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ANTONIO GRAMSCI

Coleção
PERSPECTIVAS DO HOMEM
Volume % 48
Série Filosofia

Direção de MOACYR FELIX

Os Intelectuais
e a Organização
da Cultura

Tradução de
CARLOS NELSON COUTINHO

4. a edição

civilização
brasileira
Título do original italiano:
GLI INTELLETTUALI E L'ORGANIZZAZIONE
DELLA CULTURA
Índice

Do Autor, publicados por


esta Editora:
CONCEPÇÃO DIALÉTICA DA HISTÓRIA
CARTAS DO CÁRCERE
MAQUTAVEL, A POLÍTICA E O ESTADO MODERNO
LITERATURA E VIDA NACIONAL

I. CONTRIBUIÇÕES PARA UMA HISTÓRIA DOS INTELECTUAIS

A Formação dos Intelectuais 3


Desenho de capa:
Notas Esparsas
MARIUS LAURITZEN BERN
Função Cosmopolita dos Intelectuais Italianos 25
Intelectuais Italianos no Exterior 67
Diagramação e Supervisão gráfica: Europa, América, Mia 81
ROBERTO PONTUAL
II. A ORGANIZAÇÃO DA CULTURA
A Organização da Escola e da Cultura 117
Para a Investigação do Princípio Educativo 129
Direitos para a língua portuguesa adquiridos pela
Notas Esparsas 141
EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.
Rua Muniz Barreto, 91-93 — Botafogo III. JORNALISMO 161
Rio de Janeiro — RJ
que se reserva a propriedade desta tradução IV. APÊNDICE
Lorianisnlo 207

Indice Onomástico 239

1982

Impresso no Brasil
Printed in Brazil
I

Contribuições para uma


História dos Intelectuais
A Formação dos Intelectuais

O S INTELECTUAIS constituem um grupo social autôno -


mo e independente, ou cada grupo social possui sua própria
categoria especializada de intelectuais? O problema ê com-
plexo por causa das várias formas que, até nossos dias, assu-
miu o processo histórico real de formação das diversas ca-
tegorias intelectuais.
As mais importantes destas formas são duas:
1) Cada grupo social, nascendo no terreno originário
de uma função essencial no mundo da produção econômica,
cria para si, ao mesmo tempo, de um modo orgánico, uma
ou mais camadas de intelectuais que lhe dão homogeneidade
e consciência da própria função, não apenas no campo eco-
nômico, mas também no social e no politico: o empresário
capitalista cria consigo o técnico da indústria, o cientista da
economia politica, o organizador de uma nova cultura, de

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cabe observar que a massa dos camponeses, ainda que de-
um novo direito, etc., etc. Deve-se anotar o fato de que senvolva uma função essencial no mundo da produção, não
o empresário representa uma elaboração social superior, já elabora seus próprios intelectuais "orgãnicos" e não "assi-
caracterizada por uma certa capacidade dirigente e técnica mila" nenhuma camada de intelectuais "tradicionais", em-
(isto é, intelectual): ele deve possuir uma certa capacidade bora outros grupos sociais extraiam da massa dos campo-
técnica, não somente na esfera restrita de sua atividade e neses muitos de seus intelectuais e grande parte dos inte-
de sua iniciativa, mas ainda em outras esferas, pelo menos lectuais tradicionais seja de origem camponesa.
nas mais próximas da produção econômica (deve ser um
organizador de massa de homens: deve ser um organizador da 2) Cada grupo social "essencial", contudo, surgindo na
"confiança" dos que investem em sua fábrica, dos compra- história a partir da estrutura econômica anterior e como ex-
dores de sua mercadoria, etc.). pressão do desenvolvimento desta estrutura, encontrou --
pelo menos na história que se desenrolou até aos nossos dias
Os empresários -- se não todos, pelo menos uma elite categorias intelectuais preexistentes, as quais apareciam,
deles -- devem possuir a capacidade de organizar a socie- aliás, como representantes de uma continuidade histórica que
dade em geral, em todo o seu complexo organismo de ser- não fora interrompida nem mesmo pelas mais complicadas e
viços, inclusive no organismo estatal, em vista da necessida- radicais modificações das formas sociais e políticas.
de de criar as condições mais favoráveis à expansão da pró-
pria classe: ou, pelo menos, devem possuir a capacidade de A mais típica destas categorias intelectuais é a dos écle-
escolher os "prepostos" (empregados especializados) a quem siásticos, que monopolizaram durante muito tempo (numa in-
confiar esta atividade organizativa das relações gerais exte- teira fase histórica que é parcialmente caracterizada, aliás,
riores a fábrica. Pode-se observar que os intelectuais "or- por este monopólio) alguns serviços importantes: a ideolo-
gánicos", que cada nova classe cria consigo e elabora em gia religiosa, isto é, a filosofia e a ciência da época, através
seu desenvolvimento progressivo, são, no mais das vezes, "es- da escola, da instrução, da moral, da justiça, da beneficência,
pecializações " de aspectos parciais da atividade primitiva do da assistência, etc. A categoria dos eclesiásticos pode ser
tipo social novo que a nova classe deu à luz.' considerada como a categoria intelectual orgànicamente li-
gada à aristocracia fundiária: era juridicamente equiparada
Também os senhores feudais eram detentores de uma
particular capacidade técnica, a militar, e é precisamente a à aristocracia, com a qual dividia o exercício da propriedade
partir do momento em que a aristocracia perde o monopólio feudal da terra e o uso dos privilégios estatais ligados à pro-
desta capacidade técnico-militar que se inicia a crise do feu- priedade.2 Mas o monopólio das superestruturas por parte dos
dalismo. Mas a formação dos intelectuais no mundo feudal
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e no mundo clássico precedente é uma questão que deve sér Para o estudo de uma categoria desses intelectuais, a mais impor-
examinada à parte: esta formação e elaboração segue cami- tante, talvez, depois da "eclesiástica", pelo prestigio e pela função so-
nhos e modos que é preciso estudar concretamente. Assim, cial desenvolvida nas sociedades primitivas — a categoria dos médicos
em sentido lato, isto é, de todos aqueles que lutam ou parecem lu-
r tar contra a morte e as doenças para isso, dever-se-é consultar a
Os Elementos de Ciência Política, de MoscA (nova edição au- História da Medicina, de Anrama CASncr.ronr. Recorde-se que hou-
mentada, 1923), devem ser examinados para esta rubrica. A chama- ve conexão entre a religião e a medicina e que esta conexão con-
da "classe política" de Mosca não é mais do que a" categoria intelec- tinua ainda a existir, em certas zonas: hospitais na mão de religiosos
tual do grupo social dominante: o conceito de classe politica" de no que toca a certas funções de organização, além do fato de que,.
Mosca deve se avizinhar ao conceito de elite de Pareto, que é uma onde aparece o médico, aparece o padre (exorcismo, assistência de
outra tentativa de interpretar o fenómeno histórico dos intelectuais e vários tipos, etc.). — Muitas grandes figuras religiosas eram também,
sua função na vida estatal e social. O livro de Mosca é um enorme e foram concebidas, como grandes "terapeutas": a idéia do milagre
calhamaço de caráter sociológico e positivista, com a tendenciosidade que chegou ató à ressurreição dos mortos. Durante muito tempo, per-
da política imediata, ademais, o que o toma menos indigesto e lite- maneceu a crença de que os reis curavam pela colocação das mãos, etc.
rariamente mais vivo.
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vidades intelectuais, ao invés de buscá-lo no conjunto do sis-
eclesiásticos' não foi exercido sem luta e sem limitações; e tema de relações no qual estas atividades (e, portanto, os
nasceram, conseqüentemente, em várias formas (que devem grupos que as personificam) se encontram, no conjunto geral
ser pesquisadas e estudadas concretamente), outras catego- das relações sociais. Na verdade, o operário 6u proletário,
rias, favorecidas e ampliadas á medida em que se reforçava por exemplo, não se caracteriza especificamente pelo traba-
o poder central do monarca, até chegar ao absolutismo. Assim, lho manual ou instrumental, mas por este trabalho em deter-
foi-se formando a aristocracia togada, com seus próprios pri- minadas condições e em determinadas relações sociais (sem
vilégios, bem como uma camada de administradores, etc.; e falar no fato de que não existe trabalho puramente físico e
também cientistas, teóricos, filósofos não eclesiásticos, etc. de que mesmo a expressão de Taylor, "gorila amestrado",
Dado que estas várias categorias de intelectuais tradi- é uma metáfora para indicar , um limite numa certa direção:
cionais sentem com "espírito de gripo" sua ininterrupta con- em qualquer trabalho físico, mesmo no mais mecânico e de-
tinuidade histórica e sua "qualificação " , eles consideram a si gradado, existe um mínimo de qualificação técnica, isto é,
mesmos como sendo autõnomos e independentes do grupo um mínimo de atividade intelectual criadora). E já ye obser-
social dominante. Esta autocolocação não deixa de ter con- vou que o empresário, pela sua própria função, deve possuir
seqüências de grande importância no campo ideológico e po- em certa medida algumas qualificações de caráter ln electual,
lítico: toda a filosofia idealista pode ser facilmente relacio- se bem que sua figura social seja determinada não por elas,
nada com esta posição assumida pelo complexo social dos mas pelas relações sociais gerais que caracterizam efetiva-
intelectuais e pode ser definida como a expressão desta uto- mente a posição do empresário na indústria.
pia social segundo a qual os intelectuais arceditam ser "inde- Todos os homens são intelectuais, poder-se-ia dizer en-
pendentes", autõnomos, revestidos de características pró- tão: mas nem todos os homens desempenham na sociedade
prias, etc. a função de intelectuais.*
Deve-se notar, porém, que se o Papa e a alta hierarquia Quando se distingue entre intelectuais e não-intelectuais,
da Igreja se crêem mais ligados a Cristo e aos apóstolos do faz-se referência, na realidade, tão-somente á imediata fun-
que aos senadores Agnelli e Benni, o mesmo não ocorre com ção social da categoria profissional dos intelectuais, isto é,
Gentile e Croce, por exemplo; Croce, notadamente, sente-se leva-se em conta a direção sobre a qual incide o peso maior
fortemente ligado a Aristóteles e a Platão, mas não esconde da atividade profissional específica, se na elaboração intelec-
que esteja ligado aos senadores Agnelli e Benni; precisamen- tual ou se no esforço muscular-nervoso. Isto significa que,
te nisto deve ser procurada a característica mais marcada se se pode falar de intelectuais, é impossível falar de não-in-
da filosofia de Croce. telectuais, porque não existem não-intelectuais. Mas a pró-
Quais são os limites "máximos" da acepção de "intelec- pria relação entre o esforço de elaboração intelectual-cere-
tual"? $ possível encontrar um critério unitário para caracte- bral e o esforço' muscular-nervoso não é sempre igual; por
rizar igualmente todas as diversas e variadas atividades in- isso, existem graus diversos de atividade específica intelectual.
telectuais e para distingui-las, ao mesmo tempo e de modo Não existe atividade humana da qual se possa excluir toda
essencial, dos outros agrupamentos sociais? O erro metodoló- intervenção intelectual, não se pode separar o homo faber do
gico mais difundido, ao que me parece, consiste em se ter homo sapiens. Em suma, todo homem, fora de sua profissão,
buscado este critério de distinção no que é intrínseco ás ati- desenvolve uma atividade intelectual qualquer, ou seja, é um
"filósofo", um artista, um homem de gosto, participa de uma
s
Disso nasceu a acepção geral de "intelectual" ou de "especialista",
a partir da palavra "clérigo", em muitas Ifnguas de origem neolatina 4
Do mesmo modo, pelo fato de que al ém possa em determinado
ou fortemente influenciadas, através do latim eclesiástico; pelas línguas momento fritar dois ovos ou costurar um buraco do paletó, não quer
neolatinas, com seu correlativo de "laico" no sentido de profano, de dizer que todo mundo seja cozinheiro ou alfaiate.
não-especialista.
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concepção do mundo, possui uma linha consciente de con-
duta moral, contribui assim para manter ou para modificar conexão com os grupos sociais mais importantes, e sofrem
uma concepção do mundo, isto é, para promover novas ma- elaborações mais amplas e complexas em ligação com o grupo
neiras de pensar. social dominante. Uma das mais marcantes características
O problema da criação de uma nova camada intelectual, de todo grupo social que se desenvolve no sentido do domí-
portanto, consiste em elaborar criticamente a atividade inte- nio é sua luta pela assimilação e pela conquista "ideológica"
lectual que existe em cada um em determinado grau de de- dos intelectuais tradicionais, assimilação e conquista que são
senvolvimento, modificando sua relação com o esforço mus- tão mais rápidas e eficazes quanto mais o grupo em questão
cular-nervoso no sentido de um novo equilíbrio e conseguin- elaborar simultaneamente seus próprios intelectuais orgânicos.
do-se que o próprio esforço muscular-nervoso, enquanto ele- O enorme desenvolvimento alcançado pela atividade e
mento de uma atividade prática geral, que inova continua- pela organização escolar (em sentido lato) nas sociedades
mente o mundo físico e social, torne-se o fundamento de uma que surgiram do mundo medieval indica a importância assu-
nova e integral concepção do mundo. C) tipo tradicional e mida no mundo moderno pelas categorias e funções intelec-
vulgarizado do intelectual é fornecido pelo literato, pelo filó- tuais: assim como se buscou aprofundar e ampliar a "inte-
sofo, pelo artista. Por isso, os jornalistas — que crêem ser lectualidade" de cada indivíduo, buscou-se igualmente mul-
literatos, filósofos, artistas — crêem também ser os "verda- tiplicar as especializações e aperfeiçoá-las. $ este o resul-
deiros" intelectuais. No mundo moderno, a educação técni- tado das instituições escolares de graus diversos, inclusive
ca, estreitamente ligada ao trabalho industrial, mesmo ao dos organismos que visam a promover a chamada "alta cul-
mais primitivo e desqualificado, deve constituir a base do tura", em todos os campos da ciência e da técnica.
novo tipo de intelectual.
Neste sentido trabalhou o semanário Ordine Nuouo,
s A escola é o instrumento para elaborar os intelectuais de
visando a desenvolver certas formas de novo intelectualismo diversos níveis. A complexidade da função intelectual nos
e a determinar seus novos conceitos; e essa não foi uma das vários Estados pode ser objetivamente medida pela quanti-
razões menores de seu êxito, pois uma tal colocação corres- dade das escolas especializadas e pela sua hierarquização:
pondia a aspirações latentes e era adequada ao desenvolvi- quanto mais extensa for a "área" escolar e quanto mais nu-
mento das formas reais de vida. O modo de ser do novo merosos forem os "graus" "verticais" da escola, tão mais
intelectual não pode mais consistir na eloqüência, motor ex- complexo será o mundo cultural, a civilização, de um deter-
terior e momentâneo dos afetos e das paixões, mas num imis- minado Estado. Pode-se ter um termo de comparação na
cuir-se ativamente na vida prática, como construtor, orga- esfera da técnica industrial: a industrialização de um país se
nizador, "persuasor permanente", já que não apenas orador mede pela sua capacidade de construir máquinas que cons-
puro — e superior, todavia, ao espírito matemático abstra- truam máquinas e na fabricação de instrumentos cada vez
to; da técnica-trabalho, eleva-se à técnica-ciência e à con- mais precisos para construir máquinas e instrumentos que
cepção humanista histórica, sem a qual se permanece "espe- construam máquinas, etc. O país que possuir a melhor capa-
cialista" e não se chega a "dirigente" (especialista mais po- citação para construir instrumentos para os laboratórios dos
lítico). cientistas e para construir instrumentos que fabriquem estes
Formam-se assim, historicamente, categorias especializa- instrumentos, este pais pode ser considerado o mais complexo
das para o exercício da função intelectual; formam-se em co- no campo técnico-industrial, o mais civilizado, etc. Do mes-
nexão com todos os grupos sociais, mas especialmente em mo modo ocorrê na preparação dos intelectuais e nas es-
colas destinadas a tal preparação; escolas e instituições de
6 Trata-se de mn periódico socialista, de cuja seçio turinesa Gramsci alta cultura são similares. Neste campo, igualmente, a quan-
foi redator (Nota do Tradutor). tidade não pode ser destacada da qualidade. A mais refi-
nada especialização técnico-cultural, não pode deixar de cor-
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responder a maior ampliação possível da difusão da instru-
ção primária e a maior solicitude no favorecimento dos graus vados") e o da "sociedade política ou Estado", que corres-
intermediários ao maior número. Naturalmente, esta neces- pondem à função de "hegemonia" que o grupo dominante
sidade de criar a mais ampla base possível para a seleção e exerce em toda a. sociedade e àquela de domínio direto"
elaboração das mais altas qualificações intelectuais — ou ou de comando, que se expressa no Estado e no governo "ju-
seja, de dar à alta cultura e à técnica superior uma estrutura rídico". Estas funções são precisamente organizativas e co-
democrática — não deixa de ter inconvenientes: cria-se, des- nectivas Os intelectuais são os "comissários" do grupo do-
te modo, a possibilidade de vastas crises de desemprego nas minante para o exercício das funções subalternas da hege-
camadas médias intelectuais, tal como realmente ocorre em monia social e do governo político, isto é: 1) do consenso
"
todas as sociedades modernas. espontâneo" dado pelas grandes massas da população à
orientação impressa pelo grupo fundamental dominante à vida
Deve-se notar que a elaboração das camadas intelectuais social, consenso que nasce "historicamente" do prestígio (e,
na realidade concreta não ocorre num terreno democrático portanto, da confiança) que o grupo dominante obtém, por
abstrato, mas de acordo com processos históricos tradicionais causa de sua posição e de sua .função no mundo da produ-
muito concretos. Formaram-se camadas que, tradicionalmen- ção; 2) do aparato de coerção estatal que assegura "legal-
te, " produzem" intelectuais; trata-se das mesmas camadas mente" a disciplina dos grupos que não "consentem", nem
que, muito freqüentemente, especializaram-se na "poupança", ativa nem passivamente, mas que é constituído para toda a
isto é, a pequena e média burguesia fundiária e alguns es- sociedade, na previsão dos momentos de crise no comando
tratos da pequena e média burguesia das cidades. A diversa e na direção, nos quais fracassa o consenso espontâneo.
distribuição dos diversos tipos de escola (clássicas e profis-
sionais) no território " econõmico " e as diversas aspirações Esta colocação do problema traz, como resultado, uma
das várias categorias destas camadas determinam, ou dão ampliação muito grande do conceito de intelectual, mas so-
forma, à produção dos diversos ramos de especialização in- mente assim torna-se possível alcançar uma aproximação con-
telectual. Assim, na Itália, a burguesia rural produz notada- creta à realidade. Este modo de colocar a questão entra em
mente funcionários estatais e profissionais liberais, ao passo choque com preconceitos de casta; é verdade que a própria
que a burguesia urbana produz técnicos para a indústria: por
isso, a Itália setentrional produz notadamente técnicos e a função organizativa da hegemonia social e do domínio esta-
Itália meridional notadamente funcionários e profissionais. tal dá lugar a uma certa divisão do trabalho e, portanto, a
toda uma gradação de qualificações, em algumas das quais
A relação entre os intelectuais e o mundo da produção não mais aparece nenhuma atribuição diretiva e organizati-
não é imediata, como é o caso nos grupos sociais fundamen-
va: no aparato da direção estatal e social existe toda uma
tais, mas é "mediatizada", em diversos graus, por todo o con-
série de empregos de caráter manual e instrumental (de or-
texto social, pelo conjunto das superestruturas, do qual os
dem e não de conceito, de agente e não de oficial ou funcio-
intelectuais são precisamente os "funcionários". Poder-se-ia
nário, etc.); mas, evidentemente, é preciso fazer esta distin-
medir a "organicidade" dos diversos estratos intelectuais, sua
ção, como é preciso fazer também qualquer outra. De fato,
mais ou menos estreita conexão com um grupo social funda-
mental, fixando uma gradação das funções e das superestru-
a atividade intelectual deve ser diferenciada em graus, in-
clusive do ponto de vista intrínseco; estes graus, nos momen-
turas de baixo para cima (da base estrutural para cima).
tos de extrema oposição, dão lugar a uma verdadeira e real
Por enquanto, pode-se fixar dois grandes "planos" superes-
diferença qualitativa: no mais alto grau, devem ser coloca-
truturais: o que pode ser chamado de "sociedade civil" (isto
dos os criadores das várias ciências, da filosofia, da arte,
é; o conjunto de organismos chamados comumente de "pri-
etc.; no mais baixo, os "administradores" e divulgadores mais
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Os intelectuais de tipo rural são, em sua maior parte,
modestos da riqueza intelectual já existente, tradicional, "tradicionais", isto é, ligados à massa social camponesa e pe-
acumulada? queno-burguesa das cidades (notadamente dos centros me-
No mundo moderno, a categoria dos intelectuais, assim nores), ainda não elaborada e movimentada pelo sistema ca-
entendida, ampliou-se de modo inaudito. Foram elaboradas, pitalista: este tipo de intelectual põe em contato a massa
pelo sistema social democrático-burgués, imponentes massas camponesa com a administração estatal ou local (advogados,
de intelectuais, nem todas justificadas pelas necessidades so- tabeliães, etc.) e, por esta mesma função, possui uma grande
ciais da produção, ainda que justificadas pelas necessidades função político-social, já que a mediação profissional dificil-
políticas do grupo fundamental dominante. Daí a concepção mente se separa da mediação política. Além disso: no cam-
loriana do "trabalhador" improdutivo ( mas improdutivo em po, o intelectual (padre, advogado, professor, tabelião, mé-
relação a quem e a que modo de produção?), que poderia dico, etc.) possui um padrão de vida médio superior, ou, pelo
ser parcialmente justificada se se levasse em conta que estas menos, diverso daquele do médio camponês e representa, por
massas exploram sua posição a fim de obter grandes somas isso, para este camponês, um modelo social na aspiração de
retiradas à renda nacional. A formação em massa estandar- sair de sua condição e de melhorá-la. O camponês acredita
tizou os indivíduos, na qualificação intelectual e na psico- sempre que pelo menos um de seus filhos pode-se tornar in-
logia. determinando os mesmos fenõmenos que ocorrem em telectual (notadamente padre), isto é, tornar-se um senhor,
todas as outras massas estandartizadas: concorrência (que elevando o nivel social da família e facilitando sua vida eco-
coloca a necessidade da organização profissional de defesa). nômica pelas ligações que não poderá deixar de estabelecer
desemprego, superprodução escolar, emigração, etc. com os outros senhores. A atitude do camponês diante do
intelectual é dúplice e parece ser contraditória: ele admira a
posição social do intelectual e do funcionário público, em ge-
Posição diversa dos intelectuais de tipo urbano e de tipo ral, mas finge às vezes desprezá-la, isto é, sua admiração
rural. Os intelectuais de tipo urbano cresceram juntamente mistura-se instintivamente com elementos de inveja e de raiva
com a indústria e são ligados às suas vicissitudes. A sua fun- apaixonada. Não se compreende nada da vida coletiva dos
ção pode ser comparada à dos oficiais subalternos no exér- camponeses, bem como dos germes e fermentos de desen-
cito: não possuem nenhuma iniciativa autõnoma na elabora- volvimento aí existentes, se não se levam em consideração, se
ção dos planos de construção; colocam em relação, articulan- não se estuda concretamente e não se aprofunda esta subor-
do-a, a massa instrumental com o empresário, elaboram a dinação efetiva aos intelectuais: todo desenvolvimento orgâ-
execução imediata do plano de produção estabelecido pelo nico das massas camponesas, até um certo ponto, está ligado
estado-maior da indústria, controlando suas fases executivas aos movimentos dos intelectuais e dele depende.
elementares. Na média geral, os intelectuais urbanos são O caso é diverso no que diz respeito aos intelectuais
bastante estandartizados; os altos intelectuais urbanos con- urbanos: os técnicos de fábrica não exercem nenhuma fun-
fundem-se cada vez mais com o auténtico estado-maior in- ção política sobre suas massas instrumentais, ou, pelo menos,
dustrial. é esta uma fase já superada; por vezes, ocorre precisamente
o contrário, ou seja, que as massas instrumentais, pelo menos
E O organismo militar, também neste caso, oferece um modelo destas através de seus próprios intelectuais orgânicos, exerçam uma
complexas gradações: oficiais subalternos, oficiais superiores, Estado-
Maior; e não se deve esquecer as praças graduadas, cuja importância influência política sobre os técnicos.
real é superior ao que habitualmente se crê. E interessante notar que O ponto central da questão continua a ser a distinção
todas estas partes se sentem solidárias; ou antes, que os estratos infe-
riores manifestam um "espírito de grupo" mais evidente, do qual re- entre intelectuais como categoria orgânica de cada grupo so-
sulta uma "vaidade" que freqüentemente os expõe aos gracejos e ès cial fundamental e intelectuais como categoria tradicional; dis-
tro a
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