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17/01/2022 Resenha de República das milícias: dos esquadrões da morte à era Bolsonaro, de Bruno Paes Manso | Revista Rosa 3

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Resenha de República das milícias: dos esquadrões da morte à era
Bolsonaro, de Bruno Paes Manso
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Para as pessoas que, em outros estados ou países, leem o noticiário sobre


o Rio de Janeiro, a cidade, mesmo maravilhosa, é certamente uma
Sodoma ou uma Gomorra tropical. Tiroteios, balas perdidas, mortes de
crianças em operações policiais, fuzis, milícia, narcotrá co, jogo do bicho,
governadores presos um após o outro, empresários, deputados e
membros do TCE envolvidos em corrupção. Pareceria que não há no Rio
um único político ou policial honesto. Eles existem, sim, mas não
capturam as manchetes.
Bruno Paes Manso convida o Rio a se deitar no divã para contar seus
traumas infantis e suas histórias de violência, sempre vinculada à
corrupção, pois a primeira é basicamente uma ferramenta para a Decór, Tom Vieira

segunda. Essas histórias podem nos ajudar a entender o presente não só


do Rio, mas do Brasil, na medida em que um político que fez carreira no
Rio de Janeiro, defendendo a morte dos criminosos, chegou em 2018 à
presidência da República. O Brasil, nos alerta o autor, corre o risco de “se
tornar uma enorme Rio das Pedras”, comunidade da Zona Oeste
considerada um dos berços da milícia.
Bruno tem se dedicado há muitos anos a tentar responder uma
pergunta simples: por que as pessoas apoiam a violência e a morte como
mecanismo de controle social no Brasil? Por que as pessoas se matam
tanto no país e legitimam a morte dos outros? Ele começou em São Paulo
e continuou a indagação em outros lugares.
República das milícias pretende contar a história da violência no Rio
nas últimas décadas, apresentando personagens centrais dessa tragédia
e relatando com luxo de detalhes suas trajetórias. São histórias que
puxam inúmeros os que se entrecruzam, desde a repressão da ditadura
ao assassinato da nossa companheira Marielle Franco, passando pelo
surgimento dos grupos de extermínio, o poder dos bicheiros e a sua
relação com políticos e policiais, o crescimento e a crise do varejo do
narcotrá co, as UPPs ou a expansão das milícias. O foco é justamente a
interseção desses fenômenos diversos a partir do percurso dos seus
personagens. Entre todos os grupos criminosos, as milícias recebem justo
destaque entre outras coisas por serem um fenômeno tipicamente
carioca e porque elas surgem do coração do aparelho do Estado, o que as
torna mais ameaçadoras. Embora as atuações das milícias tenham raízes
que nasceram há muito tempo, o termo em si é relativamente novo e o
fenômeno que representam tem se expandido signi cativamente nas
duas últimas décadas até desenvolver um modelo que disputa a
hegemonia com os outros grupos criminosos.

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17/01/2022 Resenha de República das milícias: dos esquadrões da morte à era Bolsonaro, de Bruno Paes Manso | Revista Rosa 3

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Bruno apresenta a singularidade de, como jornalista e cientista social
ao mesmo tempo, usar registros de natureza diversa: pesquisas
acadêmicas, relatos jornalísticos e, neste livro, também processos penais
e documentos o ciais. Conta também com entrevistas con denciais a
alguns personagens que fazem parte da engrenagem da violência.
É preciso coragem metodológica para abordar esse material, pois esses
relatos de pessoas envolvidas na criminalidade costumam misturar mito
e realidade, e as suas versões são sempre parciais, interessadas e
suspeitas. O caso das pessoas acusadas inicialmente pela morte de
Marielle é emblemático, pois nenhuma delas disse a verdade completa,
mas cada revelação, mesmo parcial, fez avançar as investigações, tal
como o livro descreve.
Se as fontes são diversas, a narrativa do autor é jornalística, Quem desconhece o Rio,
accessível e pedagógica para qualquer leitor, misturando histórias encontrará um relato fácil
pessoais com análises mais abrangentes. Quem desconhece o Rio,
de ler e farta informação
encontrará um relato fácil de ler e farta informação para tentar entender
o que parece incompreensível. E mesmo o leitor carioca familiarizado
para tentar entender o que
com o assunto se deparará com detalhes que desconhecia. De fato, os parece incompreensível
detalhes são tantos e os meandros pessoais tão complexos que não raro é
preciso voltar atrás na leitura para recuperar o histórico de um
determinado indivíduo.
A maior contribuição do texto é trazer luz sobre o papel dos bicheiros
por trás das outras redes criminosas, como o trá co e, sobretudo, a
milícia e os grupos de extermínio. Especi camente, mostra a vinculação
dos bicheiros com os integrantes do chamado “escritório do crime”,
grupo de matadores de aluguel de alto nível, cujos integrantes possuem
também conexões com a milícia. Os acusados de serem os autores
materiais da morte de Marielle são integrantes desse grupo. O nome
“escritório do crime” exempli ca melhor do que nenhum outro a
tragédia carioca, tragédia com poucos heróis. Os criminosos trabalham
num “escritório” onde podem ser contratados entre nove da manhã e
cinco da tarde, e a morte das pessoas por encomenda tornou-se uma
atividade burocrática e e ciente, de dar inveja ao mesmíssimo Max
Weber. Como deveria ser óbvio e como apontam as investigações, tal
escritório só poderia existir com a cumplicidade de setores das polícias
que têm como missão investigar os homicídios.
As conexões entre as diversas redes do crime organizado são
esperadas, pois todas elas dependem da cumplicidade do Estado para
funcionar. Há um o que une o AK -47 da favela com o político que faz
campanha nesse território e com o juiz que vende sentenças. O livro
mostra as caras e as dinâmicas desses vínculos. Resta ainda a dúvida de
se essas conexões entre os diversos tipos de crime organizado são o
resultado natural da convivência nos mesmos espaços ou se, em algum
momento, houve algum tipo de estratégia articulada entre eles. E
o problema é que a palavra dos protagonistas não vale grande coisa sobre
estes assuntos, pois há sempre uma intenção por trás dela.
O livro tem um certo tom etnográ co, quando o paulista Bruno
adentra a oresta selvagem do Rio para conhecer suas feras, quase
pedindo perdão pela sua origem paulista e pela falta de malandragem
carioca, e faz o esforço de aprender as gírias locais e explicá-las.
Di cilmente o leitor de fora do Rio encontrará outro trabalho sobre
segurança pública uminense tão didático quanto esse.

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17/01/2022 Resenha de República das milícias: dos esquadrões da morte à era Bolsonaro, de Bruno Paes Manso | Revista Rosa 3

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República das milícias contém outra pergunta implícita, que ninguém
conseguiu responder ainda plenamente: qual é a relação do clã Bolsonaro
com a morte de Marielle? A pergunta passa pelas milícias e pela simpatia
que os Bolsonaro mostraram historicamente por elas. Por um lado, não
há nenhuma prova penal de conexão da família presidencial com o crime
e, na verdade, não faria sentido político que eles apadrinhassem um
assassinato como esse. Por outro lado, os Bolsonaro condecoraram
milicianos e policiais envolvidos em crimes, empregando familiares
deles em seus gabinetes. O caldo de cultura em que Bolsonaro se criou é
o mesmo em que nasceram as milícias, o “bandido bom é bandido
morto” e a decomposição do Estado em que cada um se toma a
(in)justiça pelas próprias mãos e pelas próprias armas. Esse tipo de
pessoas odeia os direitos humanos e o feminismo, tudo o que Marielle
simbolizava. Os deputados que melhor representavam o projeto
bolsonarista quebraram uma placa com o nome dela, num gesto de
violência simbólica extrema que nunca será esquecido. Assim,
simbolicamente, a família presidencial encarna o inimigo frontal de
Marielle e do seu legado, o que faz com que a pergunta citada retorne de
forma recorrente.
Do ponto de vista prático, das políticas públicas, a tentativa de
Bolsonaro de evitar investigar as mortes cometidas por policiais ― o
chamado “excludente de ilicitude” ―, para assumir a versão policial
automaticamente como verdadeira, é música aos ouvidos da milícia.
Da mesma forma, a medida tomada pelo governador Witzel, eleito com o
apoio do clã Bolsonaro, que aboliu a Secretaria de Segurança e devolveu a
cada polícia o status de Secretaria de Estado, avança na direção de
autonomizar as polícias e os policiais, algo que bene cia os setores
criminosos dentro das corporações.
Não sabemos se a milícia conseguirá ou não moldar a República à sua Ninguém que conheça
imagem e semelhança, mas é claro que o contexto político atual favorece minimamente o Rio de
seus interesses. Ninguém que conheça minimamente o Rio de Janeiro
Janeiro tem a menor
tem a menor dúvida sobre qual foi o candidato presidencial em que os
milicianos votaram em 2018.
dúvida sobre qual foi o
candidato presidencial em
que os milicianos votaram
em 2018

Bruno Paes Manso. A república das m ilícias: dos Esquadrões da Morte à Era Bolsonaro. São
Paulo: Todavia, 2020.

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Publicado no 2º número do volume 3 da Revista Rosa em 26/4/2021.


Revista Rosa, S.Paulo/SP, Brasil, https://revistarosa.com, ISSN 2764-1333.

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