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[mostrar várias cenas históricas da década de 90]

[muito barulho e ir trocando de cena que nem negócio da Marvel]

Introdução

A questão política fundamental do trabalho de Guattari, é o de pensar a produção da


subjetividade no fim da história.

A queda do muro de Berlin, as rápidas transformações tecnológicas, a efervescência das


questões climáticas, a transição definitiva para o neoliberalismo, a alienação e passividade
induzida pela mídia de massas, em meio a tudo isso que Guattari escreve seu livro, “As Três
Ecologias”, como uma tentativa de delinear os fundamentos éticos, estéticos e políticos do
conhecimento ecológico. Sua ecologia é transdisciplinar, pois ela é plural, heterogênea e
aberta ao phylum maquínico. É uma ecologia tanto do macro e do micro, do molar e do
molecular. Uma ecologia que se estende até os eventos de larga escala (como Chernobyl, e o
aquecimento global), até os fantasmas de nossas mentes. A prática e a lógica das três
ecologias é chamada de ecosofia. A ecosofia, em suma, é a intersecção entre o ambiental, o
social, e o mental. Uma visão não compartimentalizada da realidade, que leva em conta as
conexões transversais, e os efeitos desta, na realidade.

[...]

Análise do texto

Contexto

Guattari chegou à ecologia em meados da década de 1980 como um antídoto para o


que ele chamou de 'anos de inverno' da primeira metade daquela década, que viu o
surgimento de muitos conservadorismos e políticas econômicas neoliberais, e a
ascensão de 'modas vagas' como o pós-modernismo, que ele desprezava. Apesar de
seu acesso pessoal ao governo francês por meio de sua relação de trabalho com o
Ministro da Cultura Jack Lang, o campo político do socialismo francês, permeado
pela expansão exponencial do que Guattari chamou de forças unidimensionalizantes
do Capitalismo Mundial Integrado, impulsionado pela rápida mudança tecnológica
ligada a arcaísmos sociais reacionários (o surgimento da Frente Nacional nas
eleições europeias, o acordo franco-espanhol para a extradição de separatistas
bascos), quase o levou a se mudar permanentemente da França para o Brasil.
(GENOSKO, 71)

Com as rápidas transformações sociais-ecológicas, a relação da subjetividade com sua


exterioridade, social, animal, vegetal, e cósmica, vê-se comprometida. Há uma constante
implosão generalizada da subjetividade em decorrência da massificação midiática e da
exploração do trabalho, resultando em um empobrecimento da sensibilidade e de um cinismo
quanto à possibilidade de mudança. As diferenças promovidas pelos avanços técnico-
científicos, em conjunto com o rápido crescimento populacional, e a escalada da crise
ecológica colocam em questão o sentido de nossa atividade, de modo que, a única saída para
esse conflito, se dá por meio de uma “autêntica revolução política, social e cultural” que
reoriente os objetivos de nossa produção de bens materiais e imateriais.

Porém, essa revolução não será somente molar. Ela não consta somente com os grandes
agregados molares (a família, o estado, o partido). É preciso que ela atinja, principalmente, o
nível molecular (afetando a imaginação, o desejo e a nossa sensibilidade). De nada adianta
mudarmos, se mantivermos a mesma relação que temos com o mundo. É preciso se ater aos
fins de nossa produção. A perseguição do lucro, da maximização da eficiência técnica que
segue os ditames da razão instrumental, até que ponto, nossa racionalidade condiz com o
ideal de racional? Afinal, é preciso perguntar, por trás da desenfreada industrialização, e da
dissolução dos antigos moldes de sociabilidade e viver no mundo por aquilo que, nada mais é
que, seu total avesso, que tipo de desejo está em jogo?

Essa pergunta, nas palavras de Guattari, aponta para um questionamento dos modos
dominantes de valorização das atividades humanas. Esse modo de valoração, é o modo pelo
qual damos sentido para nossa ação. A valoração de nossa atividade, atualmente, se dá em
dois eixos: através de um “império de mercado mundial” e das “máquinas políticas e
militares”. De um lado, temos um achatamento dos sistemas particulares de valor, que fazem
com que haja uma igualdade entre os bens materiais, culturais e naturais. Do outro, o que
temos é uma subordinação das relações sociais e internacionais aos fins beligerantes e
disciplinares da máquina policial e militar. Essa dupla articulação entre o mercado mundial e
o exército, dá-se o nome de complexo militar-industrial. Se antes o estado era um mediador
entre os interesses sociais e os interesses privados, agora, ele se vê no meio dessa dupla
articulação, servindo como um garantidor de seus interesses.

A posição do estado é paradoxal nesse contexto pois, como diz Fukuyama, chegamos ao fim
da história, ao fim do antagonismo entre classes, entre a divisa Leste-Oeste, entre a dualidade
burguesia-proletariado. A “subjetividade operária linha dura” se desfez com o crescimento da
sociedade de consumo e dos avanços tele midiáticos. Por mais que hoje as contradições sejam
mais intensamente vividas, os investimentos libidinais fazem com que essas intensidades se
anulem, fazem com que a opressão seja desejada.

CMI

Dentro daquilo que Guattari chama de Capitalismo Mundial Integrado, “as oposições
dualistas tradicionais que guiaram o pensamento social e as cartografias geopolíticas
chegaram a um fim” (13). Os novos centros de hiper-exploração, Hong Kong, Taiwan, Coréia
do Sul, incomporáveis com as antigas potências do Ocidente, apesar de alcançarem níveis
sem precedentes de produção, são acompanhadas de sua própria terceira mundização interna.

No CMI temos um claro descentramento das estruturas de poder, que antes se localizavam na
produção de bens e serviços, mas agora foram transportadas para as estruturas produtoras de
signos e subjetividades. Não que os outros regimes capitalistas não pudessem ser
caracterizados pela capitalização do poder subjetivo. Um dos principais controles que o
capitalismo exerce na produção, desde sempre, é o controle da produção de subjetividade.
Guattari divide os instrumentos semiótico do CMI em 4 categorias:

a) semióticas econômicas (instrumentos monetários, financeiros, contábeis…)


b) semióticas jurídicas (título de propriedade, legislação, regulamentações…)
c) semióticas técnico-científicas (planos, diagramas, programas, estudos, pesquisas…)
e por fim:
d) semióticas de subjetivação (que coincidem com as que citamos em cima, mas
agregam outras como tipo como, a arquitetura, o urbanismo, os equipamentos
públicos, etc…)

Essa semióticas possibilitam Guattari mostrar, não somente o modo como o capital está em
cada instância de nossa produção de subjetividade, como também, a maneira pelo qual ocorre
uma subversão da categoria de infra-estrutura no marxismo clássico. Isso porque, é difícil,
propriamente, hierarquizar os instrumentos semióticos, sem perder o contato com a realidade.
De fato, não trata-se de negar que nossa subjetividade é um efeito da super-estrutura,
condicionado pelas condições materiais, mas sim, de afirmar a complexidade e a miríade de
elementos heterogêneos que compõem nossa subjetividade, e os territórios existenciais em
que elas se agarram. É difícil defender o primado da semiótica econômica como estando em
uma posição infra-estrutural, quando passamos a analisar a maneira pela qual a arquitetura de
uma dada instituição social, por exemplo, um restaurante universitário norte americano,
condiciona as possibilidades de comportamento e ação dos indivíduos.

Observe as tecnologias minuciosas de controle em funcionamento nas áreas de refeições da


União, como a iluminação fraca que desencoraja o estudo, as portas giratórias que permitem a
entrada, mas não a saída, e os móveis fixos ou apertados que não podem ser rearranjados para
grupos. Os monitores de TV nos corredores fazem mais do que exibir os eventos do dia; eles
chamam a atenção para si mesmos como sinais onipresentes da visão da Diretoria. Ninguém
gostaria de se reunir em salas assim, e ninguém o faz. Como o panóptico, o novo layout da
União é o diagrama de um espaço que se monitora e se auto-regula. (Mark Macek, 1990, p. 4,
tradução própria)

Isso fica mais evidente em algumas escolas dos Estados Unidos, cujas entradas são
aparelhadas com detectores de metais, com seus corredores com grossos muros servindo
como cobertura para possíveis ataques, janelas de aço reforçado, salas de aula projetadas com
paredes de ferro e seus mini-bunkers. Pode-se dizer que, dado o grande número de ataques
escolares, que esse tipo de atitude é a que mais adequada tendo em vista a redução de danos.
Contudo, é preciso se perguntar: até que ponto esse paradigma tecnocrático de redução de
danos, não cria as próprias condições para a generalização desses danos, através da
proliferação de uma subjetividade doente pelo controle disciplinar?

É por isso que o objeto do CMI se dá num só bloco: ele é produtivo-econômico-subjetivo. O


capitalismo, assim como o teatro grego, o amor cortês e o romance de cavalaria, é um módulo
de subjetivação, ele dita pré-discursivamente o modo de nos relacionarmos com o mundo e as
coisas. Seja a produção em série, a divisão de trabalho, os avanços na biotecnologia, da
aceleração, da maquinização da linha de trabalho e do tempo, o capitalismo altera
profundamente as formas da produção de subjetividade e impõe um modelo de sociabilidade
e vida social. Os tipos de subjetividade necessários ao ambiente de trabalho mudam com o
passar do tempo, da mesma forma como os tipos de subjetividade que são permitidos fora do
trabalho. Ao mesmo tempo que, nos dias de hoje, a linha de produção é desterritorializada e
mandada para o Terceiro Mundo, há uma grande reterritorialização e recodificação da família
nuclear, de modo a produzir aquilo que Guattari chama de um “aburguesamento subjetivo da
classe operária”, produzindo uma subjetividade que deseja o capital, mesmo às custas de sua
própria opressão.

Multipolaridade e transversalidade

As contradições florescem na contemporaneidade, mas não se trata de dialética, pois a


natureza dos problemas mudou. As lutas que foram herdadas, não morreram. Elas foram
complexificadas.

Se antes os problemas eram definidos pela bipolaridade do antagonismo de classes, agora eles
são definidos multipolarmente.

São problemáticas multipolares, atravessadas pelas trẽs ecologias. As antigas questões sociais
e econômicas, já não são mais as mesmas

Se podíamos definir o Édipo da economia política como sendo aquele do fantasma da


luta de classes, o que temos agora, é a explosão dessa dualidade burguês/proletario,
para uma multiplicidade de questões: são questões de gênero, de raça, de colonialidade.
Questões ecológicas, ambientais. A história não está dialeticamente oposta à natureza.
Os dois são o mesmo lado da mesma moeda, a mesma moeda da pós-humanidade…

Os antagonismos de classe são cortados transversalmente pelas questões coloniais. O Leste e


Oeste são atravessados pelo Norte e Sul, cortados pela questão de gênero, cortados pela
questão da raça. É um contexto de ruptura, de descentramento, de multiplicação dos
antagonismos, de transição de um modo de ver o mundo polar, para um mundo multipolar,
agregando uma multiplicidade de novos processos de singularização. Por fim, perpassando
todos essas questões, temos os problemas ecológicos que, de maneira nenhuma formam um
significante despótico que arrasta os demais conflitos moleculares, mas que, em um certo
sentido, atravessa-os transversalmente, os complexifica, dando um novo sentido para o que
está em jogo.

A destruição ecológica do globo é paralela à destruição social. O governo e o setor privado


apesar de possuírem uma certa consciência da ameaça global iminente, são incapazes de
apreender em sua totalidade a questão, uma vez que, eles lidam com os problemas somente
do ponto de vista tecnocrático, do custo benefício, da redução dos danos industriais, sendo
que, o que precisamos agora, é justamente, uma perspectiva que articule os problemas
partindo de um paralelismo ecológico-social com seus desdobramentos na subjetividade. Em
outras palavras, Guattari propõe uma “articulação ético-política” entre os três registros
ecológicos: o do meio ambiente, o das relações sociais, e o da subjetividade humana. A
articulação que abrange esses 3 meios se chama ecosofia, e ela implica três mudanças: uma
nova concepção de sujeito, um novo paradigma, e um novo conjunto de princípios para as
três ecologias

Sujeito em processo

Uma das primeiras constatações que surgem quando tomamos a produção da subjetividade
por uma perspectiva ecosófica, é o fato de que o sujeito não é evidente.

“Penso, logo existo”. Ao contrário do que pensava Descartes em seu célebre dito, o pensar
não é suficiente para o ser. Guattari sustenta essa contestação sob dois argumentos: 1)
existem maneiras de existir que se instauram fora da consciência humana, fora do
pensamento. Aqui basta pensar em todas as formas de vida que uma vez foram excluídas da
categoria de sujeito por estarem excluídas do pensamento racional ocidental; e 2) o sujeito
advém somente quando o pensamento é colocado a apreender a si mesmo. É em sua auto-
reflexão que o sujeito se descobre em sua confusão. Mas descobre-se somente em partes, pois
ele não se fixa em nenhuma territorialidade.

Por isso que, ao invés de falarmos de sujeitos, talvez seria melhor que falássemos de
“componentes de subjetivação”, cujos vetores, não necessariamente atravessam o indivíduo.
O indivíduo é o término, ele está em posição terminal em relação aos processos que implicam
molarmente “grupos econômicos, conjuntos socioeconômicos, máquina informacionais,
etc…”.

A subjetividade, aqui dita, não se fecha no dualismo entre indivíduo e coletivo. A


subjetividade é transversal. Ela é cortada pelo meio ambiente, pelos agenciamentos sociais, e
pelos fantasmas coletivos e individuais. Ele transborda os limites do ego, abrindo-se para
todas as direções: para o Socius, para o phylum maquínico, para os universos de referência
técnico-científicos, aos mundos estéticos, as apreensões a-significantes e pré-pessoais. É uma
subjetividade da ressingularização, capaz de lidar com a finitude do desejo, da dor e da morte.
Novas práticas sociais, novas práticas estéticas, novas práticas de si em relação ao Outro. E
apesar disso parecer distante das urgências do momento, é somente na articulação da
subjetividade em estado latente, do socius em estado mutante, do meio ambiente em ponto de
eclosão, que a saída da maior crise da humanidade será possível.

O sujeito, com sua identidade fixa, é fruto do poder, fruto da repressão. Os componentes de
subjetividade vieram para colocar em questão essa relação entre o indivíduo e a
subjetividade, superando-os e mostrando que a “interioridade” é um produto, produto de
“cruzamentos múltiplos de componentes relativamente autônomos uns em relação aos outros
e… francamente discordantes”.
Paradigma científico

Mas é preciso reconhecer a dificuldade da constatação anterior. A subjetividade é um termo


em suspeita nas ciências humanas. Reina uma suspeita dupla em relação a subjetividade: por
um lado temos um paradigma cientificista, que reduz a subjetividade a elementos
quantificáveis, mensuráveis, indo de acordo com a linguagem científica da física matemática
de Newton e das ditas ciências duras; do outro, temos o paradigma materialista-marxista, do
primado da infra-estrutura sobre a superestrutura, que acaba por reduzir historicamente a
subjetividade como subproduto ideológico da infraestrutura econômica. Em uma tentativa de
legitimação das ciências humanas e sociais, elas buscaram nas ditas ciências duras, e em um
certo hegelianismo, a linguagem apropriada para tratar de seus fenômenos de estudos. Por
mais que, com isso, as ciências humanas ganharam rigorosidade e um método, elas acabaram,
inadivertidamente, se condenando, pois deixaram escapar “as dimensões intrinsecamente
criativas e auto posicionantes dos processos de subjetivação”.

É preciso abandonar a linguagem cientificista, o paradigma científico positivista, em favor de


um paradigma ético-estético. Mas, isso não se trata de uma importação de um novo modelo
de sociabilidade. O que está em jogo, quando adotamos a ecosofia, é a criação de novos
sistemas de valoração voltados para fins estéticos-existenciais, para fins do desejo. O
problema do capitalismo está em sua total equalização. Sob o sistema de trocas, tudo tem o
mesmo valor. Desta forma, os diferentes modos de valoração se vêm equalizados sob a égide
da hegemonia do sistema de valoração capitalista. É preciso opor essa ideia através de
sistemas de valoração fundada, em menos trabalho abstrato, em menos lucro esperado, mas
mais em produções existenciais.

É preciso, uma mudança de paradigma. Paradigma ético-existencial, que aproxima o processo


de singularização ecosófico ao da atividade do artista, que tem por ideal, nunca repetir
indefinidamente a mesma obra. A importância, nesse processo, está na chave da
experimentação. Não é possível dissociar a singularização e a produção de subjetividade, da
experimentação.

Eco-lógica

Mas não é como se os acontecimentos de agora exigissem uma complexidade de articulação


que os eventos anteriores não tinham, pois pelo contrário, os fantasmas da história também
possuem sua devida complexidade. É preciso abandonar o paradigma positivista, porque
fundamentalmente os eventos de agora exigem uma lógica diferente.

Eles necessitam de uma metafísica diferente, pós-humana, cibernética, que ultrapasse a


comunicação ordinária que separa o sujeito do objeto, que define aquilo que é visto, e não
visto, que, de antemão, marca os campos de significação passíveis de formarem discursos.

O que está em jogo é uma outra lógica, uma lógica de intensidades, lógica dos
agenciamentos existenciais auto-referentes, de durações irreversíveis, que diz respeito, não
somente ao ser humano como entidade global, mas, aos objetos parciais, aos rostos, as
paisagens, as intensidades que regem os processos do mundo. Enquanto que a lógica
tradicional delimita bem os conjuntos discursivos passíveis de serem vistos como objetos, a
lógica de intensidades, ou eco-lógica, leva em conta outra coisa, o movimento, a intensidade
dos processos evolutivos. É preciso entender a noção de processo, como estando oposto ao
sistema ou a estrutura, estando ele perto do devir, de uma existência ainda por se definir, que
se constitui em sua desterritorialização. Esses processos intensivos, são resultado de uma
fuga processual, de grupos expressivos que rompem com a estrutura totalizante, que fogem
de seu papel habitual, para fazer de seus conjuntos de referência indícios existenciais, espirais
intensos que vêm a definir seu devir.

É preciso ver as relações que a humanidade tem com o socius, a psique e a natureza, não
como relações com 3 esferas separadas e independentes, mas, como estando interconectadas.
A tendência à deterioração advém, menos de uma poluição objetiva, mas sim, pelo fato de
haver uma passividade fatalista, um desconhecimento quanto ao poder dos indivíduos e
coletivos em relação a essas questões quando consideradas em conjunto. Essa passividade, ou
apatia, Guattari localiza sob 2 pontos: o crescimento das teorias do estruturalismo e do pós-
modernismo; e o discurso midiático. O discurso pós-modernista de fim da história e da
dissolução das metanarrativas, de um começo da era pós-ideológica, fazem com que haja um
perecimento da práxis social, quase como se fosse inevitável, restando apenas micropolíticas
concretas que apenas dizem respeito ao campo individual. É preciso acentuar a inadaptação
de nossas práticas sociais e psicológicas, como que ainda estamos presos a modos antigos de
luta, a modos antigos de resistência, a modos antigos de perceber a realidade que ainda
mantém uma visão compartimentalizada acerca dos domínios do real.

É nisso que recai a crítica de Guattari às organizações de esquerda. Os sindicatos e partidos


têm que tomar cuidado para que, em meio a sua luta, eles não acabem, replicando as mesmas
estruturas que permitem a “introjeção do poder repressivo” em seu seio. De um ponto de vista
econômico-ecológico, da mesma forma como a produção de bens materiais, o trabalho do
manifestante e do ativista também gera mais valia. Esse aspecto foi ignorado por muitos
teóricos marxistas, perpetuando uma espécie um obreirismo e um corporativismo no cerne
dessas organizações.

Não se trata de fazer política do jeito usual. A ecosofia requer um modo plural de ver o
mundo, uma ético-política que: “atravesse as questões do racismo, do falocentrismo dos
desastres legados por um urbanismo que se queira moderno, de uma criação artística libertada
do sistema de mercado, de uma pedagogia capaz de inventar seus mediadores sociais, etc…”
(18).

Para que as lutas sociais se enquadrem dentro dos moldes dos três tipos de práxis ecológicas,
elas precisam buscar afetar os “modos de produção da subjetividade”. Em outras palavras, a
práxis ecológica é uma prática cuja raíz está centrada na experimentação com os modos de
produção de conhecimento, cultura, sensibilidade e sociabilidade. Essas produções formam
“sistemas de valor incorporal” que estão na base dos “Agenciamentos produtivos” que
constroem coletivamente a realidade.

Nessa construção coletiva da realidade, não é justo separar a ação sobre a psique daquela
sobre o socius e o ambiente. A mídia alimenta uma recusa de encarar esses problemas
transversalmente, resultando em uma "infantilização da opinião", uma "neutralização
destrutiva da subjetividade". É preciso se desintoxicar desse niilismo, dessa apatia, desse
otimismo sedativo do discurso liberal televisivo. E para isso, Guattari argumenta que é
preciso ver o mundo através da intersecção dos "três pontos de vista ecológicos".

O princípio comum que une as três ecologias se dá numa mudança de perspectiva em relação
aos Territórios Existenciais. Nossas identidades e experiências não são isoladas, mas são
formadas por meio de um processo constante de negociação e interação com o mundo ao
nosso redor. Os territórios existenciais são espaços dinâmicos e complexos no qual a
experiência subjetiva, a identidade e o senso de si de um indivíduo estão entrelaçados com o
seu contexto social. É preciso vê-los, não como um em-si, fechado sobre si mesmo, mas mais
como um para-si aberto, fragmentado, finito e singular, que é tanto capaz de cair em uma
tragédia estratificada, como abrir-se processualmente a partir de uma práxis que tenha em
mente torná-lo habitável. É nessa questão de domesticar os territórios existenciais, suavizá-
los, fazê-los uma casa, que encontramos a essência da arte do eco, em ecosofia. É fazer do
território existencial, um lugar menos duro. Em todos os sentidos possíveis, no que dizem
respeito às maneiras de ser, ao corpo, ao meio ambiente; tanto quanto os grandes conjuntos,
como a etnia, a nação, quiçá, os direitos gerais da humanidade. Mas é preciso esclarecer, que
não se trata de criar regras universais para a práxis humana. Não, o que viemos falando é de
uma prática de "liberação das antinomias" entre os trẽs níveis ecosóficos, de modo, que as
façam ressoar, que as façam dançar entre si, mostrando que o problema nunca se dá de modo
isolado.

Mas no fim, o que será essa prática ecosófica? Em poucas palavras, ela é uma prática
especulativa, ético-política-estética, diferente das antigas formas de engajamento religioso,
político, associativo. Ele não é um simples recolhimento para dentro, muito menos uma nova
forma de militantismo É um "movimento de múltiplas faces", analítico mas criador de
subjetividades. Um modo de teorização atravessado pela diferença maquínica, pela
multiplicidade que é viver em um mundo em constante devir.

A prática ecológica consiste, enfim, em localizar os vetores potenciais de subjetivação e de


singularização, vetores dissidentes de desterritorialização que permitam evoluir os
agenciamentos de um modo processual e construtivo.

Sendo assim, a ruptura a-significante requer uma repetição criativa que produz objetos
incorporais, máquinas abstratas, universos de valor.

Eis o coração da práxis ecológica. É preciso ter um balanço, um equilíbrio, entre a ruptura
a-significante e os agenciamentos enunciativos de expressão. A desterritorialização das vozes
dissidentes precisa ser expressa de alguma forma inteligível, de uma forma consistente. Se
não, ela perde-se. Uma luta sem causa, um conflito sem fim.

Quando falamos de ecosofia, da articulação em paralelo dos registros ambientais, sociais e


mentais, não nos restringimos apenas em propor novos princípios. Uma leitura ecosófica da
realidade implica também, uma reformulação desses antigos registros.

As três ecologias

Princípio da ecologia social

O princípio particular da ecologia social, é a reconstrução das relações humanas nos


escombros do capitalismo. Com as rápidas mudanças introduzidas no meio social pela
constante desterritorialização do capitalismo que colonizou, não somente os mais longínquos
cantos da Terra, como também, as mais profundas instâncias de nosso inconsciente, é preciso
fazer uma luta dupla: lutamos contra ele no exterior, seja pelo sindicato, pelo partido, pelo
ativismo; e da mesma forma, é preciso fazer dessa mesma luta, uma luta interna. É preciso
encarar os efeitos do capitalismo sob a produção da subjetividade, seus efeitos na ecologia
mental, no seio da vida cotidiana, doméstica, conjugal, e para isso, é preciso forjar uma nova
relação consigo e com os outros, desenvolver uma nova ética pessoal capaz de produzir o
dissenso, produzir uma singular existência no seio desse mar indiferenciado do universo da
cultura de massas.

No capitalismo tudo conspira para a produção da opinião. Há uma demanda social e


educativa para constantemente performarmos um posicionarmos em face daquilo que nos
informamos. Esse imperativo da informação funda um sujeito, sujeito este assombrado pelo
fantasma da individualidade e da criticidade: é como se houvesse um resquício de sujeito por
detrás de nossas falas informadas. É como se a opinião, viesse de um lugar interior. Contudo,
a opinião e a informação, assim como qualquer outra coisa, são produtos da sociedade de
massas. Elas são artificiais, elas são fabricadas. Não surgem após um lento processo de
absorção e reflexão daquilo que nos passou. Em outras palavras, elas não possuem estilo. Não
possuem o aspecto existencial que permita o sujeito apoderar-se daquilo que informa.
Consequentemente, não há espaço para o sujeito manifestar-se em meio a sua opinião. A
palavra nunca foi dele. O sujeito do mundo da informação é um sujeito fabricado pelos
mecanismos de comunicação. Dentro dessa lógica, a opinião e a informação ocuparam todo o
“espaço do acontecer”, reduzindo o indivíduo a sua carcaça de veículo da informação.

Opinião sem comunicação, opinião sem transversalidade, opinião unilateral e sem


subjetividade. A singularidade que não é passível de ser identificada em padrões de compra,
logo é encaminhada para quadros de referência profissional.

[..,]
O capitalismo visa reerguer o mundo da infância. Ele se apodera de nossos dados pessoais
mais íntimos, nossos dados infra-pessoais, para nos fazer delirar em suas fantasias, nos fazer
afogar em seus "agregados subjetivos maciços": a raça, a nação, o corpo, a viralidade, o
esporte, a fama… O capitalismo opera uma rede de controle sobre os ritornelos existenciais,
neutralizando-os, fazendo-os operar a seu favor, e com isso, criando uma subjetividade
capitalista, subjetividade anestesiada imersa em um sentimento de pseudo-eternidade (eu
sempre estive aqui).

As práticas ecológicas se situam exatamente nesse fronte emaranhado e heterogêneo, de


singularidades capturadas pelo capital. Nas palavras de Guattari, a prática ecológica buscará
"tornar processualmente ativas [as] singularidades isoladas, recalcadas, girando em torno de
si mesma". A prática ecológica é uma prática micropolítica e microssocial. Ela não tenta
globalizar as lutas, totalizá-las em um sistema global. São lutas que concernem a novas
solidariedades, a uma nova sensibilidade, estética, prática, ou seja, práxis de uma humanidade
em devir. Essa é a única saída do Universo de semiótica capitalista. É a única forma das
práticas sociais e capitalistas escaparem a retroalimentação negativa do capital.

Princípio da ecologia mental

O princípio particular da ecologia mental se situa em sua lógica pré-objetal e pré-pessoal em


relação aos Territórios existenciais. É uma lógica do processo primário, do inconsciente,
lógica do terceiro incluso, "onde o branco e o negro são indistintos, onde o belo coexiste com
o feio, o dentro com o fora, o "bom objeto" com o mau…" É a lógica dos objetos parciais,
que domina a ecologia da mente. A ecologia das ideias não pode ser localizada no limite
pessoal, do indivíduo. Ela somente se encontra no espírito, naquilo que ultrapassa as
fronteiras pessoais, formando um contexto, um subsistema ecológico.

A práxis ecológica é uma práxis de "retomada de contexto" que busca romper com o
"pretexto sistêmico". Não há hierarquia de elementos. Há composições heterogêneas, cuja
cristalização se dá por operadores de cadeias discursivas a-significantes (como fragmentos de
obra de arte, fechados sobre si, como um ouriço).

As práticas psicológicas não conseguem acompanhara os impactos da produção industrial e


dos conglomerados de mídia na produção de subjetividade. A prática terapêutica devia se
orientar tendo em vista, menos uma verdade positivista com uma ancoragem dos fantasmas
em territorialidades pré-existentes, mas mais, em uma eficácia estético-existencial que coloca
em questão os pontos de ruptura a-significantes e de sua relação com as cadeias semióticas.

Guattari fala da existência de uma "subjetividade parcial", quase que uma "proto-
subjetividade", quando diz sobre vetores de subjetivação que escapam ao ego. Os freudianos
totalizam esses objetos de subjetividade dissidente, atrelando-os às pulsões de um corpo. É
preciso expandir essa noção de objetos parciais para abarcar, estruturas arquitetônicas,
sistemas econômicos, instituições cósmicas, etc…, pois todas essas coisas produzem
subjetividade.

Ressignificar as esferas da vida e a ambivalência do desejo (tirando-as dos critérios do lucro e


do rendimento), eis a tarefa da ecologia mental. Colocar um fim a repressão e ao moralismo.
É preciso fazer toda uma ecologia dos fantasmas, uma ecologia dos objetos de transferência,
das translações, reconversões, da expressão dos fantasmas, para não cairmos na piedade de
tentar exorcizá-los. É claro, isso não significa que deixaremos os fantasmas negativos se
realizarem em agressões reais. Isso não é a questão. A questão é, da mesma forma como o
tratamento terapêutico da psicose, é preciso que o fantasma destrutivo ab-reaja, de modo a
provocar um recolamento de seus territórios existenciais (que estão à deriva). É preciso
realizar a transversalização da violência. A transversalização nega a necessidade de pressupor
uma pulsão de morte. A violência é o resultado de um Agenciamento subjetivo complexo.
Elas não podem ser resumidas em um constructo metafísico psíquico como a pulsão de
morte. Se a violência não for canalizada, se o fantasma não for desviado, sempre correremos
o risco desse fantasma se materializar no real.

A violẽncia reprimida é um espectro que assombra nosso socius. Sempre a espreita.


Esperando a oportunidade de concretizar-se.

Princípio da ecologia ambiental

O princípio particular da ecologia ambiental é que tudo é possível. Das piores catástrofes
verdes, até a solução de nossos problemas. Apesar do ano de publicação das três ecologias
ser 1989, Guattari já prevê que será necessário conjugar vários esforços para manter o
equilíbrio no meio ambiente. Com a recém entrada na fervura global e a intensificação dos
fenômenos climáticos extremos, vemos como as preocupações de Guattari ainda são atuais.

Em suas palavras: "A ecologia ambiental, tal como existe hoje, não fez senão iniciar e
prefigurar a ecologia generalizada que aqui preconizou e que terá por finalidade descentrar
radicalmente as lutas sociais e as maneiras de assumir a própria psique". Apesar dos méritos
das lutas ecológicas, muitas delas ainda se baseiam em modelos arcaicos, folclóricos demais,
que impedem a inserção de suas lutas em um esquema de engajamento político mais amplo.
A ecologia deve dizer respeito, menos a especialistas e pesquisas em pequena escala, mas
mais com o ativista, pois a ecologia põe em causa o conjunto da subjetividade e das
formações de poder capitalistas.

É preciso mudar a perspectiva. A ecologia ambiental, na verdade, é uma ecologia maquínica.


A ecologia é maquínica pois a terra é cibernética. Ela forma um sistema, um sistema de
gases, sistema orgânico, sistema líquido, que é capaz de se auto organizar, entrar em
autopoiésis.

Mas também, ela é maquínica por outro motivo. A ecologia é maquínica pois a natureza é
uma máquina de guerra. É possível interpretar essa afirmação sob duas formas: ela é
máquina de guerra, no sentido que, o esforço para sua reconstituição implica,
necessariamente, um conflito com os poderes atuais (o grande empresariado, a elite
agropecuarista); como também, ela é máquina de guerra pois ela é uma força sempre aquém
da humanidade, uma força que esteve sempre em guerra contra a vida.

No contexto atual, isso não poderia ser mais verdade. Com a intensificação dos eventos
climáticos extremos, em conjunto com o rápido crescimento demográfico e a incapacidade do
setor público e privado lidar com essa situação, é preciso fazer o impossível. A questão não é
mais somente de preservação da natureza. Passamos desse ponto. Chegamos a um estágio da
degradação ambiental em que temos que discutir o nosso ativo papel em reconstituir essa
natureza. Não se trata de minimizar os danos, mas sim, de evitar uma catástrofe iminente.

Conclusão

"Não somente as espécies desaparecem, mas também as palavras, as frases, os gestos de


solidariedade humana. Tudo é feito no sentido de esmagar sob uma camada de silêncio as
lutas de emancipação das mulheres e dos novos proletários que constituem os
desempregados, os "marginalizados", os imigrados"

A história nos mostra nosso limite técnico e científico em relação ao controle da natureza, e
as consequências mortais de seguirmos cegamente o lucro e a eficiência. Falta às ciências, a
nossa produção, uma orientação humana, tendo em vista o paradigma ético-estético.

É ingênuo acreditar que podemos voltar a ser o que era antes. O trabalho, o habitat, e o
desejo, já foram moldados por décadas de revolução informática e com a globalização do
mercado.

Até parece que o fim do mundo é um fato irreversível.

Que o estado atual das coisas, está para ficar.

Mas isso não implica um derrotismo. Só significa que temos que adaptar nossas lutas para o
agora, que o conjunto de movimentos sociais precisa reorientar seus objetivos e métodos para
o hoje. É preciso pensar esses problemas transversalmente, com a cultura sendo coextensiva
com a natureza, com os problemas sociais imbricados em problemas ecológicos, e vice e
versa. É preciso pensar transversalmente "as interações entre ecossistemas, mecanosfera e
Universos de referência sociais e individuais" (25). É preciso, em certa medida, adaptar-se à
situação.

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