que
minha filha fique desta sorte e assim fico esperando. Do pesares posta de vossa mercê
para me determinar ao que hei de fzer e como me parece vossa mercê não há de dar
lugar a que me o meta em uma cadeia; não enfado mais a vossa mercê, a queira Deus
Grande muitos anos coisa [?]. 1º de novembro de 1716. A criada de vossa mercê,

Francisca Henriques”

648 Texto adaptado para o português atual. Texto original em linguagem misturando português e espanhol, dada a
origem castelhana da autora.

275
Formato: 190 mm x 250 mm
Fonte: Minion Pro
Papel miolo: Offset 90 g/m2
Papel capa: cartão supremo 300 g/m2
Impressão: agosto/2016

Você também pode gostar