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O mundo de Rothko

Introdução

48,72 cm.

Essa é a resposta dada por Rothko quando lhe perguntaram a distância ideal para ver seus
quadros.

Não surpreende dizer que “há um jeito certo de se ver Rothko”. Por mais provocativo que ela
seja, a afirmação se mostra verdadeira quando tomamos em consideração a experiência de ver
um quadro de Rothko. São precisos 48,72 cm para se ver, porque a experiência é
eminentemente espacial. E é por isso que a reprodução fotográfica falha em capturar a
experiência. Algo se perde no caminho. A fotografia é incapaz de reproduzir o detalhe, a
magnitude, a textura, elementos tão intrínsecos na experiência de ver Rothko que, sem eles,
podemos facilmente dizer que nada se viu.

A obra de Rothko demanda um modo de atenção diferente, fazendo com que, aqueles que
estejam sintonizados com a visão do artista, tenham uma experiência semelhante a um êxtase,
como se estivéssemos em transe. Isso porque, olhar para uma pintura de Rothko invoca um
tempo transcendental, trágico, místico, que ao mesmo tempo que é violento, também é
estranhamente sereno. Uma representação do vazio que abre a experiência para o sublime,
mais um estranho sublime que, apesar de operar nos limites da razão e da imaginação, nem
por isso deixa de ser pessoal.

Os críticos de Rothko diferem muito em suas interpretações acerca dos aspectos


composicionais da obra. Mas apesar da diferença, o ponto fulcral da interpretação sempre
volta a uma aparente contradição. Há uma contradição entre o arranjo simples da cor, com as
pinceladas, gotas e respingos encontrados às margens dos blocos de cores. É como se o
detalhe chamasse a atenção para longe da composição, para longe da magnitude, resultando
em uma percepção fragmentada, mas íntima, da obra.

A intimidade é um tema caro a Rothko. A proximidade da vida que só pode ser percebida no
detalhe, mas que entra em contradição com a técnica, com a composição, com a própria
monumentalidade da vida. Nesse sentido, como conciliar essa aparente contradição?

Rothko é um pintor do trágico. O pintor da trágica impossibilidade de reconciliação entre o


sagrado e o profano. Se há algo de sereno, se suas pinturas evocam uma atmosfera calma, é
porque, no contexto da América dos anos 50, a serenidade era uma forma de ansiedade. Uma
resposta ao clima de incerteza trazido pela Guerra Fria. Não é de se surpreender que alguns
críticos notaram o caráter terapêutico da obra de Rothko, como se seu colorismo fosse uma
espécie de remédio que acalmasse a ansiedade do fim dos tempos. Contudo, dizer isso é
deixar de lado, não somente a própria visão de Rothko sobre sua arte — como essa sendo um
meio de expressão para a própria violência que é a base da experiência humana em seu dia a
dia — como também, é negar o efeito do corpo no processo de criação da arte.
Cildo Meireles — Arte como afeto

"A oeste de Tordesilhas, a metáfora não tem valor próprio. Não é que eu não goste de
metáforas. Eu quero que todas as obras sejam vistas, algum dia, não como objetos para voos
estéreis da imaginação, mas como marcas, memórias e evocações de conquistas reais e
visíveis."

Desvio para o vermelho é uma instalação feita por Cildo Meireles, em 1984, localizado no
instituto Inhotim. A instalação conta com 3 salas, sendo a primeira um ambiente repleto de
móveis e objetos que podem ser facilmente encontrados em uma casa típica da classe média
brasileira dos anos 60 e 70, se não fosse por um detalhe: tudo é vermelho.

Dos móveis, aos eletrodomésticos, tapetes, pinturas, até o pinguim de porcelana na geladeira.
Os peixes no aquário, o periquito na gaiola, as bugigangas, o LP e o toca-disco, a televisão,
os livros. Tudo é vermelho, e acompanhado por uma estranha melodia da água escorrendo.

Na segunda sala, há um líquido espesso, vermelho, derramado pelo chão que aparenta estar
saindo de uma garrafa, cujo tamanho, à primeira vista, sugere não comportar a quantidade de
fluido espalhado pelo chão.

Seguindo adiante, nos deparamos com o último ambiente. A terceira sala é composta por
apenas um objeto, uma pia inclinada, quase que caindo, imersa em total escuridão. Da pia,
escorre um líquido, também vermelho.

[...]

"Alguns dias após minha visita, a inquietação ganha suas primeiras palavras:
fraqueza... desolação... desânimo... colapso... paralisia... medo... Um sentido
interminável de apreensão, absoluta impotência, exaustão. O que gradualmente toma
forma é a sensação diária de viver sob a ditadura militar do Brasil - precisamente o
período em que as diversas ideias que levaram Meireles a conceber a instalação
primeiro cristalizaram e se uniram. /

Isso não tem nada a ver com uma metáfora da brutalidade do regime em sua face
visível e representável. Em vez disso, relaciona-se à sensação de uma atmosfera
invisível que impregna tudo - o diagrama intensivo de forças do regime - e é
implacável em sua sutileza e intangibilidade. /

A impressão é que, sob ou atrás daquela "normalidade" patologicamente excessiva


que permeia a vida naquelas décadas de terror estatal, um sangramento incessante dos
fluxos vitais da sociedade brasileira está em processo, dia após dia. Tudo é atingido,
como o som e a cor do líquido vermelho que toma conta de toda a instalação."
A cor é um campo de força que afeta nossos corpos. O vermelho, por ter a menor frequência
e o maior comprimento de onda no espectro, se impõe sobre as outras cores, de modo a
contaminar a atmosfera da sala e do corpo.

“Meus olhos, meus ouvidos, minha respiração… minha subjetividade” começam a ser
afetados pelo vermelho, fazendo com que eu perca o sentido. Minha desorientação apenas se
intensifica.

O vermelho enquanto campo de força constitui uma atmosfera que emplaca na subjetividade,
como uma imitação da onipotência do regime militar. A repetição do vermelho uniformiza
tudo sobre o impacto do terror. Não há nada que escape. A tensão escala para níveis
imprescindíveis.

É preciso estar sempre em alerta. Não há como baixar a guarda. Nem em casa, nem na
escola, no trabalho, nas ruas, embaixo da ponte, na praça, bar, restaurante, shopping, hospital,
ônibus ou táxi… Nem mesmo no próprio ar que respiramos.

[...]

O que eu quero dizer com Cildo Meireles e a ditadura? Bom, apesar das diferenças, o caso do
Desvio para o Vermelho, em um certo sentido, é semelhante a uma obra de Rothko. Não no
sentido político, pois não há como comparar a vivência da ditadura, mas, na maneira pela
qual o desvio transforma a atmosfera difusa e onipresente da ditadura, em algo visível e
audível. A ditadura enquanto modelo de subjetividade, implica uma direta capacidade de
modelar os corpos. Torná-los dóceis, cegos e surdos para a brutalidade que se tornou
cotidiana. E isso vai além da mera censura dos materiais e do conteúdo do processo criativo.
Os efeitos da ditadura são mais sutis, na medida em que elas emplacam um efeito de inibição
no processo de criação, criando uma atmosfera sufocante, traumática, cuja memória, se é que
podemos dizer que temos uma memória da ditadura, conjura os fantasmas de um passado de
impotência. A humilhação dessa experiência ainda se faz sentir, e a capacidade de traduzir tal
atmosfera de tensão e indignação, e em um sentido, dar um corpo a esse fantasma, a esse
sentimento invisível, é o que define a arte de Meireles e o seu devir.

[...]

Em semelhante chave opera Rothko.

Se, de acordo com o próprio Meirelles, seu trabalho pode ser descrito como uma investigação
do espaço acerca de seus aspectos físicos, geométricos e históricos; o trabalho de Rothko, por
outro lado, é uma investigação emocional da intensidade e memória do mundo em seu devir.

O devir, ou vir-a-ser, na filosofia antiga, expressa a ideia de fluxo, de mudança. As coisas não
permanecem estáticas, tudo está em um constante processo de transformação. É nesse sentido
que o devir é um vir-a-ser, é aquilo que ainda está a caminho do ser. Se podemos definir o
devir como aquilo que ainda não é, mas que está a caminho de ser; o ser por outro lado,
expressa uma identidade, uma essência. O ser é imutável e eterno, é aquilo que dá existência
às coisas.

Tradicionalmente, a história da filosofia privilegiou o Ser no lugar do Devir, a identidade no


lugar da diferença. O pensamento da diferença, é um pensamento perigoso. Afinal, se o
mundo está em constante fluxo, como é possível pensar? Tendo em vista essa dificuldade,
que muitos filósofos foram levados a negar a realidade do devir, taxando-o de ilusório. O
devir, em sua transformação, é instável. Por conta disso, ele não pode ser objeto de
conhecimento verdadeiro.

Para Platão, a verdade está no mundo das formas, que é eterno, imutável e composto por
ideias perfeitas. Ele acreditava que as formas eram a verdadeira realidade e que o mundo
sensível era apenas uma cópia imperfeita e efêmera das Formas. Estando ligado àquilo que é
passageiro e temporário, o devir, em Platão, não passa de uma sombra de uma realidade
eterna e imutável, do mundo das formas. Ele é, por assim dizer, uma manifestação inferior da
realidade, e parte do processo da busca pela verdade, envolve transcender as ilusões do
mundo sensível através do conhecimento das formas, que são aquelas que verdadeiramente
representam a natureza das coisas.

mas quem disse que o devir é matéria de representação?

[...]

“Uma linha de devir não se define nem por pontos que ela liga nem por pontos que a
compõem: ao contrário, ela passa entre os pontos, ela só cresce pelo meio, e corre numa
direção perpendicular aos pontos que distinguimos primeiro, transversal à relação localizável
entre pontos contíguos ou distantes. Um ponto é sempre de origem. Mas uma linha de devir
não tem nem começo nem fim, nem saída nem chegada, nem origem nem destino; e falar de
ausência de origem, erigir a ausência de origem em origem, é um mau jogo de palavras. Uma
linha de devir só tem um meio. O meio não é uma média, é um acelerado, é a velocidade
absoluta do movimento. Um devir está sempre no meio, só se pode pegá-lo no meio. Um
devir não é um nem dois, nem relação de dois, mas entre-dois, fronteira ou linha de fuga, de
queda, perpendicular aos dois. [...] O devir é um movimento pelo qual a linha libera-se do
ponto, e torna os pontos indiscerníveis: rizoma, o oposto da arborescência, livrar-se da
arborescência. O devir é uma anti-memória” (96)

Devir é um rizoma. Ele não é identificação e nem imitação. Não é progredir e nem regredir.
Em um devir, não há correspondência. Não há filiação. Não há genealogia. Um devir é anti-
memória na medida que carrega toda a potência do verbo. Ele não pode ser reduzido a um
“parecer”, nem “ser”, nem “equivaler”.

[[[]]]
O devir é uma produção, é produzir o imperceptível.

O imperceptível é o fim imanente do devir. Nele, a identidade torna-se indiscernível. Há uma


fuga da identidade, uma liberação das linhas que foram estratificadas. O devir é justamente
uma abertura para subjetividades não-humanas e minoritárias. O homem-branco-hétero, não
pode devir, justamente, pois o devir só é possível tendo em mente um elemento diferencial
que se destaca da maioria, e que não tem nenhuma pretensão de ser universal.

Todo devir tem como fim um devir imperceptível.

“Estar na hora do mundo. Eis a ligação entre o imperceptível, indiscernível, impessoal, as três
virtudes. Reduzir-se a uma linha abstrata, um traço, para encontrar sua zona de
indiscernibilidade com outros traços e entrar, assim, na hecceidade como na impersonalidade
do criador. Então se é como o capim: se fez do mundo, de todo mundo, um devir, porque se
fez um mundo necessariamente comunicante, porque se suprimiu de si tudo o que impedia de
deslizar entre as coisas, de irromper no meio das coisas. Combinou-se o “tudo”, o artigo
indefinido, o infinitivo-devir e o nome próprio ao qual se está reduzido. Saturar, eliminar,
colocar tudo” (77-78)

[...]

Nessa visão, Rothko é o pintor do devir imperceptível. E suas telas, são o próprio plano de
consistência.

Rothko pinta o imperceptível ao passo que se distancia da pintura clássica como


representação. Se a fotografia trouxe uma crise para a pintura, pois colocava em questão sua
própria função enquanto meio de representar o mundo, ela por um outro lado, trouxe o
verdadeiro plano para a pintura, posto que, enquanto a fotografia é um espelho do mundo, a
pintura teria como seu objeto o não-figurativo, aquilo que foge a representação. É isso que
está por trás no surgimento da arte moderna, e o impulso da arte abstrata. Basta ver o
suprematismo de Malevich ou neoplasticismo de Mondrian. Por trás desses movimento, que
por mais heterogêneos que eles sejam, há uma necessidade, quase que pulsional, de traduzir a
experiência do sublime em seu caráter intensivo.

O intensivo opera a fuga da imagem e da representação. Em um primeiro nível, é


precisamente isso que distingue Rothko de seus contemporâneos como Clyfford Still, Barnett
Newman, e Pollock. Todos pintam quadros monumentais, telas do tamanho de paredes,
elevando a pintura a um nível quase que arquitetônico, em relação a sua escala. A diferença
de Rothko reside no balanço, entre o monumental e o íntimo, entre o caos e a ordem do
quadro. Em sua pintura, há um cuidado, e em um certo sentido uma ética do devir. Isso fica
evidente quando comparamos seu trabalho com o de Pollock. Pollock é um pintor complexo,
seu quadro é representação pura de um caos absoluto. E isso não é uma falha de seu trabalho,
mas, quando o espectador se defronta com sua obra, o caos é tão grande que não há registro.
Há tantas linhas imprevisíveis e inesperadas que a visão se exausta. Não há espaço para
intimidade em Pollock, e novamente isso não é um defeito. Mas em contraste, quando Rothko
pede para que seu expectador fique a 48,72 cm de distância de seu quadro, há todo um
cuidado envolto nesse pedido. Há uma certa distância, para que o detalhe não se perca na
magnitude.

Mas a consolidação desse estilo só se deu em seu período tardio, com o abandono da
figuração. A representação mito-poética é substituída por cores frouxas e sem lugar,
constituindo quadros que representam lugar nenhum. Esse não-lugar, esse nada, confere uma
aura religiosa ao quadro, uma experiência quase mística que não poderia ser capturada pela
figuração. A mediação nada mais faz do que representar, nesse caso. Ela não é a coisa em si.
Ela paralisa a imaginação, na medida que, impõe um significante à experiência religiosa.

Porém, é estranho pensar que esses quadros não possuem propriamente um lugar, sendo que
eles são o retrato da experiência do mundo em seu devir. Nesse sentido, o quadro de Rothko
torna-se muito semelhante à experiência do esquizofrênico catatônico. O esquizofrênico
sofre, não por fechar-se ao mundo, mas exatamente pelo contrário, por um excesso de
realidade. O esquizofrênico experimenta o mundo sem filtros. Por não conseguir filtrar aquilo
que lhe cabe como experiência, ele não consegue computar a realidade, criando assim sua
paralisia. Sendo assim, ele é imóvel por se mover demais, por não encontrar um meio de dar
ordem a seu caos.

[...]

“A diferença entre eu e o Ad Reinhardt é que ele é um místico. Com isso eu quero dizer que
suas pinturas são imateriais. As minhas estão aqui, materialmente [presentes]. A superfície, o
trabalho do pincel, e assim por diante. Suas telas são intocáveis”.

A diferença das obras de Rothko para as de Ad Reinhardt recai na chave da imanência.


Enquanto que Ad Reinhardt introduz uma transcendência sobre o corpo sem órgãos do
quadro (seu plano é abstrato demais, ele é formal demais), Rothko, pinta o plano de
consistência, em sua maior materialidade, tanto que, ele se faz sentir. Ele se faz sentir em um
sentido duplo: 1) em um nível emocional, enquanto sua capacidade de afetar os corpos e
produzir reações; como também 2) ele se faz sentir em um nível material através da textura.
A textura revela a intimidade do mundo de Rothko. Mundo este, o mundo da memória e
experiência humana. O que falta a Ad Reinhardt, nesse sentido, e o que faz de suas obras
retratos de um mundo transcendente, é justamente, a intimidade do detalhe que se perde na
formalização.

o abstrato em Rothko é um jeito de transparecer um sublime íntimo.

Contudo, há uma diferença fundamental entre Rothko e arte abstrata, que pode ser vista, em
comparação com outros artistas do mesmo movimento, como também, na recusa de Rothko
por qualquer categorização de sua arte.
“Eu não sou um abstracionista” , insistia Rothko. Por mais contraditório que pareça, sua arte
não está interessada em relacionar cores e formas. Há um impulso anti-formalista em suas
telas, de modo que, a cor deixa de ser um elemento intrínseco da obra, para se tornar um
instrumento de expressão.

Porém, mesmo nesse nível, as coisas não são tão simples. A cor é do jeito que ela é, porque
ela não poderia ser de outro jeito. A aparente abstração de seu quadro é indício da fuga da
abstração, uma vez que, o que ele busca comunicar é aquilo que escapa à comunicação, uma
violência que em seu detalhe não é possível representar. Se não há figuras no quadro de
Rothko, é porque ele opera no nível do menor detalhe possível, da partícula infinitesimal, da
molecularidade de um afeto. Não é a cor e suas relações formais que causam o impacto da
experiência de Rothko. Falar isso é não entender o ponto. Se o quadro de Rothko nos toca, se
seu mundo nos comove, é porque através da imagem, Rothko é capaz de comunicar a mesma
experiência religiosa que ele teve no ato de criação.

Em um de seus cadernos, Rothko diz: “a arte deve ser a expressão total da experiência do
homem no mundo, incluindo a experiência de seu espírito”. Mas se esse é o caso, qual é essa
experiência? Se há uma experiência em Rothko, e é uma experiência que foge a
representação, ela só poderia ser a de um mundo em constante estado de devir.

É na tentativa de representar esse mundo em constante estado de devir que Rothko recorre ao
não figurativo, pois a representação não seria capaz de dizer nada sobre o mundo. Ro
thko é o pintor do plano de consistência na medida que esse plano não tem nada a ver
com uma forma ou uma figura, nem com desenho e função. Não há uma unidade, nem um
telos, que guie a imagem em sua representação da experiência humana. Pois o quadro, a tela,
achata as dimensões, a fim de multiplicá-las, permitindo as mais diversas combinações. O
uno torna-se múltiplo sobre o plano de consistência. Se não há tridimensionalidade, ponto de
fuga, ou uma profundidade em seus quadros, é porque a profundidade se diz, justamente, em
outro sentido. O único modo apropriado para o plano de consistência é o da intensidade, que
faz do plano um plano fixo da vida, onde tudo se mexe, atrasa ou se precipita. É um plano
povoado pela matéria anônima, impalpável.

Mas como pintar o impalpável? Como pensar, justamente aquilo que foge ao pensamento?
Essa é a tarefa da arte em seu devir imperceptível, trazer à tona aquilo que é subterrâneo,
aquela linha abstrata, aberrante, que vem a incidir sobre o corpo, mas que, não encontrando
como se expressar, acaba por cair no inefável. Por isso é preciso subtrair, retirar, mas não em
um sentido de uma regressão que remontaria a um princípio, a uma essência, mas, pelo
contrário, a uma involução que dissolva a forma e liberte os tempos e a velocidade do
conteúdo. É preciso que a obra de arte venha a marcar os segundos, os décimos e
centésimos de segundo, para que nessa intensidade, a forma e a substância se dissolvam,
dando lugar, às minúsculas variações de nossas relações diferenciais. Tendo libertado a
incumbência da arte de representar o mundo, é que permitimos a ela entrar em novos
agenciamentos, formar novas conexões com o exterior, e com isso, produzir uma nova
aliança, um devir, entre o corpo e o mundo e seus movimentos.

O movimento é um tema caro a Rothko. Seus críticos confundem o vigor físico com a ação,
achando que a violência no pincel traduz-se em violência na tela. Contudo, a ação, da mesma
forma como o movimento, não depende da extensão, da distância ilusória percorrida com
vigor. Tanto que, um espaço limitado com objetos limitados pode vir a denotar uma
experiência mais violenta de movimento, do que qualquer agitação da técnica. Dito isso,
formam-se quadros do movimento, mas de um movimento imóvel que é produzido por
imagens que, em um primeiro momento são estáticas, mas transbordam ação, transbordam
movimento, pois no fundo, o que essas imagens são e representam, é o próprio devir. Se seu
quadro é um quadro do devir, ele o é, enquanto imagem movimento, enquanto imagem
intensiva, imagem molecular que, na tentativa de representar esse mundo, nos leva a um
outro lugar.

Mas isso não significa que ele abandonou o desenho. Mas só que ele não desenha mais para
representar. Ele não desenha mais para representar, e como consequência disso, se ele vem a
representar, tal representação está subordinada, primeiramente, à pintura da qual ela é
suporte. A representação torna-se um meio da pintura, e não o contrário. Se antes o quadro
era um meio de representar o mundo, agora, a representação torna-se um meio, dentre outros,
para a criação artística. Há uma inversão em Rothko que faz com que a diferença deixe de
remeter a identidade, para fazer com que a identidade subordine-se a diferença no processo
de representar o devir. Em seu estilo maduro, temos uma desterritorialização do desenho-
figura. Se antes o desenho ocupava uma função extensiva feita para representar, agora, tendo
liberado o traço de sua função de representar o mundo, cada traço torna-se um desenho, de
modo que, o desenho devém traço e o traço devém desenho.

[...]

“Mas foi precisamente a busca por uma espécie de verdade, uma espécie de transcendência
de argumentos mesquinhos e temporais, que governa seu universo moral - o universo de sua
obra”

Mas que verdade é essa que transcende o tempo? A verdade da imanência, de pintar o plano
de consistência,

Mas qual a tese? Produzir, de quadro em quadro, de pincelada a pincelada, um devir-trágico,


devir-imperceptível, uma desterritorialização do princípio e do sentido, da imagem e da
figura, fazendo com que tanto sujeito e objeto sejam dissolvidos no processo.

E isso fica evidente ao olhar a capela. A capela é uma instalação projetada por Rothko, em
Houston, Texas. Quatorze pinturas estão expostas nela. Todas pintadas de preto. A
experiência da capela, como descrito pelo crítico David Antin, é semelhante a “uma
confrontação com a condição existencial que fundamentalmente caracteriza nossa experiência
no mundo”. Isso porque, ao olhar para suas telas pintadas de preto, os olhos tentam ajustar-se,
se dilatando, mas o brilho relativo de fora das telas estimula uma contração das pupilas, que
impede que a visão se ajuste. Essa experiência produz uma “sensação de ansiedade”, pois
“você começa a perceber que o que você estava vendo, após um longo intervalo de olhar
intenso, modificou sua própria capacidade de ver, de tal modo que, não é mais possível dizer
o que está se vendo”. É muito comentado a capacidade da arte de Rothko produzir rastros,
imagens residuais que em conjunto com a ambientação, produzem um efeito fantasmático,
uma certa aura, que, desestabiliza tanto um Eu, que não tem mais certeza de estar vendo a
imagem, como também, a própria memória.

É em meio a esse processo que a identidade se dissolve e o imperceptível se torna visível. Em


Rothko, a percepção se torna molecular, na medida em que o desejo investe diretamente a
percepção. É muito semelhante ao problema da droga em Deleuze e Guattari. A droga coloca
em funcionamento “velocidades loucas”, suscita impensáveis lentidão, que dão a percepção
toda a potência molecular de captar micro-fenômenos, micro-operações, acelerando e
desacelerando um tempo flutuante, que já não é mais nosso, pois não comporta mais forma,
sujeito e nem rosto. Nada mais que o ziguezague de uma linha que rasga rostos e paisagens.
Todo um trabalho rizomático da percepção se faz presente em Rothko por confundir desejo e
percepção.

É nesse sentido que os críticos de Rothko erram ao dizer que seu colorismo os traz prazer.
Não é o prazer que está em jogo, mas justamente o desejo. Há toda uma “erótica da ausência”
em jogo, que coloca em questão a memória e sua relação com o desejo. Mas, se de algum
modo as telas de Rothko tornam-se indicativos de uma relação íntima entre a memória e o
desejo, elas o são na medida que, não há a busca por um objeto de desejo. Não há um objeto
sendo representado, e se há um, ele só pode o ser a própria paixão do devir.

Em Rothko, tanto o objeto quanto o sujeito, entram em devir. Se, no plano de consistência, a
identidade se dissolve, é porque o corpo deixa de se definir pela forma e pela substância. Não
há sujeito num plano de consistência, e é por isso que ele opera uma fuga dos dualismos
tradicionais da história da filosofia. É uma fuga da forma e substância, do sujeito e objeto. O
devir do sujeito e objeto, da forma e substância, faz com que o corpo passe a ser definido
então somente por longitudes e latitudes, pelo conjunto dos elementos materiais e pelas
relações de movimento e de repouso que se estabelecem com a exterioridade. Com isso, um
corpo passa a ser definido por sua velocidade e lentidão, pela sua potência de conjurar afetos.

O mundo de Rothko é um mundo de afetos e velocidades. Isso porque, em sua tela, não há
mais distinção entre o corpo e a natureza. Sendo assim, em sua obra, o que distingue um
bloco de cor… de outro? Há um modo de individuação diferente em Rothko. Rothko é o
pintor do devir na medida que, a individuação em seus quadros se dá por hecceidades.

uma hecceidade é um acontecimento.


“Uma estação, um inverno, um verão, uma hora, uma data [possuem] uma individualidade
perfeita, à qual não falta nada, embora ela não se confunda com a individualidade de uma
coisa ou de um sujeito. São hecceidades no sentido de que tudo aí é relação de movimento e
de repouso entre moléculas ou partículas, poder de afetar e ser afetado… Um grau de calor,
uma intensidade de branco são perfeitas individualidades; e um grau de calor pode compor-se
em latitude com um outro grau para formar um novo indivíduo, como num corpo que tem frio
aqui e calor ali de acordo com sua longitude… Um grau de calor pode compor-se com uma
intensidade de branco, como em certas atmosferas brancas de um verão quente” (49-50).

Nem só de palavras bonitas se vive um texto. Já dissemos que Rothko é o pintor do trágico,
que ele é o pintor dos afetos, do devir imperceptível, e agora do plano de consistência. Mas e
daí? Pra que tudo isso?

[...]

Se há algo de valioso em Rothko, que talvez passou despercebido aos olhares da crítica, tem a
ver com o que será dito a seguir.

Em, “O que é o Ato de Criação”, Deleuze define criação como um ato de resistência.
Resistência à morte, resistência ao clichê, resistência à informação. Resistir é liberar um
potencial de vida preso, tácito, que ainda permanece escondido por detrás de algo.

Mas é engraçado pensar que a relação do termo “criação” com as “artes” é algo dado, como
se, o ato de criação fosse natural as artes. É claro, isso talvez se deva à associação entre a
criatividade e o campo artístico, mas, o que eu quero dizer é que, a criação, enquanto ato,
remete a um outro lugar.

A criação é um ato divino. É o ato de criar, a partir do nada, algo. Há uma diferença na
teologia medieval entre uma criação do nada (creare ex nihilo), que define a criação divina,
com uma criação humana (facere de matéria) a partir de materiais já dados. É isso que marca
a distância entre o ser humano e Deus, essa potência de criação que não conhece limites.

Contudo, como encaixar esse entendimento do ato de criação divino com a definição de
Deleuze da criação como um ato de resistência?

Na história da filosofia, o conceito de ato remonta a Aristóteles e é indissociável de seu par


potência. Ao mesmo tempo que Aristóteles opõe o ato (energeia) a potência (dynamis). e
essa divisão marca a separação entre sua física e metafísica, é justamente através dela que
Aristóteles explica o ato de criação. E é muito ilustrativo nos ater a seus exemplos. O
arquiteto (oikodomos), o tocador de cítara, o escultor, o gramático, o que une todos esses
exemplos é o conhecimento de uma técnica (technai). Sendo assim, como nota Agamben, a
potência de que fala Aristóteles, em seu Livro 9 da Metafísica e no Livro 2 do De Anima, não
se refere ao potencial que uma criança tem de se tornar um arquiteto, um escultor, ou tocador
de citara, mas, diz respeito a àquele que já possui o conhecimento da arte em questão. O
potencial que fala Aristóteles tem muito mais haver com uma ideia de hábito (echô), de um
hábito de possuir a capacidade ou técnica que tal arte requer (hexis), e que por possuir tal
capacidade, o artista seria aquele que justamente é tanto capaz de colocar em ação o
potencial, como também, não colocá-lo. Ou seja, o potencial é essencialmente definido por
sua possibilidade de não exercício. O arquiteto continua sendo um arquiteto mesmo quando
não planeja uma casa. No fundo, a potência é a suspensão do ato.

[...]

A resistência enquanto ato é uma instância crítica, desacelera o impulso da realização do


potencial em ato, e deste modo, previni o potencial de se consumar de uma vez por todas. Ao
contrário do que muitos pensam, a maestria não vêm de uma perfeição formal, de um
domínio da técnica, mas, precisamente de seu oposto: o que define a maestria é a preservação
do potencial, esse perfeito balanço que equilibra a imperfeição na perfeita forma. Essa
maestria se manifesta numa obra como um maneirismo, um íntimo detalhe, que é preciso um
certo olhar de águia para se enxergar.

Se há um certo ódio por parte dos conservadores com a arte modernista, com a arte abstrata, é
porque a obra revela uma verdade insuportável. A verdade de que, eles não podem entrar em
devir.

“E é precisamente neste não-poder-fazer que se funda, em última instância, toda instância


propriamente crítica: o que um erro de gosto torna evidente é sempre uma falta, não tanto ao
nível do potencial-para, mas ao nível do ser- capaz de não fazer. Quem não tem gosto não
pode se abster de nada: falta de gosto é sempre não poder deixar de fazer alguma coisa… O
que imprime um selo de necessidade a uma obra é, portanto, precisamente o que poderia não
ter sido ou poderia ter sido de outra forma: a contingência. Aqui não se trata de uma mudança
de opinião do pintor, como mostra uma radiografia sob as camadas de cor, nem dos primeiros
rascunhos ou variantes atestados no manuscrito: o que está em jogo é antes aquele “tremor
leve e imperceptível” na própria imobilidade da forma que, segundo Focillon, é a insígnia
do estilo clássico”

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