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A REINTEGRAÇÃO CROMÁTICA E AS MUDANÇAS DE PARADIGMAS NA

CONSERVAÇÃO-RESTAURAÇÃO DE BENS CULTURAIS

CHROMATIC REINTEGRATION AND PARADIGM CHANGES IN


CONSERVATION-RESTORATION OF CULTURAL PROPERTY

Virgínia Rodrigues Ferreira Barbosa (IPHAN)1


Giulia Villela Giovani (UFMG)2

RESUMO
A reintegração cromática é uma das fases mais importantes no processo de restauração de
uma obra, por definir a imagem final do bem. A realização dessa etapa se modifica de acordo
com o período histórico, visto que cada época assume um modo preferencial de intervenção
na camada pictórica, e de acordo com as próprias características das obras tratadas. Dessa
forma, este estudo apresenta os critérios da reintegração cromática desenvolvidos na história
da conservação-restauração e tem como objetivo identificar as mudanças que ocorreram no
campo e a transposição dos preceitos teóricos para as práticas restaurativas.

PALAVRAS-CHAVE
Conservação-restauração; Reintegração Cromática; Terminologia; Tecnologia

ABSTRACT
The chromatic reintegration is one of the most important phases in the restoration process of
the work, as it defines the final image of the property. This stage changes according to the
historical period, as each period assumes a preferential mode of intervention in the pictorial
layer and according to the characteristics of the works dealt with. Thus, this study presents the
chromatic reintegration criteria developed in the history of conservation-restoration and aims
to identify the changes that have taken place in the field and the transposition of theoretical
precepts to chromatic reintegration practices.

KEYWORDS
Conservation; Restoration; Reintegration; Terminology; Technologies

Introdução

A reintegração cromática é uma das etapas que tem maior influência no aspecto visual
e na unidade do bem tratado, ou seja, na leitura do objeto cultural, sendo uma das
fases finais possíveis de tratamento executado sobre danos e/ou alterações na
camada pictórica e possivelmente a mais visível. Esta etapa apresenta uma vasta
gama de soluções possíveis, que foram desenvolvidas com o avanço dos critérios e
princípios norteadores da conservação-restauração.
O processo de reintegração cromática pode ser denominado por diferentes termos
como retoque, integração ou compensação e é determinado pelos valores culturais e
sociais do momento em que se passa a restauração e pelo valor e função atribuído
ao bem. Dessa forma, os critérios para intervir se tornam múltiplos e sob constante
mudança devido as novas soluções propostas e tendências em busca da preservação.

Assim, o objetivo é a realização de uma revisão historiográfica da reintegração


cromática, com a finalidade de explorar as mudanças que ocorreram no campo, até a
noção atual de reintegração cromática, identificando as variações de terminologias
usadas para se referir a esse tema. Diante disso, são discutidos estudos de casos
para a ilustração da problemática em torno da justificativa teórica dos procedimentos
adotados de reintegração cromática, evidenciando diferentes formas de abordagem
do tema e analisando o vínculo entre as decisões práticas e os critérios teóricos.

Histórico

A reintegração cromática é um tema discutido com grandes controvérsias a respeito


das teorias e da prática de execução, a perspectiva sobre o histórico inicial dessa
atividade é proveniente principalmente da Europa, continente em que são apontadas
as primeiras práticas dos pintores-restauradores, e vem sendo consolidada com o
surgimento da profissão do conservador-restaurador. A partir do século XVII são
notadas discussões sobre questões contemporâneas nos manuais, tratados e
relatórios, apesar da falta de sistematização dos conceitos (PARTRIDGE, 2003). A
reversibilidade3 e estabilidade dos materiais já é abordada e testes são realizados
para propor métodos alternativos como a têmpera e pigmentos aglutinados em verniz.
O desenvolvimento da profissão de restaurador no fim do século XVIII, torna
necessário o treinamento e habilidade para reintegração cromática e conhecimentos
de química. Posteriormente a partir do século XIX, surgiram diversas ideias como a
possibilidade de deixar as lacunas visíveis e a vertente da teoria da restauração
científica.

Os procedimentos eram realizados inicialmente por “pintores-restauradores”, durante


os séculos XVI ao XIX, e era caracterizado por intervenções de caráter utilitarista,
eram ações que reavivassem as cores, renovasse e revalorizasse utilitariamente o
antigo, ou mesmo, adequassem a imagem aos valores e padrões visuais e
comportamentais vigentes da época. Estes profissionais eram mestres pintores
conceituados e reconhecidos que realizavam o serviço de restauro com base em
conhecimentos empíricos e, também, lançavam mão de receituários sem rigor
científico (SERRÃO, 2006, p.68).

A partir do século XX, como comentado anteriormente, a atuação na restauração


passa a contar com estudos, pesquisas e metodologias especificas. Surge a vertente
conservativa e científica, nas quais preceitos éticos-científicos passam a ser
discutidos e a nortear as práticas concretas (SERRÃO, 2006, p.69). Nesse século, a
restauração passa por muitas transformações, evidenciadas pelo estabelecimento de
centros de estudos, multiplicação de publicações, assim como a reintegração
cromática e as técnicas envolvidas, que metodologicamente começaram a se
consolidar. Discussões propostas por grandes teóricos sobre a unidade formal, a
psicologia de Gestalt4 aplicada à reintegração de lacunas, a reversibilidade, termo
substituídos pela noção de retrabalhabilidade dos materiais, são reflexões que
impulsionaram o desenvolvimento de novas técnicas e abordagens que se
consolidaram no campo da reintegração cromática, e que seguem em
desenvolvimento.

Sobre o contexto histórico no Brasil, não foram encontradas muitas referências sobre
o início da aplicação e o desenvolvimento das técnicas de reintegração cromática. No
entanto há estudos sobre as práticas de restauração no Brasil que podem indicar
como as intervenções eram realizadas. Há o registro do cargo de Restaurador de
quadros e Conservador da Pinacoteca na Academia Imperial de Belas Artes (AIBA) e
os alunos com melhor desempenho artístico podiam assumir a função de “ajudante
de conservador da pinacoteca”, logo as atividades relacionadas ao restauro estavam
presentes no contexto oitocentista da academia e os profissionais que atuavam no
campo dentro da AIBA apresentavam formação artística. Posteriormente, como
Escola Nacional de Belas Artes é visto no programa de pintura o conteúdo de
conservação-restauração de pinturas, são localizados manuais europeus de restauro
como Il Restauratore dei Dipinti de Giovanni Secco Suardo. Dessa forma é possível
conjecturar a atuação de pintores-restauradores no Brasil, como é observado no
contexto Europeu (CASTRO, 2013).
A problematização do uso de termos análogos

Quando pesquisamos e discutimos sobre a reintegração cromática é comum


encontrar diversas palavras se referindo ao tema, segundo mostrado pela
pesquisadora da área Ana Bailão, o campo tem diferentes terminologias como
reintegração, integração, retoque em português, retouch, inpaint, loss compensation,
overpaint em inglês (BAILÃO, 2013), podem ser termos encontrados para se referir a
reintegração cromática ou pictórica.

Os termos reintegração, integração, foram usados na Europa como sinônimos, o


primeiro introduzido pelo importante teórico Paul Phillippot e o segundo por Cesare
Brandi. Um caso citado por Ana Bailão (2013), demonstra que já se fazia uso dessas
palavras como sinônimos e variações já ocorriam durante a tradução de artigos, a
escolha de terminologia é feita de acordo com a melhor adequação ao espaço
geográfico5.

O termo reintegração consta na norma da Conservation of cultural property: main


general terms and definitions de 2011, referente a terminologia e nele são indicadas
as palavras em inglês reintegration, francês réintégration e em alemão ergänzun como
equivalentes a reintegração e como sinônimos os termos em inglês retouching, gap
filling, insertion e in-painting (BAILÃO, 2013, p.59).

Outra palavra que se mantem em uso é retoque, menos utilizado que reintegração,
devido seu caráter pejorativo associado a repinturas e as práticas dos pintores-
restauradores até meados do século XX. A palavra retouch em inglês com tradução
literal para retoque, é utilizado em textos técnicos e acadêmicos, no entanto é usado
como sinônimo da palavra reintegração, com o significado de uma intervenção
criteriosa, discernível, respeitando a delimitação da lacuna.

No Brasil, o termo reintegração é o mais encontrado do ponto de vista acadêmico e


entendido como intervenção que visa a restituição formal, estrutural e estética do bem
cultural, mas coloquialmente no meio profissional é observado o uso do termo retoque
com o mesmo sentido.

Em uma perspectiva especializada podemos observar similaridades entre os usos dos


termos no continente Europeu e algumas variações no norte-americano. Em Portugal
o uso do termo reintegração em detrimento de retoque, sendo o primeiro de aceitação
tanto no meio acadêmico como profissional e o último usado coloquialmente. Na Itália
e Espanha, as palavras traduzidas reintegrazione e reintegración são amplamente
usados. Na França, os termos réintégration e retouche traduzidos, sendo o primeiro
mais encontrado nas publicações recentes. No continente norte-americano as
expressões loss compensation e inpainting em detrimento do conceito inglês
retouching, sendo o primeiro sendo um processo mimético com cópia da textura
original no preenchimento e depois a aplicação de cor, e o segundo se refere a
aplicação da tinta no espaço previamente preenchido. Na Inglaterra é observado em
uma publicação o uso do termo retouching.

Sendo a palavra reintegração mais usada em Portugal, Itália, França e Espanha. Nos
Estados Unidos e Canada há uma mudança termos como loss compensation e
inpainting usados como sinônimo de reintegração. Helmut Ruhemann, em The
cleaning of paintings (1968), diferencia os termos loss compensation e inpainting, o
primeiro é faz uso da técnica mimética de tratamento da perda, envolvendo o
nivelamento, a adequação das texturas e a aplicação de cor, e o segundo, o ato de
aplicar tinta na lacuna já nivelada (RUHEMANN apud BAILÃO, 2014, p. 21).

O restaurador Edson Motta Junior, entende o termo reintegração cromática como uma
ação que envolve apenas a reintegração da cor, o que nem sempre é o caso. Logo
prefere usar a expressão reintegração da perda, proveniente da expressão em inglês,
loss reintegration, que designaria a reintegração da perda ao todo composicional
(DINIZ, 2016, p.115).

O congresso promovido pelo RECH Group (Retouching of Cultural Heritage), reúne


publicações relacionadas ao tema de reintegração cromática de pesquisadores de
diversas nacionalidades. Nas publicações de 2013, 2014, 2015 e 2017 foi possível
observar o uso dos termos relacionados ao tema, sendo comum os termos
reintegration, retouch e ainda em poucos casos o termo integration. Confirmando o
relato da diversidade de palavras para designar a intervenção.

Observando esse contexto é notado uma gama de palavras sinônimas para


reintegração cromática, que se dá principalmente por traduções e terminologias
diferentes dependendo da localização e meio social. Também é percebido a
preferência pelo termo reintegração no contexto acadêmico indicando uma
normatização quanto ao conceito do termo. Mas até que se consolidassem as
definições disponíveis hoje muitas experimentações e reflexões foram necessárias.
Logo, os termos devem ser interpretados de acordo com a localização geográfica e o
meio social, considerando a evolução dos usos de variados termos e a sua história.

Técnicas e critérios balizadores

A reintegração cromática ainda é tratada pela área como procedimento extremamente


subjetivo e, por isso, pouco discutido pelos profissionais nos relatórios de intervenção,
sendo escassas as referências bibliográficas dedicadas ao tema da tomada de
decisões quanto ao procedimento adotado, segundo Joana Diniz (2016), podem ser
observadas tanto em âmbito nacional, quanto internacional. Diniz também indica a
existência de divergências metodológicas entre diferentes localidades, decorrentes da
aproximação a uma ou outra vertente teórica. Acrescentamos, ainda, de forma
complementar e hipotética, que, talvez, haja certo desconhecimento das discussões
teóricas pelos executores das intervenções e/ou a dificuldade de transposição, de
passagem, dos preceitos teóricos às práticas interventivas propriamente ditas.

Para a execução da reintegração cromática, é necessário que se possua o


conhecimento de critérios e de métodos (técnicas e materiais) para a definição da
melhor ação a ser empreendida de acordo com as especificidades formais e
simbólicas do bem cuja camada pictórica apresenta perdas. Portanto, é essencial
recorrer às discussões teóricas e estudos de casos que possam balizar as decisões
práticas, na tentativa de reestabelecer a unidade da obra através da (re)integração
das áreas de perda à camada pictórica remanescente e, finalmente, recuperar a sua
função de imagem.

Com a evolução da tecnologia novas formas de auxiliar a reintegração cromática


surgiram, são realizados tratamentos das lacunas por meio de fotografias ou
digitalizações da obra. Dessa forma é possível testar diversas abordagens de
tratamento sem interferir diretamente na obra, conhecer mais sobre a técnica do
artista e auxiliar no momento de decisão. Segundo Gonzáles Mozo são criados
modelo virtuais com as imagens de alta qualidade em que podem ser realizados testes
para projetar ideias e discutir teoricamente e visualmente, sua validade e prezando a
conservação do objeto.

O uso de métodos tecnológicos destaca alguns pontos importantes para a


reintegração cromática: a alteração cromática, a resolução da imagem. Também é
pontuado que existem princípios básicos para a digitalização e tratamento da imagem,
no entanto cada projeto requer especificidades e o bom resultado depende de bons
instrumentos e da percepção visual dos responsáveis (GONZÁLES MOZO, 1999,
p.91).

A reintegração cromática na academia: estudos de casos

A partir dos estudos de caso será possível observar a aplicação de alguns princípios
da restauração, os diferentes critérios utilizados para cada situação e fundamentação
para a realização da reintegração cromática.

O primeiro caso analisado são as pinturas de Marck Rothko, são seis pinturas datadas
de 1959, que foram criadas para a Universidade de Harvard e ficaram por anos
guardados. As cinco obras foram expostas após um trabalho para solucionar
aparência de seus tons e a coesão do grupo de pinturas (PACHECO; SELVI, 2011,
p.24).

O artista faz uso de grandes dimensões para envolver o espectador, a forma, a


composição e a cor são elementos importantes para a finalidade da obra. No entanto
o material empregado pelo artista sofreu alterações cromáticas devido a exposição a
luz. Logo foi proposto a solução de desenvolver projeções digitais, que iriam restaurar
a cor sem intervir diretamente na obra. Essa ideia foi desenvolvida pois os métodos
tradicionais de reintegração cromática não eram viáveis, devido a técnica não
convencional usada por Rothko e a grande extensão dos danos. Para isso foi
necessário descobrir uma referência, como o mural era originalmente, depois de ter
uma noção as cores foram ajustadas com base em um sexto mural que não havia sido
exposto. Depois das imagens obtidas foi feita uma comparação com a condição atual
das pinturas e desenvolveu o que eles chamaram de “imagens de compensação”
(SHEETS, 2014).
Na exposição foi projetado sobre a obra esta imagem de compensação (Figura 1),
foi realizado um teste para que a luz projetada não causasse danos a cor da obra e
durante uma hora do dia os projetores seriam desligados para permitir que o
espectador contemplasse a obra sem a intervenção cromática da luz (SHEETS,
2014).

Figura 1. Painéis restaurados e instalados junto com os projetores. Fonte: VANDERWARKER,


2014

Nesse caso é observado o uso da tecnologia para solucionar uma questão e permitir
a fruição da obra de forma mais próxima do objetivo do artista. Nesse estudo o dano
a alteração gerado era grave e irreversível, logo não poderia ser solucionado com as
opções tradicionais, pois poderiam modificar a aparência da obra e o seu conceito
artístico. Também seria possível realizar a documentação do estado em que a obra
se encontrava e preservar a existência da pintura, no entanto não seria possível obter
a experiência e sensação proposta pelo artista.

No segundo caso, Restauração da pintura retrato de Bernardo Mascarenhas,


executado por Miguel Navarro y Cañizares: desafios e metodologias de fixação de
craquelês (2017), é o trabalho de conclusão de curso de Elaine Dutra Pessôa na
graduação de Conservação-Restauração de Bens Culturais Móveis da Universidade
Federal de Minas Gerais. Nele é descrito e discutido o tratamento de conservação e
restauração realizado em uma pintura de óleo sobre tela do século XIX pertencente
ao acervo do Museu do Crédito Real de Juiz de Fora, Minas Gerais (Figura 2).
A restauradora aponta no estado de conservação que a camada pictórica está
extremamente fragilizada, são citados pela autora os seguintes danos: sujidades
generalizadas, pequenas manchas espalhadas, verniz oxidado com tonalidade
amarelada, abaulamentos, intervenções anteriores, desprendimentos e perdas da
camada pictórica (PESSÔA, 2017, p.60).

Figura 2. Retrato de Bernardo Mascarenhas antes do restauro, em que é possível ver os danos na
camada pictórica. Fonte:PESSÔA, 2017.

As etapas do processo de restauro são descritas e detalhadas, a autora apresenta o


método e critérios, detalhando os materiais utilizados. O mapeamento detalhado das
tintas, pigmentos e mistura de cores utilizada em cada área é um registro fundamental
principalmente para o futuro da obra, essas informações sistematizadas desta forma
ainda são incomuns em muitos relatórios de restauro (Figura 3). Esse tipo de
documentação permite que no futuro o restaurador possa não apenas saber que tipo
de material pictórico foi utilizado, mas entender as alterações de cores e
envelhecimento de determinadas tintas e pigmentos.

Nessa etapa é importante observar o uso de argumentos com embasamento teórico


para essas decisões, segundo Bailão (2015) o motivo da reintegração cromática, as
referências e a função da obra são elementos importantes para fundamentar a
intervenção estética. Na restauração é destacado que a obra se tratar de um retrato,
o olhar do espectador já é direcionado para a figura central e o uso de tons
contrastantes faz com que uma lacuna nesta área assuma facilmente o papel de
figura.

Figura 3. Tabela com informações do processo de reintegração e materiais pictóricos. Fonte:


PESSÔA, 2017.

As lacunas identificadas estão localizadas no paletó da figura, que foram reintegrados


com a técnica mimética6, e no rosto em que foi optado pela técnica do pontilhismo 7
que devido ao tamanho dos pontos se mimetizou (PESSÔA, 2017, p.108).

Na pintura as perdas eram majoritariamente de pequena proporção em regiões com


referência pictórica e cromática, dessa forma a gama de técnicas que poderiam ser
aplicadas é ampla. No entanto a restauradora considera o tipo de pintura que tem um
foco de observação (a figura masculina) e a implicação de técnicas diferenciadas, isto
é, visíveis. Foi buscada uma solução que atendesse a necessidade estética da obra
e que buscasse a fruição adequada.

No trabalho também pode ser destacado o detalhamento de informações técnicas dos


materiais utilizados e a justificativa de escolha, que são elementos de importância e
que demostram um pensamento crítico nas escolhas e consideram critérios críticos
discutidos no trabalho como o respeito pela área de extensão das lacunas, a
estabilidade material e a possibilidade de retratamento.
O terceiro estudo de caso é a pintura abstrata Composição 1952, óleo sobre tela, da
artista Lygia Clark e pertencente ao Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM
Rio). A obra foi doada pela artista ao Museu de Arte Moderna do Rio em 1953, e em
1978 ocorreu um grande incêndio no museu que destruiu a maior parte de sua coleção
e atingiu a pintura.

O MAM Rio convidou os restauradores Claudio Valério Teixeira e Edson Motta Junior
para participar de um projeto com o objetivo de restaurar um conjunto de obras que
foram afetadas pelo incêndio, dentre elas Composição 1952. O restauro dessa pintura
foi brevemente apresentado durante o congresso Arte Concreta e Vertentes
Construtivas: Teoria, Crítica e História da Arte Técnica - Jornada ABCA em 2018 e um
artigo foi publicado no e-book do evento.

A obra sofreu danos que comprometeu a sua estrutura, suporte e camada pictórica.
Os autores descrevem que houve perda de aproximadamente um terço da tinta e do
suporte, presença de craquelês concheados, tinta em descolamento acentuado,
grande acúmulo de fuligem, sujeira e dano severo no chassi (TEIXEIRA & JÚNIOR,
2018, p.133). A obra apresentava grande fragilidade e uma lacuna de grande extensão
que atingiu área de relevância pictórica (Figura 4).

Figura 4. Pintura Composição 1952 de Lygia Clark, antes do processo de restauro. Fonte:
TEIXEIRA & JÚNIOR, 2018

A equipe de restauro realizou o estudo sobre a obra e sobre sua autoria, identificando
influências e características técnicas que a pintura em delicado estado de
conservação apresentava. Além da pesquisa sobre a obra etapa fundamental para o
desenvolvimento de uma proposta de reintegração, foi encontrada pelo MAM Rio uma
única referência da obra antes dos danos (TEIXEIRA & JÚNIOR, 2018, p.135). Foi
apresentada uma fotografia em preto e branco da obra do período em que foi doada
para o museu pela artista, esta imagem foi utilizada como referência das formas
originais da pintura (Figura 5).

Figura 5: Fotografia encontrada da obra, da época da doação para o MAM. Fonte: TEIXEIRA &
JÚNIOR, 2018

O objetivo desse restauro é devolver à obra a integridade visual e permitir a fruição e


apreciação estética da obra. Dessa forma, a equipe de restauro responsável optou
por reconstruir estruturalmente as partes faltantes, com o uso de técnica de
reentelamento e pictoricamente com aplicação de tintas próprias de restauro e uso de
técnica de reintegração diferenciada (TEIXEIRA & JÚNIOR, 2018, p.138-139).

As escolhas de métodos e materiais buscaram a redução máxima da interferência


causada pelas lacunas. Durante o processo de planificação e reentelamento foram
aplicadas técnicas para obtenção de uma superfície plana que facilitariam o processo
de reintegração cromática e a obtenção de relativa invisibilidade da lacuna (Figura 6).
Figura 6: Obra após o restauro. Fonte: TEIXEIRA & JÚNIOR, 2018

Para a fase de reintegração cromática foram usadas tintas Gamblin® próprias para
restauração, e aplicação da técnica de reintegração pontilhista associadas com
velaturas de aquarela para reduzir a intensidade das cores. Outra questão sobre
aspecto estético é a textura da tela, foi empregado géis de Paraloid B72 nas áreas
lacunares para reduzir a textura lisa e aproximar as áreas de reintegração à superfície
original. A diferença de texturas poderia ocasionar o direcionamento do olhar do
observador para as áreas lacunares, dessa forma foi optado por mimetizar a textura
e utilizar o pontilhismo como uma forma de diferenciar a ação do restaurador ao
visualizar a obra de perto e quando de longe obter uma visualização integral da obra
(TEIXEIRA & JÚNIOR, 2018, p.138).

Os restauradores esclareceram que consideraram que havia duas grandes vertentes


para esse trabalho que foram avaliadas, a reconstrução da obra (como foi optado) e
um trabalho de conservação, ao se estabilizar o estado da obra para manutenção de
um registro, aproximando à conservação de um objeto arqueológico. O restaurador
destaca que a foto foi essencial para o momento de decisão e que considerou a
potencialidade da obra.

Casos de restauro extremos que implicam em reconstruções da obra esbarram em


muitas questões éticas, a adição considerável de materiais à obra e as grandes
interferências no seu aspecto pictórico acaba por ocasionar um afastamento da
originalidade. No trabalho acima ocorreu a reconstrução de uma grande lacuna em
que havia elementos pictóricos e as referências eram o remanescente da própria obra
e a fotografia em preto e branco. Assim atuação do restaurador necessita ser
observadora e crítica para que não atinja o campo criativo. Nesse caso, as questões
éticas começam a ser questionadas, devido aos limites de atuação do conservador-
restaurador e o impacto dessa interferência para originalidade e essência da pintura.

Considerando a fala dos restauradores ocorreu uma ressignificação da obra, sua


reconstrução acarretou grandes mudanças em seu aspecto visual, perde grande parte
de seu caráter documental e passa ser favorecido o ponto de vista estético, colocando
a pintura em posição de obra de arte, no sentido da apreciação estética. O processo
e as decisões não foram feitos isoladamente pela equipe de restauro, foram escolhas
conjuntas com os profissionais do MAM Rio, que consideraram a melhor solução para
o objeto tratado. Também foi indicado a preferência da instituição que as lacunas
fossem reintegradas como uso de uma técnica diferenciada, logo perceptível ao olho
do observador, sendo uma forma de diferenciação das áreas reintegradas e das
pinceladas originais.

Essa restauração deve ser estudada com cuidado. A grande perda de área pictórica
e poucas referências para a restauração, gera discussões sobre o limite da
reintegração cromática e a melhor abordagem que associe uma apreciação estética
e a preservação da essência e do conceito artístico da obra.

Conclusão

Para a realização da reintegração cromática é observado a importância do


conhecimento das técnicas e de sua história, e como esta colabora no
desenvolvimento da sua aplicação e a na escolha da técnica a ser utilizada. Como
foram apresentadas, o processo de reintegração cromática supera o âmbito da
aplicação de tinta em si e demonstra que é necessário um vasto conhecimento da
obra, estudo da sua camada pictórica, das cores e textura para o desenvolvimento de
uma solução que permita uma fruição adequada da obra.

No estudo sobre o histórico da reintegração cromática no Brasil e a atuação dos


profissionais “pintores-restauradores” é notado a quantidade reduzida de publicações
que abordam o tema e o seu desenvolvimento. É evidenciado um campo de pesquisa
ainda a ser explorado, que poderá ajudar a compreender as primeiras práticas no
campo e os tipos de recursos utilizados, a difusão de metodologias e a transição de
um campo inicialmente prático para sua expansão cientifica no Brasil.
Notas
1Graduada pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em Conservação-Restauração de Bens Culturais
Móveis.Atualmente mestranda do Mestrado Profissional em Preservação do Patrimônio Cultural do Iphan, com
tema de pesquisa em bens móveis e integrados de origem afro-desendente.Possui experiencia em conservação-
restauração de bens móveis, com enfase em pintura e escultura.virginiarfb@gmail.com
2 Professora assistente do Departamento de Artes Plásticas da Universidade Federal de Minas Gerais/UFMG

desde 2015. Doutora em Artes - Preservação do Patrimônio Cultural pela Escola de Belas Artes da Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestre em Artes - Conservação Preventiva/Tecnologia da Obra de Arte, pela
Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Possui graduação em Conservação -
Restauração de Bens Culturais Móveis pela Universidade Federal de Minas Gerais. giuliagiovani@gmail.com
3 O princípio da reversibilidade que afirma que qualquer ação de conservação deve ser realizada com materiais

que permitam a remoção da intervenção para o retorno à situação inicial em que o objeto foi encontrado, no entanto
esse princípio é impossível de ser realizado em sua concepção pura. A reversão pode ser mais ampla ou não. A
visão contemporânea de reversibilidade define o conceito como a da capacidade de re-tratamento
(retrabalhabilidade) que significa poder tratar algo que foi previamente realizado com o menor dano possível.
ZANCHETI, Silvio Mendes. A teoria contemporânea da conservação e a arquitetura moderna. Textos para
Discussão: Série 2 - Gestão de Restauro (2014).
4 O termo Gestalt significa forma, estrutura ou configuração e é usado para designar a corrente psicológica que

surgiu no final do séc. XIX, que se fundamenta na ideia de que o todo é mais do que a simples soma das suas
partes (BAILÃO,2011).
5 Outro dos nomes bem conhecidos pelos conservadores restauradores é Cesare Brandi. O historiador em 1963

usou a palavra “integração”, não estando explícito o motivo pelo qual utiliza esse termo e não outro. Citando o
autor [...], todavia, a versão castelhana de 1988 da Teoria do Restauro, largamente difundida em Portugal, e onde
consta o texto de Brandi de 1963, traduz ocasionalmente em vários parágrafos a palavra “integrazione” por
“reintegración” [...] Mais uma vez, ambos os termos são usados como sinónimos na tradução. Porém, na versão
portuguesa de 2006 os vocábulos são traduzidos fielmente ao original sendo utilizada a palavra “integração”.
(BAILÃO,2013, p.56)
6 Esta técnica, habitualmente conhecida como mimética ou ilusionista, consiste na reintegração da cor, da forma e

da textura das zonas em falta com o objectivo de ser invisível para o observador comum. (BAILÃO,2011)
7 Trata-se de um conjunto de pontos de cores puras justapostas, adaptando-se a pinturas antigas e a pinturas

recentes. Consoante a superfície pictórica original ou a própria textura do suporte, o tamanho e a distância dos
pontos, o pontilhismo pode resultar numa reintegração diferenciada ou ilusionista (BAILÃO, 2011)

Referências

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CASTRO, Aloisio Arnaldo Nunes de; GONÇALVES, Yacy-Ara Froner. Do restaurador de


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