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Jung & Corpo

EDITORIAL

O lançamento de mais um número de nossa revista reveste-se este ano de uma simbologia
especial. Ela é a revista no. 8 do ano 2008. Neste ano, assistimos à Olimpíada em Beijing, que
teve início dia 8 do oitavo mês, às 8h08. Para os chineses, o 8 significa prosperidade e sorte, e
por isso escolheram este momento exato para celebrar o congraçamento entre os povos e sua
reunião em torno de diferentes modalidades esportivas. Na numerologia, o número 8 significa
poder, magia e força, mas também pode significar destruição, morte e fim. Na Psicologia
Analítica, Jung propõe a existência de 8 tipos psicológicos básicos.
Os artigos da nova revista procuram trazer o vigor de novas idéias, reflexões e pesquisas
para aprimorar nosso conhecimento e fertilizar futuros caminhos na arte de unir a teoria
Junguiana e as abordagens corporais. Nossa revista começa com o relato de um caso, no qual
Ana Carolina Lourenção aborda a questão da obesidade, percebendo-a como um sintoma
decorrente do feminino profundamente ferido em uma mulher rejeitada e oprimida.
A reflexão proposta por Estela Noronha nos conduz a pensarmos sobre a religiosidade, o
tempo e a importância dos mitos para dois grandes pensadores: Jung e Eliade.
As imagens de Sandplay contidas no texto de Vivian Gimenes nos colocam diante de
símbolos subjacentes à experiência da proximidade da morte em pacientes com câncer.
O terreno amoroso onde se desenvolve a análise propicia encontros especiais, nos quais as
sincronicidades revelam o mistério da própria vida. É este o tema abordado por Suzana
Delmanto.
A experiência de atendimento com crianças vítimas de violência, apresentada por Juliana
Grandolpho da Silva e por Priscila Martins, exemplifica uma metodologia que integra o
símbolo e a linguagem corporal na construção de uma nova identidade e de novos valores que
ajudarão na prevenção da violência.
Em seu artigo, Paulo Machado tece uma reflexão sobre a arte-terapia e sua tarefa de cuidar
do Ser, de modo a auxiliar que as forças curativas do próprio paciente possam ser mobilizadas e
potencializadas através do processo criativo.
Através do artigo de Juliana Cavalcante, entramos em contato com sonhos de moradores
de rua, que trazem símbolos das dores sofridas e das esperanças acalentadas por eles, num vai e
vem constante diante de uma condição tão particular de desamparo.
Concluímos nossa revista com o texto de Elena Shirahige sobre as transformações pelas
quais as mulheres japonesas vêm passando, abordando sua inserção social e trazendo reflexões

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sobre a cultura japonesa. Este tema nos aproxima de um universo distinto, mas cada vez mais
entrelaçado ao nosso, neste ano em que comemoramos o centenário da imigração japonesa.
Encerrando este editorial nos damos conta, em mais uma sincronicidade, tão cara a nós,
junguianos, que a Jung & Corpo 8 é composta por 8 artigos!
Boa leitura!

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SUMÁRIO

OBESIDADE: REFLEXÕES SOBRE O FEMININO FERIDO


Ana Carolina Lourenção.................................................................................07

JUNG E ELIADE: a escatologia, a cosmogonia e a questão do tempo


para o homo religiosus
Estela Noronha, Renato Pinto de Almeida Junio...................................................23

O PACIENTE COM CÂNCER DIANTE DA MORTE - Uma Reflexão da


Psicologia Simbólica Junguiana a partir das Imagens das Cenas do
Sandplay
Vivian P. Gear da Gimenes............................................................................33

SINCRONICIDADES — ENCONTROS ESPECIAIS — AMOR Quando a


Sessão Terapêutica é um Encontro Valioso
Suzana Delnumto ......................................................................................51

ATENDIMENTO A GRUPO DE CRIANÇAS VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA


- O Corpo como Terreno para o Desenvolvimento de Recursos
Internos
Juliana Granclolpho da Silva, Priscila Santos Martins..........................................57
O PROCESSO CRIATIVO E A CURA
Paulo Toledo Machado Filho.........................................................................67

IMAGENS ONÍRICAS DA POPULAÇÃO DE RUA


Juliana Alves Cavalcante..............................................................................77

A MULHER JAPONESA: SEUS SÍMBOLOS E TRANSFORMAÇÕES


Elena Etsuko Shirahige................................................................................95
JUNG E CORPO: PILARES DE UM PROJETO SOCIAL......................111

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OBESIDADE: REFLEXÕES SOBRE O


FEMININO FERIDO
Ana Carolina Melillo Lourenção1

Introdução

Esse estudo de caso tem como objetivo fazer uma reflexão um pouco mais aprofundada
sobre o feminino ferido, umas das possíveis causas de natureza psicológica da obesidade. Para
tanto, voltei-me para a análise dos sonhos, desenhos e trabalhos corporais realizados por uma
mulher obesa que passou pelo Grupo GESTO (Grupo de estudos sobre o tratamento do
obeso), e através desse vínculo foi encaminhada para o meu consultório. O GESTO é um grupo
multidisciplinar, constituído por psicólogos, psiquiatra, nutricionista, enfermeira, educador
físico e médico clínico, que tem suas atividades realizadas no CRATOD (Centro de referência
de álcool, tabaco e outras drogas) da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo. Considero
fundamental a descrição do grupo, pelo fato de a paciente ter feito parte dele, e,
conseqüentemente, esclarecer como aconteceu o vínculo, o encaminhamento e a escolha da
paciente.
O conteúdo programático do GESTO inclui três fases diferentes, sendo a primeira chamada
intensiva, porque o paciente tem atividades duas vezes por semana, o dia inteiro; a segunda
fase, conhecida como semi-intensiva, é o momento onde a freqüência passa a ser de uma vez na
semana; e por fim, a terceira fase, ou manutenção, acontece uma vez por mês e, como o
próprio nome sugere, existe um encontro com uma das psicólogas e a nutricionista apenas para
acompanhar a estabilidade do tratamento.

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Psicóloga formada pela PUC-SP, especialista em Psicoterapia Junguiana Coligada a Técnicas Corporais pelo
Instituto Sedes Sapientiae. E-mail: aclourencao@hotmail.com

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A paciente concluiu a primeira fase, onde nos conhecemos, pois sou a psicóloga responsável
pela terapia corporal. Ela sempre gostou muito dos trabalhos realizados nesse espaço, e dizia se
sentir muito à vontade naquele contexto. Portanto, o nosso vínculo é anterior aos
atendimentos individuais feitos no consultório.
Após ter completado a primeira fase, a psicóloga responsável pelo grupo de psicoterapia
percebeu a necessidade que essa paciente tinha de fazer um trabalho individual, e então a
encaminhou para o meu consultório. Ela se dispôs, a partir daí, a ser voluntária da presente
pesquisa.
Escolhi esse tema porque os trabalhos nesse campo têm comprovado que o aumento de peso
não é uma simples questão de comer em demasia. A diferença essencial está na capacidade
individual de “metabolizar”, física e psiquicamente, as calorias ingeridas. Podendo haver, por
trás de quaisquer distúrbios metabólicos, tanto causa de ordem fisiológica como psicológica.
Acredito que o tratamento eficaz da obesidade não seja apenas medido pelos números na
balança, mas também uma exploração das questões pessoais e familiares que possam impedir a
pessoa a tomar uma decisão madura sobre seu peso, ingestão alimentar e exercícios.
Considerando-se a banalização do uso de medicamentos para emagrecer, cirurgias para
reduzir o estômago, enfim, técnicas milagrosas que se desenvolvem em um contexto no qual os
ideais culturais colocam o corpo magro como modelo, o obeso é exposto a preconceitos que
geram exclusão e desqualificação. Poucos artigos apontam as dificuldades psicológicas que
podem ocorrer nesse processo. Talvez a crença arraigada na técnica como resolução efetiva de
problemas é que desconsidere outros aspectos como um campo fértil para expressão dos fatores
que levam à manutenção da obesidade mórbida.
Com bases nos dados acima citados e também por constatar características comuns entre os
obesos, tais como: depressão, baixa auto-estima, sentimentos de incompetência, fracasso,
culpa, rejeição, intolerância, ridicularização, exclusão social e preconceitos relacionados ao seu
porte corporal, surgiu o meu interesse em conhecer melhor os símbolos que permeiam a
relação dessa mulher com a comida, com a gordura e com seu corpo de modo geral.
Considerando as interpretações que apontam ser a gordura uma máscara, uma defesa, uma
repressão do feminino, analisei os desenhos da figura humana feitos durante os atendimentos,
bem como os sonhos e observações e percepções relativos ao trabalho corporal. Considero ser
este um estudo pertinente, pois poderá ajudar o profissional da saúde a conhecer melhor as
dificuldades, conflitos e angústias desses pacientes. Ao fazer o levantamento bibliográfico
constatei que o significado individual mais profundo sobre ser obeso é pouco pesquisado, em
um contexto no qual a busca por um corpo enxuto põe em jogo a auto-estima e leva as pessoas
a porem em risco a sua saúde física e emocional.

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A Obesidade Mórbida
Definição:

A obesidade é considerada um dos maiores problemas contemporâneos de saúde. Esta


doença multifatorial, resultante da confluência de fatores genéticos, psicológicos, metabólicos,
neuroendócrinos, sociais, familiares e dietéticos atinge um número cada vez maior de pessoas
(Waidergorn, Lopes e Evangelista, 1999).
A obesidade é definida como o aumento do peso corpóreo em relação ao peso ideal devido
ao acúmulo de tecido adiposo no organismo. Atinge indivíduos de ambos os sexos e de todas as
idades, porém é mais freqüente em adultos do sexo feminino. Atualmente, muita preocupação
também é tida com as crianças e os adolescentes, pois estudos estatísticos mostram que é
crescente o número de obesos, segundo a Organização Mundial de Saúde (2004). Os dados
apresentados nesse estudo demonstram também a relevância da obesidade como problema de
saúde pública em nosso país.
A simples verificação do peso não é considerada um bom parâmetro para a avaliação da
obesidade. Outros fatores, principalmente a altura, devem ser levados em consideração.
Hoje em dia, a maneira mais aceita para verificar o nível de obesidade é obtida pelo cálculo do
IMC (índice de massa corporal), que é resultado da divisão do peso em quilograma pela altura
ao quadrado.
O obeso mórbido é o indivíduo que possui um índice de massa corporal acima de 40. Isto o
torna mais vulnerável a quedas, doenças cardiovasculares, diabetes, hipertensão, aterosclerose,
derrame, infartos e doenças de fundo emocional, como a depressão maior, o que implica em
uma diminuição na sua expectativa de vida.
O determinante mais imediato do acúmulo excessivo de gordura e, por conseqüência, da
obesidade, é o balanço energético positivo. O balanço energético positivo acontece quando a
quantidade de energia ingerida é maior do que a quantidade gasta.
Embora existam evidências sugerindo a influência genética no desenvolvimento da
obesidade, esses mecanismos ainda não estão plenamente esclarecidos. Acredita-se que fatores
genéticos possam estar relacionados à eficácia no aproveitamento, armazenamento e
mobilização dos nutrientes ingeridos; ao gasto energético, em especial à taxa metabólica; ao
controle do apetite e ao comportamento alimentar (Francischi et al., 2000). Algumas
desordens endócrinas também podem conduzir à obesidade, como, por exemplo, o
hipotiroidismo e problemas no hipotálamo, mas estas causas representam menos de 1% dos
casos de excesso de peso (idem, ib.). Tal constatação sugere buscas mais aprofundadas na área
psicológica.

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Metodologia

Participante: Maria (nome fictício) era paciente do grupo GESTO, e por conta de uma
demanda pessoal, percebida pela psicóloga responsável pelo grupo que freqüentava, me foi
encaminhada para psicoterapia individual. Passei a atendê-la no consultório particular, uma vez
por semana, com sessões de duração de uma hora, que aliava terapia verbal a trabalhos
corporais.
Quando iniciei o processo de psicoterapia, pedi que assinasse um termo de consentimento,
se comprometendo a ir todas as terças-feiras, durante seis meses, ao consultório para a
realização desse estudo.
Procedimento: Para garantir que não houvesse outras interferências terapêuticas, Maria não
deu continuidade à segunda fase do grupo GESTO.
Decidi adotar o Desenho da Figura Humana como um instrumento de comparação, para
identificar, projetivamente, se houve alteração no início e no final dos seis meses de
atendimento. Portanto, o teste foi aplicado assim que começamos as consultas e no sexto mês,
quando encerramos o ciclo.
Farei uma análise também de um dos sonhos relatados nesse período, bem como das imagens
trazidas após a aplicação das técnicas corporais, pois apontam muito bem o caminho de sua
energia psíquica, ilustrando e enriquecendo o estudo do caso.
Objetivo: Tentar identificar a influência dos atendimentos individuais de psicoterapia verbal
coligada a técnicas corporais na auto-imagem, feminino reprimido e processo de individuação
de uma paciente obesa.

Relato do caso
Maria é uma mulher de quase 60 anos de idade, casada há mais de 30 anos e mãe de quatro
filhas.
Nasceu no interior da Bahia, num sítio próximo a um riacho e a uma cachoeira, onde passou
a sua infância e adolescência. É a filha mais nova e tinha mais oito irmãos. Seu pai era lavrador,
mestre de obras e professor rural. Segundo Maria, era uma pessoa muito atenciosa, dedicada e
esclarecida, apesar de não ter estudado; era também exigente e ao mesmo tempo compreensivo
com ela. Sua mãe era responsável pela colheita e divisão das tarefas da casa entre os filhos.
Considera sua infância uma fase muito feliz, cheia de recordações boas, que orientam sua vida
até hoje. Por exemplo, conta que aos domingos tomava banho na cachoeira com as primas e
com a irmã mais velha. Atualmente, diz que busca esse contato com a natureza e se sente muito
bem quando faz programas desse tipo.

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Aos 12 anos de idade, houve uma promoção de bolsas de estudo no colégio das freiras, e sua
mãe a inscreveu. Maria foi aprovada. Esse fato é relevante, pois quase seguiu o caminho
religioso. Durante algum tempo, quis se tornar freira, mas não teve coragem de deixar os pais
no interior e, acima de tudo, não abriu mão do desejo de ter filhos biológicos. Queria ser mãe,
casando ou não.
Nessa época já tinha uns 20 anos, se formara no colégio e tinha a oportunidade de vir para
São Paulo ou para Salvador. Essa viagem foi um presente de seu pai e o objetivo era que
passasse férias no lugar escolhido. Escolheu vir para São Paulo, movida por uma antiga paixão
por um rapaz que estava morando aqui.
Ao chegar na “cidade grande”, percebeu que seria muito difícil encontrar esse homem por
quem estava apaixonada, pois não tinha o endereço dele e nenhum outro contato. Nunca mais o
viu.
Nesse período, prestou um concurso e passou, porém suas férias estavam no fim e seus pais
vieram para São Paulo buscá-la, pois apesar de ter conseguido um emprego, ainda era solteira.
Então veio o dilema: ficar em São Paulo, realizar um casamento arranjado e “seja o que Deus
quiser” (sic), ou voltar para o interior da Bahia, solteira e com poucas oportunidades de
emprego. Optou por conhecer melhor aquele homem estranho que queria casar com ela e ficar
para trabalhar nessa empresa.
Os pais aceitaram, pois ela estava sendo coerente com as condições estabelecidas por eles.
Cerca de um ano e meio depois estava casada.
Ficou claro que Maria estava se casando por conveniência e não por amor, e tal fato teve
como conseqüência as divergências do casal desde cedo. Para Maria, o importante era
continuar em São Paulo e ser mãe, ao passo que para seu marido o importante era ter uma
esposa dedicada e viver o amor que estava sentindo. Entretanto, isso não foi possível, pois logo
Maria engravidou e o marido ficou muito incomodado. Ele a achava feia com “aquela barriga”,
nunca a acompanhou ao médico e nem mesmo estava presente na maternidade na hora do
parto.
A sua atitude com a filha não foi diferente, sempre a rejeitou, preferindo fazer os serviços
domésticos a cuidar da menina. Maria se irritava muito com essa situação e sua posição foi
proteger a filha, afastando-se gradualmente do marido.
O tempo foi passando e parou de trabalhar fora; ajudava sua irmã com a costura enquanto
cuidava da minha filha querida. Mais ou menos um ano depois de casados, foram morar com os
pais de Wilson (nome fictício), seu marido. Foi uma fase difícil porque ficava em casa e o seu
sogro era muito estressado, brigava com a sogra e a maltratava muito; ela era muito doente,
tinha um grande tumor no abdômen, o que dava a impressão de que estava grávida. Segundo
Maria, sua sogra não tinha interesse pela vida, vivia cochilando no sofá da sala e era chamada de
preguiçosa. Acho importante relatar tal fato porque hoje em dia Maria vê Wilson exatamente
como via a mãe dele, e isso lhe causa repulsa e, conseqüentemente, um afastamento sexual.

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Voltando à história, queria sair de lá da casa dos sogros, mas o marido não concordava, pedia
paciência, pois tinham um terreno e fariam uma casa logo.
Ele ficou muito zangado quando Maria descobriu que estava grávida pela segunda vez.
Wilson sugeriu que abortasse, mas Maria não teve coragem. Ia ter gêmeos: mais duas meninas
nasceram.
Foi um parto complicado, onde correu risco de vida e ficou em coma durante três dias. Acha
que isso fez com que Wilson tivesse uma postura um pouco diferente na família. Passou a
segurar as gêmeas no colo, ajudava em alguns afazeres domésticos, mas continuava pouco
afetuoso, frio e ausente enquanto pai. Maria costumava pensar que essa barreira em relação às
crianças era, simplesmente, porque trabalhava demais, chegava em casa tarde e cansado.
Conseguiram se restabelecer a ponto de voltarem a morar sozinhos com as três crianças.
Nessa fase Maria ficou sobrecarregada, pois tinha que dar conta do cuidado com as meninas, da
casa e das costuras, que lhe rendiam o dinheiro da feira, brinquedos, roupas, cosméticos e
muita satisfação por não precisar pedir nada a seu marido. Não se sentia merecedora de poder
usufruir o salário dele.
A situação financeira foi melhorando aos poucos, contudo não sobrava dinheiro para ir para
o interior da Bahia, visitar seus pais, e a saudades a deixava triste. Nessa época recebeu a notícia
de que seu pai tinha tido um AVC (Acidente Vascular Cerebral) e como seqüela ficara
hemiplégico. Finalmente voltou à terra natal com a finalidade de se despedir do pai. Foi uma
viagem muito dura, que deixou marcas tão profundas que, quando estava no processo de
psicoterapia, sugeri que fizesse uma linha do tempo contando a sua história de vida, e, no final
das vinte e cinco sessões, retomei a linha do tempo, mas Maria não havia conseguido escrever
nada além desse ponto.
Engravidara novamente, estava esperando mais uma menina. Algo diferente aconteceu na
relação pai e bebê. Wilson estava mais atencioso com a caçula, cuidadoso e próximo. Até hoje
o relacionamento dele com a filha mais nova é muito melhor do que com as outras. Isso fez
com que a relação do casal também melhorasse.
Nessa época Maria tinha por volta de trinta anos e alguns anos depois que a quarta filha nasceu
resolveu fazer um curso técnico de auxiliar de enfermagem. Agora ela tinha uma profissão e
estava trabalhando numa empresa. Adorava seu trabalho.
Aos trinta de oito anos, devido a sérias hemorragias decorrentes de um mioma, fez uma
histectomia e a partir daí começou a engordar. Depois dessa cirurgia desencadeou-se um
processo de ganho de peso, que se acentuou muito na época em que teve que sair da empresa
em que trabalhava para cuidar da saúde de Wilson, que havia enfartado, estava aposentado e
ficava em casa o dia inteiro.

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Ter que ficar somente em casa, causa em Maria uma sensação muito angustiante, ainda mais
quando vê sua falecida sogra “personificada” no marido, que está obeso e muito deprimido.
Wilson passa os dias deitado no sofá assistindo à televisão, cochilando e só sai de dentro do
apartamento para ir ao mercado.
Desde que Maria fez essa dura escolha de parar de trabalhar, acatando a pressão do marido
para que isso acontecesse, associado à cirurgia de retirada do útero e ovário esquerdo, vinha
aumentando de peso gradualmente. Desde que começamos a psicoterapia individual relatou,
até o nosso último encontro, isto é, seis meses depois, ter perdido três quilos.
Inconscientemente, uma das funções da manutenção do peso era o distanciamento sexual.
Esse mecanismo foi percebido quando se deu conta de que via a sogra no corpo do marido e
isso desestimulava qualquer movimento de desejo de sua parte, porém não era eficiente,
porque Wilson continuava desejando-a.
Durante os atendimentos, foi percebendo a importância de olhar o verdadeiro significado da
gordura na sua história de vida.

Trabalhos Corporais

O toque serve como um veículo para suscitar símbolos que devem ser integrados à
consciência, e esse é um dos principais elementos terapêuticos desse estudo de caso.
O obeso vive em seu corpo experiências tais como: preconceito, rejeição, dores, entre
outros. Isso tudo faz com que se distanciem desse corpo que está atrelado a vivências muito
negativas, muitas vezes até evitando se olhar no espelho. O corpo gordo é visto/sentido como
a sombra. Portanto, a busca de elaboração dos símbolos contidos no corpo produzirá conflitos
que terão que ser suportados se a pessoa quiser crescer.
As técnicas corporais no trabalho psicoterápico podem ser consideradas um importante
recurso facilitador do contato da paciente com seu próprio mundo interno, sua natureza
individual, estimulando-se assim a expressão mais espontânea e plena de seu próprio modo de
ser.
O trabalho corporal, para Maria, foi uma chance de vivenciar experiências diferentes
daquelas, negativas, citadas acima, tais como vergonha e angústia, sempre com o objetivo de
ampliar a consciência e as suas potencialidades, fazendo com que o trabalho realizado fizesse
frente ao universo de críticas e repressões impingidas ao obeso.
Ao todo, fizemos dezoito trabalhos corporais, todos escolhidos a partir das necessidades
percebidas através dos sonhos, desenhos da figura humana ou mesmo dos trabalhos corporais
anteriormente realizados. Existiram dois temas predominantes nesse processo: a imagem
corporal e o feminino ferido. Portanto, será a partir deles que analisaremos o caso.

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Nas três primeiras sessões, apliquei Calatonia. A seqüência básica original dessa técnica
consiste em explicar preliminarmente ao paciente que serão realizados nove toques suaves em
vários pontos dos pés e barriga da perna, finalizando com um toque na nuca. Maria disse ter
sentido uma sensação boa decorrente do trabalho, porém percebeu que ativou os seus sonhos,
o que era algo ruim para ela. Tinha medo de sonhar, pois dizia que seus sonhos eram sempre
premonitórios, isto é, um dia antes de Wilson ter um infarto, sonhou que isso iria acontecer,
portanto, tinha pavor de lembrar-se de seus sonhos. Com o passar do tempo foi percebendo
que os conteúdos de seus sonhos iam muito além da previsão do futuro. Fomos construindo
esse conhecimento a partir de imagens oníricas que ela trazia, e íamos dando outros significados
que diziam respeito a seus símbolos pessoais.
Os sonhos contados durante o processo foram sempre relatados após algum toque sutil, que,
entre outras coisas, tem como característica proporcionar um estado alterado de consciência,
onde existe um rebaixamento da consciência e, então, algumas imagens ou lembranças podem
surgir. Provavelmente, ao retroceder de tais vivências, os sonhos ficavam mais presentes em
sua consciência e, então, Maria os contava.
O trabalho com bolinha de tênis nos pés foi muito interessante, porque Maria percebeu que
andava com os “pés de pato” desde que fez a histerectomia. Sentia que dessa forma travava o
esfíncter e os seus órgãos não “escorregariam”. A sensação de vazio decorrente da cirurgia foi
muito mencionada durante os encontros, pois dizia respeito ao feminino ferido e também a
uma auto-imagem distorcida. Ela percebia a região pélvica fria e vazia, então passou a comer
mais para que o estômago preenchesse aquele espaço que estava oco.
Maria não tinha consciência dessa associação, apenas se deu conta disso através do toque sutil,
com as mãos em cestinha, na região dos ovários durante em média três minutos. Nesse dia
relatou sentir a minha mão tocando seu estômago e sentiu-se aquecida pelo toque.
O trabalho corporal ajudou-a a redefinir sua auto-imagem e com isso passou a ter mais
consciência de sua gordura e de seus significados, bem como da percepção da feminilidade
como algo simbólico que está internalizado nela, não necessitando da concretude do órgão que,
para ela, era a representação da maternidade e do universo feminino.
“Imagem Corporal é o modo pelo qual o corpo se apresenta para nós” (Schilder, 1981).
Essa imagem é formada não apenas a partir de registro de dados objetivos fornecidos pelas
vias sensoriais e sinestésicas. Esses registros são permeados, de forma sutil e variada, pelos
significados afetivos e cognitivos adquiridos durante nossas vivências.
Durante os trabalhos de tapotagem e massagem com bolinha de tênis no corpo inteiro, Maria
sentiu a presença imaginária de outras pessoas na sala, além de mim, sendo que uma delas era
um médico que tinha ligação comigo e fazia umas anotações enquanto a outra pessoa ia conferir
se a porta estava fechada. Percebia uma luz lilás no alto da minha cabeça.

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Acho importante descrever essa percepção, pois acredito ter a ver com o arquétipo do
médico ferido, o curador interno que estava sendo acessado.
Tendo essa hipótese em mente, passei a eleger trabalhos corporais onde sua participação era
mais ativa. Escolhi um trabalho com a respiração, no qual ela tinha que inspirar profundamente
e ir percebendo o caminho do ar em seu corpo. No relato disse ter sentido um cheiro de âmbar
no consultório, que a deixava relaxada e, conforme inspirava aquele cheiro, imaginava que ele
era um elemento curativo e o direcionava para seu ombro dolorido, e isso fez com que a dor
melhorasse significativamente.
No último dia de atendimento fiz um trabalho integrativo de todos os chakras. Os conteúdos
psíquicos decorrentes foram muito positivos, já que ela entendeu a importância dos
atendimentos na sua vida, o quão importante estava sendo aquele espaço de cuidar e pensar
sobre suas questões. Isso tudo era muito novo para Maria, que decidiu continuar a terapia e
entrar cada vez mais em contato com um mundo interno cheio de possibilidades.
O trabalho corporal foi um facilitador do processo psicoterápico, um instrumento
fundamental para o reconhecimento físico-psíquico e também algo que a ajudou a conhecer
seus limites e seu contorno interno e externo.
Partindo da definição da auto-imagem, pressupondo que esta acompanha o processo de
identidade e conhecimento de si mesmo, observamos através dos trabalhos corporais, desenhos
da figura humana e sonhos as mudanças ocorridas em Maria.

Desenhos da Figura Humana

Voltei-me ao Desenho da Figura Humana, no esquema antes e depois, como um meio de


avaliação dos procedimentos adotados ao longo dos seis meses de psicoterapia. Essa foi uma
forma concreta para perceber o quanto havia conseguido sensibilizá-la psíquica e
corporalmente.
A função inicial, avaliativa, do uso dos desenhos foi ampliada: eles passaram a se constituir
num recurso facilitador, isto é, um instrumento de mobilização e estímulo na ampliação da
autopercepção corporal. O primeiro par de desenhos foi feito na quarta sessão, isto é, no
começo do processo. O segundo, no vigésimo quarto atendimento, ou penúltimo dia de
terapia.
A forma de análise dos desenhos será feita a partir de um roteiro relatado por Rosa Maria
Farah, no livro Integração Psicofísica, cuja organização dos aspectos estruturais é feito a partir de
seis itens. São eles: relação do próprio corpo com o espaço; vivência do próprio corpo;
autoconceito e auto-imagem; imagem social; afetividade envolvida na auto-imagem; análise
comparativa das duas figuras e o simbolismo expresso nos desenhos.
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Primeiro par de desenhos

Figura Feminina- 1º desenho Figura Masculina- 2º desenho

Segundo par de desenhos

Figura Feminina- 1º desenho Figura Masculina- 2º desenho

No primeiro par de desenhos, as figuras aparecem posicionadas de frente na folha; nota-se o


desenho equivalente ao masculino maior e mais ao centro da folha do que a figura feminina,
porém a última se apresenta sobre a linha da terra. A transparência chama a atenção nesse par
de desenhos, assim como a indiferenciação sexual das figuras. Os dois parecem estar usando
saias transparentes, que deixam as pernas à vista e não existe nenhum atributo sexual como
cintura, seios, pênis que identifiquem o sexo das figuras. Isto pode ser explicado pela fala de
Maria em relação ao marido, quando conta que via nele a sogra, especialmente nos dias em que
não saia de casa e então vestia um robe. Diz que olhando de costas via a mãe dele e, por isso,
não conseguia vê-lo como homem.

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Não podemos esquecer que a figura do sexo masculino, compreendida como animus, faz o
elo entre o consciente e o inconsciente, dando margem a conteúdos mais internos, portanto
menos acessíveis à consciência. Essa observação, eventualmente, poderá nos trazer elementos
elucidativos sobre potencialidades ainda não desenvolvidas por Maria.
Nas articulações dos joelhos aparece um tipo de traçado diferente, uma espécie de espiral
que pode ser interpretada como uma região dolorida. No ombro esquerdo da figura feminina
também aparece um sombreado que sugere dor. Essa hipótese se confirmou.
A proporção dos desenhos não tem nenhum aspecto destoante, porém as mãos têm dedos
em forma garras, que podem estar representando agressividade, dificuldade de contato ou, o
que fez mais sentido a ela, a quantidade de energia contida que não consegue extravasar, ainda
mais quando passa muitos dias dentro de casa.
Os olhos das figuras aparecem sem pupila, o que dá uma sensação de vazio e sem
direcionamento de olhar. Se fizermos um paralelo com a sua vida, podemos dizer que estava
um pouco perdida e não vendo sentido nas coisas cotidianas, possivelmente em decorrência da
falta de papel social; então ela se sentia sem valor e um pouco inútil. A falta de vida das figuras
sugere uma estagnação e faz com que elas se pareçam com espantalhos.
Os contornos dos olhos parecem um pouco caídos, dando impressão de tristeza, porém são
disfarçados pela boca que aparece sorrindo. Essa é a postura que Maria costuma ter frente à
vida: muitas vezes não leva em consideração o que está sentindo, como se fosse banal, fingindo
que está tudo sob controle. Essa sombra aparece em forma de uma agressividade passiva, que se
volta contra si mesma em relação à comida. O comer é uma barganha que momentaneamente
preenche algo sobre o qual nem ela tem consciência.
No segundo par de desenhos, o que chama a atenção é a diferença de traçado, sendo este
forte e contínuo, trazendo a sensação de estar mais centrada e consciente do próprio corpo. A
ausência de transparências é também significativa, podendo ser interpretada como um
amadurecimento frente à vida.
As figuras possuem uma diferenciação sexual bem nítida através das roupas, acessórios,
cabelo e cintura na figura feminina. Foi interessante perceber que ao longo dos seis meses de
trabalho, Maria não só emagreceu como também tornou-se mais feminina, deixado os cabelos
crescerem até a altura dos ombros, ganhou cintura, pintava as unhas das mãos e pés e passou a
usar brincos. Simbolicamente, assumir algumas situações que julgava serem masculinas trazia
um profundo sentimento de desproteção, que mascarava, assumindo fisicamente atributos
masculinos para poder lidar com tais questões.
O primeiro desenho a ser feito foi a figura feminina, bem como no primeiro par, e esta
apresenta a linha da terra. A figura está levemente à esquerda da folha. Os círculos continuam
presentes em algumas articulações, especialmente dos braços e ombros, porém com menos

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intensidade e tensão no traçado, o que levanta a hipótese de as dores terem diminuído. Tal
como o segundo par de desenhos mostram, Maria consegue identificar melhor seus limites
corporais, e, conseqüentemente, o psíquico. Esse dado é relevante, pois antes pensava que por
ser uma dona de casa precisava dar conta de todos os afazeres domésticos sem reclamar,
inclusive tarefas como lavar as cortinas no tanque, almofadas dos sofás e cobertores. Hoje em
dia, contratou uma faxineira para fazer os serviços pesados, e, para os afazeres do dia-a-dia,
pede ajuda de Wilson, que descobrimos gostar de ajudar.
As mãos não apresentam aquela intensidade de energia ou agressividade antes presente.
Trabalhamos muito sua habilidade manual e isso despertou em Maria a vontade de voltar a
atuar na sua profissão e também nas aplicações de Reiki, que fazia alguns anos atrás. Conseguiu
um trabalho voluntário numa instituição e está muito feliz, mas insegura por voltar a trabalhar.
Apesar de os olhos não terem pupila, seu formato está mais coerente com o sorriso dos
lábios e o rosto está mais harmonioso com a presença das sobrancelhas, que trazem uma
moldura para a face.
Existe certa tensão nos pés de ambas as figuras, mostrando a dificuldade de contato com a
terra e tudo o que é material. Percebe-se a correlação disso na vida de Maria, porque quando se
sente em uma situação difícil recorre a coisas do plano espiritual que a deixam mais distante da
realidade dura da vida.
Quando terminou de desenhar a mulher, disse que esta caminha para a direita, que tinha até
suado enquanto fazia o desenho e precisava sair de perto daquela figura. É interessante como
ainda não reconhece em si mesma essa nova forma, por isso o desenho assusta, porém traz
dados muito positivos, tal como estar em movimento psíquico e físico, andando para frente,
isto é, evoluindo no seu processo de individuação.
Acho interessante notar que, ao compararmos o primeiro com o segundo par de desenhos
em termos da idade aparente das figuras, observamos que o segundo par parece ser mais jovem.
A resposta para a mudança nos desenhos pode ter vindo dessa atividade na vida. Maria tem
relatado diversas viagens realizadas pela família e também uma vida social mais ativa nos finais
de semana, com programações surpreendentes que a agradam muito.
O recurso dos Desenhos da Figura Humana foi fundamental para, inicialmente, orientar o
trabalho terapêutico e, posteriormente, servir como instrumento de avaliação das mudanças
ocorridas. Foi um facilitador da psicoterapia e tem um grande mérito para o sucesso do
resultado desse trabalho.
Ao finalizarmos o segundo par de desenhos, mostrei a Maria seus dois pares e pudemos
discutir a respeito das mudanças ocorridas. Considerei isso parte importante do processo, pois
ela conseguiu visualizar concretamente as transformações simbólicas ocorridas nesse período de
25 sessões de psicoterapia.

18
Jung & Corpo

Análise de um Sonho

O sonho descrito abaixo foi contado por Maria depois de um trabalho corporal de calatonia
nas mãos e também após ter voltado de uma viagem para o interior, que fez muito bem a ela.
“Estava numa espécie de um luau, num lugar aberto cheio de árvores. Era noite e a lua estava
cheia. Tinha uma fogueira enorme, cheia de cobras no meio do fogo, mas elas não queimavam.”
Contou que às vezes parecia um ritual com pessoas dançando em volta da fogueira, mas às vezes
parecia apenas um grupo de pessoas reunidas.
“Um homem tocava violão e estavam todos bebendo chá e comendo arroz integral na
palha do milho.”
É um sonho com forte conteúdo arquetípico, muito rico em detalhes, por isso foi escolhido
para a análise simbólica, além de representar de uma forma única o caminho de sua energia
psíquica.
No parágrafo acima foi relatado que Maria teve esse sonho após ter ido viajar para uma
cidade do interior, cujo contato com a Natureza fora intenso, em meio a cachoeiras e muito
verde. Essa vivência traz à tona sua infância no interior da Bahia, onde o contato com a terra e
água fazia parte de seu cotidiano. Ela se sente segura em lugares como esse.
Desde que foram assaltados no prédio onde moram, em São Paulo, e os ladrões invadiram
sua casa e os fizeram reféns, tem a vontade de mudar para algum outro lugar. Isso a assusta
muito, pois vem à tona o sentimento de desamparo e desproteção, especialmente em relação ao
marido, que durante esse episódio começou a passar mal, e foi Maria quem teve que se colocar
à frente das negociações.
O sonho acontece nesse lugar seguro que traz a paz de tudo o que é natural e o aconchego da
Mãe Natureza ou a Grande Mãe. Parece ser um ritual de passagem para a transformação, um
dos simbolismos do fogo, que mostra também a possibilidade do criativo.
Maria é uma mulher muito afetiva e maternal, que possivelmente vivia o feminino apenas
dessa forma, numa atitude compensatória à sua vivência enquanto filha. Foi criada por sua irmã
mais velha e sua mãe dizia ter sentido muita vergonha de quando engravidou, pois já tinha filhos
que entendiam de onde vinham os bebês e por isso tentou abortar diversas vezes. Por ser uma
pessoa muito humilde, a mãe de Maria, ao dizer isso com sua simplicidade, não imaginava o
quão marcante aquela informação seria na vida de sua filha mais nova.
Entrar em contato com esses conteúdos foi muito doloroso para Maria. Contudo, o sonho
mostra que a fogueira ou vaso alquímico da transformação trazem a possibilidade de mudança
criativa junto com a consciência.

19
Jung & Corpo

A presença de alimentos considerados sagrados também é interessante de ser observado,


especialmente para alguém obeso. Tanto o chá, quanto o arroz integral e a palha de milho são
considerados sagrados ou pertencentes a algum ritual de purificação, isto é, o que te alimenta te
torna sagrado. O arroz integral é grão que simboliza a fertilidade e casamento.
O alimento como representação do afeto afirma sua postura maternal e cuidadora frente ao
mundo, que estava muito estreito e restrito ao âmbito doméstico. Porém, o sonho mostra que
ela é alguém muito animada, cheia de energia, extrovertida, isto é, com a referência de mundo
voltada para fora.
Constatado isso, percebemos um grande conflito interno. Por um lado uma mulher com
muita vida, convivendo num ambiente socialmente pobre que a aprisiona em sua casa e aflora
um sentimento de vazio e incompletude que é preenchido com o afeto que intoxica e não
aquele que purifica, torna sagrada e transforma.
Na sessão seguinte ao relato deste sonho, foi proposto um trabalho corporal nos pés, mas
dessa vez ela estava mais ativa neste processo, isto é, foi proposto um autotoque. A escolha dos
pés foi feita por se tratar de um elemento de solidez e estruturação psicofísica.
No processo de Maria, o alinhavado entre trabalhos corporais, sonhos e terapia verbal
possibilitou a otimização do tempo da psicoterapia, ajudando-a em seu autoconhecimento e
insights. A forma de funcionamento de sua psique ficou muito evidente, e através de imagens
dos sonhos pôde entrar em contato com questões difíceis de nomear e perceber na sua vida, tal
como a necessidade de transformação de sua rotina, não só em termos de emagrecimento, mas
também para uma modificação profunda no significado de sua existência. Passou a fazer
escolhas criativas que a faziam sentir conectada consigo mesma.
Maria passou a usar as imagens dos sonhos para transmitir o que queria dizer com palavras.
Certa vez chegou à sessão contando que havia sonhado que estava numa trilha cheia de quartzos
rosa de cristal, sentia muita vontade de levá-los para casa, pois eram lindos e brilhavam muito,
contudo não se permitia porque aquilo pertencia à Natureza e não a ela. Enfim, essa imagem
passou a ser usada por Maria todas as vezes que achava que o brilho, isto é, os atributos e as
qualidades positivas, estava nos outros e nunca nela. Costumava usar a seguinte frase: ”Eu acho
que posso levar o cristal para casa, né?” (sic).
Durante os seis meses, tempo que durou seu processo psicoterápico, teve diversos sonhos
marcantes, interessantes e com forte carga arquetípica, porém não me estenderei aqui, já que o
simbolismo presente é infinito e a idéia desse trabalho era apenas ilustrar como foram
conduzidos seus atendimentos clínicos.

20
Jung & Corpo

Conclusão

A partir dos resultados obtidos nesse estudo conclui-se que o ganho de peso, no caso de
Maria, estava intimamente relacionado com o feminino ferido e com a impossibilidade de
realizar um trabalho fora do lar, remunerado e que lhe trazia independência do marido.
A unilateralidade da função materna do seu funcionamento psíquico dificultava bastante a
perda de peso, já que o prazer imediato era sempre contemplado com comida. As restrições
alimentares sugeridas em dietas hipocalóricas eram vistas como uma frustração que dificilmente
conseguia encarar. Isso acontecia não apenas pelo prazer de comer, mas principalmente porque
esse era um dos poucos prazeres da vida de Maria, que estava muito angustiada por ficar em
casa o dia inteiro e não exercer um papel social, além do fato de o seu casamento não
corresponder às suas expectativas. A manutenção da gordura funcionava como um distanciador
sexual.
Durante o processo de psicoterapia ficou evidente a comparação que fazia entre o pai e o
marido, tendo sido ela sempre a “princesa do papai”, porém não era assim com Wilson. Tirá-la
dessa idealização é uma tarefa constante que tem praticado com o curador interno.
No último mês de trabalho, Maria passou a falar mais sobre sua mãe, trazendo um grande
sentimento de abandono ligado a ela, o qual durante toda sua vida tentou compensar com suas
filhas, como se ao cuidar das filhas estivesse cuidando de si mesma. Porém, sabemos que o
excesso de cuidados ou Complexo Materno Positivo também pode afetar o equilíbrio da
energia psíquica.
Enfim, os atendimentos individuais no consultório foram determinantes na descoberta desse
mundo interno extremamente rico em símbolos, vistos através dos sonhos e desenhos,
discriminando os sentimentos que a faziam se manter obesa. Os trabalhos corporais foram os
catalisadores desse processo de descoberta dos panos de fundo afetivos que a mantinham
aprisionada num corpo que precisava ser grande ou forte para sustentar a sua fragilidade
emocional.
Quando conheci essa paciente, ouvi uma estória de tentativas fracassadas de emagrecimento,
sofrimento psíquico prolongado, aumento gradativo do peso, impotência no manejo das
próprias dificuldades. Defrontou-se com os limites do tratamento da obesidade, perdida num
universo multicausal; marcada por uma enorme angústia, recorreu, muitas vezes, a convicções
estereotipadas, reproduzindo discursos autoculpabilizantes e iludindo-se com alternativas
mágicas e salvadoras que a libertasse dos impasses confinadores da obesidade.

21
Jung & Corpo

O olhar atento aos símbolos que permeiam a história de vida de Maria é fundamental para
que entendamos a sua doença. A busca reiterada de dispositivos de controle alimentar
concentra a maior demanda de alívio desse estado de desespero gerado pela obesidade.
Acreditar que sua condição pode ser resolvida por uma adequação de ingestão calórica,
agregada à atividade física, revela não só a exclusão da subjetividade, mas a permanência da
supremacia do corpo pesado e os ponteiros da balança como indicadores primordiais.
Reprodutores de ideais de beleza corporal transformam os próprios corpos em massa de
manobra, imprimindo desafios inalcançáveis e reforçando o circuito dos fracassos terapêuticos.
A inclusão de abordagens psíquicas e a discussão da representação social ainda são vistas como
menos relevantes, periféricas, optando-se, prioritariamente, em investimentos no
embelezamento e fórmulas medicamentosas.

Referências Bibliográficas

FARAH, R. M.(1995). Integração Psicofísica: O trabalho corporal e a Psicologia de C. G. Jung. São


Paulo: Companhia Ilimitada, 1995.
RIBEIRO, F. et al.(2006). “Gordura Visceral e Síndrome Metabólica”. Arquivo Brasileiro de
Endocrinologia Metabólica, vol. 50, no. 2, p. 231.
SCHILDER, P. A imagem do corpo: as energias construtivas da psique. São Paulo: Martins Fontes,
1981, p.11.
SILVEIRA, N. Jung: Vida e Obra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 19 ed., 2003.
STEIN, M. Jung: o mapa da alma. São Paulo: Cultrix, 5 ed., 2006.
VON FRANZ, M. L. (1988). O Caminho dos Sonhos. São Paulo: Cultrix, 1998.
WOODMAN, M. (1999). A virgem grávida: um processo de transformação psicológica. São Paulo:
Paulus, 1999.

22
Jung & Corpo

JUNG E ELIADE:
A Escatologia, a Cosmogonia e a Questão do
Tempo para o Homo Religiosus

Estela Noronha
Renato Pinto de Almeida Junior1

Introdução

O mito é anterior ao rito; ele é, primitivamente, uma tentativa de explicação dos fenômenos da
natureza, uma primeira cosmogonia, e o rito viria depois, moldando-se na sua estrutura,
sobre os temas míticos já preexistentes. (Roger Bastide)2

Os mitos de criação conhecidos como cosmogônicos e os mitos dos “fins últimos” ou do


caos, intitulados escatológicos, são impregnados de símbolos e imagens religiosas. Habitantes
do inconsciente coletivo desde os primórdios de nossa existência são eles que dão sentido à
vida. Trazem em seu bojo a perspectiva de um “sempre recomeço”, re-significando e
regenerando a realidade humana. E, quando tratamos de temas como destruição e regeneração,
nos lembramos do elemento água, que tudo inunda, mas em que também tudo germina.
Sendo assim, o artigo abordará a questão da criação e do caos através do significado dos
mitos aquáticos, da religiosidade que sempre cerca a temática, e da questão do tempo, que dá
forma às diferentes crenças humanas.

1
Estela Noronha (estelapsico@terra.com.br), psicóloga e Renato Pinto de Almeida Junior
(renatomktsp@uol.com.br), administrador, são mestres em Ciências da Religião e atualmente fazem parte do
Grupo de Estudos Religare: pós-modernidade, linguagem e religião, vinculado ao núcleo Pós-Graduação do
CRE/PUC-SP/CNPq.
2
Roger BASTIDE, Imagens do Nordeste místico em preto e branco, p. 111-112.
23
Jung & Corpo

O mito para o Homo Religiosus, segundo Eliade e Jung

A palavra “Mito” tem múltiplos significados. Não são apenas os psicólogos que se ocuparam
de revelar e esclarecer a verdadeira função dos mitos, mas, teólogos, filósofos, antropólogos,
sociólogos, literatos, folcloristas e historiadores das religiões debruçaram longamente sobre o
tema, trazendo para o conhecimento humano os mais diversos enfoques a cerca do assunto. A
esse respeito, Eliade3 e Jung escreveram:

Eliade:

O mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no


tempo primordial, o tempo fabuloso do “princípio”. O mito narra como, graças às
façanhas dos Entes Sobrenatuarais, uma realidade que passou a existir, seja uma
realidade total, o Cosmos, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal,
um comportamento humano, uma instituição. É sempre, portanto, uma narrativa de
“criação”: ele foi traduzido e começou a ser. O mito fala apenas do que realmente
ocorreu, do que se manifestou plenamente. Os mitos revelam sua atividade criadora
e desvendam a sacralidade de suas obras. Em suma, os mitos descrevem as diversas,
e algumas vezes dramáticas, irrupções do sagrado no Mundo. (1963, p.11)

Segundo Jung (1964), a vivência do mito é a tentativa de conscientização de arquétipos do


inconsciente coletivo, quer dizer, um elo entre o consciente e o inconsciente coletivo, bem
como as formas através das quais o inconsciente se manifesta. Compreende-se por inconsciente
coletivo a herança das vivências das gerações anteriores. Desse modo, o inconsciente coletivo
expressaria a identidade de todos os homens, seja qual for a época e o lugar onde tenham
vivido.
A este respeito, Brandão (1987) diz que o mito é a “parole”, a palavra revelada, o dito, e
como tal, ele precisa ser sentido e vivido antes de ser formulado. “Mito é a palavra, a imagem,
o gesto, que circunscreve o acontecimento no coração do homem, emotivo como uma criança,
antes de fixar-se como narrativa.” (p. 36). É sempre uma representação coletiva, transmitida
através de várias gerações e que relata uma explicação do mundo.
Do ponto de vista psicológico, o mito é a narrativa de uma criação, a partir da qual algo que
não existia passou a existir devido à tendência inexorável do inconsciente em projetar os

3
Mircea ELIADE (1907-1986) foi historiador e romancista romeno naturalizado norte-americano. É um dos
mais importantes e influentes historiadores e filósofos das religiões da contemporaneidade.

24
Jung & Corpo

conteúdos internos, os desdobramentos invisíveis do inconsciente sobre os fenômenos do


mundo exterior. Produzem símbolos e imagens universais, principalmente aqueles de cunho
religioso. São experiências típicas vividas repetidamente durante milênios e pelas quais ainda
passamos. A leitura simbólica da realidade, inclusive dos símbolos e dos fenômenos religiosos,
é entendida como uma função primordial dentro da dinâmica psíquica, e é a viga mestra da
obra junguiana. Von Franz em seu livro Psicoterapia, diz que o inconsciente é religioso e matriz
de toda experiência primária vivida pelo homem. Embora existam símbolos que sejam
individuais, sagrados apenas para aquele determinado indivíduo, na sua grande maioria os
símbolos e as imagens religiosas são universais e coletivos (p.183).
A função religiosa ou a religiosidade é um aspecto universal, atemporal e coletivo do ser
humano, habitante das profundezas do inconsciente coletivo e que deve dialogar com a
consciência, para o benefício do equilíbrio mental e mesmo da saúde fisiológica (Jung, 1964,
p.52). A busca individual da origem humana é concebida como uma possibilidade de renovar e
regenerar a existência daquele que a empreende (Eliade, 1963, pp. 74-75).
Sendo assim, o mito, para o Homo Religiosus de qualquer religião, retrata a ancestralidade
histórica e divina de seu povo, trazendo como personagens dessa narrativa entes sobrenaturais,
deuses e deusas, fenômenos da natureza, ancestralidade mítica, heróis e heroínas. Por isso,
temas mitológicos semelhantes são encontrados nos lugares mais distantes e mais diversos, em
sociedades com diferentes graus de evolução. Remontam aos primitivos contadores de história,
aos seus sonhos e emoções (Jung, 1964, p.90). Um mito consiste de símbolos que não foram
conscientemente inventados (ibid., p. 89), mas brotam espontaneamente na psique para dar
significado à vida do indivíduo.
Tão longínquo quanto a origem dos arquétipos primordiais está o desejo do indivíduo em
conhecer a origem de si, das coisas e do mundo. Temos uma necessidade intrínseca de saber de
onde viemos, quem somos e para onde iremos. A vivência dos mitos que expressam uma
origem nos ajuda na elaboração desse sentido existencial, a despeito das informações científicas
contemporâneas.
Um bom exemplo desta busca nós encontramos nos mitos cosmogônicos e
escatológicos contextualizados nas mais diversas religiões, transmitidos através de várias
gerações e que relatam, respectivamente, a criação, a origem e a formação do mundo
conhecido, bem como a consumação do tempo e da história, retratando a destruição ou o caos
do universo e os fins últimos dos seres humanos, onde princípio e fim coexistem, numa relação
dialética e milenarista4, cuja idéia resiste na ocorrência de catástrofes que antecedem o fim da
ordem vigente e anunciam a instauração de uma era de justiça e felicidade, como mostra o
gráfico, a seguir:

4
Relativo à crença no milênio ou a qualquer movimento ou doutrina que afirma a ocorrência próxima de tal
período. O milenarismo (antrop.), significa qualquer movimento político-religioso em que tem papel
importante a idéia do milênio e da ocorrência de catástrofes que antecedem o fim da ordem vigente.

25
Jung & Corpo

A CRIAÇÃO /
RECRIAÇÃO
cosmogônico

MITO
REGENERAÇÃO
A narrativa; DETERIORIZAÇÃO
a palavra e
a história.

DESTRUIÇÃO /
CAOS
escatológico

Embora a criação e o caos estejam imbricados como princípio, a dinâmica que se constitui
dessa relação é entendida de duas formas distintas, dependendo da religiosidade ou crença de
cada indivíduo. O tempo, elemento crucial no mito, pode ser compreendido como sendo
circular ou linear.
Exemplos mais comuns de “tempo circular”, encontramos nas religiões cíclicas como as
ancestrais, as indígenas e as orientais:

A CRIAÇÃO / RECONSTRUÇÃO
cosmogônico

Tempo é CIRCULAR DETERIORIZAÇÃO


REGENERAÇÃO O eterno retorno

DESTRUIÇÃO / CAOS
escatológico

Existe, na concepção do tempo circular, a idéia do eterno retorno, onde a “degradação”


progressiva do Cosmo leva inexoravelmente à recriação de um novo Universo. Essa recriação
periódica e cíclica tem como objetivo a instauração de uma existência humana sem fim, porém,

26
Jung & Corpo

a cada renovação do tempo, ela se torna mais sábia, beatificada, pura e inteligente, ao
contrário do que acontece no Cristianismo, onde Jesus subiu aos céus para sentar à direita do
Pai e Sua ressurreição só acontecerá uma vez. Nas religiões cíclicas, a morte e a ressurreição de
um Deus-Rei é um mito eternamente recorrente (Eliade, 1963, p. 109). É, na verdade, a
vivência do mito da “perfeição do princípio”, propagado principalmente nas religiões orientais,
também chamadas de religiões cósmicas (ibid., p.67).
Como concepção de tempo linear, trazemos como exemplo, as religiões judaico-cristãs.

Restauração do
Paraíso Paraíso
Apocalipse /
Gênese / Criação Caos Purificado /
Regenerado
INÍCIO
FIM
O TEMPO é linear

Ao contrário do que acontece nas religiões cuja concepção do tempo é circular, aqui o Fim
do Mundo será único, assim como a cosmogonia foi única. O Tempo é linear e irreversível.
Um Novo Mundo surgirá após a catástrofe e será o mesmo que foi criado por Deus no princípio
dos Tempos, porém purificado, regenerado em sua glória primordial. E esse Paraíso terrestre
não será mais destruído, não terá mais fim. Nele terão morada somente os eleitos, aqueles que
foram julgados pelos seus atos humanos e revelaram os seus valores religiosos, recebendo como
recompensa a eterna beatitude.
Tanto para o Judaísmo como o Cristianismo essa mitologia representa o triunfo da “Santa
História”, porque o surgimento do Fim do Mundo implica de algum modo na
RESTAURAÇÃO do Paraíso perdido. A diferença entre as religiões está na forma como isto
acontecerá. Para os judeus, a chegada do Messias anunciará o Fim do Mundo e a restauração do
Paraíso. Para os cristãos, o Fim do Mundo precederá a segunda vinda de Cristo e o Juizo Final
(Eliade, 1963, p.62).
Mas, embora exista diferença na concepção do tempo, todas as religiões trazem um
elemento em comum que adentra a sua história: a água. Fundamental nos mitos do princípio e
do fim, os mitos aquáticos muito nos ajudam a entender a dinâmica que se estabelece na
cosmogonia e na escatologia do Universo.

A água como elemento fundamental na recriação e na regeneração

A água ocupa lugar central em muitos mitos de criação e de destruição, onde o dilúvio é um
tema recorrente. Sendo um sinal de germinação e regeneração, após o dilúvio surge sempre
uma nova época, com uma nova humanidade. As formas são regeneradas pela reabsorção

27
Jung & Corpo

periódica das águas. Simbolicamente, é no oceano cósmico em que toda a vida surgiu e que
deverá se dissolver. E a imersão total da terra nas águas, seguida pela emersão de uma terra
virgem, simboliza a regressão ao caos e a reconstrução.
Do ponto de vista psicológico é a morada do inconsciente e da profundidade da psique, fonte
fecunda da alma que representa o curso da existência humana, as flutuações dos sentimentos e
dos sentidos.
As significações simbólicas da água podem se resumir a três temas dominantes: fonte de
vida, meio de purificação e centro de regenerescência. Temas estes que se encontram nas mais
antigas tradições e formam as mais variadas combinações imaginárias e as mais coerentes
também. A noção de águas primordiais, de oceanos das origens, é quase universal (Chevalier &
Gheerbrant, 1974, p.15).
As águas, massa indiferenciada, representam a infinidade dos possíveis, contém todo o
virtual, todo o informal, o germe dos germes, todas as promessas de desenvolvimento, mas
também todas as ameaças de reabsorção. Mergulhar nas águas, para delas sair sem se dissolver
totalmente, salvo por uma morte simbólica, é retornar às origens, carregar-se de novo num
imenso reservatório de energia e nele beber uma força nova. Fase passageira de regressão e
desintegração, condicionando uma fase progressiva de reintegração e regenerescência, como no
caso do banho, do batismo ou qualquer ato iniciático (ibid., pp. 15-19).
A simbologia da água pode ser encontrada em praticamente todas as culturas do mundo. O
Rig Veda exalta as águas que trazem vida, força e pureza, tanto no plano espiritual quanto no
corporal. Na Ásia, a água é a forma substancial de manifestação, a origem da vida e o elemento
da regeneração corporal e espiritual. O símbolo da fertilidade, da pureza, da sabedoria, da
graça e da virtude. Fluida é sua tendência à dissolução; coagulação é sua tendência à coesão. A
água é a matéria-prima, dizem os textos hindus. Vastas e sem margens soam as águas, diz o
texto taoísta. A água é o caos, a indistinção primeira, dizem os chineses, pois representa a
totalidade de manifestações; dividem-se em Águas superiores, que correspondem às
possibilidades informais e indeterminadas, e em Águas inferiores, que correspondem às
possibilidades formais e determinadas. A Polinésia e a maior parte dos povos austro-asiáticos
situam na água o poder cósmico. Em certas alegorias tântricas, a água representa prana, o sopro
vital. Da mesma forma, a água é o instrumento da purificação ritual. Nas tradições do Islã, a
água também simboliza inúmeras realidades; em uma de suas interpretações, o Corão designa a
água-benta que cai do céu como um dos signos divinos. Ou seja, do Oriente Médio ao Japão,
passando pelos ritos dos antigos taoístas, sem esquecer a aspersão dos cristãos, a ablução tem
papel essencial.
Nas tradições judaica e cristã, a água simboliza, em primeiro lugar, a origem da criação. O
mem (M) hebraico simboliza a água sensível, que é a mãe e a matriz (útero). Fonte de todas as
coisas, manifesta o transcendente e deve ser, em conseqüência, considerada como uma
hierofania, ou seja, uma manifestação que tangencia o sagrado. Todavia, a água, como, aliás,

28
Jung & Corpo

todos os símbolos, pode ser encontrada em situações que se confrontam em dois planos
rigorosamente opostos. A água é fonte de vida e fonte de morte, criadora e destruidora. A água
simboliza também a água da vida, que se descobre nas trevas e que regenera. A água viva, a
água da vida se apresenta como um símbolo cosmogônico. E porque ela cura, purifica e
rejuvenesce, conduz ao eterno. Segundo Tertuliano, o Espírito Divino escolheu a água entre os
diversos elementos. É para ele que se volta a preferência, pois ela se mostra, desde a origem,
como matéria perfeita, fecunda e singela, totalmente transparente. Por sua virtude, a água
apaga todas as infrações e todas as máculas. A água do batismo, e só ela, lava os pecados, e só é
conferida uma vez, porque faz aceder a um outro estado: o do homem novo (Chevalier &
Gheerbrant, 1974, p.18). É das águas do rio Jordão que Cristo renasceu.
Dos símbolos antigos da água, como fonte de fecundação da terra e de seus habitantes,
podemos passar aos símbolos analíticos da água, como fonte de fecundação da alma: a ribeira, o
rio e o mar representam o curso da existência humana e as flutuações dos desejos e dos
sentimentos. A navegação ou o viajar errático dos heróis, na superfície, significa que estão
expostos aos perigos da vida, o que é simbolizado nos mitos pelos monstros marinhos que
surgem do fundo. A região submarina se torna, dessa forma, símbolo do subconsciente. A
perversão se acha, igualmente, figurada pela água misturada à terra, desejo terrestre, ou pela
água estagnada que perdeu suas propriedades purificadoras, representada pelo limo, pela lama e
pelo pântano. A água gelada e o gelo exprimem a estagnação no seu mais alto grau, a ausência
de calor na alma, a ausência do sentimento vivificante e criador, que é o amor. A água gelada
representa a completa estagnação psíquica, a alma morta. A água é o símbolo das energias
inconscientes, das virtudes informes da alma e das motivações secretas e desconhecidas (ibid.,
pp. 21-22).

Do caos à criação: a ritualização do mito, durante as festividades do Ano Novo

Num país sincrético e religioso como o nosso, perguntamos quem, neste imenso Brasil,
independente de credos, quem não se vestiu de branco no Ano Novo, atirou uma rosa ao mar,
pulou sete ondas, acendeu uma vela, ou ainda, proferiu uma oração ou pensamento, mesmo
sem saber rezar pedindo para uma “força superior” proteção, amor, saúde, dinheiro e paz?
Um exemplo típico desta ritualização são as festas de Iemanjá5. Cultuada ao longo de toda
costa brasileira, este Orixá também é homenageado nas mais diversas regiões, como em Brasília
(DF), onde existe uma estátua em sua homenagem às margens do lago Paranoá, que recorda a

5
Reginaldo PRANDI em O candomblé de São Paulo afirma que a partir do final dos anos 50, as festas religiosas
populares públicas que arregimentam a maior número de devotos e simpatizantes são para a Rainha do Mar.

29
Jung & Corpo

sua associação com a água. Na cidade de Belo Horizonte (MG), a Praça Alberto Dalva Simão ou
praça de Iemanjá, como é conhecida, é o local em que acontece, no mês de agosto, a
purificação da estátua de Iemanjá e rituais em sua homenagem. Assim também acontece no rio
Hudson, em Nova York, nos Estados Unidos, quando ocorrem, em simultaneidade com o
Brasil, rituais a Senhora dos Mares durante a passagem do ano (Iwashita, 1991, p. 39 e 41).
Algumas datas são dedicadas à sua ritualização. Dentre as mais importantes, podemos
destacar três datas: 8 e 31 de dezembro e 2 de fevereiro. Mas é o dia 31 de dezembro a data em
que Iemanjá é mais lembrada e homenageada em todo território nacional, principalmente nas
regiões praianas.
A festa é alegre, contagiante, promovida e incentivada pela mídia em geral e pelas
prefeituras. Homenagear Iemanjá não é necessariamente sacrificante, o que torna a prática
religiosa intrínseca ou por conversão exógena6 variantes prováveis e não conflitantes.
Sua comemoração tornou-se, ao mesmo tempo, sagrada e profana. As práticas umbandistas
de trajar branco e ir até o mar para fazer o ritual de purificação, com a intenção de deixar para
trás o “velho” e os elementos indesejáveis, misturaram-se com formas muito pessoais e
sincréticas de ritualização, abraçando religiosos das mais diversas denominações e classe sociais.
Assim, a ritualística à Deusa das Águas e a chegada do Ano Novo é sempre plena em
esperanças. Espera-se este momento para começar vida nova, estabelecer novas metas e
propósitos renovados. É comum as pessoas elaborarem suas listas de bons presságios para o
novo ano: renovação de hábitos, de atitudes, como estar mais com a família, reorganizando as
horas no trabalho. Embora o tempo seja sempre o mesmo, essa convenção se reveste de
importância simbólica, na medida em que, nos condicionando ao início de uma etapa diferente,
renovada, sintamo-nos emulados a uma renovação. Por isso, pedimos às ondas de Iemanjá que
nos limpe e que nos descarregue, levando para as profundezas do mar sagrado as aflições do
dia-a-dia, dando-nos a oportunidade de sepultar definitivamente aquilo que nos causa dor ou
que não desejamos. Ao mesmo tempo, renovamos nossas esperanças para um futuro melhor,
mais sereno e menos conflituoso.
Ao concluirmos, lembramos que, sempre que pensamos a respeito da nossa origem ou do
Universo, nos reportamos à criação e recriação da nossa existência. A água, princípio que tudo
absorve e transforma, é rica em símbolos que nos levam ao tema. Na atualidade, verificamos a
repetição destes princípios, quando eles são festejados durante as comemorações do Ano Novo.

6
Edênio VALLE, em seu livro Psicologia e experiência religiosa, p. 270 estabelece a diferença entre religiosidade
intrínseca e extrínseca. Resumidamente as características da religiosidade intrínseca são o forte compromisso
pessoal, universalista, ético e de amor ao próximo. Seria altruísta, humanitária e não-egocêntrica, na qual a fé
possui importância central, aceita sem reserva e o credo. Entende como características da religiosidade
extrínseca a religião de conveniência, surgida em momentos de crise e necessidade, podendo acontecer por
princípios de imitação, contágio ou sugestão.

30
Jung & Corpo

É uma forma simbólica de ritualizarmos os mitos repetidamente, anualmente, sempre com o


desejo de viver e elaborar um futuro melhor, seja do ponto de vista da psique, do corpo ou do
espírito.

Referências Bibliográficas

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Cavalcante, Tito Rodrigues de Albuquerque. A Psicologia da Religião de Carl Gustav Jung e a
abordagem Religiosa de Mircea Eliade, 1998. 113p. Dissertação (Mestrado em Ciências da
Religião) PUC. São Paulo.
Chevalier, Jean; Gheerbrant, Alain (1974). Dicionário dos símbolos – mitos, sonhos, costumes, gestos,
formas, cores, números. Trad. Vera da Costa e Silva; Raul de Sá Barbosa; Ângela Melim, Lúcia
Melim. 11a.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1997.
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(Mestrado em Ciências da Religião) PUC. São Paulo.
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________ Psychotherapy. Boston: Shamballa, 1993.

31
Jung & Corpo

O PACIENTE COM CÂNCER


DIANTE DA MORTE:
Uma Reflexão da Psicologia
Simbólica Junguiana a partir das
Imagens das Cenas do Sandplay

Vivian P. Guardabassio Gimenes1

1) Aspectos Gerais do Câncer

O câncer é considerado como fruto de uma desordem genética inicial, podendo ser de
origem hereditária ou adquirida através da exposição a agentes externos, tais como agentes
químicos, radiação ionizante e vírus oncogênicos. Em termos patológicos, o câncer é uma
entidade caracterizada por uma proliferação descontrolada de células elementares do
hospedeiro, com potencial de invadir tecidos vizinhos e de disseminação metastática para
outros órgãos (Lyman, 1992). Os dados epidemiológicos disponíveis atualmente permitem
configurar o câncer como um problema de saúde pública no Brasil. Segundo dados do INCA
(2000), o câncer é considerado a segunda causa de morte por doença no Brasil, sendo
responsável por quase 11% do total de óbitos em 1994, ou pouco mais de 95.000, ficando atrás
apenas das doenças do aparelho circulatório. No Brasil, as estimativas para o ano de 2008
apontam que ocorrerão 231.860 casos novos de câncer para homens e 234.870 para mulheres.
Os tipos mais incidentes, à exceção de pele não melanoma, serão os de próstata e pulmão no
sexo masculino e mama e colo do útero para o sexo feminino, acompanhando a mesma
magnitude observada no mundo (INCA 2000, 2008). Em São Paulo, no período entre 1997-
1999, os tipos de câncer mais freqüentes para os homens, exceto pele não melanoma, foram:

1
Psicóloga Clinica, Psico-oncologista, mestranda em Oncologia, especialista em Psicoterapia Junguiana
Coligada a Técnicas Corporais.

33
Jung & Corpo

próstata, pulmão e gástrico e, entre as mulheres, mama, colo uterino e cólon (Mirra et al.,
2003).
Em virtude deste crescente problema de saúde pública, a cada ano que passa, aumenta a
população de pacientes que se encontra em todas as fases do câncer: em diagnóstico, em
tratamento curativo ou paliativo e em seguimento pós-tratamento. Com a evolução do
tratamento oncológico e do tratamento clínico de suporte, tem-se observado uma maior
expectativa na sobrevida dos pacientes em cuidados paliativos. Isto tem motivado não somente
a criação de novos centros de tratamento para o paciente com câncer, como também o
desenvolvimento de grupos de tratamento paliativo em vários hospitais. Este grupo é
multidisciplinar, composto de médicos, enfermeiros, psicólogos, fisioterapeutas,
nutricionistas, assistentes sociais e voluntários. Todos trabalhando unidos com o objetivo de
oferecer uma melhor condição de vida aos pacientes que não têm mais opções terapêuticas
curativas, porém, ainda há muito que ser oferecido: quimioterapia ou hormonioterapia
paliativa, radioterapia paliativa, orientação nutricional, auxílio da enfermagem no cuidado do
corpo do paciente, por exemplo, escaras, traqueostomias, fisioterapia, cuidados médicos de
suporte, como por exemplo, antibioticoterapia, analgesia e oxigenoterapia quando indicadas.
Quanto à psicologia, o tema da morte tem sido abordado em diversas linhas, porém poucos
estudos atuais levam em consideração ou ao menos mencionam as manifestações do
inconsciente diante da morte. Elizabeth Kubler–Ross, que basicamente trata do
desenvolvimento da personalidade diante da morte, descreve antes de qualquer coisa processos
conscientes articuláveis e observáveis. Os eventos que ocorrem nas profundezas do
inconsciente são pouco investigados (von Franz, 1990). Por isso, o interesse em refletir acerca
dos processos conscientes e inconscientes e as possibilidades psicoterapêuticas através do
sandplay nos pacientes sem perspectiva de cura, alguns ainda recebendo quimioterapia paliativa,
ou fora de possibilidades terapêuticas onde recebem cuidados paliativos. A quimioterapia
paliativa tem como objetivo reduzir a atividade do câncer e, desta forma, promover a redução
dos sintomas: dor, tosse, dispnéia, fadiga e outros.

2) O Símbolo da Morte em Pacientes com Câncer em Cuidados Paliativos

Os arquétipos são elementos estruturais da psique e têm certa autonomia e energias


específicas, graças às quais são capazes de atrair conteúdos do consciente. Quando o arquétipo
aparece no aqui agora do espaço e do tempo, podendo de algum modo ser percebido pelo
consciente, falamos então de um símbolo.
A palavra símbolo, derivada do verbo grego symballein, designa algo que por trás de um
sentido objetivo e visível, oculta um sentido invisível e mais profundo.
O símbolo é a instância mediadora entre o consciente e o inconsciente. Essa qualidade
mediadora e lançadora de pontes é um dos equipamentos mais engenhosos e importantes da

34
Jung & Corpo

administração psíquica. O símbolo pode também transformar a energia psíquica, tendo assim
um caráter curativo e restaurador da psique (Jacobi, 1995).
Qualquer coisa pode ser um símbolo: um evento, uma pessoa, uma obra de arte, um
trabalho, uma doença, a morte. O que torna algo um símbolo é o significado que o ego atribui
ao mesmo. Não importa se o símbolo é positivo ou negativo, quanto mais carregado de
energia, mais trará um caráter de fascinação.

Enquanto o símbolo é vivo, ele é a expressão de uma coisa que não tem
expressão melhor, diz Jung. Ele é vivo, enquanto está prenhe de sentido. Mas
após o nascimento do sentido, isto é, depois que tenha encontrado a expressão
que formula ainda melhor a coisa procurada, esperada ou instituída, o símbolo
está morto e, desta forma, passa a ser um mero signo. (Jacobi, 1995, p.80)

A psicologia simbólica junguiana, na qual será baseado este trabalho, afirma a permanente
relação entre o ego e os arquétipos, exercida por intermédio dos símbolos. Dentro desta
concepção, os arquétipos não permanecem apenas no inconsciente, mas atuam também através
de padrões de consciência e de imagens arquetípicas e complexos, que podem se manifestar
através do corpo ou em qualquer coisa que possa ser vivenciada. Deste modo, os símbolos têm
características conscientes e inconscientes.
Byington descreve os símbolos como símbolos estruturantes e as funções psíquicas como
funções estruturantes2, ambos coordenados pelos arquétipos para formar a identidade do ego e
do Outro na consciência, através do processo de elaboração simbólica. O símbolo é o novo que
se apresenta à consciência, e as funções estruturantes são a forma como a psique pode elaborar
uma determinada vivência. As funções estruturantes podem ser elaboradas de maneira criativa
ou defensiva, isto é, a elaboração simbólica dominantemente formará a consciência (funções
estruturantes criativas) ou a sombra (funções estruturantes defensivas) (Byington, 2002).
Assim, os símbolos estruturantes intermedeiam a energia psíquica consciente e inconsciente
para formar, organizar e transformar a consciência e o ego durante toda vida.

2
Função estruturante: são todas as funções da vida e da natureza. As funções criativas e defensivas são
estruturalmente as mesmas, só diferem por manterem a elaboração simbólica na consciência (funções
estruturantes criativas) ou no inconsciente, fixando a função estruturante e mantendo-a dominada pela sombra.
(Byington, 2002 p.13)

35
Jung & Corpo

O câncer é simbolicamente a expressão da “loucura” celular:


 As células neoplásicas perdem sua identidade genética com inúmeras mutações.
 Ocorre uma mudança radical na arquitetura tecidual, onde as células neoplásicas são
dispostas de forma desordenada.
 As células neoplásicas perdem a capacidade de adesão celular, se desprendem facilmente e
vão atingir a circulação sangüínea e/ou linfática, gerando as metátases.
 Com o progresso desta doença, o corpo começa a sucumbir, podendo levar à morte.
Apesar dos avanços na terapêutica para tratar os diversos tipos de cânceres, a sua gravidade e
a alta incidência de óbito traz uma conotação ao câncer ainda muito associada a uma sentença de
morte.
Ter um diagnóstico de câncer traz uma cadeia de emoções que leva o indivíduo, num
primeiro momento, a entrar num estado de choque. Apesar de o indivíduo entrar em contato
com os símbolos da morte durante toda a vida, talvez esta seja a primeira vez que ele entra em
contato com este símbolo de forma mais concreta e real, através de seu próprio corpo. Na
medida em que o indivíduo vai entrando em contato com esta realidade, muitos sentimentos
são desencadeados, muitas vezes associados ao medo de separação, perdas e dor. Neste
momento o indivíduo perde a ilusão da imortalidade e percebe que sua vida tem limite. Com a
ameaça da morte, toda a noção de tempo muda como um passe de mágica. “Eu preciso
continuar viva para cuidar de meus filhos” (sic) e muitos sacrifícios são feitos em prol da vida.
“Não ligo de perder meu seio, eu quero continuar viva” (sic).
Ao terminar o tratamento, muitas vezes se manifesta uma ansiedade e/ou depressão
associadas ao medo da recidiva. Esta ameaça é algo que vai sempre estar presente ameaçando a
vida do paciente que está em fase de controle da doença (follow-up). Sendo assim, o câncer, o
novo que se apresenta à consciência, ao trazer uma nova noção de tempo associado à finitude,
pode acarretar profundas mudanças de valores referentes à vida; porém, a maneira como este
processo vai se dar para cada um, dependerá do significado atribuído à doença.
Em casos de recidiva e metástase, a morte pode se tornar em tese mais concreta e real, e a
luta agora é uma luta sem perspectiva de ser vencida, pois não existe possibilidade de cura, mas
apenas de aliviar os sintomas trazidos pela doença. Neste momento, a relação com a vida-morte
muda mais uma vez, pois de fato existe um tempo limitado.

36
Jung & Corpo

3) A Vivência da Morte e os Padrões da Consciência

A - As fases da vida e os padrões de consciência


A psicologia simbólica junguiana, de Byington, partindo da última grande obra de Jung,
Mysterium Coniuunctionis3, considera o arquétipo da coniunctio o coordenador de união e
separação dos opostos na elaboração de todos os símbolos e funções estruturantes.
No início da vida, nas identificações primárias, temos a coniunctio insular do ego, o
qual num primeiro momento se encontra numa posição indiferenciada entre: Ego-Outro,
criança-mãe, ego-corpo. Neste processo, que a principio está inserido numa dinâmica de
dominância matriarcal, aos poucos vai sendo introduzida a dinâmica patriarcal e com ela
a criança começa a se relacionar com os limites e a ordem.
A posição polarizada é caracterizada como passiva no complexo parental durante a
infância, pois os pais têm um papel dominantemente ativo na elaboração simbólica da
criança. Durante a adolescência inicia-se a inversão do complexo parental, que continua
na vida adulta quando as pessoas casam e se tornam pais. Nestas experiências, a
personalidade posteriormente vai elaborando seu complexo parental numa atitude cada
vez mais dominantemente ativa. Estas dinâmicas de dominância matriarcal e de
dominância patriarcal estarão presentes durante todas as fases da vida, até a morte.
Freqüentemente, a criança tem sua primeira experiência de morte durante a sua
segunda infância através da morte de um animal de estimação, um parente idoso que
morre; talvez neste momento a morte seja descoberta. Com isso, a elaboração dos
símbolos e da função estruturante da morte e do arquétipo da vida e da morte passa a ser
de fundamental importância para a formação da identidade e a relação com os limites da
polaridade Ego- Outro.
A partir dos quarenta anos, o arquétipo da alteridade torna-se dominantemente ativo.
Com a constelação deste arquétipo começa uma nova crise de questionamentos dos
valores estabelecidos, e com isso inicia-se a busca da identidade individual e profunda.
Esta fase, denominada por Jung como metanóia, é o momento da vida que exacerba a
identidade profunda por intermédio da alteridade ativa. Surge, nesta fase, o início da
vivência existencial da morte junto com a coniunctio cósmica e a ativação crescente do
arquétipo da totalidade, de forma inicialmente passiva e que cada vez é mais ativa para
aqueles que desenvolvem sua consciência e integram de maneira relativa as várias etapas
do desenvolvimento psicológico. A fragilidade e o enfraquecimento do corpo físico e a
aproximação da morte são vivências centrais da coniunctio cósmica coordenadas pelo
arquétipo da totalidade, que faz o encontro unitário da consciência com o todo universal
através da posição contemplativa. Assim, ao perceber a natureza do coniunctio cósmica,

3
Mysterium Coniunctionis: a coniunctio na alquimia, vista por Jung como a união e separação dos opostos.
(Jung,1955)

37
Jung & Corpo

vemos que a psique, que veio da poeira, no final da etapa existencial se prepara para
voltar à poeira. (Byington, 2002, pp.30-56)

E quando este processo é interrompido por uma doença grave como o câncer, que leva
milhões de pessoas ainda jovens aos cuidados paliativos e à terminalidade? Como fica a
elaboração da morte, que é tão negada a vida toda na consciência? Qual o papel da psique neste
processo?
Segundo Byington (idem), a expressão criativa do arquétipo da vida e da morte tem a função
estruturante de selecionar durante todo o processo da vida aquilo que deve ser mantido e
intensificado (polaridade da vida) e o que deve ser descartado (polaridade da morte). O pólo da
vida do arquétipo é expresso através das funções estruturantes do interesse, da curiosidade, do
fascínio, da busca, da dedicação, da conquista, do ganho e da euforia. O pólo da morte se
expressa pelas funções estruturantes da indiferença, do desapego, do desinteresse, da perda, do
sacrifício, do desânimo, da depressão e do luto.
Tanto a vida como a morte pode ser desejável ou indesejável, positiva ou negativa, criativa
ou defensiva. Dentro da posição dialética, morte e vida são necessárias, mesmo que dolorosas.
Existem três pontos centrais na elaboração do arquétipo da vida e da morte. A primeira é
compreendê-lo com suas funções estruturantes dentro do dia-a-dia do processo existencial. Isto
consiste no fascínio pelo novo e desapego por aquilo que não existe mais ou não serve mais.
Quando assim não ocorrer, teremos fixações e defesas. A segunda problemática existencial do
arquétipo da vida e da morte é a elaboração de perdas de entes queridos. E por fim a terceira
forma, a qual mais nos interessa neste trabalho, é a elaboração do arquétipo da vida e da morte
durante o enfraquecimento e fragilidade do corpo físico, que pode ocorrer tanto na velhice
como na doença. Esta fase pode ativar a busca da coniunctio cósmica, em que a pessoa está
profundamente ligada à totalidade. A elaboração desta fase vai depender de como o indivíduo
vivenciou as duas primeiras fases. Quanto mais alto for o patamar de diferenciação psíquica,
mais apta estará a pessoa para a coniunctio cósmica.
Para refletir sobre a pergunta colocada acima, a qual se refere à possibilidade de elaboração
da morte num momento teoricamente precoce da vida, descreverei um caso de uma paciente
de 12 anos que tinha um osteossarcoma em fase avançada e que, apesar de estar em plena
adolescência, vivia o arquétipo da totalidade e da coniuntio cósmica.

38
Jung & Corpo

M., quando descobriu a doença, esta já estava em fase avançada; então iniciou um
tratamento paliativo, o qual não tinha a finalidade de cura, mas de aliviar os sintomas trazidos
pela doença. M. sentia muitas dores na perna, a qual teve que ser amputada. A paciente vivia
com sua mãe e irmão e, tinha pouco contato com o pai. Nas vésperas da cirurgia a mãe estava
transtornada com o que iria acontecer com a filha, e a paciente tentava dar força para a mãe,
orando junto com a mesma, fazendo desenhos e cantando músicas religiosas. Após a cirurgia fui
atendê-la e quando cheguei no quarto a paciente recentemente amputada estava fazendo as
unhas da mãe para deixá-la mais bonita.
A menina aconselhava a mãe e dizia que ela era bonita e tinha que arrumar um companheiro.
Conversava abertamente com a mãe sobre sua morte e dizia que estava aceitando a vontade de
Deus e que sua vida na Terra estava chegando ao fim. Dizia que a mãe, após a sua morte, teria
que ficar bem para cuidar de seu irmão, que precisava dela. Parecia que estava cuidando da mãe
e lhe dando força e coragem para continuar a vida sem ela e, ao mesmo tempo, estava também
num processo de desapego da sua vida e das pessoas que amava. M. se preparava para sua morte
através de desenho onde fazia céu, casas com jardim e flores. Além disso, orava bastante e ouvia
músicas religiosas. Desde o início da doença a paciente foi entrando num movimento para
dentro de si e, aos poucos, e foi se “desligando do mundo”. Este caso ilustra esta frase descrita
por Byington e que, junto com este caso, responde a pergunta colocada acima.

É da maior sabedoria e de grande importância sabermos que a elaboração simbólica do


arquétipo da vida e da morte não somente pode iluminar a velhice, mas também auxilia
pacientes terminais, pois a iminência da morte física durante qualquer fase da vida, e até mesmo
na infância, pode apresentar a fenomenologia da coniuntio cósmica. (Byington, 2000, p.59)
Esta menina, em plena adolescência, pôde viver em termos psicológicos o que teoricamente
se viveria na segunda metade da vida. Então, em termos de processo de individuação, podemos
dizer que diante de uma emergência do corpo e uma morte anunciada, este processo acelerou,
pulou fases para viver a totalidade e se “preparar para a morte”.

b - O paciente com câncer diante da morte e os padrões de consciência


A psicologia simbólica junguiana, junto com o Arquétipo Central (o centro regulador e
organizador da psique), agrupa quatro arquétipos no quatérnio arquetípico regente, os quais
compõem os quatros pontos cardeais da elaboração simbólica, que é a base para extrair todos os
significados possíveis dos símbolos. Eles são: o Arquétipo Matriarcal (posição insular), o
Arquétipo Patriarcal (posição polarizada), o Arquétipo da Alteridade (Arquétipos da anima e do
animus – posição dialética) e o Arquétipo da Totalidade (posição contemplativa). Todos os
quatros estão sempre presentes mesmo quando um ou outro é dominante, sempre atuando à
volta do Arquétipo Central, o grande regente de toda atividade psíquica.

39
Jung & Corpo

O Arquétipo Matriarcal é intensamente influenciado por Eros e assim é ligado a vivências de


intimidade, da sensualidade, da fertilidade, da sobrevivência e do desejo. O predomínio da
consciência matriarcal, no momento em que o indivíduo não tem mais possibilidade de cura,
pode ser vivenciado pela busca de acolhimento do outro, conforto emocional e físico. Por
outro lado, de uma forma defensiva e sombria, o individuo regido pelo desejo pode começar a
querer “aproveitar” a vida e fazer tudo que desejar sem nenhuma crítica. Pode também
começar a ingerir bebida alcoólica ou usar drogas.
Para ilustrar a vivência da predominância do Arquétipo Matriarcal citarei um caso de um
paciente de 40 anos com meduloblastoma sem possibilidade de cura. Seu estado psicológico
diante da morte faz com que ele se mostre muitas vezes muito regredido, comportando-se
como “um menino de quarenta anos”. Os cuidados maternos exercidos pela própria mãe e pela
esposa são vividos e valorizados intensamente neste momento. Por outro lado, há também uma
vivência da morte através do padrão de consciência patriarcal, expressa por mecanismos de
defesas de negação e racionalização de seu estado de saúde. Há ainda uma vivência do arquétipo
da totalidade através da entrega de sua vida nas mãos de Deus, através de orações e uma maior
fé em Deus. Apesar de haver um predomínio do padrão matriarcal, verifica-se a presença de
outros padrões de consciência. Tais formas de enfrentamento da doença são funções
estruturantes da psique para vivenciar a morte, e são consteladas pela doença, pela falha do
tratamento, pelas dores e mal-estar causados pela doença e pelo próprio tratamento.
O arquétipo patriarcal é o arquétipo da organização e, portanto, privilegia as funções
estruturantes da hierarquia, da ordem, da obrigação, da perfeição, da culpa e do poder.
Quando há predominância deste arquétipo em pacientes que estão morrendo, a morte pode
ser vivenciada, por exemplo, através de questionamentos, culpa por ter que deixar os filhos, ou
de uma forma defensiva, racionalizando ou negando a proximidade da morte.
No caso das defesas vimos que são as mesmas funções estruturantes que formarão a
consciência ou a sombra, dependendo se forem elaboradas ou não. Nem sempre as tentativas
de elaboração dão resultado; nesses casos é que surgem as defesas, pois a pessoa não consegue
enfrentar diretamente – conscientemente – determinada situação muito carregada de emoção.
Um outro exemplo é de uma paciente com câncer de mama metastático que tem
conhecimento que a sua doença é incurável. Durante toda vida, sempre foi muito independente
e, além disso, as pessoas eram dependentes dela. Ela lida com a vivência diante de uma doença
incurável com a predominância do arquétipo patriarcal. A persona de mulher forte e
independente permanece com maior intensidade diante da concretude da morte anunciada e,
para ela, sair da posição de forte significa a maior proximidade da morte. Então ela se mantém

40
Jung & Corpo

nesta posição mesmo que negligenciando sintomas importantes que necessitam de


tratamento. Tal negligência leva as internações com risco de vida. Desta forma entra num
suicídio inconsciente. Esta é uma defesa neurótica, isto é, uma forma de se comportar na qual a
pessoa fica dominada inconscientemente pela sombra, onde ela quer manter a vida a qualquer
custo, mas atua de modo a piorar seu estado de saúde. Neste caso, tal processo a leva para uma
intensa vivência de morte regida, neste momento, por uma defesa associada ao arquétipo
patriarcal que oprime o arquétipo matriarcal, dissociando-a das necessidades básicas de cuidado
com o corpo.
O arquétipo da alteridade inclui a fenomenologia dos arquétipos da anima e animus; este é o
arquétipo que favorece o relacionamento simétrico entre o Ego e o Outro. Viver a
possibilidade de morte dentro deste padrão de consciência é se dispor a se ver como ser
humano que tem suas fragilidades e que a morte faz parte da vida. Este tipo de consciência é
muito difícil diante de algo tão doloroso como a morte, mas pude vivenciar tal padrão de
consciência junto com um paciente de 23 anos portador de um osteossarcoma metastático. D.,
apesar de vivenciar a sua dor por estar doente, sofria muito pelas crianças que faziam
quimioterapia com ele. Apesar de estar doente, no Dia das Crianças, Páscoa e Natal
presenteava as crianças do hospital, pois queria levar um conforto às mesmas. D. dizia que
antes da doença era muito materialista e não pensava no outro; com a doença se percebia como
uma pessoa muito melhor e mais humana. Neste sentido, a doença lhe trouxe uma maior
consciência de alteridade.
Como vimos, apesar de haver um predomínio de padrão de consciência associados a
determinados arquétipos, a proximidade da morte, como qualquer outra vivência de vida, será
experimentada através de outros arquétipos, sempre regidos pelo Arquétipo Central.
Por fim, o arquétipo da totalidade pode proporcionar um contato direto com as experiências
da totalidade através da posição contemplativa.
Este é o padrão da consciência que envolve uma maior plenitude para lidar com a morte,
pois é ele que propicia que a pessoa se abra para a totalidade e se perceba como parte de um
todo maior. No caso de pacientes terminais ele conduz à percepção da continuidade da psique
através de imagens de viagens, transformação, novo caminho, entre outras.
Segundo von Franz:
Os sonhos mostram com clareza que a alma inconsciente conhece a morte, e quem
prestar atenção aos sonhos ficará preparado para a morte muitos anos antes de morrer.
(1980, p.13)

Partindo desta concepção, von Franz (1980) refere-se ao Self (como Arquétipo Central)
como o ajudante da psique na elaboração da morte. Este ajudante pode tomar diversas formas:
círculo com forma de luz, caminho aberto e florido, céu, entre outras infinitas imagens. Neste
sentido o trabalho com os sonhos e caixa de areia, dentre outros, pode ser muito terapêutico

41
Jung & Corpo

neste processo de desligamento da vida. Muitas vezes, para se abrir para esse novo é importante
estar apoiado numa relação terapêutica de confiança.

4) Transferência e Contratransferência com Pacientes com Câncer em


Cuidados Paliativos

O verdadeiro médico não se coloca fora de seu trabalho, mas sempre no meio dele. (Jung)
Segundo Jung, a transferência e a contratransferência são partes inevitáveis do processo
analítico. As relações transferencial e contratransferencial acontecem no nível
consciente/consciente, consciente/inconsciente e inconsciente/inconsciente. A relação
consciente/consciente acontece através do “contrato terapêutico” que está em grande parte no
nível do envolvimento do ego com a situação em questão.
A relação consciente/inconsciente acontece, por exemplo, entre o ego de um e a anima e
animus ou sombra do outro. E por fim, a relação inconsciente/inconsciente sempre se faz
presente, mesmo que nem analista nem analisando sejam suficientemente conscientes para dar
apoio ao ego no processo (Stein, 2000).
Jung (1946) define a transferência como uma abundância de projeções que funcionam como
substituto da relação psicológica real. Num sentido mais amplo, a projeção, como algo natural
da psique humana, não se restringe apenas às pessoas, mas pode recair também sobre os objetos
físicos. A transferência pode também se voltar a figuras arquetípicas e estas podem ser uma das
buscas mais fortes e poderosas do ser humano. Em síntese, o que está por trás da transferência
é a completude potencial do próprio paciente.
Para refletirmos sobre a relação transferencial com os pacientes em cuidados paliativos,
como em qualquer relação terapêutica, devemos levar em consideração todo esse processo.
Porém, estar com câncer e em cuidados paliativos é um momento em que não há mais recursos
terapêuticos de cura, então a equipe de saúde passa a “desinvestir” do paciente, dando a ele
apenas suporte clínico.
Quando a proximidade da morte real se faz presente na relação terapêutica, é essencial para
o processo do paciente que se ative uma relação de alteridade entre paciente e terapeuta para
que possam estar juntos neste processo de desligamento da vida do paciente. Se não for assim, a
sombra trazida pelo medo da morte pode paralisar o terapeuta diante da morte do outro e,
assim, o paciente pode muitas vezes sentir-se pouco acolhido e compreendido neste momento
de tanta dor. Parece que esta relação de alteridade, ao aproximar de forma humana terapeuta–
paciente, propicia ao terapeuta, ao sentir a dor do outro, se sentir mais próximo do paciente
neste processo muitas vezes tão difícil. Por outro lado, o paciente, ao sentir-se compreendido
no âmago da sua dor, se abre para o outro numa relação de confiança.

42
Jung & Corpo

Ao estabelecer uma relação de alteridade, estabelece-se uma relação de confiança e


compaixão, e assim pode-se ativar o arquétipo da totalidade, que pode se manifestar de diversas
formas, dentre elas os sonhos, as imagens, os desenhos, as cenas na caixa de areia. Tais
vivências de totalidade vão muitas vezes auxiliar o paciente no processo de desligamento da
vida e assim estabelecer uma ligação com a totalidade.

4) A Técnica do Sandplay em Pacientes com Câncer em Cuidados Paliativos

O sandplay é o método psicoterapêutico de base junguiana que se utiliza areia, miniaturas e


um tabuleiro de fundo azul. A areia possibilita a plasticidade e a maciez com diferentes
sensações (seca ou molhada), tal como a terra contém os elementos primordiais. As miniaturas
são todos os tipos de figuras animadas e inanimadas. O tabuleiro de fundo azul, com dimensões
50cm x 70cm x 7,5cm, traz a idéia de água e céu.
O método terapêutico do jogo de areia foi desenvolvido por Dora Kalff a partir do Jogo do
Mundo, de Margareth Lowenfelt. Dora Kalff reconheceu que as séries de cenários, elaboradas
por crianças e adultos, representam a confrontação contínua com o inconsciente, comparável
com sonhos ou imaginação ativa que ocorrem no processo analítico.
A técnica do sandplay é uma modalidade terapêutica que permite:
 Expressão do mundo arquetípico;
 Expressão do mundo intrapessoal;
 Encoraja imagem de reconciliação com a totalidade e transforma energia do mundo
imaginário em uma experiência concreta;
 Restabelece a conexão vital entre o ego e o Self (centro organizador) (Ammann,
2002).
Conforme mencionado acima, o sandplay, por ser um instrumento terapêutico de expressão
do Self (totalidade), é uma técnica expressiva através de imagens que pode ser de grande valia
aos pacientes em cuidados paliativos que têm dificuldade de expressar seus sentimentos e
conflitos em relação à morte. Além disso, através da atividade lúdica e da imaginação, o
paciente pode estabelecer uma maior conexão com a totalidade, e esta pode ser um meio de
preparação para o confronto com a morte.

Relato de Caso – N.A.


- 40 anos;
- sexo masculino
- Medulablastoma – recidiva local e metástase na medula óssea.

43
Jung & Corpo

Queixa: O paciente estava muito ansioso para voltar às atividades profissionais e medo da
recidiva da neoplasia.
No início do tratamento psicoterápico, o paciente estava terminando a quimioterapia e
apresentava-se ansioso em relação ao final do tratamento. Tal ansiedade estava muito associada
à sensação de vulnerabilidade pelo fato de não estar mais recebendo a quimioterapia. Por estar
no final do tratamento e sem evidências de neoplasia em atividade, tecnicamente o paciente
estava apto para retornar ao seu trabalho. Entretanto, esta situação aparentemente boa estava
causando uma preocupação em como iria voltar a trabalhar e, além disso, ele tinha muito medo
de ser novamente “engolido” pelo estresse, ao qual ele associava a sua doença. Então, ele se
propôs a mudar de vida para assim “garantir” que a doença não voltasse mais.

Vivência: “A recorrência do tumor”...

Nos exames de rotina, foi diagnosticada a recorrência da neoplasia, localizada muito próxima
do local onde o tumor havia sido inicialmente ressecado; porém, desta vez, não havia a
possibilidade de uma nova cirurgia. Por este motivo, foi iniciado um novo regime de
quimioterapia. Após dois meses de tratamento, o paciente foi reavaliado e constatou-se que não
houve regressão do tumor. Diante desta notícia, o paciente ficou muito decepcionado, chorou
muito e entrou em um quadro de intensa ansiedade associado ao medo da evolução da doença
com a sensação de total descontrole. O seu oncologista clínico optou por oferecer um novo
regime terapêutico onde o resultado era imprevisível, dado à agressividade da doença e
também ao fato de os recursos de quimioterapia estarem se esgotando. Tal situação não poderia
ser diferente. O paciente ficou muito ansioso em iniciar a nova quimioterapia e tinha muita
expectativa em relação à mesma. Tinha uma idéia esperançosa de que iria fazer a quimioterapia
e a doença iria sumir imediatamente.
Iniciou a quimioterapia, mas não houve uma boa resposta. Ele ficou muito triste e
decepcionado. Nesta sessão pedi que fizesse uma cena na areia.

44
Jung & Corpo

1a Cena: O médico e o Deus

Descrição da cena: Um homem (o paciente) deitado e ao redor: o médico, Cristo e uma


mulher (a sua esposa).
Neste momento o ego se rende ao Self (como arquétipo central) e percebe que não tem o
controle do seu corpo e da sua vida. Além disso, o paciente se rende aos cuidados do médico,
como aquele que obtém o poder da cura. A figura feminina representa a cuidadora que oferece
suporte físico e emocional.
Depois desta cena, o paciente foi se mostrando mais consciente de que não tinha controle
sobre a situação e “entregou-se” a Deus (Self). Isto o deixou menos ansioso e assim ele pôde
viver com mais qualidade de vida: assistindo a filmes, jogando vídeo game e visitando os
vizinhos.
Apesar da quimioterapia não estar funcionando como o esperado, mesmo assim, o paciente
apresentava-se com uma “defesa de entrega”, proporcionando uma redução do sofrimento
emocional. Em alguns momentos, ele chora e diz que rezou bastante e entregou a vida a Deus.
“Se tiver que curar vai curar, senão eu vivo com os pontinhos (tumores) mesmo” (defesa)
“Agora, se não tiver que curar...” (sic).

45
Jung & Corpo

“Hoje eu cresci muito como pessoa e vejo que não controlamos nada e percebo que essa
doença não é tratada como algo matemático, ela é grave.” (sic).
“Tenho que pedir muita força para Deus, acho que esse é o caminho” (sic).

Vivência:
O paciente está ansioso por não conseguir fazer a quimioterapia, pois a sua medula óssea
estava muito comprometida com a diminuição do número de leucócitos (leucopenia) e
plaquetas (plaquetopenia). O tratamento somente seria reiniciado no momento da recuperação
da função medular. Neste período, sem o tratamento que representava a solução do seu
problema, o paciente permaneceu muito apreensivo e sentia-se mais vulnerável e ameaçado
pela a doença. Nesta fase, ele traz dois sonhos.

1º Sonho:
Sonha com muitas casinhas brancas e azuis, num lugar bom e com muita paz. Associação: ele
diz que se parece com uma foto de um lugar na Grécia. Aprecia o lugar e “sente uma paz muito
grande, um lugar para descansar” (sic). Começa a falar da espiritualidade e acha que a vida
continua após a morte e relaciona a vida a um aprendizado e que o espírito continua apesar da
morte. Acha que nesta vida não vai ter mais filhos, “quem sabe na outra vida”. Desta forma, ele
começa a fazer uma conexão com a totalidade e a conhecer um novo lugar. O paciente diz que
agora mudou radicalmente, e que agora tem muita fé e que isso o ajuda bastante.

2º Sonho:
O paciente sonhou que comprou uma casa grande que era branca e azul. Mudou-se e só
levou o seu cachorro chamado Apolo. Diz que tem esse cachorro desde solteiro, é um rotweiller
manso e bastante fiel e lhe ajudou muito em períodos difíceis de sua vida. No sonho só
conseguiu ver os fundos da casa que era três vezes maior que a casa onde mora. Segundo o
paciente, a sensação era de um lugar muito bom e agradável.

Estes sonhos demonstram a possibilidade de uma mudança para um lugar tranqüilo e


acolhedor, onde o paciente necessita do instinto, representado pelo seu cachorro. Além do
mais, o cachorro, em sua primeira função mística, atestada universalmente, é o Psicopompo,
quer dizer, o condutor das almas (Brandão, 1996). Sendo assim, a psique pode estar
preparando o paciente, através destes símbolos de mudança e transformação, para a
possibilidade da morte.

46
Jung & Corpo

2a Cena – Montanha com Cristo

Cena: Ele fez uma montanha onde coloca o Cristo. Nos quatro cantos da caixa coloca três
casas, uma em cada ponta e um sol. Esta cena representa o retorno do paciente para a
totalidade, através dos seguintes símbolos: as casas que representam um símbolo cósmico, o
Cristo que é o Self, como o centro regulador da psique, e o sol, também uma figura divina.
Durante a elaboração da cena, ele lida com essa situação “sem controle”, entregando sua vida
a Deus e reza todos os dias. Ele relata que Deus está no centro de sua vida. Assim atenua a sua
tensão pelo fato de não estar fazendo a quimioterapia.

Vivência: A doença volta a progredir para o tronco cerebral e, por este motivo, novos
sintomas neurológicos aparecem: a visão ficou turva, ocorreu um desvio da rima labial para a
direita, dificuldade para falar as palavras e apareceram soluços contínuos. Isso o deixou um
pouco triste e irritado, principalmente em função do soluço e da fala. Neste momento, ele
monta uma nova cena:
3a Cena – O rio

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Jung & Corpo

Cena: Um rio com muitos peixes com um homem sentado na água. Há quatro pedras tanto
no início como também no final do rio. Em volta do rio tem árvores. Enquanto faz a cena, ele
disse que é um rio que sempre ia quando era criança, onde aprendeu a nadar, mas, às vezes, a
água era brava e tinha medo de ser levado pela correnteza. Fala muito da infância que teve no
interior e diz que esse tempo não volta mais e “agora estou eu aqui, um menino de 40 anos”.
“Hoje percebo que a vida é como esse rio: a gente nunca sabe para onde ele vai nos levar”.
Segundo o Dicionário de Símbolos, de Chevalier (1998), o simbolismo do rio e do fluir das
suas águas é, ao mesmo tempo, o da possibilidade universal, o da fluidez das formas, o da
fertilidade, da morte e da renovação. O curso das águas é a corrente da vida e da morte.
Novamente, o inconsciente trazendo recursos para o ego elaborar a nova trajetória em direção
ao retorno à totalidade, simbolizada pelas quatro pedras: no início do rio, representando o
nascimento para a vida; e no final do rio, simbolizando o retorno à totalidade através da morte.
O barco é o símbolo da viagem, de uma travessia realizada seja pelos vivos ou pelos mortos
(Chevalier, idem). Nesta travessia pelo rio, os peixes também simbolizam o Self (Arquétipo
Central), o centro regulador da psique, que o auxilia nesta passagem.

Considerações Finais

Na cultura ocidental, por existir uma grande dificuldade de lidar com a morte, o momento
da terminalidade é enfrentado geralmente com um grande sofrimento. Dentro deste contexto,
o paciente em fase terminal apresenta, muitas vezes, recursos egóicos escassos para lidar com a
morte. Por outro lado, o terapeuta inserido nesta mesma cultura muitas vezes encontra grandes
dificuldades para dar suporte psicológico ao paciente que está morrendo.
Dentro deste contexto, muitas abordagens buscam recursos terapêuticos via somente o
fortalecimento do ego. Porém, é na natureza da psique que pode-se encontrar imagens e
símbolos que possibilitam o confronto com a morte.
Como vimos, von Franz (1980) refere-se ao Self (como Arquétipo Central) como o ajudante
da psique na elaboração da morte. Este ajudante pode tomar diversas formas: círculo com
forma de luz, caminho aberto e florido, céu, entre outras infinitas imagens. No processo dos
dois pacientes notamos a presença de imagens de vegetação, flores, cachorro, peixe, deus ou
espírito, todos símbolos de ligação com o Self (totalidade).
Sendo assim, o sandplay, por ser um instrumento psicoterapêutico que proporciona a
expressão do mundo arquetípico e intrapessoal, pode restabelecer a conexão vital entre o ego e
o Self (centro organizador) (Ammann, 2002), que, apesar de estarem tão próximos quando os
pacientes estão frente à morte, as imagens e símbolos que vêm da psique precisam ser
assimilados e de certa forma elaborados pelo ego. O sandplay, por ser um instrumento
terapêutico de expressão do Self (totalidade), mostrou-se, no presente caso, ser uma técnica
expressiva que pôde proporcionar, através do contato com as imagens de totalidade, uma

48
Jung & Corpo

melhor conexão com a mesma. Ao mesmo tempo, revelou a dolorida percepção de que o ego
não é o grande controlador da vida. Desta forma, a psique pôde caminhar neste processo
natural de retorno à totalidade de forma mais amena, podendo ser menos sofrido e assustador
para o ego.
Por fim, como afirma Byington (2002), o arquétipo da totalidade pode proporcionar um
contato direto com as experiências da totalidade através da posição contemplativa, podendo
neste caso ser vivenciada através das imagens do sandplay. Este é o padrão da consciência que
envolve uma maior plenitude para lidar com a morte e que propicia que a pessoa se abra para a
totalidade e se perceba como parte de um todo maior.

Referências Bibliograficas

Ammann, R. (2002). A terapia do jogo de areia. Imagens que curam a alma e desenvolvem a
personalidade. São Paulo: Ed. Paulus.
Brandão, J.S. (1996). Mitologia Grega. Petrópolis: Ed. Vozes, vol I.
Byington, C.A.B. (2002). O Arquétipo da vida e da morte - Um estudo da Psicologia Simbólica. São
Paulo: Ed. Particular.
Chevalier, J. & Gheerbrant, A. (1998). Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro: Ed. José
Olímpio.
Ferreira, M.L. (2004). O Pêndulo de Cristal: Uma terapia psico-oncológica. São Paulo: Ed. Idéias
Letras.
Jacobi, J. (1995). Complexo, Arquétipo, Símbolo na psicologia de C.G. Jung. São Paulo: Ed. Cultrix.
Jaffe, A; Frey-Rohn L; von Franz, M.L. (1980). A morte à luz da psicologia. São Paulo: Editora
Cultrix.
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vol VIII/2. Petrópolis: Ed. Vozes, pp. 337-353.
_____________ (1946). Psicologia da Transferência. Obras Completas, vol. XVI. Petrópolis:
Ed. Vozes.
_____________ ([1939] 2000). Consciência, inconsciente e individuação in Os arquétipos e o
inconsciente coletivo. Obras Completas, vol X. Petrópolis: Ed Vozes, pp. 269-282.
_____________ ([1955] 1990). Mysterium Coniunctionis. Obras Completas, vol XIV/2,
Petrópolis: Ed Vozes.
INCA Instituto Nacional do Câncer (2000). O câncer no Brasil: determinantes sociais e
epidemiológicos. Rio de Janeiro: INCA.

49
Jung & Corpo

_____________ (2008). Estimativa 2008 – Incidência de Câncer no Brasil. Disponível em


<URL:http://www .inca.gov.br/estimativa.
Lyman, G.H. (1992). Risk factors for cancer. Prim Care, 19: 465-79
Mirra, A.P.; Latorre, M.R.D.O.; Veneziano, D.B. (2003) Aspectos epidemiológicos do câncer no
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Stein, Murray (2000). Transferência e contratransferência. São Paulo: Ed. Cultrix.
Von Franz, M.L. (1990). Os sonhos e a morte. Uma interpretação junguiana. São Paulo: Ed.
Cultrix.
Whitmont, Edward C. (2000) O desenvolvimento do ego e as fases da vida. In: A busca do
símbolo: Conceitos Básicos de Psicologia Analítica. São Paulo: Cultrix.

50
Jung & Corpo

SINCRONICIDADES
ENCONTROS ESPECIAIS – AMOR
Quando a sessão terapêutica é
um encontro valioso

Suzana Delmanto1

Existem encontros que não deixam lembranças; outros que, ao serem lembrados, mobilizam
recordações agradáveis ou não, porém sem ressonâncias mais significativas; e aqueles que
marcam a trajetória de uma vida. Estes são os que acontecem com as pessoas que passam a fazer
parte da nossa história, deixando as suas marcas na nossa existência.
Esses encontros especiais são marcados pelo inexplicável. Em geral são cercados de
sincronicidades, de afinidades e complementações que afloram naturalmente, mobilizando
sensações de que está acontecendo o que tem que acontecer. Não se encontram explicações
racionais para essas vivências no histórico da vida prática. Porém, no território mais abrangente
das sutilezas, das ocorrências induzidas pela essência das necessidades vitais, podemos encontrar
uma compreensão dessas vivências que colaboram para uma expansão da consciência.
Os encontros especiais podem ser reconhecidos pela presença de uma atmosfera amorosa ou
numinosa, pelas ocorrências sincronísticas que costumam se manifestar ao seu redor, definidas
por Jung como coincidências significativas (Bolen, J.S., 1993: p. 11). Esses encontros especiais
proporcionam a sensação de que a vida faz sentido. São aqueles encontros que nutrem o nosso
coração e a nossa alma, criando uma sensação de plenitude. Nos trabalhos de Jung a respeito
das sincronicidades, podemos encontrar ressaltada a importância da presença de intenso
interesse, de ampla afetividade, de emoções fortes nas ocorrências sincronísticas. Jung nos
lembra que desde tempos antigos, a relação das emoções fortes com o poder de provocar
ocorrências já era reconhecida como magia. Ressalta um trecho de Carlos Magno dizendo:

1
Psicóloga Clínica, especialista em Cinesiologia e Psicoterapia Junguiana Coligada a Técnicas
Corporais pelo Instituto Sedes Sapientiae, São Paulo, SP.

51
Jung & Corpo

... habita na alma humana um certo poder


capaz de mudar a natureza das coisas
particularmente quando ela se acha arrebatada
num grande excesso de amor ou ódio. (Jung, 1952, p. 26)

A interligação do fator emocional com os instintos pode ser reconhecida pela ativação dos
arquétipos, dos núcleos numinosos do inconsciente na ocorrência das coincidências significativas.
Jung ainda faz referência à sincronicidade dizendo que é um ato de criação que não pode ser
explicado causalmente (Jung, 1952, pp. 18, 51). Sobre os encontros especiais marcados por
sincronicidades, a analista junguiana Jean Shinoda Bolen comenta que através de tais encontros
podemos achar um caminho do coração, um sentido para nossa vida. Acrescenta que essa pode
ser uma janela que se abre para o mundo mais amplo e mais perfeito do que o mundo do
racional lógico e dos fatos concretos (Bolen, 1993, pp. 11, 12). Nesse mesmo sentido, Elie
Humbert (1925 – 1990), fundadora dos Cadernos Junguianos de Psicanálise, assim se expressa nas
suas reflexões:
No momento em que se produz uma sincronicidade, o consciente se encontra
efetivamente dominado pela apreensão em uma situação de conjunto na qual ele é
só um elemento. Um centro situado em outro lugar parece ordenar as
ocorrências relacionadas com a subjetividade e livres da pesada necessidade de
serem submetidas aos fatos. (Humbert, E., 1994, p. 91)

Nesses encontros especiais podemos reconhecer a presença do arquétipo representado por


Mercúrio ou Hermes, que na alquimia está relacionado com o poder de fluência e de
transformação, sendo portador da abertura de caminhos e de possibilidades. Mercúrio é
também conhecido como o governante do sistema nervoso, pois os nervos são os mensageiros
do plano biológico (Cirlot, 1984, p. 379). Sobre o enraizamento dos arquétipos no corpo,
Stanley Keleman, um dos pioneiros da atualidade nos estudos da vida do corpo e da realidade
mítica somática, ressalta o fato de que as imagens realizadas no corpo são autênticas e ajudam a
desenvolver um conhecimento de nós mesmos. Não podemos aprender a viver e a dar forma
para nossa vida quando vivemos conceitos ou imagens que não estão enraizadas no corpo
(Keleman, 2001, pp. 18, 19 e 57).
A manifestação do poder das emoções fortes do amor presentes nos encontros especiais foi
amplamente exaltada por Joseph Campbell (1904 – 1987), uma das maiores autoridades no
estudo da mitologia. Ele faz referência ao poder do amor dizendo que aonde quer que o amor
aflore se desvanecem as distinções feitas por alguns moralistas entre os reinos da carne e do

52
Jung & Corpo

espírito e da distinção entre o tempo e a eternidade. Complementa dizendo que o poder do


amor dá um sentido para a vida, na qual as oposições passam a conviver em harmonia
(Campbell, 2000, p. 127).
O coração que se expande numa presença amorosa vai espalhando benefícios para quem
entra em contato com ele. A numinosidade do amor favorecendo a ocorrência de
transformações nos contextos escuros e difíceis da vida, despertando o encantamento pela
natureza e pela existência, abrindo novos caminhos e favorecendo o contexto religioso, foi
perpetuada através dos tempos. Nesse sentido, pode ser encontrada ampla referência nos textos
clássicos do Cântico dos Cânticos, do amor do Esposo pela Bem-Amada, do amor de Cristo pela Igreja, e
do amor de Deus pela Alma. São conhecidos nos Hinos Eróticos de São Heróteo as citações a respeito
do desejo amoroso como significando um poder geral de unificação e de conexão que pode ser
traduzido no sentido de união (Chevalier & Gheerbrant, 1974, p. 376).
Com a força de um coração amoroso nos caminhos da vida, também vão se diluindo os
medos e as fraquezas à medida que as relações vão se desenvolvendo em dimensões que
transcendem os limites de uma racionalidade mais pragmática. Com visões mais amplas, a
compreensão vai abrindo preciosos caminhos para sair das dificuldades. Em cada um de nós o
processo mercuriano se faz presente nas encruzilhadas das redes dos contatos. Mercúrio, com a sua
natureza dualista, na qual se confrontam os princípios contrários e complementares, é
essencialmente um princípio de ligação representado pelo Caduceu, símbolo da coexistência dos
opostos (Chevalier & Gheerbrant, 1974, pp. 606, 607). Sobre o enraizamento dos mitos no
corpo, Campbell sinaliza o fato de que a mente cria o mito em resposta a sugestões do corpo
que estão relacionadas com o que ele necessita, e que os mitos são na verdade metáforas para
estados internos corporais (Keleman, 2001, pp. 18, 61).
Nos encontros especiais é importante a presença da coragem para entrar nas relações com
inteireza e confiança quando sentimos nas nossas profundezas que a situação é propícia. A
presença do medo de errar ou de fracassar e o receio de pecar podem bloquear o acontecer
desses tão preciosos encontros especiais. A colheita dos frutos de uma vivência só vai poder ser
reconhecida após ter acontecido. Existe sempre a presença de risco assim como a possibilidade
de erros nos caminhos da vida. Nesse sentido Jung sinaliza no transcorrer do Seminário das Visões
– no seu trabalho colhido com a imaginação ativa – mais observações sobre a importância da
vida ser experienciada na sua plenitude, passando pela vivência de erros e se confrontando com
a ocorrência de pecados, para a conquista de uma expansão da consciência e de uma experiência
espiritual (Jung, 1976).
Nos alicerces dos ensinamentos da nossa natureza está a verdade de uma vida que é
configurada entre os opostos da luz e da graça se alternando com os obscuros das dores e do
pecado. Com as aprendizagens da vida vão sendo criadas as marcas dos nossos heróis, daquelas
pessoas que enfrentaram as dores, os terrores e as fraquezas de cabeça erguida, norteados pelos
ideais e conduzidos pela coragem. No amor, Eros, filho de Hermes e de Afrodite, considerado o

53
Jung & Corpo

mais belo dentre os deuses imortais, assegura a união dos opostos e a continuidade das espécies
(Chevalier & Gheerbrant, 1974, p. 47). Dentro de cada um de nós existe uma semente de
heroísmo e de covardia, de fraqueza e de coragem, assim podemos ser heróis ou perdedores.
Os encontros valiosos acontecem na vida daqueles que buscam com determinação o que querem,
sem medo de se machucar. A mistura do joio com o trigo é uma referência bíblica à
coexistência dos opostos.
Os trabalhos terapêuticos integrados com uma abordagem corporal suave favorecem a
ocorrência de uma união profunda entre o terapeuta e o paciente, criando condições para uma
captação das mensagens viscerais, das manifestações dos fluxos corporais e das ressonâncias
neurovegetativas que se propõem sempre numa disposição inédita, contando numa linguagem
corporal o que se passa nas profundezas dos sentimentos e da mente (Delmanto, 1997, pp. 20,
21). Nesses momentos terapêuticos podem acontecer transformações criativas e
enriquecedoras em diferentes níveis, favorecendo a expansão do campo analítico. Sobre a
importância do trabalho com a linguagem do corpo no campo terapêutico, Stanley Keleman
lembra que mediante o processo corporal descobrimos o nosso cosmos interno – os
sentimentos, as imagens e os sons que organizam o nosso comportamento pessoal.
Complementa dizendo que as imagens orgânicas que se configuram no corpo agregam e
mantêm a nossa forma. Ainda aponta o fato de que são as imagens somáticas que organizam a
nossa realidade reconhecendo o corpo como fonte de conhecimento (Keleman, 2001, pp. 18,
51).
O trabalho desenvolvido pelo médico e psicoterapeuta húngaro Dr. Pethö Sándor*2 (1916 –
1992), com toda uma série de toques sutis, favorece, como diz Keleman, a descoberta do
cosmos interno, criando condições para uma efetiva ressonância bipessoal entre cliente e
terapeuta, para uma aproximação em escala extensa a campos extra-racionais da psique
(Sándor, 1974, p. 100). Quando a sessão terapêutica é um encontro valioso, a manifestação de
Eros num clima amoroso abrangente pode ser sentida no campo energético ou na atmosfera
amorosa que costuma se configurar.

2
Dr. Pethö Sándor (1916 – 1992) veio para o Brasil em 1948. Criou a Calatonia, seqüência de toques
extremamente suaves aplicados em pontos precisos dos pés, calcanhar e tornozelos, por tempo prolongado – 3
minutos em média para cada toque. O método pode ser encontrado descrito na íntegra pelo próprio Dr.
Sándor (Sándor, 1974: pp. de 92 a 100). Desenvolveu mais de uma centena de toques sutis, a serem aplicados
em diferentes pontos e zonas do corpo. Podemos destacar: as seqüências de descompressão fracionada, o
trabalho relacionado com os pontos de apoio do corpo, as seqüências de giros e de estiramentos suaves nas
articulações, as seqüências de toques de sopro e os toques com o magnetismo das mãos e do olhar, entre
outros. O registro desses trabalhos já foi organizado seguindo o critério de regiões corporais (Delmanto, S.,
1997).

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Jung & Corpo

Nesta dimensão do campo terapêutico, o paciente e o terapeuta são eternos aprendizes das
transformações e das ocorrências que se vão propondo no caminho dos passos analíticos.
Unidos, vivenciam os encontros terapêuticos como encontros especiais, na medida em que geram
transformações e frutos fertilizados em uma atmosfera amorosa. O encontro terapêutico pode
ser considerado um encontro valioso quando acontece numa atmosfera pontilhada de
manifestações amorosas ou numinosas, num campo em que se faz presente a magia ou o
encantamento de uma atmosfera transcendente.
A analista junguiana Elie Humbert (1925–1990), assim se expressa:
A psicanálise nas suas origens se fundamenta no reconhecimento de
Eros. Este fato permanece em qualquer que seja a escola ou
tendência. Na ligação do meu prazer com o prazer do outro, o Eros se
realiza em múltiplos níveis e em diferentes combinações, mas ele é
sempre o campo de onde partem e de onde se inscrevem os passos
analíticos. Para análise não há o homem só. Nada do homem deve ser
separado, nem das possibilidades pulsionais ou instintivas pelas quais
ele se liga ao seu redor, nem da comunicação inconsciente com a
coletividade (Humbert, 1994, p. 161).

Referências Bibliográficas

Bolen, J.S. (1993). A Sincronicidade e o Tao. São Paulo: Cultrix.


Campbell, J. (2000). Para Viver os Mitos. São Paulo: Cultrix.
Chevalier, J.; Gheerbrant, A. (1974). Dicionário dos Símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio,
2000.
Cirlot, J, E. (1984). Dicionário dos Símbolos. São Paulo: Moraes.
Delmanto, S. (1997). Toques Sutis: uma experiência de vida com o trabalho de Pethö Sándor. São
Paulo: Summus.
Humbert, E. (1994). L’homme aux Prises Avec L’inconscient: réflexions sur l’approche junguienne.
Paris: Albin Michel.
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Sándor para uso exclusivo em seus cursos, 1976.
Jung, C.G. (1952) Sincronicidade: Petrópolis: Vozes, 1984.
Keleman, S. (2001) Mito e Corpo. São Paulo: Summus.
Sándor, P. et al (1974). Técnicas de Relaxamento. São Paulo: Vetor.

55
Jung & Corpo

56
Jung & Corpo

ATENDIMENTO A GRUPO DE CRIANÇAS


VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA:
O Corpo como Terreno para o
Desenvolvimento de Recursos Internos

Juliana Grandolpho da Silva


Priscila Santos Martins1

Depois da guerra vão nascer lírios nas pedras,


grandes lírios cor de sangue, belas rosas desmaiadas.
Depois da guerra vai haver fertilidade,
vai haver natalidade, vai haver felicidade.
Carlos Drummond de Andrade
Introdução

Propõe-se, aqui, falar de uma experiência de atendimento psicológico a grupos de crianças e


adolescentes vítimas de violência, residentes em casas abrigo.
Este tipo de atendimento teve início em 1998, num projeto piloto, com a participação de ex-
alunos do curso Jung e Corpo do Instituto Sedes Sapientiae. Essa experiência foi replicada e
aprimorada, em 2002, para a dissertação de mestrado em Psicologia Clínica, na PUC-SP, de
Neusa Maria Lopes Sauaia.

1
Psicólogas graduadas pela PUC-SP. Aprimoramento no Atendimento Psicológico a Crianças e Adolescentes Vítimas de
Violência do Núcleo Espiral. Membros da equipe do Núcleo Espiral: Pesquisa, Assistência e Prevenção da Violência
Contra Crianças e Adolescentes. Site: http://www.nucleoespiral.org/. E-mails: juliana_gs@uol.com.br;
psmprimartins@hotmail.com.

57
Jung & Corpo

Em 2003, iniciou-se a formação e a capacitação de uma equipe de profissionais que pudesse


dar continuidade ao trabalho, favorecendo um número maior de crianças e adolescentes de
outras instituições. O trabalho, que passou a ser replicado em diversas instituições de São Paulo
e da Grande São Paulo, foi batizado, na época, de Projeto Espiral e vinculado ao MDCA –
Movimento em Defesa da Criança e do Adolescente. Atualmente, o trabalho foi rebatizado de
RETOCARE e é um dos programas do Núcleo Espiral – Pesquisa, Assistência e Prevenção da
Violência contra Crianças e Adolescentes.
Segundo Levine (1999), a psicologia clínica tradicionalmente privilegia a abordagem do
trauma por seus efeitos psicológicos, mas para que possamos entender profundamente ou tratar
o trauma, necessitamos acessar conjuntamente o corpo e a mente como uma unidade, dentro de
uma visão psicossomática. Diversas pesquisas (Teicher, 2002; Davies, 2002; Furniss e Knuston
apud Amazarray, 1998) mostram que juntamente com o desenvolvimento psíquico frente ao
trauma, são estabelecidas alterações no sistema físico. Do ponto de vista da Psicologia Analítica,
esse fato faz sentido, já que psique e corpo constituem uma totalidade e, portanto, estão
correlacionados.
Um aspecto fundamental do trauma, observado tanto por Freud quanto por Jung, é que um
evento apenas externo, geralmente, não é traumatizante em si. O que torna uma situação
traumática é um fator psicológico interno, são as fantasias envolvidas e relacionadas com tal
evento. Ambos enfatizaram o potencial efeito traumatológico das fantasias inconscientes e
frisaram que o evento externo sozinho, normalmente não gera efeitos profundos na psique.
Além disso, o grau de severidade dos efeitos no desenvolvimento da personalidade e no
desenvolvimento físico da criança/adolescente pode variar segundo alguns parâmetros. As
evidências sugerem que o período de duração da violência sofrida, o uso ou não da força pelo
violentador, a importância da relação entre vítima e vitimizador, o grau de segredo e de ameaças
contra a criança/adolescente e a presença ou ausência de figuras protetoras podem influenciar
nos danos causados (Furniss e Knuston apud Amazarray, 1998).
O trabalho aqui apresentado e realizado com as crianças/adolescentes leva em consideração a
noção da Psicologia Analítica de que o organismo tende à integração e ao equilíbrio das
polaridades psíquicas. Então, onde há feridas e sofrimentos, há também um potencial para
superá-los que pode ser acessado.
A via pela qual é possível o acesso ao potencial curativo e aos recursos presentes no indivíduo
é o símbolo. Ele é justamente o meio pelo qual esses conteúdos podem ser integrados pela
consciência, possibilitando realizar transformações no uso da energia psíquica, dando-lhe outros
direcionamentos, integrando as polaridades e fazendo a ponte entre mente/corpo, diminuindo,
assim, a tensão e sofrimento do indivíduo.

58
Jung & Corpo

Levando em consideração, então, que o organismo humano tem a capacidade para guiar o
processo de transformação se tiver oportunidade, a psicoterapia aqui sugerida propõe-se a
(Sauaia, 2003):
- Focar o aspecto simbólico inserido nas sessões de terapia, tendo o corpo, seus significados e
seus recursos como terreno de manifestação da psique;
- Promover a socialização por meio do trabalho em grupo;
- Possibilitar a re-significação do próprio corpo, alvo da violência, e da figura do outro
(representado pelo terapeuta, pelos colegas, pelo espaço da terapia);
- Promover o bem-estar fisiopsíquico por meio de experiências lúdicas ou vivenciais;
- Incentivar uma forma de comunicação ancorada na dignidade, no respeito ao outro, e não na
violência;
- Reforçar a auto-estima, evidenciando os recursos próprios e estabelecendo um fortalecimento
da estrutura egóica;
- Facilitar a construção ou reconstrução da identidade da criança/adolescente.
O trabalho tem também como pano de fundo o paradigma da resiliência, termo este originário
das ciências exatas, particularmente da mecânica e da engenharia, podendo ser definido, de
acordo com o Novo Dicionário Aurélio (apud Sauaia, 2003, p. 34) como: “propriedade pela qual
a energia armazenada em um corpo deformado é devolvida quando cessa a tensão causadora de
uma deformação elástica”.
Para a psicologia, a resiliência pode ser entendida como a capacidade de um indivíduo manter
um funcionamento adaptado apesar de situações adversas ou de se recuperar, da melhor forma
possível, por meio da utilização dos recursos internos, de um acontecimento ou situação
indesejável, voltando a viver com uma qualidade de vida pelo menos igual à anterior (Spaccarelli
e Kim, 1995).
Pretende-se, portanto, apresentar uma experiência realizada, no ano de 2007, com um
grupo de seis crianças na faixa etária de nove a onze anos, abrigadas em uma instituição na zona
Sul do Município de São Paulo. Além disso, será focado o desenvolvimento do processo
psicoterapêutico de uma das crianças desse grupo.
Foram realizadas sessões individuais de avaliação pré e pós-atendimento grupal, nas quais
foi aplicado o Desenho da Figura Humana, de Goodenough. Além disso, na primeira sessão em
grupo, foi pedido a cada membro que realizasse uma figura humana de massa de modelar,
estratégia esta utilizada como uma forma adaptada de uma das técnicas da eutonia, desenvolvida
por Gerda Alexander em 1960. Foram realizadas dezesseis sessões em grupo, conduzidas por
nós, que tiveram como terreno diversos trabalhos corporais mesclados com o olhar simbólico da
Psicologia Analítica.

59
Jung & Corpo

As sessões baseiam-se em programações prévias com o objetivo de trabalhar diferentes partes


do corpo, seus significados e todo conteúdo despertado pelo contato com cada uma delas.
Ao final do trabalho, foram avaliadas habilidades da resiliência considerando a melhora ou
aquisição de alguns de seus componentes e da imagem corporal.

Desenvolvimento do grupo atendido


Como ponto de partida, e condição para o trabalho, o grupo foi convidado a escolher
personagens que assumiriam durante todas as sessões. Escolheram também personagens para as
terapeutas. No início de cada sessão, as crianças e as terapeutas diziam seu nome e em seguida o
de seu personagem, passando, a partir desse momento, a serem chamados dessa maneira. Ao
término de cada sessão, todos diziam o nome do seu personagem e em seguida seu nome, ou
seja, “destransformavam-se”.
O grupo atendido optou pelos personagens do filme X-Men. Este filme retrata a história de
mutantes dotados de poderes especiais que vivem em meio à sociedade humana, mas sofrem
preconceitos, pois os humanos não entendem os seus dons e temem que eles dominem sua raça.
Os X-Men são liderados pelo Professor Xavier, que luta para vencer estes preconceitos por
meios pacíficos.
Estes seres mutantes vivem numa instituição, na qual chegam assustados, sozinhos e como
fugitivos (são considerados ex-humanos). Ali encontram a possibilidade de aprender a controlar
suas habilidades/poderes e recuperar sua história. Podemos correlacionar essa característica com
o processo de abrigamento, a partir do qual as crianças podem construir uma nova história, sem
ficar apenas com a história de violência sofrida anteriormente. A psicoterapia pode ser entendida
como veículo que possibilitaria essa reconstrução. Assim, no processo psicoterapêutico as
crianças tiveram a possibilidade de:
- Entrar em contato e conhecer o próprio corpo para, assim, desenvolverem recursos internos
(poderes);
- Fazer uso da energia psíquica de um modo construtivo, ou seja, diferente de como estava sendo
direcionada até então: por meio da repetição de situações de violência, desrespeito, desamparo,
agressividade e desconfiança.
É curioso observarmos o slogan do filme X-Men: “Confie em poucos, tema o restante”, o que nos
remete a algumas das possíveis características da criança vítima de violência – e que observamos
ao longo da nossa experiência profissional com essa população – desconfiança, medo e
dificuldade de (re)fazer vínculos construtivos.
É intrigante observarmos os personagens escolhidos pelas crianças para as terapeutas:
Professor Xavier e Mística. O Professor Xavier, além de ser o professor dos X-Men, tem como

60
Jung & Corpo

poder ler e controlar a mente dos outros, fazendo uso dessas potencialidades para auxiliar cada
X-Men no seu processo de desenvolvimento. Mística, por sua vez, tem o poder de se transformar
em qualquer outra pessoa, seja ela mutante ou não, o que lhe possibilita se colocar e empatizar
com o outro e transitar entre esses dois mundos: humano e mutante, consciente e inconsciente
(das potencialidades, dos instintos). Isso também vale para Xavier, uma vez que ele luta pelo
equilíbrio entre o mundo dos humanos e o mundo dos mutantes. Esta tarefa nos remete
claramente à função do terapeuta enquanto aquele que, ao empatizar com o sofrimento da
criança, colabora para a construção de uma ponte entre ego e os conteúdos inconscientes,
semeando um uso mais efetivo de seu potencial.
Assim, a escolha dos personagens do filme X-Men é entendida simbolicamente. É durante
as sessões que as crianças, ao poderem entrar em contato com seu lado diferente, mutante, das
forças inconscientes e com seu poder transformador, podem integrar, desenvolver, conter ou
controlar seus poderes, entendidos aqui como força, como recursos internos, como a
possibilidade de promover a resiliência.
A seguir, serão apresentados materiais que demonstram o desenvolvimento das crianças
atendidas no grupo, assim como os aspectos simbólicos expressados por elas correlacionados ao
seu modo de funcionamento.

Integrante do Grupo: Sexo Feminino, nove anos.


Desenho da Figura Humana antes e depois do processo psicoterapêutico.

Essa criança escolheu como personagem a mutante Tempestade, que tem o poder de
controlar o tempo. É curioso observarmos que ela conseguia determinar o “clima” no qual as
sessões grupais se desenvolveriam: com tranqüilidade ou agitação, com brigas, barulhos e
palavrões. Quando as situações não aconteciam do modo como esperava, ou seja, quando não
conseguia controlar todo o grupo é que a tempestade era ativada.
Nos desenhos da Figura Humana acima, podemos observar que após o atendimento grupal, a
pessoa desenhada adquiriu corpo, ganhou volume em todas as partes e diferenciação na área do

61
Jung & Corpo

tronco. Também foram adicionados dedos. No primeiro desenho, as figuras humanas foram
representadas por meio de bonecos em forma de palitos, o que não é compatível com o esperado
para sua faixa etária.

Integrante do Grupo: Sexo Feminino, nove anos.


Figura de Massa antes e depois do processo psicoterapêutico.

Essa criança escolheu como personagem a mutante Lince Negra, que tem o poder de
atravessar paredes e barreiras. Essa foi uma criança que chegou ao grupo bastante retraída e que
não conseguia participar das atividades durante as primeiras sessões. No desenvolvimento de seu
processo, passou a se integrar com o grupo e às terapeutas e a conseguir realizar as tarefas
sugeridas. Mostrou, assim, seu potencial para romper com as “paredes” que a mantinham isolada
e com as barreiras que dificultavam seu desenvolvimento.
Nas figuras modeladas em massa, podemos observar que, antes do atendimento grupal, havia
apenas fragmentos que ela chamava de corpo. Após o atendimento, fica evidente que houve uma
integração desses fragmentos, nascendo, assim, um corpo estruturado com cabeça, as diferentes
partes do rosto (olhos, boca, cabelo e nariz) tronco e membros. Há também a construção de um
chão, que mesmo a figura não estando apoiada nele, mostra que existe uma base em potencial na
qual pode se apoiar.

Caso Izabel2
Izabel tinha nove anos quando foi atendida. Ela estava abrigada na instituição fazia dois anos.
Também estavam abrigados dois de seus cinco irmãos.
O motivo do abrigamento foi negligência por parte da mãe e maus-tratos. Quem cuidava das
crianças era sua irmã mais velha, de dezoito anos.
Ela recebia visitas regulares da mãe. Não possui registro paterno em sua certidão.

2
Nome fictício.
62
Jung & Corpo

Antes de chegar à instituição em que a atendemos, Izabel e os irmãos estavam morando em


outro abrigo. Neste abrigo Izabel, sofreu violência física, negligência e abuso sexual.
Atualmente, este abrigo encontra-se interditado.
Quando Izabel estava em vias de retornar para a família, não foi liberada pela justiça pelo fato
de a mãe morar em local de risco, próximo a áreas de prostituição. Suspeita-se do envolvimento
dessa mãe com a prostituição.
Atualmente, Izabel está sob a guarda provisória de um tio materno.

Considerações do processo psicoterapêutico de Izabel

No início do trabalho psicoterapêutico, Izabel apresentava-se bastante agressiva com as outras


crianças do grupo, chutando e batendo nos colegas sem nenhum motivo aparente. Nas
atividades, mostrava-se dispersa, não conseguindo se concentrar e realizar o que era proposto.
Ora vagava pela sala, ora permanecia com o olhar fixo num ponto da mesma.
Demonstrava uma baixa auto-estima e uma desvalorização de seu corpo. Afirmava, por
exemplo, que seus pés eram feios. Nesses momentos, chorava com tamanha intensidade que nos
dava a sensação de extremo desespero e desamparo.
Quando tinha que lidar com situações de frustração, como quando em uma atividade na qual
tinha que apoiar o final de sua coluna sobre uma bexiga e a sua estourou, novamente entrava
num choro desproporcional à situação da realidade externa, o que indicava uma falta de recursos
para lidar com adversidades.
Outra situação relevante em seu processo terapêutico foi quando, em uma das sessões, Izabel
levantou sua blusa, mostrando e acariciando os mamilos e gritando repetidamente: “olha os meus
peitinhos”, rindo de forma dissociada, com olhar disperso, andando ao redor da sala e,
posteriormente, abaixando sua calça.
Nesse dia, assim como em diversos outros episódios de dissociação, ela era chamada pelas
terapeutas verbalmente, o que não era suficiente. Então, com o uso de um toque em seus
braços, pedíamos para que ela voltasse. Esse tipo de intervenção foi mostrando-se eficiente.
Simultaneamente, fomos conversando sobre a importância de proteger o próprio corpo, que a
roupa serviria para tal fim, tentando estabelecer com ela a discriminação que não conseguia fazer
por conta própria.
Izabel mostrava a necessidade de criar um limite para seus conteúdos emocionais. Foi por
meio do contato com seu próprio corpo que essa barreira foi sendo desenvolvida. Tanto nas
atividades nas quais ela tocava e conhecia as diferentes partes dele, recebendo feedbacks positivos
e construtivos das terapeutas, como quando recebia os toques destas numa atividade de suave

63
Jung & Corpo

contorno corporal, Izabel foi podendo re-significar o próprio corpo e a figura do outro. E,
talvez, esta tenha sido uma das poucas oportunidades na qual ela pôde experenciar um toque
respeitoso e estabelecer um contato positivo com seu corpo (sem conotação sexual ou de
violência física).
Assim, Izabel passou a mostrar um especial interesse pelas atividades nas quais ela mesma
tinha que tocar seu corpo. Mantinha-se calma e concentrada. Quando recebia, deitada, os toques
das terapeutas, que sinalizavam seu contorno desde os pés até a cabeça, chegava a pedir a
repetição da atividade.
Outro aspecto que nos mostra o quanto ela passou a lidar com seu corpo de maneira
diferente, foi a mudança em seu modo de vestir e pentear. Ela passou a usar roupas limpas e
femininas, fazer penteados e usar perfume. Atualmente, tivemos a informação de que ela iniciou
aulas de Balé.
Na penúltima sessão, quando o trabalho estava sendo encerrado, Izabel fez questão de falar de
todas as partes do corpo trabalhadas. Isso demonstrou uma integração e melhora em sua
percepção corporal.
Quanto ao personagem do tema X-Men, Izabel escolheu ser a Vampira. Quando em contato
pele a pele com outra pessoa, Vampira tem o poder mutante de sugar suas energias e poderes,
podendo levar o outro à morte. Por conta disso, é obrigada a viver toda coberta, o que
impossibilita seu contato corporal com o outro.
Na 10a sessão, na qual trabalhamos a região peitoral, Izabel solicitou a mudança para a
personagem Jean Grey, que é uma médica e tem como poder mutante controlar e ler a mente.
A escolha pela Vampira mostra Izabel em sua primeira fase no processo terapêutico: evidencia
a dificuldade de se relacionar com o outro, numa tentativa de se defender contra a invasão,
característica freqüentemente observada em crianças vítimas de violência. A escolha pela Jean
Grey representa Izabel em sua segunda fase do processo psicoterapêutico, no qual desenvolveu a
capacidade para cuidar de si e para se conectar com seu mundo interno sem se perder.

Conclusão

Embora as crianças atendidas tivessem histórias de violência muito sofridas, o que buscávamos
era encontrar e ativar a outra polaridade: os recursos por debaixo de todo o sofrimento.
Foi por meio da possibilidade de contato positivo com o próprio corpo, com o corpo do
terapeuta e do colega, que aqueles que antes se relacionavam batendo e xingando uns aos outros,
desrespeitando as regras do grupo, desvalorizando a si mesmos, conquistaram auto-confiança,

64
Jung & Corpo

uma melhor auto-estima, uma maior capacidade de socialização e auto-controle e uma melhora
na percepção corporal.
Nesse sentido, a proposta de trabalho mostrou-se eficiente para colaborar com o
desenvolvimento emocional das crianças/adolescentes vítimas de violência atendidos.
Consideramos importante observar a transformação no modo de essas crianças se relacionarem
com elas mesmas, com seus corpos e com os colegas, ressaltando o efeito preventivo que esse
trabalho possibilita: colabora para que o ciclo de violência se rompa e para que essas
crianças/adolescentes não a perpetuem no futuro.

Referências Bibliográficas
Amazarray, Mayte R; Koller, Silvia H. Alguns aspectos observados no desenvolvimento de
crianças vítimas de abuso sexual. In: Psicologia, Reflexão e Crítica, v.11, n. 3, 1998. Acessado
em: <http://www.scielo.br>, 15/04/2008.
Davies, Miranda. A few Thoughts about the mind, the brain and a child with early deprivation.
In: The Journal of Analitycal Psychology. v. 47, 2002, p. 421-435.
Levine, Peter A. O Despertar do Tigre: Curando o Trauma. 3 ed. São Paulo: Summus, 1999.
Sauaia, Neusa M. Lopes. Psicoterapia de Orientação Junguiana com Foco Corporal para Grupos de
Crianças Vítimas de Violência: Promovendo Habilidades da Resiliência. São Paulo, 2003. 208p.
Dissertação (Mestrado em Psicologia Clínica) - aculdade de Psicologia, Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo.
Silva, Juliana G. A Dinâmica Psíquica da Criança Vítima de Abuso Sexual Intrafamiliar: uma Visão da
Psicologia Analítica. São Paulo, 2006. 92p. Trabalho de Conclusão de Curso - Faculdade de
Psicologia, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Spaccarelli, S.; Kim, S. Resilience criteria and factors associated with resilience in sexually
abused girls. In: Child Abuse & Neglect, v. 19, n.9, p.1171-1182, 1995.
Teicher, Martins H. Feridas que Não Cicatrizam: A Neurobiologia do Abuso Infantil. In:
Scientific American Brasil, ano 1, n.1, 2002, p. 83-89.

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Jung & Corpo

O PROCESSO CRIATIVO E A CURA


Paulo Toledo Machado Filho1

Os mitos cosmogônicos falam sobre a passagem do não-manifesto para a manifestação. São


narrativas que explicam os percursos através dos quais se realizou a transformação do Caos em
Cosmos, ou do informe na condição primordial para a forma ou as formas originais. Eles são
construídos e compostos intuitivamente através de imagens, tratando-se de elaborações criativas
que explicam analogicamente a origem do Universo. Ou de como, do Universo, elaborou-se
criativamente a vida.
Encontramos nos mitos cosmogônicos referências temáticas acerca dos elementos: a Água,
surgindo ora como Águas de cima, fonte fertilizadora da Terra, ora como Oceano primordial, de
onde veio a germinal manifestação; a Terra, mãe criadora, Senhora da vida e da morte, que
também nutre seus filhos, e que permite que de seu originário amorfismo ocorra toda realização,
como o lótus, flor primeva nascida do lodo e que, placidamente, acolheu divindades; o princípio
ígneo, o Fogo, que é gerado enquanto Luz nas profundezas mais recônditas do Universo infinito,
princípio que se projeta e conserva-se simbolicamente no interior das sementes, das amêndoas,
dos ossos ou do ovo, e que consagra, através da transmutação da semente em árvore, a
hierosgamia entre o Céu e a Terra; e ainda o Ar, que enquanto sopro, insufla o espírito em todas
as realizações. Encontramos nos referidos temas a vida vivificada a partir de todos os elementos
que guardam em latência a pulsão criativa original.
Mais adiante, juntam-se às cosmogonias as teogonias, e ambas, enquanto intuições criativas
e imaginativas do ser humano, ajudam-no, através do mito, a transcender a sua incapacidade de
expressar o indizível ou o inexplicável. E se o expressa, assim o faz criativamente. Como nas
imagens rupestres de Lascaux, talvez os nossos mais antigos registros gráficos. Ou como nas
representações sobre o comportamento coletivo do homem, inscritas nas paredes de Adaura: sete
personagens, mascarados e nus, movimentando-se (dançando?) em círculo em torno de dois
1
Psiquiatra e Psicoterapeuta Junguiano, Mestre em Ciências Sociais pela USP. Professor do Curso Jung e Corpo –
Formação em Psicologia Analítica e Abordagem Corporal – Instituto Sedes Sapientiae. E-mail:
ptmachadof@uol.com.br

67
Jung & Corpo

outros personagens centrais, que se contorcem, soltando o corpo no solo. Circulavam da direita
para a esquerda, como giram os astros regentes do tempo, o Sol e a Lua. Era uma dança que
reproduzia o movimento do Universo e configurava em sua forma circular a noção da totalidade.
Estas manifestações artísticas primordiais, o desenho e a dança, expressavam o que ainda não se
conseguia fazer através das palavras: a relação com o divino e a origem do Universo. A arte,
portanto, certamente proveio do sagrado; era através da arte que se explicavam as divindades. Ou
estas se explicavam.
Na verdade, observando as inscrições rupestres, que foram os primeiros impulsos criativos
do ser humano a serem registrados, constatamos que aquele homem arcaico era um ser unitário,
que vivia num estado de participação mística e cuja visão de mundo não diferenciava o sagrado do
profano. Naquele momento, o processo criativo ligava-se diretamente aos arquétipos, que ainda
não residiam no inconsciente. Se era uma forma de comunicação do transcendente, esta realidade
transcendente era a própria experiência que então vivia o homem. Quando este dançava em
círculo, era como se os deuses também dançassem através dele: pelo estímulo do movimento, do
ritmo orientado e de uma peculiar disponibilidade, estabelecia-se um trânsito entre o céu e a
terra, quando então o homem (em transe/ trânsito sagrado) era tomado pelos deuses e, neste
momento, a arte e o sagrado formavam uma coisa só.
A possibilidade de existirem desarmonias residiria na dissociação daquela experiência de
comunhão; seria então a separação entre o homem e os deuses. Nesta circunstância, os deuses
deixariam de contemplar os seres humanos com caça e frutos, e adviria a fome, como também
poderiam ocorrer longos períodos de estiagem ou enchentes, calamidades naturais, ataques de
feras e outras catástrofes. Este distanciamento seria a razão, conforme se acreditava, que também
levava o homem daquela época a adoecer2, condição esta que para ele se traduzia igualmente em
fragilização ou perda da alma. Quando esta situação se configurava, exigia-se uma “repactuação”
com as divindades, o que era feito através de procedimentos rituais. Os ritos, ao repetir as
cosmogonias e recolocar o homem em contato com as poderosas forças criativas originais3, tinham
como função auxiliar a recuperar o estado de harmonia cósmica perdida e a restaurar a
comunicação com os deuses. Um exemplo dessa condição eram os rituais de cura, onde as
imagens primordiais ou a força dos arquétipos eram desse modo evocadas, pretendendo-se assim
que se restabelecesse a unidade com o mundo divino.
Mas quem foram os primeiros mediadores entre o Céu e a Terra, que conduziam os rituais
e representavam os homens na comunicação com os deuses? Muito possivelmente foram aqueles
que Mircea Eliade (1951) chamou de técnicos do êxtase, os xamãs, que provavelmente teriam
sido também os primeiros terapeutas. Ou, considerando-se a condição unitária do homem que
assinalamos acima, onde as dimensões do sagrado e do profano não eram separadas e as pulsões

2
Estudo interessante a respeito encontramos em “Efeito físico no indivíduo da idéia de morte sugerida pela
coletividade”, in Mauss, Marcel (1950), Sociologia e Antropologia, São Paulo, EPU/EDUSP, 1974.
3
Remeto à minha dissertação de mestrado, Gestos de Cura e seu Simbolismo (1994), para um maior aprofundamento.

68
Jung & Corpo

criativas e espirituais se amalgamavam, podemos certamente afirmar que os xamãs foram também
os primeiros seres humanos a utilizar a arte como recurso terapêutico.
Efetivamente, sabemos que em todo o mundo e durante muito tempo, conforme ampla
documentação existente, o mais antigo procedimento terapêutico de que se tem conhecimento foi
a evocação das referidas forças primordiais através do ritual e suas múltiplas expressões criativas;
estabelecia-se a relação ou ligação com as forças sagradas através da música, do ritmo evocado
pelos instrumentos musicais, da dança, do desenho, da pintura, da modelagem em argila, da
escultura em pedras ou da construção de mandalas. Conhecia-se então o efeito curativo da arte,
que não se distinguia do sagrado, e a conexão com a vida era refeita ativando-se os arquétipos,
estruturas organizadoras da vida psíquica. Os outros procedimentos terapêuticos, como o uso
clínico das ervas medicinais, os banhos purificadores, o incensamento, as massagens e os toques,
eram, de algum modo, dependentes dos primeiros procedimentos; o processo completava-se com
o repouso e os sonhos, que também eram interpretados pelos xamãs ou pelos terapeutas-
sacerdotes, como aconteceu mais tarde em Epidauro, o templo de Asclépio.
Mas o que caracterizava a personalidade daqueles personagens que estamos considerando
os primeiros terapeutas a terem existido? Quais eram seus atributos e de que modo o seu
procedimento e a sua arte eram curativos?
O xamanismo é uma prática religiosa recorrente, encontrada em várias partes do mundo e
em todas as épocas (Eliade, 1951, Lewis, 1971). Não se trata de uma religião em si, mas de um
comportamento pleno de religiosidade e que traduz a necessidade prática de uma determinada
comunidade ou clã estabelecer relações com a dimensão do sagrado. O xamã, que em alguns
lugares podia também ser uma mulher, possuía características especiais que o distinguia das outras
pessoas. Em um determinado momento de sua vida, ele passava por uma grande crise, que
produzia uma ruptura na continuidade de sua existência comum. Esta crise podia caracterizar-se
por uma doença (doença iniciática), por um sonho ou pela percepção de imagens interiores
significativas ou ainda por uma revelação, quando então lhe era transmitida (às vezes por um canal
divino ou espiritual) a sua vocação. Esta experiência provocava a sua separação do restante do
grupo, o que fazia com que inclusive fosse residir afastado da comunidade e a partir de então a sua
proximidade passava a ser paradoxalmente desejada ou temida. Entre os seus, encarnava a
alteridade e tornava-se um intermediário entre os vivos, os mortos e os deuses, traduzindo a todos
o significado dos acontecimentos e da própria existência. Esta sua condição especial o tornava
encarregado de comandar os rituais e dirigir as práticas necessárias para estabelecer ou re-
estabelecer o equilíbrio da vida. Nestas referidas práticas rituais, ele era o principal protagonista:
através de um estado especial de consciência, o xamã era conduzido (porque não era o seu ego que
comandava o processo) ao plano cósmico das divindades ou dos antepassados, processo referido

69
Jung & Corpo

como extático (relacionado com o êxtase)4. Nesta condição, ele tentava encontrar as respostas que
na condição de consciência comum ninguém sabia dar.
Retornando da viagem extática, o xamã deveria relatar a sua vivência a todos que o
aguardavam. Este era um momento crucial, em que a totalidade do vocabulário de que dispunha
não era suficiente para descrever a transcendentalidade da sua experiência. Ele utilizava-se então
de todos os recursos possíveis para fazer-se compreender pelos outros: criava uma coreografia
(coreografia sagrada), que era dançada, apoiada por gestos, mímicas e sons, às vezes por
instrumentos musicais que já utilizara anteriormente para entrar em êxtase e por todos os meios
corporais de que dispunha. Acredita-se que foi de seu esforço criativo que se desenvolveram as
formas comunicativas primordiais: as palavras de força (os mantras), que estão na origem da
linguagem, os gestos sagrados (os mudras), a coreografia das primeiras danças, os primeiros
desenhos. O xamã viajava no meio dos arquétipos.
Observamos acima que, no caso dos ritos de cura, a sua condição peculiar e os recursos
determinados por sua vocação permitiam ao xamã intermediar e conduzir as forças de cura
(através da evocação do mito) nos procedimentos rituais. Estas forças eram “plantadas” como
sementes, que germinavam o seu poder curativo orientadas pelas imagens (arquétipos) evocadas e,
numa visão antropológica, ressignificando a vida do paciente. A vida ressignificada seria então a
recuperação da sua capacidade (do paciente) de criar imagens e reorganizar a sua vida. Numa
outra perspectiva, que remete ao psicológico, a cura era também dependente de uma expansão do
campo de consciência, na medida em que o xamã mediava a aproximação dos diferentes planos
cósmicos (divino e humano). Mas qualquer que seja a tentativa de se interpretar a magnitude do
referido processo, verifica-se a participação de nosso protagonista orientada por sua intuição e
direcionando o seu trabalho por um extraordinário empenho criativo.
Perguntamos agora se é possível transpor as elucubrações acima, referentes ao
desenvolvimento de uma qualidade especial de terapeuta, que caracteriza o técnico arcaico do
êxtase, assim como sobre o efeito curativo de seus procedimentos, a alguém no mundo atual.
Poderia ser este o arte-terapeuta? Em caso positivo, quais deveriam ser, então, os atributos da
personalidade deste e como o seu trabalho pode produzir resultados ou efeitos terapêuticos?
Evidentemente que não é muito fácil realizar a transposição das qualidades assinaladas para
um terapeuta de nossa época. Vejamos: relacionando o xamã com a tipologia psicológica de Jung,
ele se aproximaria principalmente do tipo intuitivo-introvertido. Encontramos que, neste tipo, as
imagens psíquicas produzidas tendem a originar-se a priori, das disposições psicogenéticas
existentes na mente inconsciente. Esta característica pode constituir-se em uma qualidade
positiva, segundo Jung (1921), na medida em que se torna possível, através de um determinado
canal, dar visibilidade às referidas imagens. Mas este não é um processo simples no momento em

4
Este processo é distinguido, por muitos autores, da possessão, como no fenômeno da mediunidade, em que o
indivíduo não sai de seu corpo, como no êxtase, mas é incorporado ou possuído por um espírito (ou um complexo
estranho ao eu).

70
Jung & Corpo

que vivemos, caracterizado principalmente pela exterioridade e extroversão e pela tendência


racionalista (função pensamento) hipertrofiada afirmando o coletivo. As imagens, neste contexto,
são produzidas e ofertadas à exaustão pela mídia eletrônica e por todos os outros canais
comunicativos que colhem passivamente o indivíduo, chegando de fora para dentro (já prontas,
vide mais adiante), o que desvitaliza a capacidade de as pessoas produzi-las internamente e
elaborá-las. Em palavras mais simples, é difícil para as pessoas, hoje em dia, entrar em contato
com os seus próprios botões. A primeira tarefa de um xamã moderno, portanto, é consigo
mesmo: conseguir afirmar-se em sua introspecção e então auxiliar as pessoas a acreditar em seus
próprios sonhos. E tentar transformar os devaneios em produção criativa.
Outra dificuldade importante é o contato com a vocação: o aprendizado do xamã se faz de
dentro para fora (é iniciático), enquanto que, contemporaneamente, o ensino acadêmico
geralmente constitui-se em um sistema expositivo, onde o conhecimento é orientado “de fora para
dentro”. O nosso contemporâneo arte-terapeuta, então, como o velho xamã, necessita entrar em
contato com uma qualidade especial de sua própria personalidade, que lhe possa despertar a
motivação necessária para a sua preparação. Numa época caracterizada por pessoas ou profissionais
especialistas, o arte-terapeuta, na direção contrária desta tendência, e já na definição de como se
intitula, integra pelo menos duas áreas de conhecimento, que implicam em duas possibilidades de
atuação: o campo das artes e o procedimento terapêutico. Como o xamã, artista e terapeuta, ele
também deve saber articular a objetividade com a subjetividade, às vezes até como um pontífice (o
que faz a ponte), colocando ambas em contato. Através de seu instrumental, portanto, poderá
permitir ao paciente tornar-se objetiva, através da arte, a profundidade de sua psique ou então
auxiliá-lo a fazer emergir a subjetividade, que pode se exteriorizar até a partir de seu próprio
corpo. Como o próprio Jung refere ter sugerido a muitos de seus pacientes. Estas qualidades
certamente não pertencem exclusivamente ao especialista, nem ao médico ou psicólogo, nem ao
artista ou educador, embora qualquer um deles possa desenvolvê-las.

O lugar do arte-terapeuta

O médico tende a relacionar-se com pressupostos objetivos, por legado do decreto


cartesiano. Coube-lhe então, pelo referido “decreto”, cuidar do corpo/objeto do paciente,
enquanto ao sacerdote reservaram-se os cuidados com o espírito/sujeito. A conseqüência foi a
compreensão cindida do ser humano, através de nossa civilização, sob a influência do pensamento
médico ou biológico (hoje, como um verdadeiro “biologismo”). O médico passou então a fazer
diagnósticos das doenças do corpo e a instituir sua melhor terapêutica. Quando este e o sacerdote
deixaram de trabalhar juntos, os médicos aproximaram-se um pouco mais do espírito; mas como
ainda continuavam a relacionar-se melhor com a objetividade científica, o espírito que os médicos
encontraram no corpo foi inicialmente compreendido como um epifenômeno da matéria. Foi

71
Jung & Corpo

necessário que, no início do século vinte, Freud, Jung e outros psiquiatras reencontrassem no ser
humano a sua dimensão subjetiva, agora denominada psique, e assim postularam teorias que
permitiram a abordagem terapêutica desta dimensão negligenciada. Ocorre que a ciência médica
continuou um primado da objetividade, sendo que, ao longo do referido século, ao surgirem os
fundamentos biomoleculares e a neurociência, e apesar de as teorias que apontamos acima terem
se desenvolvido em suas bases teóricas e científicas, elas foram deslocadas para fora da área
médica, vindo a constituir-se nos alicerces da moderna psicologia clínica. Mas que, no entanto,
surgiu e estruturou-se sem a referência do corpo. Ainda não foi desta vez que o ser humano
deixou de ser percebido liberto da cisão cartesiana.
O psicólogo clínico, contudo, passou a fazer psicodiagnósticos e desenvolveram-se as
técnicas de psicoterapia; a subjetividade viu-se enriquecida pela compreensão da psique em suas
dimensões consciente e inconsciente, assim como a importância das imagens e do imaginário foi
parcialmente resgatada, mesmo diante de uma ciência iconoclasta. Através da compreensão do
valor dos sonhos na leitura do inconsciente, o simbolismo, principalmente em Jung, readquiriu
uma pequena parcela da importância que já havia possuído nas eras míticas.
É importante assinalarmos ainda que o desenvolvimento científico e da medicina no século
vinte, advindos do positivismo, consagraram a tendência racionalista-cognitivista, o que redundou
em uma espécie de “biologização” do conhecimento. Este fato, acrescido de uma significativa
desvitalização do pensamento humanista, fez com que etapas importantes da vida humana, como o
período pré-natal, a infância, a senilidade, assim como os momentos de “crise” através da
transmutação dos processos vitais, como a adolescência e a menopausa ou a andropausa, passassem
a ser “medicalizados”. Esta compreensão racional dos momentos cruciais da existência do homem
implicou em ações também racionalmente estruturadas, que, evidentemente, não deixam de ter o
seu lado positivo, mas que se sobrepuseram completamente à atuação simbólica dos ritos de
passagem. Até a mulher, sexo desfavorecido pela tendência patriarcal de nossa civilização, tornou-
se objeto do referido processo de “medicalização” que caracterizou este último século, conforme
se observa nas interferências clínicas que se faz no ciclo menstrual normal, no prolongamento dos
processos reprodutivos e sobre outros imperativos próprios do feminino. Enquanto isso, a
psicologia também se desenvolveu, mas ao olhar um pouco mais atentamente para a realidade
objetiva do mundo, a sua expansão muitas vezes implicou, por sua vez, num verdadeiro processo
de “psicologização” dos problemas cotidianos, e na relação com a área médica, a sua atuação tende
a orientar-se, através de metodologias redutivas, para a exploração cognitiva de nexos causais do
comportamento humano. Temos assim a ciência invadindo, interpretando e racionalizando as
diversas etapas da existência, os seus momentos significativos, a alteridade e até alguns aspectos da
vida corriqueira. A verdade científica, afirmando-se até dogmaticamente (como uma teologia),
ocupa o lugar da compreensão transcendente da realidade da vida e incorre na obstrução dos
canais sensíveis e intuitivos que ligavam os seres humanos ao conhecimento de si mesmos, da
natureza e do Universo, desenvolvendo-se, como conseqüência, uma carência de conexões de
sentido que somente o racionalismo da ciência não consegue preencher.

72
Jung & Corpo

Podemos, então, começar a olhar para o papel do arte-terapeuta e da arte-terapia no


mundo contemporâneo. Já tendo considerado as qualidades particulares e peculiares do
xamã/arte-terapeuta que, descobrindo sua vocação, passava a desenvolver a sensibilidade que lhe
permitia mediar as relações entre o sagrado e o profano e o contato com as restauradoras forças
primordiais, tomamos este como modelo ou quem sabe, e de certo modo pretensiosamente, o
arquétipo do moderno arte-terapeuta. Necessitando igualmente desenvolver a sua sensibilidade,
não importa que este seja inicialmente um artista, um (psico)terapeuta, um educador ou quem
quer que seja, mas que tenha a aptidão necessária para compreender e saber conduzir o trabalho
criativo e também perceber as possibilidades terapêuticas de sua atuação. E que possa preencher
os espaços vazios e insensíveis que a ciência racionalista e asséptica deixou em sua relação com a
humanidade, sabendo aproximar-se da criança e do ancião ou do homem e da mulher, em seus
momentos de crise, ou ainda de qualquer um deles quando deficiente ou adoecido (que para o
arte-terapeuta diferencia-se de “doente”) do corpo ou da alma.

Consideramos assim, com o que foi dito acima, que não é competência do arte-terapeuta a
realização de um diagnóstico ou psicodiagnóstico, dos quais encarregam-se o médico, os
profissionais paramédicos ou o psicólogo, embora possa até compreendê-los ou mesmo saber
como realizá-los; não é seu papel orientar procedimentos psicoterapêuticos, como o psicólogo,
através de suas escolas teóricas, embora possa conhecê-las e entender suas indicações, em
conformidade com suas diferentes bases interpretativas; não é a finalidade do seu trabalho instituir
procedimentos terapêuticos fundados no diagnóstico, embora possa acompanhar os referidos
procedimentos e até potencializá-los com o seu trabalho. O arte-terapeuta deve ou pode
relacionar-se com o ser humano no seu sentido mais amplo: conforme observamos acima, em
nossa opinião não é do “doente” que ele cuida, mas do Ser, inclusive em sua condição adoecida.
Apesar disso, não deverá excluir o conhecimento das patologias em sua formação, pois terá que se
relacionar com outros profissionais e necessitará também saber como atuar junto a seus clientes,
sabendo conduzir a melhor indicação conforme o que for apontado pela patologia existente. O
recurso a ser utilizado, nestes casos, obedecerá à melhor estratégia possível, considerando-se as
características do referido cliente e integrando-se ao procedimento dos outros profissionais
envolvidos, de modo que as forças curativas do próprio paciente possam ser mobilizadas e
potencializadas através do processo criativo.

73
Jung & Corpo

A Arte-Terapia e a Neurociência

Apesar das considerações feitas acima, em nenhuma hipótese negamos a importância das
novas conquistas da ciência junto aos processo de cura, quando orientadas em equilíbrio com as
expectativas éticas e humanitárias. Além das referências antropológicas e do campo da história da
religião acerca do efeito curativo da arte, vamos encontrar indicações importantes nas próprias
áreas médica e psicológica. A neurociência tem demonstrado, através de inúmeros estudos
sistemáticos, a importância da estimulação da atividade mental na manutenção da saúde física e
psíquica, no desenvolvimento e conservação da memória e na prevenção de transtornos
degenerativos do sistema nervoso. A estimulação adequada e orientada da atividade mental através
da música5, da contemplação estética e de qualquer produção criativa em si, inclusive através da
expressividade corporal ou da dança, permite ao paciente a utilização e integração de circuitos
neuronais que podem funcionar paralelamente ou como substitutivos àqueles presentes em áreas
que estariam possivelmente comprometidas; tem sido demonstrado também o efeito regulador
que os estímulos referidos produzem na atividade do sistema nervoso autônomo, estendendo os
benefícios da atividade criativa para o campo da psicossomática. A regulação autonômica através
de toques (calatonia, toques sutis) ou exercícios psicofísicos, como a yoga, o tai-chi, ou ainda
através de técnicas sugestivas (hipnose) ou do treinamento autógeno (Schultz), já foi demonstrada
empiricamente há mais tempo, e tem sido atualmente corroborada por outras pesquisas6, o que
nos permite observar que a integração de técnicas de abordagem corporal com a arte-terapia surge
também como uma outra e nova possibilidade, tratando-se de um importantíssimo e atual recurso
terapêutico. O recondicionamento psicofísico obtido através das técnicas referidas (assim como as
correspondentes a outras abordagens não referidas acima) pode encontrar na arte-terapia um
sentido de continuidade e apoio significativo para a canalização e expressão simbólica das emoções
provenientes do corpo, além da própria potencialização do processo criativo através das imagens
evocadas em relaxamento, constituindo-se, desse modo, num instrumento de considerável
importância relacionado com a integração mente e corpo7.
Considerando-se ainda os conhecimentos advindos da neurociência, sabe-se que, do ponto
de vista funcional, os dois hemisférios cerebrais não são simétricos, existindo um hemisfério
dominante (princípio de dominância cerebral). Os estudos sobre a linguagem e o melhor
conhecimento das áreas de associação, localizadas na córtex cerebral, foram importantes para o
desenvolvimento desta teoria. É considerado dominante o hemisfério esquerdo, aquele através do
qual se dá o acesso à consciência (Eccles, 1973). Observou-se que este hemisfério é verbal, sendo
detalhista, principalmente em sua capacidade de fazer descrições lingüísticas, caracterizando-se
5
Verificar o trabalho de Sacks (1971), Alucinações musicais.
6
Ver referências de Marino Jr. (2005), em A Religião do Cérebro, e de Danucalov & Simões (2006), em
Neurofisiologia da Meditação.
7
Verificar também os comentários de Pethö (1974, p. 4) acerca da importância do relaxamento na relação com a
medicina geral e com diversas outras áreas.

74
Jung & Corpo

ainda por ser analítico e linear-seqüencial e saber realizar operações computáveis (soma,
subtração, multiplicação); é também ideativo, conceptual e cognitivo. O hemisfério secundário (o
direito) é deficiente nestes aspectos, mas observa-se que ele se sobressai no sentido modelar e
pictórico, no sentido musical e nas habilidades espaciais e geométricas, na elaboração de
similaridades visuais e em sua capacidade de estabelecer relações simbólicas. É holístico, sintético
e funciona, conforme Marino Jr. (1989), semelhantemente a um caleidoscópio. Ambos os
hemisférios, no entanto, trabalham conjuntamente, sendo que a relação entre ambos é
estabelecida pelo corpo caloso.
Direcionando o nosso olhar para a área da educação, podemos afirmar que as teorias
pedagógicas, em nossa cultura, tendem a enfatizar, a partir da idade em que estas se desenvolvem,
as referências cognitivas e ideativo-conceptuais, em detrimento das referências simbólicas
anteriormente estabelecidas, criando-se uma certa unilateralidade e desequilíbrio na orientação
dada ao desenvolvimento da consciência. Esta condição é claramente evidenciada observando-se o
peso e a pouca importância das disciplinas relacionadas com as artes no currículo da escola
fundamental. Repetimos que existe uma iconoclastia, às vezes oculta, às vezes bem evidenciada,
permeando as teorias de conhecimento da civilização ocidental contemporânea, e que também
influencia a educação. A conseqüência maior desta unilateralidade é o colapso criativo, fundado
em nossa incapacidade de perceber o mundo através de imagens, por um lado, e a nossa inegável
capacidade de formarmos especialistas, por outro lado. Esta condição traz ainda outras
conseqüências: a compreensão sempre parcial da realidade, que se faz a partir de alguns de seus
aspectos, e a nossa deficiência em estabelecer percepções holísticas. Este desequilíbrio existente
está na raiz da crise ética vivida por nossa civilização, que em muitas situações, pela falta de uma
perspectiva mais ampla de consciência, é incapaz de avaliar devidamente as conseqüências,
positivas ou negativas, que um novo conhecimento pode gerar. Apologizando Morin (1982), fica
faltando o conhecimento do conhecimento.
A arte-terapia exerce, neste sentido, um papel complementar e estabilizador, na medida
em que, através dos recursos expressivos e criativos que ela utiliza, fomenta tanto o
desenvolvimento cognitivo como o resgate da capacidade de compreensão simbólica, estimulando
um maior equilíbrio na relação existente entre as funções presentes em ambos os hemisférios
cerebrais. E funcionando também, deste modo, como importante instrumento pedagógico. Em
fases mais maduras da vida e por motivos semelhantes, reafirmamos a sua importância na
profilaxia ou coadjuvando o tratamento de sintomas das doenças do sistema nervoso.
Concluímos, portanto, que através de uma disposição psíquica sensível e especial,
evocando o arquétipo do velho xamã, o arte-terapeuta ocupa uma posição especial no momento
complexo que estamos vivendo. Diferenciando-se das outras profissões, que valorizam cada vez
mais as especialidades, a arte-terapia integra áreas de conhecimento e, enfatizando o criativo,
preenche as lacunas referentes ao sensível e humano junto às ações de cura física ou psíquica, de
promoção da saúde e do ser, da educação, fomentando ainda o desenvolvimento da consciência
ética junto às relações humanas.

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Jung & Corpo

Referências Bibliográficas

Danucalov, Marcello A. D. & Simões, Roberto S. (2006). Neurofisiologia da Meditação. São Paulo:
Phorte, 2006.
Eccles, John C. (1973). O Conhecimento do Cérebro. São Paulo: Atheneu/EDUSP, 1979.
Eliade, Mircea (1951). El chamanismo y las Técnicas Arcaicas del Éxtasis. México: Fondo de Cultura
Económica, 1986.
Jung, Carl G. (1921). Tipos Psicológicos. Petrópolis: Vozes, 1991.
Lewis, Ioan M. (1971). Êxtase Religioso. São Paulo: Perspectiva, s/data.
Machado Filho, Paulo T. (1994). Gestos de Cura e seu Simbolismo (Dissertação de Mestrado). São
Paulo, FFLCH – USP, 1994.
Marino Jr., Raul (1989). O Cérebro Japonês. São Paulo: Aliança Cultural Brasil Japão/ Massao
Ohno, 1989.
__________ (2005). A Religião do Cérebro. São Paulo: Ed. Gente, 2005.
Mauss, Marcel (1950). “Efeito físico no indivíduo da idéia de morte sugerida pela coletividade”, in
Sociologia e Antropologia, V. II. São Paulo: E.P.U./EDUSP, 1974.
Morin, Edgar (1982). Ciência com Consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996.
Pethö, Sándor (1974). Técnicas de Relaxamento. São Paulo: Vetor, 1974.
Sacks, Oliver (1971). Alucinações Musicais. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

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Jung & Corpo

IMAGENS ONÍRICAS DA
POPULAÇÃO DE RUA

Juliana Alves Cavalcante1

Introdução

Todas as noites sonhamos. Podemos não lembrar do local, das pessoas, se é dia ou noite, se
conhecemos ou não as pessoas envolvidas, como acaba o sonho... Acordamos com a sensação de
que alguma coisa aconteceu, algo mudou. No decorrer do dia, conversando com as pessoas ou
fazendo alguma atividade, o sonho nos vem à mente e a sensação retorna de maneira viva e
começamos a pensar e até questionar por que será que sonhamos.
Existem muitas técnicas para se lembrar dos sonhos e até mesmo para analisá-los. Utilizando
o método da associação livre, Freud foi o pioneiro a analisar os processos oníricos. Segundo seus
estudos, os sonhos servem como uma descarga de tensão psíquica mediante a realização de desejos
e como protetores do sono. Jung, além de concordar com Freud, amplia o trabalho de análise dos
sonhos demonstrando os efeitos sobre a vida mental consciente que refletem em alterações de
estados da alma.
Em Aspectos gerais da psicologia do sonho, JUNG (1928) relata inicialmente a qualidade
duvidosa ao reproduzirmos um sonho: são de natureza fantástica, porém apresentam significados
próprios. Algumas questões contribuíram para a formulação de uma psicologia onírica junguiana: “a
primeira questão com que temos de nos ocupar é a de saber o que nos autoriza a atribuir ao sonho
uma outra significação fragmentária pouco satisfatória, sugerida pelo conteúdo manifesto do
sonho”. Este sentido oculto que se apresenta pode ser observado também nos contos de fadas ou
em outras fantasias do estado de vigília, que apresentam uma significação psicológica mais

1
Psicóloga formada pela UNESP - Assis e Psicoterapeuta Junguiana. Participa do grupo de estudo de Sonhos
realizado pela Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica e trabalha com a população de rua há quatro anos. E-
mail: jucavalcante@hotmail.com

77
Jung & Corpo

profunda. Para esta investigação mais profunda surge a segunda questão colocada por Jung, que se
refere ao processo técnico: deve-se “tratar os sonhos como qualquer outro produto psíquico” e estes
podem ser encarados sob o ponto de vista da causalidade e da finalidade investigando inicialmente
as experiências precedentes.
Podemos observar que, em sua análise, Freud parte de um desejo, de uma aspiração
recalcada expressa no sonho, tendendo a buscar a fixação do significado dos símbolos, buscando
uma espécie de causa do sonho. Em Jung, as imagens oníricas possuem o seu valor próprio e suas
variações são a expressão de uma situação psicológica que se modificou. Por isso, estas imagens
podem se apresentar em parábolas ou em linguagens simbólicas, o que as tornam importantes em si
mesmas. Observar processos oníricos sob este prisma nos faz pensar na sua finalidade e não na sua
causa. Seria como perguntar o para quê e não o por quê deste ou daquele sonho.
Estudar, conhecer melhor o sonho, significa entender processos de individuação através da
possibilidade de alteração dos complexos, ou seja, compreender questões que estão em parte
inconscientes e que possuem correlação com o estado momentâneo da consciência. A técnica da
imaginação ativa2, pintura e modelagem de imagens oriundas do inconsciente, o uso da areia para
construir cenas com figuras no tabuleiro (Sand-Play) e o psicodrama são algumas das técnicas de
trabalho com os sonhos.
O sonho é uma manifestação do Self que coopera com a auto-regulação, isto é, com o
equilíbrio dessa totalidade. Segundo Gallbach (2000), esta compensação “é exercida através de
elementos que faltam à consciência, que a completam ou contrastam com ela”. A autora apresenta uma
proposta de trabalho em grupo considerando o contexto intrínseco do sonho sem relacioná-lo a
algo externo. A primeira parte do trabalho, denominado “processamento do sonho, diz respeito a uma
forma mais analítica e objetiva de observar o sonho e entrar em contato com seus significados. Ele é constituído
por duas etapas: observação da estrutura dramática e elaboração dos complexos (...) O segundo trabalho,
aproximação do sonho via Imaginação Corpo-Ativa, insere-se na investigação de formas imaginativas de
trabalho com sonhos baseados no conceito de imaginação ativa criado por Jung”. Este segundo trabalho
surge como uma maneira de integração do corpo como fonte de conhecimento da psique, visto
que afecções corporais parecem constituir a dramatização de conflitos psíquicos. Enquanto
expressão simbólica da vida, o sonho tem implicações profundas e elevadas, para o físico e para o
espiritual, para o corpo e para a mente.
Ainda nos trabalhos em grupo, Hall (1983) relata que é comum entre analistas junguianos o
trabalho da análise individual paralelo ao grupal, pois é no coletivo que se constela o “senso
arquetípico de uma sociedade ou família; por conseguinte, a aceitação por um grupo promove freqüentemente
um senso maior de auto-aceitação no paciente”. Os significados arquetípicos formam a consciência
coletiva que vai moldando uma cultura, um modo de funcionamento. Desta maneira, conhecer

2 Técnica elaborada por Jung onde o conteúdo inconsciente é convidado a vir à tona, ao mesmo tempo em que o
ego mantém seu papel vígil de mediador da pressão conflitante dos opostos constelados na psique.
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Jung & Corpo

aspectos do inconsciente coletivo de grupos que vivem experiências semelhantes pode dar pistas
de modos de funcionamento que, uma vez conscientizados, podem resultar em maior ganho de
consciência.
Com a finalidade de aprofundar os meus conhecimentos sobre os processos oníricos, em
especial os processos oníricos de um grupo, optei por investigar pessoas que formam um grupo
particular constituído por moradores de rua. Este grupo é essencialmente masculino, devido ao
fato de existir um número maior de homens nas ruas de São Paulo, em especial na região central.
São pessoas em situação de rua que passaram por vivências semelhantes que buscam a não
dependência da rede assistencial oferecida pelo poder público através de trabalhos temporários
(“bicos”). Porém, o uso abusivo de álcool ou drogas os impede de estabelecer vínculos
permanentes e duradouros com o trabalho, com os familiares e com as instituições que os
atendem. Portanto, estão sempre recomeçando e rompendo com as oportunidades de mudança e
crescimento que surgem.

Justificativa

O interesse em pesquisar os sonhos surgiu no momento em que comecei a trabalhar meus


próprios sonhos e a descobrir o quanto isso me deixava cada vez mais curiosa e com vontade de me
observar, de me conhecer um pouco mais. Através do próprio corpo (massageando meus pés ao
dormir) pude acessar com mais clareza meus sonhos, e assim foi crescendo o meu interesse.
No grupo de especialização de Jung e Corpo do Instituto Sedes Sapientiae, tive a
oportunidade de vivenciar os sonhos através do corpo e cada processo onírico compartilhado no
grupo era acolhido e ampliado, dando um novo significado tanto para o sonhador quanto para o
grupo. Quando eu saía da aula e ia trabalhar, ficava pensando comigo mesma, o que será que estas
pessoas que passam pela experiência de rua sonham? Será que elas se lembram dos sonhos? Nas
reuniões com a população de rua eu ia percebendo uma certa vontade de que houvesse um espaço
para que as pessoas pudessem falar dos seus sentimentos, dos seus sonhos, das suas vontades.
Neste momento é que surgiu um pequeno grupo de sonhos. Foi um grupo ainda envergonhado,
mas que mobilizou a curiosidade de alguns moradores do Projeto e que assim possibilitou nossos
encontros. Sabia também que não seria algo muito fácil, pois são pessoas frágeis e que estão muito
preocupadas com a situação imediata de conseguir algo para comer ou para se vestir, mas a
possibilidade de estar com eles para conversar sobre temas diferentes dos propostos até então me
deixava entusiasmada.
Entrar em contato com nossos sonhos é entrar em contato com as camadas mais profundas
do nosso ser. É vislumbrar possibilidades de transformação e deixar a nossa alma trilhar o caminho
da individuação.

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Jung & Corpo

Objetivos

O foco principal de se estudar os sonhos é entrar em contato com os símbolos que


emergem do inconsciente e descobrir possibilidades de transformação. O objetivo do trabalho era
verificar a possibilidade de se reconhecer arquétipos semelhantes constelados que demonstrassem
aspectos emocionais, subjetivos, afetivos e profundos que fossem indicativos de transformações
rumo ao processo de individuação do grupo.
O objetivo principal foi propor um encontro em grupo onde o assunto seria os sonhos. As
pessoas poderiam falar dos seus sonhos, compartilhar com os demais e discutir sobre eles. A
expectativa do pesquisador era encontrar um símbolo indicativo de um arquétipo que pudesse
expressar este grupo e abrir um espaço onde o grupo pudesse manifestar aspectos pessoais e
subjetivos, melhorando e estreitando as relações.

Caracterização da População

A população que passou pela experiência de rua recebe variadas denominações: população
de rua, população em situação de rua, trecheiro, andarilho... Este grupo apresenta perfis
diferenciados e por este motivo os órgãos públicos encontram dificuldades em apresentar políticas
públicas eficazes que atendam a esta população. Recentemente a FIPE3 elaborou e apresentou uma
pesquisa que tenta demonstrar quem são estas pessoas, o que elas fazem e as perspectivas de
futuro.
No atendimento a esta população existem os Programas da Secretaria da Assistência e
Desenvolvimento Social (SMADS), que fazem um atendimento das necessidades básicas deste
grupo. Os Albergues acolhem, oferecem banho e alimentação, além do atendimento social. As
pessoas que se encontram nestes albergues, que possuem alguma alternativa de renda e que não
apresentem problemas com álcool e drogas são encaminhadas para Moradias Provisórias, que
funcionam como uma espécie de república terapêutica e que trabalham a autonomia e a
independência da rede sócio-assistencial.
Dentro de um dos Projetos de Moradia Provisória conveniados com a Prefeitura
Municipal de São Paulo é que aconteceu este pequeno grupo de sonhos. Os grupos aconteciam em
um Centro Comunitário, que é um local de encontro dos moradores do Projeto e um espaço
freqüentado também pelas pessoas que estão dormindo embaixo dos viadutos (nas malocas).

3
A última pesquisa realizada pela FIPE foi feita entre Dezembro de 2005 e Janeiro de 2006 e apresentada
recentemente às entidades que trabalham com esta população.
80
Jung & Corpo

Muitas pessoas que vivenciam a experiência de rua sofreram rompimentos familiares


por motivos de uso abusivo de álcool ou drogas ou por migrarem para São Paulo em busca de
melhores condições. Desenvolvem algumas características para sobreviverem nas ruas: omissão de
sua subjetividade, de sua história, dificuldade em estabelecer um vínculo duradouro, demonstram
fragilidade para assumir responsabilidades e estão sempre em busca do imediato, de resolver uma
situação que faz parte de uma necessidade humana básica. Dentro de todo este contexto a mãe
desempenha um papel importante. Ela aparece nos sonhos e é tida como uma santa. Ela fica no
altar, no lugar do sagrado, intocável, e é o ser que ampara, que perdoa e que nunca os abandonará.

Caracterização simbólica da defesa psicopática

Uma leitura simbólica corporal também demonstra algumas características: a associação


entre o corpo do habitante de rua e os materiais recicláveis desdobra-se em uma relação material e
simbólica de continuidade. São mais visíveis os papelões, os jornais que servem como uma espécie
de proteção social e de conforto mínimo contra o chão de concreto causando uma indistinção
corporal entre o corpo e estas substâncias. Os pés inchados, doloridos e doentes que não se
cansam de andar e que não criam raízes; a ausência de banho, que cria uma casca protetora; uma
casa interna, que ao mesmo tempo é frágil e desprotegida; as roupas são uma extensão da pele,
que fica ríspida e grossa e sacolinhas que demonstram uma extensão do corpo. Utilizam-se
também da mentira como forma de defesa e uma postura de não aceitação e contestação da
realidade. A dificuldade em estabelecer vínculos é expressa através da relação com a instituição e
com os profissionais que nelas atuam: uma mãe má que pune e manda embora caso faça algo que
desagrade.
Partindo de um olhar para esta população que vive à margem da sociedade, em condições
precárias de moradia, educação, cultura, trabalho, e que também apresentam grande dependência
química e péssimas condições de saúde, podemos nos utilizar da noção trazida por Byington, em
seu livro Psicopatologia Simbólica Junguiana (2006), segundo a qual devemos entender a
psicopatologia “como uma variante do desenvolvimento simbólico-arquetípico normal (...) para
reformular conceitos básicos que misturaram normal e patológico”. E para entender como e
quando o desenvolvimento se torna patológico, recorre à formação da Sombra como um desvio no
caminho da formação da consciência.
Tudo na psique é símbolo. Através das funções coordenadas por arquétipos é que se
elaboram os símbolos que formam a identidade do Ego-Outro na consciência. Os quatro
arquétipos principais que participam do processo de elaboração simbólica são: matriarcal,
patriarcal, o da alteridade e o da totalidade. “A polaridade Ego-Outro pode ser fixada junto com os
símbolos e funções estruturantes e formar a Sombra. (...) para a Sombra, as virtudes residem no
valor dos símbolos estruturantes que abriga, e as limitações estão nas defesas que os fixam,
81
Jung & Corpo

deformam e os expressam inadequadamente, tornando-a sempre patológica e a sede do Mal”.


Podemos entender a Sombra, portanto, como a disfunção do desenvolvimento normal e a
consciência como realização potencial.
A disfunção então, passa a ser expressa por defesas que também são consideradas funções
estruturantes. Estas funções, normais e defensivas, são classificadas como fixação ou não, de
acordo com o contexto em que se encontram e que no caso da fixação, faz parte da Sombra e do
inconsciente reprimido. Ainda a Sombra pode se apresentar de maneira circunstancial e
cronificada, sendo que esta última apresenta uma resistência defensiva para a sua elaboração.
A gravidade das defesas, ainda segundo Byington (2006), podem ser classificadas em
quatro níveis: defesa neurótica, psicopática, borderline e psicótica. Neste trabalho, vamos definir a
defesa psicopática, que apresenta características muitas vezes presentes nas pessoas que
participaram do grupo. Portanto, a fixação que origina esta defesa está nos contextos de abandono,
abuso, permissividade exagerada e falta de limites. “O sofrimento e a culpa necessários para
confrontar a Sombra ficam cerceados, dificultando muito a elaboração da fixação”.

Metodologia

O método escolhido foi o discurso livre através do grupo. As pessoas poderiam contar
seus sonhos e os demais poderiam perguntar, comentar, relacionar ou associar partes dos
elementos do sonho com alguma vivência particular.
Através do trabalho em grupo é possível se conhecer e conhecer o outro, criar novos
vínculos e descobrir aspectos coletivos comuns que podem emergir do inconsciente, trazendo
vivências, conteúdos semelhantes que ajudem no processo de reflexão frente a situações do
cotidiano e claro, rumo ao processo de individuação.

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Jung & Corpo

Análise do Grupo de Sonhos com a População de Rua

Após a divulgação e convite para os moradores do Projeto de Moradia Provisória e demais


pessoas que freqüentam o Centro Comunitário, estabelecemos nossos encontros às quintas-feiras
no período noturno, com duração de aproximadamente uma hora e meia. As regras básicas eram:
ouvir sem julgamento o que o outro tem a dizer, esperar que uma pessoa conclua sua idéia,
estabelecer uma ética onde o que fosse exposto ficasse no grupo e sempre falar dos sonhos.
Feita esta combinação, no primeiro encontro surgiram os seguintes temas:

1) Relacionados ao ato de sonhar: o que significa sonhar; por que algumas pessoas não se
lembram dos sonhos, por que sonhamos com pessoas que não conhecemos ou que não existem mais
e até mesmo a possibilidade de sonhar com animais e jogar no bicho.
2) Em seguida foi levantada a lógica do sonho: você está em um lugar e de repente está em
outro, você está sonhando, acorda, volta a dormir e continua com o mesmo sonho ou até mesmo
sonhar o mesmo sonho que uma outra pessoa.
3) Sonhos repetitivos: por que sonhamos as mesmas coisas ou coisas que já foram vivenciadas?

Para responder a estas questões, o próprio grupo comentou:


• Sonhamos com estas coisas porque quando vamos dormir não estamos pensando em
nada;
• O nosso anjo da guarda nos auxilia nos nossos sonhos;
• Os sonhos têm dois significados: um é a realização de desejos e o outro é o que você
almeja futuramente.
• Os sonhos podem ser proféticos, podem dar algum aviso e podem ser de cura.
Uma questão que permeou todo o grupo foi a discussão sobre o que seria o pesadelo e se ele
também é uma espécie de sonho. Primeiro surgiram as sensações em relação ao pesadelo: “De vez
em quando parece que é real, ele é forte”. “É algo que sufoca e você não está esperando, você
tenta se livrar dele e não consegue”. Os momentos em que aparecem os pesadelos e o que fazer
para se livrar deles: “É mais freqüente quando você dorme de barriga para cima”. “Absorvemos
coisas do ambiente e por isso temos pesadelos”. “É só rezar antes de dormir para não ter
pesadelos”.
Neste primeiro contato do grupo com os sonhos foi feito um caminho de descoberta e uma
tentativa de decifrar o que de fato seria sonhar. A utilidade imediata do sonho está no jogo do
bicho, é sonhar com determinado animal e jogar... Segundo relatos, “dá até para ganhar uma

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Jung & Corpo

graninha”. Depois, a flexibilidade e o aspecto fantástico do sonho, os ambientes mudam


rapidamente e pode não ter uma lógica ou seqüência clara. Na tentativa de responder a estas
questões os integrantes do grupo recorrem a dois momentos: o da espiritualidade, da conexão
com uma força maior ou de algo que você não conseguiu realizar durante o dia e o faz ao dormir.
Sonhar, portanto, estaria ligado à vida cotidiana e à espiritualidade. Quando não se percebe esta
conexão, o pesadelo surge para que esta ligação seja retomada. Assim, o primeiro encontro
encerrou com a proposta de falarmos dos próprios sonhos.
No segundo encontro, o pesadelo permeou o começo do grupo e alguns comentários da semana
anterior em relação a este tema foram retomados. Durante os encontros, fui anotando os relatos
dos sonhos e transcrevo-os aqui com a finalidade de encontrar um símbolo indicativo de um
arquétipo que pudesse expressar este grupo e abrir um espaço onde o grupo pudesse manifestar
aspectos pessoais e subjetivos, melhorando e estreitando as relações.

SONHADOR: A.

1) Sonha com um monstro perseguindo-o e acorda totalmente suado. “Não é um sonho, é um


pesadelo”. Esse monstro que o persegue é um pão de mel gigante que fica escorrendo chocolate e
esse líquido vai tomando conta de tudo e ele corre muito para não ser pego.

Este sonho aparece em um momento de sua vida onde A. está tentando não ter uma recaída do
uso de bebida alcoólica. A. se divide em dois: quando ele está bebendo e quando está em
abstinência. Seu maior desafio é sair da rua, porém reconhece os benefícios da bebida e de estar na
rua: tem muitos amigos, conversa com as pessoas, sempre está com dinheiro, ganha comida e
roupas. No momento da abstinência consegue trabalhar e é sempre solícito com todos, porém
sente um vazio profundo, pois percebe que seus amigos e sua família são os companheiros da
84
Jung & Corpo

bebida. Reconhece-se neste grupo, com estas pessoas. Neste momento, está em abstinência do
álcool e está trilhando novos desafios: voltou a estudar, foi inserido em uma cooperativa que lava
carros e também tenta se desvincular de uma instituição que o acompanha desde que foi parar na
rua (mais ou menos dez anos). Quando ele se refere a esta instituição diz: “o mais difícil é ficar
longe da mãezona!” Reconhece tudo que esta instituição fez por ele e se desvincular dela significa
retomar sua vida.

SONHADOR: B.

1) Sonha que está caindo...


2) Voando em cima de uma mata.
3) Sonhou que eu (terapeuta) brigava com a minha mãe.
4) Tem uma onça dentro do quarto dele que está comendo uma carne, depois quando ele olha
melhor é a moça que trabalha com ele. Ficou assustado e saiu correndo e a onça também saiu
correndo atrás dele. Todos corriam, porém a onça tentava pegar somente a ele. A moça tem pés
grandes e pescoço comprido, mais ou menos uns 40 anos. Essa moça remete-o a sua mãe, pois ela
conversa muito com ele e fica lhe dando conselhos.
B. tem uma relação com as drogas que lhe permite estabelecer uma rotina de trabalho com
algumas restrições. Organiza-se quanto ao uso do dinheiro para despesas mínimas pessoais e o
restante gasta com a droga. Dois ou três dias após o pagamento não consegue ir trabalhar, falta
muito, porém ele é muito habilidoso no trabalho com metais. Morou nas ruas, nos albergues,
passou pelo Projeto de Moradia Provisória e agora consegue pagar o aluguel de um quarto que fica
próximo ao projeto. Sóbrio, não reconhece a sua homossexualidade, mas é tomado por ela quando
fica sob o efeito das drogas. Em seus delírios diz sempre que seu pai é policial e a mãe psicóloga: o
pai o persegue e a mãe resolve os problemas de todo mundo, exceto o dele.

85
Jung & Corpo

SONHADOR: C.

1) Sonhou que tinha que carregar um caminhão de terra, quanto mais carregava a terra, mais
ela aumentava. Acordou cansado.

C. sofreu um acidente de trabalho e tem a região do crânio deformada, possui benefício e se


orgulha de pagar pensão para sua filha que não vê há muito tempo. Alcoolista crônico, não faz
questão de sair das ruas. Entrou em um grupo de geração de renda onde aprendeu sobre
paisagismo e jardinagem e estava no grupo que fazia a manutenção da pracinha próximo ao metrô
Paraíso e uma outra próxima ao metrô Liberdade. Desapareceu de repente. Depois de
aproximadamente uns três meses conseguimos encontrá-lo no Hospital do Servidor Público: em
uma briga de rua, alguém bateu nele com um paralelepípedo e o deixou cego. Uma entidade que
trabalha com esta deficiência está acompanhando o seu tratamento.

SONHADOR: D.

86
Jung & Corpo

1) Ele e uma amiga foram chamados para participar de um programa de televisão. Eles tinham
que saltar de pára-quedas em cima de uma geleira, sem instrutor. Ele não deixou a amiga pular.
Quando acordou sentia muito frio. (Faz referência a esta amiga, que era uma menina que estudou
com ele na escola ainda quando morava em Campinas. Era uma pessoa com quem conversava).
2) Sonha com animais. Gato azul, cachorro preto que fala (Pit Bull) e uma vaca gorda que
corre atrás dele.

D. é um jovem de 22 anos que faz uso contínuo de maconha. Relata não ter vontade de fazer
nada o dia inteiro. Tem habilidades com o desenho, porém não reconhece seu talento e nem
possibilidades de trabalho através deste. Morava no interior e veio para São Paulo tentar encontrar
seu pai. Encontrou-o em um albergue e morou com ele no Projeto de Moradia Provisória. Seu pai
bebe muito, arranjou outra mulher e o abandonou novamente. Ele tentou alugar um quarto e não
conseguiu mantê-lo. Envolveu-se com o tráfico e acabou voltando para as ruas. Quando o vejo, ele
está da cor da poeira da cidade, sujinho, usando drogas ou tentando retornar para algum albergue
nos momentos de frio.

SONHADOR: E.

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Jung & Corpo

1) Pessoas estão correndo atrás dele. De repente, ele vai perdendo a força (de correr,
cansaço), fecha os olhos e sai voando. Acorda.
2) Uma mulher bateu na porta da casa dele, perguntou se ele morava sozinho, quando ele
respondeu que sim ela pediu para entrar. Começaram a se beijar e de repente a mulher vira um
monstro. Ele fica assustado, joga-a numa fogueira e ela se queimou. Acordou suado. Voltou a
dormir. Veio um rapaz e perguntou o que ele estava fazendo com aquela mulher sendo que ela já
havia morrido. (Depois veio descobrir que naquela casa havia morado um casal onde ambos foram
mortos baleados, provavelmente por motivo de drogas).
3) Quando ele era menino no orfanato, ele sonhava com uma cidade grande (como São Paulo)
e as pessoas dormiam num lugar escuro. Ele pergunta para as pessoas o que elas fazem ali e eles
respondem que estão esperando para serem julgados. (Fugiu do orfanato e veio parar em São
Paulo, na Estação da Luz)

E. passou por diversas instituições desde menino, fala com carinho da tia do orfanato com quem
mantinha contato. Trabalha atualmente com reciclagem em um prédio na Avenida Paulista. É
jovem, diz que não tem mais paciência para estudar. Gosta de conversar e de relatar situações
onde se sentiu injustiçado ou maltratado. Conta também sobre sua fraqueza com garotas de
programa e cocaína. Em uma situação de trabalho, relata que em conversa com os demais
trabalhadores tornou-se o porta voz de uma reclamação por melhores condições de trabalho e que
acabou sendo prejudicado e despedido. Na sua passagem pela Moradia Provisória se envolveu em
uma situação semelhante e foi desligado do Projeto. Atualmente mantém seu trabalho, ainda se
colocando em situações constrangedoras, das quais precisa ser desligado ou ele mesmo se afasta,
por se sentir prejudicado.

SONHADOR: F.

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Jung & Corpo

1) Uma voz falava com ele no sonho: “Quando você for trabalhar irá encontrar R$ 2,00 em
um determinado local”. Relata que no dia seguinte, quando foi trabalhar encontrou R$ 30,00 e
comprou o remédio que sua filha precisava.
2) F. sempre via uma moça no forró e um dia sonha com ela “dizendo que não quer nada com
ele”. F. considera que este sonho foi um aviso, pois passados alguns meses ele reencontra esta
moça e começa a namorá-la. Porém a relação não deu certo e ele atribui isso ao fato de o sonho já
ter dado este aviso.
3) Sonha com o rapa (fiscalização da prefeitura) pegando ele.
4) Morava sozinho em uma casa. Alguém bate na porta. Antes de abri-la, ele vai ao banheiro;
quando volta a porta está aberta e não tem ninguém.
5) Sonhou que o pai e mãe estavam morrendo ao mesmo tempo. (E isso aconteceu)
6) Uma pessoa (homem) pede para ele guardar uma comida e ele diz que sim. Uma tartaruga
começa a comer toda a comida que está na mão dele. Depois esta tartaruga vira um jacaré. Acorda
assustado.
7) Estava no Piauí (terra Natal) em sua casa e seu irmão pede que ele fique em casa para ficar
“bem quentinho”. Ele fica, de repente olha para o lado e vê uma pecinha com um encaixe; quando
ele faz o encaixe, a peça se transforma numa cobra cascavel. Tentou pegar a espingarda 28 e
acordou. (Relata que estava com uma gripe muito forte e quando acordou estava curado). Uma
outra pessoa do grupo lembrou que com o veneno da cobra fazemos vacinas para curar as pessoas
que são picadas pela mesma.

F. veio para São Paulo em busca de melhores condições. Não se envolveu com drogas ou álcool,
a sua dificuldade é se envolver com garotas de programa e sempre muito mais jovens do que ele.
Não consegue se organizar financeiramente, porém demonstra uma vontade enorme de mudar de
89
Jung & Corpo

vida. Engravidou uma moça jovem e agora perde seu sono para poder sustentá-la. Entrou no grupo
de geração de renda que faz produtos de limpeza e se enche de orgulho quando conta como se faz
um produto, explica sobre a qualidade do produto e fica eternamente agradecido com este
aprendizado. Seu sonho é retornar a sua terra natal e lá vender os produtos de limpeza. Sentiu-se
mais aliviado ao poder compartilhar suas histórias no grupo. Era o mais participativo e não faltou
em nenhum encontro.

SONHADOR: G.

1) Relata ter semi-pesadelos. Acorda asfixiado. Não relatou o pesadelo, pois já sabe o
significado. Relata que sente a presença preta. Tentava acordar e não conseguia, não tem controle
sobre o corpo.
G. relata ter trabalhado com magia negra seguindo o livro de São Cipriano. Diz também que
quem mexe com magia negra acontecem perseguições e ele já sabia disso, já entendia o significado.
2) Sonha que alguém tenta enforcá-lo.

G. dizia que não era da rua, que não precisava de nada do que estava sendo oferecido. Se dizia
punk, o que significava que não precisava de ninguém. Relatou que achou importante ter um
espaço para falar sobre coisas que jamais falaria por aí. Tinha dificuldade em escutar o que os
outros falavam e ao mesmo tempo gostava de falar muito, construía uma teoria sobre sua situação
e assim prosseguia. Sua família mora na periferia de São Paulo e disse que não estava com a família
porque eles não o compreendiam. Sentia-se injustiçado, incompreendido e os outros eram sempre
os responsáveis pelo que acontecia com ele.

SONHADOR: H.

90
Jung & Corpo

1) Este sonho é repetitivo. Sonha que está caindo num buraco negro sem fim e fica olhando para
cima, assustado.

H. é um jovem que veio para São Paulo melhorar de vida. A família mora em um sítio no
interior de São Paulo e, segundo seu relato, lá não é possível trabalhar ou estudar. Vendia planos
de saúde. Faz uso contínuo de maconha e sempre esteve disposto a colaborar quando fosse
solicitado. Sempre trazia idéias novas que eram ou não aceitas, dependendo da situação. Em uma
dessas ocasiões discutiu com um outro morador do projeto e quebrou alguns móveis da casa. Foi
desligado e não se teve mais notícia.

Discussão

O objetivo inicial, que era primeiramente proporcionar a cada um deles um contato mais
profundo consigo mesmo através da elaboração dos sonhos, de alguma maneira foi alcançado. Eles
puderam perceber que o ato de sonhar traz uma conexão com aspectos subjetivos individuais,
proporcionando um novo olhar sobre si mesmo e conseqüentemente sobre o outro. Após o grupo,
percebi que as pessoas me procuravam para contar sobre o que estavam pensando, sentindo,
enfim, houve uma abertura para que se falasse do mundo interno.
Objetivou-se estreitar as relações e propor um canal de comunicação com os aspectos
subjetivos individuais. Foi observada inicialmente uma maior integração entre os moradores do
Projeto e os demais freqüentadores do Centro Comunitário. Houve também uma disposição
maior em participar das demais atividades oferecidas neste espaço, além de solicitações individuais
para conversar e contar sobre alguma situação particular. Quando os participantes do grupo
puderam retomar a ligação com aspectos emocionais e afetivos através dos relatos dos sonhos,
algumas sensações semelhantes puderam vir à tona e possibilitar a observação de aspectos que
puderam caracterizar o grupo.

91
Jung & Corpo

Uma primeira observação é a dificuldade em estabelecer contato consigo mesmo. Reconhecer


as suas próprias dificuldades ou mesmo encará-las. Surgem então os sonhos repetitivos, os
pesadelos que fazem com que cada um olhe para si. Esse olhar para si mesmo se torna tão
assustador que a melhor maneira de abafá-lo é se manter na mesma posição, porém isso apenas
adia uma possibilidade de transformação. É como se o herói não aceitasse a jornada arquetípica e
ficasse se debatendo com seus próprios monstros sem saber ao certo por que ou para que ele está
lutando (todos os participantes do grupo trouxeram aspectos relacionados a esta dificuldade: são
perseguidos, precisam fugir, sentem-se exaustos, estão caindo ou voando para fugir de situações e,
no caso de H., tem sonhos que se repetem, sendo este o único sonho de que conseguiu se
lembrar). A freqüência de pesadelos neste contexto pode ser caracterizada como um chamado para
a vida, para mudanças e para a transformação de conflitos atuais.
Um outro aspecto a ser observado, é a capacidade de estabelecer vínculos duradouros. Isso, diz
respeito aos vínculos iniciais do desenvolvimento, em especial com as figuras parentais e com a
formação egóica dos primeiros anos de vida, que, nos casos abordados, trouxeram a sensação de
rejeição, perseguição e negação. Existe um choque entre as necessidades arquetípicas e o mundo
real, gerando uma dificuldade em aceitar frustrações, atuando a “auto-defesa e o disfarce da
intenção doentia” (Byington, 2006).
Também surgiu no grupo uma experiência de sonhos premonitórios e de cura (Vide caso F.),
que podem demonstrar uma conexão com o Self. Os sonhos, nestes casos, são aliados que foram
acolhidos na trajetória do autoconhecimento. É como se perguntássemos a nós mesmos e a
resposta se apresentasse claramente. Quando surge a possibilidade de falar sobre os sonhos, abre-
se também a possibilidade de atender as necessidades da alma e não apenas as necessidades
humanas básicas de higiene e alimentação.

Conclusão

Através dos sonhos e da vivência de rua, foi possível observar a constelação de um arquétipo
que pôde definir um pouco este grupo. A vivência simbólica do arquétipo matriarcal permeou o
grupo durante todo o seu trabalho.
Durante o processo de elaboração simbólica, são vivenciados estados diferentes da consciência e
que, segundo Byington (2006), ocupam posições diferenciadas na relação entre o Ego e o Outro.
O autor descreve quatro arquétipos: “... o Arquétipo Matriarcal (posição insular), o Arquétipo
Patriarcal (posição polarizada), o Arquétipo da Alteridade (que inclui os Arquétipos da Anima e do
Animus – posição dialética) e o Arquétipo da Totalidade (posição contemplativa). Esses quatro
arquétipos regentes operam à volta do Arquétipo Central”.

92
Jung & Corpo

O Arquétipo Matriarcal é o arquétipo básico da intimidade e da sobrevivência. “Na


Psicopatologia, a posição insular defensivamente fixada é dominante nas desordens dissociativas,
nos quadros de adição (...) e na desordem psicopática centrada no abandono”. Esse modo de
funcionamento gera um estado de consciência primário e instintivo de prazer-desprazer que forma
uma sombra crônica em uma etapa muito primária da vida, ou seja, na relação pai e mãe.
Portanto, para Byington (2004) “as identificações primárias, positivas ou negativas, dos filhos com
o pai e mãe ocorrem na posição insular (matriarcal), (...) e são, por isso, a base mais arcaica e
profunda da formação da identidade” (p.153).
Surgem nos sonhos aspectos da sombra cronificada: de alguém que persegue, que se transforma
em um monstro e que pune; (vide os casos A e B, que trazem a questão do matriarcal com mais
intensidade). Essa cristalização está vinculada aos aspectos primitivos e arquetípicos dos primeiros
anos de vida; talvez esta mãe ou figura substituta não tenha podido oferecer o que de fato esta
criança necessitava: segurança, tranqüilidade, confiança e carinho, cuja falta foi introjetada como
perda e abandono.
O arquétipo matriarcal, quando vem à tona em seu aspecto defensivo, mostra um ego
fragilizado, permissividade exagerada e falta de limites. Não consegue estabelecer vínculos
duradouros e se apóia nos vícios como um escape de toda essa exigência. A sociedade também
contribui para deixá-los nesta situação: não tiveram oportunidades de trabalho, de saúde, de
educação e nunca estão inseridos nas políticas públicas de maneira concreta – um auxílio ou uma
bolsa amenizam a situação por algum tempo.
Portanto, “o que afeta mais que tudo a formação do Ego, é a vivência simbólica, muito mais do
que o fato em si” (Byington, 2003). A elaboração dos símbolos estruturantes pelo Arquétipo
Central se faz importante, pois o que mais interessa para o nosso desenvolvimento não é o
conhecimento das coisas em si, mas como lidamos com ela nas diversas situações que enfrentamos
na vida.
Criar espaços de reflexão e oportunidades de escuta pode ser uma alternativa para que estas
pessoas possam almejar algo diferente do que lhes é oferecido, ou seja, “quando a postura do eu se
modifica, também muda a configuração do espaço e da dinâmica: aparece outro estado
configurado” (Gallbach, 2000).

Referências Bibliográficas

Byington, C.A.B. (2002). O Arquétipo da Vida e da Morte: um estudo da Psicologia Simbólica. São
Paulo, 2002.

93
Jung & Corpo

__________ (2004). A construção amorosa do saber: o fundamento e a finalidade da Pedagogia Simbólica


Junguiana. São Paulo: W11, 2004.
__________ (2006). Psicopatologia Simbólica Junguiana. São Paulo: Linear B, 2006.
Gallbach, M. R. (2000). Aprendendo com os sonhos. São Paulo: Paulus, 2000.
Hall, J.A. Jung e a Interpretação dos Sonhos. Manual de Teoria e Prática. São Paulo, Cultrix, 1983.
Jung, C. G. (1946). A natureza da psique. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 3ª edição, 1991.

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Jung & Corpo

A MULHER JAPONESA:
Seus Símbolos e Transformações1
Elena Etsuko Shirahige2

À memória de
Massaco e Takashi, meus irmãos,
modelos de honestidade e de responsabilidade, que se
foram precocemente e que abriram caminho para nós,
que viemos depois.

A compreensão do universo feminino japonês requer consideração a alguns aspectos de sua


cultura a fim de evitar leitura apressada ou ainda ser guiada por um olhar impregnado de
valores e idéias pré-concebidas. A distância enorme entre a sociedade japonesa e a nossa, em
todos os sentidos, desde suas características como história milenar, homogeneidade social,
estabilidade econômica, isto é, sem grandes turbulências, impede o entendimento acurado e
profundo de seus significados, o que dá sensação de estranheza, de esquisitice mesmo para nós,
nikkei3.
Apesar de o texto do filósofo chinês Chang Tung-Sun (1939) ser antigo, remete-nos a
pontos cruciais que elucidam a distinção entre o pensamento oriental e ocidental, constituindo
um convite à atitude fenomenológica a ser adotada neste artigo. Mas, por que um filósofo
chinês? Devido à influência sofrida pelo Japão tanto da filosofia de vida bem como dos
caracteres ideográficos, uma das formas de sua escrita.

1
Este artigo é uma síntese modificada do capítulo do livro sobre Questões de Gênero, cujo título original é “As
vicissitudes da mulher japonesa: da submissão à força feminina” a ser publicado pela Editora Ícone.
2
Psicóloga clínica e educacional, doutora pela FEUSP, membro do Grupo de Estudos e Pesquisa de Migrações
da UNESP, campus Marília. E-mail: elena_shirahige@yahoo.com
3
O termo nikkei passou a ser utilizado para se referir a descendentes de japonês, independentemente da
geração, desde a Convenção Panamericana Nikkei (1985).
95
O autor parte do pressuposto de que: há necessidade de tratar simultaneamente a teoria do
conhecimento e a história cultural; o pensamento social concreto, as formas lógicas e as
categorias teóricas têm determinantes culturais, ou seja, a lógica acompanha a orientação geral
da cultura. Assim, todo pensamento é influenciado pelo ambiente social imediato e também
pela herança cultural, sendo as forças sociais imediatas determinantes da tendência do
pensamento, enquanto a herança cultural remota estabelece as formas nas quais se torna
possível tal pensamento. Todas essas forças contribuem para estabelecer o conhecimento
interpretativo, que é nada mais que pontos de vistas distintos de pessoas que nascem em
culturas diferentes e aprendem a interpretar de forma específica (p. 199). Resulta daí a
diferença entre o pensamento ocidental e oriental, cada qual com suas particularidades e
especificidades de acordo com a cultura e para uso dela.
Tung-Sun considera a linguagem e o pensamento fundamentalmente inseparáveis, pois todo
pensamento só é possível ser articulado por meio da linguagem ou do símbolo. Essa relação
estreita entre o pensamento e a linguagem é evidenciada pela história da humanidade, na qual
toda nova terminologia representa desenvolvimento do pensamento em nova direção (p.198,
199).
Com a gramática e a estrutura da frase surge a lógica e, na medida em que o objeto da lógica
está nas regras de raciocínios implícitas na linguagem, diferentes línguas têm formas diferentes
de lógica. A lógica ocidental baseia-se na lei de identidade, na qual se fundamentam a divisão, a
definição, o silogismo, a conversão e a oposição. Em contrapartida, os caracteres chineses, por
serem ideográficos, enfatizam os signos ou símbolos dos objetos, o que possibilita uma
orientação relativa, isto é, a relação dos opostos, mais ainda, o resultado ou ajustamento das
oposições. Os signos, no entanto, simbolizam, além de algo externo, as possíveis modificações
e constituem expressões dos arquétipos segundo os quais foram modeladas as coisas. Trata-se,
pois de uma lógica que enfatiza a significação relacional, podendo ser denominada “lógica de
correlação” ou “lógica da dualidade correlativa” (p. 209).
A lógica de correlação, a classificação não-exclusiva, o raciocínio analógico têm como fundo
o pensamento sociopolítico. A preocupação central é o “como” em lugar de “o que é?”,
característico da mentalidade ocidental, o que denota interesse pelos assuntos humanos, sem
distinção entre o cosmo e todos os problemas da existência humana.
A meu ver, a reflexão relacional, engendrada pelos caracteres ideográficos chineses, e a
introversão, assinalada por Jung (1939) como uma das características da cultural oriental,
parecem estar relacionadas. A lei da identidade, que rege o pensamento ocidental, requer
definição de diferentes termos empregados e a proposição contendo “sujeito – predicado” na
estrutura da frase, senão é impossível falar de forma inteligível. Ao passo que os ideogramas
transmitem idéias e recorre-se ao antônimo para completar uma idéia e, muitas vezes, o sujeito
fica subentendido numa frase. Embora a língua japonesa não seja tão monossilábica como a
chinesa, caracterizo-a como um idioma em que “se fala pouco e se diz muito”.
Após essas observações preliminares, vamos adentrar no universo feminino japonês.
96
As representações simbólicas da figura feminina

Em uma cultura em que a lógica da correlação e o raciocínio analógico prevalece, há de se


esperar que haja o predomínio do dinamismo de alteridade, exercido pelo Arquétipo de
Alteridade, visto que esse tipo de pensamento vem ao encontro da elaboração dialética dos
símbolos. Ou ainda, abre a consciência para a relação paradoxal dos opostos.
A palavra mulher pode ser dita de diferentes formas na língua japonesa, cuja escrita, o
ideograma, fornece diferentes idéias. Uma delas seria yome (esposa) definida considerando-se a
casa, a família e não o marido. Sai, tsuma (esposa, mulher), ideograma em que se faz presente a
partícula que indica o proprietário, aquele que possui. Fu (mulher no lar, dama), do ideograma
mulher mais trabalho doméstico, contém a partícula4 mão, significando a realização do trabalho
com as próprias mãos (Hirata, 2002, p.135).
A palavra mulher pode também tomar outros significados quando combinada com outros
ideogramas. Se o ideograma mulher for colocado antes do ideograma que indica interior, tem-
se um novo ideograma com o significado de empregada da casa (jochu). Ao adicionar a partícula
que designa casa à partícula mulher, um novo ideograma se forma, significando algo barato,
que não custa caro (an), obtendo-se a idéia de que uma mulher sob o teto, em casa, significa
economia. Pode-se acrescentar a essa partícula barato (an) o ideograma que designa coração
(kokoro) e formar o ideograma que significa paz, tranqüilidade (anshin), representando a idéia de
que uma mulher sob o teto, à qual se acrescenta o coração, passa a ser tranqüilidade. Se for
acrescentada a idéia de totalidade à partícula barato, tem-se um novo ideograma com a noção
de segurança (anzen), designando a idéia de que uma mulher sob o teto, se houver plenitude e
se nada faltar significa segurança (idem).
Os caracteres chineses evidenciam a associação da mulher com a noção de economia, de
segurança, de tranqüilidade e permitem uma ligação imediata entre mulher e trabalho
doméstico, a partir da qual Hirata se refere à associação também com a idéia de esforço, de
consumo de energia, sobretudo na casa. Para a autora, a reunião dos ideogramas mulher, força
e casa representa a pessoa tanto do sexo feminino quanto o do masculino que se esforça muito
(doryokuka), enquanto os ideogramas mulher e atividade remetem à noção de necessidade.
Significa, então, que são expressões arquetípicas cuja manifestação na cultura japonesa ocorre
conforme o gênero: no lar ou na família, quando se trata de mulher, e no trabalho ou na vida
profissional, quando se refere ao homem.
O primórdio do domínio do feminino faz-se presente na figura da deusa shinto do sol,
Amaterasu, considerada ancestral mítica da família real do Japão. Seu nome completo
“Amaterasu-o-mi-kami” significa “Gloriosa Deusa que Brilha no Céu”. Foi gerada por deuses

4
Partículas correspondem grosso modo aos prefixos e sufixos da língua portuguesa, segundo a autora.
97
criadores das várias ilhas do Japão, que significa Terra do Sol, além das montanhas, rios e mares
que o cercam, para governar todos esses domínios.
Até o início da era Muromachi (1336), a sociedade japonesa era matriarcal (Iwao, 1993, p.
5). Entre os agricultores, pescadores e mercadores que compunham 80% da população total, a
mulher desfrutava de liberdade, igualdade e poder e trabalhava sob as mesmas condições que o
homem. As atividades, como fabricação de tecido e plantio de mudas de arroz, eram
predominantemente femininas e fonte importante de renda dos camponeses.
Durante o longo período agrário do Japão, aproximadamente há pouco mais de 100 anos,
80% da população encontrava-se no campo. Pela tradição, a dona de casa era responsável pela
distribuição de alimentos e pela sobrevivência da família, o que significava estar preparada para
qualquer eventualidade e situações emergenciais, como pouca colheita, e ainda para garantir
suprimentos nos períodos entressafras. Aprendeu, dessa forma, a ser comedida e
extremamente econômica, enquanto ao homem eram permitidas extravagâncias na
alimentação, com mulheres e outras tentações. Essa tradição perpetua-se no período industrial
e a mulher ainda é responsável pela administração financeira e pela alimentação. O marido
entrega seu salário intacto a ela, que lhe fornece uma quantia pessoal e cabe a ela a
responsabilidade de administrar. Em tempos difíceis, se o salário do marido for insuficiente,
compete a ela fazer ajustes ou cortes necessários, ficando obrigada a todo tipo de sacrifício ou
até mesmo a completar o orçamento.

Valores culturais e a figura feminina de gerações distintas

Na sociedade japonesa observam-se transformações nos comportamentos humanos com o


advento do desenvolvimento tecnológico e riquezas econômicas. No entanto, as pesquisas
recentes evidenciam que as mudanças dos comportamentos e atitudes das mulheres são mais
rápidas do que as dos homens, o que constitui fonte corrente de conflitos, na atualidade (Iwao,
1993; Izuhara, 2000).
Iwao (1993) alega que a sociedade japonesa tem sido analisada por uma ótica
preponderantemente masculina, deixando a mulher à margem, imagem que vem se
perpetuando ao longo da história. Para a autora, os desenvolvimentos que têm desencadeado
transformações na vida da mulher estão também contribuindo para mudanças tanto na vida do
homem, como nas empresas e instituições do Japão.
Tendo como cenário os aspectos culturais assinalados inicialmente, vejamos como a figura
feminina se encontra nesse contexto, segundo a investigação realizada por Iwao.

98
a) Estratégia de não confronto – abordagem pragmática
O sistema de valor que guia a mulher japonesa é reativo, sendo suas atitudes e respostas
determinadas pelas circunstâncias em que se encontra. Predomina, portanto, o pragmatismo.
Como a felicidade da mulher japonesa está intimamente ligada à da família, ela reprime e se
abstém de seus próprios sentimentos e desejos em função da manutenção da felicidade e
harmonia do grupo. Raramente age impulsivamente, tomando uma posição ou comportamento
extremo, preferindo ajustar-se ao padrão e à referência de outras pessoas e expressar suas
insatisfações de forma indireta.
Devido à forma de socialização, cujas normas estão centradas na família e no grupo, as
mulheres, na infância, mais do que os homens, fracassam em aprender a pensar
independentemente, o que contribui para a não ocorrência de tal fato na fase adulta. Em lugar
de independência, elas desenvolvem e mantêm um alto grau de sensibilidade às expectativas de
seus pares e de outras pessoas significativas. A expressão “nagare ni mi o makaseru” (ir conforme a
corrente ou fluxo) descreve o comportamento da pessoa sem autonomia nem opção de escolha,
mas que deseja, sobretudo, assegurar harmonia entre seus companheiros, comportamento
considerado positivo, especialmente na mulher.
A abordagem pragmática permite também à mulher japonesa se adaptar apropriadamente às
situações reais disponíveis, a partir das quais efetua suas opções de vida. Por outro lado, isenta-
a da responsabilidade pelas decisões e escolhas que devem ser tomadas em suas vidas, levando-a
à hesitação, à dificuldade de planejar suas vidas e de atingir objetivos. Nos dias atuais, embora
existam mulheres mais conscientes de suas escolhas e mais ativas, permanecem ainda resquícios
de passividade e certo grau de resignação diante de sua sina.
Em uma cultura que repudia o confronto e o comportamento individual surge uma aversão
ao absoluto, especialmente entre mulheres. Entre as categorias ou valores dicotômicos, elas
consideram uma vasta possibilidade de opções e não apenas uma única entre dois extremos, tais
como bom/mau, feliz/infeliz, público/privado, ganhador/perdedor etc. Por exemplo, entre o
bom e o mau absolutos existe uma área imensa que contém ambos. Da mesma forma,
entendem que algumas dificuldades ou infortúnios fazem parte da felicidade e a infelicidade não
é vista como algo inteiramente devastador.
Eis o motivo pelo qual os japoneses são persistentes, mesmo sob circunstâncias muito
adversas, evitando um confronto até a situação tornar-se absolutamente intolerável. Há uma
crença de que a persistência torna a pessoa mais forte e melhor, o que é vantajoso na
posteridade.
Assim, uma sociedade em que não ocorre confronto direto, que abre uma variedade de
opções, que protege sentimentos e preserva a estabilidade das relações humanas, coloca a
mulher em posição de destaque, o que possivelmente é um fator de permanência da figura
feminina em seus papéis tradicionais, impedindo mudanças.

99
b) Concepção de igualdade
A questão da igualdade de direitos perante a lei é assegurada pela constituição, mas, segundo
Iwao (1993), não constitui sua essência. Na realidade, pelo fato de a mulher japonesa ansiar
menos pela igualdade sexual e por não querer ter as mesmas responsabilidades financeiras, esse
direito tem sido utilizado de acordo com seu interesse e conveniência.
As mulheres japonesas compartilham a visão de que a igualdade deve ser considerada em um
contexto mais amplo, envolvendo as diferenças sexuais inerentes, preferências pessoais e
análise de vários fatores. Um deles diz respeito ao equilíbrio das vantagens e desvantagens ao
longo da vida do casal, cuja estrutura está alicerçada em uma relação de confiança. A igualdade,
a longo prazo, permite a adoção de posições mais flexíveis, requeridas na realidade complexa
das relações humanas, condescendência e tolerância a questões de menor relevância.
As mulheres acreditam que são biologicamente melhor equipadas para criar filhos,
especialmente na tenra idade. Uma dona de casa, por exemplo, usa como critério para avaliar o
status do casal, não só o status social, como também disponibilidade econômica, liberdade para
disponibilizar seu tempo e dinheiro, além do grau de realização pessoal. Caso ela valorize mais
o tempo livre do que os desafios profissionais, pode optar por ser economicamente dependente
de seu marido, embora continue sendo responsável pelo controle das finanças, através do qual
mantém auto-estima segura e sólida, sem redução, todavia, da importância de sua função na
família. Como as demais, lida com a relação da família com a comunidade, cuida dos assuntos
da educação de seus filhos, administra a casa, enriquece a família com atividades culturais de
diversos tipos.
Sendo as mulheres japonesas extremamente pragmáticas no dia-a-dia, não se interessam em
ser iguais aos homens em termos de disponibilidade de tempo e energia ou mesmo em
desempenhos e status resultantes de sua realização. Acreditam que o mais importante é serem
capaz de atingir seus objetivos conforme suas preferências e, portanto, a questão da igualdade
torna-se importante dependendo das circunstâncias.
Outro fator de resistência da mulher japonesa à luta pela igualdade sexual diz respeito ao
significado que isso pode tomar. Se implicar em trabalho árduo, a ponto de ter que se privar
dos prazeres individuais e realizações pessoais, as mulheres estão satisfeitas em não tê-la. Isso
devido à vida dos homens da atualidade, que permanecem confinados e arregimentados ao
extremo no trabalho, o que os leva à alienação da vida doméstica e à destituição do tempo para
se dedicar a atividades culturais enriquecedoras, enfim, a uma vida considerada não digna de
imitação pelas mulheres.

100
c) Mundos distintos: o do homem e o da mulher
Na sociedade japonesa não há separação formal de gêneros, mas os homens e as mulheres
vivem em mundos distintos e distantes. Cada qual cultiva e constrói uma relação estreita de
convivência social, sendo a comunicação entre membros do mesmo sexo muito intensa e
mínima entre os diferentes sexos. Trata-se de uma estrutura social que envolve membros de
gêneros semelhantes, de modo que ter amigos, ser respeitado e admirado por pessoas do
mesmo sexo é mais valorizado do que impressionar o outro, do sexo oposto.
Esse fenômeno, de um lado, acarreta autonomia dos parceiros no casamento, condição que
contribui para sua manutenção, principalmente na era da longevidade. Por outro lado, a
autonomia excessiva da esposa no planejamento de sua vida inibe, algumas vezes, o
estabelecimento de uma relação mais estreita entre o casal.
A ausência de comunicação entre os gêneros parece ser um dos fatores que ocasionam a falta
de consciência do homem acerca das mudanças que vêm ocorrendo na mulher, mesmo quando
ela desempenha funções e papéis comuns aos dos homens. O desconhecimento, a ignorância
das vicissitudes da mulher são as características mais marcantes do homem japonês atual.
Muitos homens ainda continuam tendo a mesma visão tradicional de mulher, da época do
sistema ie5, ou seja, consideram-na infantil e incapaz de se posicionar perante diferentes
assuntos, como política, finanças, governo etc.
Há, no entanto, um ponto convergente entre gêneros no que tange ao casamento; pois os
japoneses não depositam todas as suas expectativas na união matrimonial. Buscam amigos, pais,
parentes, colegas de trabalho, recepcionistas de bares e outras pessoas para satisfazer suas
diferentes necessidades, tais como diversão, confidência e apoio moral. Compartilham, de
forma convincente e resignada, a crença de que o romance acaba com o casamento ou com o
início da constituição da família, principalmente após o nascimento dos filhos, o que resulta na
perda do prazer e da magia da relação.
Os aspectos culturais assinalados repercutem de distintas formas nas mulheres de diferentes
faixas etárias, como atesta Iwao em estudo que focaliza os seguintes grupos: a geração antiga,
composta de mulheres nascidas antes de 1935; a primeira geração pós-guerra, as nascidas entre
1946 a 1955, e a geração jovem, as nascidas entre 1960 e 1969.

5
A palavra ie significa família, casa, grupo doméstico, linhagem, lar e residência. Para os japoneses, a
continuação da família é importante. Portanto, é comum a palavra ie ser tomada como linhagem, sucessão de
geração a geração.
101
1 - A geração antiga
Com a derrota na II Guerra Mundial, o sistema tradicional de organização da família, o
sistema ie, foi abandonado oficialmente, resultando em uma redefinição do conceito de família,
o que afetou a relação entre seus membros, bem como a sua composição. Isso não significou,
entretanto, total abolição de seus elementos tradicionais, os quais permaneceram arraigados em
sua estrutura social.
Trata-se de uma estrutura patrilinear, em que impera a regra de sucessão de apenas um
filho, no caso, o primogênito. Como chefe do ie, é de sua responsabilidade a perpetuação da
família, enquanto grupo corporativo, por meio de seu nome, ocupação, bens e status social.
Tipicamente, o herdeiro mora com seus velhos pais, sua esposa, filhos e, algumas vezes, com
irmãos adultos não casados ou divorciados. É também de sua responsabilidade o cuidado com o
haka (jazigo da família) e butsudan (altar budista em casa, com pequenas lápides, contendo o
nome dos ancestrais mortos). Sendo essencial a continuidade da família, na ausência de filhos
adota-se uma criança que tenha, de preferência, alguma relação consangüínea ou recorre-se a
youshi (adoção de marido) para as filhas, não somente para o marido adotar seu sobrenome, mas
para suceder como chefe do ie.
No sistema ie predominam os interesses da família, sendo seus membros submissos e não
lhes cabendo a escolha de companheiros para o casamento, nem a decisão de separação. O
casamento, portanto, constitui sempre um arranjo entre famílias, não havendo conotação
sentimental de amor. Para encontrar parceiros adequados para seus filhos, as famílias, em geral,
recorrem aos padrinhos (nakoudô), cuja função é a de mediar o processo de negociação entre
elas. Sendo o casamento um contrato, as expectativas de satisfação emocional para um casal
tradicional, conseqüentemente, também são mínimas.
Nesse contexto, a posição e os papéis da mulher variavam conforme a idade, o casamento e a
posição social, sendo que as das classes menos abastadas eram menos submissas que as da elite.
As filhas não tinham a mesma posição na família que os filhos, pois eram consideradas membros
temporários (ou propriedades) até o seu casamento. Após o matrimônio, a mulher não possuía
direito de tomar decisões em casa devido à natureza da família tradicional, em que reinava o
domínio masculino. Mesmo sendo esposa de um primogênito, era-lhe exigido obediência e
subserviência ao marido e aos sogros. O termo uchi no yome (noiva de nosso ie), que se refere
especialmente à noiva do primogênito, significa não apenas noiva de seu marido, mas de toda a
família (Vogel, 1965), pois, em lugar de criar uma nova família, a noiva usualmente mudava-se
para o ie do marido, passando a cultuar seu nome e ancestrais e perpetuando a família através
de seus filhos. A consangüinidade, muitas vezes, era mais forte que o vínculo marital, a ponto
de uma filha solteira ou divorciada da casa ter mais privilégios do que a esposa recém-casada.
A partir do momento em que seu marido se tornasse chefe do ie, sucedendo ao pai, a esposa
adquiria considerável poder, principalmente na administração da casa e das finanças. “Toda
sogra detesta a nora que escolheu e transforma sua vida num inferno”. Esse provérbio, corrente

102
no Japão, ilustra a força e poder da sogra que desfazia até o casamento se entendesse que a nora
não estivava correspondendo a sua expectativa, mesmo quando o jovem casal apresentasse boa
relação. Não competia ao filho opor-se a ela, como também o chefe do ie interferir, pois era de
sua responsabilidade lidar com essas pequenas questões internas. A jovem que desposasse um
não-primogênito, por seu turno, desfrutava privilégios devido à ausência da sogra, usufruindo
total autonomia e liberdade na administração do ie.
A geração antiga foi educada nos moldes e valores tradicionais de manutenção do ie,
acreditando na superioridade do homem e, conseqüentemente, na inferioridade da mulher, e
tendo como ideal o modelo tradicional da “boa esposa e mãe sensata”. O casamento era uma
obrigação e constituía fonte de poder econômico.
São mulheres muito satisfeitas com o seu papel de esposa e mãe, cujos comportamentos e
expectativas foram claramente prescritas. Muitas delas trabalham fora para auxiliar e apoiar
seus maridos a desempenhar a função de provedor da casa, e não como fonte de atualização e
realização pessoais. De acordo com a sua concepção, as relações interpessoais importantes,
como entre homem e mulher, marido e mulher, mãe e filho, são caracterizadas por uma
estrutura vertical, e não horizontal, de poder.
A expectativa da mulher com relação a seu papel não difere daquela que o homem tem, de
forma que os conflitos são mínimos, ainda que o mundo de ambos esteja distante. Isso permite
à mulher ter seu próprio universo e obter imensa autonomia e independência. A relação sem
tensão se mantém devido à superioridade formal do marido estar equiparada à dominância
informal da mulher. A maneira como o casal se trata ilustra o fenômeno de conformidade e
aceitação mútua: a esposa refere-se a seu marido como patrão ou amo (shujin), enquanto o
marido dirige-se a sua mulher como administradora do lar (kanai).
O relacionamento do casal está pautado na confiança, na compreensão e aceitação de que
cada qual provém de ambiente familiar distinto, havendo incompatibilidade natural e conflitos
em determinadas questões. O pressuposto das diferenças torna a relação menos tensa, mais
tranqüila e leva à tolerância mútua. Assim, o casal passa a aceitar melhor as fraquezas, não só de
seu parceiro, como também de outros. Aliado a isso, certos traços são considerados,
culturalmente, como sendo especificidades de determinado gênero, portanto, o esquecimento
seria a melhor medida.
Segundo a geração antiga, marido ideal é bom, saudável e ausente, e um bom
relacionamento marital é como o “ar”: uma relação que permite respirar, pois o ar é vital para a
sobrevivência, mesmo sendo sua presença imperceptível. A dificuldade de respirar ou sentir o
peso da relação é um índice de crise séria, que foi se formando ao longo de vários anos de
convivência fundada na aceitação mútua.
A estabilidade do casamento da geração antiga e da primeira geração pós-guerra deve-se a
pouca consciência e ao esforço do homem em estabelecer vínculo mais estreito com a esposa.
O casal não utiliza mais linguagem respeitosa entre si, raramente comenta ou elogia a aparência

103
ou tarefas um do outro, sendo a expressão verbal de sentimentos e de afeição considerada tabu.
A tensão e a formalidade da relação antes do casamento se dissipam completamente a tal ponto
de, no lar, tanto o homem quanto a mulher se encontrarem totalmente à vontade, contrapondo
a outras relações sociais carregadas de tensão, formalidades e pautadas na aparência. Nesse
quesito, por exemplo, a mulher japonesa não se preocupa em se enfeitar, vestindo roupas
elegantes para agradar a seu marido, embora seja caprichosa e meticulosa no vestir quando vai a
um casamento ou a encontros com suas amigas, fato conhecido por seu parceiro. Ambos não
sentem necessidade de provar sua ligação e fidelidade por meio de palavras ou de aparência,
mas somente através de ações.
A comunicação verbal entre marido e mulher é mínima, os elogios e as expressões de afeto
ocorrem indiretamente e, muitas vezes, os comentários negativos e críticas ásperas são
dirigidos à terceira pessoa. Na presença de outros, um homem pode fazer considerações e
queixas da esposa como um meio de demonstrar sua superioridade, atitude que ilustra a falta de
sensibilidade e desconhecimento do tipo de tratamento que magoa a mulher. As mulheres
sabem que seus maridos se preocupam com elas de sua própria maneira, e os homens, por sua
vez, não compartilham e nem são sensíveis aos sentimentos femininos, por considerar não
condizente com a masculinidade, tratando-os como meros caprichos e mimos. Mesmo diante
de algum comportamento desagradável de seu marido, predomina a visão de longo prazo, o
que leva à aceitação e compreensão de que numa relação, como na vida, há momentos ruins e
bons, altos e baixos. A frase “shibaraku gaman sureba” ilustra a perspectiva de que mesmo as
coisas não estando bem, podem melhorar logo mais, na posteridade.
Na sociedade japonesa, lar e família estão associados com calor humano, aconchego e
conforto, enquanto o mundo de fora é visto como frio, indiferente e competitivo, o que
aumenta a importância da casa e, conseqüentemente, da figura feminina. A casa é local onde
seus membros se deparam com aquilo que a sociedade não oferece, e a sua manutenção sólida,
que atenda às necessidades, atesta à mulher condições de realização pessoal. Há uma crença de
que aquele indivíduo que não possui uma família estável não pode realizar seu potencial em
qualquer ocupação.
Nessa perspectiva, as mulheres japonesas consideram, independentemente da faixa etária,
sua casa e família tão importantes quanto as atividades fora do lar. Mesmo aquelas que
trabalham fora se esforçam para conseguir um equilíbrio entre suas funções como mãe, esposa,
profissional e como pessoa, mas concentram maior atenção àquelas que consideram básicas e
essenciais e desempenham eficientemente as demais. A família e o lar é o centro de sua
identidade como mulher, mesmo para aquelas muito bem educadas e profissionais
extremamente competentes, a ponto de, em caso de escolha entre trabalho e família, muito
provável a escolha recair sobre esta, pelo menos para a maioria delas. Deve-se esse fenômeno
ao fato de a casa constituir fonte de muitos poderes e realizações.
Embora o homem diga que a família seja mais importante que o trabalho, seu
comportamento manifesta distância desse discurso. Devido às condições de emprego, despende

104
muitas horas com o trabalho e com atividades correlatas, o que torna o lar local de descanso, de
recarga de energia e até de refúgio para satisfazer suas necessidades. Para a mulher, nesse
contexto, é mais conveniente tornar-se um membro indispensável pela sobrevivência da
família, pois isso lhe permite preservar certas prerrogativas que satisfaçam suas necessidades do
dia-a-dia.
A casa torna-se, assim, território da mulher, que tem total controle sobre tudo, desde a
organização dos objetos, do espaço, das atividades dos filhos, do que cada membro deve fazer,
ditando como deve ser feito etc. Mesmo quando a mulher trabalha o dia todo, não investe
totalmente sua energia no trabalho e tampouco se esforça para ter desempenho máximo em
ambas as situações. Como centro do lar, a mulher tem liberdade e estabilidade econômica
garantida, podendo usufruir seu tempo livre como lhe aprouver. Constrói uma rede variada de
estrutura social baseada na família, nos esportes, na recreação e, muitas vezes, no trabalho, para
assegurar suporte moral.
O controle de gamaguchi, ou seja, das finanças, tem lhe dado uma tremenda liberdade
psicológica e uma posição forte no lar ao longo da história. No dia do pagamento, o marido
retorna diretamente para casa e a esposa o aguarda com uma refeição especial, recebe o
precioso envelope perante os filhos e, num gesto de gratidão e reverência, ergue-o até a testa e
agradece seu trabalho árduo. Com o advento da era eletrônica, esse ritual tornou-se obsoleto,
já que os salários são depositados diretamente na conta bancária, o que não permite que as
crianças percebam o pai como provedor da casa. O pouco contato dos filhos com o pai, em
oposição à mãe, que está sempre cuidando das questões financeiras, reforça o poder econômico
da mulher e acaba diminuindo o status da figura paterna dentro da família.
Entre as gerações mais jovens, a esposa começa a administrar as finanças após o nascimento
de filhos. Mesmo quando a mulher trabalha, sua contribuição no orçamento doméstico é
restrita, pois a renda do marido é suficiente para cobrir todas as despesas, o que lhe permite dar
outro destino à sua renda, como viagens, comidas especiais, estudos extra-classe para os filhos e
outras extravagâncias muito apreciadas pela família. Em momento algum, o marido solicita
contribuição equiparada à esposa para manter a sua superioridade como provedor da casa.

2 - A geração vanguarda
A primeira geração pós II Guerra Mundial foi criada e educada quando o ideário de igualdade
sexual era enfatizado em oposição ao padrão tradicional, principalmente na escola. As mulheres
dessa geração consideravam a igualdade como uma obrigação e procuravam se relacionar com
seus maridos conforme esse pressuposto, ou seja, como amigos, e rejeitavam os valores e estilo
de vidas de seus pais por considerá-los inadequados e anacrônicos. Iwao (1993, p.21) entende
este fenômeno como sendo muito mais resultado da influência americana, veiculada através de
filmes de Hollywood, do que uma diferenciação da maneira de viver de seus pais. Trata-se,

105
porém, de uma geração muito mais bem preparada para articular suas dúvidas e argumentar
frente a posições dos maridos ou da sociedade em geral do que a geração anterior.
Após o casamento, as mulheres dessa geração não se sentiam satisfeitas apenas com a função
de mãe e de esposa, e tentaram redefinir seu papel, principalmente após o ingresso dos filhos
no ensino elementar, por meio de atividades fora do lar. Algumas encararam o trabalho e
outras se envolveram com grupos de ativistas e outras ocupações não tradicionais, como
continuidade nos estudos. A expansão de suas atividades, no entanto, era difícil, pois a
sociedade ainda não estava preparada para oferecer-lhes o suporte necessário, embora a
legislação assegurasse direitos iguais, e os homens não se interessavam por aquilo que suas
esposas faziam, continuando com a expectativa de que elas desempenhassem a função
tradicional de boa esposa e mãe.
Muitas delas tentaram se ajustar a essa situação conflitante, esforçando-se para desempenhar
ambas as funções da melhor maneira possível. Dentre as que já trabalhavam antes do
casamento, muitas se afastaram do emprego durante a primeira gestação e, mais tarde, após o
ingresso dos filhos na escola, retornaram ao trabalho e se depararam tão somente com
ocupações de suporte, as únicas disponíveis a elas. Dessa forma, continuaram a ser dependentes
economicamente de seus maridos e a igualdade sexual tão almejada tornou-se distante, o que
gerou muitas frustrações.
Outra fonte de estresse dessas mulheres diz respeito ao sentimento de negligência com
relação aos filhos, devido ao esforço e ao surgimento de uma alta expectativa de desempenho
em atividades fora de casa, mesmo depois de terem conseguido redefinir seu papel e
encontrado sentido pessoal de realização.
Apesar de tudo, elas ampliaram seu universo e horizonte, investindo suas energias em
diferentes atividades, tais como a profissional, passatempo, trabalho comunitário, atividade de
cunho político, atividades culturais e artísticas, dentre outras. Trata-se da geração de
vanguarda, de mulheres cujas vidas afetaram profundamente os valores e instituições,
provocando a transição entre comportamento e papéis sexuais tradicionais da mulher e os da
era pós-industrial. São mulheres que, apesar de cuidar de seus velhos pais, encontraram nova
direção para si e, muitas vezes, permanecem entre o antigo e o novo.

3 - A geração jovem
A expansão da economia japonesa tem oferecido à mulher grandes oportunidades de
trabalho, bem como conveniências que facilitam o trabalho doméstico. Com a independência
econômica obtida com fruto de seu próprio trabalho, a mulher tem adquirido não somente
autonomia financeira, mas, sobretudo, segurança. Não há mais necessidade de casamento para
obter uma vida econômica confortável ou sacrificar seu desejo ou metas em benefício da
família. Ela pode permanecer solteira e desfrutar de sua liberdade como quiser, pois o dinheiro
lhe permite alcançar aquilo que deseja, desde uma titulação de doutor até vida sexual livre.

106
Aproximadamente há 40 anos, esperava-se que uma jovem se casasse entre 20 e 24 anos de
idade. Hoje, caso a jovem não encontre seu parceiro até em torno de 25 anos, começa a
investir sua energia e interesse em outras áreas, tais como trabalho ou passatempos, e o
casamento deixa de ser uma obsessão.
A forma de encontrar seu parceiro tem mudado desde os meados da década de 80. A maioria
dos jovens que mora na região urbana conhece seus parceiros na universidade ou no local de
trabalho, depois da graduação. Tais encontros casuais e naturais despertam amor e acabam
resultando em casamento. Um número considerável de jovens, no entanto, especialmente
homens extremamente tímidos e inibidos, ou ainda os que não se interessam em tomar
iniciativa para um relacionamento com o sexo oposto, recorre ao miai (encontros arranjados),
embora a taxa de casamento por meio desse sistema tradicional tenha decrescido, ficando
abaixo de 24% contra 74% de casamento por amor6
A expectativa da mulher com relação ao homem também se modificou. Ela espera ter um
grande companheiro, necessidade difícil de ser satisfeita, já que os jovens tendem a ser inábeis
em uma relação de igualdade. Muitas vezes, são mais destacados em sua delicadeza do que na
força de caráter ou aparência, devido à forma como foi criado por uma mãe pronta e atenciosa.
As jovens de hoje são muito bem educadas e ambiciosas, e não lhes interessam homens fracos e
tampouco indulgentes. Esperam de seus parceiros, no mínimo, o mesmo nível de escolaridade
e a capacidade de se engajarem em uma conversa interessante e prazerosa, não aceitando mais
grunhidos e tampouco respostas monossilábicas como as de seus pais. Os homens, por sua vez,
consideram essas mulheres altamente escolarizadas e bem informadas difíceis de acompanhar,
pois são menos vulneráveis às manipulações.
O maior dilema das jovens na faixa dos 20 e início dos 30 anos é a falta de clareza de seus
objetivos e de identidade perante a imensa variedade de opções disponíveis. Enchem-se de
confiança e partem do pressuposto que podem fazer tudo que almejam, o que as leva à
dispersão e falta de concentração e de esforço em único objetivo, fato perturbador e que lhes dá
sensação de incompetência e inabilidade, constituindo uma fonte de estresse.
As jovens, imersas num fluxo intenso e incessante de informações, sentem-se, muitas vezes,
frustradas e confusas, ao constatarem a distância que existe entre sua imagem e a que é
veiculada na mídia, mulher magra, elegante, bem vestida, dinâmica. Como conseqüência, a
anorexia, o tabagismo e o alcoolismo entre elas têm aumentado. A dificuldade de se controlar,
de esperar a sua vez ou de lidar com fracassos deve-se ao acesso fácil aos bens materiais e à
ausência de rivalidades entre irmãos (ocorreu uma diminuição considerável na taxa de
natalidade na sociedade japonesa). Diante disso, os jovens manifestam sua preferência por um
caminho mais fácil, avaliando ganhos e perdas e verificando as vantagens em jogo.

6
Fonte citada por Iwao: Kobama, Itsuo, Otoko wa doko ni iru no ka. Tokyo: Soshisha, 1990, 252, e Furuya,
Kazuo. Tsumatachi no teinem sengen. Tokyo: Kodansha, 1989, 29.
107
Comentários finais

A representação da figura feminina atrelada à noção de economia, de segurança e de


tranqüilidade tem se perpetuado ao longo da história da cultura japonesa.
Embora não tenha dados suficientes para a análise da figura da Deusa Amaterasu, até o início
da era Muromachi, as mulheres desfrutavam igualdade de condições com os homens, o que
possibilitava a vivência da polaridade mulher-homem em direção à alteridade.
Com o advento do novo Código Civil, a mulher tem adquirido muitos direitos, tais como
direito à herança, ao exercício do poder parental, à independência financeira, entre outros. No
entanto, isso não lhe assegurou igualdade de tratamento, e mudanças efetivas têm ocorrido a
passos lentos. A maioria das tarefas domésticas e cuidados com os filhos e idosos continua ainda
a cargo das mulheres, como bem atestam Iwao (1993) e Izuhara, (2000).
A doutrina confuciana, sendo uma expressão do Arquétipo de Alteridade, constitui a base do
sistema da família tradicional e prega fundamentalmente harmonia nas relações entre o
indivíduo e os vários grupos ou comunidade. Seus postulados, porém, foram interpretados
patriarcalmente, exigindo abnegação das necessidades ou desejos pessoais, em prol da ênfase
nos aspectos grupais e organizacionais, maximizando seus benefícios A consideração para com o
outro pode levar a pensar no exercício da alteridade ao agir como se estivesse se abrindo para o
outro, mas também pode abrir caminho para a formação da Sombra. O provérbio corrente
sobre a relação nora e sogra do sistema ie ilustra, em certa medida, a expressão da sombra, e
não apenas os papéis sociais culturalmente atribuídos a elas. O mesmo pode ocorrer quanto à
repressão de sentimentos e desejos.
No sistema ie há predomínio da dominância patriarcal, sendo a figura feminina vista como
inferior, submissa e devendo obediência ao homem, o que favorece e enaltece a figura
masculina. Ambos discriminam e desempenham seus papéis socialmente estabelecidos. O
controle financeiro assegura poder à mulher, através do qual se mantém segura e com auto-
estima elevada. Trata-se, portanto, de inferioridade aparente, situação mais consciente para as
mulheres do que para os homens, mas ambos permanecem na perspectiva patriarcal,
favorecendo a manutenção da representação tradicional da figura feminina.
A valorização da família na sociedade japonesa posiciona a mulher no centro do lar, o que
abre a possibilidade de o homem ser excluído desse território e, conseqüentemente, não lhe ser
propiciada a vivência da função materna e paterna, o que prejudica a construção das
identificações primárias. Aliado a isso, a valorização da relação afetiva entre os de mesmo
gênero, o casamento arranjado e regime exaustivo de trabalho distanciam o homem da vivência
do matriarcal. Nota-se na mulher maior tendência a se movimentar para ultrapassar a
assimetria, ou seja, um movimento em direção à alteridade, buscando vivenciar a polaridade
mulher-homem. Cabe ressaltar que o desenvolvimento desse processo, obviamente, depende
da dominância tipológica tanto do homem quanto da mulher.

108
As diferenças nas atitudes e comportamentos de distintas gerações são manifestações da
semelhança entre o desenvolvimento da consciência coletiva e individual. Pode-se equiparar a
crise de adolescência ao que ocorre com a geração jovem que se perde, ao romper com o
passado sem elaborá-lo. Esta entra em choque com as identificações primárias estabelecidas por
meio do modelo tradicional, que dá ênfase ao patriarcal, pois a geração anterior encontra-se em
conflito entre o velho e o novo. A conseqüência é a ansiedade como atitude reacionária à
inovação, não conseguindo uma transformação efetiva da consciência. Eis o processo de
aculturação decorrente do advento de novas ideologias.
Como afirma Sacristán (2002, p. 80), “as culturas mudam, relacionam-se entre si e contaminam-se
umas às outras, porque os indivíduos portadores de seus conteúdos moveram-se”, permutando formas de
falar, de pensar, comportamentos, atitudes, crenças etc. O processo migratório é isso: a
extensão e “inoculação”, nas palavras de Sacristán, de traços culturais do local de origem de um
povo em outras culturas. O contato em si mesmo já provoca alterações nas culturas envolvidas,
ocorrendo misturas, não homogêneas, mas desordenadas, havendo domínio de uma sobre a
outra. A cultura japonesa, por ser tão diferente e diametralmente oposta à brasileira, tem esse
processo efetivado mediante o confronto, ou seja, a tendência é confrontá-la com a cultura
dominante, colocando à margem aquela considerada secundária, o que dificulta compreensão
acurada de seus conteúdos. Conhecer os valores, crenças, pressupostos, visões de mundo por
meio de descrições de comportamentos e atitudes possibilita a identificação de seus significados
e a conscientização da dimensão das influências que carregamos.

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Jung & Corpo

JUNG E CORPO:
PILARES DE UM PROJETO SOCIAL

A proposta apresentada pelo Núcleo Espiral traz o


pioneirismo de unir a teoria junguiana com a abordagem
corporal, ancoradas pelo paradigma da resiliência, no
trabalho com crianças e adolescentes vítimas de violência.
Sua história teve início em 1998, em um projeto piloto,
com a participação de ex-alunos do curso Jung e Corpo do
Instituto Sedes Sapientiae. Essa experiência foi replicada e
aprimorada, em 2002, para a dissertação de mestrado em
Psicologia Clínica, na PUC/SP, de Neusa Sauaia. A
experiência de trabalho nos Lares e Casas Abrigo trouxe
resultados positivos na vida de muitos jovens em situação
de risco social. Em 2004, foi desenvolvida a primeira parceria junto ao MDCA – Movimento
em Defesa da Criança e do Adolescente, ao qual o projeto ficou vinculado. No ano de 2007,
o Projeto Espiral foi subsidiado pelo FUMCAD - Fundo Municipal da Criança e do
Adolescente e, em 2008, teve sua parceria renovada, o que possibilitou o amadurecimento e
a criação de uma nova associação denominada Núcleo Espiral: Pesquisa, Assistência e
Prevenção da Violência contra Crianças e Adolescentes.

Atualmente o Núcleo Espiral possui quatro programas:

1- RETOCARE - Atendimentos terapêuticos na linha junguiana


 Projeto de atendimento psicológico em grupo para crianças e adolescentes vítimas de
violência. (desde 2002)
• Projeto de atendimento com Sandplay. (implantação em 2009)
• Projeto de atendimento individual. (implantação em 2009)

2- APOIAR - Cursos para cuidadores (desde 2006)


Os cursos preparam as pessoas responsáveis pelos cuidados das crianças para que possam
entender melhor a realidade característica desta população, promovendo recursos para o
enfrentamento da violência. São abordados temas e vivências sobre desenvolvimento

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Jung & Corpo

infantil, violência, abuso sexual e aliciamento, diferentes tipos de trauma, resiliência,


primeiros socorros para o trauma infantil, o papel do cuidador, a importância do corpo,
dinâmica dos abrigos, abrigamento e desabrigamento.

3- PROET – Programa de Estudos do Trauma (início em 2008)


Proporcionar um espaço de pesquisa e de produção de conhecimento para que, através
destes e de sua divulgação via artigos, livros, cursos e congressos, haja uma efetivação e
aprimoramento da prevenção de situações de violência contra a criança e o adolescente,
formando um grupo de profissionais para atuar na área, comprometido com a visão e o
objetivo do Núcleo Espiral.

4- APROVE – Assistência e Proteção contra a Violência nas Escolas (início 2009)


Capacitar professores e oferecer suporte aos pais na discussão da problemática da violência,
tornando-os agentes transformadores da realidade escolar e da comunidade onde a violência
está inserida.

Convidamos os leitores a conhecer este trabalho e a se tornar parceiros na missão de


prevenir a perpetuação da violência, para construirmos um mundo melhor para nós e nossos
descendentes. Visite o site: www.nucleoespiral.org ou ligue para: 11 – 3862 3122.

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