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CULTURAS ESCOLARES NAS ESCOLAS PRIMÁRIAS NA SEGUNDA


METADE DO SÉCULO XIX: O LIVRO NOÇÕES DE LITERATURA
NACIONAL

Anselmo Guimarãesi
Eixo Temático: Educação, Sociedade e Práticas Educativas.

Resumo: Este trabalho tem como objetivo analisar o livro Noções de Literatura Nacional no
intuito de verificar as práticas escolares nas escolas primárias na segunda metade do século
XIX, através do uso do compêndio como material escolar, suas finalidades políticas e
culturais. A primeira edição da obra foi publicada em 1896 e adotada em diversas escolas
primarias do Distrito Federal. Utilizamos como fontes a norma legal vigente na época da
publicação do livro didático, bem como, opinião da imprensa local publicada na segunda
edição da obra. Para esta análise lançamos mão dos pressupostos dos trabalhos de Chervel,
Darnton e Souza, dentro de uma perspectiva da História Cultural.

Palavras-chave: Cultura escolar. Cultura material escolar. História Cultural. Práticas


escolares.

Resumen: Este trabajo tiene como objetivo analizar el libro Noções de Literatura Nacional
en el intento de verificar las prácticas escolares en las escuelas primarias en la segunda mitad
del siglo XIX, a través del uso del compendio como material escolar, sus finalidades políticas
y culturales. La primera edición de la obra fue publicada en 1896 y adoptada en varias
escuelas primarias en el Distrito Federal. Utilizamos como fuentes a norma legal vigente en la
época de la publicación del libro didáctico, así como la opinión de la prensa publicada en la
segunda edición de la obra. Para este análisis nos apoyamos en los presupuestos de los
trabajos de Chervel, Darnton y Souza, dentro de una perspectiva de la Historia Cultural.

Palabras-clave: Cultura escolar. Cultura material escolar. Historia Cultural. Prácticas


escolares.

Introdução
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Procuramos investigar neste trabalho a cultura escolar do século XIX através da


análise do livro Noções de literatura nacional, da professora Cacilda Francioni de Souza, 2ª
edição, publicada em 1902, editada por Laemmert & C. – Editores. A primeira edição foi
publicada em 1896, no Distrito Federal.

A idéia de cultura escolar aplicada aqui se refere ao conceito de Dominique Julia a


qual descreve como “um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e
condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses
conhecimentos e a incorporação desses comportamentos” (JULIA, 2001, p. 10).

Essas normas e práticas devem estar vinculadas as finalidades do ensino dentro das
sociedades. Essas finalidades (religiosas, sócio-políticas, psicológicas, culturais, etc.) são
variáveis segundo a época e a sociedade (CHERVEL, 1990).

Foram utilizadas como fontes as normas legais que influenciaram na publicação e


estudo da obra, porém com certa cautela, pois, sabemos que os textos legais não abrangem
toda a realidade da prática educativa, bem como, utilizamos textos de jornais da época.

Quando um livro é adotado em uma escola primaria no Brasil da segunda metade do


século XIX temos que verificar as finalidades dos agentes envolvidos neste processo: o
mercado editorial e o desenvolvimento do capitalismo, o professor com suas convicções
sócio-políticas e o Governo com seu projeto de constituição de uma nação, bem como, as
relações entre esses agentes, no intuito de verificar o sucesso ou fracasso do uso desse
material escolar nas práticas reais. Segundo Souza “a ampliação significativa da composição
de material da escola primária ocorreu, não por acaso, a partir do século XIX, no bojo do
processo de constituição dos sistemas nacionais de ensino e de desenvolvimento do
capitalismo” (SOUZA, 2007, p.163).

O livro como objeto histórico tem suas fases e ciclos de vida. Darnton descreve este
ciclo como “um circuito de comunicação que vai do autor ao editor (se o livreiro não assumir
esse papel), ao impressor, ao distribuidor, ao livreiro e ao leitor. Por influenciar o autor tanto
antes quanto depois do ato da escrita, o leitor completa o circuito” (DARNTON, 2010, p.
193).
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O livro analisado corresponde a um compêndio ou manual de literatura nacional


destinado ao ensino das alunas do ensino primário do segundo grau. Segundo o Diccionario
prosódico de Portugal e Brasil, terceira edição, de Antonio José de Carvalho e João de Deus,
de 1885, compêndio é um resumo de doutrinas, um sumário. Já manual se refere, entre
outras acepções a livro pequeno, compêndio. Desta forma o livro da professora Cacilda se
enquadra nas duas categorias.

No decorrer da pesquisa tivemos muitas dificuldades para encontrar fontes


bibliográficas sobre a obra e sua autora. Não foi possível encontrar estudos sobre esse
compêndio e tampouco sobre a autora. Conseguimos informações sobre a autora a partir da
opinião da imprensa publicada na segunda edição do compêndio, exemplar que analisamos e
no artigo Resistência negra, teatro e abolição da escravatura de Eduardo Silva, publicado em
2006 na SBPH – Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica.

Essa dificuldade em encontrar fontes que retratem os docentes negros no século XIX é
uma questão sentida por todos que se aventuram nessa área. Muitos são os obstáculos a
serem ultrapassados.

A autora

Cacilda Francioni de Souza, diretora e professora da “2ª escola primaria de 2º gráo”,


estudou na Escola Normal no Rio de Janeiro. Casada com Dr. Vicente Ferreira de Souza
(1878-1920), lente da cadeira de Latim do Ginásio Nacional, antigo nome do Colégio de
Pedro II.

A professora Cacilda e seu marido participaram da intelectualidade negra do Brasil no


século XIX, juntamente com nomes importantes como José do Patrocínio, André Rebouças,
Rui Barbosa, entre outros. De acordo com Silva (2006) Dr. Vicente era um dos mais
importantes intelectuais negros do século XIX, sendo um dos pioneiros do movimento
abolicionista e sua esposa “a primeira mulher negra a participar abertamente das conferências
[abolicionistas]” (SILVA, 2006, p. 2-3). Essas conferências abolicionistas ocorreram entre
1879 e 1888.
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A obra

A obra Noções de literatura nacional, da professora Cacilda Francioni de Souza, foi


publicada em sua primeira edição em 1896, com a finalidade de instruir as suas alunas, de
acordo com o programa oficial da época, como podemos perceber nas palavras de José
Joaquim do Carmo na apresentação do compêndio: “[...] tendo exclusivamente em vista as
escolas primarias traçou um plano consoante ao ensino dessas escolas, e circunscrevendo nos
limites desse plano tudo quanto expoz, poude, pelo que me parece, realizal-o cabalmente”
(SOUZA, 1902, p. VII).

Essa obra foi publica seis anos após a reforma do ensino feita pelo Ministro Benjamin
Constant, através do Decreto N. 981 de 8 de novembro de 1890. Esse decreto regulamentava
a instrução primária e secundária do Distrito Federal. A instrução primária ficou dividida em
duas categorias: escolas primárias de 1º grau que admitiriam alunos de 7 a 13 anos e escolas
primárias de 2º grau com alunos de 13 a 15 anos, sendo que meninos e meninas estudariam
em escolas separadas.

Segundo o decreto a Escola Primária do Segundo Grau teria Português nos dois
primeiros anos. No primeiro ano os estudos se dariam com carga horária de 3 horas semanais
e estavam constituídos de: “Revisão da grammatica. Exercicios graduados de redacção:
descripção, narrativas, cartas, etc. Exercicios de leitura expressiva, leitura de manuscriptos e
recitação”. No segundo ano a carga horária caía para 2 horas e seria ensinado: “Analyse.
Exercicios de redacção e invenção. Noções de litteratura nacional” (BRASIL, 1890).

O compêndio da professora Cacilda F. de Souza foi publicado com o título igual a um


dos pontos de estudos do segundo ano que aparece no Decreto Ministerial. Desta forma,
podemos concluir que foi escrito para as aulas daquele ano. Sem dúvida a obra foi pensada
para o ensino do Português e assim declara a imprensa da época:
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Offerecido pela ilustrada autora recebemos um exemplar de Noções de


Litteratura Nacional, organizadas para o uso das escolas pela Sra. D.
Cacilda Francioni de Souza, directora da 2ª escola primaria do 2º grão.

Muitas tem sido as collectaneas e tratados da litteratura portugueza escriptos


para o ensino dessa importante e tão discurada disciplina da instrucção
secundário e superior, e algumas sob vários títulos são adoptadas nas
escolas, mas poucas tem o valor da que escreveu a douta professora. A
experiencia e a difficuldade do ensino e a applicação justa dos varios
methodos didacticos que no exercicio do magisterio conhece praticamente,
guiou-a sem duvida na confecção de seu livro e guiou-a bem. (Jornal do
Commercio, apud SOUZA, 1902, p. IX).

A primeira edição da obra da professora Cacilda F. de Souza foi adotada por diversos
estabelecimentos, segundo o Jornal do Comércio, porém, não foi bem aceita pelo Conselho
Diretor de Instrução Primaria e Secundaria do Distrito Federal, o qual tinha por incumbência:
“Resolver sobre a adopção de todo o material escolar, e approvar ou mandar compôr livros e
quaesquer trabalhos” (BRASIL, 1890). O Conselho de Instrução “entendeu por deficiente o
livro da Sra. D. Cacilda, por não incluir trechos de autores portuguezes clássicos” (Jornal do
Commercio, apud SOUZA, 1902, p. X).

Provavelmente os estabelecimentos que adotaram o livro eram escolas particulares,


uma vez que elas eram livres para escolher seus programas, professores, livros adotados, etc.,
limitando-se o poder público a inspecionar somente no que dizia respeito à moral e à saúde
dos alunos. O livro também foi adotado no Colégio Militar, conforme atesta Hermetério José
dos Santos, único professor negro deste estabelecimento: “Vejo agora que passei das duas
tiras, e que o consciencioso volume já adoptado no Collegio Militar, me arremessou contra a
quadra do poeta reformador...” (Hermetério José dos Santos, apud SANTOS, 1902, p. XVI).

A autora, em um discurso pronunciado em festa escolar de distribuição de diplomas,


se dirigindo às suas quatro diletas discípulas, para as quais dedica o livro, critica a decisão do
Conselho em reprovar sua obra:

Em trabalho destinado a preencher um dos lados do programma da minha


cadeira, foi o meu maior empenho reunir elementos, que vos servissem de
augmentar vossos conhecimentos.
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E, por julgar-vos dignas, dediquei-vos esse livro que, graças à falsa


interpretação que officialmente se lhe deu, não veiu á luz da publicidade
como desejava e intento (SOUZA, 1902, p. XXIII).

Por que colocar trechos de autores portugueses clássicos se os estudos são de noções
de literatura nacional? Poderia ter por trás desse indeferimento um preconceito de gênero e
etnia? Não nos esqueçamos de que a professora Cacilda era uma mulher negra.

Apesar do descrédito do Governo, a obra obteve muitos elogios da imprensa:

Não sendo um tratado, uma historia critica de litteratura nacional, mas um


compendio, o seu livro restringio-se, como devia ser, ás noções que o
proprio titulo designa. Essas noções porém são dadas com methodo e
clareza de exposição, que vai gradualmente mostrando ás alumnas a
evolução da lingua e o desenvolvimento litterario de cada época (Jornal do
Comercio, apud SOUZA, 1902, p. X).

Os conhecidos livreiros Laemmert & C., brindaram-nos com um exemplar


das Noções de Litteratura Nacional de D. Cacilda Francioni de Souza,
ilustrada professora municipal.
O valor da obra que compulsamos alegremente está na escolha de trechos de
escriptores nacionaes e foi com desvanecimento que lemos paginas de José
Bonifacio, José de Alencar, Joaquim de Macedo, Monte Alverne, Alberto de
Oliveira, B. Lopes, Fagundes Varella e muitos outros (Salomar, apud
SOUZA, 1902, p. XII).

Bella demonstração de actividade e de amor á bibliographia das nossas


escolas é o livro primorosamente confeccionado pela ilustre professora D.
Cacilda Francioni de Souza, e de que acabamos de receber um exemplar.
Folheamol-o com a attenção de quem examina um escrínio de preciosidades,
e encontramol-o digno de nossa admiração, desde a primeira até á ultima
pagina (O Paiz, apud SOUZA, 1902, p. XII).

A eximia e festejada professora D. Cacilda Francioni de Souza acaba de


dotar o magisterio nacional com um livro bom, salutar e são (Hermeterio
José do Santos, apud SOUZA, 1902, p. XIII).

Só temos elogios francos e sinceros para este bom livro, de utilidade


manifesta no ensino da lingua Patria e precioso por ser o primeiro que, sem
recorrer aos autores portuguezes, offerece á mocidade uma excellente
collectanea de trechos litterarios, subordinados ás differentes phases do
idioma nacional (A Patria, apud SOUZA, 1902, p. XVII).

Fallar desse precioso livro é cumprir um dever, porque as Noções de


Litteratura Nacional contém paginas que mereceu a gratidão da mocidade
das escolas e constituem innegavelmente motivo de jubilo para o espirito da
critica imparcial e justiceira” (Diario de Santos, apud SOUZA, 1902, p.
XIX).
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Divisão da obra

O compêndio está dividido em três partes: Resumo histórico literário, Biographias e


Selecção de trechos. A primeira parte se compõe de um breve resumo histórico literário do
Brasil desde 1500 com o descobrimento até 1889, data da proclamação da República. Nas
subdivisões, D. Cacilda começa com os fatos histórico-políticos importantes e termina com
um breve perfil da literatura da época. Esta parte da obra ocupa 12% do total. A segunda
parte que ocupa 16% da obra traz a biografia crítica dos escritores nacionais em ordem
cronológica. Por fim na terceira parte, a autora reúne uma seleta de trechos de autores
brasileiros, ocupando 72% da obra.

Os trechos selecionados na terceira parte da obra foram escolhidos de modo a atingir o


objetivo de instruir suas alunas e tendo em vista a idade das mesmas. Essa parte da obra é a
mais importante didaticamente, já que o seu valor literário, a extensão e o nível de
complexidade bem selecionados farão a diferença na aprendizagem da língua materna para a
faixa etária a que se destina.

O exemplar analisado é da segunda edição, publicado pela Laemmert & C. Editores,


em 1902. Consta de 384 páginas. Antes das partes a autora publica uma dedicatória as
discípulas Maria Amalia Campos da Paz, Sylvia Barboza Carneiro, Julieta Augusta Claude e
Indiana Jacy de Lima, uma apresentação de José Joaquim do Carmo datado de 27 de
novembro de 1895, a opinião da imprensa e um discurso pronunciado pela autora em festa
escolar de distribuição de diplomas às quatro alunas mencionadas na dedicatória.

Conclusão

Pudemos, neste trabalho, percorrer o caminho das práticas escolares nas escolas
primárias do século XIX, através do estudo do livro didático Noções de literatura nacional da
professora Cacilda Francioni de Souza.

Vimos o aspecto legal para ensinar o tema “noções de literatura nacional” que foi a
reforma de Benjamin Constant, através do Decreto 981, de 8 de novembro de 1890. A
publicação em 1896 do livro Noções de literatura nacional, materializando em um material
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escolar a prática em sala do que foi previsto na norma. Observamos a dificuldade para adoção
do livro, ou seja, que o material impresso pudesse realmente chegar até os alunos.
Verificamos que o livro, em sua primeira edição, somente foi adotado nas escolares
particulares, não sendo aprovado pelo Conselho Diretor para as escolas municipais.

Referências bibliográficas

BRASIL. Ministério de Estado dos Negócios da Instrução Pública. Decreto 981 de 08 de


novembro de 1890. Regulamenta a Instrução Primária e Secundária do Distrito Federal.
Disponível em
<http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaNormas.action?numero=981&tipo_norma=DEC
&data=18901108&link=s>.

CARVALHO, Antonio José de; DEUS, João de. Diccionario prosodico de Portugal e
Brasil. 3ª ed. Porto: Lopes & C. Rio de Janeiro: Frederico Augusto Schmidt, 1885.

CHERVEL, André. História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de pesquisa.
In: LOURO, Guaracira Lopes (Trad.). Teoria & educação. Porto Alegre, 1990, nr. 2. p. 177-
229.

DARNTON, Robert. A questão dos livros: passado, presente e futuro. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010.

JULIA, Dominique. A cultura escolar como objeto histórico. In: Revista Brasileira de
História da Educação. Campinas: Editora Autores Associados, nº 1, Janeiro/Junho. 2001,
p. 9-43.

SILVA, Eduardo. Resistência negra, teatro e abolição da escravatura. SBPH. 2006.


Disponível em: http://sbph.org/2006/sociedade-cultura-e-poder-no-imperio/eduardo-silva
Acesso em: 14 abr. 2011.

SOUZA, Cacilda Francioni de. Noções de literatura nacional. 2ª ed. Rio de Janeiro:
Laemmert & C., 1902.
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SOUZA, Rosa de Fátima de. História da cultura material escolar: um balanço inicial. In:
BENCOSTA, Marcus Levy (org.) Culturas escolares, saberes e práticas educativas:
itinerários históricos. São Paulo: Cortez, 2007, p. 163-189.

i
Integrante do Grupo de Pesquisa História do Ensino das Línguas no Brasil (GPHELB/UFS), estudante do curso
de especialização em Língua Portuguesa e Literatura pela Faculdade São Luis de França. Email:
anselmo.guima@yahoo.com.br

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