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Índice

Um: Nadezhda Lapteva


Dois: Nadezhda Lapteva
Três: Serefin Meleski
Quatro: Nadezhda Lapteva
Cinco: Serefin Meleski
Seis: Nadezhda Lapteva
Sete: Serefin Meleski
Oito: Nadezhda Lapteva
Nove: Serefin Meleski
Dez: Nadezhda Lapteva
Onze: Serefin Meleski
Doze: Nadezhda Lapteva
Treze: Serefin Meleski
Catorze: Nadezhda Lapteva
Quinze: Serefin Meleski
Dezesseis: Nadezhda Lapteva
Dezessete: Serefin Meleski
Dezoito: Nadezhda Lapteva
Dezenove: Nadezhda Lapteva
Vinte: Nadezhda Lapteva
Vinte e Um: Nadezhda Lapteva
Vinte e Dois: Serefin Meleski
Vinte e Três: Nadezhda Lapteva
Vinte e Quatro: Serefin Meleski
Vinte e Cinco: Nadezhda Lapteva
Vinte e Seis: Nadezhda Lapteva
Vinte e Sete: Serefin Meleski
Vinte e Oito: Nadezhda Lapteva
Vinte e Nove: Serefin Meleski
Trinta: Nadezhda Lapteva
Trinta e Um: Serefin Meleski
Trinta e Dois: Nadezhda Lapteva
Trinta e Três: Serefin Meleski
Trinta e Quatro: Nadezhda Lapteva
Trinta e Cinco: Nadezhda Lapteva
Trinta e Seis: Serefin Meleski
Epílogo
Um: Nadezhda Lapteva

Morte, magia e inverno. Um ciclo amargo no qual Marzenya gira


com fios vermelhos em torno de seus dedos pálidos. Ela é
constante; ela é implacável; ela é eterna. Ela pode conceder
qualquer feitiço àqueles que ela abençoou, seu alcance é o próprio
tecido da magia.
-O CÓDEX DO DIVINO, 2:18

O eco calmante de um cântico sagrado é filtrado do santuário até as


adegas. Era fim de tarde, um pouco antes de Vespers, o tempo no
qual os salmos para os deuses eram entregues em um coro sem
esforço.
Nadezhda Lapteva olhou para a montanha de batatas ameaçando
cair de cima da mesa. Ela girou sua faca com força na batata que
estava na sua mão, cortando a casca em uma espiral, e quase
acertando sua mão.
— O dever de um clérigo é importante, Nadezhda — ela
murmurou, imitando o tom severo do abade do mosteiro. — Você
poderia mudar a maré da guerra, Nadezhda. Agora vá apodrecer nas
adegas pelo resto da sua vida, Nadezhda.
A mesa estava coberta por espirais de cascas de batatas. Ela não
tinha previsto que ia perder o dia inteiro no trabalho como punição,
mas aqui estava ela.
— Você ouviu isso? — Konstantin agiu como se ela não tivesse
falado. Sua faca estava pendurada em seus dedos moles enquanto
ele ouvia com atenção.
Não havia nada além do serviço no andar de cima. Se ele estava
tentando distraí-la, não ia funcionar.
— É a nossa iminente morte por uma avalanche de batatas? Eu
não consigo ouvir, mas tenho certeza de que está chegando.
Ela recebeu um olhar seco em resposta. Ela balançou a faca para
ele.
— O que poderia ser? Os Tranavianos na nossa porta? Eles têm
sete mil escadas para subir primeiro. Talvez seja o Príncipe Herdeiro
deles e ele finalmente decidiu se converter.
Ela tentou ser maldosa, mas a ideia do Príncipe Herdeiro em
qualquer lugar perto do mosteiro a fazia se arrepiar. Havia rumores
de que ele era um mago de sangue extremamente poderoso, um dos
mais aterrorizantes de toda Tranavia, uma terra repleta de hereges.
— Nadya — Konstantin sussurrou. — Estou falando sério.
Nadya apunhalou sua faca em outra batata enquanto olhava para
ele. Para começar, era culpa dele que estavam aqui embaixo. Suas
pegadinhas, formadas por uma mistura de tédio com delírio depois
das orações no início da manhã, eram inocentes no começo. Trocar
o incenso do monastério por capim-limão ou cortar pedaços das
velas do santuário. Infrações menores, no máximo. Nada para
merecer morte por batatas.
Porém, encher a vasilha de se lavar do padre Alexei com tinta
vermelha que parecia sangue, foi o estopim para eles.
Sangue não era coisa para fazer piada, não nesses tempos.
A raiva do padre Alexei não parou nas adegas. Depois deles terem
escalado a montanha de batatas – se eles escalasse a montanha de
batatas – ainda tinham que ficar horas copiando textos sagrados no
scriptorium1. As mãos de Nadya já estavam doendo só de pensar
nisso.
— Nadya. — Konstantin a cutucou com o cotovelo e a faca dela
saiu de curso.
— Que droga, Kostya.
Meu recorde perfeito de 54 espirais intactas, arruinado, ela
pensou tristemente. Ela limpou suas mãos na túnica e olhou para
ele.
Seus olhos escuros estavam focados na porta fechada que levava
para cima. Não havia nada além do...
Ah.
A batata escorregou de seus dedos, caindo no chão empoeirado.
Ela não tinha notado quando o serviço no andar acima havia parado.
Os dedos de Kostya se cavaram na manga dela, mas seu toque
parecia distante.
Isso não pode estar acontecendo.
— Canhões — ela sussurrou, de algum jeito, se tornando mais
real ao falar a palavra em voz alta. Ela mudou o aperto na faca, a
girando ao contrário como se fosse uma das voryens de lâmina fina
e não uma lâmina quase cega de cozinha.
Os sons de canhões eram sons que toda criança de Kalyazin
conhecia intimamente. Era um som que elas cresceram ouvindo,
suas canções de ninar eram misturadas com disparos à distância.
Guerra era a companhia constante delas, e as crianças de Kalyazin
sabiam que deveriam fugir quando ouvissem esses canhões e
sentissem o gosto de ferro da magia no ar.
Canhões significava uma coisa: magia de sangue. E magia de
sangue significava Tranavianos. Por um século, uma guerra sagrada
era travada entre Kalyazin e Tranavia. Tranavianos não ligavam se
sua magia de sangue profanava os deuses. Se dependesse deles, o
toque dos deuses seria erradicado de Kalyazin como foi em
Tranavia. Mas a guerra nunca foi além das fronteiras de Kalyazin.
Até agora. Se Nadya podia ouvir canhões, isso significava que a
guerra estava lentamente engolindo Kalyazin viva. Pedaço sangrento
por pedaço sangrento estava se infiltrando no coração do país de
Nadya e trazendo morte e destruição.
E só tinha uma razão para os Tranavianos estarem atacando um
monastério isolado nas montanhas.
A adegas estremeceram e poeira caiu do teto. Nadya olhou para
Kostya, cujo olhar estava duro, mas temente. Eles eram apenas
acólitos com facas de cozinha. O que eles poderiam fazer se os
soldados viessem?
Nadya segurou o colar de preces em volta do seu pescoço; as
contas de madeira lisa estavam frias contra as pontas de seus dedos.
Alarmes soariam caso os Tranavianos alcançassem as sete mil
escadas que levavam ao monastério, mas ela nunca os ouviu. Ela
esperava que nunca ouvisse.
Kostya agarrou a mão dela e balançou a cabeça devagar, seus
olhos escuros solenes.
— Não faça isso, Nadya — ele disse.
— Se nós estamos sendo atacados, eu não vou me esconder — ela
respondeu com teimosia.
— Mesmo que isso signifique escolher entre salvar esse lugar ou
salvar o reino inteiro?
Ele agarrou o braço dela novamente, e ela o deixou levá-la de
volta para as adegas. O medo dele era justificável. Ela nunca esteve
em uma batalha de verdade antes, mas mesmo assim olhou para ele
desafiadoramente. Tudo que ela conhecia era esse mosteiro, e se ele
pensava que ela não ia lutar para defendê-lo, então ele estava louco.
Ela iria proteger a única família que já teve; foi para isso que ela foi
treinada. Ele passou uma mão por seu cabelo escuro curto. Ele não
ia impedi-la; ambos sabiam disso.
Nadya se livrou do aperto de Kostya.
— Que uso eu tenho se eu fugir? Qual seria o sentido?
Ele abriu a boca para protestar, mas a adega estremeceu tão forte
que Nadya se perguntou se eles não estavam prestes a serem
enterrados vivos. Pó do teto caiu no cabelo loiro platinado dela. Em
um instante, ela tinha atravessado a adega e estava perto da porta
que levava às cozinhas. Se os alarmes não tinham sido acionados
ainda, isso significava que os inimigos ainda estavam nas
montanhas. Tinha tempo para...
A mão dela tocou a maçaneta assim que os alarmes começaram a
soar. O som parecia familiar, como se não fosse nada além da
chamada para rezar no santuário. Então ela foi abalada pelo tom
estridente e urgente que assumiu, uma cacofonia de sinos agudos.
Sem tempo restante. Ela abriu a porta com tudo, correndo os
últimos degraus para a cozinha, Kostya logo atrás dela. Eles
atravessaram os jardins – vazios por causa dos meses amargos de
inverno – até o complexo principal.
Contaram a Nadya o protocolo inúmeras vezes. Ir para os fundos
da capela. Rezar, porque isso era o que ela fazia de melhor. Os
outros iriam para os portões lutar. Ela deveria ser protegida. Mas
eram apenas formalidades, os Travanianos nunca chegariam tão
longe no país, todos esses planos eram apenas caso o impossível
acontecesse.
Bem, aqui está o impossível.
Ela empurrou as pesadas portas que levavam para a parte de trás
do santuário, conseguindo abri-las apenas o suficiente para ela e
Kostya passarem deslizando. O tocar dos sinos ressoava contra as
suas têmporas, dolorosa a cada batida de coração. Eles eram feitos
para acordar todo mundo três da manhã para os serviços. Eles
faziam o trabalho.
Alguém se chocou contra ela quando passou pelo corredor
adjacente. Nadya rodopiou, equilibrando a faca da cozinha.
— Pelos santos, Nadya! — Anna Vadimovna pressionou uma mão
contra seu coração. Havia uma venyiashk – uma espada curta – no
quadril, e outra lâmina longa e fina na mão.
— Posso pegar essa? — Nadya estendeu a mão para o punhal de
Anna. Anna entregou para ela sem dizer nada. Parecia sólida, e não
inconsistente como a faca de cozinha.
— Você não deveria estar aqui — disse Anna.
Kostya lançou a Nadya um olhar aguçado. Na hierarquia do
mosteiro, Anna – como uma sacerdotisa consagrada – possuía um
nível superior a Nadya. Se Anna ordenasse que ela fosse para o
santuário, ela não tinha escolha a não ser obedecer.
Então não vou dar essa chance para Anna.
Nadya continuou pelo corredor.
— Eles alcançaram as escadas?
— Eles estão perto — Anna gritou logo atrás.
Perto significava a possibilidade muito real de chegarem ao pátio
e já encontrarem os Tranavianos lá. Nadya apertou seu colar, os
dedos pegando as contas batidas enquanto procurava pela certa.
Cada conta de madeira continha um símbolo esculpido
representando um deus ou uma deusa no panteão, vinte no total.
Ela conhecia todos pelo toque, sabia exatamente qual conta
pressionar para sintonizar com um deus específico.
Nadya uma vez desejou que pudesse se misturar com os outros
órfãos de Kalyazi no mosteiro, mas a verdade era que, pelo tempo
que conseguia se lembrar, sempre que ela rezava os deuses ouviam.
Milagres aconteciam, magia. Isso a tornou valiosa. A tornou
perigosa.
Ela puxou seu colar até que a conta que queria estava embaixo. O
símbolo da espada esculpido nela parecia um estilhaço contra seu
polegar. Ela apertou e mandou uma oração para Veceslav: o deus da
guerra e da proteção.
— Você já se perguntou como seria se você estivesse lutando
contra pessoas que também pedisse por minha proteção? — A voz
dele era uma brisa suave de verão deslizando pela parte de trás da
cabeça dela.
Nós realmente somos sortudos por nossos inimigos serem
hereges, ela respondeu. Hereges que estavam ganhando a guerra.
Veceslav era sempre tagarela, mas agora Nadya precisava de
ajuda, e não de conversa.
Eu preciso de uns feitiços de proteção, por favor, ela rezou.
Seu dedo pegou a conta de Marzenya, pressionando contra o
símbolo de uma caveira com a boca aberta. E se Marzenya estiver
por aí, eu preciso dela também.
Magia inundou suas veias, uma onda de poder que veio com
acordes tocantes de discurso sagrado – uma linguagem que ela só
ouvia quando os deuses concediam. O coração de Nadya acelerou,
não de medo, mas de uma sensação intoxicante de poder.
O grande pátio estava abençoadamente silencioso quando ela
finalmente saiu pelas portas frontais da capela. À esquerda havia
um caminho que levava aos aposentos dos homens; à direita, outro
levava em direção a floresta onde ficava o cemitério antigo mantido
pelo mosteiro, que continha os corpos dos santos mortos há séculos.
Neve da noite anterior estava amontoada no chão e o ar estava
gelado. Nevava na maioria das noites – e dias – no topo das
Montanhas Baikkle. Esperançosamente ia atrasar os Tranavianos.
Nadya procurou pelo padre Alexei, o encontrando no topo das
escadas. Os padres e sacerdotisas que treinavam para batalhas
esperavam no pátio e o coração dela se retorceu ao ver quão poucos
eram. Sua confiança vacilou. Quase duas dúzias contra uma
companhia de Tranavianos. Não era para isso acontecer. O mosteiro
estava no meio das montanhas sagradas, era difícil – quase
impossível – de alcançar, especialmente pelos que não estavam
acostumados com o terreno ameaçador de Kalyazin.
Marzenya roçou contra seus pensamentos.
— O que você necessita, minha criança? — Perguntou a deusa da
magia e do sacrifício – da morte. Marzenya era a matrona de Nadya
no panteão, aquela que clamou Nadya quando ela era uma criança.
Eu quero que os hereges sintam o gosto acolhedor da magia de
Kalyazin, ela respondeu. Deixe eles temerem o que os fiéis podem
fazer.
Ela sentiu a diversão de Marzenya, depois uma onda diferente de
poder. Magia concedida por Marzenya não se parecia em nada com
magia concedida por Veceslav. Onde ele era calor, ela era gelo e
inverno e fúria cósmica.
Ter a magia deles ao mesmo tempo coçava a pele de Nadya,
impaciente e impulsiva. Ela deixou Kostya e Anna, indo para o lado
do padre Alexei.
— Mantenha nosso povo longe das escadas — ela disse
suavemente.
O abade olhou para ela, sobrancelhas franzidas. Não porque uma
garota de dezessete anos estava lhe dando ordens – apesar que, se
eles sobrevivessem, ele iria repreendê-la completamente por isso –
mas porque não era para ela estar aqui. Era para ela estar em
qualquer outro lugar.
Nadya levantou suas sobrancelhas em expectativa, querendo que
ele aceitasse o lugar dela aqui. Ela tinha que ficar. Ela tinha que
lutar. Ela não podia mais se esconder nas adegas, não enquanto os
hereges destruíam o país dela, a casa dela.
— Vão para trás — ele falou depois de uma pausa. — Eu quero
todos vocês nas portas! — O pátio era um anexo apertado, não servia
para batalhas. — O que você está planejando, Nadezhda?
— Apenas um julgamento divino — ela respondeu, saltando nas
pontas dos pés. Ela ia fugir do próprio corpo se parasse de se mexer
e se permitisse pensar no que estava prestes a acontecer.
Ela ouviu o suspiro cansado do padre enquanto ela se movia para
onde as escadas encontravam o pátio. Era o único caminho que o
inimigo podia usar para chegar ao mosteiro e, mesmo assim, às
vezes os degraus estavam tão cobertos de gelo que era impossível
subir. Não tiveram essa sorte hoje.
Como os Tranavianos sabiam que ela estava aqui? As únicas
pessoas que sabiam que Nadya existia estavam no mosteiro.
Bem... o czar sabia. Mas ele estava muito longe, na capital. Era
improvável que notícias sobre ela tenham chegado em Tranavia.
Ela sussurrou uma prece do discurso sagrado, símbolos
formando luz em seus lábios e explodindo em uma nuvem de
neblina. Ela se ajoelhou, arrastando seus dedos pelo topo das
escadas. A pedra lisa congelou, transformando as escadas em um
bloco único de gelo.
Girando sua voryen na mão, ela deu um passo para trás. O feitiço
era uma manobra para ganhar tempo; se os Tranavianos tivessem
um mago de sangue que pudesse neutralizar a sua magia, não ia
durar.
Não tem volta agora.
Nadya podia lutar contra um mago de sangue comum. Mas a
possibilidade de um tenente Tranaviano ou um general – um mago
promovido por causa de poder mágico puro – fazia ela ter vontade
de correr de volta ao santuário onde ela pertencia.
Marzenya bufou de sua dúvida.
Meu lugar é aqui, Nadya disse a si mesma.
Kostya apareceu ao lado dela. Ele tinha trocado sua faca de
cozinha por uma noven’ya – um bastão com uma longa lâmina em
uma ponta. Ele se encostou na arma, observando a inclinação onde
as escadas desapareciam de vista.
— Vá — ele disse. — Não é tarde demais.
Nadya sorriu para ele.
— É tarde demais.
Como se concordando com ela, os alarmes pararam com um
tinido final desconcertante. O ar em volta do mosteiro estava
silencioso a não ser pelo som constante dos canhões, agora batendo
claramente nas bases da montanha.
Se Rudnya caísse, o mosteiro seria o próximo. A cidade na base
das montanhas era muito bem fortificada, mas eles estavam no
coração de Kalyazin. Ninguém esperava que a guerra chegasse tão
longe no Oeste. Era para ficar na borda Leste onde Kalyazin e
Tranavia se encontravam, logo ao Norte da fronteira com Akola.
Uma fissura se arrastou pelo sólido bloco de gelo nas escadas
como a teia de uma aranha. Se espalhou formando um caminho de
rachaduras antes da coisa toda se estilhaçar. Kostya puxou Nadya
para o pátio.
— Nós temos a vantagem — ela murmurou.
Ela estava segurando apenas uma voryen. Somente uma adaga.
Nós temos a vantagem.
Houve um tremor no silêncio e um toque afiado espetou a parte
de trás do seu crânio.
— Magia de sangue — Marzenya sibilou.
O coração de Nadya se alojou em sua garganta, dúvida deslizando
como gavinhas geladas por sua espinha. Ela sentiu a magia dela se
arrepiando, e sem pensar, empurrou Kostya para o lado assim que
alguma coisa explodiu perto de onde ele estava parado. Um pedaço
duro de gelo bateu nas costas dela, dor se irradiando até seus dedos
do pé. Ela foi jogada contra Kostya e os dois caíram no chão.
Ele estava de pé novamente antes que Nadya pudesse registrar o
que aconteceu. O pátio se tornou denso com magia e aço enquanto
soldados lotavam as escadas. Ela se levantou com dificuldades,
ficando ao lado de Kostya, a lâmina dele se movendo em um ritmo
vertiginoso enquanto ele a defendia dos soldados Tranavianos.
Era esperado que crianças de uma terra devastada pela guerra
soubessem como reagir quando o inimigo finalmente chegasse.
Kostya e Nadya tinham uma estratégia aperfeiçoada. Ela era rápida,
ele era forte, e eles fariam tudo para proteger um ao outro. A menos
que ela fosse o motivo da derrota deles com seus nervos
desgastados. Seus membros tremiam enquanto mais magia do que
ela estava acostumada atravessou seu corpo.
Eu não tenho ideia do que estou fazendo.
Orações cheias de pânico para os deuses seriam respondidas
apenas com mais magia; Nadya tinha que decidir sozinha como usá-
la.
Ela passou a mão por sua voryen. Magia pura e branca seguiu seu
toque e apesar dela não ter total certeza sobre o que faria, ela
descobriu bem rápido quando cortou um soldado Tranaviano. Ela
acertou apenas seu braço, mas como um veneno, a luz escureceu a
carne dele no ponto de contato. Se espalhou do seu braço e pelo seu
rosto, enchendo seus olhos de escuridão antes dele tombar, morto.
Ela cambaleou para trás até bater em Kostya. A vontade de soltar
sua voryen pinicava sua mão.
Eu matei ele. Eu nunca matei ninguém.
A mão de Kostya caiu para encostar na dela.
— Continue — Marzenya insistiu.
Mas havia muita magia rodopiando no ar e era tão poderosa, e
Nadya era apenas uma clériga. Medo se apossou dela por um longo
momento até que Marzenya espetou a parte de trás do seu crânio
com uma dor pontiaguda.
Continue.
Gelo tomou conta das pontas de seus dedos e ela desviou de uma
espada Tranaviana, batendo sua mão congelada contra o peito dele.
Como o último, a pele escurecida subiu por seu pescoço e pelo seu
rosto antes dele cair, a luz cintilando em seus olhos.
O peito de Nadya se apertou. Ela sentia que ia vomitar e o
cutucão amargo de Marzenya, de desgosto com sua fraqueza a
sacudiu. Não havia espaço para um sentimento incorreto. Isso era
guerra. Morte era inevitável. Necessária.
— Nadezhda! — O aviso de Marzenya veio tarde demais. Chamas
a consumiram, lambendo debaixo de sua pele, seu sangue fervendo.
Dor escureceu sua visão. Ela tropeçou, e Kostya a segurou, os
conduzindo para longe da luta logo antes dela cair de joelhos nas
sombras das portas da capela. Ela rangeu os dentes, mordendo sem
querer o interior dos lábios; sangue encheu sua boca, metálico e
forte. Ela lutou para respirar. Era como se ela estivesse sendo
queimada viva de dentro para fora.
Quando ela pensou que não ia mais aguentar, a presença de
Veceslav a varreu, cobrindo Nadya como um cobertor pesado. Ele
acalmou a magia, a empurrando para fora até que ela conseguisse
respirar. Ela não tinha o chamado; ele simplesmente soube.
Ela não teve tempo de ficar abalada pela onipresença dos deuses.
Ela se levantou com dificuldades, seus membros tremendo. O
mundo girou perigosamente, mas não importava. O que quer que
acabou de acontecer, foi causado por um mago poderoso. Ela
examinou o pátio e quando ela o achou, seu sangue, que antes
fervia, congelou.
Ah, ela cometeu um erro terrível.
Eu deveria ter me escondido.
A trinta passos de distância, na entrada do pátio, um Tranaviano
estava parado segurando um pedaço de papel amassado encharcado
de sangue em seu punho. Uma cicatriz perversa cortava seu olho
esquerdo. Começava em sua têmpora e terminava em seu nariz. Ele
observava a violência com um leve desprezo. Nadya não precisou
perceber as dragonas2 vermelhas e as tranças douradas do seu
uniforme para reconhecê-lo.
Houve sussurros sobre um Príncipe Herdeiro Tranaviano pelo
mosteiro. Um garoto que se tornou general seis meses depois de se
aventurar na frente quando tinha dezesseis anos. Uma pessoa que
usou a guerra para abastecer seu já existente terrível arsenal de
magia de sangue. Um monstro.
Toda dúvida que Nadya tinha reprimido, ressurgiu. Isso não
podia ser real, o Príncipe Herdeiro não; ele não.
Ele era novo, apenas uns anos mais velho que ela, com os olhos
mais pálidos que ela já viu. E como se ele tivesse a sentido, aqueles
olhos pálidos encontraram os olhos de Nadya e seus lábios se
torceram em um sorriso irônico, seu olhar desviando para a mágica
rodopiando como luz em suas mãos.
Ela deixou escapar um monte de maldições.
Eu preciso.... Eu preciso de alguma coisa poderosa, ela rezou
freneticamente. Ele vai vir atrás de mim. Ele está olhando
diretamente para mim.
— Você arrisca machucar os fiéis — Marzenya respondeu.
O mundo inclinou. A visão de Nadya ficou preta nos cantos. O
pátio estava um pesadelo. Carmesim espalhado pela neve, os corpos
daqueles com quem Nadya conviveu, trabalhou, rezou, caídos e
quebrados através das pedras. Era um massacre e a culpa era dela.
Os Tranavianos não estariam aqui se não fosse por ela. Se ela
morresse, isso faria esse massacre valer a pena?
O príncipe começou a atravessar o pátio em direção a Nadya, e o
pânico apagou todo o resto. Se ele a capturasse, o que o sangue dela
daria a ele? O que ele poderia fazer com a mágica que ela possuía?
Havia tantos Tranavianos, eles tinham tanta magia, e todo mundo
que ela conhecia ia morrer.
Kostya a empurrou de volta para as sombras. Sua magia deslizou
para longe quando suas costas bateram contra a porta.
— Nadya — Kostya sussurrou, olhando freneticamente por cima
do ombro. O príncipe não estava mais à vista, porém ele tinha pouco
espaço para atravessar. Não restava mais tempo. Estava tudo
acabado. Kostya colocou uma mecha do cabelo dela atrás da orelha.
— Você tem que ir, Nadya, você tem que fugir.
Ela o encarou, horrorizada. Fugir? Depois de todo mundo que ela
amava ser morto, ela deveria fugir para se salvar? O que isso a
tornaria, se ela corresse para se salvar? O mosteiro foi o único lar
que Nadya já conheceu.
— Você tem que ir. — Kostya disse. — Se você cair nas garras dele,
a guerra será por nada. Você tem que sobreviver, Nadya.
— Kos...
Ele beijou a testa dela, seus lábios mornos, e deslizou algo frio e
metálico em suas mãos.
— Você tem que sobreviver — ele repetiu, a voz falhando. Então
ele se virou para chamar Anna. Nadya colocou o que ele deu a ela no
bolso, sem nem olhar.
Anna lutava a alguns passos de distância, corpos formando uma
pilha ao redor de seus pés. Sua cabeça se virou quando ela ouviu seu
nome. Kostya inclinou a cabeça em direção a Nadya e compreensão
clareou as feições de Anna.
Kostya se virou novamente para Nadya, uma expressão em seu
rosto que ela nunca tinha visto antes. Ele abriu a boca para falar,
mas foi para frente violentamente, seu joelho dobrando debaixo
dele. Uma flecha de besta estava enterrada na parte de trás da sua
perna.
Um grito foi arrancado da garganta de Nadya.
— Kostya!
— Hora de ir, Nadya. — Anna agarrou seu braço e a arrastou pelo
caminho até o cemitério.
Eu não posso deixar Kostya. Kostya que, quando eles se
conheceram, considerou o dom incomum dela com uma expressão
séria antes de fazer uma piada dizendo que ela nunca poderia fazer
uma coisa ruim na vida, senão os deuses saberiam imediatamente.
Kostya, quem imediatamente desconsiderou seu status divino, e a
persuadiu com todo tipo de pegadinhas e travessuras. Kostya, o
garoto que rolava maçãs para ela durante as orações. Kostya, seu
amigo, sua família.
Ele acenou com a mão para elas irem, dor estampada em seu
rosto. Nadya lutou contra Anna, mas a sacerdotisa era mais forte.
Kostya não. Ela estava perdendo tudo, ela não poderia perdê-lo
também.
Eu não vou trocar minha segurança pela vida dele.
Sua garganta fechou com as lágrimas.
— Eu não vou deixá-lo!
— Nadya, você precisa.
Ela não conseguia se libertar. Ela conseguia apenas cambalear
enquanto Anna a puxava para o mausoléu, chutando a porta para
abrir. A última coisa que ela viu antes de Anna a puxar para a
escuridão foi Kostya, seu corpo tremendo quando outra flecha o
atravessou.
Dois: Nadezhda Lapteva

Quando os fiéis se voltaram para o deus da proteção contra uma


horda nômade do Norte, eles esperavam a benção dele, apenas para
serem massacrados na guerra que se seguiu. A tolice deles foi
esquecer que Venceslav também era deus da guerra, e ferro deve ser
testado.
—O CÓDEX DO DIVINO, 4:114

Anna passou por Nadya, fechando a porta e a barrando. Nadya lutou


para pará-la – Kostya ia morrer se ela não fizesse alguma coisa –
mas Anna se moveu para a frente da porta, bloqueando o caminho
de Nadya.
— Nadya — ela implorou suavemente, todas as palavras que ela
não disse deixaram sua voz mais grossa.
Isso sempre foi uma possibilidade; Nadya sabia que seus amigos
estavam dispostos a morrer por ela. A única coisa que ela podia
fazer agora era garantir que as mortes deles não fossem em vão.
Ficar de luto pela perda depois, sobreviver agora.
Ela cerrou os punhos e se virou. Escadas desciam para a
escuridão atrás dela. Ela quase tropeçou no primeiro degrau e
descobriu da pior maneira o quão para baixo elas iriam. Anna
agarrou seu braço para estabilizá-la e ela percebeu que a sacerdotisa
estava tremendo.
— Você pode iluminar aqui um pouco? — Anna perguntou. Sua
voz estava chorosa, restringidas por pouco.
A escuridão era sufocante, mas Nadya descobriu que o silêncio
era mais desconcertante. Não havia nada, mesmo que a batalha
estivesse sendo travada do lado de fora. Elas deveriam poder ouvir o
tinido de metal e gritos da batalha, mas estava tudo quieto.
Luz, Nadya poderia conjurar. Ela puxou seu colar, achando a
conta de Zvonimira e a vela de chama que marcava a deusa da luz.
Ela mandou uma oração fraca; nada além de um pedido débil para
algo que não iria salvá-las.
Uma linha de discurso sagrado moveu através dos seus lábios em
um sussurro enquanto Zvonimira reconhecia sua oração. Luz
branca brilhou em suas mãos. Pressionando as pontas de seus dedos
juntas, ela formou uma bola de luz que girou no ar, iluminando o
espaço em volta delas.
— Golzhin dem — Anna xingou baixinho.
Desamparada, Nadya não podia fazer nada além de seguir Anna e
descer os degraus. O melhor amigo dela provavelmente estava
morto. Tudo que ela já conheceu, destruído. Toda vez que ela
piscava, o sorriso frio do Príncipe Herdeiro aparecia a sua frente. Ela
nunca estaria a salvo novamente.
Eu preferiria ficar meses esculpindo uma montanha de casca de
batata do que isso.
Nadya não sabia se algum dos acampamentos militares próximos
ainda existiam, ou se os Tranavianos tinham destruído enquanto se
moviam para dentro do país. Se ela pudesse chegar à capital
Komyazalov e na Corte Prateada, ela teria alguma esperança, mas
ela duvidava que era possível com o Príncipe Herdeiro a alguns
passos de distância.
Era para Nadya permanecer em segredo por mais um ano,
treinando nas montanhas sagradas com padres que – embora não
possuíssem magia – entendiam o básico das divindades. Por
exemplo, como uma camponesa poderia ser a única coisa que
salvaria Kalyazin das tochas heréticas. Mas a guerra não se
importava com planos tão bem esquematizados.
Agora a guerra tinha tirado tudo de Nadya, e ela não sabia o que
deveria fazer. Seu coração doía, a visão de Kostya vacilando com
flechas de besta atravessando seu corpo ainda fresca.
Anna a liderou pelas escadas em um longo e úmido túnel. Parecia
que alguém não vinha aqui há décadas. Depois de alguns minutos
de caminhada silenciosa, Anna parou em frente a uma antiga porta
de madeira construída dentro da parede. Ela empurrou seu ombro
na porta até que abriu com um rangido doloroso. Poeira caiu em
suas cabeças, derramando no lenço de cabeça de Anna como neve.
Dentro havia uma despensa cheia de roupas para viagem,
prateleiras com armas, e estantes com comida cuidadosamente
preservada.
— O Padre Alexei esperava que esse lugar nunca fosse necessário.
— Anna suspirou melancolicamente.
Nadya pegou uma túnica violeta aconchegante e um par de calças
marrom escuras que Anna arremessou para ela. Ela as colocou por
cima de suas roupas finas. Anna lançou a ela um casaco preto
pesado, feito de lã e um gorro forrado de pele. Anna pegou seu
próprio conjunto de roupas antes de ir para a prateleira de armas.
Ela deu a Nadya um conjunto duplo de voryens ornadas. Ela parou,
encarando as lâminas na mão de Nadya, então sem dizer nada
entregou a ela uma terceira, considerou mais um pouco, e entregou
uma quarta.
— Você as perde o tempo todo — ela explicou.
Isso era verdade. Nadya colocou duas das lâminas no seu cinto e
colocou as outras duas nas botas. Pelo menos ela estaria armada
quando o príncipe a pegasse. Anna puxou uma venyornik da
prateleira de armas – uma longa espada de gume único – e a
prendeu em seu quadril.
— Isso deve bastar — Anna murmurou. Ela pegou duas bolsas
vazias e começou a enchê-las com comida. — Amarre aqueles
colchonetes e a tenda nas bolsas, pode ser?
A sala inteira tremeu, um choque ensurdecedor vindo da direção
da porta. Nadya gritou de surpresa. Ela colocou sua cabeça para fora
da porta. Nada além de escuridão. Anna jogou uma prateleira de
comida em uma das bolsas.
Pânico apertou seu peito. O túnel não era muito longo. Os
Tranavianos poderiam chegar ali em alguns momentos.
Anna pendurou uma das bolsas no ombro e saiu para o túnel. O
mundo se deslocou perigosamente quando palavras em uma
linguagem rápida e quente que Nadya pouco entendia flutuaram da
direção que elas tinham acabado de vir.
Ela não precisava entender as palavras ou reconhecer a voz. Era o
príncipe. Tinha que ser. Ela não iria durar contra ele.
Então ela estava correndo, correndo, correndo atrás de Anna. Ela
tinha que confiar que a sacerdotisa sabia as curvas e torções do
túnel; tinha que confiar que, não importa para onde o túnel vá, ele
não ia cuspi-las direto para um grupo de Tranavianos.
O som de magia atacando as paredes do túnel sibilou atrás delas.
Algo encostou no ouvido de Nadya, calor irradiando em ondas. Se
chocou contra uma curva do túnel atrás dela, explodindo em uma
chuva de faíscas. Ele estava perto; muito perto.
— Tek szalet wylkesz! — O grito que ecoou pelo túnel não soava
furioso. Na verdade, soava divertido. Uma risada irrompeu, clara e
irônica.
Nadya desacelerou apenas o suficiente para olhar para trás na
escuridão. Um som tamborilando vinha de dentro do escuro.
Começou devagar mas cresceu em intensidade, soando não como
uma, mas como várias coisas. Muitas coisas se movendo. Ela
estreitou os olhos. Milhares de pequenas asas batendo.
Anna a puxou para baixo assim que uma massa repleta de
morcegos enxameou o espaço apertado do túnel.
A luz do feitiço de Nadya se apagou, mergulhando-as numa
escuridão viva e móvel. Os morcegos puxavam seus cabelos e
rasgavam qualquer pele desprotegida. Nadya seguiu Anna
cegamente, a mão da sacerdotisa sendo a única coisa que ela tinha
que não era escuridão viva. Era como se estivesse sendo engolida
pelo escuro.
Elas estavam presas dentro de uma enxurrada de asas e garras
em movimento até que Anna finalmente se chocou contra uma
porta e as garotas e os morcegos caíram na neve.
Os morcegos desapareceram em punhados de fumaça no
momento em que foram expostos a luz enfraquecida. Nadya pulou
para ficar de pé, ajudando Anna a se levantar. Seu olhar estava fixo
na entrada, a escuridão escancarando faixas de preto contra a neve
branca brilhante do lado da montanha.
— Nós precisamos correr — Nadya disse, se afastando da entrada
da caverna.
Ela olhou para Anna, preocupada quando não respondeu nada.
Anna encarava a entrada. Nenhum Tranaviano apareceu.
Nós iremos morrer se não continuarmos. Nadya levantou uma
mão enquanto a outra mexia no colar, pegando a conta certa. Ela
mandou uma prece simples para Bozidarka, a deusa da visão. Uma
imagem vívida surgiu na sua frente. O príncipe, encostado numa
parede de pedra, um sorriso zombeteiro e nojento em seu rosto,
braços cruzados no peito. Ao seu lado, encarando a entrada do túnel
com um olhar mortal, está uma garota baixa com cabelo preto
cortado na altura do queixo, um tapa-olho cravado sobre um olho.
Nadya voltou a si, visão clareando. Sua cabeça flutuava por causa
do esforço, olhos embaçados até que não havia nada além do branco
da neve. Se balançando instável em seus pés, ela exalou, se
estabilizando. Os Tranavianos não estavam às seguindo. Ela não
sabia porque, mas não iria questionar. Eles viriam em breve.
— Nós estamos salvas por enquanto — ela disse, exausta. Chega
de magia. Não ia usar enquanto não dormisse.
— Isso não faz sentido — Anna murmurou.
Nadya deu de ombros, olhando para o rigoroso lado da montanha.
Neve formava um monte alto, e onde elas estavam em pé, as árvores
eram escassas. Não tinha como se esconderem quando os
Tranavianos finalmente se aventurassem para fora do túnel.
Anna ofegou e Nadya se virou. Ela tentou se manter firme, mas
quando seu olhar foi até o topo das montanhas, ela sentiu como se
fosse um murro no estômago.
Nuvens negras de fumaça subiam de um ponto alto no cume.
Enchiam o céu como se fossem engoli-lo completamente. Os
joelhos de Nadya cederam e ela caiu na neve.
Kostya se foi.
Tudo se foi. Era como se tivesse um buraco vazio no lugar onde o
coração de Nadya deveria estar, um vazio no seu peito que havia
sugado tudo a sua volta, a deixando com absolutamente nada. Ela
não tinha nada.
Ela cravou uma unha na palma da mão, deixando a dor afiada
clarear sua cabeça tempo suficiente para afastar as lágrimas.
Lágrimas eram inúteis. Não havia tempo para luto, apesar dela
querer. Eles não podiam ganhar essa guerra; os Tranavianos iam
tomar tudo e queimar Kalyazin até as cinzas. Lutar parecia em vão.
Porque os deuses não paravam isso? Ela se recusava a acreditar
que essa destruição era a vontade dos deuses. Eles não poderiam
querer isso.
Nadya se assustou quando as mãos de Anna deslizaram entre as
dela.
— Ferro deve ser testado — Anna disse, citando o Códex. — Nós
não sabemos as intenções dos deuses.
Intenções não eram sempre gentis ou justas.
Como se conjurada, a presença morna de Marzenya deslizou por
Nadya como uma capa, mas a deusa não falou. Nadya ficou grata
pelo silêncio. Palavras apenas iam soar vazias em seus ouvidos
mortais.
Desistir agora significaria que todo mundo no mosteiro tinha
morrido em vão, e Nadya não permitiria isso. Ela vasculhou seu
bolso e tirou um pequeno pingente em uma delicada corrente
prateada. Trazendo para mais perto, ela viu inúmeras espirais
girando uma na outra e desaparecendo no centro do pingente. Ela
nunca tinha visto isso antes, e já tinha estudado todos os símbolos
dos deuses.
O que Kostya tinha dado a ela?
— Você sabe o que isso significa? — Ela segurou a corrente para
Anna, cujos olhos se estreitaram enquanto ela pegava o pingente.
Anna balançou sua cabeça lentamente, o devolvendo. Nadya
deslizou por sua cabeça, deixando o metal frio se estabelecer na sua
pele debaixo das roupas. Não importava o que significava. Só
importava que era de Kostya. Porque ele olhou para ela com uma
expressão que somente poderia ser descrita como anseio, ele beijou
a testa dela, e morreu para que ela pudesse escapar.
Isso não era justo. Guerra não era justa.
Nadya se virou para sua casa em chamas. Ela iria escapar para
que Kostya não tivesse morrido por nada. Isso teria que bastar, por
enquanto.
Elas teriam que viajar a noite inteira para colocar distância o
suficiente entre elas e os Tranavianos.
— Nós temos que ir para Tvir — Anna disse.
Nadya franziu a testa, puxando o gorro para cobrir suas orelhas.
Tvir era ao leste. Leste era Tranavia. Oeste era o fronte.
— Não seria melhor irmos para Kazatov?
Anna mexeu no lenço sobre seus cabelos, ajustando o bandolete e
as argolas que estavam penduradas aos lados das suas têmporas.
— Nós temos que levar você para o acampamento mais perto, e
Kazatov é muito longe ao Norte. Sua segurança é minha prioridade
agora. O rei teria nossas cabeças se alguma coisa acontecesse com
você.
— Bom, os Tranavianos têm a cabeça de todo mundo no mosteiro
já.
Anna estremeceu, lançando a ela um olhar ferido.
— O general Golovhka pode decidir o que faremos a partir de lá —
ela disse devagar.
Nadya não gostou disso. Ela não queria ser arrastada por aí,
levada à segurança para que outros pudessem morrer por ela. Ela
deveria estar lutando. Mas se Tvir era o acampamento mais
próximo, então Tvir seria.
Anna olhou para ela, com simpatia em seus olhos escuros. Ela
olhou por cima do ombro, a expressão se rompendo. Nadya não
podia olhar para trás. Ela viu destruição o suficiente e se olhasse
para trás, isso iria destruí-la.
— Vamos nos preocupar em achar um abrigo primeiro, sim? Tem
uma capela abandonada aqui perto. Nós podemos chegar lá em um
dia, mais ou menos. Descobriremos o que fazer de lá.
Nadya assentiu, cansada. Ela estava muito cansada para brigar ou
entrar em pânico sobre a aparente captura inevitável pela única
pessoa que nunca deveria ter acesso ao poder dela, que nem deveria
saber que ela existia.
Tudo que ela podia fazer era colocar um pé na frente do outro,
fingir que não estava com tanto frio que podia sentir seus cílios
congelando, e rezar. Pelo menos ela era boa em orações.
Três: Serefin Meleski

Svoyatovi Ilya Golubkin: Nasceu filho de um fazendeiro, Ilya


contraiu uma doença que o impediu de andar. Curado por um
clérigo de Zbyhneuska, ele foi imbuído com força sobre-humana e
se tornou um monge guerreiro. Ilya sozinho protegia a cidade de
Korovgrod contra invasores do além-mar.
—O LIVRO DOS SANTOS DE VASILIEV

Serefin Meleski se encostou na entrada do túnel e estreitou os olhos


para a neve. O sol quase se pôs, mas o reflexo era cegante contra sua
– já terrível – visão.
— Você está as deixando escapar. — Ostyia reclamou ao seu lado.
Ele a ignorou, ao invés disso, pegou o livro de feitiços de onde
estava preso em seu quadril, o folheando. Ele passou pelas páginas
em silêncio antes de arrancar uma. Ele largou o livro e estendeu o
braço para Ostyia.
O olho dela se estreitou e ela olhou para a faca na própria mão.
Ostyia pegou o pulso dele e arrastou a lâmina pela sua palma.
— Não a mão dele. — Kacper protestou de onde ele estava
recostado na parede oposta do túnel.
Serefin o ignorou também, levantando sua mão. Ele observou o
sangue jorrar rapidamente do corte e pingar em lentos filetes de sua
palma. Ardeu, mas a onda de magia que viria cancelaria qualquer
dor. Ele moveu a página do livro de feitiços para sua mão sangrenta,
deixando o sangue encharcar o papel. Magia se acendeu quente em
suas veias, e quando a página se tornou fumaça, a visão dele se
aguçou. Uma trilha que levava direto a clériga surgiu vívida com
linhas vermelhas contra a neve.
Ele sorriu.
— Ela pode correr.
— É sábio se conectar a ela com esse feitiço? — Ostyia perguntou.
— Ela não vai sentir. E não é uma conexão, apenas uma trilha.
Não importava o quão longe ela corresse; ele poderia rastreá-la
enquanto continuasse alimentando o feitiço com sangue em
intervalos ocasionais. Fácil.
— Confiante. — Kacper notou.
Serefin lançou a ele um olhar insípido.
— Mesmo se sentir, ela não vai poder desfazer.
— Você não sabe nada sobre o tipo de magia que ela usa. Como
você sabe que ela não vai sentir?
Serefin franziu a testa. Kacper estava certo, mas ele não iria
admitir isso.
— Mande os homens reunirem aqueles que sobreviveram e os
contenham — ele disse a Ostyia.
Ela assentiu e desapareceu pelo túnel.
Kacper a observou ir.
— Porque você não está indo atrás dela? — A manga do casaco
dele quase foi arrancada durante a batalha; estava presa apenas por
algumas linhas, e sua dragona dourada pendia do braço. Ele passou
uma mão negra por seus cachos escuros e pareceu surpreso quando
viu que estavam emaranhados com sangue. — Nós estivemos
procurando por evidências de um clérigo de sangue por eras e
finalmente achamos uma.
— Você quer vagar no meio das montanhas de Kalyazi no escuro?
— Serefin perguntou.
O grupo deles já experimentou em primeira mão o quão mortal o
inverno de Kalyazi podia ser para aqueles que não conheciam o
terreno. Além disso, Serefin mal conseguia ver em um dia bom, e
sua visão noturna era pior. Compreensão surgiu nos olhos escuros
de Kacper e ele assentiu.
Serefin esteve no fronte em Kalyazin por quase três anos com
apenas alguns retornos ocasionais para casa. Em todo esse tempo,
era como se o inverno nunca tivesse acabado. Até o período entre as
estações em Kalyazin estava frio. Era apenas neve e geada e
florestas. Pelos últimos cinco meses, Serefin liderou seu grupo para
procurar evidências de magia em Kalyazi; seu pai estava convencido
de que existia, que era vital que Serefin achasse esses clérigos. Eles
poderiam mudar o curso da guerra a favor de Kalyazin e isso não
poderia acontecer, especialmente agora, depois de um ataque
decisivo ganho contra Kalyazin. Tranavia clamou a cidade de
Voldoga semanas antes, um posto avançado vital para o inimigo. Era
o primeiro passo para finalmente virar essa guerra sem fim para o
lado deles.
— Com sorte, ela vai nos liderar para mais do tipo dela. — Serefin
disse. Ele se voltou para o túnel, mas parou.
Passando a mão pela cicatriz que cortava seu olho, ele se virou
para Kacper.
— Luz? — A palavra saiu condescendente, um comando irritadiço
em vez de um pedido. Em qualquer outra hora ele teria mais
consideração pelos sentimentos de Kacper, mas não quando ele
estava tão cansado depois da batalha.
— Sim, desculpe. — Kacper pegou uma tocha que tinha caído no
chão e a reacendeu.
Eles passaram pela despensa onde as garotas tinham se
escondido e encontraram o tenente-general de Serefin, Teodore
Kijek, bisbilhotando.
— Mande para meu pai as notícias sobre os eventos de hoje. —
Serefin disse. Ele não se incomodou em mencionar a clériga. Era
melhor se seu pai pensasse que ela tinha escapado; ele não
precisava saber que Serefin tinha deixado ela ir.
— Claro, Vossa Alteza.
— Nós sabemos quantos Kalyazi sobreviveram?
— Eu estimo cerca de uma dúzia. — Teodore respondeu.
Serefin fez um som de entendimento. Ele teria que decidir agora
o que fazer com os prisioneiros, e ele não podia dizer que gostava da
tarefa.
— Nós sabemos se a garota era a única clériga entre eles? — Ele
não podia imaginar tal sorte brilhando para ele dessa forma, mas
poderia sonhar.
— Se há outros, eles ainda não se revelaram a nós — disse
Teodore.
— Talvez eles possam ser persuadidos? — Kacper disse, seus
olhos escuros brilhando em antecipação.
Serefin tinha uma aptidão comprovada por ser particularmente
convincente.
Ele acenou curtamente. Persuasão, de fato.
— Nós iremos passar a noite aqui. — Ele olhou para a despensa;
as garotas não a esvaziaram por completo. — Tirem todos os
suprimentos daqui também — ele continuou e acenou com a mão.
Ele procuraria informações enquanto mantinha os olhos na clériga
que fugia. Parecia uma maneira valiosa de passar seu tempo antes
dele ouvir de seu pai.
— É claro, Vossa Alteza — Teodore disse.
Serefin se afastou de Teodore e continuou a andar com Kacper.
— Por que você ainda não mandou ele de volta para o fronte? —
Kacper perguntou.
Serefin olhou para Kacper, que estava à sua esquerda em seu lado
cego. Kacper parou por um momento e logo depois se posicionou ao
outro lado de Serefin.
— Você pode imaginar o que meu pai faria se eu me livrasse de
seu espião?
Kacper estremeceu.
— Bom, pelo menos quando acharmos a clériga, poderemos voltar
para casa. Não vai haver haver razão para o rei nos manter aqui.
Serefin passou uma mão por seu cabelo castanho. Precisava
desesperadamente de um corte. Ele estava cansado, não, não
cansado, ele estava exaurido até os ossos. Encontrar a clériga foi
uma luz brilhante de sorte, mas não muda o fato de que ele esteve
em reino inimigo por anos, e mesmo assim receava em voltar para
casa. A guerra era tudo que ele conhecia nesse momento. Eles
andaram o resto do túnel em silêncio antes de chegarem no
cemitério.
O mosteiro era um complexo maior do que Serefin esperava, com
guardas melhores. Ele achou Ostyia observando os prisioneiros
enquanto eles eram reunidos no pátio. Ele mandou Kacper achar
um lugar apropriado para ele passar a noite, apesar de sentir que
não haveria nada nessa prisão melancólica que não fosse uma placa
de pedra e um cobertor gasto. Porque monges eram tão austeros?
Não havia nada de errado em dormir confortavelmente. Mas ele
aceitaria uma placa de concreto e um cobertor gasto em vez de
passar outra noite na neve.
Ostyia brincou com o tapa-olho sobre um dos olhos antes de tirá-
lo e guardá-lo no bolso. Uma cicatriz feia e irregular atravessava seu
rosto sobre o buraco vazio e devastado no olho esquerdo.
Quando Serefin e Ostyia eram crianças, assassinos Kalyazi se
infiltraram no palácio disfarçados como mestres de armas para
treinar o jovem príncipe e a filha do nobre. Os assassinos foram
para os olhos deles primeiro. Talvez cegar as crianças dos inimigos
antes de matá-las era uma coisa religiosa.
Ostyia costumava gostar de deixar o buraco no olho descoberto.
Ela gostava de parecer aterrorizante e alegou que estava guardando
os dias de usar o tapa-olho para o mar se um dia essa guerra
terminasse. Seu olhar foi para o livro de feitiços no quadril de
Serefin.
— Isso parece fino. — ela apontou.
Ele suspirou e assentiu, pegando o livro e folheando. Ele estava
ficando sem os feitiços.
— Alguma coisa me diz que não vamos achar um encadernador
no coração de Kalyazin que faz livros de feitiços.
— Não, provavelmente não. — Ostyia concordou. — Além do mais
— um tom provocador entrou em sua voz — mesmo se achássemos,
não seria tão bom como os de Madame Petra.
Serefin deu de ombros ao pensar na mulher idosa e arrogante que
costurava todos seus livros de feitiços. Ele não conseguia descobrir
se ela o tratava como um filho há muito tempo morto ou como um
amante. Era perturbador que ele não conseguia diferenciar.
— Você não trouxe livros extras?
— Eu já usei todos os extras. — O que significava a possibilidade
de ficar preso no meio de um reino inimigo sem um livro de feitiços.
— Bom — Ostyia disse — eu suponho que você possa pegar um
livro de um dos magos menores se precisar.
— E deixar eles sem defesa? — Serefin ergueu uma sobrancelha.
— Ostyia, eu sou impiedoso, mas não sou cruel. Eu posso me virar
muito bem com uma adaga na mão.
— É, e eu tenho que me virar para te manter a salvo.
Serefin lançou a ela um olhar sujo. Ela olhou para ele, sorrindo
descaradamente.
— Perdoe meu tom, Vossa Alteza. — ela disse, fazendo uma
reverência dramática.
Ele revirou os olhos.
Eles estavam separando os prisioneiros em grupos que podiam
ser contidos nos escassos cubículos que serviam de quarto. Os olhos
de Serefin se estreitaram em um garoto que tinha mais ou menos a
idade dele apoiado no ombro de um homem mais velho.
— Aquele. — ele disse, apontando o homem para Ostyia. — Tire
ele dali. Eu quero questioná-lo.
O rosto dela acendeu.
— O garoto?
— Não desse jeito. Ele já tem uma flecha de besta saindo da
perna, e não, o homem mais velho. Eu quero falar com o garoto
mais tarde.
Ela rosto dela caiu.
— Vossa Alteza irá me perdoar se eu disser que ele não é nem um
pouco divertido.
— Eu não irei.
Ela fez o homem ser levado a eles. Serefin imaginou que ele era o
líder do mosteiro. Pessoas assim tinham um título? Serefin não
tinha certeza.
— Você treina todo o seu povo para a guerra agora? — Serefin
perguntou agradavelmente, descansando sua mão em seu livro
muito fino. Antes que o homem pudesse responder, ele levantou
sua outra mão, o interrompendo. — Me perdoe, eu deveria me
introduzir primeiro, meu nome é Serefin Meleski, Príncipe Herdeiro
de Tranavia.
— Eu sou o Padre Alexei. — o homem disse. — E sim, mesmo
aqueles que não se alistaram no exército recebem algum tipo de
treinamento. É necessário, você não concorda?
Talvez a tática fosse necessária para Kalyazin, mas a guerra nunca
chegou perto das fronteiras de Tranavia. Independentemente disso,
Serefin estava surpreso pela civilidade na voz do homem.
— Uma guerra sagrada que é travada a quase um século exige
medidas extremas. — Alexei continuou.
— Sim, sim, nós somos hereges nojentos que precisam ser
erradicados da face da terra e vocês só estavam fazendo o que é
certo. — Serefin disse.
O padre simplesmente deu de ombros.
— A simples verdade.
Ostyia estava tensa ao lado de Serefin. Ele colocou as mãos em
seus bolsos e sorriu para o homem.
— Mas você tem magia própria, não tem? Me diga, quantos dos
seus magos – como vocês os chamam, clérigos? – estão escondidos
em Kalyazin? Nós sabemos sobre a que está aqui, não se incomode
em tentar protegê-la, ela vai estar sob nossa custódia em um dia.
O velho padre sorriu.
— Eles são chamados de clérigos, sim. Eu não tenho nenhuma
informação que possa te ajudar nisso, jovem príncipe.
Serefin franziu a testa. Ele desejou que o homem estivesse
agindo de forma condescendente para que ele pudesse ao menos
criar uma raiva necessária, mas não tinha nada disso em sua voz.
Ele não ia pressionar sobre isso, não agora e não com o padre. O
garoto com o ferimento de flecha foi quem protegeu a clériga e a
ajudou a escapar. Era com ele que Serefin deveria falar.
Serefin ordenou a um soldado que levasse o padre.
— Você quer questionar outra pessoa? — Ostyia perguntou.
— Não. — Serefin pegou o olhar de Kacper de onde ele estava
falando com um mago e acenou com a mão para ele se aproximar. —
Pessoas religiosas bebem vinho, certo?
Ostyia deu de ombros.
— Tem barris de vinho na adega. — Kacper ofereceu.
Serefin assentiu.
— Perfeito. Eu quero ficar cego de bêbado antes dessa noite
acabar.
Quatro: Nadezhda Lapteva

Horz roubou as estrelas e o paraíso do controle de Myesta, e por


isso ela nunca o perdoou. Porque onde as luas podem descansar
senão no paraíso?
—CÓDEX DO DIVINO, 5:26

— Certamente não é minha culpa que você escolheu uma criança


que dorme tão profundamente. Se ela morrer a culpa será sua, e
não minha.
Ser acordada assustada por deuses brigando não era o método
predileto de Nadya. Ela se levantou no escuro, se movendo
automaticamente. Seus olhos demoraram alguns segundos para
funcionar, como o resto de seu corpo.
Calem a boca!
Não era sábio dizer a deuses para calarem a boca, mas era tarde
demais agora. Um sentimento de desdém divertido flutuou através
dela, mas nenhum dos deuses falaram novamente. Ela percebeu que
era Horz, o deus do paraíso e das estrelas, que a acordou. Ele tinha
uma tendência de ser desagradável, mas geralmente deixava Nadya
em paz, como uma regra.
Normalmente, apenas um deus conversava com seu clérigo
escolhido. Certa vez, houve um clérigo chamado Kseniya Mirokhina,
que foi abençoado com uma pontaria não natural por Devonya, a
deusa da caça. E Veceslav escolheu um clérigo para si, muito tempo
atrás, mas seu nome foi perdido na história, e ele se recusou a falar
sobre. As histórias registradas nunca falaram de um clérigo que
podia ouvir mais de um deus. O fato de Nadya conversar com o
panteão inteiro era uma raridade que os padres que a treinaram não
conseguiam explicar.
Tinha uma chance de que deuses mais velhos, mais primordiais,
existiram, que desistiram de cuidar do mundo e deixaram nas mãos
dos outros. Mas ninguém sabia com certeza. Foram feitas esculturas
e pinturas das formas humanas dos vinte deuses conhecidos, apesar
de ninguém saber como eles se pareciam. Nenhum clérigo na
história jamais olhou para o rosto de um deus. Nenhum santo,
nenhum padre.
Cada um deles tinha seu poder e sua magia que podiam conceder
a Nadya, e enquanto alguns eram próximos, outros não eram. Ela
nunca falou com a deusa das luas, Myesta. Ela nem sabia que tipo
de poder a deusa poderia dar, se ela escolhesse.
E apesar dela poder conversar com vários deuses, era impossível
esquecer quem a tinha escolhido para esse destino; Marzenya, a
deusa da morte e da magia, que esperava dedicação completa.
Vozes indistintas murmuraram no escuro. Ela e Anna acharam
um lugar afastado dentro de um bosque de pinheiros grossos para
montarem suas tendas, porém não parecia mais seguro. Nadya
deslizou a voryen de debaixo do colchonete e cutucou Anna para ela
acordar.
Ela se moveu para a entrada da tenda, pegando suas contas, uma
oração se formando em seus lábios, símbolos esfumaçados
escorrendo de sua boca. Ela podia ver as impressões embaçadas de
figuras na escuridão ao longe. Era difícil chutar um número, duas?
Cinco? Dez? Seu coração acelerou com a possibilidade do grupo de
Tranavianos já estarem em sua trilha.
Anna parou ao lado dela. O aperto de Nadya na voryen ficou mais
forte, porém ela ficou parada. Se eles ainda não tinham visto a
tenda, ela podia impedir que notassem completamente.
Mas a mão de Anna se apertou no antebraço dela.
— Espere. — ela sussurrou, a respiração congelando à sua frente
no frio. Ela apontou para um lugar escuro ao lado do grupo.
Nadya pressionou seu polegar contra a conta de Bozidarka e sua
visão se aguçou até que ela pôde ver tão claramente como se fosse
dia. Ela teve que se esforçar para afastar o medo imediato e
paralisante quando suas suspeitas foram confirmadas e os
uniformes Tranavianos ficaram claros. Não era um grupo inteiro. Na
verdade, eles pareciam estar com roupas esfarrapadas. Talvez
tivessem se separados e se perderam.
Mais interessante, entretanto, foi um garoto com uma besta
silenciosamente apontada na direção do grupo.
— Nós podemos escapar antes que eles percebam. — Anna disse.
Nadya quase concordou, quase deslizou sua voryen para dentro
da bainha, mas então o garoto atirou e o bosque virou um caos.
Nadya não estava disposta a usar a vida de um inocente como
distração para sua própria covardia. Não de novo.
Mesmo com Anna protestando, Nadya formou uma oração em
sua mente, suas mãos apertando a conta de Horz no colar e sua
constelação de estrelas. Símbolos saíram de seus lábios como
vislumbres brilhantes de fumaça e cada estrela no céu apagou.
Bem, isso foi mais extremo do que eu pretendia. Nadya pensou
com um tremor. Eu deveria saber melhor do que pedir alguma
coisa para Horz.
Ela podia ouvir xingamentos enquanto o mundo mergulhou em
escuridão. Anna suspirou em exasperação atrás dela.
— Apenas… fique aqui. — ela sibilou enquanto se movia com
confiança pelo escuro.
— Nadya... — O suspiro de Anna era suave.
Precisou de mais foco para mandar uma terceira oração a
Bozetjeh. Era difícil chamar Bozetjeh em um dia bom; o deus da
velocidade era notoriamente devagar em atender preces. Mas ela
conseguiu chamar sua atenção e recebeu um feitiço que a permitia
se mover mais rápido que o vento rancoroso de Kalyazin.
Sua conta inicial estava errada, havia seis Tranavianos dispersos
pelo bosque. O garoto largou a besta, olhando aturdido para o céu,
se assustando quando Nadya tocou seu ombro.
Não tinha como ele ver no escuro, mas ela conseguia. Quando ele
se virou, com uma espada curvada em suas mãos, Nadya desviou
para o lado. Seu movimento foi largo e ela o empurrou na direção de
um Tranaviano que corria, premeditando sua colisão.
— Encontre o resto. — Marzenya sibilou. — Mate todos.
Dedicação total e completa.
Ela alcançou uma das figuras, apunhalando sua voryen no crânio
dele logo debaixo do seu ouvido.
Não foi tão difícil dessa vez, ela pensou. Mas o conhecimento era
uma coisa distante.
Sangue jorrou, acertando um segundo Tranaviano, que gritou em
alarme. Antes do segundo homem entender o que aconteceu com
seu parceiro, ela levantou a perna, o acertando com o calcanhar
direto na mandíbula, e derrubando-o no chão. Ela cortou sua
garganta.
Mais três. Eles não podem ter ido muito longe. Nadya pegou a
conta de Bozidarka mais uma vez. A deusa da visão revelou onde os
últimos Tranavianos estavam. O garoto com a espada conseguiu
matar dois no escuro. Nadya não conseguia ver o último, só sentia
ele por perto, bem vivo.
Alguma coisa bateu contra as costas de Nadya e, de repente, o
lado gelado de uma lâmina estava pressionada contra sua garganta.
O garoto apareceu na frente dela, a besta novamente em suas mãos,
felizmente não estava apontada para Nadya. Era claro que ele mal
conseguia vê-la. Ele não era de Kalyazi, mas de Akolan.
Um número razoável de Akolanos tiraram vantagem da guerra
entre seus vizinhos, vendendo suas espadas em benefício dos dois
lados. Eles eram conhecidos por favorecer Tranavia simplesmente
por causa do clima mais quente. Era raro achar uma criatura do
deserto tropeçando por vontade própria pela neve de Kalyazin.
Ele falou um conjunto de palavras fluidas que ela não entendia. A
sua postura era lânguida, como se ele tivesse sido quase
despedaçado por magos de sangue. A lâmina contra a garganta de
Nadya pressionou mais forte. Uma voz mais fria o respondeu, a
língua estrangeira arranhou desconfortavelmente nos ouvidos dela.
Nadya conhecia apenas as três linguagens primárias de Kalyazin e
Tranaviano intermediário. Se ela não fosse capaz de se comunicar
com eles...
O garoto disse outra coisa e Nadya ouviu a garota suspirar antes
da lâmina recuar.
— O que uma pequena assassina Kalyazi está fazendo no meio
das montanhas? — Ele perguntou, trocando para um Kalyazi
perfeito.
Nadya estava muito ciente da amiga do garoto atrás dela.
— Eu poderia perguntar o mesmo para você.
Ela trocou o feitiço de Bozidarka, aguçando ainda mais sua visão.
O garoto tinha pele da cor de bronze derretido e cabelos longos tão
escuros quanto a noite ao redor deles. Havia correntes douradas
presas em seus cachos soltos.
Ele sorriu.
Um baque soou por perto, assustando ele, mas era o som
reconhecível de alguém batendo o rosto contra uma árvore. O
xingamento abafado de Anna seguiu. Nadya revirou os olhos e
mandou uma desculpa aos céus. As estrelas e a lua reacenderam no
céu, fazendo o mundo parecer três vezes mais claro.
— Vamos ouvir profecias sobre o fim do mundo pelos próximos
vinte anos! — Anna exclamou. Ela tinha sua venyiashk empunhada,
o olhar atento enquanto espiava por cima do ombro de Nadya.
Nadya se abaixou, afundando sua voryen ensanguentada na neve.
Ela olhou para o garoto Akolano, levantando as mãos enquanto ela
ficava de pé. Era necessário a cautela, eles estavam no meio de uma
zona de guerra, mas ela tinha acabado de salvar suas vidas. Ele a
estudou antes de soltar o aperto na besta.
Ela olhou para trás e viu uma garota Akolana alta embainhando
sua adaga curvada. O cabelo grosso e escuro caía em ondas por seus
ombros, e ela usava roupas Kalyazi velhas e desgastadas, mas seu
piercing dourado no nariz brilhava ao luar.
Quando Nadya se virou para lançar a Anna um olhar mordaz, a
sacerdotisa suspirou e baixou sua lâmina também.
— Quem são vocês? — Nadya perguntou.
O garoto a ignorou.
— Você fez isso? — Ele perguntou, apontando para o céu.
— Não seja ridículo. — ela vociferou.
— Ridículo, é o que você diz. Meu nome é Rashid Khajouti, e
minha companheira adorável...
— Pode falar por si própria. — a garota Akolana disse, soando
divertida. Sua mão não pairava perto do punho da adaga mais, e ela
se moveu para longe de Nadya para mostrar que não demonstrava
perigo. — Meu nome é Parijahan Siroosi. Eu suponho que
deveríamos estar te agradecendo, e não ameaçando. — Ela olhou
para Rashid. — Havia mais Tranavianos do que pensávamos.
Independentemente disso, eles fizeram um trabalho rápido com
os soldados. O olhar de Nadya pousou em uma besta caída que antes
pertencia a um soldado Tranaviano, perto do pé dela. Ela pegou. A
imagem de Kostya apareceu em sua mente. Foi preciso muito
esforço para não destruir aquela arma em pedaços.
— Porque dois Akolanos estavam planejando derrubar um grupo
inteiro de Tranavianos no meio da noite? — Ela perguntou, correndo
seus dedos pela madeira da besta, tentando afastar a imagem de seu
amigo morto.
— Eu poderia perguntar o mesmo. — Parijahan disse.
— Nós temos uma razão clara e óbvia para estarmos matando
Tranavianos, em geral. — Nadya apontou.
Rashid riu. Parijahan lhe lançou um olhar e ele ficou em silêncio.
Algo estava estranho, mas Nadya não conseguia dizer o quê. O
jeito que os Akolanos relaxaram depois de inicialmente serem tão
agressivos, a quietude do ar noturno em volta deles, as peças não
estavam se encaixando.
Horz.
— Sim, querida?
— Aqueles não eram todos os Tranavianos, eram?
— Pensei que você soubesse.
Ela preparou a besta para colocar a flecha e apontou para o garoto
Akolano. Anna se moveu no mesmo instante, a sua venyiashk
apontada contra o pescoço de Parijahan. Não tinha como ela saber a
razão da defesa súbita de Nadya, mas confiava em Nadya o
suficiente para se mover sem questionar.
Era o tipo de confiança cega que deixava Nadya desconfortável.
— Você é a nossa voz para o povo, querida — Disse Horz. — Você
terá que se acostumar com adoração cega.
— Há mais Tranavianos por perto. — Nadya disse a Anna.
Os Akolanos trocaram um olhar consciente. Tinha mais alguma
coisa acontecendo aqui.
Porém, antes que ela pudesse pensar no que fazer, Rashid
levantou sua besta e atirou.
Ela se esquivou instintivamente, em uma tentativa de fazer a
flecha acertar seu ombro ou seu braço, um lugar menos mortal que
o coração.
Mas ela ouviu o barulho da flecha acertando carne e um choro
estrangulado e a levou alguns segundos dolorosos para perceber o
que tinha acontecido. Não foi ela. Ela não tinha sido acertada.
— Você errou. — Uma nova voz falou, uma rica com sotaque
Tranaviano pesado.
Um calafrio percorreu a espinha de Nadya. Palavras Tranavianas
do lado de fora das paredes de uma caverna escura enquanto sua
casa queimava acima. Era a mesma voz? Parecia a mesma. A mesma
melodia cadenciada – mesmo que as palavras fossem em Kalyazi
dessa vez – e uma presença distinta de autoridade.
Como o príncipe já tinha as alcançado? Era tarde demais, estava
tudo acabado.
Ela se virou.
Havia um soldado Tranaviano de joelhos na neve, uma flecha de
besta saindo de seu ombro. Seu rosto estava inexpressivo, os olhos
vidrados. Atrás dele estava um garoto alto e magro, com feições
afiadas e selvagens e cabelo preto longo. As mãos do garoto estavam
cobertas de sangue, a página de um livro de feitiços em uma, a outra
estava estendida para o soldado na neve.
— Eu venho e encontro o único que você deixou escapar e você
nem tem a decência de matá-lo — o garoto disse, e exclamou com
desaprovação para Rashid.
Seus dedos se contorceram levemente, e qualquer feitiço que ele
tinha lançado no soldado mudou e o homem caiu no chão, morto.
Ele largou a página e usou a neve para limpar o sangue das mãos.
Não era o príncipe. Nadya queria ficar aliviada – talvez porque
isso significasse que ela estava a salvo – mas ela havia sentido a
onda de poder quando o garoto lançou sua magia. Era forte. Mais
forte do que o poder que ela sentiu do príncipe Tranaviano durante
o ataque.
— Nós poderíamos ter tirado algumas informações dele. —
Parijahan falou, então simplesmente se moveu para longe da lâmina
de Anna.
Anna olhou desesperada para Nadya, mas ela apenas encolheu os
ombros, igualmente aturdida. O único Tranaviano que ela sentia por
perto era o mago, mas ele claramente conhecia os Akolanos.
Elas precisavam ir embora. Essa comoção estava acontecendo
perigosamente perto do mosteiro, do príncipe. Nadya viu sua chance
quando Rashid começou a coletar os pertences dos soldados. Mas o
garoto Tranaviano deu um passo para perto e ela congelou, de
repente consciente que a situação tinha mudado de benigna para
mortal em poucos segundos.
O jeito que ele olhou para ela era de uma maneira muito
perspicaz, muito focada. Mesmo na escuridão, Nadya podia ver que
seus olhos eram de um tom pálido de azul, quase como se não
tivessem cor alguma. Ele era o segundo Tranaviano com olhos da
cor de gelo que ela tinha visto em poucos dias.
Seu olhar foi para Anna, mas depois retornou para ela.
— Nomes? — Ele perguntou.
Parijahan balançou a cabeça.
— Nós educadamente demos nossos nomes, mas eu suponho que
Kalyazi não aprecia bons modos — disse Rashid.
Um sorriso surgiu no rosto do Tranaviano, levemente feroz. Seus
dentes caninos eram estranhamente afiados; tudo sobre ele era
afiado do modo mais enervante. Haviam três linhas verticais
tatuadas na sua testa com tinta preta, terminando na ponte de seu
nariz reto.
— Espertas.
Nadya estava começando a perceber seu erro em não ter usado a
oportunidade anterior para correr. Haviam apenas três deles, e
nenhum podia ser muito mais velhos do que ela, mas tinha algo de
estranho no Tranaviano. Ela não conseguia nomear, mas sabia –
intrinsecamente – que ele não hesitaria em matá-la se ela desse
qualquer indicação de hostilidade.
Ele a entregaria direto para o príncipe? Ou ele mataria ela aqui e
levaria qual fosse o poder guardado em seu sangue para si?
Ela pode ter falhado em proteger o mosteiro, mas morreria antes
de cair nas mãos de um Tranaviano.
Ele se aproximou mais. Ela congelou, todos os pensamentos de
heroísmo escapando de sua mente. Ela não sabia se conseguiria
lutar com esse garoto se chegasse a esse ponto, e talvez, esperar
para ver o que irá acontecer, a levaria ao outro lado viva. Ele pegou
seu cordão de contas de oração em um mão. Um sibilo de
descontentamento escapou dos lábios de Nadya. Ninguém tocava
nas suas contas além dela.
— Vocês duas vieram do mosteiro, sim? — Seu Kalyazi era quase
perfeito se não fosse pelo estalante sotaque Tranaviano que
fortalecia suas palavras. Dobrando suas consoantes em submissão.
A resposta era muito óbvia para negar. Ela lutou contra a vontade
de recuar porque ele estava muito perto. Esse garoto era um herege,
ele profanava os deuses e usava magia de sangue. O ar ao redor dele
estava grosso com erroneidade.
— Então, qual de vocês tem magia? — Sua voz abaixou.
— Kalyazi não tem magia. — Anna disse, um segundo rápido
demais.
O garoto lhe deu um olhar astuto antes de voltar para Nadya.
— É você.
— Não seja ridículo. — ela disse, mas sua voz traidora
estremeceu. Cada momento que ficavam paradas aqui, em céu
aberto, era mais uma chance do príncipe alcançá-las. Talvez fosse
exatamente isso que ele queria. Talvez ele estivesse apenas
enrolando.
Ele sorriu, sua expressão perigosa, arrepiante e muito
apreciadora. Ele estendeu a mão e pegou a de Nadya, pressionando-
a em seus lábios como se ele fosse um membro da corte e não um
mago de sangue renegado no meio de um território inimigo.
— Meu nome é Malachiasz Czechowicz. — ele disse, e ela não
conseguia se livrar do sentimento de que algo havia sido entregue a
ela. Algo que ela não pediu e que nunca poderia se imaginar
querendo.
Ela não deu seu nome e ele largou sua mão.
O que foi isso?
Nadya decidiu ignorar, rangendo seus dentes e lutando contra a
vontade de recuar.
— Nós precisamos sair daqui. — Anna disse, se movendo para
mais perto de Nadya.
Ela assentiu, e se abaixou, pegando sua voryen com cuidado e a
embainhando, consciente do jeito que Malachiasz ficou tenso.
— O perigo passou, e nós ainda não terminamos nossas
introduções. — Rashid disse mordazmente.
Nadya não via razão em mentir.
— Tem um príncipe atrás de nós e quanto mais tempo gastamos
aqui, mais próximo ele fica. Nós pensamos que o grupo que vocês
observavam, era o mesmo grupo dele, mas parecia que eles estavam
apenas perdidos. Nós vamos continuar agora antes que ele tenha a
chance de nos alcançar.
Os olhos de Rashid se estreitaram. A cabeça de Malachiasz se
inclinou para o lado, sua mão se levantando para descansar no livro
de feitiços no seu quadril.
— Príncipe? Os Tranavianos têm tantos príncipes quanto vocês,
Kalyazis. Você terá que ser mais específica. — Rashid disse
preguiçosamente, mas sua expressão se franziu em alarme.
— O Príncipe Herdeiro. — Anna vociferou.
Parijahan olhou para Malachiasz.
— O Príncipe Herdeiro está tão longe assim em Kalyazin?
Eles não sabem, Nadya percebeu, uma sensação tonta de alívio
correndo por ela. O Tranaviano era um problema, mas ele não fazia
parte do grupo do príncipe.
— O mosteiro queimou ontem. — Nadya disse, tropeçando nas
palavras. Era muito cedo.
Parijahan empurrou Malachiaz para fora do caminho.
— Então vocês precisam de um lugar seguro para esperarem ele ir
embora?
Nadya piscou.
— O quê?
— Parj... — Malachiasz disse, sua voz em um aviso.
Ela o ignorou.
— Venham conosco. — ela disse seriamente. — Nós podemos
manter vocês a salvo do príncipe.
O olhar de Nadya desviou para Malachiasz. Parijahan fez a
mesma coisa.
— Ele não irá te machucar. — Teria sido mais tranquilizador se
ela soasse confiante.
— Eu não prometo nada. — ele murmurou.
— Eu não quero ter nada a ver com qualquer Tranaviano — Nadya
disse. — A não ser matá-los.
— Sim, eu posso ver isso — Malachiasz disse. Ele cutucou um dos
soldados mortos com a ponta de sua bota. — Uma habilidade
admirável. Ela não vai aceitar sua oferta, Parijahan. Nós deveríamos
ir.
— O verdadeiro Príncipe Herdeiro está por perto? — Rashid
perguntou.
— Sangue e osso, eu deveria ter deixado vocês dois naquela
sarjeta — Malachiasz vociferou. Ele se curvou e pegou um livro de
feitiços de um dos soldados mortos, então caminhou até as árvores.
Rashid deu de ombros para Parijahan e foi atrás dele. Parijahan
observou os garotos desaparecerem.
— Tecnicamente — ela disse de um jeito conspiratório para Nadya
— ele teria sido morto por soldados Kalyazis se não tivéssemos
aparecido. Mas Rashid realmente ficou inconsciente em uma
sarjeta.
Nadya sentia como se fosse explodir com nervosismos. O máximo
que ela e Anna podiam fazer era andar mais alguns quilômetros
pelas montanhas e torcer para que o Príncipe Herdeiro não
conseguisse alcançá-las.
— Você pode mesmo nos manter a salvo? — Ela perguntou
enquanto Parijahan se virou novamente. Nadya não gostava do
pensamento de estar em qualquer lugar perto do mago de sangue,
mas se havia bandos dispersos de soldados Tranavianos tão dentro
da montanha, elas poderiam encontrar outros e não serem tão
sortudas. Nadya não queria pensar no que isso significava para os
esforços de guerra.
Parijahan assentiu.
— Tem uma igreja abandonada aqui perto. Nós achamos algumas
semanas atrás e a transformamos em algo quase habitável. Pode
cair ao redor de nossas orelhas a qualquer segundo, mas pelo menos
é quente.
Anna soltou uma respiração afiada. Nadya olhou para ela, mas
Anna apenas balançou a cabeça.
— E você está fazendo isso… porquê? Você acabou de colocar uma
adaga no meu pescoço.
— Sim, mas estava muito escuro. E você nos ajudou. Eu tenho
um hábito ruim de acolher aqueles que me ajudam. — ela sorriu
ironicamente, mas a expressão dela estava muito séria quando
olhou para o céu.
Era óbvio que ela sabia que Nadya tinha lançado a magia. Não
fazia sentido esconder isso. Usar seus poderes era inevitável, e no
minuto que ela usasse, as pessoas saberiam que Kalyazin tinha
clérigos novamente depois de trinta anos de ausência.
Uma clériga, pelo menos.
Parijahan esfregou o punho de sua adaga.
— Acho que você pode nos ajudar a fazer o impossível.
Cinco: Serefin Meleski

Svoyatovo Radmila, Nymphadora e Agrippa Martyvsheva:


trigêmeas abençoadas pelo deus Vaclav, as Martyvshevas viviam
no meio da escura Floresta Chernayevsky em quieta comunhão
com seu patrono até que o herege Sergiusz Konicki invadiu.
Quando ele tentou forçar as Martyvshevas a renunciarem seu
patrono, elas resistiram. Konicki matou Nymphadora e Agrippa, as
queimando junto com metade da Floresta Chernayevsky. Radmila
escapou para a segurança, passou sete anos em contemplação com
Vaclav, então caçou Konicki e queimou ele vivo como ele fez com
suas irmãs.
—O LIVRO DOS SANTOS DE VASILIEV

Na manhã seguinte, Serefin acordou com uma ressaca furiosa e um


prisioneiro para interrogar. Era cedo, antes do amanhecer, e ele
estava deitado em um pallet duro como pedra, encarando o teto e
contemplando seu destino.
Se eles achassem a clériga em alguns dias – e ele tinha certeza
que iriam – significaria um retorno rápido para Tranavia. Fazia anos
desde que ele esteve em Tranavia por mais tempo do que alguns
meses. A guerra era tudo que ele tinha.
Ele não tinha certeza se lembrava de como ser o Príncipe
Herdeiro, em vez do general mago de sangue no comando do
exército.
Serefin se sentou e foi recompensado por uma dor de cabeça
martelando sua têmpora. Ele gemeu, passando uma mão pelo
cabelo. Ele vestiu seu casaco e tentou ignorar o fato de que sua boca
estava seca como se tivesse mastigado areia do deserto a noite toda.
Ele abriu a porta e encontrou seu grupo inteiro em pânico.
— Vossa Alteza, eu já estava indo te acordar. — Ostyia falou.
Ele piscou para o par de soldados gritando no hall atrás dela,
berrando coisas como: é o fim do mundo.
— Eu vou voltar para a cama. — ele disse. Ele já teve o suficiente
desse país ridículo e sua religião ridícula, e talvez o fim do mundo ia
parar com a dor de cabeça ofuscante que ele adquiriu.
— Serefin!
— Ah, grite um pouco mais, Ostyia, por favor.
Ele se virou, imediatamente se arrependendo do movimento
quando a sala girou. Ele colocou uma mão no rosto, se encostando
no batente da porta.
Ela estava lutando contra um sorriso. Ele ia matá-la.
— Você quer que eu pegue alguma coisa para essa ressaca? — ela
perguntou docemente.
— Não... Sim, água, só água. — Ele acenou com a mão. Isso não
era justo. Ele tinha certeza de que ela havia bebido mais que ele na
noite anterior. — Então que alguém me diga o que está acontecendo.
— Ele descansou sua testa contra as pedras, frias contra sua pele.
Ostyia retornou alguns momentos depois, entregando a ele um
odre cheio de água. Não ajudou. Ele manteve uma mão pressionada
contra sua têmpora enquanto sinalizava para ela atualizá-lo.
— Em algum momento, perto de três da manhã, tudo no céu
apagou.
Ele se encolheu quando levantou uma sobrancelha. Por que fazer
isso doeu?
— O que isso deveria significar?
— Significa que, por cerca de quinze minutos ontem a noite, o
mundo inteiro ficou escuro.
Os olhos de Serefin se estreitaram.
— Além disso, a patrulha que mandamos na direção das garotas
Kalyazi não retornaram. — Ostyia continuou. — Você tem permissão
para matar pessoas se você é a mão dos divinos?
Ele ignorou isso.
— Eu deveria ordenar para o resto do grupo ir embora? Nós
podemos mandá-los na frente.
Ele considerou a sugestão dela.
— Segure essa ordem. — Ele queria mandar o resto do grupo com
Teodore enquanto ele procurava a clériga.
— Você está dando a ela tempo para fugir.
— Eu ainda tenho a trilha dela. Eu preciso de algo mais para
segurar o feitiço. Nós vamos conseguir isso, agora.
Serefin seguiu Ostyia pelos corredores esparsos e frios do
mosteiro para dentro do santuário opulento. Ele não entendia
porque tanto dinheiro era gasto criando alguma coisa para deuses
que nem ligavam, mas ele ainda podia apreciar a beleza pelo que
era.
Bancos feitos de uma rara madeira preta estavam alinhados no
santuário, com pequenas estátuas esculpidas no final de cada um. O
altar era imenso, alcançando o teto abobadado que era feito de ouro,
madeira preta e prata. As fileiras de deuses Kalyazi estavam nas
laterias, na camada mais alta não havia deuses, mas sim palavras
em uma língua antiga que Serefin não conseguia entender. As
camadas do primeiro ao terceiro nível mostravam os deuses em
formas mais humanas: majestosos, lindos, terríveis.
Serefin parou na soleira da porta, olhando o teto. Pinturas de
santos com auréolas e florestas se estendiam nele. Ícones estavam
pintados nas paredes do santuário, representações de mais deuses.
Como um país poderia ter criado tantos para essa suposta
santidade?
Luz filtrava pelo vidro limpo – Serefin estava surpreso ao ver que
não era vidro sujo como nas capelas abandonadas em Tranavia.
Ostyia estava o observando e ele se virou para ela, revirando os
olhos ironicamente.
— Nós poderíamos ganhar muito dinheiro com esse ouro. — ele
notou.
— Só se você quiser carregar para Tranavia você mesmo. — ela
disse.
Eventualmente, teremos que achar novas maneiras de financiar
essa guerra, Serefin pensou. O exército havia saqueado as igrejas
Kalyazi perto da fronteira, mas qualquer coisa mais longe que isso
era muito difícil de transportar. Serefin se perguntou se poderia
encontrar uma forma de levar toda essa riqueza para Tranavia. Pelo
menos lá esse ouro teria alguma função além de juntar poeira em
tributo ao ar vazio.
Por que desperdiçar todo esse dinheiro e tempo em serviço a
deuses que nem sabem que você existe? Ele nunca entenderia os
Kalyazi e essa devoção por uma coisa do passado.
O futuro era magia, era poder, era a humanidade saindo das
sombras e descobrindo o mundo que era mantido no escuro pelos
deuses. Nem mesmo os deuses, mas regras e rigores mantidos por
homens da igreja. É claro, a guerra era sobre mais do que apenas
religião – tinha um pedaço de terra entre Tranavia e Kalyazin que os
dois países clamavam. E haviam outras questões menores que se
agravaram durante o século que a guerra tem se estendido.
— O abade lhe deu alguma coisa? — Ostyia perguntou enquanto
eles se aproximavam da porta da sala onde o jovem monge estava
preso.
— Um homem velho contente em falar apenas em charadas.
Estou querendo executá-lo. — Remover o líder iria garantir que os
prisioneiros permanecessem calmos. Ele tinha usado essa tática
antes com os Kalyazi. Sempre funcionava. Porém, ele nunca tinha
feito isso com as pessoas da igreja; ele estava hesitante em fazer
qualquer coisa que transformasse um deles em um mártir. Os
Kalyazi amavam um mártir.
Ele parou na porta, impedindo Ostyia de abri-la. Ela lançou um
olhar para ele que era muito conhecedor.
— Se você não quiser, eu fico mais do que feliz em fazer isso por
você. — ela disse.
Serefin balançou a cabeça. Não importava que ele estava cansado
de torturar prisioneiros, cansado dessa excursão.
— Não, eu vou fazer isso. — Ele deu a ela um sorriso fraco. —
Além do mais, pode ser divertido, não é mesmo?
Ostyia abriu a porta com um chute. Levava a um cômodo quase
idêntico ao que Serefin tinha dormido. O garoto Kalyazi estava
sentado em uma cadeira de madeira com seus pulsos amarrados nas
costas, a posição puxando seus ombros sobre a cadeira. Alguém
tinha cuidado dos ferimentos causados pela flecha na perna e no
torso, Serefin notou. Isso era bom. Ele não queria que o garoto
ficasse sangrando enquanto tentava tirar respostas dele.
— Nós poderíamos evitar todo esse desprazer, sabe. — o garoto
disse em um Tranaviano razoavelmente suave. Ele obviamente deve
ter aprendido Grazni, uma linguagem mais áspera derivada da
língua-mãe. — Tenho certeza que você não quer manchar esse
casaco bonito.
Serefin levantou uma sobrancelha.
— Zhe ven’ya? — Seu casaco era bonito.
O garoto ficou surpreso ao ouvir seu idioma saindo da boca do
Príncipe Herdeiro de Tranavia. Seu cabelo escuro estava cortado
rente à cabeça; três linhas diagonais estavam raspadas no lado. Seu
robe parecia fino demais para mantê-lo aquecido, mas Serefin supôs
que um monge Kalyazi aprecia a dor.
— Você irá me perguntar para onde nossas irmãs perdidas foram.
Eu irei dizer que não faço ideia. Você irá me matar, fim de história.
— Essa não foi uma história particularmente boa. — Serefin disse
enquanto movia uma cadeira pelo cômodo, a colocando em frente
ao garoto. Ele a virou e se sentou nela ao contrário, inclinando seus
antebraços no encosto da cadeira. — A ação crescente não fez nada
para o clímax, tudo ficou a desejar na resolução.
— Tranavianos não gostam de histórias. Eles estão muito
ocupados escrevendo blasfêmias para usar em magia sacrificial.
— Ah, isso não é verdade. — Serefin olhou para Ostyia, que
balançou a cabeça, parecendo consternada com a acusação. — Que
rumor malicioso. — Ele ficou em silêncio. O garoto encarou de volta
estoicamente, mas sua expressão oscilou. Ele finalmente estava
dando uma boa olhada nos olhos e na cicatriz de Serefin. — Qual é o
seu nome?
O garoto piscou.
— Konstantin.
— Bem, Konstantin, você está certo, eu gostaria que você me
falasse para onde sua pequena acólita fugiu.
Konstantin se inclinou para frente o máximo que seus braços
presos permitiam.
— E eu gostaria de falar para você enfiar esse livro de feitiços na
sua bunda.
Ostyia deu um passo para frente, mas Serefin levantou uma mão
para pará-la. Ele sorriu e pegou o livro de feitiços no quadril.
— Esse aqui? — Ele levantou o livro.
— Esse mesmo.
— Hum. — Serefin abriu o livro e o folheou. — Não é o jeito
apropriado de usá-lo. — Sua outra mão moveu a manga do seu
casaco para baixo, o polegar pressionando gentilmente contra a
lâmina costurada no punho. Só um pouco mais de pressão faria a
lâmina cortar sua pele e derramar o sangue que ele precisava. —
Você e eu sabemos que te vi protegendo a clériga antes dela
desaparecer. Pra onde ela foi?
— Quem?
— Confusão fingida é mesmo muito pitoresco. Qual é o nome da
garota?
Konstantin o encarou com um silêncio pesado. Serefin não
esperava que ele respondesse. Iria precisar de encorajamento. Ele
precisava do nome dela para elucidar o feitiço. Serefin pressionou
seu dedo na lâmina da manga. Ele quase não sentiu a lâmina cortar
sua pele. Os olhos de Konstantin se arregalaram quando Serefin
levou seu dedo sangrando até uma das páginas do livro de feitiço e o
pressionou nela.
— Não. É claro que você não saberia disso.
Sua magia o sacudiu, apenas uma vez, enquanto o sangue acendia
com o que estava escrito nas páginas. Konstantin ficou rígido, a veia
pulsando no pescoço mostrando seu medo. Suor escorreu de sua
testa e Serefin assistiu com interesse velado quando sangue
começou a escorrer dos cantos dos olhos dele. Ele estava queimando
o garoto de dentro para fora. Depois de alguns segundos – o que
deve ter parecido anos para o Kalyazi – Serefin quebrou o feitiço.
Konstantin caiu para trás na sua cadeira, ofegando por ar.
— Ainda nada? — Serefin perguntou agradavelmente.
Konstantin cuspiu nos seus pés, saliva ensanguentada espirrando
nas botas de Serefin. Serefin olhou com desgosto.
— Eu sabia que isso ia acontecer, mas queria tanto evitar. — Ele
suspirou, acenando para Ostyia, que rapidamente saiu do cômodo. O
outro garoto encarou Serefin com confusão, sangue agora
escorrendo do nariz.
Não demorou para Ostyia retornar e Serefin manteve seu olhar
firme no garoto Kalyazi enquanto pânico transformava sua
expressão. Ostyia trouxe o segundo prisioneiro para a frente,
chutando a parte de trás das suas pernas e o forçando a se ajoelhar.
Serefin finalmente olhou para ver quem Kacper tinha escolhido.
Kacper era um mestre de segredos e informação, descobrir quem ia
quebrar seus prisioneiros mais rápido era sua especialidade.
O garoto parecia ter quinze anos, com uma semelhança sutil com
Konstantin, seus olhos arregalados de medo. Ele os manteve
olhando para frente, encarando a parede. Ostyia pegou suas adagas e
as segurou na garganta do garoto. Serefin virou sua cabeça devagar,
sua atenção retornando a Konstantin.
— Vamos tentar isso novamente? Me diga o nome da garota e
para onde ela foi.
Konstantin flexionou sua mandíbula até mesmo quando seu
olhar foi para o garoto mais novo; sua expressão se suavizou, mas
Serefin podia ver que eles não o tinham ainda.
— Parece que eu tenho que ser mais convincente — Serefin disse.
Seu dedo ainda sangrava então ele rasgou outra página do livro de
feitiços.
Medo se gravou no rosto de Konstantin quando Serefin inclinou
seu queixo no antebraço e inclinou sua cabeça em direção ao garoto
mais novo. O feitiço pegou e o garoto teve espasmos em dor
silenciosa, lágrimas escorrendo pelo rosto. Serefin estava
impressionado em ver sua graça estóica diante da agonia.
— Não! — Konstantin se mexeu contra as amarras nos braços. —
Não o machuque! N-não o machuque!
— Ah? Eu deveria parar? — Serefin moveu o feitiço, fazendo o
garoto choramingar.
Resignação e um pouco de angústia passou pelo rosto de
Konstantin.
— Nadezhda. O nome dela é Nadezhda.
— Nome completo, por favor? — Serefin pegou uma adaga de
Ostyia da bainha presa no seu quadril. Ele começou a limpar
debaixo da unha com a ponta da lâmina.
— Lapteva. Nadezhda Lapteva.
Serefin teve que esconder um sorriso. Agora ele a tinha.
— E a outra garota?
— Anna Vadimovna. Eu.... Eu não sei para onde elas foram. Tem
inúmeros esconderijos na área. Elas devem ter escolhido um deles.
Serefin viu o garoto estremecer, a agonia da traição e entrega de
informação o quebrando. Engraçado. Pelo que ele sabia, era uma
informação bem insignificante. Ter inúmeros esconderijos não era
surpresa. Ele teria que vasculhar a área completamente. Também
havia a questão de um certo incidente de fim-do-mundo que Serefin
gostaria de respostas sobre.
— Ela é poderosa o suficiente para apagar as estrelas do céu?
A cabeça do garoto se levantou e Serefin estava um pouco
enjoado ao ver algo que parecia como esperança atravessando seu
rosto.
— Não, mas os deuses são.
Serefin bufou suavemente.
— Ah sim, é claro.
Ele se levantou.
— Obrigado, Konstantin, pelo seu tempo. — Ele arrancou uma
terceira página do livro de feitiços e a amassou em suas mãos.
Ostyia deu um passo para trás quando o jovem garoto caiu,
morto.
Serefin saiu assim que o choque do monge Kalyazi começou a se
dissipar – e os gritos de raiva começaram.
Ostyia fechou a porta, abafando os sons.
— Eu vou mandar alguém remover o corpo — ela disse.
— Obrigado. — Serefin olhou para Ostyia. — Eu vou ter que pedir
para você me convencer a não ficar bêbado novamente.
— Qualquer coisa para você, Serefin.
Eles entraram no santuário e Serefin parou em frente ao altar
ornado. Ele passou o dedo levemente sobre uma floresta esculpida
que cobria o topo.
Dor foi subitamente lançada em seu crânio como se estacas
estivessem sido empurradas através de seus olhos. Ele apertou sua
cabeça com uma mão, os dedos procurando o livro de feitiços e a
lâmina. Ele caiu no chão.
— Serefin! — Ostyia gritou, ficando de joelhos.
Ele levantou a mão. A dor já se dissipando, vazando como um
riacho escorrendo. Ele se recostou, expirando profundamente.
— O que foi isso?
Na sua cabeça, ele justificou que foi todas as trilhas de magia que
mantinha ativas. O feitiço que ele lançou para rastrear a clériga
havia sido rompido. Ele lutou por isso, seu dedo indicador
deslizando pela lâmina na sua manga, mas mesmo com sangue
fresco ele não conseguia reconectar. Ele tinha o nome dela, mas não
iria adiantar se perdesse a trilha.
Ela tinha achado seu feitiço, rompido, e impedido ele de
reconectar. E na última noite ela tinha apagado as estrelas do céu.
Ela era mais poderosa do que ele pensava.
Ele tinha que achá-la. E pegar o poder dela para si mesmo.
— Coloque Teodore para comandar o grupo. — Serefin disse
devagar. — Você, Kacper, e eu vamos atrás da garota. Agora.
Seis: Nadezhda Lapteva

Apesar de Bozetjeh ser o deus do vento, ele era considerado como a


essência da velocidade e do tempo. Ele estava em todo lugar e em
lugar nenhum de uma vez.
—O CÓDEX DO DIVINO, 10:114

Suor se acumulava nas têmporas de Nadya, mas alívio a inundou


quando o feitiço do príncipe foi rompido. Ela respirou fundo, a
sensação estranha de que algo estava errado a deixando.
Mais na frente, o garoto Tranaviano parou. Ele olhou para ela,
uma carranca vincando as tatuagens na sua testa.
Ele não deveria poder sentir isso, Nadya pensou.
— Não... Ele não deveria. — Marzenya concordou. Ela soava
curiosa. — Você vai se livrar dele logo, certo?
Ele é Tranaviano, Nadya respondeu. A resposta era óbvia.
Nadya ficou desconcertada quando Marzenya teve que contar a
ela que o príncipe estava rastreando cada movimento, que ela não
havia sentido nem um traço da sua magia de sangue. Ainda havia
muitas coisas que Nadya não sabia fazer sozinha.
Depois de Parijahan oferecer um lugar para se esconderem, elas
tinham rapidamente alcançado os dois garotos. Rashid sorriu para
Nadya, enquanto Malachiasz apenas a olhou silenciosamente antes
de se virar.
Eles chegaram em uma igreja grande e prestes a desmoronar que
se espalhava por um vale. Parecia que quem quer que tivesse
construído, planejava que ela rivalizasse com a Igreja de Adrian, o
Mártir de Khavirsk, mas se distraiu. Era feita inteiramente de
madeira – até mesmo as cúpulas redondas – e tinha pintura
vermelha inacabada descascando do inferior das paredes. Esculturas
na porta revelavam dedicação a deusa do sol, Alena.
Isso é seu? Nadya perguntou, pegando a conta certa no seu colar.
Ela sentiu diversão na resposta.
— Nunca foi realmente dedicado.
Nadya olhou para a igreja. Ela podia resolver isso. Ela se
perguntou como esses refugiados reagiriam em ter seu espaço
subitamente habitado por uma deusa. Se eles fossem refugiados. Ela
não tinha certeza de qual outra palavra os descreveria, todos os três
estrangeiros e um deles nada mais do que um inimigo.
Rashid abriu a porta com tudo. Estava escuro no vestíbulo, os
tocos de tochas usadas pela metade, apagados em suas arandelas,
apenas um deles ainda queimava. O interior do lugar não se parecia
em nada com uma igreja. Haviam três longos corredores que
estavam completamente escuros, dois de cada lado da entrada, e um
no meio. Nadya assumiu que o do meio se ligava ao santuário – a
igreja teria sido construída em torno de um espaço destinado ao
santuário – mas o resto do lugar claramente tinha sido modificado
em algum momento.
— Já estava assim quando achamos. — Parijahan disse.
O vestíbulo escuro se abria em uma larga e arejada nave central
que foi destruída. Havia pilhas de armas contra uma das paredes,
claramente coletada dos grupos de Tranavianos. No local entrava
uma brisa fria de um buraco no teto, mas tinha fogo queimando em
uma lareira improvisada no fundo do santuário que a intenção
provavelmente era combater o vento. No lado oposto estava uma
pilha de travesseiros e cobertores usados que Rashid imediatamente
se jogou em cima. Ele puxou a besta para seu colo e começou a
examiná-la meticulosamente. Ao lado dele havia uma longa mesa
com bancos que pareciam que foram arrastados das cozinhas da
igreja. Alguns mapas esfarrapados estavam em cima.
A parede entre o centro e o santuário havia sido demolida e a
única coisa que sobrava do espaço original era a imagem de Alena
que estava em cima da lareira – onde deveria estar o altar. Era uma
peça linda. Deveria valer milhares de kopecks. Anna arregalou os
olhos para Nadya.
A imagem foi construída pela iconógrafa mais amada de Kalyazin,
Probka Vilenova. Ela era uma santa agora, martirizada pelos
Tranavianos. Seus dedos foram cortados e seus olhos arrancados
antes deles amarrarem pedras em seus tornozelos e a afogar em um
de seus milhares de lagos. Esses três provavelmente não faziam
ideia de quão valiosa aquela imagem era.
— Vocês têm certeza de que isso é seguro? — Anna perguntou. —
Parece… chamar muita atenção.
— Parecia que tinha alguém aqui do lado de fora? — Rashid
perguntou.
Não parecia. De fato, parecia que a igreja tinha sido há muito
tempo esquecida pelo mundo.
— Nós não vamos ficar por muito tempo. — Nadya disse. — Só um
dia ou algo assim. — Ela havia rompido o feitiço do príncipe quando
ainda estavam longe da igreja, então esperava que estivessem a
salvo, mas tinham que continuar andando. Elas tinham que chegar
em Tvir.
— Não? — Rashid perguntou, soando vagamente desapontado. —
Parijahan não explicou a situação?
— Situação? — Anna perguntou.
— Até que elas confiem em nós, nada que eu disser fará alguma
diferença. — Parijahan disse. Ela pulou em cima da mesa. — Mas eu
suponho que saber nossas intenções seria um bom começo. Nós
queremos parar a guerra.
— Ah, algo tão simples e fácil assim? — Nadya perguntou,
soltando uma risada assustada. — Ela está acontecendo há quase
um século, e vocês acreditam que podem para-lá? Você está certa.
Não há confiança aqui.
— Ela tem razão. — Malachiasz disse. Ele se inclinou na mesa ao
lado de Parijahan. — Mas somos nós que temos os hereges nojentos
no meio da nossa terra. Eu acredito que, primeiro, nós temos que
encontrar quem é que tem a magia. — Seus olhos se demoraram em
Nadya, um sorriso se formando nos cantos de seus lábios, antes de
olhar para Anna.
Ele usava o uniforme militar dos magos de sangue Tranavianos,
mas sua jaqueta preta estava esfarrapada, desfiando nas mangas e
na bainha. Havia um remendo costurado no cotovelo e as dragonas
prateadas nos ombros pareciam que tinham visto dias melhores.
Rashid olhou com expectativa para Anna e Nadya.
Nenhum deles falou. Nadya mordeu o lábio inferior. Se o
esquema da igreja fosse tradicional, teria múltiplas saídas. Seria só
uma questão de encontrar a porta certa e o corredor certo e sair.
Mas Nadya não podia deixar que sua reação principal para todas as
situações fosse sempre fugir. Havia uma razão do porque dois
Akolanos e um Tranaviano estavam acampados nas montanhas
Kalyazi. Havia uma razão pela qual estavam falando tão
enigmaticamente, pela qual o Tranaviano parecia tão perturbado.
Tinha uma razão para tudo isso e Nadya tinha que acreditar que os
deuses colocaram esses estrangeiros no caminho dela por um
motivo, qualquer que fosse.
— Eu sempre posso testá-las. — Malachiasz disse.
— Não! — A explosão de Anna fez Nadya pular.
Malachiasz levantou uma sobrancelha. Seus olhos pálidos
deslizaram para Nadya. Um calafrio correu por ela.
Ele sabe que sou eu.
Foi um pensamento extremamente desconfortável.
Malachiasz se afastou da mesa, pegando uma faca curvada de
aparência perversa de uma bainha da parte inferior de suas costas.
Ele a girou entre seus dedos enquanto andava para onde as garotas
estavam.
Sangria para testar magia já era um ato herético, e piora com o
fato de um mago de sangue herege realizar o ato.
O olhar pálido de Malachiasz se prendeu em Nadya.
Ótimo. Se ele tentar me matar pelo meu poder, eu terei que matá-
lo primeiro.
Ele pegou a mão dela, dedos se curvando ao redor do seu pulso. O
calor de seu toque fez a pele de Nadya se arrepiar. Ela viu o lampejo
de prata quando a lâmina se levantou, sentiu a mudança de fogo
para gelo quando o metal tocou a ponta do seu dedo indicador.
— Não. — ela sussurrou. Ela ficou tensa, puxando a mão, mas o
aperto dele era firme, preso em torno dela como um grilhão.
Sem quebrar contato visual, ela pegou sua voryen, usando a mão
dele em volta do pulso dela como alavanca para puxá-lo para mais
perto, colocando a adaga contra sua garganta. Ele ficou tenso,
forçado a inclinar a cabeça para trás para impedir que a lâmina o
cortasse. Um sorriso lento se formou em seus lábios.
— Você já sabe que sou eu. — ela disse com a voz baixa. — Não
pense que eu vou ser cúmplice da sua heresia.
— Suspeita e confirmação são duas coisas diferentes. E heresia é
uma palavra tão feia.
Nadya olhou para Anna. Parecia que a outra garota tinha parado
de respirar. Anna balançou a cabeça, alarmada.
— Bom, eu quero provas — disse Rashid.
A mão de Malachiasz continuava presa no pulso de Nadya e tinha
uma linha fina de sangue escorrendo pelo pescoço pálido dele, um
dano dos nervos não muito constantes de Nadya. Ele moveu a outra
mão, seu movimento cauteloso, e limpou o sangue da sua pele com
polegar.
— Cúmplice em heresia, de fato. — ele murmurou.
Nadya puxou sua adaga.
— As luas apagando não foi o suficiente para você? — Malachiasz
perguntou a Rashid, soltando o punho de Nadya e guardando sua
faca. Ela voltou para o lado de Anna. — Eu estou um pouco curioso
sobre as consequências a longo prazo de um feitiço assim. Qual o
estrago que será feito nas marés por ter cancelado as luas por tanto
tempo?
— Nós estamos há quilômetros de distância de qualquer oceano,
Malachiasz. — Parijahan disse cansada.
— É uma coisa para se pensar.
— Ele é Tranaviano. Eles sempre têm água no cérebro — disse
Rashid. — O país deles está praticamente debaixo d’água.
— Alguns lagos... — Malachiasz disse.
— E pântanos.
— Tantas lagoas! — Disse Parijahan.
— Rodeado por um oceano no Norte e no Leste. — Rashid
continuou. — Porque você acha que sua guerra nunca foi para
Tranavia? Ninguém em Kalyazi sabe nadar. Você sabe nadar? — Ele
perguntou para Nadya.
Ela balançou a cabeça.
— Quando você coloca desse jeito, ser enterrado vivo por neve
parece uma maneira melhor de morrer. — Malachiasz ponderou.
— Eu consigo pensar em mil maneiras melhores para você
morrer. — Anna murmurou.
Ele sorriu, pressionando uma mão contra o coração.
— Certamente todas as mil maneiras serão merecidas.
Parijahan, bastante solene, disse:
— Marés são controladas pela gravidade. Meu povo descobriu isso
séculos atrás.
Malachiasz fez um som indignado e olhou para Rashid, que
assentiu seriamente.
Nadya se perguntou se a conversa inútil deles significava que a
magia dela foi esquecida, mas ela descobriu que não era tão sortuda
quando Rashid apontou para ela.
— Magia.
— O que você irá fazer com a prova?
— Me maravilhar com o fato que um país que perdeu seus magos
e esteve lutando uma guerra contra magos aguentando por pouco
agora finalmente tem uma oportunidade.
Ela olhou para Malachiasz, se perguntando qual seria sua reação,
mas seu rosto estava impassível.
— O que ele irá fazer?
— Ah, ele provavelmente irá querer te matar pelo seu poder. Não
foi assim que todos os seus clérigos morreram, em primeiro lugar?
Malachiasz sorriu.
Nadya deu de ombros. Isso definitivamente tinha relação com o
ocorrido.
— Mas — continuou Rashid, — ele não irá fazer isso. Porque ele
não está no negócio de matar magos Kalyazi.
— Eu poderia estar. — contemplou Malachiasz.
Parijahan revirou os olhos, mas um choque de terror atravessou
Nadya com sua quieta contemplação sobre a morte dela. Os
Akolanos não estavam o levando a sério e ela não conseguia
entender.
Nadya passou a mão pelo seu colar, os dedos pegando as contas
enquanto ela considerava qual feitiço poderia usar, até que ela
pegou a conta de Krsnik. Talvez devesse lidar com isso de forma
simples. Ela já tinha feito algo espalhafatoso.
Uma ajudinha?
Krsnik, um deus velho e ranzinza, resmungou alguma coisa que
aparentemente era uma confirmação porque um feitiço foi entregue
a Nadya logo depois. Ela soprou símbolos esfumaçantes e
cintilantes na palma e sua mão acendeu em flamas.
Parijahan trocou um olhar satisfeito com Rashid. Nadya se
moveu até a mesa e traçou um dedo em chamas por uma página
descartada de um livro de feitiços. Ela pegou o papel e o queimou.
Quando somente cinzas tinham sobrado em sua mão, ela as
depositou na palma do mago de sangue. Ela levantou o olhar para
ele e não tinha certeza do que viu em seus olhos.
Tensão, curiosidade, mas embaixo de tudo isso estava algo mais
sinistro. Algo que fez um arrepio percorrer sua espinha. Fez ela se
perguntar porque um herege foi colocado em seu caminho. Para ela
matá-lo? Qual outra razão poderia ser?
Um sorriso surgiu nos lábios dele, como se pudesse ler os
pensamentos dela do mesmo jeito que os deuses liam.
— Então, qual é a diferença entre você e nosso amigo mago de
sangue? — Rashid perguntou. — Perdoem esse lindo e jovem
estrangeiro por suas perguntas ignorantes.
O mago de sangue em questão se deitou nos travesseiros ao lado
de Rashid, abrindo seu livro de feitiços no colo. Nadya nunca o viu
se cortando, mas as costas de uma mão estava sangrando. Ele usou
uma pena para passar o sangue nas páginas do livro.
— Eu acredito que seu mago está deixando a diferença bem clara
— ela disse. — Sangue. Livro de feitiços. Heresia. Isso é magia
Tranaviana.
Malachiasz sorriu, sem desviar os olhos do seu trabalho.
Ele sorri demais, ela pensou.
— Meu poder é divino. Eu não sou. Não há sangue. Sem livros de
feitiços.
— Só requer aprovação constante dos deuses — disse Malachiasz.
— Sem pressão. Um passo errado e tudo acaba.
— É tão difícil viver de acordo com a vontade dos deuses? Eles
pedem tão pouco. Você não dá a eles nenhum crédito.
Ele balançou a cabeça.
— Tão pouco? — Ele perguntou incrédulo. — Eles pedem até
demais. Porque você acha que Tranavia rompeu com os deuses?
Quem anseia por uma vida ligada ao capricho de outro ser? Nós
queríamos escolher nosso próprio destino.
Nadya revirou os olhos.
— E o seu destino vale a tortura e mutilação de um século de
inocentes para alcançar os meios para sua magia? Centenas e
milhares de pessoas.
A expressão dele estremeceu, mas ele se recuperou tão rápido
que Nadya se questionou se tinha mesmo acontecido.
— Sacrifícios foram feitos por vontade própria. Ninguém é
forçado a fazer os testes.
— Exceto prisioneiros de guerra. — Nadya retrucou.
Ele se inclinou para frente.
— Até prisioneiros de guerra entendiam o bem maior que eles
serviam no final.
— Bem maior? — Nadya gritou, finalmente perdendo sua calma.
— Como você ousa falar de um bem maior, como se seu tipo tivesse
algum direito de fingir que vocês são algo além de hereges e
abominações revoltando-se contra os deuses.
Malachiasz estava sorrindo agora, dentes afiados e perigosos. Ele
inclinou sua cabeça para um lado, fechando seu livro de feitiços. Ele
pegou uma bandagem do bolso e lentamente a envolveu em sua
mão.
— Tudo bem, você venceu. Ela vai ser útil. — ele disse a Rashid.
Nadya não gostou de como isso soava.
— Útil? Vocês irão fazer um experimento em mim também?
Malachiasz se levantou e atravessou o cômodo, até que estava em
pé na frente de Nadya. Ele era muito alto. Ele pegou o queixo dela
em sua mão suja de tinta e sangue e levou seu rosto para perto do
dele.
— Você não seria tão sortuda. — ele disse, sua voz suave, sua
respiração um sussurro contra a bochecha dela.
— Malachiasz... — Parijahan disse.
Ele soltou Nadya, dando um passo para trás.
— Nós podemos mantê-la segura. — ele disse. — O Príncipe
Herdeiro pode estar do lado de fora dessa porta e nem irá perceber
que a igreja está aqui. Eu me certifiquei disso.
— O Príncipe Herdeiro, talvez, mas e os outros horrores
Tranavianos? — Anna retrucou.
Agora foi a vez de Malachiasz ficar imóvel.
— O quê?
— Os monstros que vocês, Tranavianos, deixam sujar as igrejas
que um dia foram sagradas. E eles?
— Os Abutres não se aventuram em campos de guerra — ele
disse, mas sua voz estava tensa. Uma de suas mãos distraidamente
esfregava um antebraço. — Eles não deixam Tranavia em...
— Quase trinta anos. — Nadya disse. — Que engraçado.
Os olhos dele se estreitaram, mas balançou a cabeça, recuando.
Tecidos nos mais sombrios pesadelos dos Kalyazi estavam os
Abutres de Tranavia. Magos de sangue tão perversos devido à magia
herética que não eram mais humanos, nada além do que monstros
violentos. Era verdade, eles não eram vistos em Kalyazin em muito
tempo. Também era verdade que eles foram os pregos finais nos
caixões dos últimos clérigos.
Se eles viessem atrás de Nadya, ela não tinha certeza se podia
escapar tão facilmente.
— Por que vocês nos ajudariam? — Nadya perguntou depois de
alguns momentos de silêncio desconfortável.
— Não somos amigos de Tranavia — disse Parijahan.
Nadya lançou um olhar aguçado para Malachiasz. Ele sorriu para
ela.
— Nós estamos aqui porque os Tranavianos queimaram os
últimos, o quê, três campos de refugiados que achamos? —
Malachiasz disse, se movendo para a mesa e se sentando ao lado de
Parijahan.
— Três campos, dois postos avançados, um acampamento militar
e uma vila — disse Rashid.
— O acampamento militar foi antes do meu tempo. — Malachiasz
disse, respondendo à pergunta que Nadya estava prestes a fazer:
como ele conseguiu entrar em um acampamento militar?
— Novamente, nós queremos que essa guerra termine. —
Parijahan simplesmente disse.
— Não é o todos queremos? — Anna murmurou.
— Sim, bem, manter uma clériga Kalyazi viva faria isso, não é?
Mesmo com nossas ideologias diferentes.
— É um começo. — Nadya concedeu.
— E se nós fossemos além? — Parijahan perguntou. — Os garotos
sempre me dizem para esperar até uma oportunidade surgir, e agora
aqui está você. Então, me diga, o que você acha de assassinar o rei
Tranaviano?
Sete: Serefin Meleski

Svoyatova Alisha Varushkina: uma clériga de Bozidarka e vidente,


as visões de Alisha protegeram Kalyazin de uma revolta nas
províncias ao oeste. Essa proteção não se estendeu a ela. Anos
depois, um príncipe do oeste, Dmitri Zyuganov, queimaria seus
olhos com um atiçador de chamas por interferir em seus planos.
—O LIVRO DOS SANTOS DE VASILIEV

— Vossa Alteza?
Serefin fechou o punho, o reflexo fazendo seu dedo indicador
encostar na lâmina na sua manga. Ele se forçou a relaxar. Estar no
limite não iria ajudar em nada.
— Sim?
Ele ficou aliviado ao ver Kacper logo atrás de Teodore, porém
menos aliviado ao ver que Kacper trazia algo em sua mão que se
parecia com uma carta real. Pavor começou a se enrolar em seu
estômago.
— Você falou com meu pai? — ele perguntou a Teodore.
— Sim, Vossa Alteza. Ele expressou... — ele pausou e Serefin
suspirou, sabendo o que estava por vir — descontentamento com o
resultado do ataque de ontem.
— Bem, ele não estava aqui. — Serefin murmurou.
Teodore não disse nada, e Kacper entregou a carta a Serefin. Ele a
pegou cautelosamente entre dois dedos. O selo era de seu pai. O rei
geralmente mandava mensagens pelos mensageiros em vez de com
magia, em um esforço para mascarar a realidade desapontadora de
que ele não era um mago de sangue tão impressionante. Contato
poderia ser feito por magia de sangue – como Teodore havia feito
na noite passada – mas não era encorajado.
— Isso chegou hoje de manhã? — Ele perguntou.
Kacper assentiu.
Não tinha como saber quanto tempo levou até ela chegar nas
mãos de Serefin. Ele quebrou o selo, examinou a carta, teve certeza
de que sua visão estava finalmente falhando completamente,
examinou novamente, e olhou para Kacper com o cenho franzido
antes de ler mais perto outra vez.
— Meu pai mencionou isso?
— Ele não mencionou. — Teodore disse.
— Nada? Nada mesmo? Nem a menor sugestão de que ele estava
planejando isso há meses sem ao menos me avisar?
— Ajudaria, Ser... Vossa Alteza — disse Kacper, lançando um olhar
irritado a Teodore — se soubéssemos o que é a mensagem?
— Ele quer que eu volte a Tranavia — disse Serefin, entregando a
carta para Kacper e ignorando a expressão escandalizada de
Teodore. — Imediatamente, aparentemente, já que uma Rawalyk
está por vir.
— O quê? — Kacper parecia assustado.
— A cerimônia para escolher um consorte real… — começou
Teodore.
— Eu sei o que uma Rawalyk é.. — disse Kacper, assim que
Serefin se virou para Teodore e disse bruscamente.
— Ele está ciente da tradição.
Teodore lançou para Kacper um olhar sombrio.
— Eu preciso ir atrás da clériga, não tenho tempo para isso —
disse Serefin. — Nós estamos tão próximos de um momento
decisivo com essa guerra, e ele quer que eu largue tudo por essa
charada sem sentido.
— Ele mencionou que os Abutres pediram para se serem enviados
atrás da clériga — disse Teodore.
Serefin passou uma mão pelo cabelo. As sobrancelhas de Kacper
se levantaram.
— Então ele está me retirando do comando e me mandando para
casa. — Serefin disse suavemente.
Teodore não respondeu.
Fazia sentido, é claro, que os Abutres queriam pôr as mãos na
primeira clériga Kalyazi em mais de trinta anos. Havia uma nova
geração no culto, que nunca tinham visto magia Kalyazi. Era lógico.
Mas Serefin odiava a ideia da vitória dele ir para outra pessoa.
Seu pai foi quem mandou Serefin para o front quando ele tinha
apenas dezesseis anos; ele queria um filho herói de guerra então foi
isso que ele conseguiu, e toda bagunça que vinha junto. Não era
justo pedir a ele para interpretar um papel que não estava
acostumado, por uma questão de tradição, quando eles estavam tão
próximos do fim.
Não teria discussão. Não era uma escolha. Serefin sabia disso. Se
ele fosse embora hoje, ele poderia chegar em Grazyk em algumas
semanas, talvez demorasse mais dependendo do que encontrariam
quando se aproximassem da fronteira. Se ele levasse apenas Ostyia
e Kacper com ele, poderia fazer a jornada em menos tempo. Mas
eles estavam atrás das linhas inimigas. Qualquer coisa podia dar
errado.
— Eu vou. — ele começou devagar, cada palavra uma flecha afiada
o perfurando. — Deixo você no comando do grupo. Você irá levar
prisioneiros para Kyętri, certo?
Teodore assentiu.
— Certo. O Tenente Neiborski virá comigo. — ele disse.
Kacper parecia aliviado, como se por um momento ele pensasse
que Serefin o deixaria para trás. Ridículo.
— General Rabalska também, obviamente. Espero que amanhã de
manhã, o mais tardar, você tenha equipado os prisioneiros e os
removidos daqui.
Teodore sabia que estava sendo dispensado. Ele se curvou e
Serefin acenou para ele ir embora. Se ele fosse sortudo, não teria
que ver esse homem novamente por meses.
Ele passou pelos corredores frios e sem adornos até que alcançou
vastas portas de madeira que abriam para o pátio. Enquanto eram
simples atrás, o lado da frente era coberto por esculturas ornadas e
imagens de santos. Seis deles, três em cada porta. Serefin olhou para
eles depois que a porta foi fechada antes de se virar e descer as
escadas para o pátio onde Ostyia estava esperando. Ela estava
empoleirada na parede que levava aos sete mil degraus montanha
abaixo.
Serefin largou sua bolsa no chão e subiu na parede ao lado dela.
Kacper se sentou do outro lado.
— Eu tenho que ir para casa e me casar.
Ostyia teve a decência de estremecer.
— E a clériga?
— Os Abutres irão atrás dela.
— Ela vai estar morta em um dia.
Kacper deu de ombros.
— Eu não desejaria esse destino nem para uma Kalyazi. Você
consegue imaginar? — Ele passou uma mão pelo rosto. — Aquelas
máscaras são aterrorizantes.
Os Abutres eram uma parte complicada da sociedade e da política
Tranaviana. Eles eram a elite dos magos de sangue, uma seita
isolada do resto do reino, vivendo na carcaça escavada de uma
antiga catedral em Grazyk sobre a liderança de um rei próprio, o
Abutre Sombrio, que se sentava no Trono de Carcaça.
Quando Tranavia rompeu com os deuses, os Abutres
preencheram as lacunas deixadas pela igreja. Eles agiam como
queriam, usando a magia como o comando mais alto do que
qualquer rei mortal poderia ser. Os Abutres podiam ter vindo atrás
da clériga sem a permissão do rei, mas Tranavia tinha um equilíbrio
balanceado de poder. Os Abutres eram conselheiros do trono, mas a
autoridade deles se estendia apenas ao reino da magia – o que em
Tranavia era um reino vasto. Eles esgueiravam-se pelo palácio com
suas garras de ferro e vestes rasgadas, mais monstros do que
humanos, mas ainda assim reverenciados.
Por décadas, a imagem da política Tranaviana era que o rei
mantinha os Abutres em uma coleira apertada. Eles tinham que
treinar as crianças reais para usarem a magia como armadura, mas
também para manterem um certo nível de segurança em Grazyk,
mas eles não poderiam deixar Grazyk e nem Kyętri, as duas cidades
que serviam como casa dos líderes do culto.
Eles eram mantidos afastados do front devido a uma infeliz
medida de imprevisibilidade de suas ações que os fizeram mais
passivos do que ativos no campo de batalha. Com isso dito, Serefin
esteve em muitas batalhas que seriam transformadas rapidamente
se tivessem pelo menos um Abutre entre eles. Mas ele nunca pediria
por um. Eles o perturbavam.
Serefin coçou a parte de trás da cabeça enquanto olhava para as
cúpulas arredondadas do mosteiro. Olhar para a pedra
esbranquiçada irritou seu olho ruim.
— Meu pai quer que os prisioneiros sejam levados para as minas
de Kyętri.
— É muita atividade vindo dos Abutres assim tão de repente —
disse Ostyia.
— É estranho, não é?
Um silêncio cai sobre eles. Contemplar as Minas de Sal, onde os
Abutres faziam seus experimentos, não era nem um pouco
agradável.
— Eu não gosto disso. — finalmente Serefin disse.
Ostyia olhou para ele.
— O momento, os Abutres, que meu pai me enviou isso — ele
acenou para a carta ainda em suas mãos — em vez de mandar um
mago me contatar, que consequentemente me deu menos tempo
para voltar para casa. Eu não entendo o que ele está fazendo.
Não era segredo que a relação que Serefin tinha com seu pai era
tensa. Ele não sabia se era medo, aversão ou a simples realidade que
mandar Serefin para a guerra, tão novo, criou uma fenda no
relacionamento deles. O que quer que fosse, o comportamento
instável do rei estava se tornando algo cada vez mais normal, então
Serefin não sabia porque todas essas coisas estranhas convergindo
de uma vez o surpreenderam.
Ostyia lhe deu um olhar incrédulo.
— Ele tem te menosprezado por eras.
— Tem?
Serefin não tinha um momento de descanso em anos. A guerra
no país era um dos motivos, mas toda vez que ele voltava a Grazyk
para lembrar o país de que eles de fato tinham um príncipe, faziam
ele dar meia volta e era mandado de volta para o front. Ele estava
cansado, começando a desfiar nas pontas, como se o toque mais leve
fosse estilhaça-lo. Ele não queria jogar jogos políticos assim que
voltasse para Tranavia, mas esse era seu destino.
Ostyia estava certa, a rachadura estava ficando mais profunda.
Seu pai estava tentado ao máximo encobrir a verdade. Seu filho era
um mago de sangue talentoso, e ele não era. Se ele empurrasse
Serefin para longe, os slavhki na corte nunca iam se lembrar de que
o filho era mais poderoso que o pai.
Serefin pulou da parede, deslizando pela pedra congelada no pátio
antes de se virar e olhar para seus amigos.
— E então? Podemos muito bem fazer um bom show.
— É isso que será? Um show? — Perguntou Ostyia.
— Se é uma Rawalyk, então sim — disse Kacper.
— Dramatismo sem sentido para o bem da nobreza. — Serefin
disse e deu de ombros. — Tem mais coisa acontecendo aqui. Eu
posso muito bem ver o que é. Tenho certeza de que não será bom.
O olho de Ostyia se estreitou.
— Eu conheço esse olhar. O que você está planejando?
Serefin ainda não tinha certeza do que estava planejando. Ele
tinha um pressentimento, um pavor rastejante que não permitia
que ele corresse para casa e assumisse o papel de príncipe sem
alguns receios. Talvez fosse o resultado de ser agredido pela guerra,
de ver morte e destruição todos os dias por anos. Talvez ele
estivesse ficando irracional. De qualquer jeito, a sensação estava lá.
— E se meu pai estiver usando a Rawalyk para colocar um
fantoche como herdeiro? Alguém que possa ser manipulado? —
Serefin era muito opinativo, muito poderoso, uma ameaça a
soberania de Izak Meleski. — E se ele colocar uma pessoa no trono
através de mim, e algum acidente infeliz acontece comigo... — Ele se
interrompe.
— Ei!— murmurou Ostyia.
— O quão paranoico eu sôo?
— Muito.
Ele assentiu.
— Eu estive liderando exércitos por três anos. — ele disse com a
voz suave. — E você não vai para um campo de batalha sem uma
estratégia. Mas às vezes, reconhecimento é necessário. Então vou
voltar para casa. Vou ver sobre o que é essa loucura, e então vou
lidar com isso conforme necessário. Isso talvez signifique que eu
vou ter que bancar o príncipe e participar de dramas supérfluos.
Pode significar algo completamente diferente. Nós podemos muito
bem ir e descobrir como essa batalha será. — Com isso, Serefin
começou a descida dos sete mil degraus.
Oito: Nadezhda Lapteva

A deusa da visão, Bozidarka, é uma deusa de profecia. Esteja


avisado: seus dons podem quebrar a mente de um mortal e suas
bênçãos não são facilmente interpretadas.
—O CÓDEX DO DIVINO, 7:12

Nada mais foi dito sobre planos de assassinar reis. Depois de Nadya
ter gaguejado com sua descrença de que era possível, Parijahan
sugeriu que eles conversassem mais de manhã.
Matar o rei Tranaviano poderia acabar com a guerra, mas ainda
seria – pelo menos para ela – uma justiça pequena pela morte de
Kostya. Ela assumiria o risco por isso. Ela não sabia se seria possível
– duvidava muito – mas a conversa a deixou amigável com os
Akolanos. Mesmo que ela ainda estivesse esperando pelo momento
certo para colocar uma de suas voryens no coração do Tranaviano.
Nadya passou uma noite inquieta no cômodo frio com camas
duras e cobertores finos roubados dos soldados Tranavianos. Ela
acordou antes do amanhecer, saiu do quarto e continuou pelo
corredor. Ela estava acostumada a acordar antes do sol para rezar e
queria estar em um lugar adequado para isso.
Anna ainda estava dormindo quando ela saiu para o corredor. Ela
encontrou Parijahan no santuário vazio, sentada na mesa com os
mapas esfarrapados espalhados na frente dela.
— Você estava falando sério, não estava? — Nadya perguntou. Ela
se sentou do outro lado da garota Akolana.
— Porque eu brincaria com uma coisa dessas? — Parijahan
respondeu, sem olhar para cima. Ela usava o cabelo escuro em uma
trança solta em cima de um ombro. — Havia mais de nós antes. Um
garoto que perdeu tudo quando os Tranavianos queimaram a
floresta onde ele e a família viveram por toda vida, uma garota que
cresceu em um campo de refugiados, irmãos Kalyazi de Novirkrya
que foram recrutados para o exército quando crianças, mas
desertaram.
Novirkrya era uma vila na fronteira sul, perto de Lidnado, um
país pequeno que odeia os dois vizinhos com a mesma intensidade e
fica miraculosamente longe da guerra que dura há quase um século,
provavelmente por despeito.
— Naquele país sobraram poucos fiéis. — Notou Marzenya.
— O que aconteceu com eles? — Perguntou Nadya.
— Esse país, essa guerra. Os irmãos tiveram que fugir para o
Norte para evitar que o exército os pegassem, porém, foi assim para
a maioria.
Mas os dois Akolanos e o Tranaviano sobraram?
Os outros entraram na sala. Anna se sentou ao lado de Nadya,
encostando sua cabeça no ombro de Nadya.
— Bem — ela disse, — ainda estamos aqui.
— Nenhum Príncipe Herdeiro. — Parijahan disse.
Rashid trouxe comida para a sala; vasilhas de kasha – um
mingau ralo que Nadya conhecia bem – e pães pretos e duros que
ele colocou na mesa antes de se deitar em uma pilha de travesseiros
no canto. Ele estava vestido em túnicas Akolanas marrom dourado
com camadas e com fendas nas mangas longas.
— Ninguém me avisou que assassinos Kalyazi acordavam antes
do amanhecer. — Ele bocejou.
Malachiasz entrou na sala carregando metade de um pão preto e
parecendo que não dormiu nada. Seu cabelo longo e preto estava
embaraçado e havia olheiras debaixo dos seus olhos pálidos. Ele
deitou nas almofadas ao lado de Rashid e colocou um braço sobre o
rosto.
— Eles não acordam, mas acólitos têm que atender ao chamado
para orar às três da manhã — disse Nadya.
— E eles nos chamam de bárbaros. — refletiu Malachiasz.
— Nós os chamamos de hereges. É diferente. E exato. — Nadya
vociferou.
Ele se sentou e revirou os olhos, então enfiou a maior parte de
seu pão na boca. Ele abriu seu livro de feitiços e colocou uma pena
no vinco entre as páginas.
— Não ouse começar a sangrar sobre isso enquanto estamos
comendo — disse Parijahan.
Malachiasz olhou para cima, a faca já em suas mãos, a lâmina
pairando em seu antebraço, a metade do pão ainda em sua boca.
Parijahan o encarou. Depois de um longo momento de silêncio, ele
abaixou a lâmina.
Nadya olhou para o mapa e Parijahan lhe passou uma vasilha de
kasha.
— Eu preciso chegar no acampamento militar em Tvir — ela
disse. Ela não podia realmente cogitar seus planos selvagens de
assassinar reis. Haviam coisas que eram esperadas dela, Nadya não
poderia abandonar esses deveres no primeiro obstáculo. Ela era a
hospedeira que inundaria o mundo com o toque dos deuses mais
uma vez.
— Tvir? Você está planejando cair diretamente nas mãos de
Tranavia, towy dżimyka? — Malachiasz perguntou.
Ela buscou em seu conhecimento básico de Tranaviano para
entender do que ele tinha acabado de chamá-la. Passarinho?
Confusa tanto pelo que significava tanto pelo jeito vagamente
condescendente que ele falou, ela decidiu ignorá-lo.
— Claramente, você tem um protocolo para seguir, certo? — ele
continuou. — Uma maga importante que nem você?
Nadya achou difícil continuar ignorando sua contínua
condescendência.
— Mas se você for a Tvir, você irá morrer. Tranavia a tomou há
dois meses.
Anna empalideceu. Nadya tentou ignorar o desespero que acertou
seu peito. Se instalou bem entre suas costelas, martelando nela com
cada batida de seu coração. Não havia esperança; ela morreria antes
de ter a chance de fazer qualquer coisa por seu país.
— Tudo foi destruído — disse Parijahan suavemente, cortando
um pouco a tensão entre Nadya e Malachiasz. — O acampamento
militar, a vila próxima. Nós estávamos por perto quando aconteceu.
Nós tivemos sorte e escapamos. Outros não foram tão sortudos.
Anna esfregou sua testa. Quando Nadya olhou para ela em busca
de alguma direção, ou qualquer coisa, ela simplesmente deu de
ombros.
— Isso foi tudo que nos disseram para fazer. — ela disse. — O
próximo posto avançado é...
— Não tão perto — disse Rashid.
Uma porta foi fechada diante de Nadya.
— Então eu deveria ouvir os planos de três estrangeiros que
receberam meu inimigo de braços abertos?
Malachiasz sorriu.
Parijahan franziu os lábios.
— Quando eu tinha treze anos, minha irmã mais velha estava
prometida para um slavhka Tranaviano. Não havia amor, era um
casamento político, mas Taraneh tinha esperança. Eles se
encontraram antes do casamento e ele parecia... — ela se
interrompeu, balançando a cabeça. Seu olhar estava fixo em um
canto da sala. — Normal. Um mago de sangue, mas qual Tranaviano
não é? Independentemente disso, o casamento correu bem...
— O casamento não correu bem. — Rashid interrompeu.
O rosto de Parijahan se contorceu.
— Nós não demos muita atenção para isso, era lógico que tivesse
alguma tensão.
Apreensão deixava as palavras da Akolana pesadas e Nadya
mudou de posição, desconfortável. Ela olhou para Malachiasz, mas
ele estava observando Parijahan com uma expressão cuidadosa no
rosto, nem hostil e nem brincalhão, mas gentilmente atento.
— Minha família vive bem...
— Seja honesta, Parj — Rashid disse suavemente.
Ela suspirou.
— Minha família é uma das três altas Travashas de Akola. Minha
irmã foi assassinada um mês depois do seu casamento, em uma
terra estranha, pelo seu dote.
— E Akola não declarou guerra por causa disso? — Anna
perguntou.
— Não houve provas de que o Tranaviano o tinha feito. Parecia
um acidente. Minha irmã se afogou em um dos milhares de lagos de
Tranavia. — Parijahan riu amargamente. — É claro, porque Akola é
uma terra de desertos, como uma prasīt saberia nadar? Mas
Taraneh era uma ótima nadadora, seu lugar favorito no mundo era o
oásis perto da casa de nossa família.
— Então o que você está fazendo aqui? — Perguntou Nadya. E o
que estão fazendo com um mago de sangue Tranaviano?
— Algumas decisões imprudentes foram feitas — disse Rashid.
— Eu me vinguei — Parijahan disse com naturalidade. — E agora
há um slavhka a menos na corte Tranaviana.
— Porquê não retornar a Akola depois? Por quê ficar aqui?
— Eu não quero nada com uma família que não tentou se vingar
da morte da filha. Tranavia não pode vencer essa guerra. — ela disse
ferozmente. — Deixe eles viverem com sua magia de sangue e seus
políticos corruptos no seu próprio país, mas eles não podem se
espalhar além de suas fronteiras.
Nadya mexeu no seu colar, procurando pela conta do deus da
verdade – Vaclav. Ela ficou aturdida quando Vaclav confirmou que
os três estavam sendo verdadeiros com ela. Até mesmo o
Tranaviano.
— Nada disso explica ele. — Nadya disse, apontando para
Malachiasz.
— Eu sou um enigma. — Malachiasz respondeu maliciosamente.
— Há rumores sobre você, towy dżimyka, de ambos os lados da
guerra. A clériga Kalyazi que veio salvar o país da praga Tranaviana.
Um arrepio passou por Nadya. Ela não sabia se a estava
provocando ou não.
— O que você está dizendo?
— Claramente, Tranavia sabe que você existe, por qual outro
motivo eles mandariam o Príncipe Herdeiro – um estrategista de
guerra pródigo – atacar um mosteiro em uma localização que não
fornece nenhum avanço estratégico? E se Tranavia sabe, Kalyazin
inteira também sabe.
Havia mais alguma coisa que ele estava dizendo e Nadya
demorou mais tempo do que ela gostaria para entender.
— Vocês três estão aqui... por causa de mim?
— Isso não faz você se sentir importante?
Ele estava zombando dela novamente. Ela suspirou.
— Nós seguimos os rumores até aqui, sim. — Parijahan disse. —
Eu pensei que não iria dar em nada, mas aqui está você.
Nadya conhecia intervenção divina quando via uma, mas ainda
tinha alguma coisa errada. Havia um caminho que ela tinha que
traçar e não era esse. Não era trabalhar com um herege. Não podia
ser.
Ela passou a colher pela vasilha vazia.
— Eu preciso de tempo para considerar isso, para... rezar. Vocês
têm um plano para entrar em Tranavia?
— Você não pode estar falando sério — disse Anna.
— Que escolha temos? — Nadya respondeu.
— Eles não têm um plano. — Malachiasz respondeu,
interrompendo Rashid antes que ele tivesse a chance de responder.
Ele fechou o livro de feitiços com um barulho alto. — Vá rezar. — ele
disse para Nadya, colocando todo o peso da sua aversão na palavra
rezar. — Peça para seus deuses realizarem o impossível.

Um caminho no meio das árvores levava para as ruínas de um


pequeno altar de pedra. Tudo que sobrou foi um banco e uma
escultura propositalmente ambígua de uma figura destinada a
retratar Alena. Era calmo do lado de fora, a luz da manhã tremeluzia
através dos galhos vazios das árvores, atingindo a escultura para que
atraísse a luz para si. Nadya se sentou de pernas cruzadas no banco.
Ela pegou no colar, passando os dedos pelas contas. Ela precisava
focar novamente, trabalhar no trauma de perder sua casa e seus
amigos. Ela só se sentia vazia quando pensava no mosteiro, em
Kostya. Onde ela estaria quando a agonia de perder tudo finalmente
a alcançasse; ela estaria em um lugar onde ela poderia lidar com
tudo?
Ela passou muitas noites em claro desejando que tivesse uma
pequena parte dos pais dela para lembrar. Tudo que ela tinha era o
conhecimento de que sua mãe sempre soube que a filha era tocada
pelos deuses. Sua mãe apareceu no mosteiro grávida de nove meses,
ficando tempo suficiente apenas para dar o nome de Nadya antes de
ir embora, foi o que padre Alexei sempre disse a ela.
Lapteva não era um sobrenome incomum. Estava em todos os
lugares. Somente quando Nadya tinha catorze anos, que ela
percebeu que nenhuma família iria voltar por ela, que seu destino
era ficar dentro das paredes do mosteiro e nenhum outro lugar. O
abade foi a coisa mais próxima de um pai que ela já teve.
Pensar no padre Alexei fazia seu coração doer. Ele estava morto
agora, junto com todo mundo que ela conheceu e amou. A bondosa
Marina com sua risada calorosa, que contrabandeava probov –
bolos de farinha simples, mas saborosos – para Nadya quando
ninguém estava olhando. O severo Lev que era um contador de
histórias talentoso, que podia tecer fábulas e lendas que sempre
faziam Nadya ficar com medo de ir para cama à noite.
Uma noite, ele contou a ela a história de um monstro Tranaviano
conhecido como Kashyvhes, que bebia sangue e controlava as
vítimas com a mente. Enquanto ela andava pelos corredores escuros
do mosteiro para seus aposentos à noite, Kostya pulou de um
armário. Ela o socou com tanta força que ele teve que ir a Ionna, a
curandeira, com os lábios cortados.
Agora eles se foram, e o mosteiro estava vazio. Suas relíquias
douradas saqueadas e imagens desfiguradas. O altar provavelmente
foi quebrado, as estátuas dos santos devem ter perdido as cabeças e
as mãos. Toda aquela beleza – a santidade – profanada pelo bem da
magia e do sangue.
Mas ela não podia forçar seus sentimentos, então apenas se
sentou com coração e a mente vazios e esperou para ver se os
deuses falariam com ela. Dessa vez ela estava sozinha.
Peça aos deuses para realizarem o impossível. A arrogância,
Nadya pensou. Ela não estava convencida de que eles poderiam
fazer, mas se Malachiasz estivesse certo, então não tinha lugar para
ela ir. Talvez devesse interpretar isso como um sinal e aceitar as
circunstâncias que a forçavam nessa situação que podia muito bem
acabar em desastre.
Ela estava voltando para a igreja quando espiou Malachiasz
deslizando entre as árvores. Curiosa, ela o seguiu, puxando suas
contas de orações. Ela tinha dado apenas alguns passos quando ele
parou. Sua mão imediatamente alcançou sua voryen.
— Você vai enfiar uma dessas lindas lâminas no meu coração,
towy dżimyka?
— Eu gostaria. — ela disse. — Por que você me chama assim?
Ele se virou para encará-la, uma mão se levantando para
descansar no livro de feitiços amarrado no quadril.
— Como eu deveria te chamar?
Ela ainda não tinha falado seu nome. Ela não sabia porque
parecia importante mantê-lo para si; porque ela sentia que dar seu
nome a esse garoto parecia dar algo mais do que ele merecia. Talvez
ela só estivesse sendo irracional.
— Nadezhda Lapteva. — ela disse, então adicionou: — Nadya.
Malachiasz parecia quase aliviado, mas Nadya provavelmente
estava imaginando coisas. Ele assentiu.
— Então, Nadya, por favor, você é bem-vinda a se juntar a mim.
Os olhos dela se estreitaram.
— Para que você possa me levar à floresta e me matar?
— Você estava me seguindo. — ele apontou.
O rosto dela esquentou.
Ele sorriu e se virou para ir.
— Nós não somos inimigos, Nadya.
— Não agora, você quer dizer.
Ele pausou, olhou para ela por cima do ombro, então assentiu.
— Você não tem nada a temer de mim.
Ainda. Nadya ouviu em seu tom, mesmo que ele não tenha dito –
mesmo que ele nunca dissesse isso. Ele era um mago Tranaviano e
eles eram inimigos, por padrão.
Ela seguiu ele.
As árvores eram mais densas nesse trecho das montanhas e
mesmo sem suas folhas, os galhos estavam cobertos por neve e era
difícil ver através deles. Tudo estava quieto, exceto pelo estalar do
gelo debaixo de seus pés. Nadya estava tentando descobrir para onde
estavam indo quando Malachiasz levantou uma mão, a parando. Ele
pressionou um dedo nos lábios.
Eles tinham parado em um ponto alto de uma saliência onde a
encosta da montanha cortava precariamente. Malachiasz foi para a
borda e se agachou na neve. Nadya hesitou, mas se moveu para o
lado dele.
Levou um segundo para ela analisar o que estava acontecendo lá
embaixo e quando viu, quase se levantou e fugiu.
Malachiasz colocou uma mão em seu ombro, a pressionando na
neve. Ela congelou como um coelho assustado; o único mecanismo
de defesa que ela ainda tinha. Os dedos dele tensionaram contra ela,
uma pressão que talvez era para ser tranquilizadora. Ele afastou a
mão.
Ele tinha levado ela direto para o Príncipe Herdeiro.
Malachiasz se aproximou mais de Nadya e ela ficou tensa quando
inclinou seu rosto para perto do dela, lábios perto da sua orelha.
— Eles irão sentir minha magia no momento que eu a usar. —
Sua voz era um murmúrio baixo. — Mas eles não sentirão a sua.
Ela lhe deu um olhar de soslaio então retirou a luva com tudo e
percorreu seu colar com os dedos até achar a conta de Zlatek.
O deus do silêncio odiava conceder poder a Nadya; uma vez falou
que deveriam revogar completamente a magia dela. Era uma pena
que o poder dele era tão útil porque ele era tão caprichoso que
Nadya evitava lidar com ele o máximo possível.
Ela enviou um pedido hesitante, assumindo que seria negado,
mas ficou surpresa quando, de repente, uma série de discursos
sagrados passaram por sua cabeça. Ela sentiu uma mínima onda de
irritação.
Obrigada, Zlatek.
Não houve resposta. Ela passou o dedo pela conta de Marzenya.
Se ela precisasse matar o Tranaviano aqui, ela estaria pronta. Ele
não iria encontrá-la desprevenida.
Seus sentidos ficaram confusos quando ela sussurrou o feitiço de
Zlatek, mas quando ela se moveu, o gelo embaixo não fez barulho.
Ela olhou para Malachiasz.
— Fascinante. — Os lábios dele se moveram, mas não houve som.
Suas sobrancelhas se ergueram em surpresa.
O feitiço de Zlatek também se espalhou para Malachiasz.
Atrevido. Ela colocou um dedo nos seus lábios, sorrindo. Até
mesmo sua respiração estava silenciosa por causa do feitiço. A
desvantagem era que os seus sentidos também estavam
entorpecidos.
Embaixo da saliência estavam o príncipe e seus tenentes. A
garota com um olho só estava montada no cavalo enquanto os dois
garotos tinham desmontado. Ela parecia entediada, com o queixo na
mão, o cotovelo descansando no pomo da sela.
— Se continuarmos a leste, ficaremos bem. — ela disse.
O príncipe balançou a cabeça e remexeu em seus alforjes,
puxando um mapa.
— Desenrole isso. — Ele disse e entregou para o garoto de pele
negra. — Nós iremos direto para o front, e eu, pessoalmente, prefiro
não lidar com o exército Kalyazi inteiro.
— Um desvio nos levará dias, Serefin. Acabaremos contornando
os lagos.
Serefin a ignorou, indo para onde o outro garoto estava com o
mapa espalhado em uma árvore. Eles estavam em frente a
cordilheira onde Nadya e Malachiasz estavam escondidos. Se
olhassem para cima, Nadya ficaria bem, já que seu cabelo era
praticamente da mesma cor que a neve, já Malachiasz...
Ela retirou seu cachecol branco do pescoço e jogou nele. Se ele
não ia joga-lá para o lado do príncipe para ser capturada, então ela
não queria ser pega por causa de seu cabelo que parecia tinta contra
papel. Ele a olhou sem entender. Ela revirou os olhos, colocando o
cachecol em volta da cabeça dele. Malachiasz entendeu e amarrou o
cachecol por seu cabelo antes de se abaixar na neve novamente.
O momento não poderia ser melhor, já que o príncipe escolheu
bem essa hora para olhar para o topo do penhasco. As palmas de
Nadya estavam suando mesmo estando pressionadas na neve. Ela
levantou a cabeça novamente depois que alguns segundos tensos se
passaram.
— Nós temos que ir mais para o Norte — o príncipe estava
dizendo, sua voz um tom baixo e refletivo. Nadya, apenas um pouco
fluente, tinha que se concentrar para entender seu Tranaviano. —
Eu adoraria enrolar e passar o máximo de semanas possível nessa
viagem, mas suponho que não faça sentido.
— É só casamento, Serefin. — o outro garoto provocou.
O príncipe apenas suspirou.
— Não acontece uma Rawalyk em Tranavia há gerações. A ilusão
de escolha é pior do que ser ordenado para casar com uma slavhka
aleatória que eu vi uma vez na vida.
Nadya passou os dedos pelo cabo da voryen. A mão de Malachiasz
pegou a dela. Ele balançou a cabeça quando viu sua carranca e ela
puxou a mão. Sua pele estava arrepiada do toque dele.
Nadya não ouviu as próximas palavras do príncipe enquanto
Malachiasz se arrastava para trás, para que ele pudesse se levantar
sem ser visto. Ela fez a mesma coisa.
Quando estavam há uma distância segura do príncipe, ele passou
um dedo pela garganta. Ela quebrou o feitiço e ele expirou quando a
magia sumiu. Nadya se arrepiou quando seus sentidos restauraram.
Malachiasz desamarrou o cachecol da sua cabeça e entregou a ela.
— Sangue e osso. — ele murmurou. — Há outros clérigos que
podem fazer o mesmo que você?
Nadya deu de ombros.
— Pelo que sei, eu sou a única. Isso não significa que não há
outros. E o feitiço quase não funcionou, Zlatek não é conhecido por
ser cooperativo.
Ele inclinou a cabeça para um lado.
— Deus do silêncio? Nós não tínhamos muitas igrejas dedicadas a
ele. Acho que há uma em Tobalsk.
Malachiasz balançou a cabeça.
— Certo. Você é Tranaviano.
Ele sorriu levemente. Era o primeiro sorriso genuíno que ela via
dele e o fez parecer mais jovem, menos intimidador. Ele não podia
ser muito mais velho que ela. Os dois voltaram a andar de volta para
a igreja.
— Aquela era uma oportunidade perfeitamente boa de
assassinato que você evitou. — ela disse enquanto triturava a neve
atrás dele.
— Assassinar o Príncipe Herdeiro enquanto ele está em solo
Kalyazi não daria em nada além de renovado vigor de Tranavia —
replicou Malachiasz.
— Ele morto seria conquista o suficiente. — ela murmurou. — Eu
não consegui entender o que significava ele voltar para casa... —
Nadya se interrompeu enquanto Malachiasz empurrava
hesitantemente as portas da igreja, franzindo o cenho.
O pátio da igreja estava completamente silencioso.
— Nós não estivemos fora por muito tempo — disse Nadya.
— Não é isso... — ele murmurou. Então xingou baixinho.
De repente, ele estava pressionando dois dedos ensanguentados
na moldura da porta, suas sobrancelhas pretas franzidas em
concentração. Ele pegou o livro no seu quadril, rasgando uma
página e a pressionando contra a porta. Sangue se infiltrou no papel.
As linhas de sangue formaram um símbolo com três pontas que se
espalhou pela porta inteira.
— Para trás. — ele disse.
— Porquê?
— Algo foi lançado nessa igreja — ele disse devagar. — Alguém de
Tranavia quer saber quem está aqui.
Nadya deu um passo para trás.
— O príncipe?
— Não. Direção errada. Eu suponho que você não tenha um deus
para quebrar feitiços?
Nadya soltou uma risada sem fôlego. Ela não podia ignorar o
significado do seu pedido, mesmo que fosse uma piada.
— Não, desculpa.
— Que pena. Eu mesmo vou ter que fazer.
Ele usou sua lâmina de aparência perversa para cortar uma linha
pelo antebraço. Nadya estremeceu. Seus braços estavam cheios de
cicatrizes e cortes curados pela metade, camadas deles em um
padrão estriado, bagunçado e chocante.
— Segure isso, por favor? — Ele entregou a ela o livro de feitiços.
Ela o pegou, aturdida.
Quando ele se afastou, a página na porta continuou presa a
madeira, o símbolo brilhando fracamente nas pontas. Ele passou
dois dedos pelo corte no braço e foi para a próxima parede ao lado
da porta. Ele desenhou uma série de símbolos na madeira com seu
sangue. De repente, ele parou e algo parecido com horror cruzou seu
rosto.
— Ah, não. — ele disse. — Isso é muito ruim.
Ele se virou para ela e abriu seu livro de feitiços que ainda estava
nas mãos de Nadya. Ela o segurou, apenas moderadamente enojada
por ele a estar usando como estante.
— Ainda bem que eu tenho prática nisso dos meus dias como
acólita. — ela murmurou.
— Eu já ia perguntar. — ele disse distraído, folheando as páginas.
— Você é muito boa.
— Eu tenho muitos talentos.
Os lábios se levantaram em um sorriso fraco.
— Você vai me contar o que é ruim, ou…?
Ele olhou para ela, toda a cor sumindo de seu rosto.
— Você é uma Kalyazi.
— Sim, eu sou.
— Nadya. — ele disse em um suspiro, e tinha algo no jeito que ele
falou o nome dela que a fez se sentir muito quente e com muito frio
ao mesmo tempo. Ela piscou para ele, terror súbito a agarrando. Ele
parecia abalado, e ela não queria saber o que poderia assustar um
mago de sangue.
— São os Abutres.
Um arrepio passou por ela. Nadya sentiu algo se mexendo na
parte de trás da cabeça. Os deuses estavam aflitos. Suas articulações
travaram e gelo penetrou em seus ossos. Como isso estava
acontecendo? Primeiro o Príncipe Herdeiro e agora os Abutres?
Ela não podia escapar dos Abutres. Ela não podia correr dos
piores pesadelos de Tranavia.
Malachiasz arrancou múltiplas páginas do livro de feitiços e
freneticamente passou sangue pela madeira e pelas páginas.
— Se eles vierem aqui, eu e você não vamos durar muito nesse
mundo.
— Por que você estaria em perigo? — Ela perguntou. Se ela
focasse nas pequenas coisas, talvez o terror não ia engoli-la viva. —
Por que você desertou do exército?
Ele parou de escrever, fechando os olhos e sussurrando algo
baixinho e rápido em Tranaviano que Nadya não conseguiu
entender. Ele deu uma risada amarga e se virou para olhá-la, seus
olhos pálidos repletos de medo.
— Porque eu desertei deles.
Nove: Serefin Meleski

Svoyatovi Roman Luski: o bispo nomeado em segredo por metade


do Conselho de 1213, Luski lutou para manter o controle Kalyazi
nas províncias ao leste. Foi uma batalha perdida, quando
Dobromir Tsekhanovetsky ganhou os votos da outra metade e
traiu seu país ao entregar as províncias ao rei Tranaviano.
—O LIVRO DOS SANTOS DE VASILIEV

Três magos contra duas dúzias de soldados e Serefin tinha poucos


feitiços restantes. O acampamento Kalyazi era logo abaixo da colina,
a escuridão pouco antes do amanhecer revelava apenas alguns
soldados acordados.
Ostyia girou szitelki gêmeas em suas mãos, impaciente enquanto
Serefin cuidadosamente olhava seus cinco feitiços restantes. Se eles
encontrassem mais Kalyazi na jornada para casa, ele estaria em
apuros.
— O que você ainda tem? — Kacper perguntou, sua voz baixa. Ele
se inclinou na sua lâmina. O metal afiado da navalha estava
amarrado na ponta.
Serefin mostrou a Kacper seu livro de feitiços dolorosamente
fino. Kacper selecionou um dos feitiços remanescentes. O feitiço
escolhido queimaria por um tempo, criando distração suficiente
para que Ostyia e Kacper matasse os outros soldados que não
estivessem fervendo de dentro para fora pela magia de Serefin.
Eventualmente Serefin desceu a colina quando os sons de luta
cessaram. Ele encontrou Ostyia alegremente vasculhando as
mochilas com provisões.
— Não acho que temos que parar na fronteira agora. — Ela disse.
— Deveríamos fazer alguma coisa com os corpos? — Perguntou
Kacper.
Serefin balançou a cabeça, apertando os olhos para o céu matinal.
— Não, os deixe para os urubus.
Ostyia jogou uma mochila para Kacper quando ele foi buscar os
cavalos.
— Olha só, o que é isso? — Serefin ouviu Ostyia murmurar
enquanto ela levantava uma aba da barraca e olhava dentro.
Ele a seguiu e observou enquanto ela pegava um livro descartado
no chão da tenda. Havia uma pilha pequena deles. Ela folheou o
livro antes de entregar a ele e pegar outro.
— Isso são livros de feitiços Tranavianos. — Ela disse, franzindo o
cenho.
Serefin sabia que os Kalyazi queimavam os livros de feitiços que
eles recolhiam de corpos Tranavianos. Se eles pudessem, evitavam
até mesmo tocá-los.
— Tem escrita Kalyazi em alguns deles. — Notou Ostyia.
Serefin achou uma página no livro que ele estava segurando onde
havia escrita em blocos Kalyazi nas margens. Ele franziu o cenho.
Havia uma distância enorme em um diário Kalyazi e reflexões sobre
as funções dos feitiços escritos nos livros.
Bem, parece que nem todo Kalyazi é tão rigidamente devoto, ele
pensou. Ele reconheceu a estrutura das orações Kalyazi em meio
aos feitiços. Eles estavam tentando fundir os dois?
— Todos estão assim? — Ele perguntou.
Ela abriu mais alguns, folheou e assentiu.
— Pegue alguns — disse Serefin. — Eu quero olhar mais de perto.
— O que você acha que significa?
— Desespero. — Serefin desviou do corpo de um oficial morto. —
Os Kalyazi estão perdendo a guerra. Alguns podem dizer que eles
estão se tornando hereges.
A fronteira veio e passou sem nenhum problema. Serefin tentou
não se preocupar. Eles estavam tão longe ao Norte que contornavam
completamente o front, mas eles encontraram a fronteira vazia e
desprotegida.
Era como se a guerra tivesse se tornado rotina. Esse trecho da
fronteira costumava ser observada cuidadosamente, mas eles
estavam perdendo recursos. Ele teria que lembrar de mandar uma
companhia guardar a fronteira, mesmo ao Norte. Seria muito fácil
para as tropas Kalyazi entrar em Tranavia usando essa mesma rota
através das montanhas para o pântano.
— Eu não consigo decidir se você reclamava mais quando
estávamos em Kalyazin ou agora que estamos de volta em Tranavia
— disse Ostyia.
Mesmo que a mudança de temperatura não tenha sido imediata,
era óbvio que eles não estavam mais em Kalyazin. Tinha pouca neve
no chão ou nas árvores. Ainda estava frio – o longo inverno que
atingiu Kalyazin tinha agraciado Tranavia também – mas não era
nada como a mordida gelada do ar Kalyazi.
Além disso, estava chovendo. Serefin pode ter mencionado seu
desânimo em ter que viajar debaixo de chuva.
— É da minha natureza. — Ele replicou.
— Eu não posso discordar. — Ela murmurou.
— Eu já mencionei que odeio os pântanos? — Kacper disse. — Já
que estamos reclamando.
— Não, a reclamação de Serefin é inerente ao sistema dele. Tudo
que ele fala deve ser uma reclamação — disse Ostyia.
— Eu vou ter que rebaixar vocês dois quando voltarmos a Grazyk.
— Serefin respondeu. — Se divirtam guardando as Minas de Sal.
Serefin também não queria ter que viajar pelos pântanos, mas as
estradas principais estariam cheias com nobres Tranavianos
viajando para Grazyk. Ele queria evitar lidar com a nobreza pelo
máximo de tempo possível; eram a única coisa que faria ele sentir
saudade do front.
Os pântanos Tranavianos tinham calçadas de madeira,
construídas séculos atrás, senão seriam impossíveis de atravessar.
Serefin tinha certeza que a razão que o front ficava em solo Kalyazi
não tinha nada a ver com a força do exército Tranaviano e sim
porque Tranavia é muito saturada de umidade. Uma batalha no
pântano ou no lago seria difícil e miserável para os dois lados.
Infelizmente, os pântanos eram sempre escuros. Luz lutava para
passar pela folhagem densa. Havia lendas de demônios que viviam
em cantos escuros, onde a luz nunca tocava e que as calçadas não
alcançavam. Dziwożona, a bruxa do pântano, ou rusalka — que
comia carne. Criaturas que esperavam na umidade para que os
desavisados se aventurassem em túmulos subaquáticos. Em
Tranavia, sempre tinha um monstro virando a esquina esperando
para te devorar.
Eles chegaram em uma estalagem no começo da noite,
continuando anônimos para os poucos viajantes que passavam.
Poucos se aventuravam nesse caminho, a superstição Tranaviana
mantinha a maior parte do país com medo. Afinal de contas, era
sempre melhor não arriscar ser arrastado para dentro da água por
um wolke e servir como seu escravo.
Serefin mandou Kacper entrar enquanto ele retirava seu
distintivo e entregava a Ostyia. Normalmente ele gostaria de usar
seu status em uma estalagem afastada como essa, mas Serefin
estava cansado e não queria atrair nenhuma atenção desnecessária.
A cicatriz em seu rosto já era o suficiente. Ele não podia ir a
nenhum lugar em Tranavia sem ser reconhecido. Ele esperava que
ele estivesse sujo o suficiente para ninguém o reconhecer.
Felizmente, a estalagem estava quieta, com apenas alguns
mendigos e uma dupla que se pareciam com soldados. Maços com
ervas secas estavam pregados nas paredes, dando a pousada um
aroma vagamente agradável. Serefin encontrou Kacper em uma
mesa no canto.
— Você quer se limpar? — Ostyia perguntou.
— Mais tarde.
Ela deu a ele um olhar questionador.
— Ninguém rastejou aos meus pés ainda. Eu quero ficar desse
jeito. — Ele se inclinou pela mesa, abaixando sua voz. — Eu também
gostaria de ficar bêbado.
Ostyia revirou os olhos, sorrindo.
— Bem, você está cheirando mal. — Kacper disse. — Duas
semanas de viagem não combinam com você, meu príncipe.
— Minas de Sal. — Serefin disse distraído enquanto sinalizava
para o homem mais velho atrás do balcão. — E o que eu acabei de
falar? Por que vocês dois usam o meu nome nas horas mais
inapropriadas e o meu título quando eu não quero que vocês façam?
— Para te irritar — disse Ostyia.
— Definitivamente, além disso, você precisa de uma nova
ameaça.
— É uma ameaça perfeitamente adequada. — Respondeu Serefin.
— É uma ameaça razoável. — Ostyia disse a Kacper. — Eu sei que
eu não quero perambular por aí com os Abutres mais velhos e os
experimentos deles.
— Mas você perambula com os Abutres mais novos e seus
experimentos?
O rosto de Ostyia ficou vermelho. Serefin assistiu com diversão
enquanto Kacpin pressionava mais.
— Como era o nome dela? Reya? Rose?
— Rozá. — Ela murmurou.
— Eu estou surpreso que ela tenha um nome. — Serefin
ponderou.
— Supostamente eles devem responder apenas pelo título. —
Ostyia disse. — A corte dos Abutres parou de seguir essa regra anos
atrás, mas o atual Abutre Sombrio está tentando restaurar que eles
escondam seus nomes da corte.
O dono do bar colocou três canecas de dzalustek na mesa deles
sem dizer nada, se movendo pesadamente de volta para atrás do
balcão.
Serefin bebeu um pouco da cerveja. Não era boa, mas também
não era aguada, então serviria.
— Você já se encontrou com o Abutre Sombrio? — Ele perguntou
a Ostyia.
Ela acenou.
— Ele não é seu tipo.
Serefin trocou um olhar seco com Kacper. Ostyia sorriu para ele
antes de se levantar e ir pedir o jantar.
Não foi até que Serefin estava na sua quarta – talvez quinta? Era
difícil acompanhar – caneca de dzalustek que o encontro
desconfortável que ele estava evitando tão ardentemente finalmente
aconteceu.
— Sua Alteza?
Ostyia estava olhando por cima do ombro dele, sua face pesarosa.
Slavhka, ela moveu os lábios sem fazer som.
Serefin sabia que ele não deveria gemer em voz alta sobre um
assunto, mas esse conhecimento pareceu bem desimportante depois
de duas canecas de cerveja, quem dirá com quatro… ou cinco. Ele se
virou no seu assento.
Pelo menos ele reconhecia esse nobre em particular. Teria sido
estranho se fosse um príncipe desconhecido que Serefin nunca
tivesse visto.
Tenente Krywicki era um homem gigantesco que tinha ficado
gordo depois que sua campanha acabou. Ele era um dos homens
mais altos que Serefin já conheceu e sua largura quase compensava
a sua altura. Ele tinha uma cabeça grossa com cabelos pretos e olhos
da cor de carvão.
Ele também era, Serefin se lembrou, insuportável. Mas a maioria
das pessoas eram insuportáveis, Serefin concedeu, então Krywicki
não era nada especial.
Serefin se levantou, se balançando só um pouco em seus pés.
— Tenente Krywicki. — Ele disse, vagamente consciente de que
ele estava gaguejando um pouco toda palavra que ele dizia. — O que
te traz a esse pântano?
Kriwicki é do pântano? Serefin se perguntou. Ele rejeitou a ideia.
Ele era de outro lugar. O Norte? Provavelmente do Norte.
— Minha filha, Vossa Alteza. — Krywicki disse com uma risada
que provavelmente estava em um volume normal mas soou
barulhenta para Serefin.
Ele tentou não estremecer. Ele não sabia se foi bem-sucedido ou
não.
— Filha? — Eu sabia que Krywicki tinha uma filha? Ele olhou
por cima do ombro para Ostyia. Ela assentiu encorajadoramente.
Aparentemente, sim.
— Felicíja. — Krywicki disse. — Aqui, Sua Alteza, deixe eu te pagar
outra bebida. Você está voltando do front?
Serefin subitamente estava de volta a sua cadeira com outra
caneca na frente dele. Kacper e Ostyia trocaram um olhar, mas
Serefin mal notou enquanto ele encarava com concentração o vidro
suado na frente dele.
Ele definitivamente não deveria beber isso.
Bem, sacrifícios devem ser feitos, ele pensou enquanto pegava a
caneca. Essa era a quinta ou a sexta. Ele não fazia ideia.
— O front, sim, nós acabamos de voltar. — Serefin disse.
— Como vai a guerra? — Krywicki perguntou.
— Do mesmo jeito sangrento de sempre. — Serefin bebeu. —
Quase nada mudou nos últimos, o quê, cinquenta anos? Eu não
espero que algo vá mudar. Parece muito otimista ter a esperança de
que a vitória em Voldoga mudará o sentido da guerra.
Krywicki parecia aturdido. Ostyia olhou para Serefin de olhos
arregalados. Oh, não era para ele expressar seu desdém sobre a
guerra em voz alta, claro. Certamente não ele, que era a criança
símbolo do esforço de guerra.
— Mas nós vamos vencer a superstição Kalyazi. — Ele continuou,
agora totalmente consciente de que ele estava retrocedendo. — Eles
vão se render logo. — Ele se inclinou através da mesa em direção a
Krywicki, que inconscientemente também se inclinou em direção a
ele. — Eu posso sentir. Essa guerra vai acabar durante meu reinado,
senão mais cedo. — Os sinais estavam lá: Voldoga, o surgimento da
clériga implicando desespero, que eles foram capazes de andar até
as Montanhas Baikkle, e ainda assim Serefin não se rendia tão
facilmente a esperança.
Krywicki levantou as sobrancelhas. Um príncipe Tranaviano não
falava sobre seu reinado como se fosse algo certo. Nenhum
Tranaviano tratava seu futuro como algo certo. Serefin passou
muito tempo em Kalyazin.
— Tão cedo? — Perguntou Krywicki.
Serefin acenou enfaticamente. Ele franziu o cenho. Krywicki não
estava falando sobre a filha dele? Onde ela estava? Ele percebeu que
estava perguntando sobre ela antes que seu cérebro tivesse a chance
de registrar o que saía da sua boca.
Ele definitivamente não deveria ter bebido essa última cerveja.
Krywicki parecia muito feliz de introduzir sua filha ao Grão-
Príncipe. Ele deixou a mesa, retornando com uma garota que
parecia que tinha acabado de se livrar de sua babá.
Serefin olhou desesperado para Kacper que deu de ombros.
Felicíja não se parecia em nada com o pai. Seus cabelos loiros
caíam em ondas e ela tinha olhos violeta pálido. Ela parecia gentil,
bonita. Serefin teria que manter um olho nela.
Ela se curvou para Serefin. As sutilezas da corte a obrigavam a
fazer uma reverência para ele, mas eles não estavam na corte.
Por sangue e osso, ela é jovem, ele pensou. Na verdade, ela
deveria ser um ou dois anos mais nova que Serefin. Ela só parecia
jovem. Vagamente ele pensou que, ao chamar todas as slavhki
potencialmente elegíveis para Grazyk, seu pai estava excluindo os
fracos e concentrando todo o sangue forte no coração de Tranavia.
— É um prazer finalmente conhecê-lo, Sua Alteza. — Ela disse
enquanto ele pegava sua mão e a pressionava levemente contra seus
lábios.
Ele esperava que fosse leve. Ele perdeu qualquer sensação real
em suas mãos duas canecas atrás. Sua visão estava mais embaçada
que o normal, o que só acontecia quando ele estava mesmo bêbado.
— O prazer é meu. — Ele respondeu. — Eu assumo que vocês
estão viajando para Grazyk?
O único olho de Ostyia se arregalou com alarme. Serefin não
sabia porquê até que Krywicki respondeu por sua filha.
— É claro que sim. — Ele disse. — Não teve uma Rawalyk em
gerações, não podemos perder. De fato, Vossa Alteza, você está mais
que convidado a se juntar a nós pelo resto da viagem.
Oh, então foi por isso que Ostyia fez aquela cara. Serefin
observou enquanto Ostyia abaixou a cabeça na mesa. Ele também
não gostava da ideia de viajar com o tenente e sua filha. Seria rude
da parte dele recusar o convite, mas ele nunca se importou em ser
educado. Além disso, era uma trama óbvia para que Felicíja ficasse
no bom lado dele antes da Rawalyk.
Serefin contorceu sua saída.
— Eu devo implorar por seu perdão, eu estive viajando o dia
inteiro e está tarde. Foi realmente um prazer conhecer você.
Serefin escapou para o segundo andar da pousada. Ele gemeu
assim que estavam no corredor.
— É tão desconcertante ver você bancar o nobre — disse Kacper.
— Eu sou o príncipe. — Serefin respondeu. — Eu não deveria
estar bancando nada.
Mas Kacper lhe de um olhar seco, que ele respondeu com um
aceno de mão desdenhoso. Ele se recostou na parede.
— Quantos anos vocês acham que Felicíja tem?
— Dezessete ou alguma coisa assim. — Ostyia sugeriu.
— Não tem nenhuma chance de que ela vai durar muito, não
entre as pessoas que foram criadas na corte.
— Não.
Serefin estremeceu. Ele queria dizer mais, mas Ostyia o
empurrou gentilmente em direção a porta do quarto dele.
— Vá para a cama, Serefin. Nós temos que acordar amanhã cedo
antes que Krywicki perceba e você terá uma ressaca amanhã.
— Eu realmente não estou pronto para lidar com a nobreza de
novo. — Serefin ponderou, franzindo o cenho, enquanto ela
empurrava ele pelo corredor.
— Bom, bem-vindo de volta, Vossa Alteza, você não tem escolha.
Dez: Nadezhda Lapteva

Krsnik, o deus do fogo, é quieto, calmo, mas implacável e quando


seus seguidores o chamam – e quando ele decide escutar – sua
atenção é destruição.
—O CÓDEX DO DIVINO, 17:24

Nadya encarou Malachiasz, horror percorrendo sua espinha. Ele se


moveu para outra parede da igreja, desenhando com seu sangue nas
tábuas. Ela deu um passo para trás, e outro, e outro, até que havia
espaço suficiente entre eles, até que parecia que ela poderia fugir.
Sua respiração estava irregular com arfadas de pânico porque isso
não poderia estar acontecendo, ele tinha que estar mentindo.
— O que isso significa? — Ela perguntou, sua voz abafada.
— Não importa agora.
Nadya segurou suas contas em um punho. Talvez ela estava
errada por ter esperado por uma oportunidade para matar esse
herege. Sua outra mão foi em direção a sua faca.
Marzenya concordou e a incitou. Uma sensação como agulhas
passando pelo seu corpo para livrar o mundo desse garoto terrível
antes que ele derramasse mais sangue.
Suas sobrancelhas estavam franzidas em concentração, ele tinha
usado muito de seu próprio sangue e Nadya não sabia como ele
ainda estava de pé. Horror atravessou suas feições e ele se afastou
da parede, vacilante em seus pés.
— Kien tomuszek. — Ele murmurou. Ele passou uma mão
trêmula pelo rosto, espalhando sangue por sua bochecha.
— Como os Abutres realmente são? Nós podemos lutar contra
eles? — Ela perguntou. Certamente as histórias eram exageradas.
Malachiasz soltou uma risada de pânico. Seu olhar estava vítreo.
— Amplificar os poderes de um mago de sangue já muito
talentoso em dez vezes. Triturar seus ossos em ferro e salgar sua
pele com trevas até que nada possa quebrá-los a não ser por vontade
própria. Até que seu sangue queime tanto em suas veias que quando
é derramado, cria magia sozinho. Queimar cada memória, cada
pensamento, até que eles virem nada, até que eles não sejam nada.
Quando não sobra nada além de magia e desejo de sangue e raiva,
então acabou. Quando eles estão vazios, eles estão prontos. — Seus
olhos estavam fechados, sobrancelhas franzidas. — Não, towy
dżimyka, não podemos lutar contra eles.
Nadya deu um passo para trás, o coração batendo tão rápido no
peito que ela tremia. Ela não deveria ter perguntado; ela já sabia a
verdade. Era isso que ele era? Ou ele tinha fugido antes que
fizessem isso com ele?
Ele cortou outra linha em seu antebraço, sibilando por entre os
dentes.
— Você confia em mim? — Ele perguntou.
— Não. — Ela disse.
Ele riu, pegando outra página do livro de feitiços e a encharcando
com sangue. Ele atirou a folha na parede enquanto ele entrava na
igreja. Ela foi atrás dele, sentindo a soleira se fechando atrás dela.
Ela estremeceu pelo contato próximo com a magia dele.
Era como se ela pudesse senti-los por cima do ombro,
espreitando, esperando. Ela não sabia se eles estavam por perto e
nem quanto tempo eles tinham antes dos monstros atacarem.
Ela quase colidiu com as costas de Malachiasz quando ele parou
no santuário.
Parijahan se levantou.
— O que foi?
Ele levantou uma mão, impedindo Nadya de entrar na sala. Seus
olhos estavam estranhamente nublados, turvos e escuros.
— Pensei que teríamos tempo. — Ele disse, um fio de alguma
coisa além estalando na sua voz.
Pânico gelado se pressionou em Nadya, se movendo entre suas
costelas. A temperatura parecia afundar tão rapidamente que Nadya
não ficou surpresa ao ver a respiração nublada diante dela.
— Abominações. — Marzenya sibilou.
Um estrondo tão alto que parecia que ia quebrar a Terra ressoou
pela igreja, abalando suas fundações. Nadya tropeçou em
Malachiasz e era como se chocar contra uma parede de pedra. Ela se
moveu para longe dele mas parecia que ele nem tinha notado.
Ele olhou para o teto, inclinando a cabeça. Nadya viu com horror
quando seus olhos ficaram desfocados e uma trilha de sangue
começou a sair do canto do seu olho. Uma pequena parte dela tinha
se convencido que Malachiasz tinha fugido antes que os Abutres o
tivessem transformado em um monstro. Aparentemente, não era o
caso.
— Você disse que não podíamos lutar contra eles. — Nadya
sussurrou.
— Nós não temos escolha. — Ele respondeu. — Tem dois deles
aqui dentro: Ewa e Rafał. — Sua voz soava diferente, mais baixa,
como areia arranhando. Seus lábios se contraíram em um sorriso de
escárnio. — E um nessa sala.
Nadya quase caiu de joelhos quando discursos sagrados
descontínuos atravessou a parte de trás da sua cabeça. Suas mãos
não estavam perto do colar.
O que é isso?
O que você precisa.
Era magia crua e sem forma.
Isso poderia me matar.
Sim, poderia.
Ela estava grata pela estranha coleção de armas espalhadas pelo
santuário porque significava que os outros se moveram rápido e
sem questionar. Anna olhou aterrorizada para Nadya.
Nadya mal conseguia entender o que estava acontecendo, seu
cotovelo estava a uma polegada do braço do garoto que era tudo que
ela odiava, tudo que ela foi treinada para destruir. Um garoto cuja
tremedeira tinha cessado para uma quietude tão completa que
parecia que ele tinha virado pedra ao lado dela.
Malachiasz examinou o teto. Seu sorriso de escárnio tinha se
transformado em algo próximo a um sorriso.
— Rozá. — O jeito que ele disse o nome soava como uma música,
uma provocação, um desafio.
Algo se materializou no teto e começou a escorrer para o chão
como sangue. Era sangue, Nadya percebeu. Começou a escorrer
mais rápido, virando uma torrente.
Malachiasz finalmente percebeu o sangue escorrendo do canto do
olho. Ele estremeceu e o limpou com seu dedo.
O rosto de Parijahan estava branco como giz.
— Malachiasz...
O que estava acontecendo?
O sangue se moveu como se tivesse vida até que se juntou no
formato de uma garota, se materializando no centro da sala. Sua
trança ruiva estava tecida com pontas de ferro. Um livro grosso
preto estava pendurado em uma tira de couro na cintura. Seu rosto
estava coberto por uma máscara carmesim trabalhada em tiras.
Deixava apenas seus olhos visíveis, pretos como ônix. Sangue
escorria de seus ombros ossudos.
— Perfeito. Me salvou de uma viagem dupla por essa terra inútil.
— A garota disse. A voz dela soava errada. Tudo sobre ela era
desconcertante e sobrenatural, era como se o cérebro de Nadya não
conseguisse compreender que ela era real.
Sangue estava escorrendo dos cantos dos olhos de Malachiasz de
novo. Ele olhou para suas mãos com algo próximo a resignação,
tremendo enquanto garras de ferro cresciam e alongavam das
pontas dos dedos. Sangue saiu de seus lábios, caindo nas costas das
mãos- carmesim na pele pálida.
Nadya ainda estava muito perto dele e agora não tinha lugar para
onde ela ir. A garota Abutre chegou mais perto, seus movimentos
estranhos, rápidos e bruscos, como se os olhos de Nadya perdessem
segundos tentando rastreá-la.
— Olhe para você. — A garota disse. Nadya tremeu ao som de sua
voz. Era como se morte e loucura colidissem em acordes
dissonantes quando ela falava. — Degradado, desmascarado,
diminuído. — Suas mãos pareciam perversas; dedos muito longos e
as juntas finas e magras. Suas unhas também eram garras de ferro.
Uma veia pulsou no pescoço de Malachiasz. Seu olhar era duro
enquanto ele olhava para ela. Tinha sangue pingando de seu nariz
agora, caindo no seu lábio superior. Rozá chegou mais perto.
Malachiasz estava tremendo. Não de medo, entretanto, não era isso.
Demorou um tempo para ela nomear: repressão.
— Quanto mais tenho que te irritar até que você me enfrente
como realmente é? — Rozá perguntou.
Ela era muito mais baixa que ele, provavelmente da altura de
Nadya. Mesmo assim, ela se igualava a ele, ela levantou uma garra
de ferro e traçou o lado do seu rosto. Abriu um corte linear que
jorrou sangue.
— Não muito mais. — Ele respondeu.
Ele disse que havia dois outros Abutres. Três deles eram muitos,
Nadya sabia, mas pelo menos eles estavam em menor número. Ela
sacou suas voryens.
A cabeça de Rozá se moveu, como um pássaro, seus olhar de ônix
se concentrando em Nadya. Não houve aviso antes dela atacar. Ela
estava lá e então se fora. Nadya nem teve a oportunidade de se
defender, ela mal teve tempo para perceber que a Abutre tinha se
movido.
Então o mundo se alterou. Mais dois Abutres se materializaram
na sala, então um terceiro. O coração de Nadya desabou em horror
quando ela percebeu que haviam mais do que os três que
Malachiasz reconheceu.
Os outros começaram a se movimentar. Rashid se esquivou de
um lampejo de magia negra e sacou duas lâminas Akolanas do
porta-armas. Ele girou uma em um arco lento, um sorriso no rosto.
O terror de Anna esfriou para algo mortal.
Uma fração de segundo, uma piscada e as longas garras de ferro
de Malachiasz estavam empaladas em Rozá. Ele rangeu os dentes e
Nadya sentiu seu peito apertar quando metal brilhou em sua boca;
seus dentes eram fileiras de ferro, os caninos afiados demais, agora
eram presas mortais. Seus olhos escuros, escurecendo ainda mais
enquanto suas pupilas dilatavam, se expandindo para engolir o gelo
de suas íris, então mais, até que a parte branca dos seus olhos
sumiram.
— Não vai contar se eu não te matasse do jeito que você
realmente é. — Rozá disse. Não havia traço de dor em sua voz, nada
que sugeria que ela estava machucada enquanto ela se empurrava,
quase elegantemente, das garras de Malachiasz.
Ele zombou.
O ar se agitou atrás de Nadya enquanto ela girava, puxando suas
voryens para cima a tempo de pegar as garras de um segundo
Abutre. Alto, provavelmente homem, devia ser Rafał. Sua máscara
era cravejada de espinhos irregulares, ele recuou as garras e atacou
ela de novo tão rapidamente que quando ela pulou para longe ela
esbarrou nas costas de Malachiasz. Sua magia varreu em volta dela
com seu movimento e roçou contra ele. Ela estremeceu
involuntariamente. O poder se agitando debaixo da pele dele doía
como veneno, trevas que se espalhavam em suas veias e percorriam
sua aura. Ela não queria ficar tão perto dele, mas se ela fosse sair
disso viva ela precisaria de um monstro que soubesse lutar contra
outros monstros.
Nadya juntou sua magia divina em volta dela como um escudo, se
estendendo a Malachiasz enquanto Rozá e Rafał atacaram ao
mesmo tempo. A magia aguentou por pouco.
Malachiasz inclinou a cabeça para trás. Nadya o sentiu mudar de
posição e de repente ele estava encostado nela. Ela tropeçou quando
um jato de sangue impediu que seu feitiço espatifasse na frente
dela.
Malachiasz parecia tonto quando eles estavam do lado de fora da
igreja. Magos de sangue podiam ir até um certo ponto antes que
seus recursos precisam ser repostos. Mas então, ele se endireitou e
se moveu para longe dela e Nadya murmurou freneticamente
palavras na língua sagrada enquanto as garras de Rafał chegaram
perigosamente perto de abrir seu peito. Uma esfera de luz se formou
na ponta de sua voryen ela moveu o pulso para baixo, atingindo o
Abutre na frente dela com força suficiente para jogá-lo contra a
parede.
Rozá se curvou passando por Malachiasz para alcançar Nadya.
Por um momento tenso, Nadya pensou que ele deixaria, mas ele
estava se movendo em direção a um Abutre que tinha Anna indefesa
pressionada em um canto, sua espada fora de alcance.
Nadya pegou sua segunda voryen de seu cinto, fundindo a magia
quente de Krsnik no metal. Ela cuspiu símbolos de fumaça e puxou
os fios da magia de morte de Marzenya para sua outra lâmina.
— É nisso que os Kalyazi depositaram sua esperança? — Rozá
disse quando ela se esquivou. — É patético.
— Você fala demais. — Nadya vociferou. Ela puxou a essência do
poder Bozetjeh e percorreu a distância entre ela e a Abutre,
lançando sua voryen em chamas pelo ombro dela.
A lâmina atravessou como se a garota fosse feita de sangue e
mais nada. As mãos em garra de Rozá foram em direção ao torso de
Nadya, mas ela se esquivou de seu aperto, fluida com o poder de
Bozetjeh. Ela atravessou a outra lâmina – coberta pela essência da
deusa da morte e da magia – pelo estômago da Abutre.
Rozá engasgou, dor passou por suas feições visíveis. Seus olhos
se fecharam e ela se empurrou para fora da lâmina de Nadya. Ela
deu um passo para trás, pressionando sua mão no abdômen. Tinha
sangue escorrendo pela parte inferior da sua máscara.
Houve movimento ao lado de Nadya e ela se virou, mas
Malachiasz já estava lá. Um jato de sangue surgiu entre suas mãos,
transformando-se em lâminas, e atravessando Rafał. Ele agarrou o
Abutre pela camisa, passando suas unhas da outra mão na abertura
de sua máscara.
A magia na cabeça dela estava ficando mais insistente, cobiçando
destruição. Ela já estava puxando tantos fios. Muito mais do que ela
já tinha usado antes e ela não sabia quanto seu corpo aguentaria,
quanto mais abuso divino ela poderia canalizar antes de isso
arruiná-la.
Mas os Abutres estavam desviando de seus ataques como se ela
não fosse nada além de irritante. Rashid agarrou Rozá no seu
momento de distração e atacou; ela arremessou ele na parede onde
ele caiu como uma boneca descartada.
Nadya ouviu a espada de Anna cair no chão, o som muito alto,
mas ainda assim distante, como se tivesse há quilômetros de
distância dela.
Eles estão aqui por mim. As garras de Rozá se enterraram no
peito de Malachiasz. Eles estão aqui por ele também. Um dos
Abutres menores rasgou a lateral do corpo de Parijahan.
Malachiasz se libertou do aperto de Rozá e cambaleou de volta.
Seus olhos de ônix e inumanos encontraram os de Nadya e ela
experimentou um momento de clareza. Uma passagem de um único
pensamento entre ela e esse pesadelo de garoto que ela não
conhecia e não confiava.
Ela correu. Ele seguiu.
Os monstros os perseguiram.
Logo antes deles passarem pela soleira do santuário, Nadya se
virou, chamando Marzenya e Veceslav. Uma para assegurar
destruição, e o outro para proteger aqueles que ela não queria
machucar.
Então, ela trouxe o santuário abaixo nos Abutres.
Malachiasz tropeçou nos seus próprios pés, quase sendo acertado
por detritos caindo. Suas feições mudavam entre algo humano e
entre algo que não era humano. Finalmente se estabilizou em algo
menos do que isso. Nadya estremeceu.
— Não vai ser o suficiente. — Ele disse com a voz estrangulada. —
Nós temos que ir para mais longe.
— E abandonar os outros? — Os feitiços de Nadya não iam durar
para sempre;
— Os Abutres vão tentar vir atrás da gente; eles vão deixar os
outros, eles não têm importância. — Ele disse.
Nadya acenou, e se virou para correr. Malachiasz agarrou seu
braço. Ela congelou, encarando com horror as garras de ferro que
estavam perto de roçar em sua pele.
— Me solta.
Ele soltou. Imediatamente.
— Isso não vai ser suficiente.
Eles não tinham tempo. Os destroços estavam começando a se
mover. Levou um segundo para ela perceber o que ele quis dizer.
Eles não iam conseguir ir mais depressa que os Abutres a pé. Eles
precisavam de magia.
Nenhum dos deuses poderiam dar a ela magia assim e ele parecia
que estava prestes a desmaiar. Ele estava balançando em seus pés e
pálido.
Nos destroços, uma mão conseguiu se libertar. Malachiasz
xingou. Então havia mais sangue, escorrendo por seu rosto, dos
cantos dos olhos e do nariz. A pele do seu pulso se partiu, um
espinho de ferro saiu como se seus ossos fossem feitos de metal. O
espinho saiu de seu braço e atravessou a mão nos destroços.
Nadya estava prestes a vomitar.
— Eu poderia nos tirar daqui, mas... — Ele se interrompeu.
Ele parecia drenado demais para usar magia. E se eles ficassem,
os Abutres ficavam, e Anna e os Akolanos morreriam.
Malachiasz encolheu os ombros. Ele passou uma mão pelo
cabelo, espalhando sangue na testa. Observando esse garoto, a quem
ela tinha acabado de testemunhar se tornar algo horrível, esse
garoto que parecia intocável, estar abalado até o âmago e desgastado
até o seu limite fez ela contemplar fazer algo impensável. Nadya
tinha suas crenças que ela nunca perderia, mas ela também
entendia a necessidade de autopreservação. Ela tinha que continuar
viva se quisesse ajudar seu país.
Isso é um caminho perigoso.
Nadya não estava mais no mosteiro; ela tinha que fazer as
próprias escolhas.
— Magos de sangue tem que usar seu próprio sangue para magia?
— Ela perguntou, sua voz nada mais que um sussurro.
— É complicado usar o de outra pessoa então tentamos evitar. —
Ele disse, sua voz distraída. Então ele piscou. — O quê?
Ela engoliu em seco e encontrou seu olhar. Seu estômago se
agitou. Encontrar seus olhos escuros era muito desconcertante e ela
teve que desviar.

É
— Eu sei no que você acredita sobre minha magia. É fácil
espalhar o rumor que magos de sangue usam sacrifícios humanos —
Ele disse devagar, sua voz soava quase normal. — Não significa que
é verdade.
— Mas você pode?
Ele assentiu. Ela engoliu em seco, hesitou, sentindo suas mãos
tremendo como se ela lutasse com o peso de sua decisão. Ele tiraria
eles de lá; e isso salvaria os outros.
Ela faria uma exceção perigosa de seus próprios princípios pela
segurança de sua amiga, a única que sobrou, e dois potenciais
aliados? Pela possibilidade de que esse grupo desordeiro possa virar
a guerra?
Engolindo em seco, ela puxou sua manga e segurou seu
antebraço para ele.
Ele não deu a ela uma chance de mudar de ideia. Sua garra de
ferro era um caco de gelo se arrastando por sua pele, partindo sua
carne. Ela exalou e rezou para que ela não se arrependesse disso. Ela
assistiu com o coração na garganta o sangue jorrando do corte.
Sangue não era para ser derramado pelo poder. Magia era uma
convocação divina dos deuses. Mas aqui, a magia dos deuses foi
inútil. Fazer essa coisa indescritível manteria ela viva, manteria
aqueles que ela precisava proteger, vivos. Ela não podia destruir
esses monstros se tivesse morta.
Os olhos de Malachiasz se estreitaram, seus dedos apertaram o
pulso dela.
— Nosso segredo? — Ele disse.
Ela se livrou de seu aperto, girando sua mão para que ficasse
apertada no antebraço dele.
— Eu não sei o que você é. — Ela disse devagar. — Mas eu juro
pelos deuses, se você usar isso contra mim, vai ser a última coisa
que você vai fazer.
O silêncio que se seguiu era tão carregado que Nadya podia sentir
ele tremendo debaixo da mão dela. Ela teve a sensação de que era
puro esforço para se manter em uma forma semelhante à humana.
Quem era esse garoto? Ou melhor, o que ele era? E o que ela
tinha acabado de fazer?
— Eu entendo. — Ele disse.
Ela assentiu.
Ele puxou ela para o peito dele e a onda de poder que ela sentiu
em volta deles quase a derrubou. Ela se sentiu deslizando, sentiu ele
se materializar em um jato de sangue e magia. Então Malachiasz se
foi e levou Nadya com ele.
Quando Nadya acordou, era no topo de uma neve carmesim. Ela
tremeu violentamente, se sentando. Depois de uma rápida
checagem, ela percebeu que o sangue não era dela. Ela estava na
floresta, em um banco de neve, e ainda viva. Ela se sentia terrível.
Tinha uma forma escura deitada a alguns passos ao longe. Ela
hesitou antes de cambalear até Malachiasz, sem saber o que
encontraria.
Mas qualquer coisa que se apossou de suas feições tinha ido
embora. Ele era só um garoto, pálido e inconsciente no frio. Ele
estava coberto por sangue, os dois estavam, mas sem ferimentos.
Nadya se endireitou e o observou. Ele tinha uma boca macia e um
nariz imponente. Sua face era adorável, com todas as qualidades
selvagens e perturbadoras ausentes quando ele não estava acordado.
Ela não estava satisfeita consigo mesma por notar, especialmente
não agora. Enquanto seu rosto ficava corado, ocorreu a ela que ela
não tinha certeza se ele estava respirando. Ela tinha abaixado a
cabeça para ouvir seu peito quando seus olhos se abriram, pretos
como piche.
— Mate ele.
Então ela estava de costas, todo o peso do corpo de Malachiasz
pressionado no dela. Sua boca se abriu em um rosnado e dentes de
ferro brilharam na luz; ela podia sentir o gelo das suas garras
pressionados no seu pescoço.
— Malachiasz!
Seus olhos clarearam, o preto sumindo até que não havia cor a
não ser o azul mais pálido. Ele encarou ela, lentamente movendo
suas mãos para longe do seu pescoço. Então como um animal
assustado ele se afastou, cambaleando para trás até que tropeçou e
caiu alguns metros depois. Sua expressão era perturbada. Ele
examinou os arredores, seu rosto ficando mais preocupado.
— Nadya. — Ele disse suavemente. Como se ele não esperasse
que eles escapassem, que estivessem vivos e que ele fosse ele
mesmo.
— Onde estamos? — Ela perguntou, se sentando. Ela se moveu
para pegar a voryen que estava largada na neve ali perto. Ela não
embainhou.
Ele olhou para as árvores.
— Eu não sei. — Sua voz soava quebrada e não natural.
Seu coração tropeçou.
— Os Abutres ainda estão por perto.
Seus olhos fecharam e ele ficou parado.
— Sim, tem um. — Ele disse fracamente, dando um meio sorriso e
abrindo os olhos.
Ela o encarou. Seu sorriso se foi e ele se apoiou nas mãos e se
inclinou para trás, parecendo indiferente ao frio. Nadya estava
tremendo.
— Se isso não funcionou.... Se nós abandonamos nosso amigos...
— Nadya se interrompeu, pânico crepitava em seu peito. Se ela
tivesse apenas deixado Anna para trás por causa de um comando
desse monstro ela mataria ele. Ela poderia matar ele de qualquer
jeito. Ela não sabia o que a estava impedindo.
— Nadya...
— Não. — Ela vociferou, interrompendo ele. Ela se levantou,
apertando sua voryen. Ela apontou para ele. — Me dê uma razão
para não te matar.
— Você estaria morta se não fosse por mim? — Ele ofereceu,
olhando para ela, os olhos semicerrados devido ao brilho do sol na
neve.
— Não é bom o suficiente. Você estaria morto se não fosse por
mim.
Ele assentiu, permitindo isso. Ela pressionou a ponta da sua faca
debaixo do seu queixo, empurrando sua cabeça mais para trás.
— O que eu fiz foi heresia. — Ela disse suavemente.
— Valeu a pena? — Ele perguntou, soando curioso.
Claro que não valeu a pena. Toda respiração que ele dava era
Nadya desobedecendo sua deusa. Eles tinham salvado um ao outro,
mas isso não significava que ela deixaria ele viver. Era o dever dela
livrar esse mundo de monstros como ele. Ela se moveu para
pressionar a lâmina contra seu pescoço, cortar sua artéria e se livrar
dele. Sua mão tocou a dela, os dedos se entrelaçaram aos dela. Seus
olhos azuis pálidos encontraram os dela castanho escuros. Ele não
lutou, em vez disso, ele ofereceu mais de sua garganta à sua lâmina.
— Você poderia fazer muito com sangue que nem o meu. — Ele
murmurou. — Esse é sempre o primeiro passo sabe. Derramar
sangue é a parte difícil. Usar é fácil. Usar seu sangue foi
esclarecedor; é um grande poder o que você tem. Seria maior, se
você usar o meu também.
Repulsa atravessou seu corpo e ela se afastou.
— O que você é?
Malachiasz deu de ombros. Ela observou enquanto ele se
levantava, desconcertada pelo fato dele ser muito mais alto que ela.
Sua cabeça chegava somente ao seu ombro. Ela gostava mais
quando ele estava aos pés dela.
Ele deu um passo para frente; ela se forçou a continuar onde
estava. Então, sua mão – os tremores ansiosos se foram – estava
debaixo do queixo dela, direcionando seu olhar ao dele. Ela não
podia evitar sentir o frio das unhas de ferro contra sua carne,
mesmo que a mão dele estivesse firme e quente contra a pele fria
dela. Ele estudou seu rosto e todos os sentimentos de distância se
acalmaram enquanto ela também estudava ele, tentando entender o
que impedia a mão dela. Seu emaranhado escuro de cabelos grossos
que ele afastara do rosto estava coberto de sangue e neve, e o fazia
parecer mais selvagem. Uma curiosidade que ela não sabia nomear
se apossou dela. Aqui estava a coisa que ela foi ensinada a vida
inteira que era uma abominação – e ele era o pior tipo de
abominação – mas ele também era só um... garoto.
Um garoto cuja mão ainda estava no rosto dela. Ela lutou entre
querer se afastar e entre repousar seu rosto em sua palma porque
era tão quente e ela estava tão fria.
— Nadezhda Lapteva. — Ele disse contemplativamente. Quando
ele compartilhou seu próprio nome, ela não pôde deixar de se sentir
como se ele estivesse a puxando para alguma sombra profunda da
qual ela nunca escaparia. Era uma sensação semelhante agora.
Mas era só uma sensação.
— O quê? — Ela disse irritada, chateada consigo mesma por estar
sentindo isso, e com ele por agir tão estranho depois de ela ter visto
ele se transformar em um monstro.
— Você pode ser exatamente o que esses países precisam para
parar de lutar. — Ele disse. Ele abaixou a mão e a ausência a deixou
mais fria. — Ou você pode destruí-los.
Onze: Serefin Meleski

Svoyatovi Valentin Rostov: um clérigo de Myesta, Rostov se


infiltrou em Tranavia no começo da guerra santa, utilizando o
poder de engano da sua deusa. Por anos, Rostov trouxe
informações para Kalyazin, até que um príncipe Tranavianos, que
suspeitava que ele usava outra magia além da magia de sangue
herética, o envenenou.
—O LIVRO DOS SANTOS DE VASILIEV

Serefin odiava admitir que Ostyia estava certa, mas ele acordou na
manhã seguinte com uma ressaca para competir com todas as
outras. Para o crédito dela, ela lhe entregou um odre de água sem
dizer nada quando saíram e o sorriso dela era levemente espertinho.
— Fiz muito papel de bobo ontem à noite? — Ele perguntou
quando a estalagem estava fora de vista.
— Você prometeu a Felicíja Krywicka todas as terras do Oeste
como presente de casamento — disse Kacper.
Os olhos de Serefin se estreitaram. A noite anterior era nebulosa,
mas ele tinha quase certeza que isso era uma mentira.
— Tudo correu bem. — Ostyia disse. — Você era muito Serefin às
vezes, mas no final das contas, nenhum mal foi feito.
— Por sangue e ossos, não meu verdadeiro eu. — Serefin zombou,
horrorizado.
— Enquanto você falava com Felicíja, Krywicki mencionou que
ele esteve em Grazyk um mês atrás e ficou alarmado ao ver quantos
Abutres estavam se esgueirando pelo palácio. — Kacper disse.
Serefin se endireitou na sua sela.
— Ele disse mais alguma coisa?
Kacper assentiu.
— Os Abutres estão recrutando cada vez mais rápido, como se
estivessem se preparando para alguma coisa.
— Nós sabemos que os Abutres são levados às Minas de Sal
quando se integram. — Ostyia deliberou. — E estivemos mandando
muitos prisioneiros Kayazi para lá nos últimos meses.
Serevin sentiu um arrepio na espinha. Eles estavam deixando
alguma coisa de fora.
Luz do sol brilhava no azul profundo do lago, quase cegando
Serefin quando ele olhou diretamente. Grazyk era uma cidade
portuária do lago Hańcza, aberto com muitos canais e rios selvagens
que eventualmente desaguavam no mar.
Barcos flutuavam perto das docas. Serefin se perguntou se
alguma coisa foi feita sobre os piratas atacando navios Tranavianos
quando eles saíam em águas abertas. Tinha se tornado problema
suficiente para ganhar a atenção do pai, mas isso foi antes de
Serefin ir embora. Uma cidade portuária no meio do reino. Às vezes
parecia que Tranavia era mais água do que terra.
Tinha uma sequência de pequenas vilas para passar antes deles
finalmente chegarem na cidade. Sempre tinham um cheiro
desagradável e a aparência era pior, as barracas velhas mal se
sustentavam, e com prateleiras e prateleiras de peixe secando no
sol.
Serefin viu uma jovem mulher atravessar a rua, dois baldes
presos a uma vara apoiada nos ombros. Eles estavam cheios de água
e se moviam, peixes vivos. Suas roupas eram esfarrapadas, suas
saias também eram esfarrapadas e sujas na bainha. Um garotinho
correu para ela de onde ele estava sentado na porta de uma casa
com persianas penduradas em dobradiças simples. Ele puxou um
dos baldes e a desequilibrou. Ela estava rindo enquanto abaixava os
baldes e colocou a mão em um deles, pegando um peixe e
mostrando ao garoto.
A guerra estava acabando com Tranavia. As vilas Kalyazi estava
em um estado similar, mas ele não ligava para camponeses Kalyazi
que passavam fome; ele ligava para Tranavianos que passavam
fome.
Quando eles estavam perto da cidade, Ostyia instigou seu cavalo
a um galope para alcançar os portões primeiro para que os guardas
estivessem preparados para a chegada do Príncipe Herdeiro.
— Bem — Serefin disse suavemente. — começou.
— Se anime, Serefin. — Kacper disse. — Não vai ser tão ruim.
Você só tem que bajular e mentir, então você pode esfaquear seu
velho pelas costas e acabar com isso.
Serefin reprimiu sua paranoia. Ele empurrou para fora de sua
cabeça, colocou seu livro de feitiços vazio na mochila onde não seria
visto – um príncipe com um livro de feitiços vazio era vergonhoso –
e se preparou para enfrentar seu destino.
Grazyk era a cidade mais opulenta de Tranavia, construída muito
antes da guerra, quando Tranavia estava no auge da riqueza, e a
moda era cor e luz e ouro. Serefin achava que ouro nunca saía de
moda, mas agora era muito caro alinhar e moldar portas com tijolos
de ouro e madeira impermeada com ouro. Alguns desses prédios
ainda estavam presentes, uma evidência de quando Tranavia não era
tão pobre. Muitos tinham sido destruídos há muito tempo pela
riqueza que poderia ser retirada de suas fundações.
Tinha uma nuvem de poluição acima da cidade. Era uma
opressão que todo mundo aprendeu a ignorar. A neblina veio de
experimentos mágicos que deram errado, subindo do chão onde
tinha minas por perto – não muito diferente das Minas de Sal.
Enquanto os experimentos se mudaram para Kyętri, a nuvem de
poluição nunca se dissipou. Ficava no ar suspensa e escura, um
lembrete do que acontecia quando magos queriam demais.
Não que algum mago em Tranavia temia o lembrete. Só fazia a
cidade toda ter cheiro de cinzas. Nobres tentavam combatê-lo
usando bolsas com ervas caras e temperos ou passando óleos
cheirosos importados de Akola. Nenhum funcionava, mas nada
impedia slavhki de suas soluções escandalosas para coisas que não
eram problemas.
Ostyia mandou um mensageiro ao palácio, iniciando as
formalidades desnecessárias. Serefin tentou encontrar os
sentimentos de saudade de casa que ele teve quando estava no
front, mas agora ele percebeu que havia sido uma ilusão
melancólica.
Se a cidade era luxuosa, então o palácio era magnífico. Brilhava
na distância, a promessa de uma beleza vigiando a cidade e sua
neblina infame. Pináculos se torciam pelo céu, suas milhares de
janela refletindo um brilho tão intenso que Serefin teve que abaixar
os olhos.
Os guardas abriram os grandes portões de madeira quando eles
se aproximaram. Até esses portões foram martelados em ouro. Um
servo esperava no pátio para pegar os cavalos.
O pátio era pavimentado com granito liso que se transformava
em uma grama exuberante na frente do palácio. Zumbia com ruídos
baixos de atividade. Ele podia ouvir o som de lâminas se
encontrando no lado norte. Ele se preparou para a convocação
imediata de seu pai. Chegou imediatamente através de um servo
usando uma máscara simples marrom que deixava apenas seus
olhos visíveis. Um dos servos pessoais do pai. O servo curvou-se
para Serefin, que falou antes que ele pudesse passar a mensagem.
— Sim, sim, meu pai deseja me ver.
O criado assentiu. Não poder ver seu rosto era desconcertante.
Serefin não gostava muito das máscaras que eram moda na corte
nos últimos anos.
O estilo se inspirou nas máscaras usadas pelos Abutres. As únicas
pessoas que não usavam máscara geralmente era a família real.
Serefin odiava usar qualquer coisa que deixasse sua visão pior. Sua
mãe nunca estava em Grazyk tempo suficiente para se importar, e o
rei estava acima das tendências da corte.
Serefin passou uma mão pelo cabelo e acenou para o criado
novamente.
— Bom? Me leve a ele. Não podemos deixar Sua Majestade
esperando.
Doze: Nadezhda Lapteva

Pouco se sabe sobre a deusa do sol. Quieta e eterna, ela nunca


concedeu seu poder a um mortal, ninguém sabe o que aconteceria
se um dia ela concedesse.
—O CÓDEX DO DIVINO, 3:15

Nadya e Malachiasz estavam perdidos. Aparentemente, senso de


direção não era um dos muitos talentos do mago de sangue.
Nadya envolveu os braços em torno de si, tremendo
violentamente. Ele olhou para ela antes de retirar sua jaqueta
militar coberta de sangue. Ela hesitou, franzindo o cenho para o
símbolo de tudo que ela tinha passado a vida lutando. Mas o casaco
dela foi rasgado em tiras inúteis e ele não parecia notar o frio, então
ela aceitou sua oferta. A jaqueta ainda estava quente do calor do seu
corpo. Ela puxou as mangas para cobrir as mãos dela.
Ele a olhou antes de voltar a andar pelo bosque.
— Você deveria ter cortado a garganta dele. Eu estou confusa
com o fato de você ter escolhido poupá-lo novamente. — Disse
Marzenya. O pensamento deslizando pelos fundos da mente de
Nadya, como uma sugestão.
Nadya notou um aumento distinto da presença de Marzenya, em
suas interjeições e proximidade. Ela descobriu que gostava,
consolada pelo fato de que a deusa estava por perto e observando
ela. Mas uma pequena parte estava nervosa com a pressão que
vinha. Pensamentos assim não serviriam para alguém escolhido
pelos deuses. Uma das lições mais importantes que o padre Alexei
ensinou a ela foi treinar sua mente, manter as dúvidas longe.
Enquanto era perfeitamente humano duvidar, era uma coisa que ela
não podia fazer.
Por mais que Marzenya desejasse isso, Nadya não precisava de
mais morte. Tinha uma chance de que quando – ou a esse ponto, se
– ela e Malachiasz voltassem, nada teria sobrado da igreja. Nenhum
dos dois estava disposto a admitir isso.
Seria o ponto de ruptura dela. Era uma ilusão esperar que a fuga
deles tivesse salvado os outros, então que seja, mas Nadya não
conseguia aceitar a ideia de que sua última amiga no mundo tivesse
morrido e que tivesse sobrado uma abominação Tranaviana como
companhia. Anna tinha que estar viva.
Mas Nayda não podia se livrar do sentimento de que ela tinha
abandonado Anna do mesmo jeito que ela abandonou Kostya.
Correndo para se salvar por um propósito maior era uma
sobrevivência amarga e significava perder tudo e todos a cada passo
que ela dava.
— Nós não vamos sobreviver uma noite aqui fora. — Nadya notou
quando eles pararam em uma clareira para um descanso rápido.
Malachiasz estava olhando para as árvores com uma expressão
intrigada.
— O que você acha que nos mataria primeiro? O frio ou alguma
coisa que espreita nessas montanhas?
— Isso é uma pergunta que não quero que seja respondida.
Ele sorriu suavemente, se virando para onde ela estava sentada
em uma árvore caída.
— E vai ser o seu tipo, não é? É só uma questão de tempo até eles
nos acharem aqui?
— Kalyazin não tem monstros? — Ele perguntou.
Ela estreitou os olhos, pensando na sua pergunta, mas era uma
pergunta retórica já que ele continuou falando.
— Rozá é arrogante. — Ele disse. — Ela deixou Aleks, o melhor
rastreador dos Abutres, em Tranavia. Ela não tem como nos achar
agora.
Nadya passou sua mão pelas contas de oração. O livro de feitiços
amarrado no quadril de Malachiasz era grosso. Ela achava difícil
acreditar que os outros Abutres não podiam encontrar um jeito de
achá-los.
Ele seguiu seu olhar e parecia saber o que ela estava pensando.
— A maioria dos Tranavianos compram seus livros de feitiços
com eles já escritos por arcanistas, incluindo os Abutres. Eu escrevo
os meus.
— Mas você não sabe com certeza se Rozá não teve alguém que
escreveu um monte de feitiços de rastreio antes de vir.
— Claro que não, mas é improvável.
— O que não torna nada melhor. Eles ainda podem estar na
igreja. Anna, Parijahan e Rashid podem estar mortos, e agora, nós
estamos perdidos, no meio da montanha, lentamente congelando
até a morte. — De um modo distante ela sabia que estava em pânico.
Tudo estava escorrendo pelos dedos e ela não sabia como parar. Isso
não era o jeito que as coisas deveriam estar acontecendo.
Malachiasz se sentou ao lado dela, cuidadoso para manter espaço
entre eles, mas ela conseguia sentir o calor vindo dele e era quase o
suficiente para ela se inclinar contra ele. Quase.
Ela botou a cabeça entre as mãos. Tinha que ter um jeito de sair
dessa situação. Ela arriscaria voltar a igreja por Anna, ela tinha que
fazer isso. Além disso, ela não tinha nada. Ela podia continuar
fugindo, já parece que é tudo que ela sabe fazer.
Ou ela podia acabar com isso. Ela olhou para Malachiasz que a
encarou de volta, sobrancelhas se erguendo.
— Matar o rei Tranaviano destruiria os Abutres também?
Ele balançou a cabeça.
— Eles têm o próprio rei, o Abutre Sombrio. — Ele viu o
desapontamento no rosto dela e continuou depressa. — Você pode
atrapalhar a ordem, Nadya. Você já fez isso.
— Os Abutres destruíram os clérigos do meu país. — Nadya
sussurrou. E ele era um deles.
Mas ele também estava sentado quieto ao lado dela, enquanto ela
trabalhava para recolher os cacos da sua vida aos pedaços. Ela não
tinha que confiar nele, nem gostar dele, mas ele ignorou várias
chances que ele teve de matá-la, assim como ela continuava
poupando a vida dele. Isso tinha que contar para alguma coisa. Ela
podia suportar essa trégua desconfortável e relutante, mesmo se ela
se lembrasse dos olhos de ônix e de dentes de ferro toda vez que ela
olhava para ele. Exceto que agora, suas unhas eram só as de um
garoto muito ansioso, irregulares e vermelhas de serem roídas.
— Você quer vingança por isso? — Ele perguntou.
— Eu não sei o que eu quero. — Ela sussurrou.
— Não tem nada de errado com isso.
Exceto que a esperança de uma nação estava depositada nela. Ela
passou a vida inteira estudando o Códex Divino e se preparando
para algo grandioso que abalaria o mundo. Ela só não sabia como
seria. Ela não sabia se estava na frente dela agora, ou se ela tinha
que trilhar outro caminho.
Esse caminho significaria ter que trabalhar com esse Tranaviano?
Era isso que ela não entendia. Porque era claro que Marzenya o
queria morto.
— Por que você está aqui? — Ela perguntou suavemente. — Por
que você acolheria os planos de Parijahan e Rashid para assassinar
seu rei?
— Ele não é o meu rei.
A testa de Nadya se franziu. Se ele foi um Abutre, então seu rei
teria sido o Abutre Sombrio. Era isso que ele queria dizer?
— Tranavia está se desfazendo. — Malachiasz disse com a voz
baixa. — O trono é corrupto. Mas se for quebrar a dinastia dos
Meleskis e substituir o rei por alguém que se importa com Tranavia,
então talvez o reino possa ser salvo. Apesar de como você me julga,
eu odeio essa guerra. Eu também quero que acabe.
Como se ele tivesse percebido que falou demais, seus olhos se
apertaram e desviaram. Ela tirou seu colar, passando os dedos pelas
contas até que ela achou a que parecia certa. Nadya tocou o poder de
Alena apenas uma vez na vida e tinha sido humilde. Ela sempre
ficava nervosa quando rezava para os deuses mais velhos, os que
raramente concediam magia para mortais. O Códex disse que Alena
nunca concedeu, mas Nadya sabia que não era exatamente verdade.
— Você me leva de volta a igreja? — Rezou Nadya.
O toque quente da deusa preencheu Nadya. Ela parou de tremer.
Então algo repuxou no peito de Nadya, logo acima do coração. Uma
linha que ela podia seguir até a igreja.
De volta ao perigo, de volta a esse estranho mundo de monstros e
magia negra que ela estava. Se fosse onde ela deveria estar, então
que fosse, mesmo se a levasse a Tranavia, no ninho dos monstros.
Ela se levantou e segurou as contas livremente nas mãos.
— O que você está fazendo? — Malachiasz perguntou.
— Rezando. Eu sei como voltar a igreja. Podemos chegar lá antes
do anoitecer se nos apressarmos.
Ela não podia ler a expressão que passou pelo seu rosto. Era uma
mistura de desconforto e temor ao mesmo tempo. Ela achou
estranhamente animador que a magia dela o desconcertasse tanto
quanto a dele.
Eles não estavam tão distantes quanto Nadya pensou. Quando
eles chegaram na igreja, eles acharam a porta da frente pendurada
nas dobradiças. As paredes estavam cobertas por sangue. Nadya
cambaleou ao imaginar o pior, e Malachiasz levantou uma mão para
segurá-la. Ele não removeu sua mão do seu braço e ela não se
afastou de seu calor constante.
— Os Abutres não estão aqui. — Ele disse com a voz suave.
Ela engoliu em seco. Suas mãos estavam tremendo quando ela
abriu a porta.
— Olá? — Ela chamou para o ar escuro e parado de dentro da
igreja.
Só houve silêncio. Ela sentiu seu coração afundar. Ela olhou por
cima do ombro para Malachiasz, que a ultrapassou, adentrando
mais na igreja.
Ele foi jogado para o lado quando Anna apareceu na sala. Ela
jogou seus braços ao redor do pescoço de Nadya, e Nadya finalmente
relaxou. Anna estava segura; ela ainda não tinha perdido tudo.
— Pensei que estava morta. — Anna sussurrou ferozmente.
Ela se soltou, relutante, mas então um olhar de aço apareceu em
seus olhos escuros e ela se virou. Os olhos de Malachiasz se
arregalaram e ele deu um passo para trás, levantando as mãos.
Houve um estalo agudo quando Anna o socou na mandíbula.
— Como você se atreve… — Ela vociferou.
— Anna, deixe-o em paz. — Nadya disse, pegando o braço de Anna
quando ela se preparava para atacar novamente. — Nós não tivemos
escolha.
— Nós?
Malachiasz mexeu a mandíbula devagar. Nadya ouviu o estalo de
onde ela estava parada. Ele definitivamente teria um hematoma.
— Os Abutres se foram depois de nós? — Nadya perguntou
esperançosamente.
Anna ainda estava olhando furiosa para Malazhiasz. Ele deu um
passo para trás e correu para o santuário. Ela rangeu os dentes, mas
assentiu.
— Eles me queriam... e ele.
— Porque ele é um deles.
Nadya acenou.
— Nós tínhamos que ir.
Nadya balançou a cabeça.
— Eu vou para Tranavia. Eu vou acabar com essa guerra.
Anna se virou, mas seus movimentos eram lentos, horrorizados.
— Nadya....
— Se essa guerra estivesse em um lugar diferente, se não
estivéssemos perdendo, então eu iria para Komyazalov. Eu iria para
a Corte Prateada e deixaria o rei decidir o que ele faria comigo. Mas
eu não tenho esse luxo, Anna. Você tem que entender isso.
— Então você vai trabalhar junto com esse monstro?
— Ele salvou minha vida. — Nadya disse.
— Só para que ele possa arruiná-la depois!
Nadya não respondeu.
— É isso que os deuses querem? — Ela perguntou.
— É isso o que eu quero.
Anna ficou tensa.
— Isso não faz diferença, e você sabe.
— Ainda é minha vida e eu tenho uma opinião sobre como usá-la.
Anna se afastou, e fez o sinal contra o mal em cima do coração.
Nadya revirou os olhos.
— Os deuses conversaram na minha cabeça durante a minha vida
toda. Eu tinha esse… destino pairando sobre mim e eu acho que o
mínimo que posso pedir é a escolha de como viver. Se isso significa
que eu tenho que ir com esses estrangeiros e com esse monstro,
então que seja.
— Você está se ouvindo?
Nadya não entendia porquê Anna estava reagindo desse jeito. Era
como se Nadya estivesse quebrando a imagem de um clérigo
sagrado e inocente de Anna, mas Anna conhecia ela bem. Ela foi
escolhida pela deusa da morte. Ela nunca teve uma chance de ser
inocente.
Anna pegou o rosto de Nadya entre suas mãos, a forçando a
encontrar seus olhos.
— Não quero seu nome adicionado no livro dos santos. — Ela
disse calmamente. — Eu pensei... — Sua voz falhou e ela engoliu em
seco. — Quando metade do santuário entrou em colapso e não te
achamos, eu pensei...
Nadya abraçou ela. Anna tinha cheiro de incenso e de casa. Os
caminhos na frente dela iam em direções diferentes mas levavam ao
mesmo fim. A criança nela ansiava para ver a famosa Corte Prateada
mais uma vez – a última vez que ela esteve lá era muito nova para
se lembrar com clareza. Ela queria ver as dolzena com seus
kokoshniks e as voivodes antes que todo aquele ouro e esplendor se
desfaçam. Mas para eles, ela seria uma soldada, nada mais, talvez
uma relíquia sagrada ou um símbolo. Nada humano.
Nadya amava seu país – mais que a própria vida – mas ela queria
fazer algo que importasse. Ela poderia levar os deuses de volta a
Tranavia se fizesse isso. Eles teriam que aparar arestas do plano na
estrada, mas ela sentia uma confiança que ela nunca sentiu antes.
Havia um elemento de providência divina – estranho dadas as
circunstâncias – e Nadya não ia ignorar isso por uma opção mais
segura.
Ela se afastou, indo encontrar os outros. Ela quase se chocou com
Malachiasz no corredor. Ele parecia frenético, fazendo o medo
aflorar em Nadya. Ele a pegou pelos ombros.
— Sua magia pode curar?
Os olhos de Nadya se arregalaram e ela assentiu.
— Parijahan estava bem. — Anna disse.
— Ela definitivamente não está bem agora. — Ele disse, a voz
tensa. A pele na sua mandíbula estava começando a ficar roxa no
lugar onde Anna o socou.
— Se acalme. — Nadya disse, tocando seu braço.
Ele piscou, seu olhar indo para onde os dedos dela tocavam
levemente em seu antebraço marcado, e percebeu que ele ainda
estava segurando-a pelos ombros. Ele a largou e deu um passo para
trás.
Ele realmente está preocupado com ela, Nadya pensou em
choque. Ele se importa.
— Será que sobrou algum incenso por aqui? Eu vou precisar de
um. Um incensário também seria muito bom, se vocês viram algum
por aqui. Qual é o tipo de ferimento?
— A lateral do corpo dela foi rasgada. E sim, eu posso achar isso.
— Ele correu pelo corredor.
Ele voltou rapidamente com um incensário amassado, uma bolsa
cheia de incenso e algumas varetas que pareciam um enigma para
ele. Ele os entregou a Nadya com uma expressão tão zelosa que o
coração dela pulou. Ela entregou o incensário para Anna, seguindo
Malachiasz para um dos quartos laterais.
Quem quer que tivesse envolvido o ferimento de Parijahan fez
um bom trabalho, mas havia algo perverso que Nadya podia sentir
no corte irregular que o fazia apodrecer. Anna acendeu o incensário.
O cheiro de especiaria e santidade encheu a sala quase que
instantaneamente. Nadya relaxou e fechou os olhos. O cheiro era
familiar, era casa. Ela pegou uma vareta que queimava lentamente
do incenso e colocou atrás da orelha, ouvindo a risada abafada de
Anna. Era um hábito ruim dela e ela tinha chamuscado o cabelo
várias vezes, mas ela gostava de deixar queimando por perto. Rashid
estava andando de um lado para outro e Malachiasz emitia uma
energia tão frenética que antes de poder fazer qualquer coisa, Nadya
suspirou.
— Tudo bem. Garotos saiam daqui. Parijahan vai ficar bem. Sua
ferida piorou, ela tem febre, mas ela vai ficar bem. — Ela enxotou
todos para fora.
Ela enrolou seu colar na mão, achando a conta de Zbyhneuska e
pressionando seus dedos. Abrindo os olhos, ela examinou a forma
inconsciente de Parijahan. A respiração da garota estava rasa, suor
cobria sua testa, sua pele marrom estava acinzentada e pálida.
A deusa da cura era muda, trabalhava com sensações e visões. No
panteão, ela era a mais gentil, apesar dos soldados terem a
tendência de mandar todas as suas orações para Veceslav em vez
dela; alguma coisa sobre como deus da guerra era mais provável
protegê-los e curá-los na batalha do que a deusa. Uma superstição
ridícula. A maioria ia durar mais na guerra se eles acendessem uma
vela para Zbyhneuska.
Devido ao silêncio de Zbyhneuska, Nadya sempre sentia que
podia desabafar com ela.
— Marzenya está chateada por eu ainda não ter matado o
Tranaviano — Nadya disse. — Eu sei que estamos em guerra e os
Tranavianos são hereges, mas assassinato parece desnecessário
para mim. — Ela sentiu um zumbido de repreensão, mas também
de compreensão. Zbyhneuska também achava que morte era
desnecessária.
Mas Zbyhneuska, deusa da saúde, não era a matrona de Nadya.
Marzenya, a deusa da morte da magia e do inverno, era. Não era algo
que incomodava Nadya sempre. Mas o jeito que Malachiasz tinha
entrelaçado os dedos nos dela, a resignação com que ele preparara o
pescoço para a lâmina dela, a deixou desequilibrada.
Ela não entendia. Ela não queria matá-lo até que fosse obrigada.
Quando ela não tivesse mais escolha.
Nadya puxou o feitiço que Zbyhneuska deu a ela em sua cabeça,
tentando decidir como canalizar apropriadamente. Tinha uma
perversidade na ferida de Parijahan que deixava Nadya assustada.
Ela puxou sua magia, sentindo um coro de discursos sagrados
espiralando na parte de trás de sua cabeça. Parecia limpo;
esperançosamente, seria o suficiente para curar o dano feito pelos
monstros.
Isso poderia ser mais do que magia de sangue? Os Abutres são
outra coisa? Ela pensou, mas não como oração, mas Zbyhneuska
reagiu mesmo assim. Sua confusão assustou Nadya.
Mas os deuses não eram infalíveis. Os Tranavianos acharam
maneiras de se protegerem dos deuses; essa foi uma das razões pela
qual a guerra começou. Significava que se eles tinham achado uma
maneira mais sombria de subordinar magia, então os deuses não
saberiam. Isso era aterrorizante.
Nadya retornou seu foco para sua tarefa, murmurando orações
baixinho. Ela não tinha certeza se foi bem sucedida quando levantou
as mãos e abriu os olhos. O que ela tinha certeza, era que sua cabeça
estava girando e que ela se lembrou repentinamente de que não
sabia quando comeu alguma coisa pela última vez. Ela sentia que ia
desmaiar.
A respiração de Parijahan ficou firme, e a ferida tinha se fechado,
então Nadya a deixou dormindo e abriu caminho pelos escombros
até chegar no que restava do santuário.
— Ela vai ficar bem. — Ela disse, caindo ao lado de Malachiasz na
pilha de almofadas agora cobertas com sujeira e alguns detritos. —
Agora deixe eu arrumar isso enquanto tenho a atenção de
Zbyhneuska.
— Sua deusa não vai permitir que sua magia seja usada em
alguém como...
— Cala a boca, Malachiasz. — Nadya disse cansada.
Ele ficou tenso, ficando completamente parado quando ela roçou
em seu longo cabelo negro, pressionando gentilmente os dedos no
machucado que escurecia. Seus olhos se fecharam, e ela pensou que
ouviu ele prender a respiração. Curar o hematoma era uma tarefa
fácil, mas consumiu suas últimas energias. Então, ela desmaiou.
Treze: Serefin Meleski

Svoyatova Evgenia Zotova: Zotova se disfarçou de homem e viveu


a maior parte da sua vida profetizando em uma caverna na base
das montanhas Baikkle.
—O LIVRO DOS SANTOS DE VASILIEV

A sala do trono do palácio era um dos lugares mais extravagantes


em toda Tranavia. Era um espaço enorme, alinhado com colunas de
vidro. Havia gravuras florais esculpidas que subiam por elas em
espirais delicadas. O chão era feito de mármore negro, tão polido
que era praticamente reflexivo. Um luxuoso tapete de um violeta
intenso cobria todo o comprimento da sala, levando até o trono do
pai de Serefin. O trono era a manifestação física de poder, sangue,
glória e magia. Flores de ferro com espinhos afiados se encurvavam
no encosto e os braços e pernas do trono eram feitos de metal
intrinsecamente retorcido. Demandava atenção.
Serefin nunca conseguiu se imaginar ali. Ele era uma arma,
nunca um príncipe.
Izak Meleski sentava no trono agora, alto e com a postura ereta,
no seu casaco militar marfim estampado com medalhões e dragonas
pretas. Ele tinha um rosto severo – um que Serefin odiava admitir
que era muito parecido com o seu – uma barba bem aparada e
cabelos castanhos escuros muito bem cuidados. Sua coroa era um
pedaço simples de ferro que, de alguma maneira, era ainda mais
autoritário que o trono, ou mais dramático.
É a relevância e não os símbolos, Serefin deliberou.
Serefin estreitou os olhos ao ver um conselheiro próximo do rei,
Przemysław, pairando em volta do trono. O velho homem
escorregadio era adversário de Serefin na corte desde que ele se
lembrava. Toda vez que ele voltava para casa, Przemysław estava lá
para mandá-lo de volta para o front.
— Vejo que levou seu tempo para retornar. — Izak notou
enquanto Serefin se aproximava do trono, se curvando diante do pai.
— Ah sim, obrigado pai, faz mesmo muito tempo. Quanto
mesmo? Oh, só faz oito meses desde a última vez que estive em
Tranavia. Sim, é um longo tempo para ficar no front, mas como você
vê, estou quase ileso. — Ele tocou sua têmpora. — Algumas
cicatrizes não são tão visíveis.
Seu pai não aparentava estar se divertindo, e enquanto Izak
nunca apreciou muito a sagacidade de Serefin, ele costumava
ganhar, pelo menos, um meio sorriso dele. Serefin ficou sério. Esse
não era um bom começo.
— Eu cheguei na hora esperada pela minha viagem. — ele disse.
— Eu estava no coração de Kalyazin quando sua carta chegou.
— Sim, o tenente Kijek me falou desse fiasco.
— Eu tinha tudo sobre controle e teria completado a tarefa se não
fosse pela convocação. E eu admito... — Serefin pausou, engolindo a
ansiedade que ameaçava sufocá-lo. Subitamente ele estava tão
nervoso que não conseguia falar. — Eu estou curioso sobre a
necessidade dessa Rawalyk. Parece repentino.
— É a tradição, Serefin. Você está discordando disso? — A voz de
Isak ficou alta de um jeito que fez brotar um medo profundo nos
ossos de Serefin.
— Eu estou discordando do fato de ter sido chamado para longe
do esforço de guerra, por capricho, aparentemente. — Serefin
respondeu, com a voz uniforme. Ele estava entrando em território
perigoso com o pai, e ele sabia. Mas se estivesse apenas sendo
paranoico, seu pai ia ignorar seu sarcasmo como sempre fazia e isso
ia terminar com perfeita civilidade. — Não precisamos de alianças.
Voldoga era um ponto crucial, os Kalyazi não vão aguentar por
muito tempo, não precisamos ir rastejando até nossos vizinhos por
recursos. Essa é uma tradição que não foi cumprida por muitos
anos.
— E agora nós estamos cumprindo. — Izak disse, a voz em um
tom gelado.
Serefin encontrou o olhar frio do pai e deu de ombros.
— É uma perda inútil de recursos.
— Sua preocupação foi anotada, e ainda assim, você está aqui.
Não era como se ele tivesse escolha. Ele fazia o que lhe
mandavam, não importa o que mandavam. Era... exaustivo. Ele
rejeitou a ideia de trazer os livros de feitiços Kalyazi que ele
encontrou na volta para casa. Se o rei não perguntasse, porque
Serefin deveria dizer a ele? Antes, ele diria para o seu pai
imediatamente, desesperado por aprovação. Agora era
dolorosamente claro que seu pai não se importava. Ele ainda não
tinha certeza se suas suspeitas eram justificadas, mas esse não era...
o pai que ele conhecia. Ele era severo, ele era sério, sim, mas nunca
foi frio.
Houve um movimento nas sombras atrás do trono do rei. Uma
figura relaxada descansava nos degraus em volta do estrado. O
estômago de Serefin afundou. Era um Abutre, mascarado e ouvindo
na sala do trono do rei.
Isso era errado. Não era assim que as coisas funcionavam em
Tranavia. Serefin fechou um punho atrás das costas.
— Os Abutres capturaram a clériga? — Serefin perguntou,
desviando o olhar de um deles que estava no canto.
Izak franziu o cenho. Um músculo na mandíbula se apertou
quase imperceptivelmente. Serefin levantou uma sobrancelha. Foi
porque ele mencionou os Abutres ou foi outra coisa?
— Eles não conseguiram? — Serefin perguntou inocentemente.
— Aparentemente, houveram complicações na sua recuperação.
— Izak disse se levantando. Ele era um homem alto; Serefin era
somente alguns centímetros mais alto. Ele entrelaçou suas mãos
atrás das costas e desceu do estrado. — Os Abutres relataram que ela
estava com um grupo desonesto que era especialmente astutos.
Os Abutres falharam? Isso era valioso. Serefin teve que reprimir
o sorriso que ameaçava escapar de sua máscara de compostura.
— Um grupo desonesto de Kalyazi que resistiram aos Abutres?
— Aparentemente havia um Abutre desertor com eles.
Serefin deixou uma risada incrédula escapar.
— Um traidor? Nós sabemos quem é?
Izak balançou a cabeça. Serefin olhou para Przemysław.
— Os Abutres foram do mesmo jeito de sempre — disse
Przemysław. — Irredutíveis em dar informações sobre suas ações.
Fomos informados de que um deles tinha fugido. Era um garoto que
teve dificuldade na transição para a ordem deles. A família faz parte
da corte, então precauções extras foram tomadas para que não
houvesse afeto residual nem capacidade de reconhecimento. Pelo o
que eu entendi, usaram novos métodos para doutriná-lo. Métodos
dolorosos.
— Então, não temos nada! — Serefin disse alegremente.
— Serefin! — Izak vociferou, lançando a ele um olhar tão sombrio
que ele queria se virar e sair correndo da sala.
Isso é pior do que eu temia.
— Os Abutres enviados eram jovens. — Przemysław disse
devagar. — Eles ficaram perplexos ao ver um deles entre os
inimigos, apesar de isso trazer questionamentos sobre o
treinamento...
— O treinamento deles está bem. — Uma nova voz interrompeu.
O Abutre andou furtivamente para a frente. Sua máscara era uma
coisa visceral; bordas irregulares foram cortadas no couro de uma
maneira que parecia sangue escorrendo.
— Então porque a clériga não está aqui agora? — Serefin
perguntou.
O Abutre chegou perto de Serefin.
— Não respondemos a você. — Ele disse com a voz baixa.
— Não. — Serefin respondeu. — Claro que não. Você não pode
oferecer nenhuma explicação do porquê um dos seus foi encontrado
com uma clériga Kalyazi.
— Quando nosso rei percebeu que a extração não foi bem-
sucedida, ele os fez retornarem para decidir a melhor maneira de
lidar com a garota. — O Abutre disse. Ele se virou de Serefin para se
dirigir ao rei. — Eu te asseguro que tudo será tratado como deve.
— Vejo que sim. — Izak disse. — Não posso conceder outra visita
as Minas de Sal tão cedo.
Serefin enrijeceu. Por que ele iria para as Minas de Sal?
— Eu deveria ter ido atrás dela. — Serefin murmurou.
O Abutre se virou, mas o rei falou antes.
— Você deve fazer o que é ordenado. — De novo, um traço de
veneno. Uma oscilação errática de frieza para raiva quente.
— Pai? — Algo escorregou em Serefin e sua voz não era mais
composta. Menos do general mago de sangue, e mais do garoto que
não tinha certeza do que estava acontecendo e ainda sim – depois de
todos esses anos – não entendia porque foi afastado de uma guerra
que ele pouco acreditava. Foi um momento de fraqueza que ele se
arrependeu imediatamente.
Ele não sabia o que esperava do pai. Um segundo de silêncio
compreensivo? Alguma coisa para diminuir seus medos?
Ele recebeu apenas uma olhar frio e desdenhoso do pai. Ele
continuou como se nada tivesse acontecido.
— Vamos aguardar três semanas para começar a Rawalyk e para
os representantes adequados chegarem. Até lá, esse tempo é para
você.
Serefin assentiu.
— Obrigado.
O que eu deveria fazer em três semanas? Especialmente com
todos do palácio observando. Serefin conhecia uma dispensa
quando ouvia uma, então ele se virou para sair.
— Serefin. — Seu pai chamou por ele. Ele se virou, uma parte se
erguendo com esperança de que talvez seu medo seria dispersado,
que seu pai sorriria e daria as boas vindas a ele como um filho, não
como um intruso. Mas tudo que ele disse foi: — Sua mãe está em
Grazyk. Você deveria falar com ela.
Algo em seu tom congelou Serefin completamente. Pânico
aflorou em seu peito.
— Claro, pai, agora mesmo.
Ali estava seu reconhecimento. Agora era hora de estratégia.
Quando ele saiu da sala do trono, Kacper estava esperando na
porta. Ele estava recostado na parede, mexendo nas unhas e
ignorando os guardas, que o estavam ignorando cuidadosamente
também.
— O quão ruim foi?
Serefin olhou para os guardas e inclinou a cabeça para o corredor.
Kacper seguiu atrás dele. Onde eles podiam ir para falar livremente?
Nenhum lugar nesse palácio é seguro, Serefin pensou.
— Eu tenho preocupações. — Serefin finalmente respondeu,
parando em um corredor e olhando pela janela.
Kacper ficou pálido.
Serefin considerou a volta da mãe para Grazyk. Ela não teria
voltado somente pela Rawalyk, ele sabia disso. Ele desejou que
pudesse falar com ela sobre o pai, mas Izak Meleski ficaria sabendo.
Ela não contaria a ele, mas ele saberia. Serefin passou
distraidamente um dedo pela cicatriz no rosto. Se sua mãe voltou,
ela trouxe sua bruxa junto com ela. A torre da bruxa poderia ser o
lugar mais seguro dos informantes do pai, mas isso significava ter
que falar com Pelageya Borisovna.
Seu pai deu a Pelageya um amplo dormitório. A mulher Kalyazi
deixou seu país depois de rejeitar seus deuses. Apesar de ela não ter
magia, por si só, ela era alguma coisa. Uma vidente. Uma louca.
— Você sabe se a Pelageya está na sua torre? — Serefin perguntou
levemente.
Os olhos de Kacper se arregalaram.
— O que você quer com ela?
— Um lugar que meu pai não pensaria em olhar. — Ele pegou seu
livro de feitiços, esquecendo que estava vazio. Ele suspirou. — Nós
temos três semanas até a Rawalyk.
Kacper assentiu. Ele esperava que fosse tempo suficiente para
entender o que estava acontecendo. Se essa Rawalyk era mesmo o
que parecia, ou se era... alguma coisa mais sombria.
Serefin se virou para Kacper, abriu a boca e fechou. Ele olhou
para o corredor.
— Venha comigo. — Ele disse.
Ele passou pelos corredores de labirintos do palácio, passando
por servos que usavam máscaras cinzas e planas, ciente de seus
olhares persistentes. Eles chegaram em uma das três torres de
vidro. Serefin abriu a porta, entrando rapidamente.
Uma voz formada por promessas antigas e morte chamou:
— Sua Alteza decidiu me dar a graça de sua presença? Estamos
mesmo em tempos medonhos.
Serefin sorriu para Kacper, que parecia angustiado.
Não tinha como ver o topo da torre, mas Serefin sabia que
Pelageya estava lá em cima, inclinando a cabeça pelo corrimão,
parecendo uma dolzena de dezesseis anos quando na verdade ela
tinha quase noventa anos de idade. Ele se perguntou como ela seria
quando eles alcançassem ela, se ela seria a mulher jovem ou a velha.
Honestamente, a mulher nova aterrorizava ele.
— Serefin... — Kacper gemeu quando Serefin começou a subir a
escadaria em espiral, duas de cada vez. — Isso é loucura. Você odeia
ela.
— Ela me aterroriza, assim como aterroriza todo mundo. —
Serefin pausou, puxando o corrimão enquanto se recostava. —
Como aterroriza meu pai.
Kacper franziu o cenho.
— Ela é Kalyazi. Seu pai provavelmente jogou milhares de feitiços
na torre para saber o que ela faz.
Se Serefin tivesse seu livro de feitiços, ele teria lançado um feitiço
de percepção. Mesmo assim, ele passou um dedo pela navalha
costurada em sua manga e o pressionou na janela.
— Tire suas mãos sangrentas do meu vidro! — Pelageya chamou.
O feitiço não foi tão forte como teria sido se Serefin tivesse seu
livro, mas foi o suficiente. A torre da bruxa estava livre da magia do
pai, mas estava sufocada por algo antigo e desagradável.
— Não tem nada do meu pai aqui.
— Por sangue e osso, é claro que não. Sua mãe se assegurou
disso, príncipe.
Serefin chegou ao patamar levemente sem fôlego – estar de volta
ao castelo já estava afetando ele, ele subiu todas aquelas escadas
ridículas em Kalyazin e ficou bem. Ele achou a jovem Pelangeya no
topo. Ela estava na porta de seus aposentos, com as mãos apoiadas
na cintura. Seu cabelo preto estava selvagem e emaranhado em sua
pele pálida, seus olhos afiados escuros. Qualquer que fosse a magia
que ela tivesse, que permitia a ela mudar de jovem a velha por
capricho, mostrava em seus olhos.
— Minha mãe? — Ele perguntou. Claro que foi sua mãe. Izak e
Klarysa apenas se toleravam por aparências. Trazer a bruxa de volta
a Grazyk foi apenas outro modo de Klarysa irritar Izak.
— Sim. Entre, príncipe, eu vejo que você quer um lugar para falar
sem os ratos bisbilhoteiros de seu pai ouvindo. — Ela se virou,
entrando no quarto.
Kacper olhou desesperado para Serefin.
— Vamos lá, tem lugares melhores para isso. — Ele murmurou. —
Lugares que não precisa ficar perto de uma bruxa Kalyazi louca.
— Não se esforce muito para me elogiar, Zyweci. — Ela falou.
Serefin entrou nos aposentos de Pelageya. Tapetes pretos se
espalhavam pelo chão e crânios de veados penduravam-se nas
paredes, amarrados pelos chifres. A bruxa se sentou em uma
poltrona de pelúcia marfim, as pernas cruzadas debaixo dela,
girando uma mecha de cabelo preto pelos dedos, olhando para
Serefin com a cabeça inclinada para o lado.
— Percebeu que seu pai não é um pai muito bom para você? —
Ela perguntou.
— O que ele está planejando?
— Ninguém sabe além dele. Klarysa tem suas suspeitas, mas ela
pode fazer muito pouco em sua reclusão na região dos lagos. Ela
pode fazer mais em Grazyk agora, mas... — Ela acenou com a mão
para a cadeira esfarrapada na frente dela. Serefin se sentou com
cuidado.
— O seu povo não se arma com profecias e adivinhações. — Ela
disse, com os olhos desfocados encarando o nada. — Tão estranho,
para um povo tão ligado a magia de sangue, que os Kalyazi são mais
supersticiosos. Vocês têm seus monstros; ele têm seus demônios. —
Ela ficou em silêncio.
— Mas? — Serefin incitou.
— Seu pai ficou muito interessado em profecias feitas por um
mago Tranaviano chamado Piotr. Aparentemente, ele se matou logo
depois da previsão. Se jogou em um lago com um tijolo amarrado no
pescoço. É o tipo de morte que você lê sobre no livro dos mártires de
Kalyazi.
— Que tipo de profecias?
— Queria eu saber. — Ela sorriu.
Kacper deu a ele um olhar aguçado. Serefin se recostou na
cadeira.
— Mas, tecnicamente — Pelageya continuou. — o próprio Piotr
era fascinado com uma história duvidosa dos Kalyazi sobre uma
mulher chamada Alyona Vyacheslavovna. Ela era só outra mártir
Kalyazi, mas a história conta que ela ascendeu à divindade. Não
seria isso um destino e tanto?
Serefin ergue uma sobrancelha. Histórias Kalyazi duvidosas não
iriam fazer nenhum bem a ele agora.
Ele ainda se sentia inseguro de dizer as palavras em voz alta.
Dizer que ele suspeitava que seu pai o mataria no meio da Rawalyk.
Ele não tinha nenhuma prova, apenas um presságio sombrio em
todos os seus pensamentos.
— Eu acho que meu pai quer colocar a vencedora da Rawalyk no
trono. — Ele disse.
— Mas é claro que sim. É tudo um teste para achar a próxima
consorte real, não é? — Pelageya disse, mas seus olhos negros
retornaram para o rosto de Serefin. Ela sabia o que ele estava
sugerindo.
— Eu acho que ele me quer fora de cena.
Kacper balançou a cabeça.
— As pessoas iriam se rebelar. Um príncipe baixo ia...
— Os príncipes baixos iriam ver como uma morte desafortunada,
mas estariam agradecidos à Rawalyk que escolheu uma herdeira
agora que o Príncipe Herdeiro está morto. — Serefin disse, o
interrompendo.
Kacper piscou.
— Ainda não faz sentido. Você é o único herdeiro dele.
Serefin levantou as sobrancelhas. Ele era o único herdeiro, sim,
mas ele também era um mago mais forte, que estava mudando a
guerra para o lado Tranaviano, um que a história se lembrará. A
expressão de Kacper escureceu.
Pelageya assentiu.
— Sangue e sangue e osso. Magia e monstros e poder trágico.
Serefin ouviu Kacper bufando irritado e lhe deu um olhar de
aviso.
— O mundo está ficando louco. — Pelageya disse. — A guerra está
nos engolindo. Pode continuar? Vai continuar para sempre? Alguém
finalmente quebrará o ciclo ou vamos mergulhar em mais um
século de morte? Os Kalyazi têm sua esperança, o que os
Tranavianos têm, hein? O rei deles. O príncipe deles. O
conhecimento de que seu rei e seu príncipe são inegavelmente
mortais. Os Abutres? Aquele culto terrível.
Os olhos de Serefin se estreitaram. Kacper enrijeceu.
— E se o príncipe fosse difícil de matar? Sangue e sangue e osso.
E se esses deuses que os Kalyazi adoram não fossem deuses?
Demônios de superstição, monstros e magia.
— Isso está nos levando a lugar nenhum. — Kacper resmungou.
Ele colocou uma mão no ombro de Serefin, tentando fazer ele ir
embora.
Pelageya encarou um ponto atrás de Serefin.
— Você colocou um espinho no pescoço deles. Você espera até
que a lamentação pare, e você dá a eles um pouco de sangue. Beba!
Beba tudo, não importa o que a pessoa seja para você, estará morto
em... Ah, três, dois, um. De novo. Outro. Esse falhou. Não
funcionou. Mortais são tão frágeis, tão fáceis de quebrar, mas
sangue... Sangue e sangue e osso. As Minas de Sal trabalham tanto,
os Abutres são tão meticulosos na marca específica deles de tortura.
A resposta está aqui. A resposta sempre esteve aqui. Esvazie as
igrejas Kalyazi, derreta seu ouro, triture seus ossos. Divindade e
sangue e sangue e osso.
A mão de Kacper se apertou. Serefin sentia seu pulso se
acelerando nas pontas dos dedos.
Pelageya se contraiu. Sua mão se ergueu, longos dedos esticados
no ar.
— A garota. A garota e o monstro e o príncipe... e.... — Ela se
contraiu novamente, passando a mão na orelha contra alguma coisa
imaginária irritante. — E a... rainha? Não a rainha, mas a rainha. A
rainha dos espectros ou das trevas. Mas não. Poder e sangue e esse
espetáculo, são apenas uma fachada e tem mais, tem mais. Os sinais
virão e serão ignorados ou atendidos, mas eles são sinais, apenas
sinais.
— Serefin! — Kacper puxou o braço de Serefin. Ele se soltou.
— Você tem tempo! O tempo está deslizando, mas está lá, está lá,
só resta ser capturado. Você tem que pegá-lo e segurar. A garota e o
monstro e o príncipe e o último é errado, o último se esconde nas
trevas, nas sombras. E talvez o garoto feito de ouro e o garoto feito
de trevas são espelhos. E talvez tudo será engolido pelas coisas que
você esconde; talvez, talvez você será consumido. — Pelageya parou
abruptamente.
Um silêncio pesado caiu na sala, o único som era do fogo
crepitando. Serefin olhou para Kacper, que encarava Pelageya com
horror mal escondido no rosto.
— Obrigado, Pelageya. — Serefin murmurou, sua voz tensa e se
levantou.
— Você é sempre bem-vindo a voltar aqui, príncipe. — Ela disse
docemente. — Mas fique avisado, seu pai vai perceber e você não
quer isso.
Serefin tirou uma mariposa do ombro. O inseto cinza flutuou
para longe e pousou no braço da cadeira de Pelageya. Ela o encarou
com grande interesse enquanto eles saíam do quarto.
Catorze: Nadezhda Lapteva

Zbyhneuska curou homens moribundos, curou doenças lentas e


mortais, deu visão aos cegos. Quando Svoyatova Stefania
Belomestnova foi degolada em batalha, a benção de Zbyhneuska a
curou completamente. Mas a deusa nunca falou; sua voz nunca foi
ouvida. Se um dia ela falar, toda a bondade que ela fez será
desvendada.
—O CÓDEX DO DIVINO, 12:114

A magia de Zbyhneuska foi suficiente para Parijahan voltar ao


normal. Rashid queria ir embora imediatamente, Malachiasz não
queria sair de jeito nenhum. Nadya decidiu que eles dariam a
Parijahan um dia para descansar e então partir. Parijahan – sendo
Parijahan – se recusava a dormir enquanto eles faziam planos,
então ela se sentava imperiosamente no que restou da pilha de
almofadas.
— Como nós sabemos que os Abutres não tentarão de novo? —
Anna perguntou. — Estamos no mesmo lugar que nos deixaram.
— Eles não vão. — Malachiasz disse.
— Como você sabe?
— Porque os Abutres não podem agir contra seu líder. Eu fugi
deles, mas ainda sou um deles. Eu sei exatamente o que disseram
para eles fazerem.
Oh. Nadya não gostava de como isso soava.
— Como podemos confiar que você não vai nos entregar para os
Tranavianos? E se você receber uma ordem? — Anna persistiu.
Malachiasz parecia meramente cansado.
— Porque eu já não teria feito isso? Eu não estaria aqui se tivesse.
Fios são desgastados, até aqueles criados por magia para comandar.
Nadya pressionou a conta de Vaclav. Malachiasz estava falando a
verdade.
— Mas você não liga para isso. — Ele continuou. — Você não liga
para o que acontecerá comigo se eu voltasse para Tranavia. Você é
só uma garota que não fez nada além de viver em um mosteiro a
vida toda, e ainda assim não consegue ver doutrinação balançando
na frente da sua cara, provavelmente porque só foi isso que ela
conheceu.
— Como é? — Nadya disse. Ele não podia falar com Anna desse
jeito.
Seus olhos pálidos brilharam.
— Eles vão me fazer esquecer de novo.
A sala esfriou.
— Eu tinha dez anos quando os Abutres me levaram. — Ele disse,
com a voz tensa. — Isso é tudo que sei, porque eu não sei de nada
além do meu nome. Eles sempre acham que é tão benevolente da
parte deles. Tirar tudo que faz de uma criança um ser humano mas
deixam elas manter o nome como um lembrete de tudo que
perderam.
Horror correu em suas veias, substituindo a raiva. Ela pensou nos
seus sussurros falando sozinho, palavras abafadas que soavam
como seu nome. Era um lembrete? Ele estava perto de perder isso
também?
Ele suspirou, passando uma mão pelo cabelo.
— Se eu for com você, não posso prometer que não destruirei
tudo que você está tentando conquistar. A magia que se esfiapou e
me permite agir contra eles pode ser facilmente reforjada se eles me
pegarem.
Exceto que ela não podia fazer isso sem ele. Ninguém mais
poderia ensinar a Nadya tudo que ela precisava saber para enganar a
corte. Ele se sentou na mesa, os movimentos pesados. Claramente,
ele tinha percebido isso também.
Malachiasz juntou seus dedos e os pressionou contra seus lábios.
Nadya se sentou na frente dele.
— Como é o seu Tranaviano? — Ele perguntou a ela, trocando
para sua língua nativa.
Um segundo. Um segundo a mais enquanto Nadya traduzia suas
palavras na cabeça dela. Ele balançou a cabeça antes dela ter uma
chance de falar.
— Você não vai passar da fronteira se demora tudo isso.
— Nuicz zepysz kowek dzis. — Ela murmurou baixinho.
Ele sorriu.
— Bem, seu sotaque não é o pior que eu já ouvi.
Demorou um segundo para ela traduzir. Ela sorriu.
— Você não pode pausar por todo esse tempo. — Ele disse. —
Vamos praticar em Tranaviano até você conseguir.
— O que você vai fazer sobre o fato de que todo mundo que eu
deveria evitar sabe exatamente como me pareço? — Nadya
perguntou hesitante em Tranaviano.
O jeito que ele passou seus olhos levemente pelo rosto dela, a
forçou a olhar para a mesa. Ela sentia suas bochechas queimando e
franziu o cenho, abalada pela sua reação.
— Seu cabelo é marcante; nós teremos que pintá-lo.
— Eu posso cuidar disso. — Parijahan disse. Anna assentiu.
— Todo o resto será fácil. — Malachiasz disse. — Um feitiço
simples, nada mais.
— Um feitiço simples que o Príncipe Herdeiro não verá? — Nadya
perguntou. Seu estômago girou com o pensamento de usar a magia
dele na pele dela pelas próximas semanas.
— Não se for um que eu escrever. — Ele respondeu.
— Isso cheira a excesso de confiança. — Ela murmurou.
Ele sorriu levemente.
— Essas não são as palavras certas para esse contexto, mas você
está perto.
Nadya estremeceu. Isso nunca ia funcionar.
— Nós podemos entrar no palácio forjando documentos.
Antes de Nadya perguntar como eles iam fazer isso, Rashid se
animou.
— Deixe isso comigo. Eu trabalhei como um escriba de Travasha
quando jovem. Tem muito pouco que eu não sei forjar.
Nadya olhou para Parijahan para confirmar. Ela somente sorriu.
— Se ela dizer que é de uma cidade fronteiriça, o sotaque vai ser
menos notado. Explicações razoáveis esconderão tudo de olhos
menos suspeitos. — Malachiasz disse.
— Mas isso a colocará muito próxima de Kalyazin para ser
suspeita de imediato. — Rashid argumentou.
— Se eu estou viajando com dois Akolanos, não seria melhor eu
falar que sou de algum lugar próximo às duas fronteiras? — Nadya
perguntou.
Malachiasz acenou pensativo então se levantou abruptamente e
saiu da sala.
— Onde ele está indo? — Nadya perguntou, esquecendo que ela
deveria estar falando outra língua.
— Tekyalzaw jelesznak! — Ela ouviu Malachiasz falando da outra
sala. Língua errada.
Ela rolou os olhos.
Ele voltou e desenrolou um mapa na mesa, usando seu livro de
feitiços para segurar de um lado e o cotovelo de Rashid segurou do
outro. Depois de franzir o cenho para o lado Tranaviano, ele bateu
com o dedo em um ponto perto de onde a fronteira Tranaviana
encontrava Akola.
— Łaszczów. — Ele disse. — É longe o suficiente de Kalyazin para
não levantar suspeitas de imediato, mas perto o suficiente para que
um sotaque Kalyazi seja possível.
— Tem alguma realeza baixa na área? — Parijahan perguntou.
Malachiasz balançou a cabeça.
— Apenas nobreza baixa. Sem importância. O príncipe baixo mais
perto fica em Tanów, que é mais ao norte.
— Então seria fácil de explicar se Nadya não soubesse todos os
pontos mais delicados da vida na corte — disse Rashid.
— Na verdade, se Józefina não soubesse. — Malachiasz
confirmou.

É
— É esse o meu nome? — Nadya perguntou. — Você que teve a
ideia?
Ele estreitou os olhos.
— Józefina Zelenska. Seu pai, Luçjan, tragicamente deixou esse
mundo, mas ele morreu lutando por esse país. Sua mãe, Estera, é
uma inválida, e — ele pausou, pensando. — você tem uma irmã mais
nova chamada Anka.
Nadya piscou.
— Você acabou de inventar tudo isso?
Malachiasz levantou as sobrancelhas.
— Sim, por quê?
Quantas realidades falsas ele deve ter construído para si? Ela se
perguntou. Se tudo que ele tinha era seu nome e sua magia, quantas
noites ele deve ter ficado deitado acordado, pensando onde as
pessoas que eram sua família estavam? Quem eles eram? Isso era
fácil para ele. Apenas outra família falsa que nunca seria real. Ela
teve que parar a súbita vontade de atravessar a distância até onde
sua mão repousava na mesa, linhas negras de tinta tatuadas nos
dedos pálidos. A urgência de dar ao seu inimigo algum conforto a
assustou o suficiente para que ela colocasse a mão no colo e fingiu
que nada tinha acontecido. Seu olhar rápido ao lugar onde a mão
dela estava, a fez sentir ainda mais que ela estava fazendo algo que
não devia.
Rashid se afastou do mapa e Malachiasz afastou gentilmente o
mapa para que ele não se enrolasse.
— Você pode lançar magia sem usar essas contas? — Malachiasz
perguntou.
Ela pegou o colar entre os dedos.
— Não.
— Nós temos que descobrir uma maneira de trabalhar nisso. E
esses — ele passou a mão pela boca. — símbolos? Fica muito óbvio
que você está usando magia.
— Oh, do mesmo jeito que você corta o seu braço e fica sangrando
em cima de tudo? Muito sutil.
Parijahan bufou. A expressão de Malachiasz estava cansativa.
— Você sabe o que eu quero dizer.
— Eu vou falar com Marzenya. Talvez eu e ela possamos chegar a
um acordo. — Nadya disse.
— Aliás se Rashid e Parijahan serão parte da minha comitiva...
— Eu sou muito bonito para ser um servo... — Rashid disse com
um suspiro.
Malachiasz olhou para ele com um olhar divertido.
— Você pode ser da nobreza...
— Não, Malachiasz. — Parijahan disse rapidamente. — Muita
papelada. Nós já estamos arriscando com Nadya. Eu não quero que
um slavhka sagaz que tenha visitado as cortes de Akola me
reconheça, e eu definitivamente não quero que minha Travasha
ouça que eu reapareci, então vamos mudar o contexto. Eu serei a
criada de Nadya, me escondo à plena vista. Eu posso engolir meu
orgulho por um curto período. — Ela sorriu ironicamente. — E
Rashid também.
— E a Anna? — Nadya perguntou.
— Eu não irei com você. — Anna disse suavemente.
Nadya se virou para ela, sem palavras. Anna tinha que ir com ela.
Ela não podia fazer isso sem Anna.
O sorriso de Anna estava tingido por melancolia aguda.
Claramente ela esteve pensando nisso por um tempo. Ela olhou
para Malachiasz.
— Tranavia vai estar focada na Rawalyk, não vai?
— Eles acabaram de tirar o estrategista prodígio da guerra. — Ele
disse. — Todos os olhos do país estarão em Grazyk. Há uma boa
chance de que Tranavia esteja tão confiante que a vitória esteja à
vista, que afrouxarão seu controle pelo tempo que a cerimônia
durará.
— Eu vou para Komyazalov. — Ela disse. — Ou, pelo menos, para
a maior base militar que eu achar no caminho, enquanto vocês
lidam com isso. — Ela pressionou seu dedo indicador no mapa em
cima de Tranavia. — Eu vou me certificar de que Kalyazin está
pronta para o que virá em seguida. Além do mais, o príncipe sabe
que fugimos do mosteiro juntas. É melhor que eu nem esteja
presente para não levantar suspeita alguma.
Nadya encostou sua cabeça no ombro de Anna e se esforçou para
segurar as lágrimas. Ela pensou que ao menos teria Anna ao seu
lado, mas o que Anna queria fazer era importante – vital, até –
então ela não ia discordar.
— Não vá sozinha. — Nadya disse em Kalyazi. Malachiasz não
brigou com ela por ela ter trocado de língua. — Venha conosco por
pelo menos um tempo. Ainda há presença militar no leste, certo?
Rashid assentiu.
— Não viaje pelas montanhas sozinha.
Anna a olhou por um longo tempo. Ela não queria tornar isso
mais difícil, e já iria destroçar as duas quando partisse. Anna era
tudo que Nadya tinha de casa, e agora ela estava a perdendo
também. Finalmente, Anna assentiu. Nadya relaxou, entrelaçando
seu braço com o dela.
— O que você está planejando fazer? — Nadya perguntou a
Malachiasz.
Ele mordiscou a unha do polegar. Parecia em carne viva, com as
bordas irregulares e vermelhas.
— Eu vou colocar você dentro de Grazyk, dentro do palácio, tanto
faz. E de lá, nós descobriremos o resto.
Isso não ia funcionar. Cada parte disso precisava ser impecável
ou eles iriam ser pegos. Ela o encarou. Nadya sabia que não deveria
se importar com essa abominação Tranaviana sentada na frente
dela. Seu destino era condenado, assim como o de todos os outros
Tranavianos – talvez ainda mais, já que ele foi um Abutre, um dos
piores. Mas ela encarou mesmo assim, esse garoto – esse garoto
estranho com seu cabelo preto embaraçado e testa tatuada – e
metade dela queria ajudá-lo.
A outra metade queria destruí-lo, mas essa metade estava
estranhamente quieta.
Nadya se sentou do lado de fora na neblina cinza e fria de início
de manhã, a jaqueta de Malachiasz estava nos ombros dela. Apesar
do ataque dos Abutres ter sido ontem, parecia que anos tinham se
passado. Eles iam embora na parte mais tarde da manhã. Anna tinha
pintado o cabelo de Nadya de vermelho escuro, e ela podia sentir as
mechas congelando no seu pescoço. Ela puxou seu colar pela cabeça
e o enrolou na mão.
Ela tinha uma ideia, – provavelmente uma péssima ideia –
definitivamente uma que demandaria muito esforço dela para
manter Malachiasz a salvo em Tranavia.
— Você está me pedindo para proteger um herege. — Veceslav
disse. — Não só isso, mas um que perdeu sua alma para o mal.
— Agora, isso parece um pouco melodramático.
— Nadezhda. — O tom de Veceslav era de aviso. Ele pensava que
Nadya estava sendo completamente mortal, completamente
petulante, completamente diferente de como alguém escolhida
pelos deuses deveria agir.
Nadya apertou mais a jaqueta de Malachiasz em seus ombros. Ela
não tinha a intenção de manter, mas quando ela saiu, ela não achou
outra coisa.
— Sim. Eu estou pedindo para você proteger um Tranaviano. Se
isso for funcionar, se você quiser o rei morto, então eu preciso que
ele seja protegido.
— Você não pode presumir que conhece a nossa vontade. —
Veceslav respondeu.
— Então o que devo fazer? Se você não concorda com meus
métodos, eu entendo, mas não posso fazer milagres. Eu só posso
trabalhar a magia. Eu sou humana. Eu sou mortal. Estou fazendo
o melhor que posso. Eu estou assustada, Veceslav. O tempo inteiro.
Eu não sei o que está acontecendo ou o que eu deveria fazer. Eu
estou apenas fazendo o meu melhor de acordo com as
circunstâncias que me são apresentadas, com o poder que tenho.
Ele ficou em silêncio. Nadya estava desconcertada com a frieza
dele com ela. Ele era um dos deuses que ela costumava contar que
seria gentil.
— Qual é a sua proposta? — A voz de Veceslav era um cutucão
bem vindo na parte de trás da cabeça dela.
Ela expirou, observando sua respiração sibilar no ar gelado na
frente dela.
— Eu preciso que ele seja capaz de voltar à Tranavia e se
esconder entre os seus em plena vista. Se eu vou usar a magia dele
na minha pele, então ele deve ser forçado a usar a minha na dele. —
Ela pausou, considerando. — Os hereges não podem ganhar essa
guerra, e eu temo que eles estejam próximos. Se, por enquanto, nós
protegermos apenas esse Tranaviano – a abominação que ele é –
então nós poderemos purificar Kalyazi dos hereges completamente.
— Então a você será dado feitiços e magia para protegê-lo dos
inimigos dele e dos seus.
Nadya notou suas palavras. Funcionaria.
— Obrigada, Veceslav.
— Você pisa em terreno perigoso, criança. Nosso toque é fraco em
Tranavia. Se você viajar para lá, você se retira de nossa proteção.
Você deve fazer seu dever quando chegar.
Nadya estremeceu. Destruir Tranavia para que os deuses possam
retornar. Destruir completamente, se fosse necessário. E não dizer a
ninguém suas intenções. A conversa foi interrompida quando ela
ouviu passos na neve.
— Você não pode fazer isso lá dentro onde está quente? —
Malachiasz se sentou ao lado dela no banco. Ele olhou de lado para
ela. — Fiquei me perguntando onde isso estava.
Ela sentiu seu rosto esquentar.
— Nesse momento, eu não tenho mais nada exatamente.
Ele riu. O rosto dela ficou mais quente. Ela abaixou a cabeça,
confusa com a sensação estranha no peito. Era a primeira vez que
ela ouvia sua risada real, e ela gostava de como soava.
— Não te incomoda usar o casaco de um herege?
Ela revirou os olhos, mas as palavras dele a acertaram, e algo se
agitou dentro dela. Deveria incomodá-la o fato de estar usando o
uniforme do inimigo, mesmo se fosse só uma peça.
— Por que você tem o casaco de um soldado? — Ela perguntou.
— Quando eu fugi, parecia racional fugir como um soldado
Tranaviano e não como um Abutre. Nós somos um pouco mais
notáveis.
Eles ficaram quietos e somente suas respirações quebravam o
silêncio. Ela olhou para ele. Ele estava encarando uma estátua de
Alena com uma expressão contemplativa no rosto. Seu cabelo negro
estava amarrado para trás, mas uma mecha havia se soltado. Ela
observou quando, sem pensar muito, ele levantou a mão e prendeu
atrás da orelha apenas para cair novamente em sua bochecha.
— Eu sei como te ajudar a passar a fronteira. — Ela disse. As
palavras saíram de uma vez com o pensamento de que ele poderia
flagrá-la o observando. Ela desenrolou o colar da mão, o esticando
em seu colo. Ela selecionou a conta certa e a segurou.
— Isso não tem nenhum significado para mim. — Ele apontou.
— Veceslav é o deus da proteção e da guerra.
— Uma combinação estranha.
Ela ignorou isso.
— Proteção pode significar muitas coisas. Proteção pode significar
blindar você de Tranavia.
Ele parecia cético. Ela procurou as palavras certas.
— Você colocará um feitiço em mim então todo mundo que me
ver vai pensar que sou... Outra pessoa.
— Mais ou menos isso, sim.
— Mas se eu fosse uma bruxa de sangue, eles ainda poderiam
sentir minha magia, certo?
Ele assentiu.
— Veceslav irá disfarçá-lo por um mago mais fraco, ou alguém
que não tem magia alguma. Você pode... — Ela procurou por um
cenário. — passar entre os Abutres e eles não saberiam.
Ele fez uma careta, erguendo a mão para encostar um dedo na
conta na mão dela.
— Se eles me pegarem — ele disse, a voz baixa na orelha dela. —
Eles retirarão o conhecimento que tenho sobre você da minha
mente e me mandarão atrás de você para te matar.
Nadya engoliu em seco, com medo. Ela resistiu a vontade de
apertar mais o casaco dele em volta dela.
— Eu... Eu pensei que você fosse um dos mais fortes? — Ele
nunca disse isso, mas seu comportamento implicava isso. ele teve
que sobreviver todo esse tempo depois de desertar.
— Mas eu não sou o mais velho, Nadya. — Seus olhos pálidos
estavam distantes e uma de suas mãos esfregou ociosamente seu
pulso, onde espinhos de ferro se projetavam de sua pele. — Eu sou
muito jovem em comparação, e nesse mundo há males muito
maiores que eu.
Os dedos dela se fecharam no colar.
— Não me faça me arrepender de te ajudar. — Ela sussurrou. —
Por favor.
Ele inclinou a cabeça para trás e o olhar dela se prendeu na linha
de sua garganta, então ele deu um sorriso torto.
— Não posso garantir isso, towy dżimyka. — Ele se levantou. —
Nós iremos embora em breve. Você e eu podemos esperar até
estarmos mais próximos da fronteira para enfeitiçar um ao outro.
— Eu vou entrar logo. Talvez ver se tem outro casaco para mim.
— Nadya disse. Ela não sabia ao certo o que significavam os broches
do lado esquerdo da jaqueta, mas tinha certeza de que não os queria
perto do seu corpo.
Ele pegou uma mecha congelada do cabelo dela entre seus dedos.
— Não tenho certeza se vou. — Ele murmurou. Ele se virou e
começou a voltar para a igreja. — Vermelho foi uma boa escolha. —
Ele falou por cima do ombro.
Nadya ficou sentada em frente ao altar, seu rosto com o mesmo
tom ardente do cabelo dela.
— Você não viu isso. — Ela disse, em voz alta, para qualquer deus
que estivesse ouvindo. — Assim que isso acabar, uma facada no
coração, exatamente assim.
Ela não conseguiu se convencer. Mas nada disso importava, ainda
não.
Quinze: Serefin Meleski

Svoyatova Viktoria Kholodova: Quando Svoyatova Viktoria


Kholodova foi assassinada, uma árvore de romã brotou no lugar
onde ela se foi.
—O LIVRO DOS SANTOS DE VASILIEV

Kacper deixou a porta bater atrás deles.


— Essa foi uma das suas piores ideias, Serefin. De todas.
Serefin não conseguia parar de rir. Kacper estava olhando para
ele chocado, incapaz de enxergar a piada que era ganhar uma
profecia de uma bruxa Kalyazi louca. Serefin arquejou, se
recostando na parede e deslizando para o chão. Uma serva passou
na frente deles, intencionalmente não encarando o Príncipe
Herdeiro tendo um ataque histérico no chão.
— O que significa? — Kacper continuou.
— Tem que significar alguma coisa? — Serefin falou depois de
recuperar o fôlego. Ele limpou lágrimas dos olhos.
Kacper deu de ombros.
Serefin retirou uma mariposa do joelho, franzindo o cenho. De
onde elas estavam vindo? O inseto deixou um pouco de poeira nas
calças pretas de Serefin enquanto voava para longe.
Depois de dar um suspiro exasperado, Kacper deslizou pela
parede até que ele estava sentado no chão ao lado de Serefin.
— E agora? — Ele perguntou.
Serefin inclinou a cabeça para trás. Ele precisava achar um jeito
de investigar as profundezas da corte sem que ninguém suspeitasse
que ele estava causando problemas. Ele tinha uma reputação de
antagonizar e ficar no caminho dos slavhki, a maioria dos quais não
gostava muito dele. Enquanto Pelageya fosse uma esquisitice, era
reconfortante saber que nem todos no palácio estavam sob o feitiço
de seu pai.
— Quanto tempo dura uma viagem de ida e volta para Kyętri? —
Ele pensou em voz alta.
Kacper o encarou de lado.
— Você vai deixar Grazyk?
— Eu não posso. Mas preciso que alguém vá para as Minas de Sal.
— Quem seria?
— Bem...
— Definitivamente não.
— Eu confio em você e na Ostyia, e em mais ninguém. — Serefin
disse.
— Isso é tocante, Serefin.
— Você está indo contra uma ordem direta de seu príncipe? —
Serefin perguntou, pressionando uma mão no coração.
— Não foi uma ordem direta, e eu não vou te deixar somente com
Ostyia para te proteger enquanto você se convence de que há
assassinos te esperando em cada esquina. Eu vou achar alguém
digno de confiança para mandar a Kyętri.
— E o que eu devo fazer enquanto isso?
— Beber muito vinho e se preparar para seu destino inevitável? —
Kacper sugeriu.
Serefin considerou isso com um aceno pensativo.
— Talvez conseguir um novo livro de feitiços?
Isso fez Serefin levantar.
— Tenho uma ideia. Cada pedaço que eu recebo desse negócio
com os Abutres eu fico mais preocupado, então, primeiro vamos a
fonte.
— Você vai tentar tirar os Abutres de perto do seu pai? — Kacper
perguntou.
— Eles não deveriam estar lá para início de conversa, então
certamente eu vou tentar.
O status de Serefin o permitiu uma entrevista com a Abutre
Carmesim, a segunda no comando. Inesperadamente, ela veio aos
seus aposentos em vez de exigir que ele fosse a catedral nos jardins
do palácio encontrá-la.
A Abutre era uma mulher alta que usava uma máscara de ferro
que cobria tudo menos seus olhos azuis tempestuosos. Mechas de
cabelo negro caíam por suas costas em ondas. Sua cabeça se virou
de um jeito estranho, como um pássaro, quando ela foi trazida de
frente para Serefin.
— Sua Alteza — ela disse, a voz áspera. — bem-vindo de volta a
Grazyk.
Ele fez um gesto para ela se sentar e ficou grato quando ela
atendeu; sua altura era intimidadora.
— Espero que Sua Excelência esteja bem. — Serefin disse. Ele não
ficou surpreso quando uma audiência com o Abutre Sombrio foi
negada. O líder dos Abutres era reconhecidamente difícil de
encontrar.
— Com certeza passarei suas felicitações a ele. — Ela respondeu.
— Estranho que ele não esteja em Grazyk com a Rawalyk tão
perto.
— Assuntos do estado não têm muita importância para ele. Assim
como é agora, sempre terá uma guerra e sempre haverá reis para
alimentá-la, então ele deve cuidar dos assuntos de magia que o seu
rei se esquece ou simplesmente não tem tempo.
Ou simplesmente não é poderoso o bastante para compreender.
Como deve ser, ser o rei de uma terra que enaltece seus magos de
sangue, cercado por magos mais poderosos que você? Serefin supôs
que poderia ser simpático com a posição do pai, se não pudesse ter
empatia.
— Que tipo de assuntos são esses? — Serefin perguntou.
— Curioso sobre nosso jeito, Sua Alteza? Pensei que seriam
muito ocultos para alguém com suas sensibilidades.
— Acabaram de me dar muito tempo livre. Não é uma coisa que
se ganha quando estamos em guerra. Eu posso muito bem começar
a juntar os pedaços do que aconteceu enquanto eu estava longe.
Ela ficou tensa. Foi sutil, mas Serefin percebeu.
— Me diga, minha lady, sobre o Abutre que foi encontrado em
Kalyazin.
Seus olhos se arregalaram levemente.
— Suponho que não podemos manter todo segredo guardado.
— Isso soou como uma ameaça? — Serefin perguntou
inocentemente. Seria um escândalo se as pessoas soubessem de
alguém que desertou dos Abutres. Eles eram a elite, a autoridade
mais alta, os escolhidos abençoados.
Sua cabeça inclinou fazendo uma mecha de cabelo escuro cair na
testa de sua máscara prateada.
— Me diga, Sua Alteza, o que você quer?
— Eu fui chamado do front de repente. A necessidade de uma
consorte parece uma razão fraca. Ainda não tenho provas de
negociações que não deveriam estar acontecendo...
— Ainda assim, você tem suspeitas.
Ele deu de ombros.
— Como eu disse, nada foi encontrado.
— O que faz você pensar que minha ordem sabe das maquinações
de jogos políticos?
— Tinha um Abutre na sala de trono do meu pai. — Serefin disse
indolentemente. — Os Abutres também estavam impacientes para
irem atrás da clériga que achei, somente para falhar... o último foi
uma supervisão infeliz da sua ordem, mas, o primeiro, bem, parece
misturar magia e política em um lugar onde não deveriam se
encontrar. Eu não tenho nenhuma intenção de te chantagear, minha
lady, pelo menos, não ainda. Sua ordem, tradicionalmente, age como
conselheira e nada mais, esse ainda é o caso?
Ela engoliu em seco.
— Não exatamente.
Ele murmurou em reconhecimento e esperou que ela
continuasse.
— Alguma parte da sua paranoia pode ter fundamento.
— Que tipo de paranoia? — Ele perguntou fechando os olhos. Ele
inclinou a cabeça para trás. Ele tinha esperado mais medo, mais
pânico, ansiedade se agarrando nele e se recusando a deixá-lo
pensar, em vez disso, ele se sentiu calmo. Aqui estava um problema
para ele decifrar. Aqui estava uma coisa para ele fazer, mesmo se
essa coisa fosse sobreviver.
— Há rumores de que sua posição na corte é tênue, mas são
sussurros, nada além disso.
Serefin não pôde deixar de sorrir. Então seu pai ficou tão ansioso
com o poder de Serefin que achava melhor que ele ficasse
completamente fora de cena? Isso era absolutamente Tranaviano.
— E me dizer isso não é trair Tranavia?
Uma pontada de diversão brilhou nos olhos da Abutre.
— É dificilmente a primeira vez que a política Tranaviana se
agitou enquanto os Abutres continuam intocáveis. Não é como se eu
tivesse te contado algo que você já não sabia.
Indecentemente, era uma confirmação de que ele não estava
ficando louco, que ele não estava vendo facas e sombras onde não
tinha. Era algo e teria que bastar. Serefin não tinha nada além de
tempo para descobrir como seguir em frente. Ele pode muito bem
aproveitar seus últimos dias.
A ala norte dos jardins do palácio comportava uma arena enorme
construída muito antes de Tranavia descobrir magia de sangue.
Muito antes, quando poder era testado por vontade e força somente.
As tradições permaneceram, mesmo que o poder tenha crescido
para algo muito maior. A arena ainda era utilizada para duelos de
magos, para resolver injustiças na corte, e – mais importante – para
julgamentos e execuções.
Era um edifício grande, feito para comportar uma porção da
cidade se fosse necessário. Espigões de ferro projetavam-se em volta
da circunferência e esculturas de guerra alinhavam-se do lado de
fora. A entrada era decorada com símbolos para magia, e Serefin
passou a mão por uma enquanto ele passava.
A arena interna era um círculo de terra batida que havia sido
escavada seis metros abaixo do nível do solo. Podia ser manipulada
por magos durante julgamentos, mas geralmente permanecia como
campo de treinamento. Havia alguns indivíduos lá quando Serefin
entrou, Ostyia atrás dele. Nenhum deles notou o príncipe. Ele foi
para o parapeito e pulou sobre ele, se sentando e balançando as
pernas sobre a queda distante. Ostyia se inclinou no parapeito ao
lado dele.
— Reconhece alguém? — Ele perguntou. As faces eram um
borrão.
Ela assentiu.
— Nós temos a Casa Láta, Casa Bržoska, Casa Orzechowska e
Casa Pacholska. — Ostyia disse. — Ah, e a querida lady Żaneta. — Ela
apontou para uma jovem mulher que estava descansando contra a
parede oposta da arena, observando outras quatro garotas
disputando.
— Elas são tão civilizadas — Serefin notou.
Ostyia virou os olhos.
— Quando elas se tornarem outra coisa, eu quero que você
lembre que estão fazendo isso pela coroa e não por você. Não deixe
isso subir à sua cabeça, querido príncipe.
— Não, é tudo por mim. — Serefin disse com um sorriso torto.
Żaneta os viu sentados na arquibancada e acenou, se curvando
espertamente logo depois. Isso chamou a atenção das outras
garotas, que também se curvaram. Serefin acenou com a mão.
— Não liguem para mim. — Ele disse.
Ele sabia que as Casas Láta e Orzechowska eram famílias
proeminentes de magos de sangue, mas ele não tinha tanta certeza
sobre as outras duas.
Żaneta saiu de perto da parede e subiu os degraus. Serefin sentiu
seu olhar a seguindo como se estivesse magnetizado. Antes do
anúncio do pai, Serefin tinha quase certeza que Żaneta seria a
próxima rainha de Tranavia. Agora, ela teria que lutar para chegar ao
trono.
Sua massa de cachos castanhos escuros estava amarrada,
deixando sua pele negra e feições refinadas em foco nítido. Tinha
uma faixa de sangue manchando o casaco que ela usava por cima do
vestido.
Sua mãe era uma nobre de Akola, e Żaneta herdou sua pele negra.
Seu nariz tinha um gancho gracioso que em qualquer outra pessoa
seria aquilino, mas nela parecia régio. Seus lábios se torceram em
um sorriso quando ela se aproximou de Serefin.
— Vossa Alteza. — Ela disse. Sua voz tinha uma pequena sugestão
de fumaça, ofegante e escura.
— Lady Ruminska. — Ele respondeu, se balançando no parapeito
para que ficasse de pé. Ele pegou a mão estendida dela e a
pressionou em seus lábios.
— Ugh, nome da casa e tudo. — Ela disse. — Você vai embora por
alguns anos e todo o meu trabalho é desperdiçado.
— Żaneta. — Ele corrigiu com um sorriso.
— Melhor. — Ela deu um passo para atrás, se virando para os
assentos da arena e uma pilha de coisas descartadas de meninas. Ela
pegou seu cinto e amarrou em seu quadril, prendendo o livro de
feitiço. — Você voltou essa manhã?
— Sim, e já fui repreendido por meu pai e discuti assuntos
delicados com uma Abutre.
Ela levantou uma sobrancelha.
— Tão ocupado e tão cedo sem uma bebida na sua mão, a guerra
te mudou, Serefin. — Ela pegou uma máscara adornada de joias e
deixou em suas mãos enquanto se inclinava no parapeito. — Boa
sorte para vocês, minhas queridas. — Ela falou em voz alta. — Por
sangue e osso, elas vão precisar de sorte. — Ela continuou baixinho,
se virando.
— A competição não está à sua altura? — Serefin perguntou
enquanto ele seguiu ao lado dela. Ele tentou andar mais rápido do
que ela, para não parecer que ele a estava seguindo. Ele não tinha
certeza se foi bem sucedido.
— E quando está? — Ela girou a máscara pelos dedos antes de
prendê-la em seu cinto. — É bom ver você, e sobre circunstâncias
tão ideais.
Serefin não podia concordar com ela sobre as circunstâncias, mas
pelo menos ele estava longe do front. Entretanto, a probabilidade de
ele morrer não mudou.
— Me diga alguma coisa boa, Żaneta. — Ele disse enquanto
andavam pelos jardins. — Não tive nada além de más notícias por
anos.
— Eu vou te informar de todas as melhores fofocas da corte. —
Ela disse. — Você perdeu tanta coisa! Sabia que Nikodem
Stachowicz foi pego nos arquivos do palácio com o Osadik mais
novo?
— Essas famílias não...
— Se odeiam? E estiveram presas em uma briga por três
gerações? Sim!
Serefin riu, e pela primeira vez no que pareciam anos, ele se
permitiu relaxar.
Dezesseis: Nadezhda Lapteva

Não há registros antigos da deusa da luz, Zvonimira. Há


sussurros, rumores, fios de verdade ou de ficção que dizem que ela
é a mais nova no panteão, mas quem sabe como os deuses surgem?
Como Alena, Zvonimira nunca concedeu seus poderes a um clérigo.
—O CÓDEX DO DIVINO, 36:117

— Magia de sangue está totalmente arraigada à vida cotidiana


Tranaviana. Sem ela, o país inteiro colapsaria.
Nadya passou a manhã deixando as palavras de Malachiasz se
filtrarem lentamente entrando em uma orelha e saindo na outra.
Não é que ela não estivesse prestando atenção – ela sabia o quanto
era vital não errar enquanto estivesse dentro da corte – mas era
muita informação de uma vez.
Suas palavras fizeram ela parar.
— Como isso é possível?
Ele deu de ombros, colocando suas mãos tatuadas nos bolsos.
— Se constrói com o tempo, a magia. Especialmente magia de
sangue. É muito acessível. Você não tem que ter uma afinidade
verdadeira para usar em feitiços pequenos; você só tem que saber
como canalizar seu próprio sangue através da condução escrita.
Depois que os anos passam, vira rotina, pescadores usam feitiços
para impedir que as linhas quebrem, padeiros usam para manter o
pão crescendo e iguais, remover a magia seria destruir tudo que
construiu o país.
Nadya franziu a testa e franziu ainda mais quando ele entregou a
ela uma navalha fina.
— Costure isso na manga do seu casaco. Cortar a palma da mão e
os dedos dói mais que cortar o dorso da mão. A navalha é alterada
para que os cortes não cicatrizem.
Ela pensou nas cicatrizes na pele do antebraço dele. Se as
cicatrizes não eram de sua magia, então do que era?
Havia santuários à beira da estrada, espalhados pelos caminhos
das montanhas e estradas mais amplas, que Nadya silenciosamente
atendia quando passava. Levava pouco tempo limpar a sujeira das
estátuas e pilares, e remover flores mortas antes de alcançar os
outros. Depois de passarem pelo terceiro, Malachiasz parou e
esperou por Nadya enquanto os outros continuavam.
Ela podia sentir seu olhar enquanto trabalhava. Esse santuário
era dedicado a Vaclav, então Nadya estava demorando um pouco
mais para garantir que estava impecável quando ela fosse embora.
Vaclav era um deus sombrio, caótico e obstinado, e Nadya tinha
cuidado para ficar em bons panos com ele.
— Eu não entendo. — Ela ouviu ele falando calmamente, uma
nota estranha e agonizante na sua voz. Como se ele estivesse se
esforçando tanto para compreender seu jeito estranho e pagão, mas
não conseguia.
Ela se apoiou em seus calcanhares e olhou por cima do ombro
para ele, levantando uma sobrancelha.
— É uma escultura do lado da estrada. Não faz diferença você
limpar. — Ele disse.
— Os deuses gostam quando tomam conta de seus altares.
Ele olhou para ela.
— É só lixo.
— É um lugar de santidade e você deve tratá-lo com um pouco de
respeito. — Nadya respondeu, voltando ao seu trabalho.
Ela ouviu Malachiasz zombar.
— Então o seu poder e isso são sagrados?
— O que meu poder tem a ver com isso?
— Se é tudo sagrado. — Ele acenou com a mão vagamente.
— Eu não acho que você está em posição de dizer o que é ou não
sagrado. — Ela disse furiosa. — Além do mais, não é como se você
pudesse negar que meu poder existe.
— Ter um poder concedido a você, e reconhecer que esses seres
poderosos existem não é o mesmo que reconhecer que esses seres
são benevolentes ou até mesmo conscientes.
— Mas você reconhece que eles existem.
— Não do mesmo jeito que você. Você diz que toda escolha sua é
ditada por esses seres. Tudo que você faz é por eles e por capricho
deles, você não tem liberdade.
— É claro que eu tenho escolha.
— Você tem?
— Você ainda está vivo.
Ele ficou em silêncio. Ela meio que esperava que ele fosse
embora – eles estavam perto de onde planejavam montar
acampamento, então Nadya não estava com pressa – mas em vez
disso, ele se moveu e ficou em frente ao altar, a encarando, uma
carranca intrigada ainda presente no rosto.
— Eles falam comigo, você sabe. — Ela disse enquanto usava sua
manga para esfregar um pedaço de líquen da estátua. — Todos eles
têm suas peculiaridades e desejos. Alguns falam comigo
regularmente: Marzenya, minha matrona, Veceslav, Zvonimira.
Outros só me dão magia quando peço. Alguns frequentemente
negam meus pedidos. Eles não são apenas conceitos.
Ele não parecia convencido; ela não entendia o que era tão difícil
de compreender.
— Como você explica meu poder, então. — Ela disse. — Já que
você claramente sabe tudo.
Ele ignorou completamente sua farpa, o que era irritante por si
só.
— É o conceito de deuses que eu não aceito. — Ele disse. Ele
preguiçosamente juntou seu cabelo comprido para trás, amarrando-
o com uma tira de couro que ele mantinha no pulso. — Você
acredita que eles ligam para o seu bem estar. Eu não acho que isso é
verdade. Eu não... — Ele se interrompeu, quieto enquanto buscava
as palavras. — É o que colocamos na palavra ‘deus’, eu acho, que me
incomoda. A ideia de que esses seres são muito mais do que
podemos ser, a ponto deles merecerem nossa adoração. Os Kalyazi
— ele deu a ela um olhar quase apologético — atribuem tudo aos
deuses. Criação, moral, interações cotidianas, seus próprios
pensamentos. Mas quem disse que os deuses ligam para o que as
pessoas pensam ou sentem ou fazem? Como você sabe que está
interagindo com... bem, com deuses e não seres que alcançaram
uma posição mais alta que os mortais?
— Porque não há provas de que mortais já alcançaram uma
posição mais alta?
Malachiasz apontou para si.
— Então você é como um deus? — Ela disse secamente.
Ele fez uma careta. Óbvio que não.
— Você vê o problema?
— Acho que o seu argumento inteiro é baseado em semântica.
— Mas não é isso que é tudo? Conceitos que damos um peso
desnecessário. Pelo que você sabe, você está apenas se comunicando
com seres incrivelmente poderosos, mas eles são só isso. Não são
seres que tiveram participação na criação do mundo, ou seres que
determinam o curso da sua vida. Nossos reinos estão caindo aos
pedaços, estiveram em guerra por um século, e tudo por causa
dessas coisas.
Nadya ficou em pé, lhe dado um olhar incrédulo.
Ele notou sua reação e deu de ombros.
— Não tem onde mais colocar a culpa por uma guerra sagrada que
durou isso tudo. Por um momento, se deixe considerar sem a sua
religião atual. — Ele disse. — E se os deuses fossem destituídos de
seus tronos.
— Imposs...
Ele levantou uma mão e ergueu uma sobrancelha.
Ela rangeu os dentes.
— Quem removeria esses seres poderosos, então?
— Outro ser com poder igual ou maior, claramente.
— E o que isso consertaria? Remover uma instituição na qual
milhares de pessoas estruturaram suas vidas, para quê? Pela chance
dos magos de sangue pararem de terem os sentimentos feridos
quando os chamamos pelo que são?
— Kalyazin está morrendo. — Malachiasz disse, e Nadya
estremeceu quando a conversa hipotética deles ficou próxima da
realidade. — Tranavia também. E você espera que eu acredite que
remover as forças que brincaram conosco por milhares de anos não
nos salvaria das cinzas que nossos reinos logo se tornarão?
Ela engoliu em seco.
— Isso é discutível. — Ela disse, a voz dela muito suave porque
ela não queria nem considerar o que ele estava implicando.
Ele sorriu alegremente.
— Impossível, é claro. Reflexões, nada além disso.
Independentemente, seu poder é apenas isso. Não é como se seu
povo estivesse limitado por essa chamada magia divina no passado.
— Ele continuou.
Ele estava se referindo às bruxas – usuárias de magia infiéis que
os deuses desaprovavam – mas não há bruxas em Kalyazin em
décadas. A rota de magia delas foi considerada tão herética quanto a
magia de sangue e elas foram erradicadas por clérigos durante o
tempo da Caça às Bruxas. Como ele sabia sobre isso? O arrepio de
desconforto se fora e agora ela estava com razão enraivecida de
novo. Ele falava círculos em volta dela e ela não podia mantê-lo
parado por tempo suficiente para mostrá-lo como ele estava errado.
— Você está usando hereges como exemplo. — Ela disse. Bruxas e
magos de sangue, era tudo a mesma coisa. — Não é particularmente
convincente.
— É prova de que sua atitude ‘sou mais sagrada que você’ não é
tudo que existe!
— Eu não tenho uma atitude sobre magia.
— Você fica me chamando de herege.
— Você é um herege. Você acabou de expor pura heresia na
minha frente. E meu poder é divino, me chamar de ‘sou mais
sagrada que você’ é banal.
Ele se sentou ao lado dela e ela ficou rígida, subitamente
consciente... dele. O jeito que ele moveu seu corpo magro para se
sentar, um joelho encostando na perna dele porque ele estava tão
perto. Ela engoliu em seco. Ele pegou seu pulso, seu toque
insuportavelmente gentil, e puxou a manga dela, expondo o corte
ainda visível que sua garra cortou no antebraço dela. Houve um
momento de silêncio, a estrada silenciosa enquanto eles dois
encaravam o ponto culminante da heresia de Nadya.
— Bom — ele falou suavemente, um lampejo de algo selvagem
em seus lábios. — talvez você esteja certa. Talvez não tão sagrada,
afinal de contas.
Isso não deveria estar acontecendo. Ela não deveria estar se
inclinando para mais perto desse garoto, seu toque quente na pele
dela. Ela olhou para a forma da boca dele; seu cérebro lentamente
registrando o que ele falou.
Ela puxou o braço e continuou esfregando o altar, tentando não
se agitar e falhando. Tentando não pensar no jeito que seus dedos se
curvaram em volta do pulso dela, o jeito que sua perna ainda estava
pressionada na dela, e falhando nisso também.
Malachiasz ficou quieto por um longo tempo antes de falar
novamente.
— Você nunca se sente presa?
— Presa pelo quê?
— Pelo caminho que você tem que seguir por sua magia. Que isso
poderia ser negado por vontade de outro ser. Você tem tão pouco a
dizer sobre a direção da sua própria vida. Isso não é sufocante?
— Quando você coloca desse jeito, sim. Exceto que minha vida
não é assim. Minha magia também não. — Mas... por um instante
trêmulo, ela se deixou considerar como ela tinha que navegar
cuidadosamente com os deuses, como a decisão de sobreviver lhe
custou horas de culpa. Ela empurrou esses pensamentos para longe.
— Mas você tem todas essas regras e orientações. O que acontece
se você as quebras?
— Eu não quebro.
Ele franziu o cenho.
— O que te impede de testá-los?
Ela se apoiou nas suas mãos e seus dedos encostaram nos dele,
calor queimou seu braço. Ela se afastou.
— O que você está tentando dizer, Malachiasz? — Ela perguntou,
muito mortificada para olhar diretamente para ele.
Ele levantou um joelho para perto do peito e descansou seu
queixo em cima.
— Estou tentando entender.
— Por quê?
Ele pareceu genuinamente intrigado por sua pergunta.
— Eu não deveria ser interessado?
— Você não deveria se importar.
Ele abriu a boca, e a fechou novamente, parecendo pensativo.
— Eu me importo. — Ele finalmente disse, com a voz calma.
Nadya engoliu em seco.
— Por quê? — Ela perguntou. Ele era Tranaviano, herege, um
Abutre, toda parte dele se opunha ao que Nadya acreditava, mas
ainda assim...
Tinha alguma outra coisa. Ela não sabia o que era. Ela ficou
nervosa ao perceber que queria descobrir.
— Porque eu não tive nada além dos Abutres a minha vida inteira.
— Ele disse relutantemente. — E nós dois passamos nossas vidas se
preparando para matar, bem, um ao outro, mas em vez disso,
estamos aqui. — Ele não precisava indicar a falta de espaço entre
eles.
— Os Abutres destruíram os clérigos de Kalyazin. — Nadya disse.
Ele encontrou seu olhar antes de assentir. Não havia vergonha
em seus olhos, nem remorso.
— Eu não vou machucar a última. — Ele disse.
O coração de Nadya parecia errático no seu peito e ela não sabia
como fazer o sentimento ir embora.
— Você não sabe se sou a última. — Finalmente ela disse, com
um tom de voz formal, esperando que quebraria o feitiço que a
estava mantendo presa aqui com ele, mesmo que ela soubesse que
magia não tinha nada a ver com isso.
— Você não se pergunta como seria? Ser outra pessoa, com
nenhuma expectativa sobre você ou o medo de vingança te
mantendo no mesmo caminho?
Não. Sim. É mais complicado do que ele jamais poderia saber.
— Você cresceu em um mosteiro. — Ele se mexeu, pegando um
pedaço de unha quebrado. — E isso é uma sequência diferente de
regras rígidas, não é? Como viver, quem amar, o que você pode e
não pode pensar.
— Eu não ligo para regras, ou ter crescido em um mosteiro, mas
posso te garantir que a magia, o destino, saber que maior parte dos
clérigos foram mortos jovens... — Ela se interrompeu. — É difícil
viver sua vida sabendo que, provavelmente, você vai morrer de um
jeito horrível. Mas é o que eu sou. É uma benção, e não uma
maldição.
Ela esperava que não soasse como se ela estivesse racionalizando
para si, também. O que estava acontecendo com ela?
Ele parecia considerar isso.
— Você discorda. — Ela disse.
Ele assentiu.
— É por isso que nossos países estão em guerra por quase um
século. — Nadya disse. — E eu me sinto um pouco com vontade de
te matar, para que eu possa ver o porquê.
— Só um pouco?
— Não force a sorte. — Ela se voltou novamente para a estátua.
Em um instante, a mão dele estava sob o queixo dela, o polegar
roçando na sua mandíbula. Ele virou o rosto dela para o dele.
— Eu planejo fazer exatamente isso. — Ele murmurou.
Se Nadya não estivesse sentada, ela suspeitava que seus joelhos
teriam desabado.
Então, do nada, ele a solta. Ele se levantou e acenou para o altar.
— Você terminou?
Ela já tinha há algum tempo. Ela assentiu, limpando a garganta.
Ele estendeu a mão. Ela hesitou antes de deixar ele puxá-la. Ele a
soltou assim que ela ficou em pé, colocando suas mãos dentro dos
bolsos enquanto começava a ir pela estrada onde os outros
decidiram acampar. Ela observou ele ir. Alguma coisa tinha mudado
entre os dois.
Passar dias falando apenas em Tranaviano fez maravilhas para
Nadya compreender a língua, mas não foi o suficiente para mascarar
o sotaque dela. A cada dia, Malachiasz se frustava mais e mais, mas
ela não sabia o que estava fazendo de errado.
— É suave. Suas palavras são muito suaves. Tipo — ele acenou
com a mão na frente da boca. — suas palavras são macias.
Tranaviano é duro.
Nadya deixou seu cavalo passeando em vez de prendê-lo, ela
mandou uma oração rápida para Vaclav ficar de olho no animal,
para que não se afastasse muito.
— Você não está fazendo sentido.
— Nós podemos perder esse jogo na fronteira porque está
desesperadamente óbvio que sua língua nativa é Kalyazi.
Ela acenou com a mão. Isso estava fora de seu controle. O único
jeito de melhorar era continuar fazendo exatamente o que eles já
estavam fazendo. Eles ainda tinham muito tempo antes de alcançar
a fronteira, de qualquer jeito.
— Então vou ficar calada. Tudo que eles verão é um soldado
Tranaviano separado da sua companhia, dois Akolanos buscando
refúgio, e uma camponesa muda que o Tranaviano pegou para
prazer. Porque é assim que eles são.
Isso a fez receber um olhar sujo. Anna bufou.
Eles alcançaram o ponto onde Anna se separaria deles e Nadya
queria fingir que isso não estava acontecendo. Ela entendia porque
Anna estava ficando para trás – se eles fossem bem sucedidos,
Kalyazin deveria estar pronta – mas ela odiava mesmo assim.
As palavras finais de Anna se aninharam dentro de seus ossos.
— Não seja uma mártir. Nós não precisamos de outra santa.
Depois disso ela foi para o acampamento militar onde Nadya não
podia seguir. Nadya observou quando ela falou com um soldado no
perímetro, os olhos do soldado examinando a mata atrás dela. Ela
viu quando o soldado acenou para Anna entrar, e viu quando ela
desapareceu. Não era justo que Nadya tivesse que perder tudo por
isso, mas ela deveria saber melhor. Ela leu o Códex várias vezes; sua
deusa exigia sacrifício.
Parijahan entrelaçou o braço no de Nadya.
— Vocês se verão novamente. — Ela disse suavemente.
Nadya não acreditava nisso, mas era um pequeno conforto.
As montanhas se tornaram campos cobertos por geada do longo
inverno que agraciava Kalyazin. Cada dia os levava mais próximos
da fronteira, e logo não havia nada além de restos queimados e
enegrecidos do que um dia foram vilas Kalyazi. Campos devastados
e edifícios dizimados onde antes eram casas. Quantas mortes seriam
necessárias para os dois países antes que alguém finalmente
dissesse que bastava?
Nadya se distanciou de Malachiasz durante esses dias da jornada.
Ela preferia perder horas de aprendizado sobre Tranavia do que
olhar nos olhos dele e fingir que ela não queria matá-lo.
Rashid era um presente dos deuses durante esse período
sombrio, quando eles estavam cercados pelo constante gosto de
morte no ar. Nadya passava suas tardes perto dele enquanto ele
contava histórias com um talento que Nadya não esperava do
Akolano espalhafatoso. Lendas Kalyazi de príncipes e santos e
magia antiga, histórias Tranavianas sobre monstros e sombras,
contos Akolanos de areia e intrigas. Toda vez que Nadya aprendia
algo novo sobre Rashid, ela ficava surpresa; ela nunca pensou nele
como um escriba ou um contador de histórias.
Parijahan ouvia com a cabeça inclinada no ombro de Malachiasz
ou fazendo tranças no cabelo dele e Nadya iria esquecer que
provavelmente estavam condenados assim que chegassem à
fronteira.
Era início de noite, o sol poente aparecendo entre as árvores e
inundando a clareira com uma luz quente e âmbar. Malachiasz e
Nadya concordaram que o momento que eles lançariam magia num
ao outro seria mantido entre eles, então se separaram de Parijahan e
Rashid.
Malachiasz se encostou em uma árvore, olhando para um
pequeno bando de corvos que pousaram nos galhos logo depois que
eles chegaram.
— Os tolst são um presságio. — Nadya sussurrou.
— Bom ou ruim?
Ela balançou a cabeça.
— Pode ser qualquer um. Pode ser os dois.
Os lábios dele se torceram em um sorriso.
— Vocês Kalyazi certamente são supersticiosos.
— Teste minha paciência, garoto Abutre, e eu vou falar para
Vaclav mandar um leshy atrás de você. Ninguém vai perceber que
você sumiu.
— Ninguém lamentaria minha ausência também. — Ele disse.
Nadya piscou, vacilando com suas palavras francas. Suas mãos
tremiam quando ela chamou Veceslav e sentiu a língua sagrada do
feitiço entrar em sua mente.
— Fique parado. — Ela ordenou, ficando na ponta dos pés. Ela
colocou uma mão no ombro dele para se equilibrar. Ele se abaixou
um pouco para que ela pudesse alcançá-lo.
Com a outra mão, ela pressionou dois dedos na sua testa na linha
do cabelo, onde um trio de linhas negras estavam gravadas na sua
pele. Ela lentamente correu seus dedos pelo rosto dele. Algo brilhou
sob seu toque, algo que não era magia. Os lábios dele se separaram
quando os dedos dela encostaram neles, e o menor dos suspiros
deslizou através deles. Ela quase puxou a mão de volta, assustada
pela eletricidade que subia pelo seu braço.
Ele inclinou a cabeça para trás e ela deixou seus dedos roçarem
no seu pescoço. Seu pulso se acelerou debaixo das pontas dos dedos
dela. Erguendo a mão novamente, ignorando como tremia, ela tocou
sua orelha, passando os dedos horizontalmente por seu rosto para o
outro lado. Ela sentiu sua magia varrer sobre ele, pausou, hesitou,
então o cobriu e o protegeu.
Ele parecia o mesmo para ela. Ela lembrou da palavra de
Veceslav: inimigos. Ia protegê-lo de inimigos. Não de seus amigos.
Acho que isso significa que não somos inimigos, afinal de contas,
ela pensou sombriamente.
Talvez eles eram algo próximo de amigos, ultrapassar essa linha
para outra coisa era algo que Nadya tinha medo de considerar.
Ela não deveria gostar dele. Ele não deveria estar vivo. Ela estava
desamparada, todo o controle que ela cultivou a vida toda, se
desfazendo por causa desse garoto herege estranho e selvagem que
ela deveria ter matado. Se ela tivesse feito o que ela deveria, nada
disso estaria acontecendo, seus sentimentos não seriam uma
confusão emaranhada de querer ele muito longe e sempre ser
atraída para seu lado.
Ela não estaria tão tentada a ideia de liberdade que ele parecia
estar segurando na frente dela. Deixar ele chegar mais perto era um
erro que ela não tinha o luxo de cometer.
Seus olhos tinham se fechado e ele os abriu, olhando para ela.
— Isso é estranho. — Ele disse com a voz rouca. Ela afastou a
mão, a sacudindo como se isso fosse ajudar.
Ela se lembrou das vilas queimadas da profanação que os
Tranavianos causaram em Kalyazin. Que ele era parte do ciclo, teve
participação no horror cometido contra seu povo. Ela se lembrou
dos Tranavianos que destruíram sua casa, mataram Kostya e ela
merecia vingança.
Ela se lembrou de piscar.
— Você tem um nome falso também? — Ela perguntou, tentando
se distrair.
— Jakob.
— Bem, isso é mais fácil de falar do que Malachiasz. — Ela disse.
Ele riu suavemente. Sua risada era tão inesperada e tão rara que a
abalou de novo. Ela sentiu as orelhas queimando e as bochechas
corando. Ela abaixou a cabeça para evitar olhar para ele.
Ela ouviu ele folheando as páginas do livro de feitiços e rasgando
a página com o feitiço adequado. Sua mão era quente sob o queixo
dela quando ele levantou seu rosto. Ele pressionou o feitiço na
palma dela, usando seu polegar sangrando para passar sangue na
testa dela, pelo nariz, pelo lábio inferior e queixo. Ela manteve os
olhos no rosto dele, observando enquanto ele franzia o cenho que
abaixava suas sobrancelhas. Ele inclinou a cabeça dela mais para
trás, desenhando uma linha de sangue por sua garganta.
Primeiro, era como se nada tivesse acontecido. Então o toque
escuro e venenoso de sua magia caiu sobre ela. Ela inalou forte,
uma mão se erguendo para apertar o antebraço dele.
— Está tudo bem. — Ele murmurou, segurando ela quando seus
joelhos falharam.
— Não, isso é errado. — Doía falar. Ondas quentes de fogo a
cobriam em cada respiração. Ela sentiu lágrimas nos olhos e os
fechou.
Então parou. A ausência de dor era tão desconfortável quanto. Ela
abriu os olhos, percebendo que sua cabeça estava encostada no peito
de Malachiasz, e se forçou a se afastar sem deixar óbvio que ela
estava em pânico.
Ele se abaixou, umedecendo um pano na neve, então se levantou,
segurando o pano em seu punho para aquecê-lo. Ele foi em direção
dela. Ela deu rapidamente um passo para trás.
Um fio de tensão se estendeu entre eles. Ambos usavam
máscaras criadas um pelo outro – a magia os uniam.
Ele não falou, mas a expressão em sua face era uma pergunta. Ele
ergueu sua mão para ela novamente e dessa vez ela o deixou limpar
o sangue de seu rosto, seu toque era gentil.
— Eu deveria ter te avisado. Você provavelmente estava
rejeitando minha magia por causa do que você é.
— Já acabou, não se preocupe. — Ela disse. — Funcionou? Você
não parece nem um pouco diferente para mim, como eu estou?
Ele teve que se afastar para limpar o sangue de suas mãos e seu
olhar disparou para ela.
— Você está linda. — Ele murmurou, e ela desejou que pudesse
colocar um nome adequado para o que ouviu na voz dele.
— Oh?
Ele assentiu, sua expressão perfeitamente neutra.
— Entretanto, não tão linda quanto uma camponesa Kalyazi que
passou a vida em um trancada em um mosteiro.
Nadya piscou para ele, dando um passo para trás. Ela se virou e
abruptamente fugiu da clareira.
Dezessete: Serefin Meleski

Svoyatova Violetta Zhestakova: quando ela tinha treze anos,


Svoyatova Violetta Zhestakova liderou um exército Kalyazi para a
Batalha das Relíquias em 1510. Uma clériga de Marzenya, Violetta
era uma assassina implacável que caiu em batalha, morta pela
bruxa de sangue Apolonia Sroka.
—O LIVRO DOS SANTOS DE VASILIEV

Os jardins estavam escuros – sem guardas, sem ninguém. Apenas


três adolescentes Tranavianos com jarras de krój e tempo para
gastar. Eles ainda estavam esperando a resposta do garoto que
Kacper mandou bisbilhotar as Minas de Sal. Serefin cumpriu todas
as tarefas necessárias que vinham quando chegava em casa: coletar
uma seleção de novos livros de feitiço, falar com os slavhki que
pediam por uma audiência, e outros assuntos tediosos.
Ele ainda não tinha visitado sua mãe. Ele não estava adiando por
si só, ele apenas ainda não tinha achado o momento certo. No
momento em que ele a visitasse, ele falaria tudo. E ele não tinha
certeza de que ela conseguiria esconder coisas do pai dele.
Então, em vez de investigar as tramas que rodopiavam pelo ar
denso de Grazyk tão pesadas quanto sua fumaça mágica, Serefin fez
o que ele fazia de melhor: consumir uma quantidade fantástica de
álcool.
Fazia sentido que os assassinos decidiram atacar nessa mesma
noite.
Ostyia foi quem os viu, se levantando e desembainhando sua
szitelki fina de sua cintura em um movimento rápido.
O mundo girou perigosamente quando Serefin se levantou, mas
ele afastou a sensação, se forçando a ficar sóbrio. Bem, o mais
sóbrio possível.
— Como eles conseguiram passar pelos muros? — Kacper
perguntou em descrença.
Ostyia e Kacper, instintivamente, se moveram para mais perto de
Serefin, o protegendo. Uma adaga girando cortou o ar em direção a
ele.
Ele viu a lâmina chegando e se esquivou, os dedos já estavam
folheando seu livro de feitiços sem pensar muito. Ele abriu um corte
em seu antebraço com a navalha na sua manga que sangrou
abundantemente.
— Kalyazi? — Ele murmurou baixinho para Ostyia. Um segundo
assassino apareceu no caminho do jardim. Um terceiro saiu dos
arbustos, derrubando Kacper.
— Não sei dizer. — Ela parecia dividida sobre qual assassino
perseguir, não querendo deixar Serefin sozinho enquanto Kacper
lutava com o terceiro.
Serefin a empurrou para o que estava vindo pelo caminho
enquanto amassava uma página do livro. Sua magia acendeu e ele
deixou o assassino na frente dele se aproximar antes de levantar
uma mão e soprou seu punho sangrento. O papel virou cinzas em
sua mão e atirou um spray ácido no rosto mascarado do assassino.
Quando as cinzas o acertaram, sua máscara se acendeu em chamas.
Serefin chutou o assassino em seu torso. O homem desmoronou.
Ele se virou para ver que Kacper tinha cortado a garganta de um
assassino. Ostyia – que era muito mais baixa que seu agressor –
lançou um feitiço que fez o último assassino vacilar. Enquanto ele
tentava se equilibrar, ela se jogou em cima dele, prendendo suas
pernas na cintura dele e lançando as duas lâminas em seu pescoço.
Ela graciosamente se soltou enquanto o homem caía.
Bem, isso foi um trabalho rápido. Serefin não tinha certeza de
quem mandou assassinos tão incompetentes atrás dele, mas
aparentemente era alguém que tinha muita fé em seu objetivo.
Ostyia se virou. Seu único olho se arregalou.
— Serefin!
Alguma coisa acertou a parte de trás da sua cabeça. Dor explodiu
através dele e ele cambaleou para frente. Ele sentiu o caminho de
pedra abrir seus joelhos. Ele conseguiu se agachar. Sua visão vacilou
e ele mal conseguiu enxergar outras três figuras aparecendo na
escuridão.
Claro que teriam mais. Ele tentou se levantar, mas sua visão
difícil e a cabeça girando tornou isso impossível.
Kacper se moveu para o novo grupo, mas um deles já estava ao
lado de Serefin, um lampejo de aço nas mãos. Subitamente, eles se
foram e uma figura que Serefin não pôde identificar apareceu em pé
na frente dele.
O rosto da nova figura se abaixou diante dele.
— Levantem-no, acho que ele não consegue ver. — Ele
instantaneamente reconheceu a voz.
— Lady Ruminska, eu não acho... — Ostyia falou, mas Żaneta já
estava se virando para encarar os outros dois assassinos.
Sangue escorreu pelos braços dela enquanto ela arrancava duas
páginas de seu livro de feitiços. Ela passou sangue nas duas folhas
enquanto se esquivava da lâmina de um dos assassinos. Uma por
uma, ela deixou as folhas flutuarem até o chão.
Espigões de ferro se projetaram onde as folhas caíram, passando
pelos assassinos simultaneamente e prendendo-os juntos. Os dois
caíram em montes sangrentos. A dor na cabeça de Serefin se
ampliou, e ele se lançou para frente, mal se segurando antes de cair
de cara nas pedras. Ele ficou lá por alguns segundos tensos – ele
podia ouvir vagamente a voz de alguém, mas não conseguia
discernir se era de Żaneta ou de Ostyia – antes de tudo se escurecer.
Isso era pior que qualquer ressaca que Serefin já experimentou. E
ele sempre acompanhava todas as suas ressacas e quão ruins elas
eram. Ele tinha uma lista.
Sua cabeça pulsava. Sua boca tinha gosto de sangue e estava seca
como o deserto. Quando ele abriu os olhos, um pânico vívido o
percorreu. Ele pensou que estava completamente cego. Até que ele
percebeu que ainda estava escuro lá dentro.
Alguma coisa se mexeu no quarto e uma vela se acendeu. Żaneta
colocou a vela na mesa de cabeceira, se sentando do lado dele na
cama.
— Que escândalo, Żaneta. — Ele murmurou, descansando a
cabeça nas almofadas.
— Definitivamente mais escandaloso do que o príncipe sendo
atacado nos jardins do próprio castelo. — Ela concordou.
Ele levantou as mãos e pressionou seus dedos nas têmporas
latejantes.
— Tem certeza que não me mataram? — Ele perguntou.
— Quase certeza.
Seus cachos castanhos estavam soltos em seus ombros. Ele se
percebeu rastreando as sardas que polvilhavam sua pele marrom.
— Algum deles sobreviveu? — Ele perguntou.
Ela assentiu.
— O que tem a cara queimada. Trabalho seu?
Ele tentou assentir mas doía muito.
— Sim.
— Um bom feitiço. — Ela disse. — Ele está nas masmorras.
— Meu pai sabe o que aconteceu? — Serefin não queria saber a
resposta, mas ele tinha que perguntar.
— Sim.
Serefin gemeu.
— Fiquei feliz de não estar lá quando avisaram ele. — Ela disse.
Serefin precisava pensar, mas as marteladas na cabeça
dificultavam. Não tinha porquê voltar a dormir. Ele não tinha
certeza se conseguiria mesmo. Ele precisava de respostas. Ele queria
demandar uma explicação do pai; com certeza foi um feito dele.
Ainda assim seu lado racional sabia que não podia ser uma ação do
pai. Porque tinha falhado. Gloriosamente.
— Meu pai vai culpar os Kalyazi. — Ele pensou.
— Não foram eles? — Żaneta perguntou se levantando.
— Eu... não sei. — Os Kalyazi não treinavam assassinos
incompetentes; seu olho era prova disso. Podia ter sido um trabalho
da Abutre Carmesim. Talvez seu pai estava por trás do ataque, e ela
mudou as peças para que assassinos incompetentes fossem
enviados e desse a ele uma melhor chance. Ele odiava viver com
uma nuvem negra de ruína pairando sobre seus passos, certo de que
seu futuro era sombrio, mas sem conseguir respostas claras.
— Você pode buscar o Kacper, por favor? — Ele perguntou.
Żaneta franziu o cenho. Ela hesitou, como se quisesse discutir,
mas foi embora. Serefin se perguntou o que ela não estava dizendo.
Serefin deixou os pensamentos se dissiparem quando Kacper
entrou, com um olhar intrigado.
— Żaneta parecia chateada. — Kacper disse.
— Eu não disse nada para chateá-la.
Kacper deixou para lá.
— Um Abutre foi mandado para interrogar o assassino que
sobrou. Assumo que vamos ouvir dele por volta de meio dia.
Enquanto isso...
Serefin se arrumou para ficar em uma posição sentada. Ele
encarou inexpressivamente a escuridão do outro lado do quarto.
Quais informações ele tinha? Uma tentativa contra a vida dele,
um plano para achar uma rainha para Tranavia, e perguntas sem
respostas. Por que seu pai estava mandando milhares e milhares de
prisioneiros para as Minas de Sal? Por que seu pai estava
trabalhando tão intimamente com os Abutres? Para que fim? Por
quê agora?
O que estava acontecendo?
— Você viu a lista atual de famílias que estão participando da
Rawalyk? — Kacper perguntou.
— Não, por quê?
— Parece estar instável. — Ele disse. — Nomes de garotas ficam
aparecendo e desaparecendo de repente.
— O que significa?
Kacper balançou a cabeça.
— Não tenho certeza. Quero dar uma olhada, ver se as garotas
estão apenas ficando nervosas ou se é outra coisa.
Serefin soltou uma risada sem folêgo.
— Somos tão paranoicos. — Houve um momento de silêncio. —
Eu preciso falar com minha mãe. — Ele murmurou.
Ele não tinha certeza se ela podia ajudá-lo com alguma coisa. Mas
era tudo que ele podia fazer nesse ponto. Ele estava preso em uma
gaiola de ouro e ferro sem nenhuma porta para escapar e lhe foi
dado uma adaga, quando ele precisa de uma serra para fazer um
buraco em sua prisão.
— Eu posso mandar uma serva para os aposentos dela. — Kacper
disse. — Isso é tudo?
Serefin assentiu distraído, antes de franzir o cenho e apertar os
olhos para Kacper.
— Você está bem?
Kacper piscou, surpreso.
— Eu? Claro, por quê? Eles não estavam tentando me matar.
Serefin olhou para o outro garoto, observando seu cabelo e pele
escuros, a cicatriz que atravessava uma de suas sobrancelhas, e seus
olhos marrons afiados. Ele não cresceu enfrentando tentativas de
assassinato como Serefin e Ostyia. Por todos os direitos, Kacper
deveria ter sido apenas outro soldado do exército do rei; ele era de
baixo nascimento. Seu talento excepcional com magia de sangue e
sua perspicácia na habilidade de espionagem significaram mudanças
pelo exército, até que ele foi designado para a companhia de Serefin.
A amizade deles se formou em um mês durante a primeira excursão
de Serefin pelo front, quando ele tinha dezesseis anos. Kacper
entrou em uma briga com Ostyia. Ela quebrou seu braço, ele
fraturou três ossos da costela dela, e precisou que Serefin deixasse
os dois inconscientes para que eles parassem.
Serefin ainda não sabia por que eles brigaram. Nenhum dos dois
contou para ele. Precisou de outra semana para Serefin promover
Kacper para seu serviço pessoal depois que Kacper quase perdeu o
outro braço em nome de Serefin.
— Eu não preciso de formalidades, Kacper. Não de você. Eu só
queria ter certeza que você não estava abalado ou alguma coisa
assim. Assassinos são novos para você.
Kacper sorriu, se sentando na cama ao seu lado.
— Para falar a verdade, estava preocupado que fosse ser chato
aqui. Os assassinos mantiveram tudo interessante.
— Você pensou que Grazyk fosse ser entediante? — Serefin
perguntou incrédulo.
— Pensei que estávamos vindo para cá para seu pai escolher uma
garota bonita para você se casar, e depois voltaríamos ao front.
Serefin gemeu.
— Não fale sobre casamento.
— Você parece a Ostyia.
— Ostyia estaria em uma posição muito melhor se ela estivesse
no meu lugar. Ela largou o último pretendente que o pai dela enviou
em uma fonte. Acho que antes de tudo isso acabar, ela vai ter
namorado pelo menos metade das garotas aqui.
— Pelo menos?
Serefin considerou isso.
— É, você está certo, talvez mais que a metade. — Ostyia era
muito charmosa. Quando ela queria.
Quando Serefin finalmente se levantou da cama para ver sua
mãe, as marteladas na sua cabeça estavam gradualmente
diminuindo. Cada passo era uma agonia leve, mas ele continuou.
Ele precisava mostrar a Grazyk que o Príncipe Herdeiro deles não
reduziria por nada, nem pela perspectiva de casamento nem
assassinos à noite.
Ostyia bateu na porta dos aposentos de Klarysa antes de Serefin.
A porta foi aberta pela criada da mãe, Lena. Ela assentiu com
seriedade para Serefin e fez um gesto para ele entrar. Ostyia decidiu
esperar do lado de fora.
— Eu estive nessa cidade maldita por semanas, e só agora meu
único filho se dignou a me agraciar com sua presença. — O tom
gracioso da voz de sua mãe veio flutuando pelo corredor. Lena deu a
Serefin um olhar simpático. Serefin sempre achou sua mãe um
pouco desconcertante. Seus pais eram maiores que a vida, maiores
que a realidade. Ele os via tão pouco enquanto crescia.
Sua infância foi passada com tutores e servos. Seus pais
funcionavam apenas como um nome entrando e saindo de sua vida
com pouca permanência. Eles às vezes apareciam de noite nas
refeições apenas para desaparecer de novo com o início de um novo
dia. Serefin tinha Ostyia, – cuja família sempre morou no palácio –
assim como um primo do lado materno, mas era somente isso. O
primo foi embora quando ainda eram muito jovens, saiu do país por
motivos de saúde. Ele ainda via sua tia e tio no palácio, mas ele
nunca mais viu seu primo de novo e, eventualmente, ele parou de
perguntar.
— Eu estive ocupado com outras coisas. — Ele disse, aumentando
a voz para sua mãe ouvir e depois seguindo em direção a ela.
A sala de estar era luxuosa, adequada para uma rainha. Sua mãe
estava sentada em uma espreguiçadeira de veludo bordada, uma
máscara de pano cobrindo o nariz e a boca. Seus cachos marrons
estavam presos para cima elaboradamente, e seu livro de feitiços
descansava em uma mesa próxima.
Ela se levantou, colocando seu livro com a capa para cima no
braço da espreguiçadeira.
— Serefin. — Ela disse, retirando sua máscara.
Ela o puxou para seus braços e ele teve que se curvar para beijar
sua bochecha.
— Mãe, estou feliz em vê-la bem. — Ele disse quando ela se
sentou novamente. Ela gesticulou para a cadeira oposta à sua
espreguiçadeira e ele se sentou.
— Bem o bastante para seu pai me arrastar de volta a essa cidade
suja. — Ela pausou, então concedeu: — Por uma boa causa.
— É uma boa causa?
Ela levantou uma sobrancelha.
— Direto ao ponto?
— Eu realmente não tenho tempo para muito mais do que isso. —
Ele cruzou as pernas, descansando um tornozelo no joelho oposto.
— Eu falei com Pelageya e com a Abutre Carmesim, e eu tenho que
admitir que me sinto mais seguro no front.
— E aqui estava eu, indo te perguntar se você está bem. Eu ouvi
que você foi atacado noite passada?
— Estou aqui, então assumo que isso significa que estou bem.
Klarysa sorriu ironicamente.
— Acho interessante que você foi a Pelageya antes de vir até mim.
— Ela disse, levantando uma sobrancelha. Ele conhecia esse tom.
Ela não estava desapontada com ele, ela estava dizendo a ele que ele
fez uma decisão tola, mas ela não ia dizer em voz alta.
— As circunstâncias exigiram. — Ele respondeu.
— Sim. — Ela disse. — Tenho certeza que elas exigiram.
Eu não tenho tempo para isso, ele pensou. Mas ele tinha. Essa
que era a coisa. Ele estava preso aqui – sem fazer nada, sem saber
de nada. Ele conseguia sentir as mandíbulas da besta invisível se
fechando sobre ele, mas ele não tinha poder para parar.
— Acha que posso virar a corte para o meu lado? — Ele
perguntou.
Ela piscou, se endireitando na cadeira.
— Serefin?
— Oh, tenho certeza que ele já sabe. — Serefin disse, acenando
com a mão. — Eu só preciso saber quantos passos ele está na minha
frente.
— Seu pai... — Ela colocou ênfase na palavra ‘pai’ como se
significasse alguma coisa para Serefin. Talvez já tenha. Anos atrás,
quando ele pensava que poderia ganhar o amor do pai. Não mais.
— Eu achei uma clériga em Kalyazin. Ninguém mais parece achar
isso importante. Não parece um pouco estranho para você? Eles
mandaram os Abutres atrás dela, mas ela escapou.
— Os Abutres?
— Ela escapou dos Abutres. Por quê sou o único incomodado com
isso? O que meu pai está planejando que não transformou isso em
um problema?
Os olhos de Klarysa se estreitaram e Serefin percebeu que ele
falou algo que ela não esperava.
— Sobre o quê... você conversou com Pelageya? — Ela perguntou.
Ele zombou.
— Ela me disse um monte de besteira que se parecia com uma
profecia.
— Ouça ela, Serefin. Eu sei que você não quer. Eu sei que você
acha ela louca. Mas ouça ela. Ela pode ser a única coisa que te
salvará.
— Me salvar? Sim, eu estou claramente tentando não morrer
aqui, mas não acho que a bruxa vai ajudar.
— Não do seu pai, dos Abutres. Dos deuses. De tudo.
— Mãe?
— Pelageya sabe do que fala. — Sua mãe estava falando
rapidamente, a voz baixa. Ela sabia o quer que eles falassem voltaria
para o rei. Ela deu um olhar desconfiado para onde a parede
encontrava o teto, o mais provável dos lugares para um feitiço de
espionagem. — Eu não posso te ajudar, Serefin, você sabe disso.
Serefin se sentiu frio.
— O que ele fez?
Klarysa balançou a cabeça. Havia medo em seus olhos.
Ela não pode me dizer, ele percebeu. Se ela me disser, ele vai
matá-la também. O que ela sabia que ele ainda tinha que descobrir?
— Me dê alguma coisa. — Ele implorou.
— Seu pai sempre foi um monstro. — Ela disse. — Mas pelo
menos, ele tinha sua própria mente, suas decisões eram somente
dele. — Ela balançou a cabeça. — Eu temo que os Abutres o tenham
agora.
Ela ficou em silêncio, mas Serefin não precisava de mais coisa
para juntar as peças. Os Abutres saíram de suas rotinas para
sussurrar no ouvido do rei. Os sussurros foram de sugestões para
cordas de marionete.
Era bem provável que houvesse discórdia entre os Abutres
também. Que a Abutre Carmesim estava trabalhando separada de
seu próprio rei, o Abutre Sombrio. Mas quem estava segurando as
cordas?
Serefin ainda não tinha respostas.
Dezoito: Nadezhda Lapteva

Vaclav é raramente visto, raramente ouvido e raramente adorado.


Florestas sombrias e monstros mais sombrios ainda prestam
atenção ao seu chamado. Suas terras são vastas, antigas e mortais,
e ele não é gentil. A verdade nunca é gentil.
—O CÓDEX DO DIVINO, 23:86

Nadya era a mais surpresa de todo mundo quando o plano dela para
atravessarem a fronteira funcionou.
— Onde está sua companhia, filho? — O Tranaviano que os
confrontou parecia mais velho que Malachiasz, e por causa disso,
ele pensou que era superior a ele.
Malachiasz se endireitou, sua postura traindo o ar de alguém que
estava acostumado a ter autoridade. Ele empurrou o cabelo para
longe de onde suas medalhas estavam na jaqueta. Agora Nadya
tinha dupla certeza de que não queria saber o que significavam.
— Perdi a maior parte deles para mercenários que se escondem
nas montanhas. — Ele disse. — Perdi o resto em algum lugar no
meio do caminho.
O soldado franziu o cenho para Malachiasz, mas quando ele falou
de novo, o tom condescendente se fora.
— Quem são eles, então?
Malachiasz olhou de volta para o grupo.
— Os Akolanos estão fugindo de Kalyazin, uma decisão sábia. A
garota é... — Ele vacilou, convincentemente. — Bom, você sabe. —
Ele piscou para o soldado.
Nadya se controlou para manter sua expressão educada.
— Preciso que venha comigo — disse o soldado, olhando de uma
maneira dura para Malachiasz. Ele puxou uma segunda soldada, e
ordenou para que ela se certificasse que o resto deles não fossem
para outro lugar.
Nadya sentiu seu coração acelerar enquanto Malachiasz seguia o
soldado Tranaviano para dentro de uma cabine mal construída. Ela
olhou para Parijahan, cuja expressão era retorcida e cautelosa. Os
minutos que Malachiasz ficou fora se esticaram, e pareciam que
nunca iam acabar, mas a soldada guardando eles, parecia apenas
entediada.
Eventualmente, Malachiasz saiu da cabine, sua face pálida. O
outro soldado o seguiu e acenou para a garota que os vigiava.
— Deixe-os passarem. — Ele disse.
Ela parecia que ia questioná-lo, mas Malachiasz lhe deu um
sorriso fino e tocou em uma das medalhas na jaqueta dele. Ele tinha
uma posição superior à dela – provavelmente ele tinha uma posição
superior a todos daqui – e ficou em silêncio.
Malachiasz pegou o pulso de Nadya e a puxou para fora do
acampamento. Ela o deixou, totalmente consciente que era tudo
parte do show, mas que ele claramente estava gostando.
Nenhum deles abordou o que havia acontecido entre os dois na
clareira. Ela não achava que um dia falariam sobre. Ela só tentou
ignorar as pausas no seu coração que pareciam intrinsecamente
ligadas à mão dele em volta do pulso dela.
Com o perigo inicial para trás, agora eles tinham que chegar à
Grazyk antes do verdadeiro teste começar.
Tranavia não era o que Nadya esperava. Havia lagos e rios por
todo o lugar. Eles tiveram que atravessar em barcos, operados por
homens e mulheres abatidos, muito velhos para lutarem no front.
Mas Tranavia era linda. A água era límpida e brilhante, cobrindo a
terra como pedras preciosas, imaculada pelo flagelo da guerra que
queimava em Kalyazin.
Em um dos muitos barcos Tranavianos que eles conheceram
durante a viagem, Nadya se inclinou no parapeito, olhando para a
água. Rashid estava precariamente empoleirado ao lado dela quando
Malachiasz se aproximou dela.
— É adorável, não é?
— Sim.
Ele estava quieto, encarando a água. Tinha uma ternura em seu
olhar que ela nunca tinha visto antes.
— Não foi particularmente gentil comigo. — Ele disse. — Mas
Tranavia é casa. É selvagem, vibrante e tenaz. As pessoas, altivas e
inovadoras. — Ele olhou para ela. — Eu vou salvá-la da destruição.
Era algo que os dois tinham em comum – embora ela sentisse
uma pontada de culpa, porque suas ações levariam Tranavia à sua
queda. Seus deuses queriam punir o país por sua heresia, e ela faria
isso. Mesmo que isso a colocasse em desacordo com esse lindo e
estranho garoto. Mas ela podia ver que ele se importava muito, do
mesmo jeito que ela se importava com Kalyazin, e ela pode respeitar
isso.
Ele tirou o livro de feitiços do quadril e entregou a ela.
Ela, hesitantemente, pegou o livro grosso e de capa de couro dele.
Ela teria segurado entre dois dedos, mas era muito pesado.
— O que você está fazendo?
— Não posso ser visto com isso, e você precisa parecer com uma
maga de sangue competente.
Ela queria jogar o livro na água. Ela o colocou no parapeito, longe
do seu corpo. Ele rolou os olhos, desatou o cinto que mantinha o
livro no quadril e entregou a ela também.
— Eu terei que rasgar as páginas sem usar os feitiços. — Ela disse.
Arruinar o livro de feitiços de um mago de sangue sempre foi um
objetivo pessoal dela, mas ela teria preferido que não fosse o dele.
Ele tocou sua têmpora.
— São meus feitiços. Eu posso reescrever.
— Você vai para o palácio conosco? — Nadya perguntou.
Aqui estava uma coisa que eles não tinham decidido: qual seria o
papel de Malachiasz quando chegassem na capital. Ele tinha se
esquivado da pergunta antes de um jeito que fez Nadya suspeitar
que ele simplesmente desaparecia quando chegassem.
— Eu vou ficar por perto. — Ele disse. Ele franziu o cenho, assim
como as tatuagens na testa. — Não seria incomum para uma
slavhka viajar com um mago de sangue agindo como seu guarda.
Não vai me dar um ótimo alcance ao palácio, mas posso fazer
funcionar.
Nadya franziu os lábios. Era uma parte sólida para ele interpretar
e ela descobriu que não tinha nenhum argumento.
— Você não vai ser pego pelos Abutres? — Ela ainda estava
preocupada com o que ele disse sobre eles não serem capazes de
agir contra a ordem do rei deles, mesmo se a magia nele estivesse
fraca.
— Eu descobri que se preocupar com ele é um empenho inútil. —
Rashid notou, cutucando-a com seu cotovelo.
— Acha que estou preocupada com ele? — Nadya disse,
irreverentemente.
Rashid deu a ela um olhar que dizia que ele não acreditava nela.
Quando ela olhou para Malachiasz pelo canto do olho, ele estava
casualmente observando a água.
— Vou ver se Parijahan precisa de alguma coisa. — Rashid disse.
— Devemos chegar ao outro lado do rio em uma hora.
Nadya queria puxá-lo de volta, dizer a ele para não deixá-la
sozinha com Malachiasz, mas Rashid já tinha ido.
— Nunca alguém se preocupou comigo antes — disse Malachiasz,
como se pensando em voz alta.
Nadya contemplou se jogar na água.
— Bom, não pense que serei a primeira. — Ela replicou.
Ele sorriu. A brisa pegou seu cabelo, o balançando como gavinhas
de fumaça escura pelo ar.
— Nosso plano é tão sólido como pode ser sob essas
circunstâncias. — Ele disse. — Rawalyk é um assunto secreto. Eles
trazem as mais espertas e melhores para o coração da cidade e,
depois uma bagunça cheio de drama e, às vezes, sangue, uma nova
consorte é escolhida. É uma das únicas vezes que o palácio é
acessível para a nobreza que não está nas escalas mais altas da
esfera social.
Ele tinha razão, não havia mais nada que pudessem fazer a esse
ponto. Malachiasz havia perfurado seu cérebro com todas os
detalhes da corte, até que ela sentia como se seu cérebro estivesse
derretendo. Parijahan tinha ensinado tudo que ela sabia sobre
crescer em uma Travasha.
— Nobres são nobres. — Ela disse, acenando com a mão. —
Independentemente de onde vêm. A mesquinhez da corte
transcende todas as fronteiras culturais.
Nadya estava, para todos os efeitos, pronta. Ela desejava que se
sentisse assim.
— Você têm que confiar em mim. — Malachiasz disse. — Quando
entrarmos, o momento que esperamos para ficar perto o suficiente
para atacar, chegará. Chegamos até aqui, entrar em Tranavia era
metade da batalha.
Ela não queria confiar nele. Especialmente não depois de vê-lo
como ele era.
— Tem... alguma coisa que você pode controlar? — Ela perguntou,
sabendo que ele entenderia do que ela estava falando. — Não é
ativado por um certo tempo ou incidente?
— Eu não sou um wolivnak, Nadya.
Pessoas que se transformavam em lobos, cujas transformações
eram ativadas pelos ciclos da lua. Ela virou os olhos.
— Nossa palavra para eles é zhir’oten.
— Bem, eu não sou um deles. — Ele disse formalmente.
— Estranhamente, eu tenho a impressão de que você é pior.
Ele riu.
— Você provavelmente tem razão.
— Tem mais nessa forma do que eu vi, não tem? — Ela não tinha
certeza do quanto ele estava disposto a falar sobre isso. Seus
sorrisos relaxados não significavam que ele responderia suas
perguntas.
Ele assentiu.
— Não acontece com todo Abutre, mas comigo, sim.
— Parecia horrivelmente errado. — Ela disse, sentindo uma onda
de arrepio passar por ela.
Ele deu de ombros.
— Depende do que você quer dizer com errado.
— Monstruoso.
— Eu sou um monstro. — Ele disse gentilmente.
As sobrancelhas dela se franziram e ela inclinou seus cotovelos
sobre o parapeito, colocando seu queixo nas mãos.
Malachiasz colocou a cabeça dele contra o vento.
— Tranavianos valorizam poder e status acima de tudo. Não
importa como esse poder é alcançado ou que medidas são tomadas
para tê-lo. Monstros são vistos como o ideal, porque monstros são
poderosos, mais que humanos. — Ele estendeu suas mãos e suas
unhas cresceram para garras de ferro. — Seu povo luta pela
divindade?
Ela assentiu, mesmo que fosse uma simplificação.
— Não é tão diferente. É lutar por algo que seria mais que
humano.
— Mas não às custas de assassinar pessoas.
— Kalyazi matam Tranavianos todo dia, e não veem um problema
nisso. Kalyazi estavam matando Tranavianos muito antes dessa
guerra começar, e também não era um problema.
Ela se virou para ele, raiva brilhando intensamente. O povo dele
era herege e assassino, e ele não ia distorcer as palavras dela e jogá-
las nela.
— Não é o mesmo que torturar prisioneiros de guerra. — Ela
retrucou.
Ele pegou o queixo dela com a mão, suas unhas frias e afiadas na
pele dela. Ele poderia pressionar um pouco mais e abrir a carne na
sua mandíbula. O coração dela se acelerou, mas ela não sabia se era
medo ou outra coisa.
— Talvez não. — Ele sussurrou, se inclinando para mais perto. Ela
sentiu seu hálito quente no rosto. — Talvez devemos ter essa
conversa novamente quando você experimentar um poder real.
O cabelo dele roçou no rosto dela, sua boca pairando tão perto da
dela que ela podia sentir seus lábios tremendo. Seus joelhos
estavam fracos. O olhar dele permaneceu nos lábios dela. O canto de
sua boca se contraiu e ele se afastou.
Ele acenou por cima do ombro dela, virando sua cabeça para que
ela pudesse ver a cidade brilhando atrás deles.
— Bem vinda a Grazyk, Józefina. — Ele disse. — Agora a
verdadeira provação começa.
As mãos de Nadya não paravam de tremer.
Suas contas de orações estavam guardadas no seu bolso, então
ela pegou o colar que Kostya deu a ela. O que ele diria se a visse
agora? Presa em um plano forjado por adolescentes potencialmente
loucos, uma máscara em seu rosto feita de couro pintado de branco
e estampada com impressões de espinhos.
Ele provocaria ela, a repreenderia, diria que ela estava ficando
louca. Ela sentia sua falta.
Marzenya a avisou que a presença dos deuses em Tranavia seria
limitada, mas Nadya sentia a ausência deles como uma ferida física
na sua lateral. Como se os deuses tivessem sido arrancados dela
assim que ela ultrapassou a fronteira. Quando ela esticava, ela mal
podia encostar no toque de Marzenya, mas exigia muito esforço.
Seria difícil lançar magia. Ela se sentia total e completamente
sozinha.
A cidade inteira estava envolta em uma névoa sufocante. Nadya
podia sentir a magia de sangue que causou uma mancha tão
opressiva no ar. Era difícil respirar. Era por isso que ela estava aqui,
para rasgar esse véu e trazer os deuses de volta a esse país pagão.
Assim que eles entraram na cidade, Nadya foi dominada pelos
sons e pela multidão. Ela ficou perto de Parijahan, agarrando seu
braço de vez em quando, para impedir de se separarem.
Diferentemente das vilas que eles passaram onde as pessoas
pareciam gastas e famintas, na cidade todo mundo se vestia com
roupas coloridas e ricas. A maioria usava máscaras no rosto –
adornos fantasiosos que escondiam suas identidades. Eles não eram
nada além de inimigos sem rosto.
Quanto mais se aproximavam do palácio, mais agitado
Malachiasz ficava. Nadya podia sentir seu próprio nervosismo se
alimentando do dele. Ela pegou seu pulso quando estavam próximos
dos portões do palácio, o pressionando com força.
Ela levantou as sobrancelhas quando ele deu a ela um olhar
intrigado. A magia que tinham lançado um no outro era tudo que os
manteria a salvo; eles tinham que confiar nela. Nadya ancorou sua
segurança a ele, e ele teria que fazer o mesmo com ela. Estava claro
que ele não queria voltar a um lugar tão perto dos Abutres, mas ele
tinha que confiar que o feitiço dela não vacilaria. Finalmente ele
expirou, a tensão se esvaindo dele. Ela soltou seu pulso.
Os guardas nos portões do palácio avaliaram os documentos de
Nadya de forma tão meticulosa que ela tinha se convencido que
seria presa ali mesmo. Uma gota de suor escorreu por sua espinha.
Rashid não parecia preocupado, mas Nadya tinha aprendido que o
garoto tinha um talento especial para a calma, assim como
Parijahan. Ela se perguntou o que permitia aos Akolanos encarar
um desastre em potencial sem vacilar.
Depois de dez minutos agonizantes, os guardas acenaram para ela
passar pelos portões. Nadya queria se jogar em Parijahan em alívio,
mas ela somente pegou os papéis do guarda e passou por eles.
Nadya sentiu Malachiasz ficar tenso quando uma enorme
catedral negra surgiu ao lado. Seus pináculos podiam ser vistos na
distância mesmo depois do palácio dominador com suas torres de
vidro. Ela cutucou as costas da mão dele, forçando ele a desviar os
olhos. Ele deu a ela um sorriso tenso.
Um criado saiu das portas principais do palácio, descendo os
degraus com uma graça que Nadya invejou. De repente, ela foi
levada pelas portas, e qualquer chance que ela teve de desistir,
desapareceu.
— Sua pontualidade é impecável, apesar de não estarmos
esperando que alguém da sua região de Tranavia fosse participar. —
O criado não tinha parado de falar desde que entraram no palácio.
Nadya acompanhou o homem tagarela, apenas lançando
ocasionais olhares de pânico à Parijahan. Um criado mascarado
levou Rashid à ala dos servos, e Malachiasz desapareceu quando
Nadya não estava vendo – ele a avisou de que provavelmente seria
levado ao quartel da guarda, então ela ainda não estava preocupada.
— Łaszczów não mantém mesmo muito contato com o resto de
Tranavia. — Concordou Nadya. — Mas essa é uma oportunidade que
não pode ser desperdiçada.
O criado sorriu.
— Exatamente. — O homem usava uma máscara que parecia asas
de pássaros saindo de cada lado do seu rosto.
Nadya estava usando a máscara por apenas um dia e já estava
fantasiando com o momento que ela pudesse retirá-la. Era quente e
desconfortável, e ela não queria mais isso no seu rosto.
O exterior do palácio era impressionante, com colunas douradas
na entrada. Portas de carvalho envelhecido se abriam para o enorme
hall de entrada. O chão de mármore era um xadrez de violeta pálido
e preto. Pinturas de mulheres em vestidos esvoaçantes e soldados
em uniformes militares nítidos estendiam-se pelos tetos
abobadados.
Enquanto eles adentravam o palácio, o tom das pinturas
escureciam. Os corredores se fecharam quando as cores ficaram
mais e mais opressivas. Abutres – os pássaros e os magos – com
garras e símbolos de magia de sangue rabiscados por um artista cujo
frenesi podia ser sentido.
Totalmente opulento e aterrorizante, era como se um pesadelo
tivesse invadido os sonhos de um nobre.
— Se sentir deixado para trás é o que acontece quando alguém vai
beber sem você, Ostyia, não quando alguém visita uma louca... oh.
— A voz em tom divertido que ecoava pelo corredor, parou.
Um pico de adrenalina correu por Nadya. Esse era o momento
que definiria se eles teriam sucesso ou se tudo seria queimado e os
deixaria na prisão.
O Príncipe Herdeiro era uma figura totalmente diferente daquela
no mosteiro. Seu cabelo marrom estava mais curto agora,
cuidadosamente afastado da testa. Nessa luz, seus olhos pálidos
eram menos estranhos, apesar da cicatriz que cortava seu rosto
ainda ser intimidante. Mas nos salões dourados de seu palácio, ele
se parecia mais com um príncipe do que com um monstro.
Ele era seguido pela garota baixa e com um olho só. Ela estava a
caminho de puxar sua manga e persuadi-lo, quando ele parou
abruptamente.
— Quem é essa? — Ele perguntou para o servo. Seus lábios se
curvaram em um sorriso torto.
Seu coração estava batendo tão forte que parecia que seu corpo
inteiro estava tremendo, mas ela se forçou a passar pelo servo de
qualquer jeito.
— Józefina Zelenska, Vossa Alteza. — Ela disse, executando uma
reverência tão perfeita que nem Malachiasz poderia reclamar.
— Zelenska. — O príncipe disse, pensativo. — Eu conheço o
nome? — Ele perguntou para a garota baixa.
Ela balançou a cabeça devagar, parecendo intrigada.
— Não estou surpresa. Łaszczów fica um pouco fora do caminho
da realeza — disse Nadya.
Alguma coisa passou por sua expressão e ele deu um passo para
mais perto. Seus olhos se estreitaram para o rosto dela e ela sentiu
seu pulso acelerar.
— Remova a máscara. — Ele disse, e então como se tivesse
pensado melhor. — Por favor.
Ele vai ver através do feitiço de Malachiasz, ela pensou,
horrorizada, enquanto desatava o nó e puxava a máscara do rosto.
A cada batida de seu coração, ela se sentia mais próxima da
morte. Ele ergueu a mão e pegou seu queixo, levantando seu rosto
para o dele.
— Eu estive em Łaszczów. — Ele disse, suavemente. — Acho que
me lembraria desse rosto.
Ela resistiu a vontade de engolir.
— Passei a maior parte do ano viajando. — Ela disse. — Estive em
Akola nos últimos anos, talvez sua visita tenha coincidido?
Ele olhou para Parijahan. Ela deve ter sido confirmação o
suficiente de que Nadya estava dizendo a verdade, porque ele
abaixou a mão, sorrindo de um jeito quase como se estivesse se
desculpando.
— Talvez. Uma pena que nossos caminhos não tenham se
cruzado. Boa sorte a você, Józefina.
Ela rapidamente colocou a máscara de volta.
— Obrigada, Vossa Alteza.
Somente quando Nadya foi levada a seus aposentos que ela
sentiu que pôde respirar novamente.
Ela retirou a máscara do rosto e a jogou em uma cadeira.
Olhando para o quarto, ela viu o mesmo nível de esplendor e
intimidação que ela testemunhou enquanto andava pelos corredores
do palácio. Tinha uma espreguiçadeira luxuosa e um conjunto de
cadeiras na sala de estar, junto com uma mesa pequena e uma
maior de mogno ao lado. Haviam estantes com livros que pareciam
que nunca tinham sido tocados, exceto ao serem limpados. Pinturas
a óleo estavam penduradas nas paredes – retratos de slavhki
Tranavianos, provavelmente.
Nadya olhou para o teto, e a vista gelou seus ossos. Um mural
massivo de pássaros estava pintado pela superfície inteira –
Abutres, em sua maioria – cercados por flores que pingavam ácido.
Ela sentiu uma pontada de desdém, que ela sabia que tinha vindo
dos deuses. Distantes, mas ainda presentes.
Parijahan examinou a sala, rapidamente abrindo uma gaveta da
mesa, tirando um bloco de notas e caneta, e escrevendo uma rápida
mensagem.
Esse lugar provavelmente está cheio de feitiços, ela escreveu.
Nadya assentiu, erguendo a mão para pegar suas contas de
orações antes de lembrar que elas estavam em seu bolso. Ela passou
a maior parte da viagem esculpindo os símbolos dos deuses em
círculos finos de madeira, os quais ela anexou à capa do livro de
feitiços de Malachiasz. Funcionaria, de uma maneira indireta, e
pareceria que ela lançaria feitiços como um mago de sangue.
— Você pode limpar os feitiços dessa sala, por favor? — Ela
mandou a oração para Veceslav, mas foi Marzenya que respondeu.
— Você pode sentir?
Nadya pausou. Ela se recostou a uma cadeira e fechou os olhos,
se permitindo sentir a parede invisível que separava os deuses dos
homens. Ela sentiu o momento que eles entraram em Tranavia, o
peso do véu pressionando contra ela, sufocando seu único acesso ao
divino.
Ela era forte o bastante para lutar contra isso, mas isso era magia
criada pelo homem, criada para lutar contra a dos deuses. Era maior
do que qualquer coisa que Nadya esperava, e tornaria sua tarefa
ainda mais impossível.
— Eu sinto.
— Você veio aqui para matar um rei; me pergunto se você não
descobrirá algo ainda mais terrível.
Nadya sentiu calafrios.
— Você pode dar um aviso do que será isso?
— Eu mal posso ver através da neblina que esse país lançou,
criança. Você mergulhou nas trevas onde os monstros moram,
agora você deve lutar contra eles antes de te consumirem.
A língua sagrada foi sussurrada por sua cabeça, e ela se moveu
para desmontar os feitiços tecidos através das paredes. Ela não
podia destruí-los por completo – alguém notaria, ela precisava
tomar precauções – ela só estava tornando-os imprecisos,
sangrando-os. Ela os enfraqueceu, para que qualquer informação
que voltasse aos magos, se parecesse normal.
Nadya gostou de desmontá-los, lançar magia que não era
espalhafatosa, nem perigosa. Ela foi treinada para magia destrutiva
– para feitiços que mudariam a onda das batalhas – mas ela gostava
mais de fazer coisas menores.
Ela olhou para o teto.
— Eu não tinha percebido o quanto eles idolatram os Abutres. —
Eu não tinha percebido do que exatamente Malachiasz tinha
fugido.
Parijahan se sentou na espreguiçadeira, deixando sua calma se
espalhar pela sala e reduzir os nervos desgastados de Nadya. A
garota Akolana tinha um talento especial para chamar atenção e
então desaparecer sem aviso. Ela era tão reservada e cuidadosa, do
jeito que ela prende o cabelo para trás em uma trança apertada ao
jeito que ela mantém suas mangas sempre nos pulsos, as bainhas da
saia roçando o chão. Nadya se perguntou se ela sempre foi assim, ou
se foi um resultado de perder a irmã e virar as costas para seu lar.
Nadya colocou o livro de feitiços de Malachiasz na mesa e se
sentou ao lado de Parijahan.
— O que acontece agora?
Parijahan cutucou a faixa de couro que amarrava sua trança e
passou suas mãos por seu cabelo.
— Entramos na hora que os portões estavam se fechando.
Amanhã tudo começa.
— Não gosto que tenhamos nos separado dos garotos.
Parijahan cutucou o ombro dela.
— Acho que podemos cuidar de nós mesmas.
— Realmente. — Ela ficou quieta, anda olhando para a pintura no
teto. — Você se arrepende de ter deixado seu lar? O tempo que você
passou em Kalyazin não deve ter sido confortável.
— Não me arrependo, não. Ter Rashid me ajudou. Eu conheço ele
a vida toda. E conhecemos Malachiasz seis meses depois de arrumar
problema com alguns soldados Kalyazi de folga. Rashid acabou
inconsciente em uma vala; Malachiasz quase teve o cabelo
arrancado e passou o dia seguinte inteiro depois que chegamos a um
lugar seguro em pânico por termos escapado por um triz.
Nadya riu. Parijahan gentilmente a virou para que ela também
pudesse desfazer sua trança de onde estava espiralada em torno da
parte de trás da cabeça como uma coroa. Nadya estava quieta
enquanto Parijahan penteava seu cabelo com os dedos.
— Você realmente acha que podemos fazer isso?
As mãos de Parijahan pararam. Nadya sentiu seus dedos se
enrolarem sobre seus ombros.
— Nós temos que fazer isso.
O tom dela fez Nadya se endireitar. Ela tem outro motivo para
isso que eu ainda não sei, Nadya pensou. Alguma coisa além de
vingança.
— Então nós vamos.
Dezenove: Nadezhda Lapteva

Myesta, a deusa da lua, é engano e decepção e uma ilusão de luz em


constante mudança em uma escuridão eterna.
—O CÓDEX DO DIVINO, 15:29

Nadya apertou o livro de feitiços de Malachiasz contra o peito e se


arrependeu de cada decisão que levou ela a esse ponto.
— Relaxa. — Parijahan disse. — São só vestidos.
Nadya soltou um gemido tenso em resposta. Qualquer um desses
vestidos na frente dela custava mais do que o suficiente para
alimentar o mosteiro por cinco anos. Tecidos ricos em cores
vibrantes, pérolas e contas de pedras preciosas tecidas sobre os
corpetes e saias. Vagas impressões de flores eram proeminentes em
meio à elegância brilhante. As coroas faziam o pescoço de Nadya
doer só de olhá-las. Algumas eram altas, outras pareciam grinaldas
florais – apesar de serem feitas de tecido, renda e miçangas – outras
se pareciam vagamente com kokoshniks, que Nadya sabia que os
nobres usavam em Kalyazin.
— De onde vieram? — Nadya perguntou.
— Oficialmente? Você tem um patrono Akolano muito rico.
Nadya olhou para Parijahan que sorriu para ela.
— Não oficialmente também.
No final, elas decidiram em um vestido de cor igual à meia-noite,
perto do preto, mas com nuances de azul escuro na luz. Era como
deslizar sombras pela pele de Nadya, com apenas luz suficiente para
impedi-la de ser consumida. Ela escolheu uma coroa ornada que
derramava cordões de pérolas negras. Nadya amarrou uma máscara
elegante, que cobria apenas uma parte do seu rosto.
Parijahan se afastou com um aceno.
Nadya se adiantou para pegar um cinto delicado para seu livro de
feitiços, antes de mudar de ideia e pegar o de Malachiasz. Em vez de
parecer fora do lugar, o couro desgastado parecia combinar com o
vestido rico.
Ela se parecia com uma maga de sangue. Ela engoliu em seco, as
mãos procurando o colar de Kostya. Ela o enfiou no corpete do
vestido, fora de vista, mas ainda próximo, ainda reconfortante. O
último pedaço que ela tinha de casa.
— Tente ficar relativamente imperceptível. — Parijahan disse. —
Você não precisa chamar atenção para si ainda, ou só fará as outras
participantes tentarem se livrar de você mais rápido. Nós temos que
descobrir como o rei se mantém seguro.
— E quando tivermos conseguido?
— Eu já ouvi mais de um slavhka comentar da fraqueza do rei
com magia de sangue.
— Um alvo fácil. — Nadya disse suavemente.
— É com o príncipe que você tem que se preocupar. — Ela
continuou. — Ele se cerca com aqueles tenentes dele, ambos magos
de sangue, e pelo que eu descobri, o príncipe é o oposto do pai, em
quase todo os sentidos.
Nayda não podia se preocupar com príncipe ainda. É o rei que ela
veio derrubar.
— Porém — Parijahan disse pensativa — se você se aproximar do
príncipe, isso te garantirá um lugar perto do rei. Então, você terá sua
abertura.
— Então, não chamar atenção para mim mesma, mas também
conseguir a atenção do príncipe?
— Basicamente. Você pode fazer isso, Nadya. — Parijahan disse
suavemente.
Ela podia. Ela tinha que fazer. Kalyazin ganharia a guerra; os
deuses iam reclamar seu controle no mundo. Ela passou a vida toda
se preparando para isso.
Levou a Nadya exatamente 30 minutos para cometer um erro
grande o suficiente para deixá-la em uma situação terrivelmente
desconfortável. Ela foi arrastada para um salão com as outras
participantes e – na maioria dos casos – com suas damas de
companhia. Ela sabia o que isso era; um jogo de sutilezas, como
disse Malachiasz. O primeiro teste.
Aqui era onde alianças eram forjadas e linhas de rivalidade eram
desenhadas. Era também onde um número de participantes daria a
primeira olhada real no Príncipe Herdeiro. Se Nadya estragasse isso,
ela podia perder o jogo inteiro antes mesmo de começar.
A única coisa que Nadya inicialmente notou sobre a slavhka que
passou rapidamente por ela, era que seus grandes olhos violetas
eram estranhamente desconcertantes. Alguns segundos foram
necessários para o cérebro de Nadya traduzir o comentário que a
garota fez à sua acompanhante enquanto ainda estava ao alcance
dos ouvidos dela. Levou a ela outro segundo para perceber que foi
um insulto a aparência de Nadya. Seu nariz era torto e o cabelo
flácido.
Ela nem pode ver meu cabelo, Nadya pensou irritada e aturdida.
E ela se viu em um espelho, Malachiasz fez um trabalho
perfeitamente bom com o nariz dela.
— Porodiec ze błowisz? — Ela falou agradavelmente. — Pensei
que pessoas ricas podiam pagar para aprender como se associar
adequadamente com outras pessoas.
A garota congelou. Metade da conversa na sala cessou
imediatamente. A garota se virou lentamente para encarar Nadya.
Devia ter deixado o insulto passar.
Ela levantou as sobrancelhas enquanto a garota voltava e sorria.
Se ela fosse resistir a isso inteira, ela precisava agir como se isso
acontecesse com ela o tempo todo. Comentários sarcásticos eram
uma coisa normal para ela, portanto, ela retaliaria do mesmo jeito.
— O que disse?
— Acho que você ouviu o que eu disse. — Nadya respondeu.
— Como você ousa a falar comigo desse jeito? Você sabe quem eu
sou?
— Eu deveria?
A garota abriu seu livro de feitiços, arrancando uma página em
branco e amassou em seu punho. Ela a jogou no chão, amassando-a
debaixo do sapato.
— Você pode provar isso com magia? — Ela perguntou.
Nadya, literalmente, não tinha ideia do que estava acontecendo.
Ninguém tinha explicado a ela o que isso significava. Sua confusão
deve ter se mostrado em seu rosto porque uma garota alta, com pele
luminosa como ônix e fios de ouro, se moveu para ficar perto de
Nadya.
— Ela está te desafiando para um duelo, querida. — Ela disse
gentilmente.
Nadya olhou para a segunda garota, que sorriu
encorajadoramente. Ela lutou com a urgência de olhar para
Parijahan de onde ela estava recostada a uma parede.
Imitando a outra garota, Nadya folheou pelos feitiços de
Malachiasz até que ela achou uma página em branco. Ela amassou e
pisou em cima, como a garota mais nova fez. A garota deu a ela um
sorriso perverso antes de se afastar.
— Bem, isso é inesperado, e nós nem começamos!
Nadya – ainda atordoada – se virou para olhar a garota alta. Ela
não estava usando uma coroa e cachos espiralados se espalhavam
pela cabeça como uma auréola.
— Meu nome é Żaneta. — Ela disse. — E você acabou de ter o azar
de ser marcada como uma competidora incrivelmente ambiciosa.
— O que acabou de acontecer?
Żaneta riu.
— Espere, minha querida. Agora terá criados correndo para
preparar a arena para um duelo. Parabéns, se você sobreviver, isso
aumentará significativamente suas chances.
As portas se abriram e o Príncipe Herdeiro entrou. Żaneta sorriu
mais uma vez para Nadya antes de atravessar o salão para conhecer
o garoto que destruiu tudo de mais importante para Nadya.
Serefin Meleski

Ż
— Serefin! — Żaneta o cumprimentou pelo nome assim que ele
entrou, marcando seu lugar como a única garota entre as candidatas
da Rawalyk confortável o suficiente com o Príncipe Herdeiro a
ponto de ignorar as formalidades.
Ele já estava cansado e a cerimônia mal tinha começado. Ele não
estava pronto para falar com nenhuma das nobres ainda, então ele
foi para um canto vazio da sala. Kacper se afastou quando um criado
chamou sua atenção.
— Você nunca vai acreditar no que aconteceu. — Żaneta começou
quando Kacper voltou.
— A arena está sendo preparada para um duelo. — Kacper disse
antes que ela pudesse continuar soando intrigado.
Żaneta fez beicinho.
— Eu ia contar a ele.
— Me desculpa. — Serefin disse. — Pensei que você acabou de
dizer que um duelo está sendo organizado.
Kacper assentiu.
— A Rawalyk começou esta manhã. — Serefin disse
categoricamente.
Kacper assentiu com mais ênfase.
— Isso é trabalho seu?
Ela levantou as sobrancelhas.
— Eu não posso nem começar a contar o quão decepcionada
estou por não ter nada a ver com isso.
Serefin se jogou em uma espreguiçadeira.
— Bom, certamente teve um início dramático.
Ostyia empoleirou-se no braço de uma cadeira próxima,
recebendo um olhar venenoso de uma dama de companhia de meia
idade. Ela piscou para a dama, o que só fez o olhar da mulher ficar
mais intenso.
— Você nunca vai acreditar em quem está envolvido.
— Aponte-as para mim.
Kacper entregou à Serefin uma taça de vinho antes de se sentar
na espreguiçadeira ao lado dele. Nenhum deles deveria estar agindo
tão casualmente na companhia atual, mas Serefin não conseguia se
esforçar o suficiente para se importar. Kacper apontou para a garota
Krywicka.
— Não. — Serefin nem precisou fingir que estava escandalizado.
Żaneta riu.
— A outra é uma que chegou tarde. — Ela disse. — Bem ali.
Ele lembrou seu nome imediatamente. Józefina. Ela tinha
removido a máscara, girando-a preguiçosamente entre os dedos
enquanto ela observava a sala. Havia uma agudez em seu olhar que
Serefin achou fascinante. Sua outra mão descansava no livro de
feitiços no quadril. Ela olhou bem a tempo de ver Serefin a
observando.
Seus olhos se arregalaram, mas ela não desviou o olhar como ele
esperava.
Ele sorriu e se levantou, ignorando Żaneta que sibilou em
protesto. Ele deveria estar observando e não interagindo, mas ele já
estava entediado e queria saber sobre esse duelo da fonte.
— Lady Zelenska. — Ele disse quando parou em frente a ela.
Ela se levantou devagar, cuidadosa em seus movimentos. Ela
inclinou a cabeça enquanto se curvava.
— Vossa Alteza.
— Você não deveria estar se preparando para o duelo? — Ele
perguntou. — Lady Krywicka não está aqui.
Os dedos de Józefina se apertaram sobre o livro de feitiços. Era
uma coisa pesado, sinal de uma maga habilidosa. Mas suas juntas
estavam brancas, tensão se revelava em seu aperto de ferro.
— Estou preparada. — Ela respondeu.
Ela soava como se estivesse tentando convencer a si mesma, mais
do que tentava convencer ele.
— Me diga. — Ele disse. — O que você fez para despertar tanto
barulho? — Ele se recostou na parede, forçando-a a se mover
também. Agora suas costas estavam viradas para a sala, os olhos
observando-os menos visíveis.
— Você assume que eu sou a culpada? — Seu tom era muito
irreverente. Ela não era nem um pouco acostumada à corte. Toda
interação era uma faceta da Rawalyk e era completamente
inexperiente.
Ele sorriu e ficou surpreso quando ela sorriu de volta.
Ela acenou com a mão.
— Nada que te interessaria, Vossa Alteza, comentários
mesquinhos levados à sério demais.
Serefin se inclinou para mais perto.
— Eu não acho que você entende o quão mesquinho posso ser.
Ela se afastou. Seu favorecimento poderia torná-la um alvo. Ela
pareceu perceber isso.
— Você explicaria algo para mim? — Ela perguntou.
Serefin levantou uma sobrancelha.
— O que deseja saber?
— Isso provavelmente é ridículo, mas você deve entender, meu
pai morreu no front e minha mãe é uma inválida. Eu nunca tive
alguém para me explicar apropriadamente como tudo isso funciona.
E ela é corajosa o suficiente para contar sua ignorância ao
Príncipe Herdeiro? Serefin pensou. Ele não conseguia decidir se ela
era incrivelmente inteligente ou terrivelmente estúpida. O fato era
que a Rawalyk favorecia os nobres que viviam perto de Grazyk, era
lógico que aqueles que viviam nos confins de Tranavia se
esforçariam mais. O jogo inteiro estava nas sutilezas.
O que essa garota provavelmente não percebeu, era que esse
duelo é até a morte, e se ela sobrevivesse, daria a ela uma vantagem
aos olhos do seu pai. E uma vantagem era tudo que uma pessoa
precisava para ser escolhida.
Essa será a que ganhará o trono depois que acabarem comigo?
Ele pensou distraidamente.
— É um jogo. — Ele disse. — Um jogo baseado em como você fala,
com quem você fala e como você age.
Ela ficou pálida.
— Pense assim. — Ele disse. Ele passou seu polegar sobre a borda
da taça de vinho, o som cristalino soando muito alto entre as
conversas baixas na sala. — Minha consorte... — Ele se encolheu. Ele
tinha tentado tanto se distanciar de toda essa bagunça. — precisará
ser alguém que possa se provar capaz de aguentar tudo que Tranavia
jogará em seu caminho. Às vezes, serão descortesias secretas em um
salão de baile. Mas na maior parte, como o mundo está, será alguém
que pode me ajudar a vencer essa guerra.
Uma carranca passou por seu rosto e ele percebeu que ela não
parecia mais nervosa.
— Você não parece particularmente investido nisso, Vossa Alteza,
se você perdoar minha franqueza.
Ele não conseguia entender como ela viu isso. Ele estava fazendo
o possível para esconder o quão tentador isso tudo era, o quanto ele
queria se enrolar e dormir até tudo isso acabar.
Ele deu a ela um sorriso torto.
— Estou menos que satisfeito com as circunstâncias que o
cercam, mas certamente nenhuma é culpa das participantes.
— Deve ser difícil, entretanto, não ter escolha. — Ela disse, a voz
suave. Sua mão foi para o pescoço, então se afastou. — Você não
escolhe, não é? A escolha será do rei?
Inexperiente talvez, mas inteligente. Ela definitivamente é
inteligente.
— Estou acostumado a isso.
— Sim. — Ela disse. — Eu também. — Seu polegar correu pela
lombada do livro.
Ele queria perguntar o que ela quis dizer. Ele estava fascinado por
essa slavhka de um lugar distante, com suas palavras
estranhamente suaves, mas uma imponente garota Akolana se
aproximou ficando ao lado dela, sussurrando em seu ouvido.
Józefina levantou a cabeça, seu sorriso como a ponta de uma
faca.
— Aparentemente tenho um duelo para ir.
— Boa sorte, então. — Ele disse. — Estarei assistindo.
Ż
Ela saiu e Serefin voltou aos seus amigos. Żaneta se endireitou
quando ele se sentou ao lado dela.
— Então?
— Você tem competição, querida.
Żaneta enrugou o nariz.
— Sério? Ela parece tão... afável.
— Você sabe melhor do que ficar contra ela só porque ela é de
Łaszczów. — Serefin repreendeu.
Ela virou os olhos.
— Bem, se ela morrer em uma hora, então não vai importar, não é
mesmo?
Nadezhda Lapteva
Malachiasz encontrou Parijahan e Nadya no pátio do lado de fora da
arena. Ele parecia cansado. Ela se identificava.
— Isso certamente não fazia parte do plano. — Ele notou,
sarcástico.
— Não quero ouvir. — Nadya murmurou. Ela já ouviu o suficiente
de Parijahan. Deslizar sob o disfarce da perfeita mediocridade, de
fato.
Ela deixou o barulho da multidão na arena filtrar enquanto ela
ajeitava os cintos no quadril amarrando o livro de feitiços de
Malachiasz. Era tão estranho. Todo esse tempo e energia gastos em
uma coisa tão trivial quando uma guerra estava acontecendo e
pessoas passavam fome e morriam. Era só um jogo para eles.
Ela estava usando a máscara de couro branco de novo, e apesar de
sufocar, ela tirou conforto do anonimato. Ela não era nada além de
um nome; uma nobre baixa de uma cidade esquecida de Tranavia.
Ela ouviu seu nome falso sendo lido para a multidão: Józefina
Zelenska de Łaszczów, uma maga de sangue sem nenhuma patente
militar. Sem importância. Insignificante para todos os padrões. Meu
nome é Nadezhda Lapteva, ela pensou. Sou do mosteiro das
Montanhas Baikkle; eu sou uma clériga do divino. E estou aqui
para matar o rei e acabar com essa guerra.
Ela traria esse país aos joelhos.
Nadya deixou seus dedos roçarem na navalha costurada na
manga da sua blusa. Ela estava usando calças pretas apertadas,
botas altas que alcançavam seus joelhos, uma blusa branca folgada
com mangas apertadas em seus antebraços.
Os deuses estavam distantes e Nadya teria uma dificuldade a
mais ao ser forçada a fingir lançar magia como uma maga de
sangue. A semente de medo que ela estava ignorando até esse
ponto, finalmente cresceu para algo que ameaçava derrubá-la. Ela
mal podia sentir os deuses. Como ela esperava fazer isso – ser
qualquer coisa – com os deuses tão longes do alcance? O que ela era
sem eles? Só uma camponesa que cresceu em um mosteiro. Uma
garota que morreria por acreditar que ela era algo mais que isso.
Vinte: Nadezhda Lapteva

A deusa da caça, Devonya, é conhecida por sua gentileza com os


mortais, por seu interesse em suas maneiras estranhas. Ela ama
conceder-lhes talentos incomuns em seu nome.
—O CÓDEX DO DIVINO, 17:24

Minha magia não parece certa. Esse foi o primeiro pensamento que
passou pela mente de Nadya, enquanto a garota do outro lado da
arena cortava seu braço e disparou raios de poder pelo ar como
flechas de besta. Em comparação, a magia dela parecia fraca como
se ela estivesse tentando alcançar através de lama e conseguindo
levar apenas alguns fios. Suas orações eram respondidas apenas por
magia, sem palavras, sem o toque dos deuses. Apenas feitiços
brutos, poder frio, e nada mais.
Ela passou o dorso da mão na navalha em sua manga,
estremecendo com o corte, esquecendo que ela não deveria reagir.
Magos de sangue não reagiam.
A garota – Felicíja – jogou uma garrafa de vidro no chão da arena
e veneno se espalhou como um arco na sua frente.
Pegou nas roupas de Nadya e o tecido chiou enquanto queimava.
Ela lutou contra a vontade de espanar as gotas.
Ela deixou gelo se formar nas pontas dos dedos, agarrando o
poder de Marzenya, porque ela poderia transformá-lo para se
parecer mais com magia de sangue. A deusa estava distante, seu
toque longe. As orações de Nadya pareciam apenas apelos para o ar
vazio.
Então, poder. Garras de gelo em seus dedos dispararam de suas
mãos. Ela não teve tempo de ver para onde elas foram enquanto
arrancava páginas do livro de feitiço e as amassava em um punho
ensanguentado.
Ela jogou as páginas no chão e desenhou um círculo de chamas
na terra. As chamas se acenderam debaixo de suas botas e cercaram
Felicíja. A garota cambaleou para trás quando as chamas pegou suas
saias. Ela rosnou, seus dedos arrancando as páginas do livro de
feitiços.
Nadya foi atingida por um raio de magia que a mandou
cambaleando para a borda da arena.
Isso não está funcionando. Usar o livro de feitiços e puxar os fios
de poder ao mesmo tempo a deixava mais lenta. Ela tinha que
acabar com isso logo ou tudo iria desmoronar.
Ela passou suas garras ensanguentadas de gelo sobre uma página
do livro de feitiços, percebendo segundos depois que não estava em
branco. Pânico bateu em seu peito.
O fluxo de poder que ela estava canalizando mudou e virou algo
sombrio.
Esse poder não era dela para usar. Não era dela de maneira
alguma.
Ela não tinha outra palavra para isso além de errado. Era a única
palavra que passava em sua cabeça. Errado, errado, errado, errado,
errado.
Fervilhante, sombrio e poderoso – tão poderoso – de uma
maneira diferente do poder da sua magia, porque enquanto a magia
dela era clareza, essa era loucura.
Tinha alguma coisa a mais também. Um cutucão que fez Nadya
perceber que era um feitiço que Felicíja estava tentando jogar nela,
mas parecia tão fraco em comparação, que ela quase não percebeu.
Felicíja tentou novamente, e de novo, arrancando página depois de
página, mas seus feitiços eram apenas vislumbres, quase pinceladas
de magia contra Nadya e esse poder dentro dela, que ameaçava
rasgá-la em pedaços.
Sangue pingou de seu nariz. Ela tinha que se livrar dessa magia.
Sua boca estava com gosto de cobre. Ela cuspiu, pressionando uma
mão contra seu peito porque seu batimento cardíaco estava
irregular.
Ela exalou e soltou a magia. Disparou das pontas de seus dedos
como relâmpagos. Um acertou Felicíja, o trovão reverberando pela
arena. A garota caiu.
Por um segundo tenso, Nadya tinha certeza que a tinha matado.
Instantaneamente. Mas a garota se levantou, uma szitelka na mão e
fúria torcendo seu rosto. Sangue pingava de um ferimento na sua
lateral e seu rosto estava manchado.
Deuses, por favor, fique no chão. Nadya fez uma careta. Ecos de
sombras sacudiram em sua cabeça. Ela sacou suas lâminas.
Ela bloqueou o ataque de Felicíja, prendendo sua lâmina no
punho da szitelka da outra garota, e usando-a para puxá-la para
mais perto. Ela atacou com sua segunda lâmina, mas Felicíja
desviou.
Se recuperando, Nadya torceu o punho de sua lâmina e a puxou
para baixo. A szitelka voou da mão de Felicíja e ela cambaleou para
frente. Nadya acertou o queixo dela com o pé, jogando sua cabeça
para trás e a derrubando.
Enquanto a garota se movia para se levantar, Nadya bateu a
szitelka na mão, prendendo-a no chão.
Tudo estava muito quieto. Muito consciente da audiência, Nadya
hesitou, a outra szitelka frouxa na mão.
Eu não quero matá-la.
A única razão que essa luta ficou a favor de Nadya foi por causa
da magia que não era dela. Poderia ser facilmente Nadya no chão e
não Felicíja, contemplando o golpe mortal.
Felicíja se levantou em um braço, olhando para Nadya. Ela não
merecia morrer aqui, com uma audiência, como um animal. E
Nadya não seria a razão da morte dela. Ela não iria perpetuar essa
sede de sangue Tranaviana.
Porém, seria tão fácil e iria alavancar a missão de Nadya. Tudo
que precisaria era outra garra de gelo no coração da garota, ou um
relâmpago mais forte. Mas as trevas permaneceram e Nadya temeu
o que aconteceria se ela puxasse mais.
— Eu não vou te matar. — Nadya disse.
Ela estava esperando alívio, mas recebeu um cuspe na máscara.
— Patético. — A garota disse, dor arrastando suas palavras.
Nadya se endireitou. A guarda de Felicíja e uma figura em uma
máscara arrepiante que só podia ser um Abutre, começaram a se
mover em direção a elas. Deveria ter ficado claro que ela estava
recuando.
Uma mão roçou seu braço. O eco sombrio reagiu ao toque –
Malachiasz – e os joelhos de Nadya ficaram fracos. Ela foi
empurrada para frente; forçada a ficar de joelhos na frente da
garota.
A garota que tinha sangue escorrendo da boca, que olhou para
Nadya com olhos que já se escureciam. Uma ponta de ferro estava
atravessada em seu peito. Enquanto Nadya observava, a ponta se
transformou na forma de uma szitelka, então a garota caiu para a
frente, morta.
Seu estômago se retorceu enquanto sua visão se borrava. Não.
Misericórdia, ela ia ser misericordiosa com a garota.
Ela precisou de todas as suas forças para não se virar para
Malachiasz. A guarda da garota e o Abutre os alcançaram. Nenhum
deles disse nada. A agitação de atividade ocultaria o que tinha
acontecido. O que Malachiasz tinha feito no lugar de Nadya.
Ela finalmente olhou para ele. Ele levantou uma sobrancelha
para ela. Havia sangue na ponta de seus dedos.
Sangue escorreu pelo nariz de Nadya.
Um dia nessa cidade maldita e ela já estava cansada de ver
sangue.
Calor passou por suas veias. Qual era o ponto de matar a garota?
Ela abaixou os olhos antes de alguém perceber, mas não antes de
balançar a cabeça para ele.
Idiota.
— O que você esperava de uma abominação Tranaviana? — A
voz de Marzenya era fraca, como se viesse através de um nevoeiro.
Soava incrivelmente astuta, mas havia outro tom em sua voz que
Nadya nunca tinha ouvido antes: raiva. — Você que deveria ter
matado essa vadia. Você sozinha.
Um aviso. Tentar poupar a vida de outro Tranaviano e Nadya
usando o poder de Malachiasz – mesmo que sem intenção – tinha
provocado a ira de Marzenya. Antes que os criados viessem recolher
o corpo, Nadya saiu da arena.
Serefin Meleski
— O que foi isso? — Ostyia perguntou com o olho arregalado.
Serefin balançou a cabeça. Tinha sido implacável, exatamente o
que a corte Tranaviana esperava. Mas, mais interessante, uma
elegância em seus movimentos, inovação em sua magia...
Ostyia empoleirou-se no braço da cadeira dele.
— Ninguém usa magia elemental daquele jeito.
Como essa garota não foi convocada para o exército? Por que ela
não tinha se alistado? Ela era talentosa, rápida, implacável, com um
arsenal de feitiços que Serefin nunca tinha visto antes. Ele sabia que
feitiços elementares eram possíveis com magia de sangue, mas
ninguém usava porque era muito difícil. Era manipular magia de
um jeito que mudava o poder em seu elemento mais básico. Magia
do sangue extraía-se da capacidade inata de uma pessoa e se
manifestava do jeito que era necessário, mas mudar os elementos –
outra base, outro item fundamental de criação – era incrivelmente
difícil.
Onde essa garota estava se escondendo?
— Żaneta não vai ficar feliz. — Ostyia comentou.
— Ela vai gostar de ter uma concorrência real.
Houve uma agitação de atividade na arena e Serefin se inclinou
no parapeito. Dois Abutres mascarados estavam retirando o corpo
de Felicíja.
Horror o percorreu e ele trocou um olhar com Ostyia. O que eles
estavam fazendo?
Ele sentiu vagamente o toque de Ostyia em seu braço. Ele não
deveria estar encarando; não deveria ser uma visão que ele achava
desconfortável. Mas era outra peça do quebra-cabeças, outro passo
mais perto. Ele esperava que não fosse tarde demais.
Vinte e Um: Nadezhda Lapteva

Silêncio e medo; aqueles que adoram o deus Zlatek sabem que,


acima de tudo, essas duas coisas são fundamentais.
—O CÓDEX DO DIVINO, 55:19

Uma curandeira correu atrás de Nadya, exasperada com seus


ferimentos, – o corpo dela inteiro parecia estar em chamas e seu
nariz não tinha parado de sangrar – mas ela a dispensou. Ela podia
cuidar de si mesma e ela tinha que sair dessa arena.
Ela não podia suportar mais o cheiro de morte.
Malachiasz seguiu atrás dela em silêncio. Se ele falasse, ela ia
matá-lo, e ele parecia perceber isso.
Eles chegaram no corredor que levava aos aposentos dela. Estava
vazio, desprovido de criados e de outras participantes que estavam
hospedadas nessa ala do palácio. Ela não podia esperar mais.
Ela se moveu sem aviso, o jogando contra a parede, seu antebraço
na sua garganta, szitelka embainhada e pressionada na sua lateral.
Ele ergueu as duas mãos em um sinal de rendição, levantando
uma mão para desamarrar a máscara do seu rosto. Era feito de ferro
e cobria sua boca, parando exatamente onde suas tatuagens
começavam na ponte do nariz.
— Não tinha necessidade da sua interferência. — Ela disse, sua
voz era um rosnado.
Ele engoliu em seco, seu olhar pálido ficou frio.
— Você mesma ia matá-la?
Ela pressionou sua traqueia com mais força.
— Eu posso cuidar de mim mesma. — Ela respondeu com os
dentes cerrados. — Entendeu?
— Perfeitamente. — Ele ofegou.
Ela soltou a pressão na garganta dele mas não se afastou nem
guardou sua szitelka.
— Se alguém te viu...
Ele a interrompeu, com a voz baixa.
— Vamos para algum lugar mais privado para essa conversa?
Sua expressão era cuidadosamente neutra. Ela o tinha enfurecido
com sua explosão? Bom. Ele merecia. Ele não podia colocar todo o
sucesso do plano nela e então não confiar nela para fazer o que era
necessário.
Nadya chutou a porta de seus aposentos depois que eles
entraram. Ela, relutantemente, embainhou sua szitelka.
— Você matou ela.
Ele estava insuportavelmente calmo.
— Você hesitou. Aquele era um duelo até a morte, não tinha
espaço para outra coisa.
— Você está certo, que boba eu sou, esqueci que todos os
Tranavianos são sedentos por sangue, sem nenhuma capacidade de
entender o que é misericórdia, obrigada por me lembrar.
Malachiasz piscou. Mágoa passou por seu rosto e ele se virou.
Nadya pensou que suas palavras a fariam se sentir bem, mas só a fez
se sentir mais frustrada. Como ele ousava bancar a vítima?
Ela agarrou seu braço, o girando para ele encará-la.
— Eu não preciso que você tome conta disso. Se alguém te viu...
— No entanto, ninguém viu. No entanto, estamos aqui. No
entanto, você estará sentada ao lado do Príncipe Herdeiro no jantar
essa noite.
— Você não pode se livrar disso. O sangue dela está em suas
mãos, e não nas minhas. — Ela se inclinou para mais perto dele.
— Posso viver com isso. Você está tentando transformar isso em
outra coisa.
— Foi assassinato.
— Ela era uma slavhka, criada desde o nascimento para
massacrar Kalyazi, e se fosse necessário, outros Tranavianos.
— Isso não a torna um monstro.
— Todos nós somos monstros, Nadya. — Malachiasz disse, sua
voz assumindo tons emaranhados de caos. — Alguns de nós só
escondem melhor que outros.
Agora ela estava consciente do quão próximos eles estavam, sua
mão ainda apertada no braço dele. O olhar dele se desviou para os
lábios dela. Ela conseguiu se impedir de corar, e soltou seu braço e
se afastou – ela não queria dar a ele a satisfação de saber que ele
podia inebriá-la, mesmo quando ela estava zangada.
Ela fechou os olhos. Ouviu ele se afastar. Quando ela abriu os
olhos novamente ele estava se sentando na espreguiçadeira, o
cotovelo descansando no braço da cadeira, queixo na mão.
— O rei vai estar lá, um ou dois assentos longe de você. — Ele
disse.
Ela teve que respirar fundo para conter o medo imediato e
esmagador que tomou conta dela.
— Você está dizendo que é a minha chance?
Ele balançou a cabeça devagar.
— Não, mas isso significa que estamos ficando perto. A hora
chegará mais rápido do que esperávamos. Você precisa estar pronta.
Nadya rangeu os dentes.
A porta abriu. Nadya rodopiou, mas relaxou quando viu que era
Rashid. Ele sorriu.
— Bem, isso foi divertido. — o sorriso se desfez quando ele
percebeu a energia na sala. — Talvez não foi divertido?
Nadya suspirou, finalmente se sentando em uma cadeira.
Malachiasz a observou cuidadosamente, como alguém observa um
cachorro que acabou de te morder. Ele tinha assumido que ela era
inofensiva? Que ela simplesmente aceitaria qualquer decisão que
ele tomasse? Eles ainda eram – em sua essência – inimigos nessa
guerra. Ela não tinha se esquecido, nem mesmo quando ela ficava
preocupada com sua segurança ou quando o queria ao lado dela.
Ele silenciosamente entregou um lenço a ela. Tinha sangue no
seu rosto e ela se sentiu enfraquecer. Ele era um pesadelo, – os ecos
que ela ainda sentia do seu poder eram perturbadores – mas era
gentil. Ansioso e estranho, um garoto preso em um mundo que o
quebrou, enquanto tentava fazer algo bom pela primeira vez. Ela se
perguntou se sua raiva, que ela sentia tão facilmente, era apenas ela
lutando contra a atração que sentia. Sua fascinação era apenas
porque ela viveu sua vida inteira protegida e nunca conheceu
ninguém tão drasticamente diferente dela mesma? Ou era mais?
Era porque ele era perigoso e excitante, enquanto era
completamente irritante, mas ainda assim, sério.
Ela começou a lavar o sangue, hesitantemente chamando os
deuses. Ela estaria em sérios problemas por tudo isso, mas tudo que
ela encontrou foi uma neblina estranha. Ela estaria mais
preocupada, se Marzenya não tivesse falado com ela na arena. Eles
estavam lá observando, mas distantes.
— E agora? — Ela perguntou suavemente.
— Jantar — disse Rashid. Ele estava vestido com roupas de servos
que não ficavam boas nele. Ela sentia falta das extravagantes
correntes de ouro que ele costumava usar nos cachos escuros.
— Já falhei no primeiro teste de etiqueta. — Nadya disse. — É um
bom presságio para o próximo.
Malachiasz esticou a mão na direção dela, antes de pensar melhor
e colocar a mão no braço da cadeira dela. Os olhos dela se atraíram
para as tatuagens em seus dedos elegantes e finos. Eram linhas
simples e retas: duas de cada lado de cada dedo e uma nas costas,
começava no fim de cada unha e terminavam em seu pulso em uma
única linha escura.
— Tudo é um jogo. — Ele disse. — É tudo uma peça para o poder.
Nós não queríamos, mas você chamou a atenção da elite, então você
deve mantê-la.
Ela engoliu em seco.
— Eu posso cuidar de mim mesma.
— Eu sei, Nadya.
Ela continuou passando furiosamente o lenço no rosto enquanto
Malachiasz perguntava a Rashid se ele tinha encontrado algo útil.
— Fofoca dos criados mantém um palácio funcionando. — Ele
disse alegremente. — O rei foi pouco visto nos últimos meses, a
rainha está em Grazyk, o que, aparentemente, nunca acontece
devido à sua saúde. A tensão entre o rei e o príncipe parece ter
alcançado níveis astronômicos, mas nenhum dos servos tem certeza
do porquê. É claro que o príncipe nem queria que essa Rawalyk
acontecesse. O príncipe também foi visto na torre da bruxa...
Malachiasz se animou.
— Pelageya?
Nadya congelou. Uma bruxa em Tranavia?
— O quê? — Ela perguntou ao mesmo tempo que ele.
— Não. — Rashid disse. — Se acalme, vocês dois, e não inventem
nada. Se vocês inventarem de fazer alguma coisa, vamos acabar
todos mortos e não realizaremos nada.
Nadya e Malachiasz trocaram um olhar, a briga esquecida por um
momento.
— Magos — disse Rashid, parecendo angustiado. — Parj e eu
deveríamos ter feito isso sem vocês.
Malachiasz estava com o mesmo sorriso fraco e levemente feroz
do dia que ela o conheceu.
— Independentemente — Rashid continuou, — a bruxa é
conhecida por ser a conselheira pessoal da rainha.
— Mas ela é Kalyazi? — Nadya perguntou.
— A maioria considera um golpe óbvio ao rei e ao país. —
Malachiasz disse. — A família real não se dá muito bem.
— Claramente.
— O príncipe teve uma entrevista com a Abutre Carmesim. —
Rashid disse. — O rei esteve visitando as Minas de Sal, e o príncipe
mandou alguém às Minas de Sal que voltou recentemente.
Malachiasz enrijeceu. Alguma coisa se fechou ao redor dele, e ele
esfregou as cicatrizes em seus antebraços distraidamente.
— Isso não é bom. — Ele murmurou.
— Espera, quem é a Abutre Carmesim? — Nadya perguntou.
Essas patentes não faziam sentido algum.
— Żywia é a segunda no comando.
Nadya não gostava do fato dele saber e ter usado seus nomes
quando ninguém o fez. Ela não precisava de um lembrete constante
do que ele era.
— Por que o príncipe não se encontrou com o rei? — Nadya
perguntou.
— Talvez o rei visitar as Minas de Sal signifique que ele esteja
trabalhando com o Abutre Sombrio e o príncipe esteja tentando
enfraquecer isso? — Rashid disse.
— Sempre pensei que uma cisma entre os Abutres seria
impossível. — Malachiasz disse. — Mas acho que entramos em uma
coisa maior do que apenas um concurso bobo para uma rainha.
Definitivamente maior, se as Minas de Sal estão envolvidas.
— Se conseguirmos isso, o que acontecerão com os Abutres?
— Teoricamente, nada. Eles se afastariam se Tranavia caísse no
caos. Ainda assim...
— Ainda assim — Rashid disse, — o rei parece ter abandonado
seus guardas em favor dos Abutres.
— Eles não são guardas.
— O que eles são então, Malachiasz? — Nadya perguntou. Ele
estava ficando cada vez mais agitado. Nadya não iria ignorar os
tremores de dúvida que ela tinha quando ele parecia vacilar.
Ele acenou com uma mão.
— Seria como se seu czar Kalyazi tivesse clérigos agindo como
guardas. Não é o propósito deles, eles não deveriam estar tão
profundamente conectados ao trono secular.
Nadya suspirou.
— Exceto que a nossa religião está interligada ao nosso governo.
Não é uma coisa que deve ser ignorada. — Ela não gostava de
comparar monstros com a sua religião, mas era um exemplo
bastante adequado. — Mas, voltando ao ponto, nós temos que passar
pelos Abutres para chegar ao rei?
Rashid olhou para Malachiasz, mas assentiu. Malachiasz se
inclinou para trás na espreguiçadeira, puxando seu lábio inferior.
— Isso complica as coisas. — Nadya disse. — Nós não podemos
simplesmente esperar pelo momento oportuno. Eu preciso saber o
que estou fazendo se isso vai funcionar.
Malachiasz assentiu.
— Você vai para o jantar. Observar o rei. Encantar o príncipe. Ele
vai ser seu caminho até o rei. Vai me dizer exatamente quais são as
máscaras dos Abutres próximos ao rei.
Ele iria lidar com os Abutres. Bom. Ótimo, até, porque Nadya não
sabia o que fazer quando eles estavam envolvidos. Eles eram uma
variável que ela temia e não entendia.
Rashid se levantou.
— Vou encontrar Parijahan, você não tem muito tempo antes do
jantar.
Isso deixou apenas Nadya e Malachiasz.
— Você deveria ir também. — Ela disse suavemente.
Ela podia sentir seu olhar queimando em seu rosto, mas ela se
recusava a olhar para ele. Ela viu ele se levantar e se mover para a
porta pelo canto do olho, mas ele mudou de ideia. Em vez disso, ele
se agachou na frente da cadeira de Nadya e olhou para ela.
— Agi sem confiar em seu julgamento e por isso, eu me desculpo.
— Ele disse.
Não é um pedido de desculpas por ter matado aquela garota, ela
notou. Mas era um começo. Era algo desse garoto que, obviamente,
não tinha nenhuma moral e nenhuma consideração por coisas que
não eram de seu interesse. Ela só queria entender quais eram esses
interesses.
— Nadya… — ele começou e parou. Ele soltou um suspiro
frustrado.
Inexplicavelmente, ela relaxou. Ela ergueu as mãos e enfiou os
dedos em seu cabelo escuro e macio, deixando sua mão descansar
na lateral da sua cabeça.
Porque – depois de ter ficado tão furiosa com ele – ela se viu
desesperadamente querendo beijá-lo? O calor da raiva que ele
provocou ainda era fresco em suas veias, mas ela não podia deixar
de encarar o arco de seus lábios.
Ela estava sentindo muita coisa em pouco tempo. Ela queria que
tudo parasse. Ela queria que, o que quer que fosse isso que ela
sentia por ele, parasse.
Se ele estava assustado pelas ações dela, ele não demonstrou. Ele
deixou outro momento passar entre eles – repleto com uma tensão
ainda muito nova para ela – antes de falar.
— Você tem que confiar em mim, Nadya. — Ele disse, com a voz
baixa. — Eu sei que sou tudo que te ensinaram a odiar, e mais. Eu
fiz coisas terríveis em minha vida. Se você tiver nojo de mim, eu
entendo. Mas...
— Temos que trabalhar juntos. — Nadya sussurrou. — Nós
quatro, ou senão a bagunça que esse plano é, vai dar errado e
seremos enforcados por isso.
Ele inclinou sua cabeça na mão dela e ela se sentiu quente. Ter
outra pessoa reagindo ao seu toque era uma sensação peculiar, uma
conexão que ela nunca realmente teve com ninguém. O mosteiro
não encorajava relações; a devoção aos deuses era mais importante.
Isso era um desastre. Qualquer pessoa, qualquer pessoa que não
fosse ele. Qualquer pessoa que não fosse o inimigo que trouxe
tormenta ao seu povo, que não tinha fé, não tinha deuses, e era
monstruoso. Se ela arrancasse seu próprio coração, isso pararia? Se
era isso que estava traindo-a, então ela se livraria disso. Qualquer
coisa para impedir que ela fosse atraída a esse garoto.
— Pode ser pior que a forca. — Ele pensou em voz alta.
Ela não pôde deixar de dar uma risada tensa.
— Você saberia.
— E você e eu devemos chegar a um acordo. — Ele continuou. —
Podemos ser inimigos quando tudo isso acabar.
Era claro agora que eles nunca foram inimigos, e um acordo
provavelmente não era algo que eles queriam.
Talvez ela deve ter batido a cabeça durante o duelo, mas ela se viu
deslizando sua outra mão por seu pescoço para segurar sua
bochecha. Ele ficou muito parado, como se ele realmente pensasse
que ela era um passarinho e que movimentos súbitos a afastariam.
— E se eu não quiser ser sua inimiga quando tudo isso acabar? —
Ela disse suavemente, a sua voz denunciando seus tremores. Seu
coração batia na garganta.
Ele não hesitou.
— Então podemos chegar a um acordo diferente.
— Acho que seria melhor.
Para se estabilizar, ele colocou suas mãos em cada lado dela, uma
se encostou em sua coxa. Ela ficou tensa e ele começou a se afastar,
então, antes que o momento passasse, ela o puxou para mais perto,
e o beijou.
Algo se relaxou dentro de seu peito, algo que ela manteve preso a
vida toda. Esse ato – a pressão dos lábios dele no dela e o calor que
inundou suas veias – isso era heresia.
E ela queria mais. Ela torceu seus dedos no cabelo dele e sentiu
sua mão deslizar para a cintura dela. Seus lábios eram macios e ele
retribuiu o beijo timidamente.
Suspirando, ele se separou. Um rubor pintou sua pele pálida e a
mão na cintura dela a apertou com um pouco mais de força. Ele
pressionou sua testa na dela.
— O acordo que eu tinha em mente era um que a mantinha mais
segura do que esse, towy dżimyka. — Ele disse com a voz pesarosa.
— Oh, que chato. Eu cresci em um mosteiro, estive à salvo a
minha vida inteira. — Nadya replicou.
Um meio sorriso triste cresceu em seus lábios, e Nadya precisou
de toda a sua força de vontade para não o beijar de novo. Ele estava
lutando contra a mesma vontade. Ele ergueu a mão e colocou uma
mecha de cabelo atrás da orelha dela, seu toque queimando sua
bochecha. Seu olhar examinou o rosto dela, procurando por alguma
coisa, mas ela não tinha certeza do quê.
Qualquer um menos ele, ela pensou novamente desesperada, mas
ainda se afogando com o toque de seus lábios.
Ela pensou nos ecos de poder que ela tinha desenhado durante o
duelo. Sua expressão deve ter mudado porque Malachiasz estreitou
os olhos.
— Nadya?
O livro de feitiços ainda estava preso a seu lado e ela o pegou para
colocá-lo no seu colo. Ela passou os dedos pela capa. Como ela
colocaria em palavras que ela sentiu as sombras que ele controlava e
que ela estava aterrorizada? Qual era a melhor maneira de contar a
ele que ainda havia uma parte sua que ela achava visceralmente
inquietante? Ela abriu o livro, parando em uma página com feitiços
rabiscados.
— Você sentiu? — Ela perguntou.
Ele ficou pálido e se recostou nos calcanhares, engolindo em
seco. Ele assentiu.
— Você sabia que isso podia acontecer.
— Eu... não sabia. Eu pensei que nada aconteceria se... não...
— Sangue. — Ela terminou por ele. — Exceto que isso tudo é uma
grande performance, não é? Então, é claro que teve.
Ele pareceu incomodado por exatos sete segundos antes do brilho
feroz voltar a seus olhos.
— E? Como foi?
— Horrível.
Ele hesitou, então levantou sua mão e gentilmente pressionou os
dedos nos dela. Ela queria se afastar, ela queria puxá-lo para mais
perto.
Eles se encararam. Ele sorriu levemente.
— Ajudou, certo? Você nunca teria chegado ao fim do duelo se
não fosse pela minha magia.
A tensão se rompeu. Ela bateu no ombro dele. Ele riu.
— Tenho que ir. — Ele disse, se endireitando. Havia muito dele
para se endireitar; ele era muito alto. — Podemos falar sobre isso
mais tarde? Serei honesto, e não tenho ideia do que significa.
— Se tivermos um mais tarde. — Nadya murmurou.
Ele passou uma mão suavemente pelo cabelo dela.
— Mesmo assim. Deslumbre os monstros, Nadya. Você já
encantou o pior de todos; o resto deve ser fácil.
Ela olhou para ele, assustada. Ele piscou para ela.
— Ainda estou brava com você. — Ela disse, mas as palavras eram
rasas.
— Eu sei. — Ele sorriu e deslizou a máscara de novo pelo rosto.
Ele se foi antes dela poder dizer mais.
Ela pressionou uma mão nos lábios, fechando os olhos. Haveria
um inferno para pagar por isso.
Vinte e Dois: Serefin Meleski

Svoyatovi Leonid Barentsev: um clérigo de Horz, ele viveu em


Komyazalov como um acadêmico que ensinou o Códex Divino.
Acredita-se que assassinos Tranavianos o envenenaram, mas seu
corpo nunca foi recuperado e nem achado.
—O LIVRO DOS SANTOS DE VASILIEV

O estômago de Serefin se retorceu quando sua porta foi aberta e


Kacper entrou cambaleando. Ele parecia abatido, como se não
dormisse há dias. Serefin o estabilizou, puxando-o para seus
aposentos e fechando a porta.
Não era seguro conversarem aqui, e ele tinha que estar no jantar
em uma hora.
— Você está bem? — Ele perguntou.
Kacper se recostou na porta e lentamente deslizou para o chão.
— Fui parado no corredor por um dos Abutres que está seguindo
seu pai.
Serefin se sentiu tonto de repente. Ele nem tinha bebido nada em
horas. Ele olhou cautelosamente para a aresta que ligava a parede
ao teto.
— E?
Kacper balanou a cabeça.
— Nada. Um aviso? Não sei. — Ele suspirou. — Eu deveria
acompanhar você hoje à noite. — Ele disse, com os olhos fechados.
— Ostyia ficará bem sozinha.
Kacper levantou uma sobrancelha, os olhos se abrindo.
— Historicamente falando, várias pessoas morrerão hoje à noite.
— Historicamente falando, provavelmente não será eu. Além
disso, você parece terrível. — Ele puxou seu casaco, preto com
dragonas vermelhas e botões dourados na frente. Ele checou se suas
navalhas ainda estavam costuradas nas mangas. — Tudo bem, me
diga o que você encontrou.
— Lembra quando mencionei que eu ia olhar a lista de nobres
participantes?
Serefin assentiu.
— Um bom número delas não desistiu porque estavam nervosas,
elas sumiram completamente. — Kacper levou a mão ao bolso e
entregou a Serefin um monte de papéis amassados. — Além disso,
meu agente retornou das Minas de Sal. Não é nada bom, Serefin.
— Quando alguma coisa é boa? — Ele perguntou enquanto
desamassava os papéis. Suas mãos estavam tremendo.
Ele leu o relatório, seu coração afundando.
— Isso é verdade? — Sua voz saiu fraca.
Kacper assentiu.
Os Abutres e o rei estavam trabalhando juntos – embora Serefin
soubesse que não era verdade. Cordas de marionete. Eles quase
atingiram seu objetivo, com um novo experimento como dizia nos
papéis. Mas o último era muito obstinado e difícil de controlar. Eles
estavam mudando os planos nesse processo horrível e colocando
seu pai no centro.
Parecia uma piada doentia. Como se tudo estivesse na sua frente
o tempo inteiro, mas ele estava muito focado nas coisas erradas para
notar. Os Tranavianos abandonando os deuses não havia sido tão
simples e fácil como magia e ateísmo.
— Meu pai é um mago fraco. — Serefin falou com a voz áspera e
tensa.
Kacper assentiu.
Se ele estava lendo isso corretamente, – e ele não tinha certeza
que estava – os Abutres acharam uma maneira para ganhar mais
poder do que qualquer mortal jamais poderia alcançar, e eles iam
dar a Izak Meleski. Por um preço. Um sacrifício. A anedota que
Pelageya contou sobre um mortal se tornar divino agora parecia
ironicamente doentio. Apenas custaria a Izak seu filho, uma troca
insignificante no grande esquema. O que era a vida de Serefin em
comparação à poder ilimitado?
Era a chance de seu pai de finalmente provar a seu reino e ao seu
povo que ele não era só um rei e um mago de sangue fraco. Ele seria
mais; seria melhor. Ele se tornaria um deus.
— Ele... ficou doido. — Serefin disse. Era a única explicação. Os
Abutres, o nervosismo da mãe, os avisos de Pelageya. Seu pai perdeu
a cabeça.
E Serefin pagaria o preço.
Kacper olhou para o teto. Serefin resmungou, puxando sua adaga
da bainha e abriu um corte na mão. Ele bateu na mesa próxima e o
cheiro de fumaça encheu a sala enquanto ele quebrava todos os
feitiços feitos pelo seu pai. Que se danem as consequências.
— Você sabe quem é esse sucesso anterior? — Serefin apontou
para uma linha no relatório.
— Provavelmente o Abutre Sombrio, mas, não, não tenho ideia.
Serefin esfregou sua testa. O Abutre Sombrio não era importante
agora.
Quando seu pai perdeu a cabeça? Ele tentou pensar melhor – ele
esteve sem saber o que acontecia em Tranavia enquanto estava no
front, havia sinais o tempo todo? Ele pensou nas vilas Tranavianas
pelas quais ele passou, desamparadas e quase desaparecendo por
completo. Seu pai parecia indiferente à situação difícil do país como
um todo, à situação que a guerra estava provocando. Não foi sempre
assim. Lembrou-se de quando seu pai se importava, mesmo que
fosse anos atrás.
Pode ser que ele nunca saiba quando as coisas mudaram.
Serefin se recostou na mesa, subitamente cansado.
— Quanto sangue seria necessário para começar isso?
Kacper não respondeu.
As peças estavam começando a se alinhar, e a imagem que estava
se formando era muito horrível para ser compreendida.
— Talvez o sangue dos melhores magos de Tranavia, todos
reunidos em um só lugar para a Rawalyk. — Serefin sussurrou. —
Sangue comum não serviria de nada, tem que ser sangue com poder.
As garotas que desapareceram, alguma delas veio de famílias que
não usam magia?
Kacper balançou a cabeça.
— Todas magas de sangue. E se... — Kacper pausou, sem ter
certeza do que estava dizendo. — Se isso nunca foi feito antes, não
sabemos o que realmente acontecerá com seu pai.
— Eu vou estar morto, então não ligo para o que acontecerá com
meu pai. — Serefin rebateu. — Mas e se... e se já tiver sido feito
antes? — Ele murmurou, a mente acelerando. — A resposta está
aqui.
Kacper levantou a cabeça.
— O quê?
— A bruxa. As palavras da bruxa, sangue e osso. ‘Esvazie as
igrejas Kalyazi, derreta seu ouro, triture seus ossos’. O que mais ela
disse?
— E se os deuses que os Kalyazi adoram não são deuses? —
Kacper perguntou, horror entrelaçado em sua voz.
Serefin assentiu devagar. Ele não ligava para os deuses Kalyazi,
mas se eles fossem outra coisa, o que isso significaria para
Tranavia?
— Então, o que faremos?
Serefin tentou pensar, mas não teve nenhuma ideia. O que eles
poderiam fazer? O que poderia ser feito quando seu pai louco estava
a passos de ganhar poderes semelhantes ao de um deus?
O que eles poderiam fazer quando a garota que se comunicava
com as criaturas tinha escapado e estava solta no mundo para
causar estragos?
— Nós realmente não temos como achar a clériga?
O olhar escuro de Kacper encontrou os olhos pálidos de Serefin,
entendendo.
— Voltar a bruxa é sábio? Seu pai vai suspeitar que você está
planejando alguma coisa.
Serefin acenou para o sangue que manchava a mesa atrás dele.
Seu pai já suspeitava.
— Eu estou planejando alguma coisa.
Houve uma forte batida na porta e Serefin e Kacper saltaram.
Serefin rapidamente envolveu sua mão ainda sangrando com um
pano enquanto Kacper atendia a porta. Ostyia piscou seu único olho
ao ver os dois.
— Vocês estão bem?
— Nem um pouco, mas suspeito que isso não importe agora. —
Serefin respondeu enquanto Kacper se sentava em uma cadeira.
Ela estendeu a mão e Serefin entregou o relatório a ela.
Seu rosto se retraía enquanto ela lia o relatório.
— Entendi. — Foi tudo que ela disse. — O jantar será em breve.
Serefin assentiu.
— Vou queimar isso. — Ostyia disse segurando o relatório. — Isso
é ruim, Serefin.
— Estou sabendo.
— Não é só você que está em perigo, é todo mago de sangue que
está aqui. Todo nobre, toda a classe dominante de Tranavia.
— Eu sou só o que corre mais perigo. — Ele disse, sorrindo
levemente.
Ela passou um dedo pela navalha escondida na manga e o
relatório se acendeu em chamas. Sua carranca solene se aprofundou
com o esforço de lançar um feitiço elemental, mas desapareceu
quando ela limpou as cinzas das mãos.
— Você tem um lugar para ir. Descobriremos o que fazer sobre
isso mais tarde. — Ela disse.
Kacper se levantou. Serefin queria dizer a ele para ficar, mas ele
sabia que Ostyia – como uma slavhka – foi convidada a atender o
jantar como nobreza e não como uma ocasional guarda-costas de
Serefin.
— Você realmente parece horrível. — Serefin disse a ele, se
aproximando e tentando arrumar o cabelo de Kacper de volta a uma
aparência melhor. Ele puxou sua jaqueta amassada, mas nada que
ele fez pôde desfazer os vincos.
Kacper lhe deu um sorriso torto.
— Não é todo dia que eu entrego notícias de que o rei está
tentando se transformar em um deus, né?
Serefin fez uma careta. Um deus. Ouvir em voz alta deixou tudo
mais real e mais aterrorizante. Tem uma razão pela qual Tranavia
abandonou os deuses. Teve uma razão pela qual eles rejeitaram suas
regras e costumes, a constante opressão de ter um ser maior que te
governa pela sua própria ideia de moralidade. O que seu pai estava
fazendo não mudaria nada; era ir contra toda a essência de ser um
Tranaviano.
Se Serefin tivesse que derrubá-lo para restaurar o trono como
deveria ser, então que seja. Seu pai perdeu todos os direitos ao
trono ao alcançar esse tipo de ideal. Buscar mais poder era uma
coisa – admirável – mas isso? Isso era longe demais. Ia arruinar o já
delicado governo de Tranavia.
Mas não havia tempo para pânico. Serefin tinha que fingir que
era somente um príncipe petulante que voltou para casa da guerra e
nada mais. Ele costumava ser muito bom em fingir.
O salão de banquete era iluminado por lustres de cristal que
lançavam uma luz dourada pela longa mesa. Serefin encontrou seu
lugar ao lado de Józefina, com Żaneta à sua frente. Era incomum,
ele estava acostumado a se sentar na mesa alta, mas aparentemente
o protocolo foi alterado.
Żaneta sorriu calorosamente para ele quando ele se sentou. Ele
sentiu Ostyia se animar ao lado dele.
— Certamente eles deveriam anunciar sua chegada? — Żaneta
perguntou.
Ele olhou para o assento do pai que continuava vazio do outro
lado da mesa. Não, anunciariam aquela chegada. Não a dele, nunca a
dele.
— Duvido. — Ele disse alegremente, acenando para um criado. —
Mas eu prefiro assim. — Ele sorriu para Józefina enquanto
gesticulava para o criado encher a taça na frente dele. — O que é
isso? — Ele questionou. — Por favor, me diga que ajudará com o
esforço necessário para essa noite.
— Krój, Vossa Alteza. — O criado respondeu.
Hidromel era bom o suficiente, ele supôs.
— Eu peço perdão, tenho certeza que a companhia atual será
suficientemente encantadora.
Żaneta virou os olhos com leveza. Józefina parecia insegura, mas
sorriu.
Seria muito difícil fingir o tempo todo. Ele trocou um olhar com
Ostyia, e ela imediatamente começou a flertar com Żaneta, o
deixando para focar em Józefina.
Ela estava desamarrando sua máscara de couro branco. O alívio
em seu rosto era claro quando ela finalmente a retirou.
— A máscara não te agrada? — Ele perguntou.
— Não estou acostumada com elas. — Ela admitiu. — Elas são
muito mais desconfortáveis do que eu esperava.
Sem sua máscara ele podia realmente ver suas feições delicadas.
Sua pele tinha algumas sardas, seus olhos escuros com cílios longos.
— Você pode escolher não usá-las, mas as outras garotas, bem...
— As outras garotas vão destruí-la. — Żaneta concordou,
momentaneamente distraída de sua conversa com Ostyia. Ela
sorriu. — Seu duelo foi excelente. Porém, da próxima vez,
recomendo que você estabeleça uma barreira quando a luta
começar, para que você não seja pega desprevenida por um feitiço
que mexa com seu sangue.
Józefina pareceu intrigada por uma fração de segundo, mas a
expressão foi embora tão rapidamente que Serefin se perguntou se
realmente tinha visto. Ela não tinha notado o feitiço de Felicíja?
Improvável.
— Isso nem me ocorreu.
— Não, não iria no calor do momento. — Żaneta disse, separando
um bolinho com os dedos. — Muitos magos usam feitiços internos
porque são maneiras rápidas e sujas de derrotar um oponente;
— Eles foram escritos especificamente para tortura. — Serefin
disse.
— Serefin, você é, como sempre, a mais charmosa das
companhias de jantar — disse Żaneta.
As portas no final do salão se abriram e silêncio se derramou pela
sala como um cobertor sufocante. Serefin sentiu frio. Tudo que ele e
Kacper descobriram voltou a ele quando seu pai entrou na sala. O
olhar de seu pai encontrou os dele, um lampejo de raiva em seus
olhos, e medo inundou Serefin.
Ele sabe. Ele sabe. Ele sabe. Um Abutre seguiu atrás do rei.
Serefin não reconheceu a máscara. Eles estavam muito atrasados.
Tudo estava se movendo muito rápido para longe do seu controle –
não que ele já teve algum controle – e agora seu pai sabia que
Serefin suspeitava e não seria complacente.
Ele morreria.
Ele desviou o olhar, notou que as mãos de Józefina estavam
entrelaçadas tão fortemente em seu colo que suas juntas estavam
brancas como ossos. Ela estava olhando para o rei com puro ódio
nos olhos.
Ela o viu olhando para ela e seu rosto inteirou ruborizou. Ela
abaixou a cabeça, murmurando um pedido de desculpas suave.
Seus olhos se estreitaram. Ela não precisava se desculpar. Por
que uma garota de uma cidade tão longínqua olharia para o rei
desse jeito? Talvez não importasse.
Ou talvez ele tenha encontrado outra aliada.
Vinte e Três: Nadezhda Lapteva

Svoyatovi Yakov Luzhkov: o fundador do mosteiro de Selortevnsky


em Ghelovkhin, um lugar onde clérigos eram treinados em segredo
para lutarem na guerra sagrada. Quando o mosteiro foi destruído
em 1520, Yakov queimou junto.
—O LIVRO DOS SANTOS DE VASILIEV

O Grã-Príncipe de Tranavia era um garoto charmoso que gostava de


auto depreciação e de reclamar. Ela se viu rindo de suas piadas e
respondendo do mesmo jeito enquanto a noite seguia. Żaneta era
igualmente envolvente, com uma sagacidade e uma inteligência
aguçada que Nadya não esperava de uma das magas de sangue mais
impressionantes da corte.
Bom, isso está rapidamente se tornando um pesadelo, ela pensou
enquanto girava sua colher em uma tigela de borscht. Havia uma
música suave tocando ao fundo, arejada e clara, a atmosfera na sala
não parecia tão opressiva como quando o rei entrou.
— Um pesadelo que você está criando para si. — Nadya quase
derrubou sua colher quando a voz de Marzenya soou na parte de
trás da sua cabeça.
— Agora não. — Ela pediu. Ela não podia continuar isso e ter uma
deusa brigando com ela pelo que ela tinha feito ao mesmo tempo. —
Repreenda-me o quanto quiser mais tarde, mas não agora.
— Você está trilhando um caminho perigoso, criança.
Um caminho perigoso que ela estava tornando pior. Marzenya
requeria devoção completa. Nadya nunca sonhou que isso sequer
seria uma questão. Mas aqui estava ela, alguns dias em Tranavia e
ela já estava cheia de conflitos.
Houve um distúrbio na cabeceira da mesa onde o rei estava
sentado. Uma taça de cristal voou, caindo na parede e se
estilhaçando em milhares de pedacinhos brilhantes, vinho
espalhado na pedra como sangue. Nadya não pôde analisar uma
palavra do Tranaviano que o rei gritou depois que o criado saiu
correndo do salão.
Ela ficou gelada até os ossos quando um dos Abutres saiu atrás
do criado.
O rosto de Serefin ficou vermelho e ele desviou o olhar.
— Ele está ficando pior. — Nadya ouviu Ostyia sussurrar para
Serefin.
Ele engoliu em seco e assentiu rapidamente. Ele pegou sua taça
apenas para encontrá-la vazia, passou uma mão pelo cabelo,
claramente agitado. Depois de um silêncio desconfortável, Serefin
sorriu brilhantemente, seu esforço evidente.
Nadya olhou para o rei. Não tinha nenhum sinal claro do porquê
ele jogou a taça.
— Jozéfina?
Nadya se assustou.
— Peço desculpas, Vossa Alteza, eu estava distraída.
O príncipe se inclinou para mais perto.
— Por favor, me chame de Serefin, essa coisa de Vossa Alteza fica
muito ultrapassado.
Ela ergueu a sobrancelha. Isso era tudo um jogo.
— Claro.
— Troque de lugar comigo. — A garota de um olho só demandou
de Serefin.
— Você não pode flertar com toda garota aqui, Ostyia — disse
Serefin.
— Eu posso, e vou. — Ela respondeu formalmente.
Ele virou os olhos e – dando outro olhar ansioso na direção do
pai – se levantou, e trocou de lugar com a garota.
Ostyia tinha um tapa olho cintilante cobrindo seu olho direito em
vez de uma máscara. Seu sorriso era elétrico, e ela se virou na
direção de Nadya.
— Sua luta foi a coisa mais interessante que já vi em anos. — Ela
disse, prendendo uma mecha do cabelo escuro atrás da orelha. Ela o
usava cortado na altura do queixo, diferente de qualquer estilo que
Nadya viu em Grazyk. — Ela se inclinou conspirativamente. — E eu
já vi Żaneta lutar antes.
Żaneta acenou com a mão.
— Lisonjeie a nova garota, não me importo.
— Vossa Alteza. — O garoto que sentava ao lado de Żaneta
chamou a atenção de Serefin. — Se não é pedir muito, os boatos que
vêm do front são verdadeiros? Estamos finalmente vencendo os
Kalyazi?
Nadya não ouviu a resposta de Serefin enquanto Ostyia se
inclinava para mais perto.
— Seu livro de feitiços não se parece com nenhum que eu tenha
visto encadernado aqui, quem fez? — Ela perguntou.
A mente de Nadya deu um branco. Ela viu Żaneta desviar o olhar
do príncipe para ela. Uma de suas mãos foi para o livro de feitiços
atado em seu quadril, sentindo as pontas do desenho na capa, o
ícone dos deuses que ela colocou na frente.
— Na verdade, eu tenho um amigo que faz livro de feitiços. — Ela
disse, sorrindo. — Ele faz um trabalho lindo. — Ela desamarrou o
livro do quadri. — Ele é um pouco obcecado com os Abutres, porém,
e é evidente. — Seu sorriso ficou envergonhado. Ela torcia para que
nenhuma das nobres Tranaviana reconhecesse os símbolos dos
deuses Kalyazi.
Ela ofereceu o livro para Ostyia olhar, o coração martelando na
garganta. A garota o pegou, passando a mão pela capa.
Os olhos de Żaneta se estreitaram. Nadya viu a expressão antes
da slavhka suavizar as feições.
A aposta se apoiava em algo que Malachiasz havia mencionado de
imediato para Nadya: que nenhum mago de sangue ousava abrir o
livro de feitiços de outro. Se Ostyia se aventurasse a passar pela
capa, Nadya estaria em problemas.
Cada segundo se parecia com eras, mas finalmente, Ostyia
devolveu o livro a Nadya. Nadya amarrou o livro em seus cintos com
dedos tremendo.
A comida que ela comeu estava deliciosa, mas Nadya mal sentiu
alguma coisa. Ela estava muito focada em não cometer mais erros.
De algum jeito, ela conseguiu. Bem, ela pensou que conseguiu. O
príncipe a viu olhando o rei. Era desleixado da parte dela, mas ela
estava tentando se convencer de que o rei e o príncipe precisavam
morrer. Ao ver o rei em pessoa, ela se lembrou facilmente dos
horrores que os Tranavianos cometeram para os Kalyazi por anos. O
príncipe, entretanto... ele facilitou a esquecer. Ela não deveria ser
tão influenciada.
Kostya. Você está fazendo isso por Kostya, ela lembrou a si
mesma. Kostya ainda estaria vivo se não fosse por Serefin.
Um pouco antes do jantar terminar, o rei se levantou, se
aproximando de Serefin. O príncipe ficou tenso – Nadya viu sua
mão ir para o livro de feitiços antes dele claramente se forçar a
desistir. Ele não se levantou, apesar de parecer que o rei esperava
que ele levantasse. O rei se inclinou para sussurrar algo na orelha de
Serefin. A semelhança entre os dois era clara, mas Nadya percebeu
que o rei tinha o cuidado de permanecer o mais longe possível de
Serefin. O rosto de Serefin ficou pálido, seus olhos se fechando
enquanto seu pai falava antes de cobrir suas feições com a máscara,
os olhos pálidos se escureceram quando ele os reabriu.
— Claro. — Ele murmurou, não se virando para olhar para o rei.
O rei partiu com uma enxurrada de criados, guardas com brasões,
e Abutres mascarados.
Serefin se ofereceu para levar Nadya de volta aos seus aposentos.
O quer que se passou entre ele e seu pai foi esquecido ou deixado de
lado.
— Vai colocar um alvo nas suas costas e disseram para Serefin
não ser visto favorecendo ninguém em particular. — Żaneta disse a
Nadya antes de se virar para Serefin. — Não a cause problemas
enquanto você se envolve em brigas mesquinhas com seu pai.
Nadya congelou. Serefin deu a Żaneta um olhar exasperado.
— Não tem razão para assustá-la. — Ele repreendeu.
— Tenho toda razão para assustá-la. — Ela respondeu docemente.
Ela se levantou e inclinou a cabeça para Serefin. — Te ofereço uma
boa noite, Serefin. E Józefina?
— Sim? — Nadya disse um pouco rápido demais.
— Boa sorte, e eu falo sério.
— Obrigada. — Nadya respondeu. — Para você também.
Żaneta riu, jogando sua cabeça para trás.
— Não preciso de sorte, mas obrigada.
Serefin estendeu seu braço para Nadya, lançando um olhar
malicioso para todos na mesa que o encaravam abertamente. Ela
hesitou antes de aceitar. Ela encontrou os olhos de Parijahan
quando ela passou pelos criados que esperavam. Um eco de um
sorriso tocou seus lábios enquanto ela se levantou para segui-los.
— Então — Serefin disse, sua voz calma. — o que meu pai fez com
Łaszczów para ganhar um olhar tão odioso seu?
Ela tropeçou. Ela tinha certeza de que seu coração falhou uma
batida. Ele sabia? Não tinha como. Ele não podia saber. Ela tentou
sorrir, mas sabia que saiu falso.
Ele riu.
— Ah, isso foi cruel da minha parte. Me perdoe, mas você é tão
charmosamente provincial.
Nadya fez uma careta.
— Desculpe. — Serefin disse com uma leve carranca. Ele passou
uma mão pelo cabelo. — Era para ser um elogio. Não foi um bom.
— Não.
Ele riu timidamente.
— Estive no front por anos e perdi todas as habilidades que tinha
em interagir com as pessoas, receio. Não que eu tenha sido
particularmente bom nisso.
— Acho que você está indo bem. — Nadya disse. — Porém, eu
provavelmente sou a pior juíza.
— É refrescante. — Ele disse. — Você é sincera, e odeia meu pai;
duas coisas que eu aprecio.
O jeito que ele falava do pai – a tensão ao redor dos olhos e a
tensão que crescia em seus ombros – e o jeito que ele reagiu quando
seu pai estava apenas falando com ele fez Nadya suspeitar que
Malachiasz estava certo; eles realmente entraram em algo maior.
Ela desejou ter mais tempo para avaliar se Serefin seria um rei
melhor. O que ela viu dele essa noite a deixou esperançosa, mas não
era o suficiente para parar a guerra. Ela tinha que continuar.
— São meus aposentos. — Ela disse, parando. Parijahan andou ao
seu redor para abrir a porta.
Ela se separou de Serefin, mas ele pegou sua mão. Ele a levantou
até sua boca, beijando gentilmente.
Nadya corou instantaneamente.
— Boa sorte, Józefina. Eu não desejo que você perca sua vida por
um motivo tão ridículo como essa Rawalyk.
— Obrigada, Serefin.
Seu sorriso era torto quando ele soltou sua mão.
— Boa noite.
— Boa noite.
Ele inclinou sua cabeça para ela antes de sair pelo corredor.
Nadya entrou em seus aposentos, fechando a porta com força. Ela se
inclinou contra a porta e devagar deslizou até o chão, suas saia verde
pálida reunindo-se ao redor dela.
Parijahan estava sorrindo.
— Acho que você encantou o príncipe.
— Acho que sim.
— Foi difícil?
— Eu senti vontade de vomitar o tempo todo.
Parijahan riu. Nadya colocou a cabeça entre as mãos.
— Ele não é o que eu esperava. — Ela estava esperando alguém
como era Malachiasz quando ela o viu pela primeira vez,
intimidante e poderoso — e não sabia o que fazer com esse garoto
encantador e desajeitado. O fato dele ser um dos magos de sangue
mais poderosos em Tranavia, assim como um herege, infelizmente
deixou seus dedos coçando para pegar a szitelka escondida em sua
manga. Ela já tinha vacilado demais; ela não podia se permitir sentir
mais nada.
Nadya passou uma boa parte da noite examinando os
movimentos do rei, tentando decifrar quantos guardas ele tinha ao
redor o tempo todo, o quão difícil seria separá-lo e matá-lo.
As chances não eram muito boas.
— Acha que se eu vencer isso, o que quer que essa Rawalyk seja,
nos deixará próximos o suficiente?
Parijahan considerou, seus olhos cinzas subindo para a pintura
no teto.
— Não sei se temos todo esse tempo. Tenha cuidado com os
Abutres que você vê rondando o palácio — disse Parijahan.
Nadya puxou o colar de Kostya de dentro do decote do seu vestido
e o girou entre os dedos. Ela não precisava ser avisada a respeito dos
Abutres.
— Como é a sua terra natal? Akola? — Ela perguntou. Ela não
queria falar sobre os Abutres com aquela pintura pairando sobre
elas.
Parijahan sorriu, seus olhos se fechando sonhadoramente.
— Quente. Mesmo no inverno não é nem um pouco frio como é
em Kalyazin. A areia reflete o sol, e tudo é dourado.
— Há quanto tempo você está longe?
— Muito tempo. Tempo demais, mas ainda assim, não foi tempo
o suficiente.
— Você acha que voltará?
Parijahan riu.
— Não sei. — Ela se levantou. — Erros foram cometidos. Pessoas
morreram. Rashid e eu descobrimos que, às vezes, a única coisa que
sobra é desaparecer. — Ela estendeu as mãos para Nadya,
oferecendo ajuda para ela se levantar.
Nadya aceitou. Parijahan era mais alta que ela, e ela descansou
suas mãos escuras nos ombros de Nadya.
— Estamos pedindo muito de você, Nadya, eu sei disso. Estamos
pedindo para você confiar em nós, nos estrangeiros que somos, e
Malachiasz, sendo o monstro que ele é, e colocar sua existência na
linha por algo que pode ser impossível. — Ela descansou a testa dela
contra a de Nadya. — Por favor, não pense que só porque você
apareceu em nossas vidas em um momento oportuno, nós três não
nos importamos com você. Eu me importo, e Rashid e Malachiasz
também.
— Estou acostumada a ser usada pelos meus poderes. — Nadya
disse. — Vocês três são meus amigos. Eu só estou cansada de
segredos.
Parijahan assentiu.
— Eu entendo.
Nadya não via esse lado de Parijahan normalmente. Ela se aliviou
ao ver que havia suavidade no olhar duro de Parijahan.
— Bem, até agora sobrevivi na corte de monstros. — Nadya disse
alegremente. — Agora é só uma questão de achar uma fraqueza no
sistema deles e explorá-la.
Nadya guardou suas contas de orações no bolso do vestido dela.
Era tarde, mas não tão tarde a ponto de ser estranho Nadya ser
encontrada perambulando pelos corredores do palácio. Aliás, ela
estava muito nervosa para dormir – e ela odiava sentir que estava
sozinha em Tranavia. Ela precisava dos deuses de volta. Tinha que
haver um jeito de ultrapassar o véu que bloqueava o acesso de
Nadya a eles.
— Onde você está indo? — Parijahan enfiou a cabeça para fora do
seu quarto.
— A ideia é achar algumas respostas. Você fica aqui, caso um dos
garotos apareça, eu não gostaria que eles preocupassem suas
cabeças lindas conosco.
Parijahan franziu o cenho.
— Vou ficar bem, Parj. — Nadya disse, amarrando o livro de
feitiços de Malachiasz em seu cinto. — Eu tenho a atenção do
príncipe. Malachiasz vai cuidar dos Abutres cercando o rei, e eu vou
usar o príncipe para ficar perto o suficiente para atacar.
Parijahan relutantemente a deixou ir.
O palácio estava estranhamente silencioso enquanto Nadya
vagava pelos corredores. Como se todos estivessem esperando –
uma respiração suspensa antes de um mergulho. As luzes
bruxuleantes das velas lançavam sombras agourentas pelas pinturas
que se estendiam pelo teto.
A ala real era no lado oposto do palácio e ela viu que era guardada
por um punhado de guardas do rei. Sem Abutres à vista.
Um deles a chamou para perguntar o que ela estava fazendo e
acreditou quando ela disse que se perdeu procurando pela
biblioteca. Uma slavhka entediada acordada até tarde querendo algo
tão inofensivo quanto livros. Ele apontou a direção certa para ela, e
então prontamente a ignorou.
Ela não esperava encontrar nada sobre a magia dela na biblioteca,
mas certamente alguém documentou a magia de sangue causando o
paraíso ser bloqueado da terra. Tranavianos tinham um orgulho
terrível disso.
Havia algumas pessoas nas estantes quando Nadya entrou, mas
estava anoitecendo mais ainda, e ninguém prestou atenção nela.
Nadya não tinha certeza do que ela estava procurando, mas se
crescer em um mosteiro a ensinou algo, era como achar exatamente
o que ela precisava em uma biblioteca.
Ela botou a mão no bolso enquanto andava pelas estantes – a
biblioteca era grande, escadas espiralavam por múltiplos andares,
todos cheios com livros. Seus dedos roçaram nas contas de oração.
Os deuses ainda pareciam muito distantes – mas tinha um cutucão
leve na parte de trás da cabeça dela, a pressionando para a parte de
trás da biblioteca.
Nadya sempre achou que ela lia Tranaviano muito melhor do que
falava. Seus dedos se encostaram nas lombadas dos livros velhos e
caindo aos pedaços, desgastados pelo tempo e negligência. Ela não
tinha certeza do que estava procurando – os títulos que ela lia não
significavam nada para ela.
— Eu deveria estar vendo alguma coisa aqui?
Nenhuma resposta. Ela suspirou, os dedos enrolando as contas
de oração. Esse era provavelmente um esforço inútil. Ela não
acharia nada que poderia ajudar numa biblioteca Tranaviana.
Um cutucão mais nítido veio assim que sua mão parou sob um
volume fino enfiado entre dois outros livros, empurrado tão para
trás de forma que não era visível. Ela cuidadosamente o retirou. A
capa era vazia, sem título, nenhuma indicação que sugeria sobre o
quê esse livro era. A capa de tecido estava irregular na borda e,
quando Nadya o abriu, as páginas estavam amareladas – a mão que
escreveu o texto tinha uma letra longa, fina e angular.
Nadya foi para uma mesa. Ela foi gentil quando abriu totalmente
o livro. Parecia que ia se desfazer ao menor toque;
O símbolo na primeira página era familiar. Desconfortavelmente
familiar. Ela soltou as contas de oração, as empurrando para mais
fundo no bolso, e segurou o colar pendendo de seu pescoço.
A mesma espiral foi gravada no pingente redondo.
Ela só teve tempo para virar a primeira página. Tempo suficiente
para ver a palavra deus rabiscada por aquela mão de letra angular.
Tempo suficiente para perceber que ela parou de ouvir o som baixo
de outras pessoas na sala e perceber que alguém a estava
observando.
Vinte e Quatro: Serefin Meleski

Svoyatova Małgorzata Dana: uma Tranaviana que fugiu de sua


família de hereges para uma vida em um mosteiro de Tobalsk. Sua
coragem, e sua morte pelas mãos de seu irmão, a canonizou como
santa.
—O LIVRO DOS SANTOS DE VASILIEV

Todos os sentidos de Serefin pareciam desconectados. Ele ouviu o


barulho de carne contra carne, sentiu sua cabeça girar tão
violentamente para um lado que ele pensou que seu pescoço ia
quebrar, mas levou apenas alguns segundos para a dor acender na
lateral do seu rosto.
O anel de Izak cortou a bochecha de Serefin, e ele sentiu sangue
escorrendo lentamente pelo seu rosto.
Por mais distante que seu pai se tornou dele – por mais tenso
que o relacionamento entre os dois era – ele nunca tinha batido
nele antes.
— Agora, o que fiz para merecer isso? — Serefin perguntou,
limpando o sangue do seu rosto com o polegar. Ele sabia que,
quando seu pai, pessoalmente, ordenou a ele para ir até seu
escritório depois do jantar, não seria bonito, mas instigar seu pai era
parte do seu plano, e ele sobreviveria aos hematomas que viriam.
Além do mais, se isso desse errado, ele seria morto em alguns dias
de qualquer jeito, então, o que eram alguns hematomas?
— Eu peço tão pouco de você, Serefin, tão pouco. — Izak disse. —
Um mínimo de respeito pelas tradições de seu país. É muito pouco.
Não era disso que se tratava, mas Serefin jogaria junto se isso
impedisse os dois de abordar o verdadeiro problema.
— Eu me expressei sobre como me sentia sobre essas tradições.
Nesse momento, elas são desnecessários. Estamos em guerra, pai.
— Não ouse presumir que preciso de lembrete, Serefin.
Ele foi atingido uma segunda vez, e de novo, e precisou de um
tempo para Serefin realinhar os sentidos.
Ele mexeu a mandíbula, a sentindo estalar.
— Terminou? Gostaria de uma terceira vez? Sem dúvida, estou
mais que disposto a ser seu saco de pancadas humano.
— Serefin... — O tom do pai era um aviso.
Izak finalmente atravessou a sala, se sentando atrás da sua
grande mesa de carvalho. O quarto era escasso, poucos itens ali
sugeriam que já foi usado.
Aparentemente, essa era a extensão do abuso que Serefin sofreria
hoje.
Serefin olhou para seu pai enquanto ele folheava os poucos
papéis espalhados na mesa. O que o impedia de colocar uma adaga
através do olho de seu pai agora mesmo? De abrir seu livro de
feitiços e queimá-lo de dentro para fora?
Política. A precipitação significaria a execução de Serefin. Seu
golpe tinha que ser mais delicado.
A resposta esteve sempre aqui. Mas a resposta para quê? Por que
essa guerra ainda estava acontecendo? Porque seu pai, quem
veemente negou a existência de deuses, desejava se tornar um?
Apesar de ser facilmente respondida pelo ego do pai, esta não era a
razão. Serefin nunca negou a existência dos deuses Kalyazi, ele só
nunca viu seu propósito.
Ele se perguntou se seu pai já tinha começado o processo. A
forma como sua coroa estava ligeiramente torta e o fato de que suas
mãos tremiam, eram indicadores significativos para seu pai. Mas
somente quando sua manga se puxou para trás, e Serefin
vislumbrou dezenas de cortes recentes espalhados no antebraço do
pai, foi que ele soube. Seu estômago azedou, finalmente tendo
confirmação de que isso estava mesmo acontecendo.
— Só acho que estamos gastando recursos com trivialidades com
a licença de tradição quando uma guerra está acontecendo e metade
do país passa fome. — Serefin disse, taciturno, se forçando a
continuar fingindo que essa era só uma conversa normal.
— Quando você reinar você pode renunciar à tradição e lidar com
os tumultos. — Izak respondeu sem olhar para cima. O sangue de
Serefin congelou.
Nada na voz de seu pai parecia remotamente sincero. Ele
empurrou para longe a onda de pânico crescente no peito. Ele tinha
que mudar de assunto. Ele pensou em uma conversa que teve com
Józefina durante o jantar, sobre como sua comitiva era tão pequena
porque ela tinha encontrado Kalyazi em Tranavia.
— Uma das garotas que mora perto da fronteira me disse que
Kalyazis ultrapassaram a fronteira.
Isso fez seu pai olhar para cima.
— O quê?
Serefin deu de ombros.
— Não posso confirmar, mas pelo que eu vi dos Kalyazi enquanto
estava no front, não parece irracional. Nós estamos ganhando, mas
não significa que já ganhamos.
Uma das mãos do seu pai se cerrou em punho, amassando o
papel na mão. Serefin se sentiu como se ele tivesse acabado de obter
uma vitória pequena e completamente insignificante.
Um arrepio gelado pareceu cair sobre os ombros do pai.
— Os Kalyazi moveram suas forças para Rosni-Ovorisk. — Ele
disse.
Serefin franziu o cenho, sem saber porque seu pai estava dizendo
isso para ele. Forças Kalyazi se movendo tão perto da fronteira era
estranho, sim, mas quando Serefin estava em Grazyk, ele era um
príncipe e não um general, e seu pai geralmente deixava esse ponto
absolutamente claro.
— É quase como se eles soubessem algo que nós não sabemos. —
Seu pai continuou. — Como se eles estivessem se preparando para
algo... grandioso. — Seu pai sorriu abruptamente e medo se
espalhou pela espinha de Serefin. — Eles não vão sobreviver ao que
quer que eles estão planejando, claro. Tranavia está prestes a
mostrá-los o verdadeiro significado de poder.
— Estamos? — Serefin perguntou com a voz tensa. Sua mente
girava. Se os Kalyazi estavam preparando um ataque na fronteira,
Tranavia podia não ser capaz de se defender adequadamente. O que
Kalyazin sabia que Serefin não sabia?
Izak não respondeu. Ele só acenou com a mão para ele.
— Você está andando em gelo fino, Serefin. Fique longe da bruxa
de lavagem cerebral da sua mãe.
É disso que se tratava? Serefin quase relaxou. Ele estava
considerando visitar Pelageya pela manhã. Agora, ele certamente
iria.
— Oh, sei muito bem disso, pai. Felizmente, eu sei nadar e estive
em Kalyazin, sei como é o frio. Porque, certamente, o gelo está
prestes a quebrar.
Seu pai olhou para ele com um olhar aguçado. Se curvando,
Serefin sorriu, antes de se virar e sair o mais rápido que pôde.
No corredor do lado de fora dos aposentos do pai, ele se recostou
a uma parede, suas mãos estavam tremendo. Kacper se aproximou,
colocando uma mão firme em seu ombro. Serefin gravitou em
direção a Kacper. Ele precisava se mover rápido. Se Kalyazin estava
se preparando – e seu pai estava planejando aniquilar as forças
Kalyazi com o poder de um deus – Serefin estava sem tempo.
— Você está bem? — Kacper perguntou.
Serefin encostou sua cabeça no ombro de Kacper.
— Não. — Serefin murmurou.
Houve um momento de hesitação. Kacper se mexeu, cutucando a
cabeça de Serefin para que sua testa se encostasse na sua têmpora.
— Nós vamos te tirar disso, Serefin. — Ele disse. — Você sabe que
há uma espetacular marca de mão no seu rosto?
Serefin riu fracamente e se endireitou. Estava tarde e ele estava
cansado. Não havia mais nada que ele pudesse fazer esta noite.
Eles estavam indo para os aposentos de Serefin quando um
tremendo estrondo ressoou pelo corredor vindo da direção da
biblioteca.
— Bem, isso não soa nada bom. — Kacper murmurou enquanto
Serefin corria pelo corredor.
Nadezhda Lapteva
Nadya se moveu de forma que a szitelka caiu de sua manga para sua
palma.
Que seja outra participante chateada com o príncipe me
favorecendo, ela rezou.
Sua mão se apertou no cabo e ela derrubou a cadeira para trás
enquanto se levantava, girando ao redor.
Ela se viu frente a frente com uma máscara de metal preta.
Gritando, ela pulou para trás, se chocando com a mesa. O Abutre
não se moveu, apenas inclinou sua cabeça de um lado para o outro.
O cabelo loiro e encaracolado caindo pelas costas. A luz das velas
cintilou nas garras de ferro do Abutre.
Pânico apertou o peito de Nadya, um aperto doloroso que tornava
difícil respirar. Ela não podia lutar contra um Abutre. Não sozinha.
Não aqui.
Ela não teve chance de alcançar os deuses e esperar. O Abutre
atacou, se movendo tão rápido que Nadya mal teve tempo de
registrar o movimento. Faíscas voaram quando as garras de ferro do
Abutre se chocaram contra a szitelka de Nadya.
Eles sabem quem eu sou?
E se eles tivessem encontrado Malachiasz e o tivessem
transformado de volta a um monstro? Foi assim que a acharam?
Nadya empurrou o Abutre para longe, pulando na mesa. As garras
do Abutre cravaram-se na madeira, errando Nadya por pouco.
Ela não tinha mágica. Ela não tinha nada.
Ela não tinha esperança sem os seus deuses.
Vinte e Cinco: Nadezhda Lapteva

Svoyatovi Vlastimil Zykin: um clérigo do deus Zlatek. A mente de


Vlastimil era fraca, incapaz de lidar com o rigor do silêncio que seu
deus exigia dele. Em vez de retirá-lo da memória, seu fracasso é
lembrado como uma lição àqueles escolhidos pelos deuses, de que
eles são mortais e os deuses devem ser levados a sério.
—O LIVRO DOS SANTOS DE VASILIEV

Nayda correu.
O Abutre a seguiu, se movendo tão rápido que era apenas um
borrão na luz difusa.
Nadya não conseguiu nem sair da biblioteca. Uma pincelada de
magia de sangue; o gosto de cobre enchendo sua boca. Algo se
chocou contra ela, a mandando contra uma estante de livros,
derrubando-a com um estrondo ensurdecedor. Seu fôlego a deixou
rapidamente, e ela engasgou por ar no chão, muito ciente do Abutre
se movendo – devagar agora – para mais perto.
— Você é uma coisinha assustada, não é? — O Abutre disse,
passando uma garra de ferro sobre uma fileira de livros, as
lombadas se abrindo embaixo.
O desespero fez com que Nadya lutasse por um fio, de qualquer
coisa, que pudesse parar o monstro em seu caminho. A cada passo
que o Abutre dava em sua direção, Nadya andava para trás, até que
ela encostou na parede e não tinha mais para onde ir. Era aqui que
isso acabaria. No escuro. Sozinha. Na casa de seus inimigos.
O Abutre estava a centímetros de Nadya, se agachando na frente
dela. Sua máscara era completamente vazia, exceto por duas fendas
para os olhos.
— Chega de correr, querida.
Nadya rangeu os dentes. Sem deuses, sem esperança.
O Abutre se moveu para atacar e Nadya não tinha nada a perder,
nada que pudesse salvá-la. Mas ela se recusava a morrer aqui.
Tinha sido como um poço na primeira vez que ela usou, um poço
que Marzenya tinha descoberto. Agora era como um rio, e a
barragem arrebentou. Toda a frustração e medo de Nadya se
canalizou em poder. Magia que era somente dela. O Abutre caiu no
chão, batendo em uma mesa e quebrando-a como se fosse de papel.
Nadya encarou sua mão, o horror revirando seu estômago. O que
foi isso? Ela mexeu nas suas contas de oração. Talvez o véu se
abriu, talvez foi Marzenya.
Mas Marzenya estava longe. Isso tinha sido algo totalmente
diferente.
De repente, o príncipe derrapou na sala, sangue escorrendo em
uma mão.
O que ele estava fazendo aqui? Nadya pensou com um toque de
desespero. Isso não podia ficar pior.
— Józefina? — Ele disse.
O Abutre cambaleou atrás de Serefin. Nadya se levantou,
estendendo a mão. Fragmentos de gelo dispararam de sua palma, e
jogaram o Abutre de volta em uma pilha de livros.
Serefin se virou. Com sua atenção desviada, Nadya cortou as
costas de sua mão. O príncipe deu um passo em direção ao Abutre.
— Saia. — Ele disse. Uma ordem simples que tinha comando
suficiente, e Nadya podia facilmente ver esse garoto como rei de
Tranavia.
— Isso não é assunto seu, Príncipe. — O Abutre sibilou.
Serefin arrancou uma página de seu livro de feitiços, e quando ele
a amassou em seu punho, o Abutre caiu, imóvel como pedra.
— Você o matou? — Nadya sussurrou.
Serefin balançou a cabeça.
— É preciso mais do que isso para matar um deles. Não sei se
conseguiria se eu tentasse. Eles não vão ficar caídos por muito
tempo. Minutos, no máximo.
Ele ofereceu mão e a ajudou a se levantar antes de retornar ao
Abutre inconsciente. Ele se agachou, pegando uma mecha do cabelo
dele entre os dedos. Nadya pensou que ele ia retirar a máscara, mas
ele se endireitou.
— Volte ao seu quarto. — Ele disse. — Tranque a porta, apesar que
eu ache que não vão tentar novamente.
— O quê?
— Vá. — Ele apressou. Seu tenente, Kacper, entrou na sala.
— Por sangue e osso, Serefin. — Ele disse, cansado, quando viu o
Abutre inconsciente.
— Não vou sair até você me dizer o que está acontecendo. —
Nadya demandou. Se havia uma chance de que isso não era por
causa de Malachiasz, Nadya precisava saber.
Serefin olhou dela para Kacper. Kacper deu de ombros. Serefin
passou uma mão pelo cabelo. Quando ele olhou para ela novamente,
seus olhos pálidos estavam estreitos.
— Minha lady, as participantes desse grande jogo estão em
perigo. Por favor, apenas retorne aos seus aposentos.
Ela abriu a boca para protestar, mas ele ergueu a mão. Sua
expressão era suplicante e ela suspirou. A adrenalina estava virando
exaustão e voltar para a cama soava como uma ideia fantástica. Ela
só... queria esquecer tudo isso. Ela correu de volta para a mesa para
pegar o livro que tinha encontrado e desejou ao príncipe uma boa
noite.
— Obrigada por salvar minha vida. — Ela disse.
— Você parecia ter tudo sob controle.
Nadya cuidadosamente abriu o livro enquanto andava de volta
aos seus aposentos. Ela não queria folhear as páginas com medo
que ele se desfizesse em suas mãos. Mas o livro abriu em uma
página que tinha uma linha focada no centro.
Alguns deuses exigem sangue.
Ela parou de repente. Todo o medo que crescia dentro dela se
solidificou em algo que ela não entendia. Um sentimento muito
certo de que ela havia encontrado algo que era verdade. Uma
verdade que ela não ousava confrontar.
Ela fechou o livro e correu para seus aposentos.
E direto para outro Abutre. Esse bateu com o punho no rosto de
Nadya e nenhuma quantidade de poder poderia impedi-la de
desmaiar.
Nadya acordou em uma poça de sangue. Havia pontos afiados
cavando a parte de trás do seu corpo, fogo queimando suas veias.
Ela podia sentir lágrimas se derramando de seus olhos, escorrendo
pelo seu rosto.
Ela estendeu a mão para sua deusa.
E uma porta se fechou diante dela.
Pânico explodiu em seu peito. Todas as suas juntas travaram e
seus membros tremeram. Não, isso não estava acontecendo. Não,
não, não, não, não, não, não.
Isso não é real.
Isso era algo que os Abutres fizeram com ela? Ela estava sendo
punida pelo poder que usou tentando escapar? Esse era um tipo
diferente de silêncio do que antes. Isso era pior que o véu. Isso era o
vazio.
Se acalme, ela disse a si mesma. Descubra onde você está. Uma
dor aguda passou por ela enquanto o silêncio permanecia, os deuses
agora estavam mais do que fora de alcance, eles se viraram
completamente.
Talvez ela nunca mais ouvisse uma piada depois de fazer uma
oração errada. Ela se arrepiou. Não podia ser isso. Os deuses não
teriam a abandonado. Não por causa de algumas dúvidas, não por
ter beijado um herege – nem mesmo isso.
Roçando os dedos contra a placa que estava deitada, ela
estremeceu quando as partes delicadas de sua mão encontraram
unhas e cacos de vidro. Ela tentou se sentar, as bordas irregulares
cavando ainda mais na parte de trás de suas coxas. Seu vestido fino
estava em farrapos, o tecido grudando dolorosamente em suas
feridas.
Um gemido baixo e dolorido escapou de seus lábios enquanto ela
tentava sair da placa. Sua cabeça girou; ela tinha perdido muito
sangue.
Ela se moveu cautelosamente para fora da placa, estremecendo
quando suas pernas eram cortadas a cada movimento. Seus pés
pousaram em pedra fria, mas seus joelhos se dobraram no instante
em que ela tentou colocar peso neles. Ela reprimiu um choro,
batendo os dentes em um punho, a pele da sua mão se abrindo. O
calor do ferro encheu sua boca e ela tossiu, cuspindo sangue.
Ela se levantou do chão e tateou no escuro por uma saída, uma
porta, qualquer coisa. Mesmo se estivesse trancada, ela se sentiria
menos como se tivesse deixado de existir. Ela se tornou nada mais
que o sangue escorrendo pelo chão e uma dor cega.
Ela não pôde reprimir um suspiro de alívio quando sua mão
encontrou uma maçaneta. Ela o sacudiu, embora fosse inútil. Estava
bem apertado. Outra onda de pânico ameaçou arruiná-la. Ela estava
começando a ver coisas saindo da escuridão. Coisas com unhas no
lugar dos dentes e sorrisos de navalha.
Ela deu as costas para a escuridão e pressionou sua testa contra a
porta. A madeira estava fria e a permitiu se reorientar antes de
estender a mão para os deuses novamente.
A porta para os céus continuava fechada.
Angústia e uma raiva muito fluida para ser completamente
definida, vieram em ondas através dela, e ela queria gritar. Ela
alcançou as contas de oração que ela não tinha e encontrou somente
o colar de Kostya. Ela o puxou pela cabeça e o jogou do outro lado da
sala. Ela ouviu acertar a parede com um ruído metálico fraco.
— Isso não é justo! — Ela choramingou, para ninguém e para
nada, porque estava sozinha. Totalmente sozinha no reino de seus
inimigos. Seu melhor não importava.
— Só fiz o que pediram de mim. — Ela disse, sua voz fraca e
quebrada. Ela se recostou na porta e lentamente deslizou para o
chão, ignorando a agonia violenta que seguiu, o sangue que ela
ainda podia sentir escorrendo pela parte de trás das suas pernas.
O véu era desconfortável, sufocante, mas ela sempre podia ouvir
a voz de Marzenya se ela estendesse a mão. Isso era diferente. Isso
era de propósito, e não tinha nada a ver com as maquinações de
Tranavia.
Uma linha em um livro de história mencionaria, sem entusiasmo,
uma clériga que tentou salvar Kalyazin, mas só conseguiu o
abandono dos deuses. Não haveria canonização depois da morte
para Nadya, somente uma passagem silenciosa da clériga que
falhou.
Ela cerrou um punho, ignorando a dor, apenas para fazer mais
sangue escorrer por seu pulso de sua palma cortada.
Por favor, não deixe isso acabar aqui. Se ela chorasse com tudo
que restasse dentro dela ela conseguiria uma resposta? Ou ela seria
deixada com nada além das cinzas da única coisa que fez sua vida
valer a pena? Zhalyusta, Marzenya, eya kalyecti, eya otrecyalli,
holen milena.
Seu apelo ficou sem resposta. Nadya estava mergulhando em
desespero quando algo piscou no canto de sua visão. Nada mais do
que sua mente confusa pregando peças nela.
Mas a luz ficou mais forte. Nadya franziu o cenho e, lentamente,
rastejou para o outro lado da sala, os dedos se estendendo
cegamente até que se fecharam no colar de Kostya. A espiral no
centro estava emitindo uma luz fraca.
Alguns deuses exigem sangue.
Ela engoliu em seco. Pegando o pingente em seu punho, ela
deixou o sangue encharcar as cristas.
Ela o segurou perto de seu rosto, olhando para a luz suave quase
estranha.
— Você merece saber a verdade sobre os deuses que te
escolheram. — Nadya se assustou quando uma voz desconhecida
ecoou em sua cabeça. Estava falando a linguagem sagrada, e
geralmente ela não entendia a língua sem a benção dos deuses.
Nadya respirou fundo, atingida por uma súbita enxurrada de
imagens. A onda de dor que a atingiu quase a derrubou.
Criaturas com juntas nodosas como as espirais de uma árvore,
rostos envoltos em névoa, quatro olhos, seis, dez. Seres com olhos
nas pontas dos dedos, bocas nas juntas. Dentes de ferro, garras de
ferro, olhos de ferro.
Um após o outro, após o outro. Asas sinuosas, asas com penas
pretas como alcatrão. Olhos de luz, de escuridão. E sangue. Tanto
sangue.
Porque é isso. Sempre foi, sempre foi sangue.
Se sentindo enjoada, Nadya largou o colar. As imagens pararam.
Ela estava ofegante, lutando por ar.
Ela, tentativamente, estendeu a mão para a voz de novo, apenas
para encontrar silêncio. Ela não estava acostumada com silêncio em
sua mente. Quando ela pegou o colar novamente, ela foi cuidadosa
para não tocar as cristas em espiral, mas aparentemente, qualquer
contato era suficiente. Quando a prata fria tocou sua pele todos os
seus sentidos foram inundados por uma luz branca. Pureza com
riachos de sangue manchando tudo. Caiu em pequenas gotas, da
ponta de seus dedos, de seus braços. Não havia nada além de branco
ofuscante e sangue.
— O que é isso? O que você é?
— Importa?
Ela ficou surpresa quando a voz – excepcionalmente alta, como
tubos de junco – respondeu.
— Você é.… um dos deuses? — Havia deuses com quem ela nunca
tinha falado, esse era um deles?
Houve um longo silêncio, deixando Nadya suspensa no espaço
branco encharcado por sangue. Ela estava vagamente consciente
que sua dor era apenas um zumbido fraco agora. Cercava ela como
uma névoa, quase imperceptível.
Então:
— Há muito tempo, sim.
E há muito tempo essa resposta teria aterrorizado Nadya. Há
algumas semanas, a garota no mosteiro que acreditava totalmente
em seus deuses, em sua causa, teria olhado para isso com horror,
descrença. Ela teria descartado isso como magia herética,
alucinatória. Mas agora...
Agora ela tinha se permitido duvidar. Agora ela estava cansada.
Agora ela estava desamparada e abandonada. Ela se sentou,
cruzando suas pernas debaixo dela, consciente do chão molhado
com sangue embaixo dela. Não havia mais nada a fazer a não ser
esperar por respostas.
— Como alguém se torna algo que não é mais um deus?
— Como uma garota humana se torna algo divino e temido pelos
mesmos deuses que deram a ela o poder que ela exerce?
Nadya franziu o cenho, intrigada
— Acho que você está enganado.
— Erros não são coisas que eu geralmente cometo. — A voz
replicou.
— Onde estou? O que você quer? — O ser nunca respondeu sua
primeira questão, mas ela se conteve, perguntando novamente na
esperança de receber algumas respostas.
— Onde você está é tão irrelevante quanto é imaterial. O que eu
quero é melhor respondido pela pergunta sobre o que você quer.
— Posso ver você?
— Você não quer isso.
Nadya girou o pingente entre seus dedos. Veio junto com ela. Ela
esteve carregando esse ser em seu pescoço esse tempo todo? Onde
Kostya – dentre todas as pessoas – encontrou isso? Porque ele deu
a ela?
O que... ela queria?
— Você já tem. — A voz disse detrás ela. Quando ela se virou não
havia nada além do branco e do sangue. — Mas você não percebe.
Passou muito tempo sob o domínio do panteão e isso contaminou
sua compreensão.
— Contaminou? — Nadya perguntou, se sentindo enjoada. O que
quer isso fosse, o que quer que esse ser queria, só ia resultar em
mais perigo. Mas que opção ela tinha?
— Você acha que eles podem tirar seu poder de você?
Nadya ficou gelada.
— Eles podem. Eles me deram esse poder; eles podem tirá-lo de
acordo com a vontade deles.
— Isso é incorreto. — A voz soava divertida.
Nadya estremeceu. Sua visão turvou, mudando de volta para as
trevas antes de ser inundada com branco novamente.
— Nosso tempo juntos está se esgotando. Você deve fazer uma
escolha, passarinho. Você continua com as asas cortadas ou você
voa?
A escuridão voltou ao redor de Nadya – abrupta e severa –
quando o colar escorregou de suas mãos e a dor voltou sobre ela.
Vinte e Seis: Nadezhda Lapteva

Velyos é um deus mas não um deus. Ele é um era e um é e nunca


mais, nunca mais.
—O CÓDEX DO DIVINO, 50:118

Quando Nadya acordou, havia uma coceira em suas veias diferente


de qualquer coisa que ela já tenha sentido antes. Ela enfiou o colar
em seu bolso, cuidadosa para não encostar em sua pele, apesar de
que ele não brilhava mais. Se sangue acendia a conexão, ela teria
que ser especialmente cuidadosa para não tocar o pingente de novo,
já que ainda havia sangue escorregadio ao redor dela.
A coceira em suas veias ficou mais forte, e Nadya fechou os olhos.
Lembrando-se do poço de poder durante o ataque à igreja, quando
Marzenya lhe deu rédea solta de sua magia, ela tateou sua própria
mente, tentando achar aquele lugar novamente. Se o que a voz disse
era verdade, era dela para usar, e ela precisava encontrar.
Névoa agarrou-se a ela. Era como erguer uma cortina pesada. O
que ela achou do outro lado era branco e brilhante e poderoso.
Palavras da língua sagrada, diferente de qualquer coisa que ela já
ouviu. Magia pura e crua. Ela abriu os olhos e se levantou,
ignorando os protestos do seu corpo quando seus cortes reabriram,
sangue escorrendo. Pontos brancos de luz emanaram das pontas de
seus dedos e ela tocou a porta, desenhando símbolos com a mesma
facilidade de alguém que lançou magia dessa maneira a vida toda.
Ela sabia – intrinsecamente – como ela deveria usar esse poder,
como ela deveria transformar as palavras de uma língua imortal em
magia crua.
A porta quebrou diante de suas mãos. Ela pulou para trás,
estremecendo quando farpas perfuraram seu corpo já machucado.
Ela não conseguiria ficar consciente por muito mais tempo.
Não havia ninguém do lado de fora, e Nadya murchou de alívio
contra o batente da porta, se dando alguns momentos para respirar
através da dor e lampejos de tontura, antes dela colocar um pé na
frente do outro, e lentamente caminhar para a frente.
Ela virou a esquina e correu diretamente para alguém que vinha
pelo corredor. O poço de magia inundou suas mãos e ela reagiu sem
pensar, empurrando com seu poder. Ela viu o braço da figura se
erguer, sangue na sua palma. A magia dela errou inofensivamente,
desviada pelo poder do outro.
— Nadya?
Ela congelou, dando um passo para trás. Medo e alívio se
entrelaçaram em seu peito e ela queria fugir. Se os Abutres tivessem
Malachiasz de novo, eles poderiam usá-lo contra ela e ela não
poderia lutar contra ele. Não no estado que ela estava agora. Então,
ela correu.
Nadya estava cansada e machucada, e ele não precisou de
nenhum esforço para alcança-la. Ele agarrou o braço dela e a fez
parar. Vagamente, ela percebeu que estava tremendo. Ela o ouviu
soltar uma respiração baixa enquanto ele observava sua confusão de
feridas.
— Sou só eu. — Ele disse, gentilmente virando seu rosto para
encará-lo. — Fui ao seus aposentos. Parijahan não estava e o lugar
tinha sido revistado.
Sem máscara; estava amarrada em seu cinto. Era só ele. Cabelo
embaraçado e manchas escuras de exaustão sob seus olhos claros.
Ele estava aqui procurando por ela, não porque ele tinha sofrido
uma lavagem cerebral para matá-la. Ela soltou um longo suspiro
estremecido.
Ele olhou por cima de seu ombro. Ela levantou as mãos, as
encarando. O que ela tinha feito? O que era esse poder que ela
estava usando? Era uma blasfêmia; a porta nunca se reabriria para
ela, se ela continuasse assim. Quando ela levantou o olhar,
Malachiasz a estava observando com uma expressão hesitante no
rosto.
— Minha magia... — Ela começou.
Mas então ele ficou tenso, a cabeça girando rapidamente, e de
repente os pés dela estavam fora do chão e ele a arrastou pelo
corredor mais próximo até o que parecia ser um armário.
Estava escuro. Ela estava imediatamente hiper consciente do
quão próxima estava dele, o rosto contra seu peito. A respiração dele
arrepiou os cabelos macios na base do pescoço dela, enviando
arrepios por sua espinha. Ela podia sentir as mãos dele pairando
centímetros acima de sua cintura, claramente com medo de
repousá-las e colocá-las diretamente em algum lugar com uma
ferida aberta.
Passos ecoaram pelo corredor. Movimentos altos e rápidos.
Alguém descobriu que Nadya não estava onde ela deveria. Quando
as coisas ficaram quietas novamente, ele se moveu, pegando as
mãos dela, suas palmas para cima.
— Me mostre. — Ele disse suavemente.
Ela engoliu em seco. Se agarrou ao poço de magia que fluía muito
profundamente para ela entender. Luz branca acendeu como chama
fria em suas palmas.
Um meio sorriso estranho cintilou nos lábios dele, iluminado
pela magia brilhante nas mãos dela. Magia que era... dela? Ela não
sabia. Ela abriu a boca para perguntar a ele, porque ele saberia, mas
algo a impediu. Ela não entendia como ele sabia essas coisas sobre
magia; não queria ser influenciada pelo ponto de vista herético dele.
Mas...
E se ele estiver certo? Ele sempre pareceu ter certeza sobre ela,
sobre magia. Ela não entendia.
— As coisas que você pode fazer. — Ele sussurrou. Em seguida
tocou com as pontas dos dedos nos dela, e ela teve que engolir seu
coração, de onde estava alojado em sua garganta. Um olhar distante
apareceu em seus olhos, mas ele piscou e desapareceu. —
Precisamos sair daqui.
Ela assentiu. Teve um segundo, um tremor, onde ela queria se
quebrar em pedaços e chorar. Ela não iria – ela se recusou a quebrar
tão facilmente. Mas ela jogou seus braços ao redor dele, seus dedos
cravando nas costas dele, se entregando ao conforto de seu calor.
Ele soltou um suspiro assustado e sua mão se entrelaçou no
cabelo dela, embalando a parte de trás da sua cabeça.
— Estou feliz que está a salvo. — Ele sussurrou, os lábios macios
na sua têmpora. — Vamos levá-la a alguém que pode cuidar de seus
ferimentos.
Ela se afastou relutante. Ela estendeu a mão para os deuses
novamente enquanto ela estendia a mão para Malachiasz. Ele
entrelaçou seus dedos sem dizer nada.
E, de novo, dos deuses, ela encontrou apenas silêncio.
Nadya ergueu os olhos para a escada em caracol com apreensão.
A torre de vidro era linda, a luz brilhando através dos painéis. Tinha
mais degraus do que Nadya achou que poderia subir em seu estado
atual.
— Eu posso... — Malachiasz começou, mas rapidamente ficou em
silêncio quando Nadya ergueu a mão.
— Não vou ser carregada. — Ela disse.
— Não seria pro...
— Não ofereça de novo. — Mas a realidade da situação a atingiu e
ela apoiou a cabeça em seu ombro. Ela se sentia tonta, cada onda de
dor ameaçando derrubá-la.
A bruxa vivia no topo da escada em espiral. Aparentemente, ela
era a melhor aposta para ajudar Nadya. Malachiasz beijou
suavemente o topo da cabeça de Nadya.
— Tem certeza?
— Nem um pouco. — Ela murmurou. Ela estava com dor e
cansada, e não queria subir todos aqueles degraus diante dela.
Ela se endireitou, se afastando de Malachiasz e agarrando-se ao
corrimão enquanto começava a subir. Ele soltou um suspiro
frustrado atrás dela.
— Eu vivia no topo de sete mil escadas. — Ela disse. — O que são
mais algumas?
Sua cabeça girou e ela cambaleou para trás. Ela agarrou o
corrimão com força suficiente para que ela conseguisse girar de
modo que ela se sentasse em vez de cair escada abaixo.
Malachiasz encostou-se ao parapeito.
— Vai estar escrita nos livros de história, a história de uma clériga
Kalyazi, morta antes da hora, não por seus inimigos Tranavianos,
mas por causa de um lance de escadas.
Nadya soltou um gemido de dor. Os cortes se reabriram e sangue
começou a escorrer em suas costas.
— Eu te odeio.
— Eu ofereci ajuda.
Ela olhou para ele.
— Escrita nos livros de história, estará a história de um ex-Abutre
enlouquecido, assassinado, de uma maneira terrível, depois de fazer
muitos gracejos horríveis.
— Enlouquecido?
— Abominação é uma palavra muito tendenciosa. Você tem que
ser objetivo ao contar uma história.
— Isso não é nem remotamente verdade. Você vai ficar sentada aí
a noite toda? Alguém vai se perguntar onde estou.
Ela tinha quase certeza de que o mundo tinha começado a girar
ao redor dela, além de sua cabeça já tonta. Ela estendeu a mão na
frente dela e apertou os olhos. Ela estava vendo muitas mãos.
— Você está em choque, Nadya?
Ela semicerrou os olhos para ele.
— É isso que é? Você perde muito sangue e fica perfeitamente
bem. Eu perco muito sangue e fico em choque? Como isso é justo?
Ele riu. Ela sorriu através de sua névoa cheia com dor. Ela
gostava do som de sua risada. Ela estendeu as mãos para ele. Ele
pode, pelo menos, ajudá-la a se levantar.
Quando ela se levantou, tudo girou tão forte ao seu redor, que ela
só teve tempo de mudar de posição para que Malachiasz pudesse
segurá-la quando ela desmaiasse.
Nadya acordou pela terceira vez naquele dia, mas dessa vez ela
estava em uma espreguiçadeira que cheirava a mofo. Havia
bandagens firmemente enroladas em seu torso e em seus membros.
Seu vestido esfarrapado fora substituído por um simples de lã cinza.
Ela se sentou devagar, cada parte dela protestando.
— Ah, ela acordou. — Uma voz disse do outro lado da sala. — Que
bom, estava ficando estranho com esse Abutre aqui. Nunca gostei da
sua espécie.
Malachiasz fez um som de afronta.
Nadya esfregou seus olhos.
— Por quanto tempo fiquei desacordada?
— Não muito, não muito tempo.
A bruxa parecia estar na casa dos setenta. Seus olhos brilharam
com um brilho de ônix na penumbra da sala. Seu rosto era
enrugado, seus cachos brancos, mas com fios pretos.
Nadya encontrou os olhos de Malachiasz de onde ele estava
sentado do outro lado da sala. Ele sorriu levemente, mas parecia
preocupado.
— Sabe meu nome, criança? — A bruxa disse. — Porque eu sei o
seu, e isso não parece justo.
Nadya enrijeceu.
— C-como sabe meu nome?
Ela acenou com a mão.
— Meu nome é Pelageya, caso você não saiba. Eu sei o nome dele,
também. — Ela disse apontando o polegar na direção de Malachiasz.
— O que é a verdadeira façanha.
Malachiasz ficou tenso, mas não se mexeu de sua postura
aparentemente relaxada. Seu olhar ficou mais cauteloso enquanto
encarava a bruxa.
Nadya franziu o cenho, confusa.
— Faz muito tempo desde que estive em Kalyazin, mas reconheço
uma garota da neve e da floresta, mesmo com o toque de magia
sombria sob ela. E esse palácio esteve sem qualquer benção do
divino por tanto tempo, que você estava praticamente brilhando
quando entrou. Mas... — Ela parou, olhando atentamente para
Nadya. — Não há luz suficiente para te guiar agora.
Pelageya sorriu.
— E se eu prover alguma iluminação nesse caminho escuro? Você
veio ao lugar certo, apesar de estar surpresa que o seu Abutre te
trouxe aqui. Vou te contar uma história. — A bruxa prontamente se
sentou no chão. — Uma história sobre o nosso rei e um jovem
Abutre prodígio.
Nadya olhou para cima a tempo de ver os dedos de Malachiasz se
fecharem em um punho.
— Embora — ela considerou, puxando um cacho em espiral. — ele
não seja seu rei. Nem meu. Ele não é nem o rei de sterevyani bolen
agora, não é? É traição se todos nós aqui jurarmos por coroas
diferentes. Exceto... — seu olhar se estreitou para Malachiasz. —
Você não pode jurar por sua própria coroa, pode?
— Cuidado... — Ele murmurou. Ele flexionou a mão sobre o braço
da cadeira, as unhas de ferro brilhando na luz fraca das velas.
Pelageya sorriu.
— Veja, nosso rei Tranaviano se tornou um homem paranoico,
certo de que, como seu filho é um mago mais poderoso, isso vai
significar sua condenação. Então, ele precisa de mais poder, sempre
mais poder. E entre os Abutres, estava alguém que subiu na
hierarquia muito jovem. Mais inteligente que a maioria e muito
mais perigoso também, ele passava seu tempo com livros antigos e
tomos velhos e descobriu o segredo que o rei estava procurando.
Nadya sentiu um arrepio de pavor se instalar na boca do
estômago. Malachiasz apoiou o queixo na mão, ouvindo com
atenção.
— Então, ele ofereceu o segredo para o rei. Era apenas teoria,
claro, nada que poderia realmente ser feito. Mas a ideia estava lá e
esse Abutre talentoso queria que seu culto ficasse em termos
melhores com o rei Tranaviano. A rainha Abutre que governava
antes dele, fez um péssimo trabalho, veja. Ela reduziu a ordem
quase à insignificância, e esse Abutre talentoso queria que sua
ordem tivesse poder novamente. Ele queria uma parceria de iguais
entre as coroas. Talvez ele até quisesse algo em troca desse
presente, mas quem poderia dizer? Mas então, o rei pediu a ele para
realizar esta cerimônia teórica. Certamente, ele poderia fazer isso.
Ele era o sucesso final do seu culto, aquele cujo poder havia sido
torturado até um ponto mais alto do que até mesmo os Abutres
mais antigos haviam alcançado. Se havia alguém que pudesse fazer
isso, era ele.
Pelageya riu.
— Alguém que nunca teve consciência pode ter uma crise de
consciência?
Malachiasz se recostou na sua cadeira, seu olhar passando
rapidamente por Nadya e para longe novamente.
— O Abutre desapareceu. Poof! Estava lá uma noite, e se foi na
outra, deixando seu culto lutando em sua ausência. Porque os
Abutres precisavam de direção, eles precisavam de seu Abutre
Sombrio para liderá-los, e ele tinha sumido.
Nadya estava ouvindo à distância, se recusando a deixar as
palavras da bruxa a alcançarem, a se conectarem com tudo que ela
estava ouvindo, mas ela sabia, ela sabia. Teria sido tudo tão simples,
que Malachiasz fosse apenas um recruta Abutre, que ficou
assustado e fugiu. O mundo estava caindo debaixo dela e ela não
tinha nenhuma âncora, ela não tinha nada, porque nada era real.
Era Malachiasz. Sempre foi Malachiasz. O líder do culto, aquele
que colocou tudo isso em movimento, aquele que sorriu e encantou,
ganhando a confiança de Nadya, porque ele poderia fazer coisas
terríveis com o poder dela se ele tivesse acesso. Ela não estaria
sentada aqui com bandagens cobrindo seu corpo se não fosse por
Malachiasz.
— Mas ele fugiu? — Nadya perguntou. Se ela fingisse que a
pessoa sobre quem estavam falando não estivesse sentada bem na
frente delas, ouvindo em contemplação calma, talvez seria mais
fácil.
— Sim. — Pelageya disse. — Mas ele voltou. Acha que é
coincidência? Que esse garoto esperto e sua magia esperta
retornaram agora?
— Malachiasz? — Nadya disse, sua voz menor do que ela gostaria,
mais fraca. Ela desejou que ele olhasse para ela.
Ele parecia diferente, sentado na cadeira da bruxa de uma
maneira que parecia que estava em um trono. Seu cabelo preto
repartido do lado direito, caindo por seu ombro em ondas escuras,
seus olhos claros frios e vazios. Menos um garoto e mais um
monstro. Isso era tudo que ele era? O garoto bobo que sorria demais
e sentia muito intensamente, era apenas uma máscara para o
monstro embaixo?
Ela tinha caído em suas mentiras exatamente como ele queria?
Ele finalmente encontrou o olhar dela, seus olhos se suavizando,
ficando familiar.
— Está tudo bem, towy dżimyka. — Ele disse com a voz suave.
Não estava. Nem um pouco.
Pelageya riu.
— Isso deveria fazê-la se sentir melhor? — Ela se levantou,
caminhando em volta da cadeira de Malachiasz. — Isso deveria
ganhar sua confiança novamente? — Ela enganchou um dedo sob o
queixo dele, forçando seu olhar para o dela. Ela parecia jovem
novamente. Nadya não sabia quando a mudança tinha ocorrido, mas
ela sabia que a bruxa era uma força da natureza. Uma magia mais
velha e perigosa do que qualquer um dos dois possuía, pior ainda
pela sabedoria da sua idade. — O que você fez, Chelvyanik
Sterevyani? — Ela sussurrou. — O que você ainda fará? Não acho
que amor é uma força a ponto de impedi-lo. Não sei se você é capaz
disso.
Nadya fechou os olhos. Sua respiração engatou. Ela não ia chorar,
ela estava muito assustada para isso, muito abalada. Ela queria, no
entanto. Chorar como uma donzela da aldeia que teve seu coração
partido, não como uma garota tocada pelos deuses que se apaixonou
por um monstro e foi devorada. Isso era culpa dela. Ela ignorou os
sinais, ignorou até mesmo sua deusa. Agora era tarde demais. Agora
eles estavam aqui e seu coração foi compromissado e talvez isso
fosse um erro, talvez ele não estivesse mentindo, talvez ele tivesse
mudado, ele ia ajudá-los, e isso fosse só a bruxa tentando separá-los
para que tudo desse errado e Tranavia ganhasse a guerra.
— Só quero terminar o que comecei. — Malachiasz finalmente
disse.
Nadya sentiu seu coração bater mais forte com esperança, mas
ela a reprimiu. Ela queria confiar nele, desesperadamente, mas
como poderia?
Os olhos de Pelageya se estreitaram.
— Quão cuidadoso você é com as palavras, Veshyen Yaliknevo. —
Vossa Excelência.
— Não. — Ele disse, se afastando do toque dela.
— O quê? — Ela perguntou inocentemente. — Estou apenas
dando a você o respeito que merece. Você preferiria que eu usasse
seu nome?
Sua mandíbula cerrou.
— Foi o que eu pensei. Malachiasz Czechowicz. Tanto poder nesse
nome. Foi sábio da sua parte o esconder em Tranavia, mas então
você o entregou em Kalyazin. Ainda estou intrigada com isso,
certamente você sabia o que estava fazendo com aquele ato. Você
provou ser extremamente inteligente. — Ela parou para pensar,
fazendo uma cara de alegria quase louca. Foi perturbador. — Mas
isso não é sobre você, Veshyen Yaliknevo. Chelvyanik Sterevyani.
Sterevyani bolen. — Ela se sentou no braço de sua cadeira e ele se
moveu para o lado oposto, o mais longe possível dela. — Isso é sobre
o pequeno pedaço de divindade que você atraiu para as profundezas
de Tranavia.
Nadya levantou o queixo. Ela não iria deixá-los ver que ela estava
desmoronando.
— Ela te seguiu para muito, muito longe de casa. O que você disse
a ela para fazê-la chegar tão longe sem colocar uma lâmina em suas
costas?
Malachiasz murmurou alguma coisa que Nadya não ouviu.
Pelageya riu.
— Claro, claro. Sem cortar sua garganta, eu deveria ter dito. Agora
que você apontou, ela tem a aparência de uma garota que gosta de...
— Ela se inclinou e inclinou a cabeça de Malachiasz para trás
novamente, expondo sua garganta. O punho dele estava cerrado
sobre o braço da cadeira, as unhas agora longas o suficiente para
serem garras visíveis. — carne sensível.
Malachiasz respirou fundo.
— Nunca disse a ela nada que não fosse verdade. — Ele disse, a
voz cuidadosamente contida.
Pelageya olhou para Nadya. Para o quê, confirmação? Ela deu de
ombros.
— Aparentemente, estava tudo no que ele nunca se importou em
dizer, ou em como ele escolheu dizer. — Ela disse. Ainda é tudo
mentira.
Pelageya deslizou a mão pelo pescoço de Malachiasz.
— Eu não acho que você percebeu o que fez, Veshyen Yaliknevo.
Ele franziu a testa, olhando para Pelageya pela primeira vez.
— Oh, você acha que sim, porque você é tão inteligente, e todas as
peças se encaixaram de forma notável para você. — Ela roçou com a
ponta do dedo por um trio de contas douradas trançadas em seu
cabelo. Nadya estreitou os olhos; ela não lembrava de ter visto isso
antes. — O quanto você vai se arrepender disso?
— Nós vamos parar essa guerra. — Malachiasz disse calmamente.
— Não tem nada para se arrepender.
Pelageya sorriu afetada.
— Dasz polakienscki ja mawelczenko.
Nadya franziu a testa. As palavras eram em Tranaviano, mas ela
não tinha ideia do que qualquer uma delas significava. Claramente,
Malachiasz, entendia, seu rosto ficou pálido.
— Nie.
— Suponho que você vai descobrir.
— Acho que alguém deveria me explicar o que está acontecendo.
— Nadya disse devagar, finalmente reunindo coragem para falar. Ela
se sentia como uma criança. Muito jovem para entender o que
estava acontecendo. Suas palavras estavam girando fora de alcance
da sua cabeça. Agora era difícil acreditar que Malachiasz era apenas
um inverno mais velho que ela; havia trevas ao seu redor que o fazia
parecer muito mais velho e mais terrível. Ela odiava isso e não ia
deixar que fizessem isso com ela. Ela não seria usada, não por
Malachiasz, não por essa bruxa.
Pelageya olhou para Malachiasz. Relutantemente ele devolveu o
olhar e acenou com a mão; subitamente o gesto que parecia tão
benigno antes agora parecia desconfortavelmente imperioso.
— Certamente. — Ele disse. — Ela vai me matar em breve e estou
fascinado com o que tem a dizer.
A condescendência, no entanto, fazia mais sentido agora.
— Não, na verdade, estou mais interessada na sua desculpa. — Ela
disse. Ela desejava que sua voz não tremesse. Ela desejava que ela
pudesse encarar isso sem sentir como se algo estivesse sendo
arrancado dela.
A bruxa sorriu e a expressão dele ficou esgotada. Ele olhou para
Pelageya novamente, claramente hesitante em falar na frente dela.
— Por que você está aqui, Malachiasz?
— Eu disse a você. Minha razão não mudou só porque você sabe
quem eu sou agora. Eu quero salvar meu país. Sou uma das poucas
pessoas que pode; certamente você entende isso.
Ele não estava dando nada a ela, menos que nada.
— Não acredito em você. — Ela disse suavemente.
Pelageya correu uma mão pelo cabelo de Malachiasz. Ele parecia
que estava prestes a arrancar o braço dela.
— Você é jovem, sterevyani bolen. — Ela disse. — Como você
saberia que o seu coração ainda bate no peito depois do que foi feito
com você?
Ele rosnou, afastando a mão dela e se levantando em um
movimento rápido e perigoso.
— Não zombe de mim, bruxa.
Pelageya levantou uma sobrancelha, lábios se torcendo em um
sorriso lento. Então, sua atenção estava de volta a Nadya.
Nadya, que não sabia como ainda estava aguentando depois disso.
Nadya, que não conseguia parar de olhar para Malachiasz, incapaz
de conciliar que o menino com quem ela trocou piadas, que ela
beijou, era um símbolo da heresia Tranaviana. Um monstro maior
do que todos os outros.
Ela temia os Abutres mais do que ela temia os nobres
Tranavianos. Ela temia o Abutre Sombrio mais do que ela temia o
rei Tranaviano. Não fazia sentido. Que o garoto bobo e ansioso,
sentava em um trono construído com ossos de milhares de pessoas.
Tolamente, ela percebeu que suas mãos estavam tremendo. A sala
estava muito fria. Tudo estava errado, o mundo mudou para um
ângulo desconhecido e traiçoeiro.
Ela pensou que sabia o que estava fazendo, vindo aqui, mas agora
ela estava em um país estrangeiro, cercada por seus inimigos, e o
único em que ela tinha ancorado sua segurança estava mentindo
para ela desde o começo.
Nadya puxou o colar de Kostya do seu bolso, o estendendo para
Pelageya.
— O que é isso?
— Um receptáculo, uma câmara, uma armadilha. — Ela disse. —
Velyos está dentro. Ele deu seu nome? Não, ele gosta de ser
misterioso. Mistério é algo mais atraente para alguém divino.
Nadya fechou os olhos. Ela não entendia o que estava
acontecendo.
— Você já ouviu falar dele? Suponho que não. O véu se levantou,
Velyos se separou. Os deuses provavelmente ficaram aliviados, mas
agora ele está aqui de novo. Você não pode sentir o toque dos seus
deuses porque o rei está mandando magia de sangue em ondas ao
redor de Tranavia. Por que você acha que ele sequestrou adoráveis
jovens magas de sangue para extrair seu poder? Ele cortou qualquer
acesso ao divino em reparação para seu objetivo final. Tem sido
construída por anos em Tranavia, esse véu, essas trevas.
Um arrepio percorreu Nadya com força suficiente para congelar
sua pele. Seu objetivo final, alguma teoria que Malachiasz proveu a
ele. Poder.
— O véu não é o problema. — Murmurou Malachiasz.
Pelageya ignorou ele.
— Mas, veja, seu mundo te ensinou que há apenas duas coisas. —
Pelageya disse. Ela deslizou para fora do braço da cadeira até que ela
estava recostada de lado na cadeira que Malachiasz estava sentado
antes.
Ele se recostou na lareira, braços cruzados no peito.
— Tem a sua magia, que é a boa, claro. E a magia deles. Magia de
sangue. Heresia.
— É só magia. — Malachiasz disse.
— Não acho que ela queira ouvir isso de você.
Nadya olhou para ele. Não tinha sido isso que ele tentou mostrar
a ela desde que se conheceram? Não tinha sido esse seu objetivo
quando eles estavam no santuário à beira da estrada? Ele estava
tentando dar a ela alguma forma de liberdade – sua forma de
liberdade – e até agora ela estava considerando isso, hesitando.
— Mas então, tem a minha magia, exceto que uma bruxa é apenas
uma garota que percebeu que seu poder é dela mesma. Então,
talvez, ainda haja algo mais.
Nadya forçou suas mãos a ficarem paradas antes de se
estenderem as contas de oração que ela não tinha.
— O que você está dizendo? — Ela sussurrou. Mas ela não queria
saber. Ela não estava pronta para se entregar, não estava pronta para
se afastar de seus deuses. Ela não queria isso.
Ela estendeu sua mão à frente dela e pequenas chamas se
acenderam nas pontas de seus dedos.
— Isso é errado.
— Isso é magia.
Nadya balançou a cabeça.
— Você está aqui para matar um rei e mudar o mundo. —
Pelageya disse. — Um, é claro, se seguirá ao outro. Como você achou
que faria isso? Como você vai encarar o fato de que seu Chelvyanik
Sterevyani não controla mais seu culto como antes?
A mandíbula de Malachiasz se apertou. Nadya se sentiu quase
aliviada. A bruxa disse isso para semear mais discórdia, mas se ele
não tinha mais total controle sob os Abutres, então talvez
significasse que ele estava mesmo os ajudando? Ela não deve ter
esperança. Ela odiava estar tão esperançosa.
— Você está arrastando isso apenas para nos insultar e dizer que
nosso objetivo é impossível? — Malachiasz perguntou.
Nós. Nosso. Ela olhou para ele assim como ele olhou para ela. Ela
estava em mil pedaços quebrados e não sabia o que fazer.
Não, ela sabia. Era um jogo que ela podia jogar perfeitamente. Ela
manteria distância, deixar ele pensar que tinha se livrado, e então
ela conseguiria suas respostas.
— Claro. Um pouco. Mas também para ajudar, porque você
precisa de ajuda.
Uma súbita batida na porta fez os três pararem. Então uma voz,
terrivelmente familiar, veio do lado de fora.
— Pelageya? Preciso falar com você.
É claro que seria o príncipe.
Vinte e Sete: Serefin Meleski

Svoyatovi Klavdiy Gusin: um clérigo de Bozetjeh, Svoyatovi


Klavdiy Gusin era um mestre do tempo, dobrando-o à sua vontade.
Até que um dia ele desapareceu e nunca mais se ouviu falar dele,
seu corpo nunca foi encontrado.
—O LIVRO DOS SANTOS DE VASILIEV

Ouviu-se um barulho de dentro da sala enquanto Serefin esperava


com Ostyia e Kacper. Ele podia ouvir vozes abafadas falando umas
com as outras antes que a porta se abrisse.
— Se for um momento ruim, eu posso... — Ele se interrompeu.
Em primeiro lugar, porque ele percebeu que, mesmo se fosse um
momento ruim, ele não poderia esperar e nem voltar. Não havia
tempo. Em segundo lugar, porque a porta foi aberta por alguém que
ele pensou que nunca veria novamente.
— Malachiasz?
O garoto do outro lado da porta piscou, surpreso, algo indefinível
piscando em suas feições. Serefin percebeu imediatamente que
Malachiasz não o reconhecia da mesma maneira.
Seu primo tinha desaparecido quando eram crianças. Ele nunca
pensou que o veria de novo; sua tia agia como se ele estivesse
morto, então Serefin presumiu que algum acidente aconteceu com
ele, o qual a família não falava sobre. Mas o menino magro
encostado na porta dos aposentos da bruxa, era a versão de dezoito
anos do garoto selvagem com quem Serefin brincava quando
criança.
— Vossa.... Excelência? — Ostyia disse, obviamente tentando
preencher o espaço estranho que havia surgido entre os garotos.
Malachiasz levantou as sobrancelhas.
— Sim?
— Isso é inesperado.
Serefin sentiu seu estômago embrulhar quando Malachiasz
respondeu ao título honorífico do Abutre Sombrio com um sorriso
de dentes afiados. Como pode ser ele?
Malachiasz se afastou do batente da porta e piscou para Serefin.
— Minha segunda em comando me informou que você estava
perguntando sobre minha saúde. Na verdade, estou emocionado.
— Que enredo está se revelando! — Serefin reconheceu a voz de
Pelageya. — Saia do caminho, sterevyani bolen, deixe seu príncipe
entrar.
— Ele pode ser meu príncipe se seu pai não é meu rei? —
Malachiasz perguntou. — Já que isso era tão importante para você
um momento atrás.
Mas ele abriu mais a porta, lançando a Serefin outro olhar
estranho enquanto ele dava um passo para trás. Józefina estava
sentada em uma espreguiçadeira perto do fogo. Sangue manchava
suas mãos e seu rosto.
Uma sensação de mal estar se instalou no estômago de Serefin.
Ele deveria tê-la acompanhado até seus aposentos; ele não deveria
tê-la deixado sozinha. Os Abutres devem tê-la levado no minuto em
que ele deu as costas.
Malachiasz deu um passo em direção à ela, mas recebeu um olhar
gelado que o fez desviar e acabou se recostando contra a lareira. Ela
puxou os joelhos até o queixo, finalmente encontrando o olhar de
Serefin. Ela deu a ele um sorriso hesitante.
— Józefina, pensei... — Serefin se interrompeu. — Estou feliz por
vê-la bem.
— Ela estava em um estado lamentável quando a encontrei, você
sabe alguma coisa sobre isso? — Malachiasz perguntou. Ele inclinou
a cabeça, esperando pela resposta de Serefin.
Ele está me provocando? Serefin pensou, confuso. Ele não me
conhece. Algo deu um nó em seu peito. O incomodava que esse
garoto – seu primo – não o conhecia, que ele apenas o conhecia
como o Príncipe Herdeiro petulante.
Serefin podia sentir uma dor de cabeça se formando atrás de seus
olhos. Ele estava tão cansado. Ele desabou em uma cadeira vazia,
indiferente à imagem quebrada de si mesmo que ele estava
mostrando ao Abutre. Ele poderia escolher uma briga em outra data
se ele sobrevivesse a isso.
— Vossa Alteza não parece bem. — Pelageya notou.
— Sua Alteza está em um estado perpétuo de "mal estar" desde
que ele voltou à Tranavia. — Serefin murmurou. — O que ele está
fazendo aqui? — Ele apontou para Malachiasz.
— Sabe, estava me perguntando a mesma coisa. Infelizmente,
para todos nós, ele está tão envolvido nessa bagunça quanto o resto
de vocês. — Pelageya disse. — Acho até que estão todos trabalhando
para o mesmo objetivo, o que seria uma novidade agora, não é?
Pelageya ficou de pé no centro da sala, mãos na cintura, enquanto
examinava devagar o grupo. Ela franziu a testa para Ostyia e Kacper.
— Tropeçando em um escuro tão denso, que você não pode ver
sua mão na frente do rosto. Eu sei, eu sei. Eu estive observando
todos vocês enquanto cambaleiam em direção a um fim semelhante,
mas nenhum de vocês parece saber para onde estão indo. Vocês
estão perto, planejaram bem, mas o rei tem olhos, o rei tem ouvidos,
o rei sabe.
Serefin se endireitou. Józefina parecia perturbada.
— Do que você está falando, bruxa? — Ostyia perguntou.
— Vocês. Querem. Matar. O. Rei. — Cada palavra era enfatizada
por Pelageya, erguendo um de seus dedos ossudos de seu punho.
Ela estendeu as mãos, mostrando cinco dedos, e sorriu. — Todos
vocês querem! Oh, como nosso rei Tranaviano é odiado. Eu me
pergunto, entretanto, de verdade, vocês voltarão sua atenção para o
czar Kalyazi depois? Ou isso é um plano de assassinato de apenas
um governante?
Ninguém falou. Tensão caía pesada pela sala.
— A garota, o monstro e o príncipe. — Pelageya disse com um
risadinha maliciosa. — E aqui estão, todos vocês.
Serefin levantou a cabeça. Havia mais coisa nessa profecia. Ele
não perdeu a carranca do Abutre ou o olhar intrigado de Józefina.
— Estão faltando alguns. — Pelageya murmurou, balançando
sobre os calcanhares. — Mas... — ela deu de ombros. — a parte deles
virá mais tarde, ou nunca, porque se todos vocês falharem, nenhum
de vocês sobreviverá! Quero saber, de verdade, se vocês têm um
plano para esse golpe? Como vocês impedirão os nobres de se
revoltarem? Como impedirá que os Kalyazi invadam Grazyk? Ou,
que os deuses proíbam, as Minas de Sal?
— O trono é meu. — Serefin disse.
O cenho do Abutre se aprofundou à menção das Minas de Sal.
Serefin manteve um olhar cuidadoso nele enquanto Pelageya falava.
Ele não gostava do fato de que ele estava aqui, não fazia sentido.
— Se o trono ainda existir depois de tudo isso. — Malachiasz
murmurou.
— O seu trono provavelmente não vai. — Serefin disse.
— Eu não preciso do meu trono. É um símbolo meio vazio. Poder
é poder.
Józefina ficou muito quieta, seu rosto ficou mais pálido, quase
mortal. Ela deu um olhar horrorizado para Malachiasz antes de
fechar os olhos e pressionar sua testa nos joelhos.
— Quero todos vocês na mesma página, meus pequenos
revolucionários, porque acho que vocês deixarão essa sala, agindo
baseados em um único plano.
— E vai ser uma bruxa louca que vai criá-lo? — Serefin
perguntou.
— Ah, mas você veio aqui buscando conselho, príncipe, porque
você está desesperado com um plano que sabe que irá falhar.
Serefin franziu o cenho e se recostou na cadeira, suspirando. Ele
não sabia porque o Abutre Sombrio ou Józefina estavam aqui. Ele
não sabia o que eles sabiam ou porque estavam – aparentemente –
agindo com o mesmo objetivo que ele. Ele não sabia e não ligava. Se
isso o levasse ao fim, ele trabalharia com qualquer pessoa.
— O que você quer que façamos?
Pelageya riu, juntando suas mãos.
— Ah, isso é um sonho se tornando realidade. O que eu quero que
vocês façam?
— Seja razoável, bruxa. — Malachiasz disse, cansado.
Józefina ainda não tinha abrido os olhos nem levantado a cabeça.
Pelageya se sentou no chão no centro da sala, suas saias
formando um arco amplo ao seu redor. Ela repassou – batendo com
os dedos – todos os detalhes que vieram à tona nas últimas
semanas. A maioria Serefin conhecia, alguns não.
Mas essas eram coisas que ele mal acreditou: intervenção do
divino, magia de sangue sendo usada para bloquear o paraíso, que
foi o Abutre Sombrio que desertou. O último explicava algumas
coisas, mas não o suficiente.
— Então, o que faremos? — Ostyia finalmente explodiu.
Pelageya olhou para ela antes de desviar o olhar com desdém.
Ostyia não fazia parte da profecia louca da bruxa, então ela não era
digna de seu tempo. Porém, Serefin queria saber a resposta. O que
eles fariam? Se seu plano estava fadado ao fracasso, e
aparentemente, ele iria trabalhar com o Abutre Sombrio? O mesmo
Abutre Sombrio que retornou ao seu culto. Seu culto, que esteve
sussurrando no ouvido de seu pai.
— O que você ganha com a morte do meu pai? — Serefin
perguntou à Józefina.
Seus olhos escuros estavam impassíveis.
— Eu quero terminar a guerra.
— E matar meu pai fará isso? Por que não matar o czar Kalyazi?
Tranavia está ganhando, porque não deixar a guerra acabar
naturalmente?
Suas sobrancelhas se franziram e ela mordiscou os lábios.
— E por que você quer matar seu pai, Serefin? Ele é seu pai e você
não parece particularmente sedento pelo trono.
Ela está evitando, Serefin pensou.
— Oh, mas o rei precisa de um último elemento para seu grande
feitiço! — Pelageya disse antes que Serefin pudesse responder. — O
sangue do seu filho primogênito o levará do nosso reino mortal para
um significativamente mais alto.
Józefina empalideceu. Ela demorou um segundo para se
recuperar.
— Então, como matamos ele? Quando matamos ele?
— Quando ele achar que venceu. — Serefin murmurou.
Malachiasz sorriu.
— Bem, é aí que você precisa de mim.
Os olhos de Serefin se estreitaram.
— O rei não sabe que estou em Grazyk. — Malachiasz disse.
— Sim, mas todos nós sabemos que seus Abutres caíram aos
pedaços em sua ausência. — Kacper disse.
Malachiasz enrijeceu. Józefina lançou a ele um olhar curioso.
— Alguns querem me ver fora do trono. — Ele disse. — Como isso
é incomum?
— Porque os Abutres não podem agir contra seu líder?
— Magia é imperfeita, tenente. — Malachiasz disse. — Como você
acha que me tornei rei? Łucja ocupou o trono por quarenta anos
antes de eu desafiá-la.
Mesmo assim, Serefin não sabia que os Abutres estavam mesmos
separados. Fazia sentido agora que a Abutre Carmesim veio vê-lo,
mesmo enquanto os outros agiam como os guardas pessoais do pai.
No entanto, ele não podia se preocupar em unir o culto.
— Os Abutres que plantaram essa semente em meu pai, que deu a
ele essa ideia. Foi você? Faz todo o sentido que você seja o mestre
de marionetes aqui.
Józefina parecia doente.
— Isso é totalmente minha culpa. — Malachiasz disse.
Serefin recuou como se Malachiasz o tivesse atingido. Isso se
tornou uma grande bagunça de família, ele pensou.
Józefina se levantou, estremecendo ao fazê-lo. Ela lentamente
caminhou pela sala, andando mancando. O que aconteceu com ela?
Ela preguiçosamente balançou um pingente de prata entre seus
dedos.
— O rei não vai querer... prosseguir sem sua presença, não é? —
Ela perguntou a Malachiasz.
— Se ele acha que pode fazer isso sozinho, está extremamente
confiante em suas habilidades medíocres. — Malachiasz disse.
Serefin bufou suavemente.
— É isso que está no centro de tudo, não é? É só poder.
— Não é sempre? — Malachiasz perguntou.
Józefina olhou entre os dois, olhos se estreitando.
— Tudo bem. — Ela disse suavemente. — É seguro assumir que a
Rawalyk foi ignorada em favor de coletar participantes para usar
seu sangue. — Ela fez uma careta, esfregando seu antebraço, e
Serefin percebeu o que havia acontecido com ela.
Sangue e osso.
— Eu diria que ele vai agir em breve. — Serefin disse. — Gostaria
de evitar que ele chegasse na parte que ele me mata? Se possível?
Um meio sorriso cansado apareceu nos lábios de Józefina.
— Diga a ele que você pode fazer isso sem Serefin. — Ela disse
para Malachiasz.
Ele ergueu uma sobrancelha.
— Você quer que eu vá ao rei?
Ela sustentou seu olhar por um longo tempo, algo perigoso
faiscando no ar entre os dois.
— Se não, então precisamos reavaliar nosso acordo. — Ela disse.
Havia aço em sua voz.
Ele parecia como se ela tivesse dado um tapa nele.
— Entendi. — Ele disse, a voz tensa.
Ela se virou para Pelageya, que sorriu.
— Tensão nas hierarquias, que excitante. Agora que estão no
caminho certo, só precisam de um pouco de drama.
Vinte e Oito: Nadezhda Lapteva

Svoyatova Alevtina Polacheva: uma clériga de Marzenya, ela era


uma assassina que parecia ser mais habilidosa na arte de matar do
que na arte da magia. Ela perdeu sua vida em uma missão em
Tranavia, morta por magos de sangue heréticos.
—O LIVRO DOS SANTOS DE VASILIEV

— Preciso falar com on yaliknevi por um momento. — Nadya disse


aos outros, ignorando o breve lampejo de agonia que passou pelo
rosto de Malachiasz quando ela usou seu maldito título honroso.
O que Nadya sempre tinha em seu favor, era o elemento da
surpresa. Quando ela prendeu Malachiasz no parapeito das escadas
da torre de vidro, ele parecia genuinamente chocado.
— Nadya, por favor. — Ele disse com os dentes cerrados quando
ela enganchou sua perna em volta da dele para tornar mais fácil
derrubá-lo para o lado se ela quisesse.
— Você alguma vez já me disse a verdade? — Ela podia sentir seu
poder girando em suas veias e era um pensamento assustador que
ela podia tão facilmente usá-lo nele agora. — Como o príncipe te
reconheceu?
— Como ele sabia meu nome, eu não faço ideia. — Malachiasz
disse. Ele lutou contra ela, mas depois de perceber que era inútil, ele
relaxou, deixando sua cabeça cair para trás. Ele se pendurou,
curvando-se de costas no parapeito, um pé e uma mão de Nadya
segurando sua camisa era tudo o que o impedia de cair. — Foi o seu
feitiço que deixou a brecha para aqueles que não fossem nossos
inimigos pudessem me ver.
— Então o príncipe virou nosso aliado? — Nadya perguntou,
incrédula.
— Talvez. Mas não é por isso que você está brava comigo.
Ela o empurrou um pouco mais. Seu pé no chão deslizou e ele se
sacudiu, as mãos lutando para segurar a grade.
— Você mentiu para mim. — Ela disse com os dentes cerrados. —
Você me fez acreditar que não era nada além de um garoto,
assustado e perdido, quando você era o pior deles o tempo todo.
Ele suspirou profundamente.
— Sim.
— Por quê? — Sua voz falhou. Ela odiava que ele pudesse afetá-la
assim.
— Porque estou com medo e perdido. — Ele murmurou. — E
acontece, que sou o pior deles. Nadya, por favor, me deixe levantar.
— Seu tom era cansado. — Aprecio a ameaça, mas eu sobreviveria a
essa queda. Você se saiu melhor na última vez.
Ela deu um passo para trás, permitindo que ele se endireitasse,
antes de socá-lo no rosto.
Ele cambaleou para trás contra o parapeito novamente, rindo
enquanto limpava o sangue do nariz sangrando.
— Eu mereci isso.
— Você merece mais do que isso. — Nadya disse. — Eu deveria ter
deixado você cair.
Ele olhou para baixo, considerando a queda. Ela balançou a
cabeça, olhou para a porta, então começou a descer as escadas. Ela
precisava falar com ele em algum lugar com menos chances do
príncipe escutá-los. Ele estava em silêncio, seguindo atrás dela até
que eles chegaram no fim das escadas. Nadya agarrou a maçaneta, e
foi quando ele finalmente falou.
— Nadya, não tinha outro jeito.
Era a vez dela de ficar em silêncio. Ela se moveu para abrir a
porta, mas a mão dele pousou sobre a dela. Ela estava muito ciente
do seu corpo perto do dela, o calor dele em suas costas.
— Monstros são reais e eu sou o rei deles. — A voz dele era baixa,
um sussurro, seus lábios roçando a concha da orelha dela. — Nós
dois sabemos que mentir era o único jeito de ganhar sua confiança.
Ela queria empurrá-lo para longe; ela o queria mais perto. Esse
sempre pareceu o ponto crucial. Ela não sabia o que queria. Por que
a revelação não cortou o que quer que a estivesse prendendo a esse
garoto? Por que ela estava se inclinando para perto dele?
— A minha confiança era tão essencial?
— Nadezhda Lapteva... — A mão dele deslizou pelo braço dela. Ela
sentiu a sua outra mão na cintura dela. Ouvir seu nome completo
com o sotaque Tranaviano a fez estremecer. — Mais do que você
imagina, towy dżimyka.
Ela soltou um suspiro trêmulo. A mão dele deslizou pelo pescoço
dela, inclinando a cabeça para trás. Seus lábios se pressionaram em
sua garganta, faíscas acendendo sob seu toque.
Sua determinação estava lutando uma batalha perdida. Se rendeu
quando ele levantou a cabeça e beijou o canto da sua boca.
— Isso não é justo. — Ela murmurou quando ele a virou e a
pressionou contra a porta. — Isso é jogar sujo.
— Não vou mentir para você, Nadya. — Ele disse, um sorriso
curvando seus lábios com ironia. — Eu jogo sujo.
Então suas mãos traidoras e heréticas a traíram quando ela as
estendeu e as prendeu em seu cabelo, puxando seu rosto para o dela
e beijando-o. Porque ela estava brava com ele, furiosa com suas
mentiras, mas nem a raiva era suficiente para acalmar a queimação
que ela sentia quando ele estava perto; o calor que se espalhou por
seus nervos quando ele a tocou.
Ele fez um pequeno som surpreso contra sua boca, suas mãos
puxando-a para mais perto. Seus quadris se pressionaram contra
ela, a mão puxando seu cabelo para puxar seu rosto para ele. Ela
arqueou as costas contra a parede, deixando seu corpo se encaixar
no dele até que não houvesse mais espaço e fossem apenas eles,
somente eles, e o calor de seu corpo e a pressão da sua boca.
Apesar de todas as suas mentiras, conspirações e perigos que ele
trouxe para o plano mal feito que tinham, ela o tinha além disso, ela
percebeu. Esse rei monstruoso que se desfazia com um toque dos
lábios dela.
Ela só teve bom senso o suficiente para guardar essa informação
antes dele beijá-la mais forte, mais profundo, deslizando seu joelho
entre as pernas dela, e cada pensamento sensato que ela tinha, fugiu
de sua mente.
Quando eles finalmente se separaram, Nadya soltou uma risada
sem fôlego enquanto olhava para os arco-íris brilhantes lançados
pela torre.
— Você vai encontrar Parijahan e Rashid. Não sei o que aconteceu
com eles depois que fui levada e estou preocupada. — Ela disse.
Ele assentiu.
Ela pegou seu queixo com sua mão, direcionando seu olhar para
o dela.
— Me prove com algo além de palavras que eu não deveria te
matar pelo que você é. — Ela sussurrou.
Mas mesmo agora, ela não sabia se poderia fazer o que precisava
ser feito.
— Vá para a catedral quando você terminar aqui. — Ele disse. —
Nenhum dos Abutres vão te causar problemas.
Ela sentiu um arrepio de pavor, mas assentiu.
— Os outros sabem sobre você?
— Sim.
Todos eles esconderam isso de mim. Cada um deles.
— Nadya... — Ele começou, mas ela acenou para ele se afastar e
caminhou em direção às escadas.
— Vá. — Ela disse. — Falo com você mais tarde. — Uma ameaça
oculta, uma promessa, uma declaração de que isso não tinha
terminado, e ela não iria deixar ele dominá-la com seu charme.
Ele hesitou, e sua hesitação não fez nada além de quebrar Nadya
ainda mais. Ela não sabia o que fazer e também não tinha seus
deuses para guiá-la. Ela odiava se sentir perdida, traída e quebrada.
No fim das contas, não importava. Ela veio aqui parar uma
guerra, para trazer justiça para seus deuses, para trazê-los de volta.
Seu coração não era um fator, não importa o quanto foi torcido e
dilacerado no processo.
Ela voltou para os aposentos de Pelageya, se preparando para as
perguntas que Serefin certamente teria, que ela não tinha certeza se
poderia responder. Ele ainda pensava que ela era uma nobre
Tranaviana. Não fazia sentido que ele reconheceu Malachiasz, mas
havia algo mais, algo ali. Ambos tinham os mesmos olhos pálidos e
gelados, e provavelmente não era nada, uma coincidência peculiar,
mas ainda assim...
Provavelmente era algo que não importava. Nadya abriu a porta e
encontrou Serefin sussurrando ferozmente com Ostyia. Os dois
pararam quando ela entrou.
— Para onde Malachiasz foi? — Serefin perguntou.
— Nós viemos para cá com companheiros que não foram vistos
desde que fui sequestrada.
Serefin estremeceu. Nadya deixou um pouco do seu tom gelado
acalmar. Ele estava lutando pela mesma coisa que eles, embora de
uma forma indireta. Ela não sabia como ele se sentia sobre a guerra,
mas ele falou sobre isso de uma forma cansativa no jantar na noite
anterior.
— Sinto muito. — Ele disse suavemente. — Eu não sabia que
todos vocês estavam correndo perigo também.
— Mas você sabia que algo estava acontecendo?
— Pensei que o foco dele estava somente em mim.
Ela assentiu.
— É por isso que você está disposto a matá-lo? Porque é ele ou
você?
— Isso, e você viu Tranavia, você viu o que a sua obsessão com
poder e essa guerra fizeram com o país.
Ela viu. Ela viu pobreza e sofrimento, assim como em Kalyazin.
Isso não podia continuar, eles não conseguiriam sustentar por
muito mais tempo.
— Você confia nele? — Serefin perguntou. — No Abutre Sombrio?
Eu não sabia que ele era isso, ela pensou, então a resposta é
muito complicada para pôr em palavras.
— Acho que é seguro mantê-lo por perto. — Nadya disse, algo que
ela estava claramente fazendo; seus lábios ainda pareciam
machucados pelos beijos dele. — Mas também acredito que ele vai
nos ajudar.
— Não faz sentido para mim. — Ostyia murmurou.
Nadya deu de ombros.
— Isso é culpa dele. — Somente dizer isso doía. — Parece lógico
achar que ele quer reparar isso.
— Será o suficiente? — Kacper refletiu.
Serefin franziu a testa. Ele parecia horrível, olheiras escuras
embaixo dos olhos pálidos, seu cabelo marrom parecia sujo.
— E se trouxermos uma variável diferente? — Nadya disse
suavemente, formulando um plano. — E se fizermos seu pai vir até
nós?
Serefin levantou a cabeça, encontrando seus olhos. Tão
desesperado, completamente sem esperança. Ele realmente não
achava que seu pai podia ser parado, isso estava claro. Uma pontada
a atingiu como uma faca. Ela estava mentindo para ele também. Ela
descobriu que o príncipe não era um monstro como ela sempre
achou que ele fosse, e o garoto por quem ela estava se apaixonando
era pior do que ela poderia ter imaginado. E ela estava mentindo
para os dois para ver seus próprios objetivos se concretizarem.
Mas ela não podia contar a verdade para Serefin. Ela não podia
arriscar que ele se virasse contra ela antes disso acabar.
— O atraia para a catedral, ele vai achar que é porque Malachiasz
está pronto para essa cerimônia ou seja o que for, o deixe em uma
posição onde ele ache que vai conseguir tudo...
— E então, tire isso dele. — Serefin murmurou.
Ela assentiu.
Esperança tremeluziu em seus olhos, e ele sorriu.
Ele mandou Kacper e Ostyia se prepararem e se ofereceu para
acompanhar Nadya de volta ao seus aposentos. Ela deveria ir para a
catedral, mas ela suspeitava que Serefin estaria menos disposto a ir
lá, então ela aceitou. Apenas para conhecer um pouco mais desse
príncipe, antes de tomar uma decisão sobre o que fazer com ele.
Marzenya falaria para ela matá-lo, que toda a família real fosse
para o inferno, e começar Tranavia de novo com outra dinastia.
Marzenya também diria para Nadya massacrar Malachiasz
imediatamente. Ela não queria fazer nada disso. Ela não sabia o que
isso significava sobre o que ela era. Ela nunca vacilou em sua fé
assim, indo tão voluntariamente contra o que seus deuses
decretaram.
Malachiasz escondeu o que ele era dela, mas ela estaria morta se
não fosse por ele, e ela não podia mais negar que seu fascínio havia
se transformando em ternura, que nem mesmo suas mentiras
conseguiram macular.
Serefin era inteligente e surpreendentemente atencioso. Ela tinha
ouvido a conversa dos slavhki na corte; nenhum deles pensavam
que a guerra era mais que uma inconveniência. Eles não ligavam
para o que isso fazia com seu povo, eles apenas ligavam se isso
interferisse em seus dramas. Ela se perguntou se a Corte Kalyazi
Prateada era do mesmo jeito, se talvez eles não fossem tão
diferentes assim.
— Você terá a coroa se formos bem-sucedidos. — Ela disse. — O
que você fará?
Ele estava tão alegremente inconsciente de que sua resposta
determinaria se ela o pouparia ou o mataria. Ele parecia pensativo,
mas ela notou que ele sempre ficava tenso quando criados passavam
com suas máscaras simples e cinzas enquanto eles andavam pelos
corredores do palácio. Espiões do seu pai?
— Nunca pareceu real para mim. — Ele disse com a voz suave. —
Estive na guerra por... — Ele se interrompeu em silêncio e havia
mais nesse silêncio do que palavras poderiam dizer. Ele estava
quebrado, ela percebeu, um garoto que viu coisas horríveis muito
jovem. — Só quero ser melhor que meu pai.
— Admirável, já que seu pai estava atualmente envolvido no
planejamento de filicídio.
Ele riu, mas foi uma risada tensa.
— E a guerra?
Ele olhou de soslaio para ela que fez uma onda de medo percorrê-
la. Ela se perguntou se ele suspeitava, embora ela não soubesse
como poderia.
— Nós não conhecemos nada além disso. — Ele disse. — E isso
precisa mudar. E estamos sem tempo. Os Kalyazi estão se movendo
em Tranavia, e não sei se estamos em posição de nos defendermos
adequadamente.
Nadya prendeu a respiração.
— Anna. — Ela sussurrou.
— O quê? — Serefin olhou para ela.
Ela balançou a cabeça, esperando que ele não pressionasse mais.
— E as diferenças irreconciliáveis de Tranavia com Kalyazin?
— O que tem elas?
— Você deixaria os padres voltarem para Tranavia? Reconstruir
as igrejas?
Sua mandíbula ficou tensa. Alarmes soaram em sua cabeça, ela
tinha ido muito longe, mas era muito tarde para recuar.
— Não sei se os deuses de Kalyazin têm lugar em Tranavia. — Ele
disse.
Ela assentiu como se fosse uma resposta perfeitamente aceitável.
Por dentro, ela estava hesitante. Serefin seria melhor que seu pai e a
guerra precisava acabar. Ela estava disposta a se comprometer? Ela
estava aqui para devolver Tranavia aos deuses, mas ela também
estava aqui para acabar com a guerra. Um era mais importante que
o outro? Ela era só uma garota; ela não queria que o destino das
nações dependesse de suas decisões.
Eles estavam perto dos aposentos de Nadya. Ela não tinha certeza
de como chegar a catedral daqui e pediu as direções para Serefin.
Ele franziu o cenho.
— Tenha... cuidado, Józefina. — Ele disse. — Ele não é um para se
brincar.
Nadya quase riu. Era comovente que ele parecesse tão
preocupado com o bem estar dela.
— Você pode me fazer outro favor, Serefin?
— Você está me ajudando com patricídio, acho que te devo uma
vida inteira de favores.
— Oh, eu me lembrarei disso.
Ele sorriu. Ela não pôde deixar de sorrir de volta.
— Alguém certamente percebeu que não estou definhando em
uma masmorra agora. Eu gostaria de ter certeza de que ninguém
virá me procurar porque não estou onde deveria estar.
Especialmente se estarei com os Abutres.
Serefin assentiu.
— Posso fazer isso.
— Obrigada.
— Ainda não entendo porque você está fazendo isso.
Nadya não sabia como responder isso. Comando divino era
verdade demais, qualquer outra coisa parecia banal.
— A guerra levou alguém importante para mim. — Ela disse,
inconscientemente tocando o colar de Kostya. Ela não conseguia
pensar que foi Serefin quem liderou o ataque. — Não vou mais
tolerar isso.
Ele se recostou na parede ao lado da porta de seus aposentos.
— E quem é você para fazer o que incontáveis outros falharam
em mais de um século?
Ninguém. Só uma garota. Um pequeno pedaço de divindade.
Ela deu de ombros.
— Sou a primeira pessoa que se recusa a falhar.
***
Os Abutres mantinham residência no que um dia foi a grande
catedral de Grazyk. Agora que os deuses não eram mais adorados,
era onde o Trono Vil residia. O trono de Malachiasz.
A catedral era uma estrutura imponente. Enorme e sombria, com
grandes torres e enorme vitrais.
Nadya parou diante da entrada, olhando para cima. Ela não podia
forçar seus pés para mais perto e depois de alguns minutos ela
estava vagamente ciente da presença de Malachiasz ao lado dela,
olhando para a catedral também.
Silêncio encheu o espaço entre eles, antes dele falar:
— A guerra nos acostumou a viver em espaços profanados, que
uma vez foram considerados sagrados.
Foi pintada de preto. Nadya sabia que não tinha como ser assim
quando isso era uma igreja de verdade. Havia vinhas de ferro e
estátuas quebradas trabalhadas nos tijolos. Todas as estátuas
tinham perdido as cabeças, menos uma.
— Cholyok dagol. — Ela praguejou em voz baixa.
Malachiasz seguiu seu olhar. Ele ficou pálido.
— Sabe, honestamente eu não sei como essa em particular
sobreviveu.
— Não sei se você está mentindo ou não. — Nadya disse, cansada.
Svoyatova Madgalina. Uma santa que supostamente foi a
primeira clériga. Nadya não gostava da ironia.
Começou a chover. Uma chuva gelada que caía em gotas pesadas
e dolorosas. Malachiasz semicerrou os olhos para o céu. Ele abaixou
a mão e pegou a mão dela, entrelaçando seus dedos.
— Eu não te perdoei. — Ela sussurrou.
— Eu sei.
Ela mordeu os lábios, segurando as lágrimas. Ele puxou a mão
dela.
— Parijahan e Rashid estão bem, venha, vamos sair da chuva.
Ela o seguiu para dentro da catedral e tentou não se sentir como
se a catedral a estivesse engolindo viva.
O saguão era revestido com mármore preto e frio. A porta do
santuário era preta com bordas douradas. Malachiasz abriu a porta.
Era como se ele a estivesse conduzindo para o inferno, um novo
nível a cada porta que ele abria.
Ainda assim, ela o seguiu.
Ela prendeu a respiração quando entrou no santuário. Malachiasz
olhou para ela, um meio sorriso nos lábios. Ele estava usando
roupas diferentes, uma túnica longa sobre calças, tudo preto com
um rico cinto de brocado dourado amarrado na cintura. Ele se
parecia mais com a nobreza agora, como se fosse um um rei
razoavelmente jovem.
O santuário era vasto, com tetos altos abobadados e pilares com
figuras esculpidas que traíam as origens religiosas da sala. O Trono
Vil repousava sobre crânios dourados. Ossos alinhavam-se no longo
corredor aberto, incrustados no piso de mármore preto. Tinha uma
beleza brutal e primitiva nisso, essa combinação do profano e do
divino.
A luz filtrada pelas janelas altas, enchiam a sala, suavizando suas
linhas duras. Ela estava consciente de Malachiasz olhando para ela
enquanto ela observava o santuário. Ela contornou os ossos
incrustados no chão, enquanto Malachiasz pulava de um para o
outro, como um garotinho jogando um jogo.
— Me diga o que você não falou na frente da bruxa. — Ela disse.
— O rei está tentando se tornar um deus. — Malachiasz disse,
sem levantar a cabeça, enquanto pulava de um osso para outro.
Nadya respirou fundo com a maneira franca que ele disse isso.
Como se não fosse nada.
— Meu conceito de deus, não o seu, eu acho. — Ele disse e
levantou os ombros. — Mas quem sabe? E, sim, a teoria foi uma que
eu mesmo descobri. — Ele suspirou, coçando a testa com seus dedos
elegantes e tatuados. Ela se perguntou, não pela primeira vez, o que
as tatuagens significam; ela se perguntava se era tarde demais para
descobrir. — Era só uma teoria, a quantidade de magia envolvida
para fazer qualquer coisa remotamente parecida, era astronômica,
então pensei que era impossível. Não deveria ter contado a
ninguém, eu sei, mas contei e aqui estamos.
— Mas porque você estava pesquisando, para início de conversa?
— Curiosidade, para começar. — Ele acenou com a mão para o
santuário. — Porque eu vi a falha em Tranavia, e pensei que talvez...
talvez eu pudesse consertar. Talvez eu pudesse ser quem salvaria
esse reino em ruínas. Qual é o sentido de todo esse poder se eu não
puder fazer nada com ele... — Ele parou.
Ela nunca achou ele fosse do tipo faminto por poder. Ela se
perguntou se essa era outra faceta dele que ele escondeu, se ele
havia aperfeiçoado tanto a imagem que queria que ela visse, que ela
realmente não o conhecia. Ou se o idealismo, o desejo de salvar um
reino moribundo, se essa é a verdade dele.
Exceto que... Ele estava cutucando suas cutículas, a borda ao
redor da unha em seu dedo indicador se enchendo de sangue porque
ele arrancou muito. Ele estremeceu e colocou o dedo na boca para
estancar o sangramento. Ela não achava que um rei, monstro e
faminto por poder, teria ansiedade e brincaria no chão do seu
próprio palácio sombrio.
— Então, você abdicou? Abandonou os Abutres?
— Eu fugi de Tranavia. — Ele esclareceu. — Abdicação é
impossível. Tenho o trono até morrer, ou até que eu seja
assassinado, provavelmente.
Os olhos dela se estreitaram.
— Quando os Abutres atacaram...
— Achava que eles estavam lá por mim, sim. Rozá era uma dos
que me queriam fora do trono.
— Mas você os mandou embora?
— Foi uma aposta. Como eu disse, a magia é imperfeita,
obviamente, já que eles tentaram me matar lá. Eles poderiam ter
continuado atrás de nós; eles poderiam ter matado os outros.
Tivemos sorte. Eu perturbei a ordem quando fugi; e criei mais caos
ao retornar. Eu... eu não sei se posso comandá-los como antes.
Ninguém nunca fez o que eu fiz.
Ela franziu o cenho.
— Você está procurando por um pedido de desculpas pelo o que
eu sou; eu não vou fornecer um. Eu pensei que tinha achado alguma
coisa que pudesse acabar com essa guerra e salvar Tranavia. Em vez
disso, dei a ideia de poder ilimitado para a única pessoa que não
deveria ser considerado. Eu fugi porque recusar significaria na
minha execução. Posso admitir ser um covarde nesse aspecto.
Alguma coisa partiu em seu peito e ela estremeceu.
— Tudo isso foi mentira? Tudo?
Ele fechou os olhos e bateu na ponte do nariz.
— Não. Nadya, não foi isso que eu quis dizer. Eu me acostumei
tanto a mentiras que não sei o que é verdade mais. — Sua voz
tremeu. — O que você me deu, foi uma verdade com a qual não sei o
que fazer porque, nunca tive nada parecido antes. Não suporto
pensar que estraguei isso.
Eles ficaram em silêncio, a luz mudando do lado de fora,
desaparecendo dentro do santuário e aumentando as sombras ao
redor dele. Aqui, nesse lugar profanado, Nadya se viu se
aproximando de um monstro.
Ela pegou sua mão, pressionando levemente as pontas dos dedos
nos dele. Ela deixou o silêncio se prolongar, se estender entre eles,
se tornar algo quase tangível. Quando ela tinha certeza que ele
sentia, ela estendeu as mãos e pegou seu rosto entre elas. Seus
olhos fechados, longos cílios abertos como sombras em sua pele
pálida. Ele descansou suas mãos nos pulsos dela, polegares
pressionados levemente contra as palmas dela de um jeito que fez
seu coração bater traiçoeiramente.
— Me diga a verdade, Malachiasz, porque você está aqui?
Ele exalou profundamente, sua respiração acariciando seu rosto.
— Estou cansado, Nadya. Quero pôr um fim no que comecei.
Quero que essa guerra termine sem reduzir Tranavia a cinzas.
— Quero acreditar em você. — Ela sussurrou. — Mas...
Ele abriu a boca, sem saber o que dizer. Finalmente, ele
perguntou:
— Vai ser sempre assim?
Seria? Ela não sabia dizer. Um dia ela ficaria confortável com o
que ele era? Ou seria inconstante, amigos em um segundo e
inimigos no próximo?
— Eu não sei.
Ele assentiu e havia uma profunda tristeza em seus olhos pálidos,
e Nadya sentiu seu coração se despedaçando. Era algo que ela nunca
tinha sentido antes, essa rachadura em seu peito, esse vazio abrindo
suas costelas. A manga dele caiu para trás, revelando a confusão de
cicatrizes cobrindo seu antebraço.
Franzindo a testa, ela passou uma mão pelas cicatrizes.
— Você disse que as navalhas para lançar magia não deixam
cicatrizes. — Ela havia cortado os braços na arena e os ferimentos já
estavam se curando, não tão rápido como se ela fosse uma maga de
sangue, mas eles estavam se curando de forma limpa.
— Não deixam. — Ele disse. — Isso é um lembrete. — Como os
lembretes que ele sussurrava para si de seu nome, sempre seu
nome.
— Você ainda faz isso?
Ele balançou a cabeça.
— Não, há muito tempo.
Ela deixou seu polegar roçar no dele, seus dedos brincando com
os dele, antes de soltar sua mão, dando um passo para trás. Ela se
virou, olhando o santuário novamente. Ele perderia tudo isso se os
ajudasse? Em primeiro lugar, ele ao menos queria isso?
— Há quanto tempo você é... isso?
— Dois anos. — Ele disse. — Eu tinha dezesseis anos quando
tomei o trono.
— Você matou a última Abutre Sombria?
Ela se virou a tempo de vê-lo assentir.
— Por quê?
— Queria saber se podia. — Ele disse suavemente. — Se alguma
coisa melhoraria se eu fosse bem sucedido.
— Melhorou?
— Não.
Eles ficaram quietos de novo. Nadya vagou pelo santuário, e a voz
na parte de trás da sua cabeça que ainda estava ruidosamente
lutando contra Malachiasz, começou a ficar em silêncio.
Eventualmente, Nadya ouviu seus passos atrás dela. Sentiu seus
lábios se pressionando em seu pescoço de um jeito que fez seus
joelhos fraquejarem.
— Quero falar com os outros. — Ela disse, corando com o jeito
que sua voz falhou. Seu rosto ficou ainda mais quente quando ela
ouviu sua risada suave.
Quando ele passou por ela, havia um sorriso nos cantos de seus
lábios. Havia uma sombra nos cantos, alguma coisa maligna logo
abaixo da superfície, sinistra. Ele se virou e sorriu para ela,
monstruoso, mas beatífico, e a sombra se foi. Talvez ela tenha
apenas imaginado. Ela pegou sua mão.
Malachiasz a conduziu para fora do santuário, subindo um lance
de escadas e andando por um longo corredor. Eles foram parados no
meio do caminho por uma Abutre limpando a garganta.
— Honestamente, achei que você nunca ia voltar.
Malachiasz ficou tenso. Ele rapidamente largou a mão de Nadya e
ela abaixou a cabeça. Ela tinha que lutar contra o instinto de fugir.
— Rozá. — Malachiasz disse categoricamente. — Eu me
desculparia por ter te deixado sem saber, mas me ocorre que não me
importo, e você não precisa saber dos meus assuntos. Żywia sabia
que eu tinha voltado e, da última vez que eu chequei, ela era a
segunda no comando, não você.
Rozá não estava usando uma máscara e seu rosto era mais suave
que Nadya esperava. Ela era bonita de uma maneira luxuosa.
— Mais um pouco e eu seria nomeada Abutre Sombria. — Ela
zombou.
O sorriso de Malachiasz era como uma faca afiada.
— Nós dois sabemos que isso é impossível.
As garras dela escaparam de suas mãos, mas Malachiasz já tinha
uma longa garra de ferro sob seu queixo.
— Não faça isso, Rozá. — Ele disse suavemente.
— Eu deveria dizer ao rei o que você está fazendo. — Ela disse,
mas engoliu em seco e sua voz tremia.
— Bom, então, que bom para todos nós que você não pode. — A
voz de Malachiasz atingiu acordes de medo em uma profundidade
primitiva em Nadya.
Os olhos de Rozá brilharam, mas ela assentiu. Malachiasz retraiu
sua garra, a deixando dar um passo para trás.
— Mas você pode dizer a ele que estive observando, e tenho
pensamentos sobre a maneira que ele escolheu lidar com os
assuntos. — Malachiasz disse. Ele olhou para Nadya. — Meus
aposentos são no fim do corredor. Estarei lá com você em breve.
Nadya franziu o cenho. Ela não queria deixá-lo sozinho com essa
Abutre, onde ela não podia ficar de olho nele. Ela lhe deu um olhar
de aviso quando passou. Ele sorriu fracamente para ela. Não fez
nada para fazê-la se sentir melhor enquanto se apressava pelo
corredor, muito consciente que ela poderia ser parada por um
Abutre e não ter mais a proteção de Malachiasz a defendendo.
Não que ela não pudesse se proteger sozinha, mas ela estava em
uma posição precária. Levantar suspeitas era a última coisa que ela
precisava.
Rashid estava nervoso quando ela entrou nos aposentos de
Malachiasz. Ele se levantou em um salto, estremecendo com o
movimento, mas relaxou quando viu que era ela. Ela entrou
devagar, apreciando os aposentos luxuosos. Não parecia que tinham
sido habitados por algum tempo.
Pinturas cobriam cada espaço aberto da parede e estavam
empilhadas nos cantos da sala. Principalmente paisagens,
estranhamente escuras, como se o artista estivesse retratando um
futuro sombrio. Alguns retratos, que Nadya podia dizer, de ninguém
em particular. Havia uma estante que estava cheia demais, os livros
começando a se amontoar em volta dela.
— Oh. — Ela disse. Ela deu a Parijahan e Rashid um sorriso
relutante antes de ir em direção a uma porta e abri-la. Ela queria
saber tudo sobre esse garoto estranho e reservado. Ele era um
mentiroso, e ela queria saber suas verdades.
Dentro do quarto, havia um escritório condizente com alguém
com o título de Malachiasz. Mais livros empilhados no canto. A
mesa era uma bagunça de papéis, navalhas e ferramentas afiadas
que Nadya não queria nem considerar. A sala parecia errada,
estranha, e Nadya fechou a porta rapidamente, se sentindo enjoada.
O corredor na parte de trás conduzia ao seu quarto. Nadya não
esperava que os quartos estivessem tão desordenados e bagunçados.
Ela voltou a sala de estar.
— Vocês mentiram para mim. — Ela disse categoricamente.
Parijahan franziu os lábios. Rashid, pelo menos, parecia
envergonhado.
— O que você esperava? Saber que ele era um deles era o
suficiente...
— Você não pode tomar essa decisão por mim. — Nadya
vociferou.
Rashid tocou o braço de Parijahan.
— Ela pode ficar chateada. — Ele disse, voz suave.
— Como você descobriu? — Nadya perguntou.
— É Malachiasz. Ele se esquiva. Ele se esquivou muito um dia, e
juntei as peças. — Parijahan disse.
— Você confia nele?
— Eu confio nele. Ele tem métodos questionáveis, e está
desesperado, mas ele está tentando, e isso é mais do que pode ser
dito da maioria das pessoas.
Não parecia o suficiente para Nadya, mas ela não sabia o que
tornaria isso suficiente para ela. Mas não parecia que importava. Ela
poderia vagar em círculos em sua mente sobre como ela não
confiava nele porque ele mentiu, mas ela ainda seguiria ele.
Essa era uma batalha que ela tinha perdido. Nenhuma
quantidade de idas e vindas mudaria o fato de que ela precisava dele
para esse plano funcionar, que ela se importava com esse garoto
ansioso tentando corrigir um erro, o garoto que ela acreditava não
ser uma mentira. Mesmo se ele fosse um monstro.
— Onde vocês dois estavam?
— Definhando em masmorras, tentando convencer um guarda
bastante atento de que ‘Não, Parijahan não parece familiar, vocês só
acham que todos os Akolanos são iguais'.
Os olhos de Nadya se arregalaram.
— O quê?
Parijahan acenou com a mão em um gesto desdenhoso.
— Você pode dar uma olhada nas costelas quebradas dele.
— As suas o quê?
Rashid sorriu timidamente, esticando-se na espreguiçadeira com
um gemido de dor.
— Acho que estou morrendo.
— Ele não está morrendo — disse Parijahan.
Nadya extraiu sua magia, odiando cada segundo que ela a usava
sem o contato dos deuses. Ela sussurrou a língua sagrada que não
entendia baixinho, enquanto as pontas de seus dedos esquentavam.
Ela cuidadosamente trabalhou nas costelas quebradas de Rashid e
começou a remenda-las.
Rashid se contorcia sob suas mãos como uma criança que se
recusava a se sentar para a curandeira. Nadya teve que se segurar
para não bater nele.
— Fique quieto.
— Suas mãos estão congelando.
A porta abriu e fechou com um estrondo. Malachiasz caiu de cara
na espreguiçadeira restante. Ele soltou um suspiro longo e
dramático, e se sentou.
— Rashid levou uma pancada no peito por tentar encantar os
guardas? — Ele perguntou.
— Você me conhece tão bem, Malachiasz. — Ele disse, o rosto
contorcido enquanto Nadya trabalhava.
Levou uma hora para curá-lo. Quando ela terminou, ela se
recostou nos calcanhares, encarando as mãos. Ela estava vagamente
consciente dos outros conversando, finalizando planos, mas tudo
que ela conseguia pensar, era que ela curou Rashid sozinha. Não foi
o poder de Zbyhneuska, foi o dela.
Talvez Malachiasz estivesse certo esse tempo todo.
O que isso significava para ela? Quando tudo isso terminasse – se
ela sobrevivesse – os deuses se afastariam porque ela descobriu que
o poder dela não era dependente de suas vontades? Isso era verdade
para todos os clérigos da história ou era uma falha dela?
Ela deixou seus devaneios quando Malachiasz se moveu para se
ajoelhar no chão ao lado dela. Ele gentilmente pegou seus pulsos e
cruzou suas mãos entre as dele. Lágrimas queimavam nos olhos
dela.
— Nós nem sempre entendemos como a magia escolhe fluir. —
Ele disse suavemente. Ele prendeu uma mecha de cabelo dela atrás
da orelha. — Isso é liberdade, Nadya, você não tem que fugir disso.
Ela não tinha palavras para explicar que ele nunca poderia
entender, mesmo se ele estivesse certo. Os deuses eram a razão pela
qual ela vivia, o ar em seus pulmões. Se eram sufocantes, era porque
era necessário.
Exceto que, agora ela estava vivendo sem o medo deles pairando
sob ela, cavando em seus pensamentos. O que quer que ela tivesse
que fazer para ver esse plano até o fim, seria somente ela; não teria
nenhum perigo de algum deus negando um feitiço ou ignorando
suas orações.
Ela tentou alcançar os deuses uma última vez, e quando ela
encontrou uma parede de pedra de silêncio, ela tomou sua decisão.
Isso era sobre sobrevivência, algo maior do que a magia de
Nadya. Ela não se permitiria ficar repleta de dúvidas e culpa. Isso
não era algo que ela podia fugir; era algo que ela deveria abraçar.
— Obrigada, Malachiasz. — Ela sussurrou.
Ele sorriu.
— Você está bem? — Ele estendeu uma mão hesitante, roçando
seu polegar sobre um longo corte que corria por seu pescoço. —
Queria poder ajudar, mas... — Ele parou. Magos de sangue não
podiam curar.
— Gosto de saber que você tem uma fraqueza. — Ela respondeu.
Ela puxou uma mecha do cabelo dele. Ela se perguntou se era isso
que ela havia se tornado, a coisa que faria esse rei monstro se
afastar de seu trono. Outra fraqueza. — Explique para mim o que
está acontecendo, sem mentir, o que eu acho uma ideia
perfeitamente nova, e posso considerar perdoar você.
Parijahan bufou. O sorriso de Malachiasz sumiu.
— Você me deve quarenta kopecks. — Parijahan disse para
Rashid.
Ele suspirou.
— Em minha defesa, as chances eram poucas desde o começo.
Nadya e Malachiasz trocaram um olhar. Ela podia sentir a ponta
de suas orelhas queimando. Os dois fingiram que não faziam ideia
do que os Akolanos estavam falando.
Nadya subiu na cadeira vazia. Malachiasz empurrou as pernas de
Rashid para fora da espreguiçadeira e se sentou. Rashid protestou e
chutou Malachiasz na cabeça em retaliação.
Malachiasz gostou do plano que Nadya tinha formado com
Serefin, apesar de se preocupar que isso poderia fazer o rei agir
contra o príncipe mais cedo.
— Você quer trazê-lo aqui?
Ela assentiu.
Ele parecia pensativo.
— Seria menos público do que agir na frente da corte inteira. E eu
sei quais dos Abutres estão agindo como guardas do rei agora.
— Pode fazer isso? Com sua ordem separada do jeito que está? —
Parijahan perguntou.
— Não tenho escolha. — Ele disse.
As pálpebras de Nadya estavam pesadas e ela se encolheu na
cadeira, bocejando.
— Sua fuga de Tranavia não seria vista como traição?
— Foi diretamente em retaliação a algo que o rei me pediu para
fazer, então, sim. Mas para o ritual funcionar, ele não pode fazer
sem mim. Se o que Serefin disse sobre o pai é verdade, então ele
está tão desesperado que vai ver além da minha transgressão.
Nadya pressionou seu rosto contra a almofada da cadeira. Ela
podia ouvir vagamente eles discutindo se deveriam esperar mais –
não – e quando deveriam agir – amanhã.
A próxima coisa que Nadya sentiu foi ser levantada da cadeira, de
cheirar uma mistura agradável de terra e ferro, e sentir o toque
suave do cabelo de Malachiasz na bochecha.
— Vou falar com o rei. Vou voltar. Você e Nadya podem usar meu
quarto. — Ela ouviu ele dizer para Parijahan, sua voz um estrondo
baixo em seu peito. Ela se moveu para mais perto do calor de seus
braços.
— Ela está adormecida?
— Não.
Ela balançou a cabeça, mas enterrou o rosto em seu peito.
— Ela teve sua visão de mundo abalada muitas vezes, para
qualquer pessoa, nas últimas doze horas, e ainda foi torturada e teve
o sangue retirado. Considerando tudo, ela está se saindo muito bem.
— Malachiasz continuou. — Especialmente porque esperamos que
ela mate um homem amanhã.
— Parte do trabalho. — Nadya murmurou. — Não deveríamos
matar Serefin.
— O quê?
— Serefin. Ele é bom. — Ela acariciou seu peito. — Eu gosto dele.
Ele deve viver. — Ela forçou os olhos a se abrirem. — Tenha cuidado,
Malachiasz.
Seus olhos brilharam com tristeza para ela, mas ele piscou e se
foi. Ele sorriu.
— O que disseram a você sobre se preocupar comigo?
— É inútil. — Ela bocejou. — Tarde demais para isso.
Vinte e Nove: Serefin Meleski

Svoyatovi Milan Khalturin: Svoyatovi Milan Khalturin era um


homem sagrado, abençoado por nenhum deus, mas ainda assim
um adorador de todos, que vagou por Kalyazin. Os milagres não
foram atribuídos a sua vida, mas a sua morte, já que se diz que
todos os seus ossos têm propriedades curativas.
—O LIVRO DOS SANTOS DE VASILIEV

Serefin estava muito ansioso para dormir. Ele tinha terminado a


maioria das preparações necessárias para amanhã, mas sua mente
não o deixava descansar.
Enquanto ele se sentava em sua mesa com seus feitiços
espalhados na frente dele, sangue ainda secando nas páginas, ele
não podia se livrar da sensação de que ainda havia algo que ele não
estava entendendo.
O que eles fariam com o reino quando começassem esse golpe?
Tranavia era o reino dele. Sua terra de pântanos, lagos e montanhas.
De magia de sangue e monstros. Um reino com dois reis. Ele não
queria vê-lo engolido pelo fogo da guerra, e ele também não queria
vê-lo morrendo de fome. Os dois estavam perigosamente perto no
horizonte. Mas ele também não queria morrer.
Seu pai veio ao jantar, parecendo quase atordoado com alguma
coisa. Serefin tentou não ter receios – tudo fazia parte do plano –
mas ele estava preocupado. Se pudesse acreditar no pai, era
Malachiasz que estava puxando as cordas. Mesmo que o Abutre
Sombrio tivesse admitido culpa, isso não significava que ele iria
entregar ao rei exatamente o que ele estava procurando?
Mas não importava. Eles estavam sem tempo. No jantar, o rei
mencionou que as forças Kalyazi tinham se movido, que um ataque
era iminente. Ele parecia... muito feliz com a perspectiva, e isso era
o que mais aterrorizava Serefin. Tudo que ele podia fazer era se
agarrar na esperança desesperada que ele poderia se salvar no final.
Uma batida na porta o assustou. Provavelmente Ostyia ou Kacper
– ele não tinha visto nenhum dos dois nessa noite.
Żaneta parecia exausta quando ele abriu a porta. Ela lhe deu um
sorriso fraco. Antes dele ter a chance de cumprimenta-la, ela
estendeu a mão, agarrou as lapelas de sua jaqueta e o beijou.
Ele enrijeceu de surpresa, mas logo relaxou no beijo. Suas mãos
agarraram a cintura de Żaneta, e os dedos dela deslizaram pelo
cabelo dele.
— O que é isso? — Ele perguntou, sem fôlego quando ela se
afastou. Ele beijou o canto da boca dela, sua mandíbula. Ela não
respondeu. Ele levantou a cabeça, procurando seu rosto. Ele sentiu
um arrepio percorrê-lo quando viu sua expressão sombria.
— Żaneta?
Ela balançou a cabeça, forçando um sorriso. Havia lágrimas em
seus olhos escuros. Ele gentilmente segurou o rosto dela com sua
mão.
— Você pode vir comigo? — Ela perguntou. Ela piscou forte e as
lágrimas se foram, o desconforto se foi junto. Ela parecia tão
equilibrada como sempre. — Me desculpa, estou bem. Eu não
deveria...
— Żaneta...
Ela lhe deu um sorriso brilhante, não mais tenso.
— Estou bem, Serefin.
Ele hesitou antes de beijá-la gentilmente de novo. Quando ele se
afastou, ela estendeu a mão, penteando seu cabelo com seus dedos.
— Vai demorar apenas um minuto. — Ela disse. Ela estendeu a
mão.
Ele pegou.
— Você viu Kacper ou Ostyia? — Ele perguntou.
— Estou surpresa que nenhum deles está com você. Não os vi
hoje.
Ele franziu o cenho. Não era comum eles desaparecerem. Uma
sensação pesada começou a se enroscar dentro dele e,
suspeitamente, se parecia com pavor. Ele rejeitou isso antes –
Żaneta era a única pessoa na corte que ele confiava – mas enquanto
a seguia pelos corredores escuros do palácio, ele não podia negar
que isso ia acabar mal.
Ele tentou pensar, puxar sua mão do aperto de Żaneta, mas, de
repente, percebeu que sua cabeça estava confusa e seus dedos,
frouxos. Żaneta passou de conduzi-lo a arrastá-lo pelo corredor.
O presságio subiu por sua espinha como dedos gelados enquanto
caminhavam. Passaram pelas masmorras, na ala mais funda do
palácio, bem abaixo do solo, onde qualquer pesquisa sobre magia
que o rei estava fazendo, acontecia. Pesquisa não ordenada pelos
Abutres.
Tinha sangue escorrendo por baixo da manga de Żaneta e
deslizando por seus dedos. Ela olhou para ele, enxugando o sangue
em suas saias escuras, e limpando a sua boca com as costas da mão,
uma mancha de sangue saindo de seus dedos.
Ele franziu as sobrancelhas, ele sentiu o gosto de sangue quando
beijou ela. A compreensão veio lentamente, seus pensamentos
procurando através de uma névoa escura.
Era um feitiço. Ela colocou magia em seus lábios, e agora ele a
seguia indefeso, mesmo sabendo que deveria fugir. A única pessoa
que ele achou que estava do seu lado, e ela o vendeu que nem todos
os outros.
Eles chegaram nas entradas das catacumbas. As portas
profundamente trancadas e protegidas dos dois lados. Serefin sentiu
as mandíbulas de seu destino se fecharem em volta dele enquanto
entrava nas sombras.
Żaneta parou. Ela se virou. A escuridão era sufocante e densa. O
pânico apertou seu peito, fazendo ele se sentir como se o ar não
alcançasse seus pulmões. Ele sentiu a mão dela no seu rosto, seu
toque leve.
— Me desculpe, Serefin. — Ela sussurrou. Ela beijou sua
bochecha.
— O que ele poderia te dar que eu não? — Serefin perguntou. Era
difícil falar, suas palavras saíram grossas e abafadas.
Ele não podia distinguir suas feições na escuridão.
— Eu quero ser a rainha. Simples assim.
Rainha sozinha.
— Ele está aqui embaixo, não está? — Serefin odiava que sua voz
falhou. Ele odiava que estava assustado.
— Ele precisa de você. — Żaneta respondeu.
Ela o empurrou para a frente. Em direção às trevas. Nas
profundezas. Ele não teve escolha a não ser atirar-se de cabeça.
Trinta: Nadezhda Lapteva

Svoyatovi Konstantin Nemtsev: um clérigo de Veceslav durante um


período raro de paz entre Kalyazin e seus vizinhos. Isso não
protegeu Konstantin de encontrar um fim infeliz. Ele foi capturado
por magos de sangue Tranavianos, torturado e esquartejado. A paz
não durou muito tempo.
—O LIVRO DOS SANTOS DE VASILIEV

Nadya sonhou com monstros de muitas articulações e criaturas com


milhares de dentes. De bocas abertas e garras de ossos. Esses
monstros, eles conheciam ela. Eles a alcançaram, sussurrando seu
nome, e mesmo que ela corresse, ela sentia suas garras segurando
suas roupas. Os milhares de olhos arrancavam a pele das suas
costas. Ela sonhou com campos de sangue, com sangue caindo do
céu como chuva, com um mundo já devastado pela guerra, onde os
rios corriam vermelhos.
Ela acordou gritando. Gritos horríveis de cortar a garganta, que
sacudiam seu corpo inteiro. Seu cabelo pingava com suor. Ela estava
vagamente ciente das mãos frias de Parijahan afastando seu cabelo
do seu rosto, o sussurro de palavras Akolanas, rápidas e fluidas.
Da porta se abrindo, um par de mãos quentes pegando as dela, a
cama afundando um pouco de um lado enquanto Malachiasz se
sentava, a puxando para seu peito.
— Nadya, foi só um sonho. — Ele sussurrou em seu ouvido em
Kalyazi. Os gritos deram lugar a soluços ofegantes. — Você está
segura aqui, towy dżimyka.
Ela se enrolou contra ele, o seu coração batendo rápido contra o
ouvido dela. Houve um farfalhar do outro lado do quarto, e ela
ouviu Parijahan e Rashid conversando baixinho um com o outro.
Pequenas coisas para se centrar na realidade.
— Que horas são? — Ela perguntou, sua voz rouca. Doeu falar.
— Algum momento no meio da noite. — Ele respondeu.
Parecia que era quase de manhã. Ela ouviu a porta fechar quando
Parijahan e Rashid saíram.
Se ela não se sentisse tão mal, provavelmente teria corado ao
perceber que estava sozinha com Malachiasz na cama dele. A esse
ponto, ela estava muito cansada para se importar.
— Não ouço os deuses desde que acordei em uma piscina do meu
próprio sangue. — Ela sussurrou. — O que me assusta, é que talvez
seja uma coisa boa. Não sei mais o que é real.
Malachiasz assentiu devagar. Parecia que ele foi arrancado do seu
sono; seus cabelos longos estavam emaranhados, sua camisa
rapidamente vestida. Estava totalmente aberta, meio pendurada em
um ombro.
— É perfeitamente humano ter dúvidas, Nadya. — Ele murmurou.
— Não quando você é divina. — Ela disse. Ela fungou
pateticamente.
— Não, suponho que não. — Ele concordou.
— Como você faz? Viver sem fé?
Ele estava quieto contra ela, exceto pelo ritmo da sua respiração.
— Nadya, você realmente quer saber de onde minha ética vem?
Eu?
Ele, o rei dos monstros. O mentiroso. O herege.
Não... ela supôs que não.
Ela murmurou sua resposta. Ele assentiu, sem surpresa, e beijou
suavemente a testa dela.
— Eu sinto que não deveria perguntar o que fez você gritar
durante o sono, mas admito que estou curioso.
— Monstros.
Ele se encolheu. Ele pensou que ela estava falando sobre ele. Ela
quase desejava que estivesse, pelo menos, seria facilmente
explicado. Ela considerou deixá-lo acreditar que ele lhe causava
pesadelos. Mas ela não era tão cruel.
— Não, não assim. — Ela disse, quando quis dizer não como você.
Ele relaxou visivelmente, e isso a deixou curiosa. — Isso te
incomodaria?
— Claro que sim.
— Mas você gosta de ser o que é.
Sua expressão mudou, tornando-se preocupada. Ele não a
corrigiu.
— Eu não quero ser a causa da sua dor, mesmo que seja
inevitável. — Depois de um longo silêncio, ele falou de novo. —
Talvez você deveria tentar dormir de novo? Vou deixar Parijahan
saber que...
— Fique. — Nadya disse, o interrompendo.
Ele franziu o cenho, já balançando a cabeça. Ele começou a se
levantar, mas ela pegou seu pulso.
— Eu me importo com você, Malachiasz. — Ela disse, as palavras
rápidas. — Não sei quando começou, mas é real e me aterroriza.
Você é a pessoa mais frustrante que já conheci, e ainda estou um
pouco convencida de que somos inimigos e, me importar com você,
literalmente, é heresia, mas eu me importo. Você mentiu para mim
desde o começo, mas não consigo parar de me importar com você.
A expressão dele era completamente indecifrável e ele não
encontrava seus olhos. Ela o tinha lido completamente errado? Ela
disse a coisa errada? Ela nunca fez isso antes; ela não tinha certeza
de como funcionava. Ela não...
Ele beijou ela. Era faminto e decidido, e deixava claro seu desejo.
Isso a surpreendeu, o quão desesperado ele se sentia. Isso a
assustou – só um pouco – também.
Isso não a impediu de se ajoelhar, ficando da mesma altura que
ele, e prendendo suas mãos em seu cabelo. Seu coração estava
batendo forte e cada centímetro dela tremia, porque isso era errado.
Se ela não morresse amanhã, ela certamente seria punida.
Mas ela não se importava. Ela não se importava. As mãos dele
agarraram sua cintura e ele a puxou para mais perto. Ele se afastou,
sua respiração irregular e quente. Seus olhos pálidos estavam
escuros e perigosos enquanto examinavam seu rosto.
— Essa é uma péssima ideia. — Ele falou em Kalyazi. Ela estava
cansada de ouvir Tranaviano.
— Eu sei.
— Gostaria que você soubesse. — Ele disse com a voz rouca. Ele
levantou uma mão, gentilmente traçando suas feições com as
pontas de seus dedos. Ela estremeceu. Quando ele alcançou sua
boca, ela levantou o rosto para beijar sua palma.
Ele soltou um suspiro longo e rouco. Ela puxou seu rosto de volta
para o dela, o beijando com força, sentindo seu corpo se apertar
contra o dela. Ela tirou uma mão de seu cabelo e a deslizou por seu
pescoço, roçando seus dedos por sua clavícula. Sua pele era quente,
e ela sentiu sua mão percorrendo as vértebras na sua espinha. Ele se
pressionou para frente, a deitando de novo na cama.
Por uma fração de segundo, ela congelou, subitamente
percebendo o quão perigoso isso era, o quanto mais longe ela
poderia ir se ela se permitisse.
Ele sentiu seu instante de indecisão e se afastou. Uma apreensão
semelhante apareceu em seu rosto.
— Só fique. — Ela sussurrou.
Ele assentiu.
— Nadya, eu... — Ele parou. Beijou sua garganta. Sua mandíbula.
O canto de seus lábios.
Ela estava tendo dificuldades para pensar claramente. Sua mente
se focava somente na sensação da boca dele na sua pele. Mas ela
entendeu que ele queria dizer alguma coisa séria para ela, então ela
abriu os olhos.
— Se alguma coisa acontecer amanhã... — Ele se moveu para se
deitar ao lado dela. Ela se virou de lado e se moveu para mais perto
para que suas testas se tocassem. — Quero que você saiba que você
é a única coisa boa que já aconteceu comigo.
O coração dela deveria estar em sua garganta assim? Ela deveria
se sentir tão viva e ao mesmo tempo com vontade de chorar? Ela
não fazia ideia. Tudo que ela sabia era que ela tinha ido contra tudo
que ela pensava que era certo e se apaixonado, completa e
irreversivelmente, por esse garoto terrível e monstruoso.
Ela passou seus dedos no rosto dele, a barba por fazer começando
a aparecer em sua mandíbula e bochechas. Sua voz a assustou, e não
da maneira que a assustou quando ele estava falando como o Abutre
Sombrio. Isso era diferente. Era tristeza. Desolação.
Como ela poderia ser a melhor coisa que aconteceu com ele? Ela
tinha quase cortado sua garganta e o empurrado de um parapeito.
Ela nem confiava nele, não de verdade.
Talvez isso não seja verdade. Ele tinha mentido, era um monstro,
mas ela ainda se importava. Uma parte dela confiava nele. E isso era
o mais aterrorizante de tudo.
— Temos que garantir que nada aconteça então. — Ela disse.
Isso lhe rendeu um meio sorriso forçado do Abutre. Ela o beijou,
mais uma vez, um beijo suave e lento e igualmente proposital, antes
de colocar a cabeça para baixo e se acomodar contra ele.
Nadya acordou com a cabeça no peito de Malachiasz, uma mão
pressionada em suas costelas. A luz suave da manhã passava pelas
frestas da cortina.
Ela se sentou, tentando não pensar no que ela teria que fazer no
fim do dia. Malachiasz se mexeu ao lado dela. Ele não acordou,
apenas se aproximou dela. Ela sorriu e passou suavemente seus
dedos nos cabelos dele.
Em uma mesa próxima, estava a máscara de ferro que ele usava
sobre o rosto como um Abutre. Era semelhante ao que ela o vira
usar quando chegaram em Grazyk, mas esta tinha uma vantagem
cruel, projetada para cobrir ainda mais o rosto.
Malachiasz se mexeu de novo, acordando.
— Mais quantas mentiras você vai me contar antes de eu
finalmente ouvir a verdade? — Nadya perguntou. Ela girou sua
máscara em suas mãos, o ferro frio. Ela não quis dizer isso de uma
forma acusatória, ela estava apenas curiosa.
Malachiasz franziu o cenho; a expressão repuxou as tatuagens em
sua testa. Ele demorou para responder.
— Quando nos conhecemos, te dei meu nome. — Ele disse, sua
voz baixa rouca de sono. — É a única verdade que me resta.
— É uma verdade que você deu a outros também.
Ele se virou, gemendo, e pressionou seu rosto no quadril dela.
— O que você quer de mim, Nadya? — Sua voz era provocadora.
— Só estou apontando: não sou a única pessoa que sabe seu
nome.
— Você só está sendo difícil.
Ela riu e olhou para ele. Seu cabelo negro estava espalhado nas
almofadas brancas como tinta. Ela puxou os joelhos para seu peito e
colocou os braços em volta deles; pensou em como, quando estavam
sentados na frente do altar de Alena, ele tinha praticamente
admitido para ela que era mau. Ele fechou os olhos e seu rosto
estava agradável, em paz. Um rei monstro, selvagem e bonito.
O peito dela doeu de uma forma estranha ao perceber novamente
o quanto se importava com esse garoto quebrado e como isso a
aterrorizava. Isso nunca iria parar de assustá-la.
Ela se deitou ao lado dele.
— Isso faz parte de você? Quero dizer, sempre esteve com você?
— Ela não precisava esclarecer.
Ele ficou em silêncio – ela estava se acostumando a seus longos
silêncios – ela esperava que ele dissesse que sim. Que ele nasceu
com ferro no corpo em vez de ossos. Significaria uma maldição de
sangue em vez de algo feito com ele pelo homem. Se ele não tivesse
nascido com isso, então foi torturado nele. Experimentos mais
horríveis do que Nadya estava disposta a contemplar.
— Nasci com potencial para a monstruosidade, assim como todo
mundo. — Ele disse, finalmente. — As Minas de Sal transformaram
em realidade. Tudo que tenho é o que eles me fizeram.
Nadya pressionou sua boca em seu ombro nu, outra fenda
percorrendo seu coração. Ela não sabia o que aconteceria com eles,
no final disso. Ela não conseguia pensar tão longe. Seu futuro era
sombrio, e ela sabia disso.
O que ele diria, se ele soubesse que o objetivo dela continuava o
mesmo? Que ela estava disposta a trazer o julgamentos dos deuses
para Tranavia. Que, quando esse véu se partisse, ela ainda seria
deles.
Pelo menos, ela pensava que seria.
Quando Malachiasz virou a cabeça para olhar para ela, erguendo
uma mão e roçando a parte de trás dos dedos em sua bochecha, seu
coração se apertou dolorosamente. Ele não era o único mentindo.
Ela estava fazendo um trabalho perfeitamente bom mentindo para
si mesma.
Trinta e Um: Serefin Meleski

Svoyatovi Dobromir Pirozhkov: quando Svoyatovi Dobromir


Pirozhkov era uma criança, sua irmã caiu em um rio congelado e
ele, milagrosamente, a trouxe de volta a vida. A vida dele era
estranha, cheia de contratempos, até que ela finalmente foi morta
em um acidente bizarro, pisoteada por seu próprio cavalo.
Dobromir, que não era um clérigo, também foi perseguido pelo
azar ao longo de sua vida, até que finalmente se afogou no mesmo
rio congelado que salvou sua irmã.
—O LIVRO DOS SANTOS DE VASILIEV

Serefin estava acostumado ao conceito de dor. Era uma amiga


familiar. Quando ele foi forçado a entrar na escuridão, o que
esperava por ele era algo que não poderia ser descrito em palavras
fáceis e curtas. Não era sua amiga. Era mais; maior do que qualquer
coisa que qualquer vocabulário humano pudesse descrever. Isso o
destruiu – o puxou de sua existência consciente e o jogou em um
mundo onde monstros andavam e sangue caía do céu como chuva.
Ele estava perdendo controle da sua própria consciência, da
própria essência que o tornava Serefin, o temperamental Príncipe
Herdeiro, com muito mais talento em magia de sangue do que para
ser rei. O Príncipe Herdeiro que nunca pensou que seria rei porque
ele morreria primeiro. Estava escapando dele. Não, não escapando,
sendo puxado. Estava sendo levado. Ele estava perdendo tudo que o
fazia ser quem ele era, e ele seria deixado nesse mundo deserto de
sangue, monstros e magia.
Esse mundo, esse mundo, esse mundo.
Esse mundo que se tornaria realidade. Que ele sabia,
intrinsecamente, quem quer que fosse. Era uma sensação
avassaladora de conhecimento, de horror, do tipo de pressentimento
que leva um homem à loucura.
Algo que ele já foi uma vez, uma vez. Antes. Antes do quê? Houve
uma linha, um ponto, um momento que o dividia em Antes e
Depois? Ou não havia nada além desse sangue chovendo do céu e
encharcando sua pele – pele? – e escoando em rios.
Ele estava ciente do golpe amargo do cobre; que ele colocou seus
dedos encharcados de sangue na boca e provado a mancha
carmesim em sua pele. Mas por quê?
Relances de penas suaves roçaram seu rosto. Dentes afiados
morderam sua orelha e ele ouviu um canto. Não, não, isso estava
errado. Ele não ouviu, porque ouvir era uma experiência separada.
Era algo que ele não tinha. Ele sentiu isso, ele se tornou isso. A
canção e a música e a palheta sussurrante de uma voz era o que ele
era agora – ele estava sempre mudando, sempre se mexendo e ainda
chovia sangue.
Essa música não era uma que ele conhecia. Ele não sabia a
língua, parecia errado, parecia perfeito, mas de um jeito errado que
o fez estremecer.
Foi repentino, a mudança de incompreensão para compreensão.
O momento que as palavras que ele estava ouvindo fez sentido para
ele em sua perfeição e repulsa.
Era outra pessoa e sua voz estava brava, frustrada, triste. Tinha
perdido tanto e ganhado tão pouco, e estava cansado de lutar, e
cansado de guerra e...
Guerra?
Guerra e sangue e magia manchando a terra e as pessoas. Heresia
e...
Não.
Não, isso tudo estava errado, isso estava errado. Alguma coisa
ainda lúcida, ainda Serefin, estava gritando, porque isso era errado.
A guerra significava liberdade. A guerra era necessária.
A música mudou. A música se tornou um acordo. Corrigindo-se
no meio, desculpando-se por seu erro porque é claro, é claro, é claro
que essa terra nunca teria paz até que um de seus reinos destruídos
fosse erradicado.
Isso também estava errado. Serefin – o que sobrou de Serefin, se
alguma coisa sobrou de Serefin – lutou para encontrar a palavra que
descreveria essa música. Ele tinha, mas existia fora de seu alcance,
além do ponto onde Serefin se tornou em algo não-Serefin.
Não estava lá, porém, então ele se sentiu cair, desintegrar, perder
o último pedaço que o tornava Serefin até que não tivesse sobrado
nada, nada, nada.
E houve silêncio. E desse silêncio veio uma música diferente.
Astuto, afiado e lento. Procurando no silêncio por algo que estava
faltando.
Havia profecias e havia visões de um mundo onde nada tinha
sobrado. Qual era o ponto de um mundo de nada? Mas ele precisava
de quatro coisas: uma que se perdeu, uma que estava preso ao
alcance de uma música diferente, uma que parou de ouvir músicas
anos atrás e uma que era intocável porque quase ela mesma era
uma música.
Isso tornava tudo difícil, especialmente com esse mundo tão
focado em se destruir. Mas um desafio era um enigma, era um teste.
Mesmo se isso significasse recompor a arrogância que havia
destruído. Mesmo se isso significasse forçar alguém sem vontade de
ouvir. Mesmo se isso significasse semear dúvida no coração de um
fanático. Mesmo se isso significasse trazer loucura.
Para consertar as notas discordantes que estragavam a música, a
coisa estava disposta a sacrificar a maioria das coisas, mesmo essas
quatro peças essenciais a seus planos.
Primeiro, porém, um príncipe falho.
Serefin viu um oceano de estrelas. Uma escuridão se estendendo
para sempre ao seu redor. Isso o pressionou, tomou conta dele, o
engoliu vivo. Cercando-o, guiando-o, apesar dele não saber onde
estava indo. Ele apenas sabia que ele estava; que ele já foi. Ele era
nada – ninguém – e não havia nada além de estrelas.
E mariposas.
Milhões de asas empoeiradas da cor da luz das estrelas, dançando
através dos raios da lua, voando sobre ele, ao seu redor. Uma
mariposa, muito maior que as outras, macia e cinza, pousou bem
em cima do seu olho ruim.
Ele deu um passo à frente. Seu pé deixou uma pegada sangrenta
na poeira atrás dele. Sangue escorreu de seus dedos, mas ele não
achava que estava ferido.
Mas talvez ele estava. Ele existiu. Ele era real.
Ele estava morto.
Ele percebeu que não se incomodava muito com isso, mas estava
ligeiramente irritado por sua paranoia ter se tornado realidade.
Sua mão se arrastou até seu rosto, cutucando a mariposa com seu
dedo indicador. A mariposa obedeceu, suas pernas leves o suficiente
para registrar um peso em sua pele.
A mariposa e as estrelas giraram em torno dele, até serem um só
e o mesmo; mariposas voando em constelações com pontos de luz
em suas asas empoeiradas.
Algo estava queimando dentro dele, quente em suas veias. Algo
estava mudando e ele não sabia o quê. Algo dentro dele – sobre ele
– havia mudado entre as estrelas, as trevas e as mariposas
brilhantes.
Ele pensou, com muita clareza, esse não é o destino que meu pai
planejou para mim.
Sangue, demônios e monstros. Uma vontade de degradar. Era
isso que ele deveria ver.
Não estrelas, nem mariposas, nem música,
— Interferindo nos planos de Izak Meleski do além-túmulo. —
Serefin disse em voz alta para a mariposa em seu dedo. Pelo menos,
ele pensou que falou em voz alta, ele não tinha certeza do que
significava nesse lugar.
A mariposa bateu as asas em reconhecimento.
Sua visão ficou em túnel...
Um mundo queimando. Grazyk em escombros. Os rios
Tranavianos cheios de sangue e morte. Montanhas Kalyazi
chamuscadas. As domas da Corte Prateada fumegando. Um mundo
quebrado, um mundo faminto. Sangue caindo do céu como chuva.
Um futuro que não poderia – não seria – parado. Um futuro já
posto em marcha.
Serefin acordou.
Trinta e Dois: Nadezhda Lapteva

Svoyatova Serafima Zyomina: pouco se sabe sobre Svoyatova


Serafima Zyomina. Apesar de ser uma clériga, ela era abençoada
por uma magia estranha que nunca parecia funcionar da mesma
maneira duas vezes. Se alguém era seu inimigo, vê-la no campo de
batalha significava uma morte lenta e agonizante, pois ela era uma
clériga de Marzenya, e ambas eram cruéis.
—O LIVRO DOS SANTOS DE VASILIEV

A chuva da noite anterior ficou cada vez pior, se tornando uma


tempestade massiva. Relâmpagos brilhavam a cada poucos minutos,
deixando o santuário em preto e branco. Fez a sala parecer violenta,
com raiva, um lugar de morte – adequada para um rei de monstros.
Malachiasz se encaixou perfeitamente em seu papel. Ele estava
usando um capuz com o formato da cabeça de um abutre.
Sombreava metade do seu rosto com um bico perverso. Uma capa de
penas negras caía pesada em seus ombros. Ele era flanqueado em
cada lado por Abutres com máscaras de ferro que cobriam a maior
parte de seus rostos. Ele se sentou no trono de uma maneira casual,
confortavelmente arrogante. Uma perna em cima do apoio de braço,
seus dedos tatuados cruzados sobre o peito.
Um garoto coroado rei dos monstros para um reino de
condenados.
Algo coçou na parte de trás da cabeça de Nadya. Um movimento.
Foi desconfortável. Algo tinha mudado. Ela não conseguia nomear;
ela descreveu como nervosismo.
Quando o rei chegou, ele estava flanqueado por apenas alguns
guardas. Tanta confiança cega em Malachiasz. Tanto desespero por
um poder tão abominável.
Malachiasz empurrou o capuz para ficar nos ombros. Suas unhas
eram ferro, mantidas em um comprimento o suficiente para
parecerem garras. Seus olhos estavam contornados com Kohl e mais
contas de ouro estavam presas em seu longo cabelo preto.
Ele se parecia com um rei.... Nadya percebeu, sentindo seu
estômago embrulhar. Como ele a fez pensar que ele era
insignificante?
Feroz e selvagem, com seu cabelo em tranças e nós. Um sorriso
brilhou em sua boca, os dentes de ferro, os incisivos muito afiados.
Um pouco mais e esses incisivos seriam presas em sua boca.
O coração batia forte, como se estivesse na sua garganta. Ela
estava usando uma intricada máscara branca de pérolas e renda. Seu
cabelo, preso em uma bagunça complicada de tranças. Eles tiraram
o feitiço do seu rosto e a tintura do cabelo também, e apesar de ela
já ter parado de notar a magia de Malachiasz em sua pele, ela sentia
sua ausência. Suas velhas voryens estavam presas a seus
antebraços, o peso sólido era confortável.
Izak Meleski, o rei de Tranavia, parou em frente ao Trono Vil de
Malachiasz. Ele não se curvou, mas um sorriso apareceu em seus
lábios.
— Ouvimos boatos da deserção de um dos seus Abutres, Vossa
Excelência. — O rei disse. — Imagine nossa surpresa quando a
verdade foi revelada!
Nadya ficou tensa ao ouvir o título honroso dos lábios do rei.
— Meros exageros — disse Malachiasz. — Passei um tempo em
Kalyazin para — ele parou, pensando — propósitos acadêmicos.
Devo oferecer minhas condolências, Vossa Majestade. Sua Alteza foi
um testamento da magia Tranaviana, sentiremos sua falta. — Caos e
loucura eram fios cuidadosamente cultivados em sua voz.
— O quê? — Nadya sussurrou; sua mão pegou o antebraço de
Rashid.
Ele franziu o cenho, incerteza aparente em suas feições.
Nadya se sentiu como se estivesse lutando para se equilibrar em
meio a um deslizamento de terra. Não, eles deveriam salvar Serefin,
não matá-lo. Malachiasz sabia, ele concordou. Deixar Serefin em
perigo, era colocar o rei um passo mais perto de seu objetivo.
E se essa fosse sua intenção o tempo todo?
Ela olhou para Malachiasz, não como rei, procurando por uma
indicação de que ele não queria que Serefin morresse. Havia apenas
a expressão fria de um monstro.
O rei cuidadosamente entrelaçou suas mãos nas costas. Nadya
viu Żaneta ao seu lado, parecendo pálida e retraída. Ela não viu nem
Ostyia e nem Kacper.
— Kalyazin vai pagar pela morte de meu filho. — O rei disse com
a voz ligeiramente vacilante.
Nadya trocou um olhar de alarme com Rashid. Não era possível.
— Nós vamos começar com a Corte Prateada. — Ele continuou,
punho cerrado. — E vamos colocá-los de joelhos.
Uma sensação arrebatadora de magia sendo usada varreu a sala.
Izak puxou o braço para baixo. Um raio caiu do lado de fora,
sacudindo a sala com flashes erráticos e frenéticos. A magia era
avassaladora, Nadya podia sentir o gosto no ar, cobre, sangue. Só de
pensar o quanto seria necessário para controlar os céus assim era...
inimaginável.
Malachiasz olhou para o céu, sua expressão despreocupa. Então
ele sorriu.
— Então, funcionou. — Sua voz contemplativa, mas ainda audível.
— Eu não tinha certeza, sabe. Não tinha sido confirmado que usar
sangue de um mago de sangue poderoso intensificaria o processo.
Não. O sangue de Nadya congelou suas veias. Parijahan fechou os
olhos e se recostou no pilar. A expressão de Rashid escureceu.
— Parece diferente para mim. — O rei disse, afiado como uma
navalha.
— Como você vai saber como é o poder dos deuses? — Malachiasz
perguntou. — Você não tem nada para comparar.
— E você tem?
Malachiasz juntou as mãos.
— Bem, eu era, – como falaram? – o sucesso final do meu culto
antes disso. Você teve o que eu prometi, não teve?
Um brilho cortante de dentes de ferro. Um mestre de marionetes,
puxando todos com suas palavras doces e pedidos em pânico por
confiança. Nadya observou das sombras e estreitou os olhos. Eles
deveriam deixar o rei pensar que ganhou, não significava que eles
dariam o poder que ele tanto desejava.
A vontade de lutar de Nadya se foi. Malachiasz o tinha feito de
qualquer jeito? Uma blasfêmia orquestrada na tentativa de destruir
o reino dela?
Ela esperava que estivesse errada. Ela tinha que estar errada.
Exceto que o rei precisava que Malachiasz completasse a
cerimônia. O que significava que Malachiasz o fizera de boa
vontade. Ele tinha traído eles? Pelo quê?
Mas ao vê-lo sentado em seu trono feito de crânios e ossos, ela o
viu como ele sempre foi. Tranaviano até seu âmago: impiedoso e
lindamente cruel. Ela foi uma tola por acreditar nele. Houve tantos
sinais que ela ignorou de bom grado, escolhendo colocar sua fé em
um monstro.
O que o rei poderia fazer aos céus com o poder que ele agora
tinha? Se a magia humana criou o véu que separava os deuses de
Tranavia, o que essa magia faria?
Nadya pensou rápido. Se dependesse dela parar isso, então que
seja. Ela olhou para Rashid que parecia tão confuso quanto ela.
— Não entendo o porquê. — Ele disse baixinho.
Ela pegou o pingente de prata em seu pescoço e olhou a espiral;
ela enrolou o cordão na mão como faria com as contas de oração. Se
tudo que ela tinha era um deus-que-não-era-deus esquecido e
sanguinário, então teria que servir.
O rei pegou o ombro de Żaneta e a empurrou para mais perto do
trono de Malachiasz. Ela tropeçou, caindo aos pés do Abutre
Sombrio.
Malachiasz se inclinou para frente, levantando o rosto dela com
uma garra de ferro.
— Você queria ser rainha. — Ele sibilou. — O preço do poder é
sangue; sempre foi. O preço de virar um deus? Bom, é a morte. —
Ele curvou a cabeça, o movimento desconcertante em sua fluidez. —
Mas tanta deslealdade. Esses caprichos inconstantes pertencem
àqueles que sonham subir de nível para lugares os quais eles não
pertencem. — Ele passou sua garra de ferro pela bochecha dela.
A sua expressão mudou para horror.
Sua boca se inclinou ligeiramente nos cantos.
— Sutileza seria melhor para uma rainha. Traição é uma mácula
que não é facilmente ignorada. Posso te contar um segredo. — O
sorriso dele ficou maior quando ela não respondeu. — Minha ordem
foi construída com traição. Você vai se encaixar perfeitamente.
Nadya viu os lábios de Żaneta formarem a palavra não, seu terror
silencioso. Malachiasz se endireitou, elevando-se sobre a garota
enquanto acenava uma mão lânguida para os Abutres mascarados
que a agarraram.
— Somos muito seletivos com aqueles que recebemos na ordem.
— Ele disse. — Parabéns. Você foi selecionada. Estou ansioso para a
sua próxima traição inevitável. — Ele falou enquanto Żaneta era
arrastada gritando para fora da sala.
Nadya fechou os olhos.
— Ele não faria. — Ela ouviu Rashid murmurar.
Mas essa era a coisa – ele faria. Ele nunca foi uma vítima
torturada do seu culto, toda e qualquer uma dessas implicações
tinham sido falsas, cuidadosamente pintadas para ganhar sua
confiança. Ele foi o sucesso final. Não havia nada que ele não faria
para conseguir o que ele queria.
E era isso que Nadya não entendia. O que ele queria?
Trinta e Três: Serefin Meleski

Svoyatovi Nikita Lisov: um clérigo do deus Krsnik que escolheu


abandonar a vida de um homem santo e, em vez disso, usar o
poder concedido pelo deus a ele para entreter. Enquanto a igreja
lutava contra sua canonização, o uso de um dos ossos de um dedo
mudou o rumo de uma batalha em 625, quando explodiu em
chamas e exterminou uma companhia Tranaviana inteira.
—O LIVRO DOS SANTOS DE VASILIEV

Serefin estava preso na escuridão.


Se eu estiver em um caixão, vou dar o inferno a eles, ele pensou,
irritado.
Ele se sentia estranho, nervoso e febril. Ele pressionou as mãos
para cima, preparando para sentir a tampa do caixão.
Suas mãos não encontraram nada além de ar.
Ele suspirou aliviado. Agora ele tinha que sair daqui, onde quer
que fosse. Ele lutou para ficar de pé, sem equilíbrio enquanto se
levantava. Por sangue e osso, ele se sentia péssimo.
Ele considerou lançar luz e se mexeu para pegar seu livro de
feitiços.
Idiota, é claro que você não tem isso. Mas ele parou. Estrelas,
mariposas e música. Ele se perguntou...
Ele não tinha nada para extrair sangue. Não havia navalhas nas
bainhas das suas roupas. Ele não tinha nenhuma faca. Tudo que ele
tinha era a si e a escuridão em volta dele.
Ele esfregou o dedo indicador na unha do polegar. Ele mantinha
as unhas curtas e aparadas, então isso não funcionaria.
Isso vai doer, ele pensou com resignação enquanto empurrava
sua manga e mordia com força seu antebraço.
Sangue encheu sua boca e veio com uma onda intoxicante de
poder. Ele não tinha livro de feitiço, nenhum condutor. Não era
possível lançar magia de sangue sem, mas Serefin canalizou o
tremor nervoso, a inebriante onda de poder do sangue.
Ele lançou um punhado de estrelas. Elas brilharam nas trevas,
iluminando o suficiente para ele ver que ainda estava nas
catacumbas. Pelo menos, ele sabia como sair.
Ele abriu caminho para fora das catacumbas, perturbando os
guardas do lado de fora.
— Vossa Alteza. — Um disse, seu tom estranhamente grave
enquanto desembainhava sua espada.
— Oh, é assim que vai ser? Eu sou assassinado e todo mundo tem
ordens de me matar imediatamente? Só para esfregar na cara?
Ele não sabia se tinha mesmo morrido, mas, caramba, soava
significativamente mais poético.
Ele se perguntou se poderia matar com as estrelas que ainda
flutuavam preguiçosamente em volta de sua cabeça. Só tinha um
jeito de descobrir. A mordida ainda sangrava lentamente e ele a
usou para cobrir suas mãos. Antes dele ter a chance de usar sua
magia, a ponta de uma lâmina saiu do olho de um dos guardas. O
outro caiu ao lado dele, revelando uma visão triste com um olho só.
— Serefin. — Ostyia ofegou. Seu único olho estava vermelho,
como se ela tivesse chorado. Serefin nunca viu Ostyia chorar. O
mais perto que ela já esteve disso, foi quando seu cachorro foi
morto em uma caçada quando eles eram crianças. Mesmo assim, ela
recebeu a notícia com o rosto impassível.
Ela se atrapalhou com os guardas mortos, e entregou a Serefin
uma adaga. Ela estremeceu ao ver a mordida no seu braço.
— Temos que ir. — Ela disse. Parando, ela se virou e jogou os
braços em volta dele. — Você não tem permissão para morrer. — Ela
disse, ferozmente, a voz embargada.
— Muito tarde para isso. — Serefin disse, um pouco chocado com
o abraço dela. — Eu acho. Talvez não. O que está acontecendo? —
Ele percebeu que ela estava sozinha e sentiu uma pontada de
pânico. — Onde está Kacper?
Um estrondo de relâmpagos e trovões acenderam o corredor por
um instante, antes de serem mergulhados de volta na penumbra
iluminada por tochas.
— Nós temos que ir. — Ela repetiu. — Não sei onde Kacper está,
sinto muito, Serefin. — Ela ainda não o tinha soltado. Se duvidar, ela
o agarrou com mais força. — Seu pai anunciou sua morte essa
manhã. Ele está usando como vantagem, dizendo que foram
assassinos. Ele está na capela agora... e Serefin? — Ela finalmente se
afastou, o rosto pálido. — O que quer que ele estivesse tentando
fazer, ele foi bem sucedido. E você deveria continuar morto.
— Bom — Serefin disse alegremente, mascarando seu horror
quando Ostyia se afastou. Ele prendeu a adaga em seu cinto. Ele não
se preocupou em envolver a ferida da mordida. Deixe que todos
vejam seu desespero. — se meu pai quer ser um deus, tenho que
mostrar a ele o que vi do outro lado.
O olho de Ostyia se arregalou.
— O que você viu?
— Estrelas. — Serefin disse. Ele acenou a mão e as estrelas ainda
pairando em constelações em volta de sua cabeça enquanto passava
por cima dos corpos e começou a andar pelo corredor na direção do
pátio. — Havia música. E... — Ele se interrompeu.
— Mariposas.
E milhares de asas brilhantes e empoeiradas explodiram em volta
dele.
Trinta e Quatro: Nadezhda Lapteva

Svoyatova Raya Astafyeva: diziam que as estrelas seguiam


Svoyatova Raya Astafyeva para onde ela fosse. Um caminho de luz
brilhante entre a escuridão da guerra.
—O LIVRO DOS SANTOS DE VASILIEV

Nadya viu quando a chuva batendo nas janelas da catedral ficou


espessa e vermelha. Sangue. Era sangue.
Sangue chovia do céu.
Parijahan seguiu o olhar de Nadya e seus lábios se apertaram.
Isso tudo estava acontecendo na ordem errada.
Nadya deixou sua magia vagar de onde ela estava, escondida nas
sombras de um pilar de mármore. Ninguém a notaria ali. Uma
garota pálida não seria notada enquanto o rei de Tranavia
transformava os céus em sangue e brincava com mais poder do que
qualquer mortal deveria possuir.
Todo aquele poder traria Kalyazin aos joelhos em instantes. Tudo
que havia entre eles e essa magia, era uma clériga de dezessete anos.
E apesar de seu poder ser significante, não era nada comparado a
isso. Não enquanto os deuses estivessem fora de alcance.
Mas não todos os deuses. Ela esfregou seu polegar no pingente
em sua mão. Alguns deuses exigem sangue.
Ela já tinha ultrapassado o que achava ser verdade. Não havia
nada a impedindo de ir mais longe, não se ela fosse salvar todos. Ela
poderia viver para se arrepender disso, mas ela também poderia não
sobreviver, e isso era o suficiente para fazê-la tomar sua decisão. Ela
tinha poder agora, poder próprio e, embora ela não pudesse
pressionar mais contra o véu de magia, talvez isso tenha mudado
também.
Ela deixou uma de suas lâminas cair na sua mão. Rezando
baixinho, ela tirou sua máscara e a deixou cair. Ela cortou
cuidadosamente uma espiral na palma, o mesmo padrão do
pingente, e pressionou o metal frio no punho.
Sangue será então, se for necessário.
Ela podia sentir o peso opressivo do véu em volta de Tranavia
caindo sobre ela. Ela empurrou seu poder contra ele, um único
ponto de luz em uma extensão de escuridão. Lá estava a menor
fenda. A cabeça do rei girou quando ele também sentiu. Malachiasz
enrijeceu, os dedos tremendo de uma maneira estranha enquanto
sua mão se movia para pressionar seu coração. Ele olhou para o
teto, uma expressão intrigada em suas feições.
Sangue estava escorrendo dos dedos dela e nas suas mãos quando
ela cerrou seu punho.
Malachiasz deu um sorriso torto e foi outra pancada no coração
de Nadya. Ele se afastou do rei, juntando as mãos atrás das costas. A
atenção do rei se fixou nela.
Não houve aviso quando o poder do rei se moveu contra ela. Um
momento, e as pedras do chão estavam ondulando como água, o
chão logo desapareceu debaixo dos pés de Nadya. Um piscar de
olhos e ela caiu no chão a frente dela, sua voryen voando de sua
mão e caindo no chão.
— O que é isso? — O rei agarrou um punhado de seu cabelo e
puxou sua cabeça para cima.
Ela reprimiu um grito de dor e empurrou sua magia com mais
força contra o véu. Se fosse assim que ela morreria, então tudo bem.
Tudo bem. Ela iria acabar com esse véu primeiro, e trazer os deuses
de volta a Tranavia com seu último suspiro.
Não houve chance de responder à pergunta do rei, nem tempo
para uma piada inteligente; o rei bateu com a mão na lateral do
rosto dela e, dessa vez, ela gritou.
Lanças de calor branco atravessaram seu crânio. Tudo se
estilhaçou – preto e branco e vermelho e preto de novo – e ela
quase desmaiou. O rei soltou ela.
Ela se apoiou com uma mão. Seu estômago se revirou,
ameaçando despejar seu conteúdo no chão grotesco de ossos
branqueados.
— Bem, criança, você está em um lugar difícil agora, não é
mesmo?
— Olá, Velyos. — Era bom poder se comunicar com um deus de
novo, mesmo se Velyos fosse outra coisa. Algo que não era bem um
deus. Mas algo com poder que Nadya poderia aproveitar mesmo
assim. Sua visão estava embaçada quando ela abriu os olhos, sangue
escorrendo do nariz. Ela sentiu uma mudança de poder, viu a mão
do rei se mover em sua direção. Um golpe mortal.
Ela segurou o poder dele com o dela. Isso a sacudiu até os ossos,
seu cotovelo se dobrando debaixo dela. Ela não conseguia parar. Era
muito, muito forte, tudo que ela poderia fazer era segurar por
alguns segundos antes de consumi-la.
— Você não quer quebrar esse véu, sabe disso, certo? — Velyos
disse. — Você realmente quer destruir esse país com tudo dentro?
— Se eu não trazer os deuses de volta, o rei vai ganhar. Tranavia
vai ganhar. Eu não posso fazer isso sozinha. Eu vim aqui para
trazer os deuses de volta.
— Eu te mostrei a verdade e você ainda quer a ajuda deles?
Nadya vacilou e sua magia também. O poder do rei fluiu através
das rachaduras da sua armadura e com isso os sonhos dela
voltaram.
— Muitas pessoas acharam que eu era tão ingênua que podia ser
controlada. Não vou permitir que você faça isso também.
Mas ainda assim, ela não podia fazer isso sozinha.
— Talvez você não precise.
As portas da catedral se abriram com um estrondo. A magia que a
derrubava cessou.
Serefin Meleski, coberto com sangue e cercado por uma
constelação de luzes cintilantes e mariposas esvoaçantes, entrou na
sala. O peito de Nadya se apertou quando ela tocou o poder que
emanava dele. Era diferente de tudo que ela já tinha experimentado
antes. Diferente dos Abutres, diferente do horror que seu pai tinha
se tornado. Isso era etéreo e sombriamente encantador.
Quando ela percebeu como era o poder dele, foi como se ela
tivesse mergulhado em água gelada.
Era como o poder dos deuses. Ou, não, era como o poder que ela
vislumbrou quando falava com Velyos.
Enquanto Serefin examinava a sala, o olhar dele encontrou o
dela. Ela ficou tensa quando reconhecimento brilhou em seus olhos
azuis pálidos. Mas seus lábios se contraíram em um sorriso.
— Não estou sozinha então?
— Não. — Velyos respondeu. — Não completamente.
Serefin Meleski
Um dia antes e Serefin prenderia a clériga assim que a visse. Uma
semana antes, ele teria a matado imediatamente pelo poder que seu
sangue nutria. Mas agora, vendo a garota caída no chão com sangue
manchando seu rosto e um olhar assassino, Serefin nunca tinha
ficado tão feliz de ver alguém na sua vida.
Claro que a garota de alguma cidade longínqua Tranaviana era a
clériga se escondendo em plena vista. Serefin teria se considerado
um tolo por ter perdido os sinais, se ele não tivesse a desculpa de
estar preocupado com outras coisas maiores. Uma desculpa inútil,
considerando tudo.
— Pai. — Ele chamou radiante. — Não sei com o que estou mais
ofendido, que você me matou, ou que você usou minha morte para
benefício próprio, se eu tivesse morrido. Eu morri? Ainda não está
muito claro. Mas estou aqui agora! Enquanto aplaudo a imaginação
exigida para conseguir tanto da minha morte, realmente, eu não
tinha ideia que eu fosse tão importante, e todo mundo gosta de se
sentir especial. Estou magoado por não conseguir colher nenhuma
recompensa disso. Porque, você sabe, aparentemente, estou morto.
O choque no rosto de Izak Meleski foi o maior presente dado à
Serefin em toda sua triste vida.
— Serefin. — Ele disse, a voz chocada.
— Oh, não fique tão surpreso. — Serefin disse. — Como se você se
importasse.
O Abutre Sombrio desceu de seu estrado, as mãos presas atrás
das costas, o rosto cuidadosamente impassível. Ele se aproximou
devagar de Serefin. As mariposas tremularam nervosas ao redor de
Serefin.
— Vossa Alteza. — Malachiasz disse, curvando a cabeça. — Você
percebe o que isso significa, certo?
Serefin não tinha ideia do que o Abutre estava falando. Ele olhou
para o garoto mais jovem enquanto o circulava, lentamente.
— Não posso dizer que sim, Vossa Excelência. — Serefin
respondeu.
Malachiasz girou nos calcanhares, encarando o rei de novo.
— Acredito que isso é um golpe. — Seu sorriso alegre revelou
dentes de ferro.
O rosto de Izak escureceu e poder turvou os cantos escuros da
sala. Malachiasz se virou para Serefin novamente.
Serefin tirou a adaga do cinto e cortou uma linha fina no seu
antebraço. As estrelas em volta de sua cabeça brilharam. Malachiasz
olhou para elas, uma mão se levantando para cutucar uma das
mariposas no ar com uma garra de ferro.
— Fascinante. — Ele murmurou.
Então, ele se foi, e a escuridão varreu o chão como uma
inundação de tinta em direção a Serefin.
Então agora tenho que lutar contra a magia de meu pai – que é
de um tipo que não entendo – com minha magia que também não
entendo, Serefin pensou sombriamente.
O Abutre Sombrio voltou ao trono. Ele girou preguiçosamente
um cálice no braço do tono, e Serefin viu quando a clériga se
levantava e disparava para uma adaga que estava a poucos passos de
distância.
Era hora dele testar o que ele poderia fazer com esse poder.
Nadezhda Lapteva
Os olhos de Malachiasz se fecharam. Ele inclinou a cabeça para trás,
expondo sua garganta para a lâmina de Nadya.
— Cometi um erro ao não te matar? — Ela sussurrou, sua voz
falhando. Lágrimas queimavam em seus olhos.
— Quase definitivamente. — Sua mão apertou o braço do seu
trono. Seus olhos se abriram, cintilando ônix.
Nadya levantou o olhar para ver todos os Abutres – aqueles que
desertaram de Malachiasz – caindo. Ela soltou um suspiro,
pressionando sua testa na lateral da cabeça dele.
— O que você fez?
— Não tinha como parar isso. — Ele murmurou. — Começou há
muito tempo. Sempre iria acontecer.
— E você voltou para ver sua grande vitória. — Ela disse com os
dentes cerrados. — Traga a clériga, ela será útil, ela pode observar
seu reino desmoronar.
Um lampejo de dor cruzou seu rosto.
— Somos tão diferentes, Nadya? — Ele levantou a mão, os dedos
com garras longas, e pressionou seu polegar nos lábios dela. — Nós
dois ansiamos pela liberdade. Por poder. Por uma escolha. Ambos
queremos ver nossos reinos sobreviverem.
Alguns Abutres lutaram para se levantarem. Parijahan surgiu das
sombras para lidar com eles. Serefin não conseguiria aguentar seu
pai por muito tempo.
— Nós dois sabemos que somos os únicos que podem salvar
nossos reinos. — Ele continuou com a voz suave.
A lâmina dela deslizou em sua mão trêmula, cortando uma linha
rasa em sua garganta. O carmesim escorreu pela palidez de sua pele.
Ele parou, os olhos gelados nunca deixando os dela.
Nadya tinha sido tão terrivelmente ingênua. Ela escutou seu
coração, que sussurrava que esse garoto, com um sorriso charmoso
e mãos gentis, não queria fazer mal; ele era perigoso, ele era
emocionante, mas suas intenções eram boas. Mentiras, mentiras,
mentiras.
Estavam todos observando o rei de Tranavia; ela se perguntava se
eles deveriam ter observado Malachiasz esse tempo todo.
— Você vai me ajudar a parar isso. — Ela disse.
Ele ficou em silêncio por muito tempo.
— Vou destruir seus planos cuidadosamente traçados para
realizar os meus.
— Não. — Ele finalmente disse. — Eles vão se alinhar, veja.
Não fazia sentido e ela não entendia. Seu coração, apenas pedaços
de carne retalhada, batendo entre suas costelas. Ele é apenas um
monstro, trevas em formato de garoto. Ela estava dormente.
Ela levantou sua lâmina da garganta dele, descendo e deslizando
sua mão pelo pulso dele. Ela puxou a mão dele, arrastando sua
lâmina pela mesma espiral que ela cortou na dela. Ele sibilou
quando ela pressionou o pingente no corte, fechando a mão dele no
pingente e entrelaçando seus dedos.
— Eu poderia fazer muito com um sangue como o seu. — Ela
sussurrou, sua boca no ouvido dele. — E quero que você saiba que
alguns deuses exigem sangue.
Seus olhos mudaram de ônix para pálido, seu queixo inclinado
para baixo quando um sorriso apareceu em seus lábios.
— Cúmplices em heresia, de fato.
Ela sentiu o poder dele colidir com o dela, um pesadelo e
sombrio. Doendo e agitando como veneno e se infiltrando dentro
dela. Ela deixou entrar, deixou se misturar com seu próprio poço de
luz e divindade.
— Agora que você sentiu poder de verdade, towy dżimyka —
Malachiasz murmurou, — o que você vai fazer com ele? — Ele riu
suavemente e passou o pingente de volta pela cabeça dela, passando
seus dedos sangrentos por sua bochecha. — O que você vai fazer
com sua liberdade?
Ela o encarou, esse garoto quebrado que era um horror, e um
mentiroso e tinha começado esse desastre. Seu poder era inebriante.
Ela moveu seu rosto para mais perto, seus lábios dolorosamente
perto dos dele. Seu coração dormente e ingênuo gritou para ela
perdoá-lo de novo, mais uma chance, mas ele não merecia mais
chances.
— Vou salvar esse mundo de monstros como você.
— Então aqui está a sua chance.
Ela pressionou seus lábios na têmpora dele e se afastou. Serefin
estava de joelhos, curvado de dor, sangue escorrendo de sua cabeça,
uma mão com os nós dos dedos brancos no chão o segurando.
Mariposas mortas cobriam o chão ao seu redor. As estrelas em volta
de sua cabeça começaram a piscar.
Nadya fez outro buraco no véu. Ela não o quebrou
completamente, não ainda, só o suficiente para sentir a presença de
Marzenya. Sua ira, seu gelo, sua raiva. Era o suficiente para Nadya
pegar as duas metades de poder dentro dela – o seu próprio e o do
monstro – e transformá-los em algo que ela poderia usar. Por um
momento cegante e terrível, a língua sagrada inundou os sentidos
de Nadya. Ela via apenas luz; ela ouvia apenas os sinos da divindade;
cobre encheu sua boca.
Izak Meleski virou em direção a ela, e Nadya foi atingida por um
peso esmagador e agonizante. O poder do homem mandou horrores
para a mente de Nadya, mas ela tinha visto horrores. Pouco restou
para conseguir assustá-la.
Ela puxou sua voryen para usá-la como canal para seu poder,
empurrando as chamas para o chão e em direção ao rei. Elas
estavam tingidas com sombras. As chamas tocaram o rei, mas ele se
afastou, forçando um novo horror na mente de Nadya.
Ela se desvencilhou. Luz saiu dos seus dedos e ela chamou um
pilar de poder ofuscante do céu – do buraco no véu – para cair sobre
o rei.
Por um momento, ela pensou que o tinha. Mas um poder
restritivo caiu sobre ela, a forçando a ficar quieta.
Os vasos sanguíneos estouraram em seus olhos com a tensão que
pesava sobre ela. Sangue escorreu de seu nariz, vazou de seus olhos,
ela podia sentir em seus ouvidos.
Ela estava morrendo.
Serefin Meleski
Quando seu pai se virou, parecia que Serefin voltou a respirar
depois de se afogar. Ele engasgou, sufocando com sangue e se
forçou a se levantar.
A clériga estava em pé, congelada. Luz branca cercou sua cabeça –
quase como uma auréola – mas algo estava manchado e ela
estremeceu em tremores erráticos. Sangue foi drenado dela como
água. Serefin deu um passo em sua direção, mas seus joelhos
falharam. Ele não tinha mais nada; algumas mariposas que
tremulavam fracamente ao redor dele, não tinha sangue suficiente
para lançar. Ele estava completamente seco.
Como uma sombra, a garota Akolana que Serefin viu atrás da
clériga deslizou para o centro da sala. Ela estalou o pulso em um
borrão violento. Era um chicote, Serefin percebeu vagamente. O
couro embotado atingiu Izak Meleski diretamente em sua têmpora e
ele tropeçou.
— Nadya! – A garota Akolana gritou quando a atenção do rei se
voltou para ela. Seus membros paralisaram.
Serefin olhou para Malachiasz, que assistia impassível de seu
trono, o queixo na mão. Todo aquele poder e, ainda assim, ele não
fez nada. Ódio queimou nas veias de Serefin. Ele sabia que o Abutre
Sombrio era um perigo, mesmo assim ele se permitiu acreditar com
esperança tola que talvez ele era um aliado, quando, na verdade, ele
era só outro monstro.
Trinta e Cinco: Nadezhda Lapteva

Svoyatova Valentina Benediktova: uma clériga de Marzenya cujo


caminho ficou obscuro quando cruzou com uma maga de sangue
Tranaviana, Urszula Klimkowska. Todos os registros de Valentina
terminam lá. Ninguém sabe se Valentina matou Urszula ou vice-e-
versa. Sua canonização aconteceu devido ao milagre que ela
concedeu quando tinha doze anos, defendendo a cidade de
Tolbirnya. Não há registro de sua morte; seu corpo nunca foi
encontrado.
—O LIVRO DOS SANTOS DE VASILIEV

Nadya estendeu as mãos e quebrou o aperto do rei. Ele continuou


com sua atenção em Parijahan, a torturando. Nadya pegou sua
lâmina em sua mão ensanguentada e puxou seu poder, movendo-se
para o outro lado da sala rapidamente. Ela atravessou com a lâmina
as costas do rei.
Magia divina, magia de sangue e outra coisa, algo diferente. Poder
que não deveria ser combinado; poder forte o suficiente para
destruir aquele que o empunhava. Magias tão opostas que, em
outras circunstâncias, seguradas por outra pessoa, se destruiriam
antes de serem formadas em um feitiço formidável.
Mas Nadya conhecia poder divino, e ela tocou o poder de
Malachiasz, conhecia seu formato, escuro como era, e ela conhecia
bem sua própria magia.
Ela forçou a torrente de magia através da lâmina e do rei. Isso
mataria até mesmo um Deus.
Ele cambaleou, seu corpo estremecendo. Nadya puxou a lâmina
para fora, olhando para ela com horror desprezível antes de
atravessá-lo em seu corpo uma segunda vez. Ela caiu de joelhos.
Parijahan se encolheu, sangue jorrando dos cantos de sua boca.
Houve silêncio.
Em seguida, o som único e retumbante de passos no chão de
mármore. Nadya levantou a cabeça com um pouco de dificuldade
para observar quando Malachiasz desceu do seu estrado, o cálice
que ele estava brincando de novo em sua mão.
A expressão em seu rosto era estranha. Olhos vidrados, suor
escorrendo de duas têmporas. Ele engoliu em seco, os olhos se
voltando para Nadya tão rapidamente que ela se perguntou se tinha
imaginado.
— Obrigado. — Ele disse com a voz suave. — Veja, não achei que
ia funcionar, havia muitas variáveis ao longo do caminho, tantas
coisas que poderiam dar errado, mas você fez exatamente o que eu
esperava.
Nadya enrijeceu. Ela observou, muda, enquanto Malachiasz
chutava o corpo do rei, ajustando-o para que o sangue que escorria
rapidamente caísse no cálice.
— Não... — Ela gemeu. Ela tentou se levantar, chutar o cálice e
impedir o que Malachiasz estava fazendo, mas ela não conseguia.
Seus membros se recusavam a se mover e ela ficou paralisada de
horror enquanto Malachiasz levantava o cálice, balançando o sangue
dentro devagar.
— Malachiasz, por favor. — Nadya teve que forçar as palavras a
saírem de seus lábios.
Ela sentiu a mão de Rashid no seu ombro. Ele se aproximou de
Malachiasz.
Malachiasz levantou uma mão e colocou suas garras de ferro no
peito de Rashid, seu olhar ainda no cálice de sangue.
— Não tente me parar. — Ele disse suavemente. Ele lentamente
encontrou o olhar suplicante de Rashid. — Por favor.
— Isso não vai consertar nada, Malachiasz. — Rashid disse.
— Você não entende. — Rebateu Malachiasz. — Isso — ele acenou
para o corpo do rei. — não vai ser o suficiente para parar a guerra.
Esses deuses Kalyazi transformarão Tranavia em cinzas, igual
destruíram seu próprio país. Eu não posso deixar isso acontecer. Eu
não vou.
— Isso não vai ajudar.
Nadya lutou para ficar de pé. Ela deu um passo trêmulo em
direção a ele, enrolando os dedos sobre os dele no cálice. Ele estava
tremendo.
— É isso que você queria? — Ela perguntou fracamente. — Todas
as mentiras, todo o planejamento, por isso? — Um lampejo de
clareza, a compreensão que ele queria Serefin morto, para tirar
totalmente o trono secular da questão e clamar tudo. — Você acha
que vai salvar esses países. — Ela sussurrou, horrorizada. — Isso só
vai causar mais destruição, Malachiasz, por favor, os deuses não são
assim.
— Nadya, eu te mostrei liberdade. Você sabe o que acontece
agora. — Sua voz mudou, o tom acusatório. — Você sabia o tempo
todo.
Ela sabia. E ela estava disposta a sacrificar Tranavia para salvar
Kalyazin. Sua busca era divina e os Tranavianos eram hereges. Mas
ele estava errado; não terminaria desse jeito.
— Eu vou me tornar mais. — Ele disse, soando frenético. — Você
não consegue ver? Eu te disse.
Ela piscou, assustada. Ele tinha dito. Ele disse a ela que os
Meleskis precisavam ser depostos. Que os deuses precisavam ser
depostos.
Ela estava cega demais para juntar as peças.
Ela estendeu as mãos, as prendendo no cabelo dele, em cada lado
de sua cabeça.
— Nós somos tão diferentes, Malachiasz? Acabou. Solte isso. Isso
vai te destruir.
O Abutre Sombrio balançou a cabeça.
— Esperei muito tempo para isso. — Ele inclinou a cabeça, o olhar
desfocado. — Por que voltar quando você pode ir mais longe? Por
que deixar Tranavia queimar se eu posso salvá-la?
Os nós dos seus dedos ficaram brancos quando seu aperto ficou
mais forte. Ele se afastou dela e inclinou o cálice para trás,
esvaziando em um longo gole.
Não.
O coração de Nadya disparou de forma doentia. Ela sentiu o
poder de Malachiasz ainda dentro dela queimando contra seu
aperto. O que ele fez? Ela se afastou.
Malachiasz estremeceu e o cálice caiu de seus dedos moles. Sua
cabeça se inclinou para trás, o pomo de Adão balançando enquanto
ele engolia em seco. Seu rosto contraiu. Sangue escorria dos cantos
de seus olhos.
Garras de ferro, dentes de ferro, chifres enegrecidos que se
enrolavam em seus longos cabelos. Asas vastas emplumadas
encharcadas de sangue brotavam de suas omoplatas. Seus olhos
pálidos brilharam em ônix.
Mudanças físicas que foram gravadas em seu corpo por aqueles
do seu tipo. Por que voltar quando você pode ir mais longe?
O que era mais longe? Mais longe era um poder tão corrosivo que
Nadya – através de sua terrível conexão com Malachiasz – já podia
sentir que o consumia. Mais longe, eram as veias debaixo de sua
pele pálida ficando pretas com veneno.
Mais longe, era o poder de um deus – nem mesmo um deus, isso
era pior que qualquer poder divino que Nadya já tocou. Isso era algo
horrível e sobrenatural, torcendo seu corpo e sufocando sua alma.
Drenando o que sobrou de sua humanidade para ser substituída por
algo perverso e louco.
Nadya gritou de dor. Era como se toda manifestação estivesse
acontecendo com ela. O corte na sua mão se esquentou, queimando
seu braço, enchendo suas veias com fogo.
Pontas de ferro se projetaram do corpo dele, escorrendo sangue.
Enquanto ele se levantava, respiração pesada, Nadya ofegou. Ele se
encaixava na imagem dos monstros que aterrorizavam seus
pesadelos.
— Fascinante. — Malachiasz murmurou. Ele pressionou sua mão
em garras no seu coração e franziu o cenho, como se estivesse
sentindo algo apenas ligeiramente incomum. Sua cabeça se
contraiu, se torcendo dolorosamente. Raios e trovões e um gemido
na terra caíram ao redor deles.
Ela deu um passo para mais perto. Colocou uma mão em seu
coração acelerado. Ela derramava lágrimas enquanto ela estendia a
mão e encostava seus dedos na bochecha dele.
— O que você fez, Malachiasz? — Tudo que ela tinha sentido por
ele era nada além de cinzas aos seus pés, mas, ainda assim, seu
coração partido balançou com a ideia de perdê-lo.
Havia loucura em seus olhos negros – loucura e algo
terrivelmente próximo da divindade.
O que era, em essência, a mesma coisa que loucura.
Ele não falou, apenas balançou a cabeça. Ele deu um passo para
longe dela. Desesperada e com o coração partido, ela o puxou para
mais perto e ignorou seus dentes de ferro, sua loucura e o beijou.
Ele tinha gosto de sangue; ele tinha gosto de traição.
— Eu posso sentir. — Ela sussurrou, suas mãos manchando seu
pescoço de sangue. — O que você fez? Eu posso sentir.
Seus olhos tremeluziram de volta para o gelo pálido, agonia total
dentro deles.
— Myja towy dżimyka. Myja towy szanka... — Ele ergueu o rosto
dela. A beijou de novo, cuidadoso com suas garras afiadas, seu toque
dolorosamente gentil. Quando ele se afastou seus olhos voltaram ao
ônix, o gelo desaparecendo na escuridão. — Não é o suficiente.
— Malachiasz? — A voz dela falhou e ela se agarrou a ele mesmo
sentindo que ele se movia para mais e mais longe.
Uma de suas mãos se ergueu; as costas de seus dedos roçaram
sua bochecha.
Ele achou que isso iria curar a ferida aberta de sua alma em
pedaços, salvar seu reino. Ela estava assistindo ele se destruir.
Espiralando em pedaços enquanto ele era torcido em algo muito
além de um monstro.
Mas ele ainda tem seu nome, ela pensou, uma coisa desesperada,
passageira, irrelevante.
Lágrimas escorriam pelo rosto de Nadya e ela pegou a mão dele, a
pressionando na sua bochecha. Ela beijou as costas de sua mão. A
mão dele deslizou da dela.
Suas enormes asas negras se abriram e ele subiu, quebrando a
janela alta da capela e mandando fragmentos de vidro quebrado
chovendo sobre eles. Nadya ficou de pé, sangue manchando sua
pele, os dedos nos lábios.
O véu sobre Tranavia estava diminuindo, o toque dos deuses
voltando. Agora, a presença deles parecia errada. Nadya se preparou
para a raiva de Marzenya, mas nada veio.
Ela podia sentir os deuses, mas eles não falaram com ela.
Trinta e Seis: Serefin Meleski

Svoyatova Evgenia Dyrbova: a última clériga conhecida,


Svoyatova Evgenia Dyrbova, uma clériga de Marzenya, caída em
batalha. Suas últimas palavras foram consideradas uma profecia
de destruição – os deuses retrocederiam, seu toque diminuiria,
clérigos seriam ainda mais raros. Kalyazin estaria condenada, se
nada mudasse, se a guerra continuasse.
—O LIVRO DOS SANTOS DE VASILIEV

Serefin acordou no chão do santuário cercado por mariposas mortas


e cacos de vidro. Ele abriu os olhos a tempo de ver a clériga
desmaiando, seu amigo Akolano não a alcançou a tempo de impedi-
la de cair no chão.
A luz ainda formava uma auréola na sua cabeça.
— Nadya. — O garoto sussurrou, pegando-a no colo. Ele olhou
para Serefin, ficando rígido quando percebeu que ele estava
acordado. Ele gentilmente colocou a clériga no chão e pegou uma
adaga descartada.
— Sabe, se nós também o matássemos, poderíamos acabar com
essa guerra ainda mais rápido. — Ele disse. Se aproximou de Serefin,
a adaga segurada preguiçosamente entre seus longos dedos
morenos.
— Vá em frente. — Serefin murmurou. Onde estava Ostyia? Ele a
perdeu de vista na loucura.
O garoto o estudou. Ele olhou em direção a entrada do santuário.
Ele balançou a cabeça.
— Não. Não acho que você é como seu pai.
Essas palavras inundaram Serefin com alívio.
— Ela vai ficar bem? — Ele se levantou até ficar sentado. Ele não
deveria estar se movendo; ele perdeu muito sangue.
O garoto Akolano olhou para Nadya. Suas feições se suavizaram.
— Não sei. Mas você perguntar me deixa menos inclinado a te
matar. — Ele estendeu a mão. — Meu nome é Rashid.
Serefin o encarou, divertindo-se com a absurda normalidade do
gesto. Ele apertou a mão do garoto.
— Serefin.
Rashid se levantou e caminhou até a garota Akolana,
inconsciente a alguns passos de distância. Enquanto ele a checava,
uma mariposa grande e cinza voou para o chão na frente de Serefin.
— Você foi a única que sobrou? — Ele sussurrou, cutucando a
mariposa com o dedo indicador. As asas da mariposa tremeram.
Não. As mariposas voltariam; as estrelas voltariam. Ele tinha sido
alterado e agora tinha que descobrir o que isso significava.
— Me solta, eu estou bem, estou bem. — A voz da garota Akolana
soou. Ela se sentou, segurando a cabeça. Os olhos dela se
estreitaram enquanto examinava a sala. — Onde... — Mas ela se
interrompeu, sua pergunta ficou inacabada.
Ela se moveu, se ajoelhando ao lado de Nadya. Um raio sacudiu a
sala, muito perto para ser confortável, mas a chuva lá fora agora era
apenas chuva. Serefin pôs-se de pé com dificuldade, procurando a
sala por algum sinal de Ostyia.
Ele a encontrou deitada sob um pilar como uma boneca de pano
descartada. Pânico apertou seu peito. Não parecia que ela estava
respirando. Não, Ostyia não. Ele se ajoelhou ao lado dela, hesitante
em olhar mais perto. Ele não queria a confirmação de uma tragédia.
Ele não queria saber.
— Você não tem permissão para morrer. — Ele murmurou.
Quando ele a tocou, uma constelação de estrelas se formou ao redor
de sua mão. — Se eu não tenho permissão para morrer, você
também não tem.
Ostyia respirou fundo. Ela começou a tossir, os ombros
tremendo.
— Serefin? — A voz dela estava rouca.
— Nós já não tivemos essa conversa? — Ele tentou brincar, mas
não deu certo. Ele quase a perdeu. Ele tinha tão pouco; ele não
conseguia sequer pensar no que poderia ter acontecido com Kacper.
Ele não podia perdê-los.
— Temos que achar Kacper. — Ela disse, se endireitando. Seu
olho se arregalou quando ela estendeu a mão para tocar a pele
debaixo de seu olho ruim. — Você ainda consegue ver?
Quando ele fechou seu olho bom, seu olho ruim ainda era uma
bagunça embaçada.
— Está do mesmo jeito, por quê?
— Está cheio de estrelas, Serefin. — Sua voz estava abafada,
admirada. — Você está rodeado de estrelas.
Ele se apoiou nos calcanhares, sem saber o que dizer. “Sim, é isso
o que acontece agora”não parecia fazer justiça. Ele não sabia o que
significava.
Atrás deles, a clériga se mexeu.
Nadezhda Lapteva
A cabeça de Nadya latejava. Ela encarou o lindo teto da catedral e
contemplou desistir.
Talvez o que eles fizeram mudava as coisas. Talvez as coisas
ficariam melhores agora. Ou, talvez, eles iniciaram algo muito pior.
Sua mão doía com uma dor surda e latejante. A espiral faria uma
cicatriz em sua palma, um lembrete.
Nadya se sentou devagar, olhando para a janela onde Malachiasz
tinha desaparecido. Ele mentiu para ela, a traiu e agora se foi.
Ela se sentia vazia, totalmente esgotada. O príncipe se ajoelhou
na frente dela, obviamente sentindo dor.
Nadya sorriu fracamente. Ela estendeu uma mão.
— Acho que nunca fomos apresentados. — Ela disse suavemente.
O aperto que ela vinha mantendo sobre como ela falava Tranaviano
se soltou, e o seu sotaque Kalyazi derreteu em suas palavras. — Meu
nome é Nadezhda Lapteva, mas pode me chamar de Nadya.
Seu olho ruim parecia diferente. Era um tom mais azul que seu
outro olho pálido, e estrelas cintilavam em constelações em suas
profundezas. Ele pegou sua mão. A mão dele estava quente quando
seus dedos envolveram os dela.
— Serefin Meleski, e, por favor, me chame só de Serefin. — Ele
replicou. Uma enorme mariposa cinza desceu voando do teto e
pousou em seu cabelo castanho. — Você sabia que você tem uma
auréola? — Ele perguntou. Esse garoto estranhamente charmoso
ainda estava lá, sob a exaustão e as estrelas. Debaixo do poder que
parecia divino.
Ela ergueu uma sobrancelha.
— Você sabia que tem uma mariposa no seu cabelo?
Ele sorriu e assentiu.
Um raio caiu do lado de fora das portas da capela, fazendo todos
pularem.
O corpo do rei Tranaviano estava do outro lado da sala. Um cálice
estava no chão ao lado dele. Seu sangue tinha secado nas mãos de
Nadya, deixando-as rígidas.
Seu olhar passou pelo corpo, se fixando no cálice. Ela se sentiu
como se tivesse levado um soco no peito quando ela olhou para ele.
Então ela fez o que se propôs a fazer; ela tinha matado o rei, ela
quebrou o véu. Mas a que custo? Um preço mais alto do que ela
estava disposta a pagar e mais perguntas do que ela estava disposta
a responder.
Ela lançou uma oração para Marzenya. Ela não tinha contas de
oração, ela não tinha nada.
Sua oração foi recebida com silêncio frio e deliberado, e agitou o
coração de Nadya, mas ela sabia que a deusa a tinha escutado. O véu
finalmente, realmente, se foi.
Nadya olhou para a janela estilhaçada da catedral mais uma vez,
fragmentos de vidro espalhando poeira no chão ao seu redor. O
poder escuro de Malachiasz coçava debaixo da pele dela enquanto
lutava contra sua própria magia divina.
Ela o liberaria se pensasse que poderia; se fizesse algum bem, ela
o limparia, quebraria o último pedaço que a ligava ao Abutre
Sombrio.
A palma dela doía e ela mexeu os dedos da sua mão esquerda,
sentindo a pele esticar e apertar sobre a ferida em espiral. Ela se
levantou, os movimentos lentos. No chão, a um espaço do corpo do
rei, estava uma coroa de ferro. Ela a pegou, voltando para onde
Serefin estava sentado, parecendo vagamente confuso.
— O rei está morto, vida longa ao rei. — Ela disse, entregando-a a
ele.
Ele olhou para ela. Seus olhos estavam sobrenaturais agora,
fantasmagóricos e divinos na forma como as estrelas giravam na
escuridão do seu olho esquerdo, um contraste com seu olho direito
pálido como gelo. Serefin riu com cansaço.
— Palavras que nunca pensei que ouviria.
— Onde estão todos os Abutres? — Ostyia perguntou.
— A maioria provavelmente fugiu com o rei deles. — Serefin
disse.
— Acho que a próxima pergunta seria, onde está sua nobreza? —
Parijahan perguntou.
Serefin balançou a cabeça.
— Esperando para ver quem sai da catedral vivo, provavelmente.
Qualquer coisa que requeira que sujem menos as mãos.
Ele estava apertando a coroa com força em suas mãos.
Ele não acha que está pronto para isso, Nadya percebeu. Ele está
assustado.
Era estranho ver Serefin como um garoto e não como um mago
de sangue aterrorizante que sussurravam sobre em todo o mosteiro
onde ela havia crescido. O mosteiro que ele destruiu
completamente.
Ostyia tocou a mão dele.
— Eu vou. — Ela disse, a voz baixa.
Serefin assentiu. Ela saiu da catedral.
Parijahan pegou o cálice que estava perto do rei. Nadya se
encolheu para longe quando ela o trouxe para perto.
— Eu confiei nele. — Parijahan sussurrou, seus olhos cinzentos
enevoados. Ela encontrou o olhar de Nadya, simpatia evidente.
Eu também. Pior ainda, acho que eu o amava.
Sem pensar, os dedos de Nadya se fecharam sobre a haste,
tirando-a dela. Era feito de prata e vidro. Ainda tinha sangue
acumulado no fundo. Seus dedos distraidamente percorreram a
borda.
Tudo parecia turvo e nebuloso. Como se todos estivessem
acordando de um sonho. Era claro que Serefin sentia o mesmo.
Serefin ainda segurava a coroa em suas mãos, atrapalhando-se
com ela, o rosto confuso e dilacerado. Ele se levantou e deu um
passo em direção ao corpo do pai, uma centelha de dor passando por
suas feições. Parijahan se moveu para detê-lo, uma mão em seu
braço.
— Deixe que eu faço. — Ela disse gentilmente.
— O anel. — Ele disse, o alívio falhando sua voz.
Parijahan assentiu e se moveu para tirar um anel de sinete
pesado da mão do rei. Ela o entregou a ele. Ele a agradeceu
baixinho, o anel em uma mão, a coroa em outra. Ele hesitou antes
de lentamente deslizar o anel sobre o dedo mindinho de sua mão
direita. A coroa permaneceu presa em sua mão.
Nadya quase tentou contatar os deuses novamente, mas algo a
impediu. Ela nunca teve medo dos deuses antes. Mas depois de
quase perder tudo, e depois de perceber que magia era algo que ela
possuía, não uma coisa dada ou tirada por capricho dos deuses, ela
se preocupou que eles não a tratariam do mesmo jeito. Ela duvidou
muito, foi muitas vezes contra a vontade deles. Ela amou a pessoa
errada.
Mas ela ainda acreditava neles; na versão dela dos deuses, não na
de Malachiasz, e ela esperava, sinceramente, que isso significasse
alguma coisa. Isso não significava que ela não tinha perguntas, – ela
tinha milhares – mas ela estava disposta a perguntar. Mas... talvez
ainda não.
Nadya suspirou pesadamente. Serefin olhou para ela. Ele
levantou uma mão e a mariposa mudou de posição para pousar no
anel de sinete.
Um garoto que era mortal e talvez um pouco divino, Nadya
pensou. Ele não acreditava nos deuses, ainda era um herege, o que
quer que tenha sido feito a ele, ela duvidava que mudasse o que ele
acreditava. Ele ainda era um mago de sangue.
Ele sorriu para ela, entretanto, e ela se perguntou se talvez tudo
estivesse bem.
— Isso vai ser o suficiente? — Ela perguntou para ele. — Para
parar a guerra? — Malachiasz estava errado, ele tinha que estar
errado.
Serefin torceu a mão e a mariposa voou para longe.
— Será.
Epílogo: O Abutre Sombrio

Ele não sabia o que isso queria.


A fome. A necessidade crua e dilacerante que o tinha esvaziado,
arranhado seu núcleo, o deixando com nada além de desejo. Não
tinha nome para isso, para o que a fome queria. Para a dissonância
que se separou, e se reformou, e criou uma cacofonia de palavras e
vozes muito altas.
Ele sabia onde tinha que ir. Um lugar para se esconder, para se
recuperar, para planejar. Peças a serem movidas, retiradas e trazidas
à tona. Ele precisava... ele precisava....
(Ele nunca esperou chegar tão longe.)
(Ele não esperava sobreviver.)
O que ele precisava não importava; as trevas o agarravam. Ele
tinha tão pouco tempo. Mais tempo do que esperava.
(Ser desfeito era um negócio muito desagradável.)
Um ponto de clareza, insistente em seu retorno rítmico, batendo
nos cantos de sua consciência, uma única nota: arrependimento.
Arrependimento.
Arrependimento lavado pela emoção intoxicante de poder que era
maior, era mais. Arrasado pelos últimos resquícios de fraqueza
mesquinha que tentavam o forçar a olhar para trás, olhar para trás.
(Não havia como voltar atrás)
Cresceu, uma vastidão na mudança de quase humano para algo
que não é.
Portas de pedra se abriram diante dele, o levando a uma
escuridão tão completa que descer as escadas em direção a ela seria
como deixar de existir.
(Quão adequado.)
Ele tocou levemente um símbolo, grosseiramente talhado na
parede de pedra, que suas mãos haviam visto tantas vezes antes.
Vagamente, ele considerou como seus inimigos chamavam esse
lugar de inferno na terra. Esse lugar onde o sangue fluía muito
livremente – dado de má vontade.
Sua mão pressionou a pedra, encontrando-a pegajosa com sangue
fresco. Ele hesitou; um pensamento urgente agulhado em seu
coração, um lembrete, um mantra.
Ele sussurrou para a escuridão.
— Meu nome é... — Ele balançou a cabeça.
Se fora.
Era uma vez, um garoto que foi feito em pedaços e recomposto na
forma de um monstro. Era uma vez, um garoto que agarrou os
restos do que ele deixou, enquanto escapava por seus dedos. Era
uma vez, um garoto que destruiu o pouco que restava porque não
era o suficiente.
O garoto se fora. O monstro tinha engolido o coração que batia
em seu peito.
Ele deixou a escuridão levá-lo.
Notas

[←1]
Uma sala reservada especialmente para escrever, eram comuns
em mosteiros no qual manuscritos eram copiados.

[←2]
Peça metálica ornada com franjas de fios de seda ou ouro, era
usada como distintivo no ombro do uniforme militar.

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