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Something Dark and Holy 1 - Wicked Saints - BS
Something Dark and Holy 1 - Wicked Saints - BS
— Vossa Alteza?
Serefin fechou o punho, o reflexo fazendo seu dedo indicador
encostar na lâmina na sua manga. Ele se forçou a relaxar. Estar no
limite não iria ajudar em nada.
— Sim?
Ele ficou aliviado ao ver Kacper logo atrás de Teodore, porém
menos aliviado ao ver que Kacper trazia algo em sua mão que se
parecia com uma carta real. Pavor começou a se enrolar em seu
estômago.
— Você falou com meu pai? — ele perguntou a Teodore.
— Sim, Vossa Alteza. Ele expressou... — ele pausou e Serefin
suspirou, sabendo o que estava por vir — descontentamento com o
resultado do ataque de ontem.
— Bem, ele não estava aqui. — Serefin murmurou.
Teodore não disse nada, e Kacper entregou a carta a Serefin. Ele a
pegou cautelosamente entre dois dedos. O selo era de seu pai. O rei
geralmente mandava mensagens pelos mensageiros em vez de com
magia, em um esforço para mascarar a realidade desapontadora de
que ele não era um mago de sangue tão impressionante. Contato
poderia ser feito por magia de sangue – como Teodore havia feito
na noite passada – mas não era encorajado.
— Isso chegou hoje de manhã? — Ele perguntou.
Kacper assentiu.
Não tinha como saber quanto tempo levou até ela chegar nas
mãos de Serefin. Ele quebrou o selo, examinou a carta, teve certeza
de que sua visão estava finalmente falhando completamente,
examinou novamente, e olhou para Kacper com o cenho franzido
antes de ler mais perto outra vez.
— Meu pai mencionou isso?
— Ele não mencionou. — Teodore disse.
— Nada? Nada mesmo? Nem a menor sugestão de que ele estava
planejando isso há meses sem ao menos me avisar?
— Ajudaria, Ser... Vossa Alteza — disse Kacper, lançando um olhar
irritado a Teodore — se soubéssemos o que é a mensagem?
— Ele quer que eu volte a Tranavia — disse Serefin, entregando a
carta para Kacper e ignorando a expressão escandalizada de
Teodore. — Imediatamente, aparentemente, já que uma Rawalyk
está por vir.
— O quê? — Kacper parecia assustado.
— A cerimônia para escolher um consorte real… — começou
Teodore.
— Eu sei o que uma Rawalyk é.. — disse Kacper, assim que
Serefin se virou para Teodore e disse bruscamente.
— Ele está ciente da tradição.
Teodore lançou para Kacper um olhar sombrio.
— Eu preciso ir atrás da clériga, não tenho tempo para isso —
disse Serefin. — Nós estamos tão próximos de um momento
decisivo com essa guerra, e ele quer que eu largue tudo por essa
charada sem sentido.
— Ele mencionou que os Abutres pediram para se serem enviados
atrás da clériga — disse Teodore.
Serefin passou uma mão pelo cabelo. As sobrancelhas de Kacper
se levantaram.
— Então ele está me retirando do comando e me mandando para
casa. — Serefin disse suavemente.
Teodore não respondeu.
Fazia sentido, é claro, que os Abutres queriam pôr as mãos na
primeira clériga Kalyazi em mais de trinta anos. Havia uma nova
geração no culto, que nunca tinham visto magia Kalyazi. Era lógico.
Mas Serefin odiava a ideia da vitória dele ir para outra pessoa.
Seu pai foi quem mandou Serefin para o front quando ele tinha
apenas dezesseis anos; ele queria um filho herói de guerra então foi
isso que ele conseguiu, e toda bagunça que vinha junto. Não era
justo pedir a ele para interpretar um papel que não estava
acostumado, por uma questão de tradição, quando eles estavam tão
próximos do fim.
Não teria discussão. Não era uma escolha. Serefin sabia disso. Se
ele fosse embora hoje, ele poderia chegar em Grazyk em algumas
semanas, talvez demorasse mais dependendo do que encontrariam
quando se aproximassem da fronteira. Se ele levasse apenas Ostyia
e Kacper com ele, poderia fazer a jornada em menos tempo. Mas
eles estavam atrás das linhas inimigas. Qualquer coisa podia dar
errado.
— Eu vou. — ele começou devagar, cada palavra uma flecha afiada
o perfurando. — Deixo você no comando do grupo. Você irá levar
prisioneiros para Kyętri, certo?
Teodore assentiu.
— Certo. O Tenente Neiborski virá comigo. — ele disse.
Kacper parecia aliviado, como se por um momento ele pensasse
que Serefin o deixaria para trás. Ridículo.
— General Rabalska também, obviamente. Espero que amanhã de
manhã, o mais tardar, você tenha equipado os prisioneiros e os
removidos daqui.
Teodore sabia que estava sendo dispensado. Ele se curvou e
Serefin acenou para ele ir embora. Se ele fosse sortudo, não teria
que ver esse homem novamente por meses.
Ele passou pelos corredores frios e sem adornos até que alcançou
vastas portas de madeira que abriam para o pátio. Enquanto eram
simples atrás, o lado da frente era coberto por esculturas ornadas e
imagens de santos. Seis deles, três em cada porta. Serefin olhou para
eles depois que a porta foi fechada antes de se virar e descer as
escadas para o pátio onde Ostyia estava esperando. Ela estava
empoleirada na parede que levava aos sete mil degraus montanha
abaixo.
Serefin largou sua bolsa no chão e subiu na parede ao lado dela.
Kacper se sentou do outro lado.
— Eu tenho que ir para casa e me casar.
Ostyia teve a decência de estremecer.
— E a clériga?
— Os Abutres irão atrás dela.
— Ela vai estar morta em um dia.
Kacper deu de ombros.
— Eu não desejaria esse destino nem para uma Kalyazi. Você
consegue imaginar? — Ele passou uma mão pelo rosto. — Aquelas
máscaras são aterrorizantes.
Os Abutres eram uma parte complicada da sociedade e da política
Tranaviana. Eles eram a elite dos magos de sangue, uma seita
isolada do resto do reino, vivendo na carcaça escavada de uma
antiga catedral em Grazyk sobre a liderança de um rei próprio, o
Abutre Sombrio, que se sentava no Trono de Carcaça.
Quando Tranavia rompeu com os deuses, os Abutres
preencheram as lacunas deixadas pela igreja. Eles agiam como
queriam, usando a magia como o comando mais alto do que
qualquer rei mortal poderia ser. Os Abutres podiam ter vindo atrás
da clériga sem a permissão do rei, mas Tranavia tinha um equilíbrio
balanceado de poder. Os Abutres eram conselheiros do trono, mas a
autoridade deles se estendia apenas ao reino da magia – o que em
Tranavia era um reino vasto. Eles esgueiravam-se pelo palácio com
suas garras de ferro e vestes rasgadas, mais monstros do que
humanos, mas ainda assim reverenciados.
Por décadas, a imagem da política Tranaviana era que o rei
mantinha os Abutres em uma coleira apertada. Eles tinham que
treinar as crianças reais para usarem a magia como armadura, mas
também para manterem um certo nível de segurança em Grazyk,
mas eles não poderiam deixar Grazyk e nem Kyętri, as duas cidades
que serviam como casa dos líderes do culto.
Eles eram mantidos afastados do front devido a uma infeliz
medida de imprevisibilidade de suas ações que os fizeram mais
passivos do que ativos no campo de batalha. Com isso dito, Serefin
esteve em muitas batalhas que seriam transformadas rapidamente
se tivessem pelo menos um Abutre entre eles. Mas ele nunca pediria
por um. Eles o perturbavam.
Serefin coçou a parte de trás da cabeça enquanto olhava para as
cúpulas arredondadas do mosteiro. Olhar para a pedra
esbranquiçada irritou seu olho ruim.
— Meu pai quer que os prisioneiros sejam levados para as minas
de Kyętri.
— É muita atividade vindo dos Abutres assim tão de repente —
disse Ostyia.
— É estranho, não é?
Um silêncio cai sobre eles. Contemplar as Minas de Sal, onde os
Abutres faziam seus experimentos, não era nem um pouco
agradável.
— Eu não gosto disso. — finalmente Serefin disse.
Ostyia olhou para ele.
— O momento, os Abutres, que meu pai me enviou isso — ele
acenou para a carta ainda em suas mãos — em vez de mandar um
mago me contatar, que consequentemente me deu menos tempo
para voltar para casa. Eu não entendo o que ele está fazendo.
Não era segredo que a relação que Serefin tinha com seu pai era
tensa. Ele não sabia se era medo, aversão ou a simples realidade que
mandar Serefin para a guerra, tão novo, criou uma fenda no
relacionamento deles. O que quer que fosse, o comportamento
instável do rei estava se tornando algo cada vez mais normal, então
Serefin não sabia porque todas essas coisas estranhas convergindo
de uma vez o surpreenderam.
Ostyia lhe deu um olhar incrédulo.
— Ele tem te menosprezado por eras.
— Tem?
Serefin não tinha um momento de descanso em anos. A guerra
no país era um dos motivos, mas toda vez que ele voltava a Grazyk
para lembrar o país de que eles de fato tinham um príncipe, faziam
ele dar meia volta e era mandado de volta para o front. Ele estava
cansado, começando a desfiar nas pontas, como se o toque mais leve
fosse estilhaça-lo. Ele não queria jogar jogos políticos assim que
voltasse para Tranavia, mas esse era seu destino.
Ostyia estava certa, a rachadura estava ficando mais profunda.
Seu pai estava tentado ao máximo encobrir a verdade. Seu filho era
um mago de sangue talentoso, e ele não era. Se ele empurrasse
Serefin para longe, os slavhki na corte nunca iam se lembrar de que
o filho era mais poderoso que o pai.
Serefin pulou da parede, deslizando pela pedra congelada no pátio
antes de se virar e olhar para seus amigos.
— E então? Podemos muito bem fazer um bom show.
— É isso que será? Um show? — Perguntou Ostyia.
— Se é uma Rawalyk, então sim — disse Kacper.
— Dramatismo sem sentido para o bem da nobreza. — Serefin
disse e deu de ombros. — Tem mais coisa acontecendo aqui. Eu
posso muito bem ver o que é. Tenho certeza de que não será bom.
O olho de Ostyia se estreitou.
— Eu conheço esse olhar. O que você está planejando?
Serefin ainda não tinha certeza do que estava planejando. Ele
tinha um pressentimento, um pavor rastejante que não permitia
que ele corresse para casa e assumisse o papel de príncipe sem
alguns receios. Talvez fosse o resultado de ser agredido pela guerra,
de ver morte e destruição todos os dias por anos. Talvez ele
estivesse ficando irracional. De qualquer jeito, a sensação estava lá.
— E se meu pai estiver usando a Rawalyk para colocar um
fantoche como herdeiro? Alguém que possa ser manipulado? —
Serefin era muito opinativo, muito poderoso, uma ameaça a
soberania de Izak Meleski. — E se ele colocar uma pessoa no trono
através de mim, e algum acidente infeliz acontece comigo... — Ele se
interrompe.
— Ei!— murmurou Ostyia.
— O quão paranoico eu sôo?
— Muito.
Ele assentiu.
— Eu estive liderando exércitos por três anos. — ele disse com a
voz suave. — E você não vai para um campo de batalha sem uma
estratégia. Mas às vezes, reconhecimento é necessário. Então vou
voltar para casa. Vou ver sobre o que é essa loucura, e então vou
lidar com isso conforme necessário. Isso talvez signifique que eu
vou ter que bancar o príncipe e participar de dramas supérfluos.
Pode significar algo completamente diferente. Nós podemos muito
bem ir e descobrir como essa batalha será. — Com isso, Serefin
começou a descida dos sete mil degraus.
Oito: Nadezhda Lapteva
Nada mais foi dito sobre planos de assassinar reis. Depois de Nadya
ter gaguejado com sua descrença de que era possível, Parijahan
sugeriu que eles conversassem mais de manhã.
Matar o rei Tranaviano poderia acabar com a guerra, mas ainda
seria – pelo menos para ela – uma justiça pequena pela morte de
Kostya. Ela assumiria o risco por isso. Ela não sabia se seria possível
– duvidava muito – mas a conversa a deixou amigável com os
Akolanos. Mesmo que ela ainda estivesse esperando pelo momento
certo para colocar uma de suas voryens no coração do Tranaviano.
Nadya passou uma noite inquieta no cômodo frio com camas
duras e cobertores finos roubados dos soldados Tranavianos. Ela
acordou antes do amanhecer, saiu do quarto e continuou pelo
corredor. Ela estava acostumada a acordar antes do sol para rezar e
queria estar em um lugar adequado para isso.
Anna ainda estava dormindo quando ela saiu para o corredor. Ela
encontrou Parijahan no santuário vazio, sentada na mesa com os
mapas esfarrapados espalhados na frente dela.
— Você estava falando sério, não estava? — Nadya perguntou. Ela
se sentou do outro lado da garota Akolana.
— Porque eu brincaria com uma coisa dessas? — Parijahan
respondeu, sem olhar para cima. Ela usava o cabelo escuro em uma
trança solta em cima de um ombro. — Havia mais de nós antes. Um
garoto que perdeu tudo quando os Tranavianos queimaram a
floresta onde ele e a família viveram por toda vida, uma garota que
cresceu em um campo de refugiados, irmãos Kalyazi de Novirkrya
que foram recrutados para o exército quando crianças, mas
desertaram.
Novirkrya era uma vila na fronteira sul, perto de Lidnado, um
país pequeno que odeia os dois vizinhos com a mesma intensidade e
fica miraculosamente longe da guerra que dura há quase um século,
provavelmente por despeito.
— Naquele país sobraram poucos fiéis. — Notou Marzenya.
— O que aconteceu com eles? — Perguntou Nadya.
— Esse país, essa guerra. Os irmãos tiveram que fugir para o
Norte para evitar que o exército os pegassem, porém, foi assim para
a maioria.
Mas os dois Akolanos e o Tranaviano sobraram?
Os outros entraram na sala. Anna se sentou ao lado de Nadya,
encostando sua cabeça no ombro de Nadya.
— Bem — ela disse, — ainda estamos aqui.
— Nenhum Príncipe Herdeiro. — Parijahan disse.
Rashid trouxe comida para a sala; vasilhas de kasha – um
mingau ralo que Nadya conhecia bem – e pães pretos e duros que
ele colocou na mesa antes de se deitar em uma pilha de travesseiros
no canto. Ele estava vestido em túnicas Akolanas marrom dourado
com camadas e com fendas nas mangas longas.
— Ninguém me avisou que assassinos Kalyazi acordavam antes
do amanhecer. — Ele bocejou.
Malachiasz entrou na sala carregando metade de um pão preto e
parecendo que não dormiu nada. Seu cabelo longo e preto estava
embaraçado e havia olheiras debaixo dos seus olhos pálidos. Ele
deitou nas almofadas ao lado de Rashid e colocou um braço sobre o
rosto.
— Eles não acordam, mas acólitos têm que atender ao chamado
para orar às três da manhã — disse Nadya.
— E eles nos chamam de bárbaros. — refletiu Malachiasz.
— Nós os chamamos de hereges. É diferente. E exato. — Nadya
vociferou.
Ele se sentou e revirou os olhos, então enfiou a maior parte de
seu pão na boca. Ele abriu seu livro de feitiços e colocou uma pena
no vinco entre as páginas.
— Não ouse começar a sangrar sobre isso enquanto estamos
comendo — disse Parijahan.
Malachiasz olhou para cima, a faca já em suas mãos, a lâmina
pairando em seu antebraço, a metade do pão ainda em sua boca.
Parijahan o encarou. Depois de um longo momento de silêncio, ele
abaixou a lâmina.
Nadya olhou para o mapa e Parijahan lhe passou uma vasilha de
kasha.
— Eu preciso chegar no acampamento militar em Tvir — ela
disse. Ela não podia realmente cogitar seus planos selvagens de
assassinar reis. Haviam coisas que eram esperadas dela, Nadya não
poderia abandonar esses deveres no primeiro obstáculo. Ela era a
hospedeira que inundaria o mundo com o toque dos deuses mais
uma vez.
— Tvir? Você está planejando cair diretamente nas mãos de
Tranavia, towy dżimyka? — Malachiasz perguntou.
Ela buscou em seu conhecimento básico de Tranaviano para
entender do que ele tinha acabado de chamá-la. Passarinho?
Confusa tanto pelo que significava tanto pelo jeito vagamente
condescendente que ele falou, ela decidiu ignorá-lo.
— Claramente, você tem um protocolo para seguir, certo? — ele
continuou. — Uma maga importante que nem você?
Nadya achou difícil continuar ignorando sua contínua
condescendência.
— Mas se você for a Tvir, você irá morrer. Tranavia a tomou há
dois meses.
Anna empalideceu. Nadya tentou ignorar o desespero que acertou
seu peito. Se instalou bem entre suas costelas, martelando nela com
cada batida de seu coração. Não havia esperança; ela morreria antes
de ter a chance de fazer qualquer coisa por seu país.
— Tudo foi destruído — disse Parijahan suavemente, cortando
um pouco a tensão entre Nadya e Malachiasz. — O acampamento
militar, a vila próxima. Nós estávamos por perto quando aconteceu.
Nós tivemos sorte e escapamos. Outros não foram tão sortudos.
Anna esfregou sua testa. Quando Nadya olhou para ela em busca
de alguma direção, ou qualquer coisa, ela simplesmente deu de
ombros.
— Isso foi tudo que nos disseram para fazer. — ela disse. — O
próximo posto avançado é...
— Não tão perto — disse Rashid.
Uma porta foi fechada diante de Nadya.
— Então eu deveria ouvir os planos de três estrangeiros que
receberam meu inimigo de braços abertos?
Malachiasz sorriu.
Parijahan franziu os lábios.
— Quando eu tinha treze anos, minha irmã mais velha estava
prometida para um slavhka Tranaviano. Não havia amor, era um
casamento político, mas Taraneh tinha esperança. Eles se
encontraram antes do casamento e ele parecia... — ela se
interrompeu, balançando a cabeça. Seu olhar estava fixo em um
canto da sala. — Normal. Um mago de sangue, mas qual Tranaviano
não é? Independentemente disso, o casamento correu bem...
— O casamento não correu bem. — Rashid interrompeu.
O rosto de Parijahan se contorceu.
— Nós não demos muita atenção para isso, era lógico que tivesse
alguma tensão.
Apreensão deixava as palavras da Akolana pesadas e Nadya
mudou de posição, desconfortável. Ela olhou para Malachiasz, mas
ele estava observando Parijahan com uma expressão cuidadosa no
rosto, nem hostil e nem brincalhão, mas gentilmente atento.
— Minha família vive bem...
— Seja honesta, Parj — Rashid disse suavemente.
Ela suspirou.
— Minha família é uma das três altas Travashas de Akola. Minha
irmã foi assassinada um mês depois do seu casamento, em uma
terra estranha, pelo seu dote.
— E Akola não declarou guerra por causa disso? — Anna
perguntou.
— Não houve provas de que o Tranaviano o tinha feito. Parecia
um acidente. Minha irmã se afogou em um dos milhares de lagos de
Tranavia. — Parijahan riu amargamente. — É claro, porque Akola é
uma terra de desertos, como uma prasīt saberia nadar? Mas
Taraneh era uma ótima nadadora, seu lugar favorito no mundo era o
oásis perto da casa de nossa família.
— Então o que você está fazendo aqui? — Perguntou Nadya. E o
que estão fazendo com um mago de sangue Tranaviano?
— Algumas decisões imprudentes foram feitas — disse Rashid.
— Eu me vinguei — Parijahan disse com naturalidade. — E agora
há um slavhka a menos na corte Tranaviana.
— Porquê não retornar a Akola depois? Por quê ficar aqui?
— Eu não quero nada com uma família que não tentou se vingar
da morte da filha. Tranavia não pode vencer essa guerra. — ela disse
ferozmente. — Deixe eles viverem com sua magia de sangue e seus
políticos corruptos no seu próprio país, mas eles não podem se
espalhar além de suas fronteiras.
Nadya mexeu no seu colar, procurando pela conta do deus da
verdade – Vaclav. Ela ficou aturdida quando Vaclav confirmou que
os três estavam sendo verdadeiros com ela. Até mesmo o
Tranaviano.
— Nada disso explica ele. — Nadya disse, apontando para
Malachiasz.
— Eu sou um enigma. — Malachiasz respondeu maliciosamente.
— Há rumores sobre você, towy dżimyka, de ambos os lados da
guerra. A clériga Kalyazi que veio salvar o país da praga Tranaviana.
Um arrepio passou por Nadya. Ela não sabia se a estava
provocando ou não.
— O que você está dizendo?
— Claramente, Tranavia sabe que você existe, por qual outro
motivo eles mandariam o Príncipe Herdeiro – um estrategista de
guerra pródigo – atacar um mosteiro em uma localização que não
fornece nenhum avanço estratégico? E se Tranavia sabe, Kalyazin
inteira também sabe.
Havia mais alguma coisa que ele estava dizendo e Nadya
demorou mais tempo do que ela gostaria para entender.
— Vocês três estão aqui... por causa de mim?
— Isso não faz você se sentir importante?
Ele estava zombando dela novamente. Ela suspirou.
— Nós seguimos os rumores até aqui, sim. — Parijahan disse. —
Eu pensei que não iria dar em nada, mas aqui está você.
Nadya conhecia intervenção divina quando via uma, mas ainda
tinha alguma coisa errada. Havia um caminho que ela tinha que
traçar e não era esse. Não era trabalhar com um herege. Não podia
ser.
Ela passou a colher pela vasilha vazia.
— Eu preciso de tempo para considerar isso, para... rezar. Vocês
têm um plano para entrar em Tranavia?
— Você não pode estar falando sério — disse Anna.
— Que escolha temos? — Nadya respondeu.
— Eles não têm um plano. — Malachiasz respondeu,
interrompendo Rashid antes que ele tivesse a chance de responder.
Ele fechou o livro de feitiços com um barulho alto. — Vá rezar. — ele
disse para Nadya, colocando todo o peso da sua aversão na palavra
rezar. — Peça para seus deuses realizarem o impossível.
É
— Eu sei no que você acredita sobre minha magia. É fácil
espalhar o rumor que magos de sangue usam sacrifícios humanos —
Ele disse devagar, sua voz soava quase normal. — Não significa que
é verdade.
— Mas você pode?
Ele assentiu. Ela engoliu em seco, hesitou, sentindo suas mãos
tremendo como se ela lutasse com o peso de sua decisão. Ele tiraria
eles de lá; e isso salvaria os outros.
Ela faria uma exceção perigosa de seus próprios princípios pela
segurança de sua amiga, a única que sobrou, e dois potenciais
aliados? Pela possibilidade de que esse grupo desordeiro possa virar
a guerra?
Engolindo em seco, ela puxou sua manga e segurou seu
antebraço para ele.
Ele não deu a ela uma chance de mudar de ideia. Sua garra de
ferro era um caco de gelo se arrastando por sua pele, partindo sua
carne. Ela exalou e rezou para que ela não se arrependesse disso. Ela
assistiu com o coração na garganta o sangue jorrando do corte.
Sangue não era para ser derramado pelo poder. Magia era uma
convocação divina dos deuses. Mas aqui, a magia dos deuses foi
inútil. Fazer essa coisa indescritível manteria ela viva, manteria
aqueles que ela precisava proteger, vivos. Ela não podia destruir
esses monstros se tivesse morta.
Os olhos de Malachiasz se estreitaram, seus dedos apertaram o
pulso dela.
— Nosso segredo? — Ele disse.
Ela se livrou de seu aperto, girando sua mão para que ficasse
apertada no antebraço dele.
— Eu não sei o que você é. — Ela disse devagar. — Mas eu juro
pelos deuses, se você usar isso contra mim, vai ser a última coisa
que você vai fazer.
O silêncio que se seguiu era tão carregado que Nadya podia sentir
ele tremendo debaixo da mão dela. Ela teve a sensação de que era
puro esforço para se manter em uma forma semelhante à humana.
Quem era esse garoto? Ou melhor, o que ele era? E o que ela
tinha acabado de fazer?
— Eu entendo. — Ele disse.
Ela assentiu.
Ele puxou ela para o peito dele e a onda de poder que ela sentiu
em volta deles quase a derrubou. Ela se sentiu deslizando, sentiu ele
se materializar em um jato de sangue e magia. Então Malachiasz se
foi e levou Nadya com ele.
Quando Nadya acordou, era no topo de uma neve carmesim. Ela
tremeu violentamente, se sentando. Depois de uma rápida
checagem, ela percebeu que o sangue não era dela. Ela estava na
floresta, em um banco de neve, e ainda viva. Ela se sentia terrível.
Tinha uma forma escura deitada a alguns passos ao longe. Ela
hesitou antes de cambalear até Malachiasz, sem saber o que
encontraria.
Mas qualquer coisa que se apossou de suas feições tinha ido
embora. Ele era só um garoto, pálido e inconsciente no frio. Ele
estava coberto por sangue, os dois estavam, mas sem ferimentos.
Nadya se endireitou e o observou. Ele tinha uma boca macia e um
nariz imponente. Sua face era adorável, com todas as qualidades
selvagens e perturbadoras ausentes quando ele não estava acordado.
Ela não estava satisfeita consigo mesma por notar, especialmente
não agora. Enquanto seu rosto ficava corado, ocorreu a ela que ela
não tinha certeza se ele estava respirando. Ela tinha abaixado a
cabeça para ouvir seu peito quando seus olhos se abriram, pretos
como piche.
— Mate ele.
Então ela estava de costas, todo o peso do corpo de Malachiasz
pressionado no dela. Sua boca se abriu em um rosnado e dentes de
ferro brilharam na luz; ela podia sentir o gelo das suas garras
pressionados no seu pescoço.
— Malachiasz!
Seus olhos clarearam, o preto sumindo até que não havia cor a
não ser o azul mais pálido. Ele encarou ela, lentamente movendo
suas mãos para longe do seu pescoço. Então como um animal
assustado ele se afastou, cambaleando para trás até que tropeçou e
caiu alguns metros depois. Sua expressão era perturbada. Ele
examinou os arredores, seu rosto ficando mais preocupado.
— Nadya. — Ele disse suavemente. Como se ele não esperasse
que eles escapassem, que estivessem vivos e que ele fosse ele
mesmo.
— Onde estamos? — Ela perguntou, se sentando. Ela se moveu
para pegar a voryen que estava largada na neve ali perto. Ela não
embainhou.
Ele olhou para as árvores.
— Eu não sei. — Sua voz soava quebrada e não natural.
Seu coração tropeçou.
— Os Abutres ainda estão por perto.
Seus olhos fecharam e ele ficou parado.
— Sim, tem um. — Ele disse fracamente, dando um meio sorriso e
abrindo os olhos.
Ela o encarou. Seu sorriso se foi e ele se apoiou nas mãos e se
inclinou para trás, parecendo indiferente ao frio. Nadya estava
tremendo.
— Se isso não funcionou.... Se nós abandonamos nosso amigos...
— Nadya se interrompeu, pânico crepitava em seu peito. Se ela
tivesse apenas deixado Anna para trás por causa de um comando
desse monstro ela mataria ele. Ela poderia matar ele de qualquer
jeito. Ela não sabia o que a estava impedindo.
— Nadya...
— Não. — Ela vociferou, interrompendo ele. Ela se levantou,
apertando sua voryen. Ela apontou para ele. — Me dê uma razão
para não te matar.
— Você estaria morta se não fosse por mim? — Ele ofereceu,
olhando para ela, os olhos semicerrados devido ao brilho do sol na
neve.
— Não é bom o suficiente. Você estaria morto se não fosse por
mim.
Ele assentiu, permitindo isso. Ela pressionou a ponta da sua faca
debaixo do seu queixo, empurrando sua cabeça mais para trás.
— O que eu fiz foi heresia. — Ela disse suavemente.
— Valeu a pena? — Ele perguntou, soando curioso.
Claro que não valeu a pena. Toda respiração que ele dava era
Nadya desobedecendo sua deusa. Eles tinham salvado um ao outro,
mas isso não significava que ela deixaria ele viver. Era o dever dela
livrar esse mundo de monstros como ele. Ela se moveu para
pressionar a lâmina contra seu pescoço, cortar sua artéria e se livrar
dele. Sua mão tocou a dela, os dedos se entrelaçaram aos dela. Seus
olhos azuis pálidos encontraram os dela castanho escuros. Ele não
lutou, em vez disso, ele ofereceu mais de sua garganta à sua lâmina.
— Você poderia fazer muito com sangue que nem o meu. — Ele
murmurou. — Esse é sempre o primeiro passo sabe. Derramar
sangue é a parte difícil. Usar é fácil. Usar seu sangue foi
esclarecedor; é um grande poder o que você tem. Seria maior, se
você usar o meu também.
Repulsa atravessou seu corpo e ela se afastou.
— O que você é?
Malachiasz deu de ombros. Ela observou enquanto ele se
levantava, desconcertada pelo fato dele ser muito mais alto que ela.
Sua cabeça chegava somente ao seu ombro. Ela gostava mais
quando ele estava aos pés dela.
Ele deu um passo para frente; ela se forçou a continuar onde
estava. Então, sua mão – os tremores ansiosos se foram – estava
debaixo do queixo dela, direcionando seu olhar ao dele. Ela não
podia evitar sentir o frio das unhas de ferro contra sua carne,
mesmo que a mão dele estivesse firme e quente contra a pele fria
dela. Ele estudou seu rosto e todos os sentimentos de distância se
acalmaram enquanto ela também estudava ele, tentando entender o
que impedia a mão dela. Seu emaranhado escuro de cabelos grossos
que ele afastara do rosto estava coberto de sangue e neve, e o fazia
parecer mais selvagem. Uma curiosidade que ela não sabia nomear
se apossou dela. Aqui estava a coisa que ela foi ensinada a vida
inteira que era uma abominação – e ele era o pior tipo de
abominação – mas ele também era só um... garoto.
Um garoto cuja mão ainda estava no rosto dela. Ela lutou entre
querer se afastar e entre repousar seu rosto em sua palma porque
era tão quente e ela estava tão fria.
— Nadezhda Lapteva. — Ele disse contemplativamente. Quando
ele compartilhou seu próprio nome, ela não pôde deixar de se sentir
como se ele estivesse a puxando para alguma sombra profunda da
qual ela nunca escaparia. Era uma sensação semelhante agora.
Mas era só uma sensação.
— O quê? — Ela disse irritada, chateada consigo mesma por estar
sentindo isso, e com ele por agir tão estranho depois de ela ter visto
ele se transformar em um monstro.
— Você pode ser exatamente o que esses países precisam para
parar de lutar. — Ele disse. Ele abaixou a mão e a ausência a deixou
mais fria. — Ou você pode destruí-los.
Onze: Serefin Meleski
Serefin odiava admitir que Ostyia estava certa, mas ele acordou na
manhã seguinte com uma ressaca para competir com todas as
outras. Para o crédito dela, ela lhe entregou um odre de água sem
dizer nada quando saíram e o sorriso dela era levemente espertinho.
— Fiz muito papel de bobo ontem à noite? — Ele perguntou
quando a estalagem estava fora de vista.
— Você prometeu a Felicíja Krywicka todas as terras do Oeste
como presente de casamento — disse Kacper.
Os olhos de Serefin se estreitaram. A noite anterior era nebulosa,
mas ele tinha quase certeza que isso era uma mentira.
— Tudo correu bem. — Ostyia disse. — Você era muito Serefin às
vezes, mas no final das contas, nenhum mal foi feito.
— Por sangue e ossos, não meu verdadeiro eu. — Serefin zombou,
horrorizado.
— Enquanto você falava com Felicíja, Krywicki mencionou que
ele esteve em Grazyk um mês atrás e ficou alarmado ao ver quantos
Abutres estavam se esgueirando pelo palácio. — Kacper disse.
Serefin se endireitou na sua sela.
— Ele disse mais alguma coisa?
Kacper assentiu.
— Os Abutres estão recrutando cada vez mais rápido, como se
estivessem se preparando para alguma coisa.
— Nós sabemos que os Abutres são levados às Minas de Sal
quando se integram. — Ostyia deliberou. — E estivemos mandando
muitos prisioneiros Kayazi para lá nos últimos meses.
Serevin sentiu um arrepio na espinha. Eles estavam deixando
alguma coisa de fora.
Luz do sol brilhava no azul profundo do lago, quase cegando
Serefin quando ele olhou diretamente. Grazyk era uma cidade
portuária do lago Hańcza, aberto com muitos canais e rios selvagens
que eventualmente desaguavam no mar.
Barcos flutuavam perto das docas. Serefin se perguntou se
alguma coisa foi feita sobre os piratas atacando navios Tranavianos
quando eles saíam em águas abertas. Tinha se tornado problema
suficiente para ganhar a atenção do pai, mas isso foi antes de
Serefin ir embora. Uma cidade portuária no meio do reino. Às vezes
parecia que Tranavia era mais água do que terra.
Tinha uma sequência de pequenas vilas para passar antes deles
finalmente chegarem na cidade. Sempre tinham um cheiro
desagradável e a aparência era pior, as barracas velhas mal se
sustentavam, e com prateleiras e prateleiras de peixe secando no
sol.
Serefin viu uma jovem mulher atravessar a rua, dois baldes
presos a uma vara apoiada nos ombros. Eles estavam cheios de água
e se moviam, peixes vivos. Suas roupas eram esfarrapadas, suas
saias também eram esfarrapadas e sujas na bainha. Um garotinho
correu para ela de onde ele estava sentado na porta de uma casa
com persianas penduradas em dobradiças simples. Ele puxou um
dos baldes e a desequilibrou. Ela estava rindo enquanto abaixava os
baldes e colocou a mão em um deles, pegando um peixe e
mostrando ao garoto.
A guerra estava acabando com Tranavia. As vilas Kalyazi estava
em um estado similar, mas ele não ligava para camponeses Kalyazi
que passavam fome; ele ligava para Tranavianos que passavam
fome.
Quando eles estavam perto da cidade, Ostyia instigou seu cavalo
a um galope para alcançar os portões primeiro para que os guardas
estivessem preparados para a chegada do Príncipe Herdeiro.
— Bem — Serefin disse suavemente. — começou.
— Se anime, Serefin. — Kacper disse. — Não vai ser tão ruim.
Você só tem que bajular e mentir, então você pode esfaquear seu
velho pelas costas e acabar com isso.
Serefin reprimiu sua paranoia. Ele empurrou para fora de sua
cabeça, colocou seu livro de feitiços vazio na mochila onde não seria
visto – um príncipe com um livro de feitiços vazio era vergonhoso –
e se preparou para enfrentar seu destino.
Grazyk era a cidade mais opulenta de Tranavia, construída muito
antes da guerra, quando Tranavia estava no auge da riqueza, e a
moda era cor e luz e ouro. Serefin achava que ouro nunca saía de
moda, mas agora era muito caro alinhar e moldar portas com tijolos
de ouro e madeira impermeada com ouro. Alguns desses prédios
ainda estavam presentes, uma evidência de quando Tranavia não era
tão pobre. Muitos tinham sido destruídos há muito tempo pela
riqueza que poderia ser retirada de suas fundações.
Tinha uma nuvem de poluição acima da cidade. Era uma
opressão que todo mundo aprendeu a ignorar. A neblina veio de
experimentos mágicos que deram errado, subindo do chão onde
tinha minas por perto – não muito diferente das Minas de Sal.
Enquanto os experimentos se mudaram para Kyętri, a nuvem de
poluição nunca se dissipou. Ficava no ar suspensa e escura, um
lembrete do que acontecia quando magos queriam demais.
Não que algum mago em Tranavia temia o lembrete. Só fazia a
cidade toda ter cheiro de cinzas. Nobres tentavam combatê-lo
usando bolsas com ervas caras e temperos ou passando óleos
cheirosos importados de Akola. Nenhum funcionava, mas nada
impedia slavhki de suas soluções escandalosas para coisas que não
eram problemas.
Ostyia mandou um mensageiro ao palácio, iniciando as
formalidades desnecessárias. Serefin tentou encontrar os
sentimentos de saudade de casa que ele teve quando estava no
front, mas agora ele percebeu que havia sido uma ilusão
melancólica.
Se a cidade era luxuosa, então o palácio era magnífico. Brilhava
na distância, a promessa de uma beleza vigiando a cidade e sua
neblina infame. Pináculos se torciam pelo céu, suas milhares de
janela refletindo um brilho tão intenso que Serefin teve que abaixar
os olhos.
Os guardas abriram os grandes portões de madeira quando eles
se aproximaram. Até esses portões foram martelados em ouro. Um
servo esperava no pátio para pegar os cavalos.
O pátio era pavimentado com granito liso que se transformava
em uma grama exuberante na frente do palácio. Zumbia com ruídos
baixos de atividade. Ele podia ouvir o som de lâminas se
encontrando no lado norte. Ele se preparou para a convocação
imediata de seu pai. Chegou imediatamente através de um servo
usando uma máscara simples marrom que deixava apenas seus
olhos visíveis. Um dos servos pessoais do pai. O servo curvou-se
para Serefin, que falou antes que ele pudesse passar a mensagem.
— Sim, sim, meu pai deseja me ver.
O criado assentiu. Não poder ver seu rosto era desconcertante.
Serefin não gostava muito das máscaras que eram moda na corte
nos últimos anos.
O estilo se inspirou nas máscaras usadas pelos Abutres. As únicas
pessoas que não usavam máscara geralmente era a família real.
Serefin odiava usar qualquer coisa que deixasse sua visão pior. Sua
mãe nunca estava em Grazyk tempo suficiente para se importar, e o
rei estava acima das tendências da corte.
Serefin passou uma mão pelo cabelo e acenou para o criado
novamente.
— Bom? Me leve a ele. Não podemos deixar Sua Majestade
esperando.
Doze: Nadezhda Lapteva
É
— É esse o meu nome? — Nadya perguntou. — Você que teve a
ideia?
Ele estreitou os olhos.
— Józefina Zelenska. Seu pai, Luçjan, tragicamente deixou esse
mundo, mas ele morreu lutando por esse país. Sua mãe, Estera, é
uma inválida, e — ele pausou, pensando. — você tem uma irmã mais
nova chamada Anka.
Nadya piscou.
— Você acabou de inventar tudo isso?
Malachiasz levantou as sobrancelhas.
— Sim, por quê?
Quantas realidades falsas ele deve ter construído para si? Ela se
perguntou. Se tudo que ele tinha era seu nome e sua magia, quantas
noites ele deve ter ficado deitado acordado, pensando onde as
pessoas que eram sua família estavam? Quem eles eram? Isso era
fácil para ele. Apenas outra família falsa que nunca seria real. Ela
teve que parar a súbita vontade de atravessar a distância até onde
sua mão repousava na mesa, linhas negras de tinta tatuadas nos
dedos pálidos. A urgência de dar ao seu inimigo algum conforto a
assustou o suficiente para que ela colocasse a mão no colo e fingiu
que nada tinha acontecido. Seu olhar rápido ao lugar onde a mão
dela estava, a fez sentir ainda mais que ela estava fazendo algo que
não devia.
Rashid se afastou do mapa e Malachiasz afastou gentilmente o
mapa para que ele não se enrolasse.
— Você pode lançar magia sem usar essas contas? — Malachiasz
perguntou.
Ela pegou o colar entre os dedos.
— Não.
— Nós temos que descobrir uma maneira de trabalhar nisso. E
esses — ele passou a mão pela boca. — símbolos? Fica muito óbvio
que você está usando magia.
— Oh, do mesmo jeito que você corta o seu braço e fica sangrando
em cima de tudo? Muito sutil.
Parijahan bufou. A expressão de Malachiasz estava cansativa.
— Você sabe o que eu quero dizer.
— Eu vou falar com Marzenya. Talvez eu e ela possamos chegar a
um acordo. — Nadya disse.
— Aliás se Rashid e Parijahan serão parte da minha comitiva...
— Eu sou muito bonito para ser um servo... — Rashid disse com
um suspiro.
Malachiasz olhou para ele com um olhar divertido.
— Você pode ser da nobreza...
— Não, Malachiasz. — Parijahan disse rapidamente. — Muita
papelada. Nós já estamos arriscando com Nadya. Eu não quero que
um slavhka sagaz que tenha visitado as cortes de Akola me
reconheça, e eu definitivamente não quero que minha Travasha
ouça que eu reapareci, então vamos mudar o contexto. Eu serei a
criada de Nadya, me escondo à plena vista. Eu posso engolir meu
orgulho por um curto período. — Ela sorriu ironicamente. — E
Rashid também.
— E a Anna? — Nadya perguntou.
— Eu não irei com você. — Anna disse suavemente.
Nadya se virou para ela, sem palavras. Anna tinha que ir com ela.
Ela não podia fazer isso sem Anna.
O sorriso de Anna estava tingido por melancolia aguda.
Claramente ela esteve pensando nisso por um tempo. Ela olhou
para Malachiasz.
— Tranavia vai estar focada na Rawalyk, não vai?
— Eles acabaram de tirar o estrategista prodígio da guerra. — Ele
disse. — Todos os olhos do país estarão em Grazyk. Há uma boa
chance de que Tranavia esteja tão confiante que a vitória esteja à
vista, que afrouxarão seu controle pelo tempo que a cerimônia
durará.
— Eu vou para Komyazalov. — Ela disse. — Ou, pelo menos, para
a maior base militar que eu achar no caminho, enquanto vocês
lidam com isso. — Ela pressionou seu dedo indicador no mapa em
cima de Tranavia. — Eu vou me certificar de que Kalyazin está
pronta para o que virá em seguida. Além do mais, o príncipe sabe
que fugimos do mosteiro juntas. É melhor que eu nem esteja
presente para não levantar suspeita alguma.
Nadya encostou sua cabeça no ombro de Anna e se esforçou para
segurar as lágrimas. Ela pensou que ao menos teria Anna ao seu
lado, mas o que Anna queria fazer era importante – vital, até –
então ela não ia discordar.
— Não vá sozinha. — Nadya disse em Kalyazi. Malachiasz não
brigou com ela por ela ter trocado de língua. — Venha conosco por
pelo menos um tempo. Ainda há presença militar no leste, certo?
Rashid assentiu.
— Não viaje pelas montanhas sozinha.
Anna a olhou por um longo tempo. Ela não queria tornar isso
mais difícil, e já iria destroçar as duas quando partisse. Anna era
tudo que Nadya tinha de casa, e agora ela estava a perdendo
também. Finalmente, Anna assentiu. Nadya relaxou, entrelaçando
seu braço com o dela.
— O que você está planejando fazer? — Nadya perguntou a
Malachiasz.
Ele mordiscou a unha do polegar. Parecia em carne viva, com as
bordas irregulares e vermelhas.
— Eu vou colocar você dentro de Grazyk, dentro do palácio, tanto
faz. E de lá, nós descobriremos o resto.
Isso não ia funcionar. Cada parte disso precisava ser impecável
ou eles iriam ser pegos. Ela o encarou. Nadya sabia que não deveria
se importar com essa abominação Tranaviana sentada na frente
dela. Seu destino era condenado, assim como o de todos os outros
Tranavianos – talvez ainda mais, já que ele foi um Abutre, um dos
piores. Mas ela encarou mesmo assim, esse garoto – esse garoto
estranho com seu cabelo preto embaraçado e testa tatuada – e
metade dela queria ajudá-lo.
A outra metade queria destruí-lo, mas essa metade estava
estranhamente quieta.
Nadya se sentou do lado de fora na neblina cinza e fria de início
de manhã, a jaqueta de Malachiasz estava nos ombros dela. Apesar
do ataque dos Abutres ter sido ontem, parecia que anos tinham se
passado. Eles iam embora na parte mais tarde da manhã. Anna tinha
pintado o cabelo de Nadya de vermelho escuro, e ela podia sentir as
mechas congelando no seu pescoço. Ela puxou seu colar pela cabeça
e o enrolou na mão.
Ela tinha uma ideia, – provavelmente uma péssima ideia –
definitivamente uma que demandaria muito esforço dela para
manter Malachiasz a salvo em Tranavia.
— Você está me pedindo para proteger um herege. — Veceslav
disse. — Não só isso, mas um que perdeu sua alma para o mal.
— Agora, isso parece um pouco melodramático.
— Nadezhda. — O tom de Veceslav era de aviso. Ele pensava que
Nadya estava sendo completamente mortal, completamente
petulante, completamente diferente de como alguém escolhida
pelos deuses deveria agir.
Nadya apertou mais a jaqueta de Malachiasz em seus ombros. Ela
não tinha a intenção de manter, mas quando ela saiu, ela não achou
outra coisa.
— Sim. Eu estou pedindo para você proteger um Tranaviano. Se
isso for funcionar, se você quiser o rei morto, então eu preciso que
ele seja protegido.
— Você não pode presumir que conhece a nossa vontade. —
Veceslav respondeu.
— Então o que devo fazer? Se você não concorda com meus
métodos, eu entendo, mas não posso fazer milagres. Eu só posso
trabalhar a magia. Eu sou humana. Eu sou mortal. Estou fazendo
o melhor que posso. Eu estou assustada, Veceslav. O tempo inteiro.
Eu não sei o que está acontecendo ou o que eu deveria fazer. Eu
estou apenas fazendo o meu melhor de acordo com as
circunstâncias que me são apresentadas, com o poder que tenho.
Ele ficou em silêncio. Nadya estava desconcertada com a frieza
dele com ela. Ele era um dos deuses que ela costumava contar que
seria gentil.
— Qual é a sua proposta? — A voz de Veceslav era um cutucão
bem vindo na parte de trás da cabeça dela.
Ela expirou, observando sua respiração sibilar no ar gelado na
frente dela.
— Eu preciso que ele seja capaz de voltar à Tranavia e se
esconder entre os seus em plena vista. Se eu vou usar a magia dele
na minha pele, então ele deve ser forçado a usar a minha na dele. —
Ela pausou, considerando. — Os hereges não podem ganhar essa
guerra, e eu temo que eles estejam próximos. Se, por enquanto, nós
protegermos apenas esse Tranaviano – a abominação que ele é –
então nós poderemos purificar Kalyazi dos hereges completamente.
— Então a você será dado feitiços e magia para protegê-lo dos
inimigos dele e dos seus.
Nadya notou suas palavras. Funcionaria.
— Obrigada, Veceslav.
— Você pisa em terreno perigoso, criança. Nosso toque é fraco em
Tranavia. Se você viajar para lá, você se retira de nossa proteção.
Você deve fazer seu dever quando chegar.
Nadya estremeceu. Destruir Tranavia para que os deuses possam
retornar. Destruir completamente, se fosse necessário. E não dizer a
ninguém suas intenções. A conversa foi interrompida quando ela
ouviu passos na neve.
— Você não pode fazer isso lá dentro onde está quente? —
Malachiasz se sentou ao lado dela no banco. Ele olhou de lado para
ela. — Fiquei me perguntando onde isso estava.
Ela sentiu seu rosto esquentar.
— Nesse momento, eu não tenho mais nada exatamente.
Ele riu. O rosto dela ficou mais quente. Ela abaixou a cabeça,
confusa com a sensação estranha no peito. Era a primeira vez que
ela ouvia sua risada real, e ela gostava de como soava.
— Não te incomoda usar o casaco de um herege?
Ela revirou os olhos, mas as palavras dele a acertaram, e algo se
agitou dentro dela. Deveria incomodá-la o fato de estar usando o
uniforme do inimigo, mesmo se fosse só uma peça.
— Por que você tem o casaco de um soldado? — Ela perguntou.
— Quando eu fugi, parecia racional fugir como um soldado
Tranaviano e não como um Abutre. Nós somos um pouco mais
notáveis.
Eles ficaram quietos e somente suas respirações quebravam o
silêncio. Ela olhou para ele. Ele estava encarando uma estátua de
Alena com uma expressão contemplativa no rosto. Seu cabelo negro
estava amarrado para trás, mas uma mecha havia se soltado. Ela
observou quando, sem pensar muito, ele levantou a mão e prendeu
atrás da orelha apenas para cair novamente em sua bochecha.
— Eu sei como te ajudar a passar a fronteira. — Ela disse. As
palavras saíram de uma vez com o pensamento de que ele poderia
flagrá-la o observando. Ela desenrolou o colar da mão, o esticando
em seu colo. Ela selecionou a conta certa e a segurou.
— Isso não tem nenhum significado para mim. — Ele apontou.
— Veceslav é o deus da proteção e da guerra.
— Uma combinação estranha.
Ela ignorou isso.
— Proteção pode significar muitas coisas. Proteção pode significar
blindar você de Tranavia.
Ele parecia cético. Ela procurou as palavras certas.
— Você colocará um feitiço em mim então todo mundo que me
ver vai pensar que sou... Outra pessoa.
— Mais ou menos isso, sim.
— Mas se eu fosse uma bruxa de sangue, eles ainda poderiam
sentir minha magia, certo?
Ele assentiu.
— Veceslav irá disfarçá-lo por um mago mais fraco, ou alguém
que não tem magia alguma. Você pode... — Ela procurou por um
cenário. — passar entre os Abutres e eles não saberiam.
Ele fez uma careta, erguendo a mão para encostar um dedo na
conta na mão dela.
— Se eles me pegarem — ele disse, a voz baixa na orelha dela. —
Eles retirarão o conhecimento que tenho sobre você da minha
mente e me mandarão atrás de você para te matar.
Nadya engoliu em seco, com medo. Ela resistiu a vontade de
apertar mais o casaco dele em volta dela.
— Eu... Eu pensei que você fosse um dos mais fortes? — Ele
nunca disse isso, mas seu comportamento implicava isso. ele teve
que sobreviver todo esse tempo depois de desertar.
— Mas eu não sou o mais velho, Nadya. — Seus olhos pálidos
estavam distantes e uma de suas mãos esfregou ociosamente seu
pulso, onde espinhos de ferro se projetavam de sua pele. — Eu sou
muito jovem em comparação, e nesse mundo há males muito
maiores que eu.
Os dedos dela se fecharam no colar.
— Não me faça me arrepender de te ajudar. — Ela sussurrou. —
Por favor.
Ele inclinou a cabeça para trás e o olhar dela se prendeu na linha
de sua garganta, então ele deu um sorriso torto.
— Não posso garantir isso, towy dżimyka. — Ele se levantou. —
Nós iremos embora em breve. Você e eu podemos esperar até
estarmos mais próximos da fronteira para enfeitiçar um ao outro.
— Eu vou entrar logo. Talvez ver se tem outro casaco para mim.
— Nadya disse. Ela não sabia ao certo o que significavam os broches
do lado esquerdo da jaqueta, mas tinha certeza de que não os queria
perto do seu corpo.
Ele pegou uma mecha congelada do cabelo dela entre seus dedos.
— Não tenho certeza se vou. — Ele murmurou. Ele se virou e
começou a voltar para a igreja. — Vermelho foi uma boa escolha. —
Ele falou por cima do ombro.
Nadya ficou sentada em frente ao altar, seu rosto com o mesmo
tom ardente do cabelo dela.
— Você não viu isso. — Ela disse, em voz alta, para qualquer deus
que estivesse ouvindo. — Assim que isso acabar, uma facada no
coração, exatamente assim.
Ela não conseguiu se convencer. Mas nada disso importava, ainda
não.
Quinze: Serefin Meleski
Nadya era a mais surpresa de todo mundo quando o plano dela para
atravessarem a fronteira funcionou.
— Onde está sua companhia, filho? — O Tranaviano que os
confrontou parecia mais velho que Malachiasz, e por causa disso,
ele pensou que era superior a ele.
Malachiasz se endireitou, sua postura traindo o ar de alguém que
estava acostumado a ter autoridade. Ele empurrou o cabelo para
longe de onde suas medalhas estavam na jaqueta. Agora Nadya
tinha dupla certeza de que não queria saber o que significavam.
— Perdi a maior parte deles para mercenários que se escondem
nas montanhas. — Ele disse. — Perdi o resto em algum lugar no
meio do caminho.
O soldado franziu o cenho para Malachiasz, mas quando ele falou
de novo, o tom condescendente se fora.
— Quem são eles, então?
Malachiasz olhou de volta para o grupo.
— Os Akolanos estão fugindo de Kalyazin, uma decisão sábia. A
garota é... — Ele vacilou, convincentemente. — Bom, você sabe. —
Ele piscou para o soldado.
Nadya se controlou para manter sua expressão educada.
— Preciso que venha comigo — disse o soldado, olhando de uma
maneira dura para Malachiasz. Ele puxou uma segunda soldada, e
ordenou para que ela se certificasse que o resto deles não fossem
para outro lugar.
Nadya sentiu seu coração acelerar enquanto Malachiasz seguia o
soldado Tranaviano para dentro de uma cabine mal construída. Ela
olhou para Parijahan, cuja expressão era retorcida e cautelosa. Os
minutos que Malachiasz ficou fora se esticaram, e pareciam que
nunca iam acabar, mas a soldada guardando eles, parecia apenas
entediada.
Eventualmente, Malachiasz saiu da cabine, sua face pálida. O
outro soldado o seguiu e acenou para a garota que os vigiava.
— Deixe-os passarem. — Ele disse.
Ela parecia que ia questioná-lo, mas Malachiasz lhe deu um
sorriso fino e tocou em uma das medalhas na jaqueta dele. Ele tinha
uma posição superior à dela – provavelmente ele tinha uma posição
superior a todos daqui – e ficou em silêncio.
Malachiasz pegou o pulso de Nadya e a puxou para fora do
acampamento. Ela o deixou, totalmente consciente que era tudo
parte do show, mas que ele claramente estava gostando.
Nenhum deles abordou o que havia acontecido entre os dois na
clareira. Ela não achava que um dia falariam sobre. Ela só tentou
ignorar as pausas no seu coração que pareciam intrinsecamente
ligadas à mão dele em volta do pulso dela.
Com o perigo inicial para trás, agora eles tinham que chegar à
Grazyk antes do verdadeiro teste começar.
Tranavia não era o que Nadya esperava. Havia lagos e rios por
todo o lugar. Eles tiveram que atravessar em barcos, operados por
homens e mulheres abatidos, muito velhos para lutarem no front.
Mas Tranavia era linda. A água era límpida e brilhante, cobrindo a
terra como pedras preciosas, imaculada pelo flagelo da guerra que
queimava em Kalyazin.
Em um dos muitos barcos Tranavianos que eles conheceram
durante a viagem, Nadya se inclinou no parapeito, olhando para a
água. Rashid estava precariamente empoleirado ao lado dela quando
Malachiasz se aproximou dela.
— É adorável, não é?
— Sim.
Ele estava quieto, encarando a água. Tinha uma ternura em seu
olhar que ela nunca tinha visto antes.
— Não foi particularmente gentil comigo. — Ele disse. — Mas
Tranavia é casa. É selvagem, vibrante e tenaz. As pessoas, altivas e
inovadoras. — Ele olhou para ela. — Eu vou salvá-la da destruição.
Era algo que os dois tinham em comum – embora ela sentisse
uma pontada de culpa, porque suas ações levariam Tranavia à sua
queda. Seus deuses queriam punir o país por sua heresia, e ela faria
isso. Mesmo que isso a colocasse em desacordo com esse lindo e
estranho garoto. Mas ela podia ver que ele se importava muito, do
mesmo jeito que ela se importava com Kalyazin, e ela pode respeitar
isso.
Ele tirou o livro de feitiços do quadril e entregou a ela.
Ela, hesitantemente, pegou o livro grosso e de capa de couro dele.
Ela teria segurado entre dois dedos, mas era muito pesado.
— O que você está fazendo?
— Não posso ser visto com isso, e você precisa parecer com uma
maga de sangue competente.
Ela queria jogar o livro na água. Ela o colocou no parapeito, longe
do seu corpo. Ele rolou os olhos, desatou o cinto que mantinha o
livro no quadril e entregou a ela também.
— Eu terei que rasgar as páginas sem usar os feitiços. — Ela disse.
Arruinar o livro de feitiços de um mago de sangue sempre foi um
objetivo pessoal dela, mas ela teria preferido que não fosse o dele.
Ele tocou sua têmpora.
— São meus feitiços. Eu posso reescrever.
— Você vai para o palácio conosco? — Nadya perguntou.
Aqui estava uma coisa que eles não tinham decidido: qual seria o
papel de Malachiasz quando chegassem na capital. Ele tinha se
esquivado da pergunta antes de um jeito que fez Nadya suspeitar
que ele simplesmente desaparecia quando chegassem.
— Eu vou ficar por perto. — Ele disse. Ele franziu o cenho, assim
como as tatuagens na testa. — Não seria incomum para uma
slavhka viajar com um mago de sangue agindo como seu guarda.
Não vai me dar um ótimo alcance ao palácio, mas posso fazer
funcionar.
Nadya franziu os lábios. Era uma parte sólida para ele interpretar
e ela descobriu que não tinha nenhum argumento.
— Você não vai ser pego pelos Abutres? — Ela ainda estava
preocupada com o que ele disse sobre eles não serem capazes de
agir contra a ordem do rei deles, mesmo se a magia nele estivesse
fraca.
— Eu descobri que se preocupar com ele é um empenho inútil. —
Rashid notou, cutucando-a com seu cotovelo.
— Acha que estou preocupada com ele? — Nadya disse,
irreverentemente.
Rashid deu a ela um olhar que dizia que ele não acreditava nela.
Quando ela olhou para Malachiasz pelo canto do olho, ele estava
casualmente observando a água.
— Vou ver se Parijahan precisa de alguma coisa. — Rashid disse.
— Devemos chegar ao outro lado do rio em uma hora.
Nadya queria puxá-lo de volta, dizer a ele para não deixá-la
sozinha com Malachiasz, mas Rashid já tinha ido.
— Nunca alguém se preocupou comigo antes — disse Malachiasz,
como se pensando em voz alta.
Nadya contemplou se jogar na água.
— Bom, não pense que serei a primeira. — Ela replicou.
Ele sorriu. A brisa pegou seu cabelo, o balançando como gavinhas
de fumaça escura pelo ar.
— Nosso plano é tão sólido como pode ser sob essas
circunstâncias. — Ele disse. — Rawalyk é um assunto secreto. Eles
trazem as mais espertas e melhores para o coração da cidade e,
depois uma bagunça cheio de drama e, às vezes, sangue, uma nova
consorte é escolhida. É uma das únicas vezes que o palácio é
acessível para a nobreza que não está nas escalas mais altas da
esfera social.
Ele tinha razão, não havia mais nada que pudessem fazer a esse
ponto. Malachiasz havia perfurado seu cérebro com todas os
detalhes da corte, até que ela sentia como se seu cérebro estivesse
derretendo. Parijahan tinha ensinado tudo que ela sabia sobre
crescer em uma Travasha.
— Nobres são nobres. — Ela disse, acenando com a mão. —
Independentemente de onde vêm. A mesquinhez da corte
transcende todas as fronteiras culturais.
Nadya estava, para todos os efeitos, pronta. Ela desejava que se
sentisse assim.
— Você têm que confiar em mim. — Malachiasz disse. — Quando
entrarmos, o momento que esperamos para ficar perto o suficiente
para atacar, chegará. Chegamos até aqui, entrar em Tranavia era
metade da batalha.
Ela não queria confiar nele. Especialmente não depois de vê-lo
como ele era.
— Tem... alguma coisa que você pode controlar? — Ela perguntou,
sabendo que ele entenderia do que ela estava falando. — Não é
ativado por um certo tempo ou incidente?
— Eu não sou um wolivnak, Nadya.
Pessoas que se transformavam em lobos, cujas transformações
eram ativadas pelos ciclos da lua. Ela virou os olhos.
— Nossa palavra para eles é zhir’oten.
— Bem, eu não sou um deles. — Ele disse formalmente.
— Estranhamente, eu tenho a impressão de que você é pior.
Ele riu.
— Você provavelmente tem razão.
— Tem mais nessa forma do que eu vi, não tem? — Ela não tinha
certeza do quanto ele estava disposto a falar sobre isso. Seus
sorrisos relaxados não significavam que ele responderia suas
perguntas.
Ele assentiu.
— Não acontece com todo Abutre, mas comigo, sim.
— Parecia horrivelmente errado. — Ela disse, sentindo uma onda
de arrepio passar por ela.
Ele deu de ombros.
— Depende do que você quer dizer com errado.
— Monstruoso.
— Eu sou um monstro. — Ele disse gentilmente.
As sobrancelhas dela se franziram e ela inclinou seus cotovelos
sobre o parapeito, colocando seu queixo nas mãos.
Malachiasz colocou a cabeça dele contra o vento.
— Tranavianos valorizam poder e status acima de tudo. Não
importa como esse poder é alcançado ou que medidas são tomadas
para tê-lo. Monstros são vistos como o ideal, porque monstros são
poderosos, mais que humanos. — Ele estendeu suas mãos e suas
unhas cresceram para garras de ferro. — Seu povo luta pela
divindade?
Ela assentiu, mesmo que fosse uma simplificação.
— Não é tão diferente. É lutar por algo que seria mais que
humano.
— Mas não às custas de assassinar pessoas.
— Kalyazi matam Tranavianos todo dia, e não veem um problema
nisso. Kalyazi estavam matando Tranavianos muito antes dessa
guerra começar, e também não era um problema.
Ela se virou para ele, raiva brilhando intensamente. O povo dele
era herege e assassino, e ele não ia distorcer as palavras dela e jogá-
las nela.
— Não é o mesmo que torturar prisioneiros de guerra. — Ela
retrucou.
Ele pegou o queixo dela com a mão, suas unhas frias e afiadas na
pele dela. Ele poderia pressionar um pouco mais e abrir a carne na
sua mandíbula. O coração dela se acelerou, mas ela não sabia se era
medo ou outra coisa.
— Talvez não. — Ele sussurrou, se inclinando para mais perto. Ela
sentiu seu hálito quente no rosto. — Talvez devemos ter essa
conversa novamente quando você experimentar um poder real.
O cabelo dele roçou no rosto dela, sua boca pairando tão perto da
dela que ela podia sentir seus lábios tremendo. Seus joelhos
estavam fracos. O olhar dele permaneceu nos lábios dela. O canto de
sua boca se contraiu e ele se afastou.
Ele acenou por cima do ombro dela, virando sua cabeça para que
ela pudesse ver a cidade brilhando atrás deles.
— Bem vinda a Grazyk, Józefina. — Ele disse. — Agora a
verdadeira provação começa.
As mãos de Nadya não paravam de tremer.
Suas contas de orações estavam guardadas no seu bolso, então
ela pegou o colar que Kostya deu a ela. O que ele diria se a visse
agora? Presa em um plano forjado por adolescentes potencialmente
loucos, uma máscara em seu rosto feita de couro pintado de branco
e estampada com impressões de espinhos.
Ele provocaria ela, a repreenderia, diria que ela estava ficando
louca. Ela sentia sua falta.
Marzenya a avisou que a presença dos deuses em Tranavia seria
limitada, mas Nadya sentia a ausência deles como uma ferida física
na sua lateral. Como se os deuses tivessem sido arrancados dela
assim que ela ultrapassou a fronteira. Quando ela esticava, ela mal
podia encostar no toque de Marzenya, mas exigia muito esforço.
Seria difícil lançar magia. Ela se sentia total e completamente
sozinha.
A cidade inteira estava envolta em uma névoa sufocante. Nadya
podia sentir a magia de sangue que causou uma mancha tão
opressiva no ar. Era difícil respirar. Era por isso que ela estava aqui,
para rasgar esse véu e trazer os deuses de volta a esse país pagão.
Assim que eles entraram na cidade, Nadya foi dominada pelos
sons e pela multidão. Ela ficou perto de Parijahan, agarrando seu
braço de vez em quando, para impedir de se separarem.
Diferentemente das vilas que eles passaram onde as pessoas
pareciam gastas e famintas, na cidade todo mundo se vestia com
roupas coloridas e ricas. A maioria usava máscaras no rosto –
adornos fantasiosos que escondiam suas identidades. Eles não eram
nada além de inimigos sem rosto.
Quanto mais se aproximavam do palácio, mais agitado
Malachiasz ficava. Nadya podia sentir seu próprio nervosismo se
alimentando do dele. Ela pegou seu pulso quando estavam próximos
dos portões do palácio, o pressionando com força.
Ela levantou as sobrancelhas quando ele deu a ela um olhar
intrigado. A magia que tinham lançado um no outro era tudo que os
manteria a salvo; eles tinham que confiar nela. Nadya ancorou sua
segurança a ele, e ele teria que fazer o mesmo com ela. Estava claro
que ele não queria voltar a um lugar tão perto dos Abutres, mas ele
tinha que confiar que o feitiço dela não vacilaria. Finalmente ele
expirou, a tensão se esvaindo dele. Ela soltou seu pulso.
Os guardas nos portões do palácio avaliaram os documentos de
Nadya de forma tão meticulosa que ela tinha se convencido que
seria presa ali mesmo. Uma gota de suor escorreu por sua espinha.
Rashid não parecia preocupado, mas Nadya tinha aprendido que o
garoto tinha um talento especial para a calma, assim como
Parijahan. Ela se perguntou o que permitia aos Akolanos encarar
um desastre em potencial sem vacilar.
Depois de dez minutos agonizantes, os guardas acenaram para ela
passar pelos portões. Nadya queria se jogar em Parijahan em alívio,
mas ela somente pegou os papéis do guarda e passou por eles.
Nadya sentiu Malachiasz ficar tenso quando uma enorme
catedral negra surgiu ao lado. Seus pináculos podiam ser vistos na
distância mesmo depois do palácio dominador com suas torres de
vidro. Ela cutucou as costas da mão dele, forçando ele a desviar os
olhos. Ele deu a ela um sorriso tenso.
Um criado saiu das portas principais do palácio, descendo os
degraus com uma graça que Nadya invejou. De repente, ela foi
levada pelas portas, e qualquer chance que ela teve de desistir,
desapareceu.
— Sua pontualidade é impecável, apesar de não estarmos
esperando que alguém da sua região de Tranavia fosse participar. —
O criado não tinha parado de falar desde que entraram no palácio.
Nadya acompanhou o homem tagarela, apenas lançando
ocasionais olhares de pânico à Parijahan. Um criado mascarado
levou Rashid à ala dos servos, e Malachiasz desapareceu quando
Nadya não estava vendo – ele a avisou de que provavelmente seria
levado ao quartel da guarda, então ela ainda não estava preocupada.
— Łaszczów não mantém mesmo muito contato com o resto de
Tranavia. — Concordou Nadya. — Mas essa é uma oportunidade que
não pode ser desperdiçada.
O criado sorriu.
— Exatamente. — O homem usava uma máscara que parecia asas
de pássaros saindo de cada lado do seu rosto.
Nadya estava usando a máscara por apenas um dia e já estava
fantasiando com o momento que ela pudesse retirá-la. Era quente e
desconfortável, e ela não queria mais isso no seu rosto.
O exterior do palácio era impressionante, com colunas douradas
na entrada. Portas de carvalho envelhecido se abriam para o enorme
hall de entrada. O chão de mármore era um xadrez de violeta pálido
e preto. Pinturas de mulheres em vestidos esvoaçantes e soldados
em uniformes militares nítidos estendiam-se pelos tetos
abobadados.
Enquanto eles adentravam o palácio, o tom das pinturas
escureciam. Os corredores se fecharam quando as cores ficaram
mais e mais opressivas. Abutres – os pássaros e os magos – com
garras e símbolos de magia de sangue rabiscados por um artista cujo
frenesi podia ser sentido.
Totalmente opulento e aterrorizante, era como se um pesadelo
tivesse invadido os sonhos de um nobre.
— Se sentir deixado para trás é o que acontece quando alguém vai
beber sem você, Ostyia, não quando alguém visita uma louca... oh.
— A voz em tom divertido que ecoava pelo corredor, parou.
Um pico de adrenalina correu por Nadya. Esse era o momento
que definiria se eles teriam sucesso ou se tudo seria queimado e os
deixaria na prisão.
O Príncipe Herdeiro era uma figura totalmente diferente daquela
no mosteiro. Seu cabelo marrom estava mais curto agora,
cuidadosamente afastado da testa. Nessa luz, seus olhos pálidos
eram menos estranhos, apesar da cicatriz que cortava seu rosto
ainda ser intimidante. Mas nos salões dourados de seu palácio, ele
se parecia mais com um príncipe do que com um monstro.
Ele era seguido pela garota baixa e com um olho só. Ela estava a
caminho de puxar sua manga e persuadi-lo, quando ele parou
abruptamente.
— Quem é essa? — Ele perguntou para o servo. Seus lábios se
curvaram em um sorriso torto.
Seu coração estava batendo tão forte que parecia que seu corpo
inteiro estava tremendo, mas ela se forçou a passar pelo servo de
qualquer jeito.
— Józefina Zelenska, Vossa Alteza. — Ela disse, executando uma
reverência tão perfeita que nem Malachiasz poderia reclamar.
— Zelenska. — O príncipe disse, pensativo. — Eu conheço o
nome? — Ele perguntou para a garota baixa.
Ela balançou a cabeça devagar, parecendo intrigada.
— Não estou surpresa. Łaszczów fica um pouco fora do caminho
da realeza — disse Nadya.
Alguma coisa passou por sua expressão e ele deu um passo para
mais perto. Seus olhos se estreitaram para o rosto dela e ela sentiu
seu pulso acelerar.
— Remova a máscara. — Ele disse, e então como se tivesse
pensado melhor. — Por favor.
Ele vai ver através do feitiço de Malachiasz, ela pensou,
horrorizada, enquanto desatava o nó e puxava a máscara do rosto.
A cada batida de seu coração, ela se sentia mais próxima da
morte. Ele ergueu a mão e pegou seu queixo, levantando seu rosto
para o dele.
— Eu estive em Łaszczów. — Ele disse, suavemente. — Acho que
me lembraria desse rosto.
Ela resistiu a vontade de engolir.
— Passei a maior parte do ano viajando. — Ela disse. — Estive em
Akola nos últimos anos, talvez sua visita tenha coincidido?
Ele olhou para Parijahan. Ela deve ter sido confirmação o
suficiente de que Nadya estava dizendo a verdade, porque ele
abaixou a mão, sorrindo de um jeito quase como se estivesse se
desculpando.
— Talvez. Uma pena que nossos caminhos não tenham se
cruzado. Boa sorte a você, Józefina.
Ela rapidamente colocou a máscara de volta.
— Obrigada, Vossa Alteza.
Somente quando Nadya foi levada a seus aposentos que ela
sentiu que pôde respirar novamente.
Ela retirou a máscara do rosto e a jogou em uma cadeira.
Olhando para o quarto, ela viu o mesmo nível de esplendor e
intimidação que ela testemunhou enquanto andava pelos corredores
do palácio. Tinha uma espreguiçadeira luxuosa e um conjunto de
cadeiras na sala de estar, junto com uma mesa pequena e uma
maior de mogno ao lado. Haviam estantes com livros que pareciam
que nunca tinham sido tocados, exceto ao serem limpados. Pinturas
a óleo estavam penduradas nas paredes – retratos de slavhki
Tranavianos, provavelmente.
Nadya olhou para o teto, e a vista gelou seus ossos. Um mural
massivo de pássaros estava pintado pela superfície inteira –
Abutres, em sua maioria – cercados por flores que pingavam ácido.
Ela sentiu uma pontada de desdém, que ela sabia que tinha vindo
dos deuses. Distantes, mas ainda presentes.
Parijahan examinou a sala, rapidamente abrindo uma gaveta da
mesa, tirando um bloco de notas e caneta, e escrevendo uma rápida
mensagem.
Esse lugar provavelmente está cheio de feitiços, ela escreveu.
Nadya assentiu, erguendo a mão para pegar suas contas de
orações antes de lembrar que elas estavam em seu bolso. Ela passou
a maior parte da viagem esculpindo os símbolos dos deuses em
círculos finos de madeira, os quais ela anexou à capa do livro de
feitiços de Malachiasz. Funcionaria, de uma maneira indireta, e
pareceria que ela lançaria feitiços como um mago de sangue.
— Você pode limpar os feitiços dessa sala, por favor? — Ela
mandou a oração para Veceslav, mas foi Marzenya que respondeu.
— Você pode sentir?
Nadya pausou. Ela se recostou a uma cadeira e fechou os olhos,
se permitindo sentir a parede invisível que separava os deuses dos
homens. Ela sentiu o momento que eles entraram em Tranavia, o
peso do véu pressionando contra ela, sufocando seu único acesso ao
divino.
Ela era forte o bastante para lutar contra isso, mas isso era magia
criada pelo homem, criada para lutar contra a dos deuses. Era maior
do que qualquer coisa que Nadya esperava, e tornaria sua tarefa
ainda mais impossível.
— Eu sinto.
— Você veio aqui para matar um rei; me pergunto se você não
descobrirá algo ainda mais terrível.
Nadya sentiu calafrios.
— Você pode dar um aviso do que será isso?
— Eu mal posso ver através da neblina que esse país lançou,
criança. Você mergulhou nas trevas onde os monstros moram,
agora você deve lutar contra eles antes de te consumirem.
A língua sagrada foi sussurrada por sua cabeça, e ela se moveu
para desmontar os feitiços tecidos através das paredes. Ela não
podia destruí-los por completo – alguém notaria, ela precisava
tomar precauções – ela só estava tornando-os imprecisos,
sangrando-os. Ela os enfraqueceu, para que qualquer informação
que voltasse aos magos, se parecesse normal.
Nadya gostou de desmontá-los, lançar magia que não era
espalhafatosa, nem perigosa. Ela foi treinada para magia destrutiva
– para feitiços que mudariam a onda das batalhas – mas ela gostava
mais de fazer coisas menores.
Ela olhou para o teto.
— Eu não tinha percebido o quanto eles idolatram os Abutres. —
Eu não tinha percebido do que exatamente Malachiasz tinha
fugido.
Parijahan se sentou na espreguiçadeira, deixando sua calma se
espalhar pela sala e reduzir os nervos desgastados de Nadya. A
garota Akolana tinha um talento especial para chamar atenção e
então desaparecer sem aviso. Ela era tão reservada e cuidadosa, do
jeito que ela prende o cabelo para trás em uma trança apertada ao
jeito que ela mantém suas mangas sempre nos pulsos, as bainhas da
saia roçando o chão. Nadya se perguntou se ela sempre foi assim, ou
se foi um resultado de perder a irmã e virar as costas para seu lar.
Nadya colocou o livro de feitiços de Malachiasz na mesa e se
sentou ao lado de Parijahan.
— O que acontece agora?
Parijahan cutucou a faixa de couro que amarrava sua trança e
passou suas mãos por seu cabelo.
— Entramos na hora que os portões estavam se fechando.
Amanhã tudo começa.
— Não gosto que tenhamos nos separado dos garotos.
Parijahan cutucou o ombro dela.
— Acho que podemos cuidar de nós mesmas.
— Realmente. — Ela ficou quieta, anda olhando para a pintura no
teto. — Você se arrepende de ter deixado seu lar? O tempo que você
passou em Kalyazin não deve ter sido confortável.
— Não me arrependo, não. Ter Rashid me ajudou. Eu conheço ele
a vida toda. E conhecemos Malachiasz seis meses depois de arrumar
problema com alguns soldados Kalyazi de folga. Rashid acabou
inconsciente em uma vala; Malachiasz quase teve o cabelo
arrancado e passou o dia seguinte inteiro depois que chegamos a um
lugar seguro em pânico por termos escapado por um triz.
Nadya riu. Parijahan gentilmente a virou para que ela também
pudesse desfazer sua trança de onde estava espiralada em torno da
parte de trás da cabeça como uma coroa. Nadya estava quieta
enquanto Parijahan penteava seu cabelo com os dedos.
— Você realmente acha que podemos fazer isso?
As mãos de Parijahan pararam. Nadya sentiu seus dedos se
enrolarem sobre seus ombros.
— Nós temos que fazer isso.
O tom dela fez Nadya se endireitar. Ela tem outro motivo para
isso que eu ainda não sei, Nadya pensou. Alguma coisa além de
vingança.
— Então nós vamos.
Dezenove: Nadezhda Lapteva
Ż
— Serefin! — Żaneta o cumprimentou pelo nome assim que ele
entrou, marcando seu lugar como a única garota entre as candidatas
da Rawalyk confortável o suficiente com o Príncipe Herdeiro a
ponto de ignorar as formalidades.
Ele já estava cansado e a cerimônia mal tinha começado. Ele não
estava pronto para falar com nenhuma das nobres ainda, então ele
foi para um canto vazio da sala. Kacper se afastou quando um criado
chamou sua atenção.
— Você nunca vai acreditar no que aconteceu. — Żaneta começou
quando Kacper voltou.
— A arena está sendo preparada para um duelo. — Kacper disse
antes que ela pudesse continuar soando intrigado.
Żaneta fez beicinho.
— Eu ia contar a ele.
— Me desculpa. — Serefin disse. — Pensei que você acabou de
dizer que um duelo está sendo organizado.
Kacper assentiu.
— A Rawalyk começou esta manhã. — Serefin disse
categoricamente.
Kacper assentiu com mais ênfase.
— Isso é trabalho seu?
Ela levantou as sobrancelhas.
— Eu não posso nem começar a contar o quão decepcionada
estou por não ter nada a ver com isso.
Serefin se jogou em uma espreguiçadeira.
— Bom, certamente teve um início dramático.
Ostyia empoleirou-se no braço de uma cadeira próxima,
recebendo um olhar venenoso de uma dama de companhia de meia
idade. Ela piscou para a dama, o que só fez o olhar da mulher ficar
mais intenso.
— Você nunca vai acreditar em quem está envolvido.
— Aponte-as para mim.
Kacper entregou à Serefin uma taça de vinho antes de se sentar
na espreguiçadeira ao lado dele. Nenhum deles deveria estar agindo
tão casualmente na companhia atual, mas Serefin não conseguia se
esforçar o suficiente para se importar. Kacper apontou para a garota
Krywicka.
— Não. — Serefin nem precisou fingir que estava escandalizado.
Żaneta riu.
— A outra é uma que chegou tarde. — Ela disse. — Bem ali.
Ele lembrou seu nome imediatamente. Józefina. Ela tinha
removido a máscara, girando-a preguiçosamente entre os dedos
enquanto ela observava a sala. Havia uma agudez em seu olhar que
Serefin achou fascinante. Sua outra mão descansava no livro de
feitiços no quadril. Ela olhou bem a tempo de ver Serefin a
observando.
Seus olhos se arregalaram, mas ela não desviou o olhar como ele
esperava.
Ele sorriu e se levantou, ignorando Żaneta que sibilou em
protesto. Ele deveria estar observando e não interagindo, mas ele já
estava entediado e queria saber sobre esse duelo da fonte.
— Lady Zelenska. — Ele disse quando parou em frente a ela.
Ela se levantou devagar, cuidadosa em seus movimentos. Ela
inclinou a cabeça enquanto se curvava.
— Vossa Alteza.
— Você não deveria estar se preparando para o duelo? — Ele
perguntou. — Lady Krywicka não está aqui.
Os dedos de Józefina se apertaram sobre o livro de feitiços. Era
uma coisa pesado, sinal de uma maga habilidosa. Mas suas juntas
estavam brancas, tensão se revelava em seu aperto de ferro.
— Estou preparada. — Ela respondeu.
Ela soava como se estivesse tentando convencer a si mesma, mais
do que tentava convencer ele.
— Me diga. — Ele disse. — O que você fez para despertar tanto
barulho? — Ele se recostou na parede, forçando-a a se mover
também. Agora suas costas estavam viradas para a sala, os olhos
observando-os menos visíveis.
— Você assume que eu sou a culpada? — Seu tom era muito
irreverente. Ela não era nem um pouco acostumada à corte. Toda
interação era uma faceta da Rawalyk e era completamente
inexperiente.
Ele sorriu e ficou surpreso quando ela sorriu de volta.
Ela acenou com a mão.
— Nada que te interessaria, Vossa Alteza, comentários
mesquinhos levados à sério demais.
Serefin se inclinou para mais perto.
— Eu não acho que você entende o quão mesquinho posso ser.
Ela se afastou. Seu favorecimento poderia torná-la um alvo. Ela
pareceu perceber isso.
— Você explicaria algo para mim? — Ela perguntou.
Serefin levantou uma sobrancelha.
— O que deseja saber?
— Isso provavelmente é ridículo, mas você deve entender, meu
pai morreu no front e minha mãe é uma inválida. Eu nunca tive
alguém para me explicar apropriadamente como tudo isso funciona.
E ela é corajosa o suficiente para contar sua ignorância ao
Príncipe Herdeiro? Serefin pensou. Ele não conseguia decidir se ela
era incrivelmente inteligente ou terrivelmente estúpida. O fato era
que a Rawalyk favorecia os nobres que viviam perto de Grazyk, era
lógico que aqueles que viviam nos confins de Tranavia se
esforçariam mais. O jogo inteiro estava nas sutilezas.
O que essa garota provavelmente não percebeu, era que esse
duelo é até a morte, e se ela sobrevivesse, daria a ela uma vantagem
aos olhos do seu pai. E uma vantagem era tudo que uma pessoa
precisava para ser escolhida.
Essa será a que ganhará o trono depois que acabarem comigo?
Ele pensou distraidamente.
— É um jogo. — Ele disse. — Um jogo baseado em como você fala,
com quem você fala e como você age.
Ela ficou pálida.
— Pense assim. — Ele disse. Ele passou seu polegar sobre a borda
da taça de vinho, o som cristalino soando muito alto entre as
conversas baixas na sala. — Minha consorte... — Ele se encolheu. Ele
tinha tentado tanto se distanciar de toda essa bagunça. — precisará
ser alguém que possa se provar capaz de aguentar tudo que Tranavia
jogará em seu caminho. Às vezes, serão descortesias secretas em um
salão de baile. Mas na maior parte, como o mundo está, será alguém
que pode me ajudar a vencer essa guerra.
Uma carranca passou por seu rosto e ele percebeu que ela não
parecia mais nervosa.
— Você não parece particularmente investido nisso, Vossa Alteza,
se você perdoar minha franqueza.
Ele não conseguia entender como ela viu isso. Ele estava fazendo
o possível para esconder o quão tentador isso tudo era, o quanto ele
queria se enrolar e dormir até tudo isso acabar.
Ele deu a ela um sorriso torto.
— Estou menos que satisfeito com as circunstâncias que o
cercam, mas certamente nenhuma é culpa das participantes.
— Deve ser difícil, entretanto, não ter escolha. — Ela disse, a voz
suave. Sua mão foi para o pescoço, então se afastou. — Você não
escolhe, não é? A escolha será do rei?
Inexperiente talvez, mas inteligente. Ela definitivamente é
inteligente.
— Estou acostumado a isso.
— Sim. — Ela disse. — Eu também. — Seu polegar correu pela
lombada do livro.
Ele queria perguntar o que ela quis dizer. Ele estava fascinado por
essa slavhka de um lugar distante, com suas palavras
estranhamente suaves, mas uma imponente garota Akolana se
aproximou ficando ao lado dela, sussurrando em seu ouvido.
Józefina levantou a cabeça, seu sorriso como a ponta de uma
faca.
— Aparentemente tenho um duelo para ir.
— Boa sorte, então. — Ele disse. — Estarei assistindo.
Ż
Ela saiu e Serefin voltou aos seus amigos. Żaneta se endireitou
quando ele se sentou ao lado dela.
— Então?
— Você tem competição, querida.
Żaneta enrugou o nariz.
— Sério? Ela parece tão... afável.
— Você sabe melhor do que ficar contra ela só porque ela é de
Łaszczów. — Serefin repreendeu.
Ela virou os olhos.
— Bem, se ela morrer em uma hora, então não vai importar, não é
mesmo?
Nadezhda Lapteva
Malachiasz encontrou Parijahan e Nadya no pátio do lado de fora da
arena. Ele parecia cansado. Ela se identificava.
— Isso certamente não fazia parte do plano. — Ele notou,
sarcástico.
— Não quero ouvir. — Nadya murmurou. Ela já ouviu o suficiente
de Parijahan. Deslizar sob o disfarce da perfeita mediocridade, de
fato.
Ela deixou o barulho da multidão na arena filtrar enquanto ela
ajeitava os cintos no quadril amarrando o livro de feitiços de
Malachiasz. Era tão estranho. Todo esse tempo e energia gastos em
uma coisa tão trivial quando uma guerra estava acontecendo e
pessoas passavam fome e morriam. Era só um jogo para eles.
Ela estava usando a máscara de couro branco de novo, e apesar de
sufocar, ela tirou conforto do anonimato. Ela não era nada além de
um nome; uma nobre baixa de uma cidade esquecida de Tranavia.
Ela ouviu seu nome falso sendo lido para a multidão: Józefina
Zelenska de Łaszczów, uma maga de sangue sem nenhuma patente
militar. Sem importância. Insignificante para todos os padrões. Meu
nome é Nadezhda Lapteva, ela pensou. Sou do mosteiro das
Montanhas Baikkle; eu sou uma clériga do divino. E estou aqui
para matar o rei e acabar com essa guerra.
Ela traria esse país aos joelhos.
Nadya deixou seus dedos roçarem na navalha costurada na
manga da sua blusa. Ela estava usando calças pretas apertadas,
botas altas que alcançavam seus joelhos, uma blusa branca folgada
com mangas apertadas em seus antebraços.
Os deuses estavam distantes e Nadya teria uma dificuldade a
mais ao ser forçada a fingir lançar magia como uma maga de
sangue. A semente de medo que ela estava ignorando até esse
ponto, finalmente cresceu para algo que ameaçava derrubá-la. Ela
mal podia sentir os deuses. Como ela esperava fazer isso – ser
qualquer coisa – com os deuses tão longes do alcance? O que ela era
sem eles? Só uma camponesa que cresceu em um mosteiro. Uma
garota que morreria por acreditar que ela era algo mais que isso.
Vinte: Nadezhda Lapteva
Minha magia não parece certa. Esse foi o primeiro pensamento que
passou pela mente de Nadya, enquanto a garota do outro lado da
arena cortava seu braço e disparou raios de poder pelo ar como
flechas de besta. Em comparação, a magia dela parecia fraca como
se ela estivesse tentando alcançar através de lama e conseguindo
levar apenas alguns fios. Suas orações eram respondidas apenas por
magia, sem palavras, sem o toque dos deuses. Apenas feitiços
brutos, poder frio, e nada mais.
Ela passou o dorso da mão na navalha em sua manga,
estremecendo com o corte, esquecendo que ela não deveria reagir.
Magos de sangue não reagiam.
A garota – Felicíja – jogou uma garrafa de vidro no chão da arena
e veneno se espalhou como um arco na sua frente.
Pegou nas roupas de Nadya e o tecido chiou enquanto queimava.
Ela lutou contra a vontade de espanar as gotas.
Ela deixou gelo se formar nas pontas dos dedos, agarrando o
poder de Marzenya, porque ela poderia transformá-lo para se
parecer mais com magia de sangue. A deusa estava distante, seu
toque longe. As orações de Nadya pareciam apenas apelos para o ar
vazio.
Então, poder. Garras de gelo em seus dedos dispararam de suas
mãos. Ela não teve tempo de ver para onde elas foram enquanto
arrancava páginas do livro de feitiço e as amassava em um punho
ensanguentado.
Ela jogou as páginas no chão e desenhou um círculo de chamas
na terra. As chamas se acenderam debaixo de suas botas e cercaram
Felicíja. A garota cambaleou para trás quando as chamas pegou suas
saias. Ela rosnou, seus dedos arrancando as páginas do livro de
feitiços.
Nadya foi atingida por um raio de magia que a mandou
cambaleando para a borda da arena.
Isso não está funcionando. Usar o livro de feitiços e puxar os fios
de poder ao mesmo tempo a deixava mais lenta. Ela tinha que
acabar com isso logo ou tudo iria desmoronar.
Ela passou suas garras ensanguentadas de gelo sobre uma página
do livro de feitiços, percebendo segundos depois que não estava em
branco. Pânico bateu em seu peito.
O fluxo de poder que ela estava canalizando mudou e virou algo
sombrio.
Esse poder não era dela para usar. Não era dela de maneira
alguma.
Ela não tinha outra palavra para isso além de errado. Era a única
palavra que passava em sua cabeça. Errado, errado, errado, errado,
errado.
Fervilhante, sombrio e poderoso – tão poderoso – de uma
maneira diferente do poder da sua magia, porque enquanto a magia
dela era clareza, essa era loucura.
Tinha alguma coisa a mais também. Um cutucão que fez Nadya
perceber que era um feitiço que Felicíja estava tentando jogar nela,
mas parecia tão fraco em comparação, que ela quase não percebeu.
Felicíja tentou novamente, e de novo, arrancando página depois de
página, mas seus feitiços eram apenas vislumbres, quase pinceladas
de magia contra Nadya e esse poder dentro dela, que ameaçava
rasgá-la em pedaços.
Sangue pingou de seu nariz. Ela tinha que se livrar dessa magia.
Sua boca estava com gosto de cobre. Ela cuspiu, pressionando uma
mão contra seu peito porque seu batimento cardíaco estava
irregular.
Ela exalou e soltou a magia. Disparou das pontas de seus dedos
como relâmpagos. Um acertou Felicíja, o trovão reverberando pela
arena. A garota caiu.
Por um segundo tenso, Nadya tinha certeza que a tinha matado.
Instantaneamente. Mas a garota se levantou, uma szitelka na mão e
fúria torcendo seu rosto. Sangue pingava de um ferimento na sua
lateral e seu rosto estava manchado.
Deuses, por favor, fique no chão. Nadya fez uma careta. Ecos de
sombras sacudiram em sua cabeça. Ela sacou suas lâminas.
Ela bloqueou o ataque de Felicíja, prendendo sua lâmina no
punho da szitelka da outra garota, e usando-a para puxá-la para
mais perto. Ela atacou com sua segunda lâmina, mas Felicíja
desviou.
Se recuperando, Nadya torceu o punho de sua lâmina e a puxou
para baixo. A szitelka voou da mão de Felicíja e ela cambaleou para
frente. Nadya acertou o queixo dela com o pé, jogando sua cabeça
para trás e a derrubando.
Enquanto a garota se movia para se levantar, Nadya bateu a
szitelka na mão, prendendo-a no chão.
Tudo estava muito quieto. Muito consciente da audiência, Nadya
hesitou, a outra szitelka frouxa na mão.
Eu não quero matá-la.
A única razão que essa luta ficou a favor de Nadya foi por causa
da magia que não era dela. Poderia ser facilmente Nadya no chão e
não Felicíja, contemplando o golpe mortal.
Felicíja se levantou em um braço, olhando para Nadya. Ela não
merecia morrer aqui, com uma audiência, como um animal. E
Nadya não seria a razão da morte dela. Ela não iria perpetuar essa
sede de sangue Tranaviana.
Porém, seria tão fácil e iria alavancar a missão de Nadya. Tudo
que precisaria era outra garra de gelo no coração da garota, ou um
relâmpago mais forte. Mas as trevas permaneceram e Nadya temeu
o que aconteceria se ela puxasse mais.
— Eu não vou te matar. — Nadya disse.
Ela estava esperando alívio, mas recebeu um cuspe na máscara.
— Patético. — A garota disse, dor arrastando suas palavras.
Nadya se endireitou. A guarda de Felicíja e uma figura em uma
máscara arrepiante que só podia ser um Abutre, começaram a se
mover em direção a elas. Deveria ter ficado claro que ela estava
recuando.
Uma mão roçou seu braço. O eco sombrio reagiu ao toque –
Malachiasz – e os joelhos de Nadya ficaram fracos. Ela foi
empurrada para frente; forçada a ficar de joelhos na frente da
garota.
A garota que tinha sangue escorrendo da boca, que olhou para
Nadya com olhos que já se escureciam. Uma ponta de ferro estava
atravessada em seu peito. Enquanto Nadya observava, a ponta se
transformou na forma de uma szitelka, então a garota caiu para a
frente, morta.
Seu estômago se retorceu enquanto sua visão se borrava. Não.
Misericórdia, ela ia ser misericordiosa com a garota.
Ela precisou de todas as suas forças para não se virar para
Malachiasz. A guarda da garota e o Abutre os alcançaram. Nenhum
deles disse nada. A agitação de atividade ocultaria o que tinha
acontecido. O que Malachiasz tinha feito no lugar de Nadya.
Ela finalmente olhou para ele. Ele levantou uma sobrancelha
para ela. Havia sangue na ponta de seus dedos.
Sangue escorreu pelo nariz de Nadya.
Um dia nessa cidade maldita e ela já estava cansada de ver
sangue.
Calor passou por suas veias. Qual era o ponto de matar a garota?
Ela abaixou os olhos antes de alguém perceber, mas não antes de
balançar a cabeça para ele.
Idiota.
— O que você esperava de uma abominação Tranaviana? — A
voz de Marzenya era fraca, como se viesse através de um nevoeiro.
Soava incrivelmente astuta, mas havia outro tom em sua voz que
Nadya nunca tinha ouvido antes: raiva. — Você que deveria ter
matado essa vadia. Você sozinha.
Um aviso. Tentar poupar a vida de outro Tranaviano e Nadya
usando o poder de Malachiasz – mesmo que sem intenção – tinha
provocado a ira de Marzenya. Antes que os criados viessem recolher
o corpo, Nadya saiu da arena.
Serefin Meleski
— O que foi isso? — Ostyia perguntou com o olho arregalado.
Serefin balançou a cabeça. Tinha sido implacável, exatamente o
que a corte Tranaviana esperava. Mas, mais interessante, uma
elegância em seus movimentos, inovação em sua magia...
Ostyia empoleirou-se no braço da cadeira dele.
— Ninguém usa magia elemental daquele jeito.
Como essa garota não foi convocada para o exército? Por que ela
não tinha se alistado? Ela era talentosa, rápida, implacável, com um
arsenal de feitiços que Serefin nunca tinha visto antes. Ele sabia que
feitiços elementares eram possíveis com magia de sangue, mas
ninguém usava porque era muito difícil. Era manipular magia de
um jeito que mudava o poder em seu elemento mais básico. Magia
do sangue extraía-se da capacidade inata de uma pessoa e se
manifestava do jeito que era necessário, mas mudar os elementos –
outra base, outro item fundamental de criação – era incrivelmente
difícil.
Onde essa garota estava se escondendo?
— Żaneta não vai ficar feliz. — Ostyia comentou.
— Ela vai gostar de ter uma concorrência real.
Houve uma agitação de atividade na arena e Serefin se inclinou
no parapeito. Dois Abutres mascarados estavam retirando o corpo
de Felicíja.
Horror o percorreu e ele trocou um olhar com Ostyia. O que eles
estavam fazendo?
Ele sentiu vagamente o toque de Ostyia em seu braço. Ele não
deveria estar encarando; não deveria ser uma visão que ele achava
desconfortável. Mas era outra peça do quebra-cabeças, outro passo
mais perto. Ele esperava que não fosse tarde demais.
Vinte e Um: Nadezhda Lapteva
Nayda correu.
O Abutre a seguiu, se movendo tão rápido que era apenas um
borrão na luz difusa.
Nadya não conseguiu nem sair da biblioteca. Uma pincelada de
magia de sangue; o gosto de cobre enchendo sua boca. Algo se
chocou contra ela, a mandando contra uma estante de livros,
derrubando-a com um estrondo ensurdecedor. Seu fôlego a deixou
rapidamente, e ela engasgou por ar no chão, muito ciente do Abutre
se movendo – devagar agora – para mais perto.
— Você é uma coisinha assustada, não é? — O Abutre disse,
passando uma garra de ferro sobre uma fileira de livros, as
lombadas se abrindo embaixo.
O desespero fez com que Nadya lutasse por um fio, de qualquer
coisa, que pudesse parar o monstro em seu caminho. A cada passo
que o Abutre dava em sua direção, Nadya andava para trás, até que
ela encostou na parede e não tinha mais para onde ir. Era aqui que
isso acabaria. No escuro. Sozinha. Na casa de seus inimigos.
O Abutre estava a centímetros de Nadya, se agachando na frente
dela. Sua máscara era completamente vazia, exceto por duas fendas
para os olhos.
— Chega de correr, querida.
Nadya rangeu os dentes. Sem deuses, sem esperança.
O Abutre se moveu para atacar e Nadya não tinha nada a perder,
nada que pudesse salvá-la. Mas ela se recusava a morrer aqui.
Tinha sido como um poço na primeira vez que ela usou, um poço
que Marzenya tinha descoberto. Agora era como um rio, e a
barragem arrebentou. Toda a frustração e medo de Nadya se
canalizou em poder. Magia que era somente dela. O Abutre caiu no
chão, batendo em uma mesa e quebrando-a como se fosse de papel.
Nadya encarou sua mão, o horror revirando seu estômago. O que
foi isso? Ela mexeu nas suas contas de oração. Talvez o véu se
abriu, talvez foi Marzenya.
Mas Marzenya estava longe. Isso tinha sido algo totalmente
diferente.
De repente, o príncipe derrapou na sala, sangue escorrendo em
uma mão.
O que ele estava fazendo aqui? Nadya pensou com um toque de
desespero. Isso não podia ficar pior.
— Józefina? — Ele disse.
O Abutre cambaleou atrás de Serefin. Nadya se levantou,
estendendo a mão. Fragmentos de gelo dispararam de sua palma, e
jogaram o Abutre de volta em uma pilha de livros.
Serefin se virou. Com sua atenção desviada, Nadya cortou as
costas de sua mão. O príncipe deu um passo em direção ao Abutre.
— Saia. — Ele disse. Uma ordem simples que tinha comando
suficiente, e Nadya podia facilmente ver esse garoto como rei de
Tranavia.
— Isso não é assunto seu, Príncipe. — O Abutre sibilou.
Serefin arrancou uma página de seu livro de feitiços, e quando ele
a amassou em seu punho, o Abutre caiu, imóvel como pedra.
— Você o matou? — Nadya sussurrou.
Serefin balançou a cabeça.
— É preciso mais do que isso para matar um deles. Não sei se
conseguiria se eu tentasse. Eles não vão ficar caídos por muito
tempo. Minutos, no máximo.
Ele ofereceu mão e a ajudou a se levantar antes de retornar ao
Abutre inconsciente. Ele se agachou, pegando uma mecha do cabelo
dele entre os dedos. Nadya pensou que ele ia retirar a máscara, mas
ele se endireitou.
— Volte ao seu quarto. — Ele disse. — Tranque a porta, apesar que
eu ache que não vão tentar novamente.
— O quê?
— Vá. — Ele apressou. Seu tenente, Kacper, entrou na sala.
— Por sangue e osso, Serefin. — Ele disse, cansado, quando viu o
Abutre inconsciente.
— Não vou sair até você me dizer o que está acontecendo. —
Nadya demandou. Se havia uma chance de que isso não era por
causa de Malachiasz, Nadya precisava saber.
Serefin olhou dela para Kacper. Kacper deu de ombros. Serefin
passou uma mão pelo cabelo. Quando ele olhou para ela novamente,
seus olhos pálidos estavam estreitos.
— Minha lady, as participantes desse grande jogo estão em
perigo. Por favor, apenas retorne aos seus aposentos.
Ela abriu a boca para protestar, mas ele ergueu a mão. Sua
expressão era suplicante e ela suspirou. A adrenalina estava virando
exaustão e voltar para a cama soava como uma ideia fantástica. Ela
só... queria esquecer tudo isso. Ela correu de volta para a mesa para
pegar o livro que tinha encontrado e desejou ao príncipe uma boa
noite.
— Obrigada por salvar minha vida. — Ela disse.
— Você parecia ter tudo sob controle.
Nadya cuidadosamente abriu o livro enquanto andava de volta
aos seus aposentos. Ela não queria folhear as páginas com medo
que ele se desfizesse em suas mãos. Mas o livro abriu em uma
página que tinha uma linha focada no centro.
Alguns deuses exigem sangue.
Ela parou de repente. Todo o medo que crescia dentro dela se
solidificou em algo que ela não entendia. Um sentimento muito
certo de que ela havia encontrado algo que era verdade. Uma
verdade que ela não ousava confrontar.
Ela fechou o livro e correu para seus aposentos.
E direto para outro Abutre. Esse bateu com o punho no rosto de
Nadya e nenhuma quantidade de poder poderia impedi-la de
desmaiar.
Nadya acordou em uma poça de sangue. Havia pontos afiados
cavando a parte de trás do seu corpo, fogo queimando suas veias.
Ela podia sentir lágrimas se derramando de seus olhos, escorrendo
pelo seu rosto.
Ela estendeu a mão para sua deusa.
E uma porta se fechou diante dela.
Pânico explodiu em seu peito. Todas as suas juntas travaram e
seus membros tremeram. Não, isso não estava acontecendo. Não,
não, não, não, não, não, não.
Isso não é real.
Isso era algo que os Abutres fizeram com ela? Ela estava sendo
punida pelo poder que usou tentando escapar? Esse era um tipo
diferente de silêncio do que antes. Isso era pior que o véu. Isso era o
vazio.
Se acalme, ela disse a si mesma. Descubra onde você está. Uma
dor aguda passou por ela enquanto o silêncio permanecia, os deuses
agora estavam mais do que fora de alcance, eles se viraram
completamente.
Talvez ela nunca mais ouvisse uma piada depois de fazer uma
oração errada. Ela se arrepiou. Não podia ser isso. Os deuses não
teriam a abandonado. Não por causa de algumas dúvidas, não por
ter beijado um herege – nem mesmo isso.
Roçando os dedos contra a placa que estava deitada, ela
estremeceu quando as partes delicadas de sua mão encontraram
unhas e cacos de vidro. Ela tentou se sentar, as bordas irregulares
cavando ainda mais na parte de trás de suas coxas. Seu vestido fino
estava em farrapos, o tecido grudando dolorosamente em suas
feridas.
Um gemido baixo e dolorido escapou de seus lábios enquanto ela
tentava sair da placa. Sua cabeça girou; ela tinha perdido muito
sangue.
Ela se moveu cautelosamente para fora da placa, estremecendo
quando suas pernas eram cortadas a cada movimento. Seus pés
pousaram em pedra fria, mas seus joelhos se dobraram no instante
em que ela tentou colocar peso neles. Ela reprimiu um choro,
batendo os dentes em um punho, a pele da sua mão se abrindo. O
calor do ferro encheu sua boca e ela tossiu, cuspindo sangue.
Ela se levantou do chão e tateou no escuro por uma saída, uma
porta, qualquer coisa. Mesmo se estivesse trancada, ela se sentiria
menos como se tivesse deixado de existir. Ela se tornou nada mais
que o sangue escorrendo pelo chão e uma dor cega.
Ela não pôde reprimir um suspiro de alívio quando sua mão
encontrou uma maçaneta. Ela o sacudiu, embora fosse inútil. Estava
bem apertado. Outra onda de pânico ameaçou arruiná-la. Ela estava
começando a ver coisas saindo da escuridão. Coisas com unhas no
lugar dos dentes e sorrisos de navalha.
Ela deu as costas para a escuridão e pressionou sua testa contra a
porta. A madeira estava fria e a permitiu se reorientar antes de
estender a mão para os deuses novamente.
A porta para os céus continuava fechada.
Angústia e uma raiva muito fluida para ser completamente
definida, vieram em ondas através dela, e ela queria gritar. Ela
alcançou as contas de oração que ela não tinha e encontrou somente
o colar de Kostya. Ela o puxou pela cabeça e o jogou do outro lado da
sala. Ela ouviu acertar a parede com um ruído metálico fraco.
— Isso não é justo! — Ela choramingou, para ninguém e para
nada, porque estava sozinha. Totalmente sozinha no reino de seus
inimigos. Seu melhor não importava.
— Só fiz o que pediram de mim. — Ela disse, sua voz fraca e
quebrada. Ela se recostou na porta e lentamente deslizou para o
chão, ignorando a agonia violenta que seguiu, o sangue que ela
ainda podia sentir escorrendo pela parte de trás das suas pernas.
O véu era desconfortável, sufocante, mas ela sempre podia ouvir
a voz de Marzenya se ela estendesse a mão. Isso era diferente. Isso
era de propósito, e não tinha nada a ver com as maquinações de
Tranavia.
Uma linha em um livro de história mencionaria, sem entusiasmo,
uma clériga que tentou salvar Kalyazin, mas só conseguiu o
abandono dos deuses. Não haveria canonização depois da morte
para Nadya, somente uma passagem silenciosa da clériga que
falhou.
Ela cerrou um punho, ignorando a dor, apenas para fazer mais
sangue escorrer por seu pulso de sua palma cortada.
Por favor, não deixe isso acabar aqui. Se ela chorasse com tudo
que restasse dentro dela ela conseguiria uma resposta? Ou ela seria
deixada com nada além das cinzas da única coisa que fez sua vida
valer a pena? Zhalyusta, Marzenya, eya kalyecti, eya otrecyalli,
holen milena.
Seu apelo ficou sem resposta. Nadya estava mergulhando em
desespero quando algo piscou no canto de sua visão. Nada mais do
que sua mente confusa pregando peças nela.
Mas a luz ficou mais forte. Nadya franziu o cenho e, lentamente,
rastejou para o outro lado da sala, os dedos se estendendo
cegamente até que se fecharam no colar de Kostya. A espiral no
centro estava emitindo uma luz fraca.
Alguns deuses exigem sangue.
Ela engoliu em seco. Pegando o pingente em seu punho, ela
deixou o sangue encharcar as cristas.
Ela o segurou perto de seu rosto, olhando para a luz suave quase
estranha.
— Você merece saber a verdade sobre os deuses que te
escolheram. — Nadya se assustou quando uma voz desconhecida
ecoou em sua cabeça. Estava falando a linguagem sagrada, e
geralmente ela não entendia a língua sem a benção dos deuses.
Nadya respirou fundo, atingida por uma súbita enxurrada de
imagens. A onda de dor que a atingiu quase a derrubou.
Criaturas com juntas nodosas como as espirais de uma árvore,
rostos envoltos em névoa, quatro olhos, seis, dez. Seres com olhos
nas pontas dos dedos, bocas nas juntas. Dentes de ferro, garras de
ferro, olhos de ferro.
Um após o outro, após o outro. Asas sinuosas, asas com penas
pretas como alcatrão. Olhos de luz, de escuridão. E sangue. Tanto
sangue.
Porque é isso. Sempre foi, sempre foi sangue.
Se sentindo enjoada, Nadya largou o colar. As imagens pararam.
Ela estava ofegante, lutando por ar.
Ela, tentativamente, estendeu a mão para a voz de novo, apenas
para encontrar silêncio. Ela não estava acostumada com silêncio em
sua mente. Quando ela pegou o colar novamente, ela foi cuidadosa
para não tocar as cristas em espiral, mas aparentemente, qualquer
contato era suficiente. Quando a prata fria tocou sua pele todos os
seus sentidos foram inundados por uma luz branca. Pureza com
riachos de sangue manchando tudo. Caiu em pequenas gotas, da
ponta de seus dedos, de seus braços. Não havia nada além de branco
ofuscante e sangue.
— O que é isso? O que você é?
— Importa?
Ela ficou surpresa quando a voz – excepcionalmente alta, como
tubos de junco – respondeu.
— Você é.… um dos deuses? — Havia deuses com quem ela nunca
tinha falado, esse era um deles?
Houve um longo silêncio, deixando Nadya suspensa no espaço
branco encharcado por sangue. Ela estava vagamente consciente
que sua dor era apenas um zumbido fraco agora. Cercava ela como
uma névoa, quase imperceptível.
Então:
— Há muito tempo, sim.
E há muito tempo essa resposta teria aterrorizado Nadya. Há
algumas semanas, a garota no mosteiro que acreditava totalmente
em seus deuses, em sua causa, teria olhado para isso com horror,
descrença. Ela teria descartado isso como magia herética,
alucinatória. Mas agora...
Agora ela tinha se permitido duvidar. Agora ela estava cansada.
Agora ela estava desamparada e abandonada. Ela se sentou,
cruzando suas pernas debaixo dela, consciente do chão molhado
com sangue embaixo dela. Não havia mais nada a fazer a não ser
esperar por respostas.
— Como alguém se torna algo que não é mais um deus?
— Como uma garota humana se torna algo divino e temido pelos
mesmos deuses que deram a ela o poder que ela exerce?
Nadya franziu o cenho, intrigada
— Acho que você está enganado.
— Erros não são coisas que eu geralmente cometo. — A voz
replicou.
— Onde estou? O que você quer? — O ser nunca respondeu sua
primeira questão, mas ela se conteve, perguntando novamente na
esperança de receber algumas respostas.
— Onde você está é tão irrelevante quanto é imaterial. O que eu
quero é melhor respondido pela pergunta sobre o que você quer.
— Posso ver você?
— Você não quer isso.
Nadya girou o pingente entre seus dedos. Veio junto com ela. Ela
esteve carregando esse ser em seu pescoço esse tempo todo? Onde
Kostya – dentre todas as pessoas – encontrou isso? Porque ele deu
a ela?
O que... ela queria?
— Você já tem. — A voz disse detrás ela. Quando ela se virou não
havia nada além do branco e do sangue. — Mas você não percebe.
Passou muito tempo sob o domínio do panteão e isso contaminou
sua compreensão.
— Contaminou? — Nadya perguntou, se sentindo enjoada. O que
quer isso fosse, o que quer que esse ser queria, só ia resultar em
mais perigo. Mas que opção ela tinha?
— Você acha que eles podem tirar seu poder de você?
Nadya ficou gelada.
— Eles podem. Eles me deram esse poder; eles podem tirá-lo de
acordo com a vontade deles.
— Isso é incorreto. — A voz soava divertida.
Nadya estremeceu. Sua visão turvou, mudando de volta para as
trevas antes de ser inundada com branco novamente.
— Nosso tempo juntos está se esgotando. Você deve fazer uma
escolha, passarinho. Você continua com as asas cortadas ou você
voa?
A escuridão voltou ao redor de Nadya – abrupta e severa –
quando o colar escorregou de suas mãos e a dor voltou sobre ela.
Vinte e Seis: Nadezhda Lapteva
[←1]
Uma sala reservada especialmente para escrever, eram comuns
em mosteiros no qual manuscritos eram copiados.
[←2]
Peça metálica ornada com franjas de fios de seda ou ouro, era
usada como distintivo no ombro do uniforme militar.