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A AMAZÔNIA BRASILEIRA ENTRE O


DIREITO E O DEVER DE INGERÊNCIA:
FUNDAMENTOS PARA UMA
RESSIGNIFICAÇÃO CONTEMPORÂNEA
DO CONCEITO DE SOBERANIA
Charles Alexandre Souza Armada12
Ricardo Bruno Boff13

O segundo semestre de 2019 viu ressurgir uma série de discursos ques-


tionando a soberania do Estado brasileiro em relação à Amazônia. O mais con-
tundente talvez tenha sido o do presidente francês Emmanuel Macron que,
em agosto de 2019, durante a cúpula do G7, sugeriu a possibilidade de inter-
nacionalização da Amazônia: “Esta não é a estrutura da iniciativa que estamos
adotando [no G7], mas é uma questão real que surge, se um Estado soberano
adota medidas concretas que obviamente se opõem ao interesse de todo o pla-
neta”14 (JAIR, 2019).
A declaração de Macron não significou apenas a retomada de um tema
que povoou as décadas de 1980 e 1990, mas também trouxe à baila algumas
questões importantes relacionadas, por exemplo, com a importância da região
12 Doutor e mestre em Derecho Ambiental y de la Sostenibilidad pela Universidade de Alicante
– Espanha. Doutor e mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI.
Professor no Programa de Pós-graduação Lato Sensu no Curso de Relações Internacionais e na
graduação dos Cursos de Direito e Relações Internacionais da UNIVALI. Coordenador do Grupo
de Estudos em Direito Internacional Ambiental e Governança Global e em Meio Ambiente e
Sustentabilidade, ambos pela UNIVALI. Coordenador do Projeto de Extensão “Laboratório de
Cidadania e Sustentabilidade”. Email: charlesarmada@hotmail.com.
13 Mestre em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC.
Doutorando em Estudos Estratégicos Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande
do Sul – UFRGS. Professor no Programa de Pós-graduação Lato Sensu no Curso de Relações
Internacionais e na Graduação dos Cursos de Direito e Relações Internacionais da UNIVALI. Email:
ricardo.boff@univali.br.
14 Tradução livre do autor. Texto original em francês: “Ce n’est pas le cadre de l’initiative que nous
prenons [au G7] mais c’est une vraie question qui se pose, si un Etat souverain prend de manière
concrète des mesures qui d’évidence s’opposent à l’intérêt de toute la planète”.
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para o Brasil e para o mundo, com o direito que um Estado possa ter para inter-
ferir em assuntos internos de outro Estado e com o tema da segurança interna-
cional sob o prisma ambiental.
Dado esse contexto, a presente pesquisa tem, como objetivo geral, analisar
a possiblidade de ressignificação do conceito de soberania a partir do entendi-
mento da Amazônia brasileira como um “bem comum” da humanidade.
Para atingir o objetivo proposto, a pesquisa também procurará: (1) exami-
nar o atual estágio de fragilização e degradação do meio ambiente global em
função do processo de mudanças climáticas e a importância da floresta ama-
zônica nesse contexto; (2) identificar os elementos que permeiam e permitem
os atuais discursos limitadores da soberania brasileira sobre a Amazônia; (3)
delimitar, nesse pano de fundo, os dispositivos do Direito Internacional Públi-
co para confirmar ou refutar um direito e/ou um dever de ingerência sobre a
Amazônia e, consequentemente, uma ressignificação do conceito de soberania.
Ao final, será observado que normas de direito internacional e do tratado
regional amazônico, somadas à conduta negligente, principalmente do Brasil,
tem dado sustentação ao direito, ou dever, de ingerência externa sobre o espaço
amazônico.

1 A AMAZÔNIA BRASILEIRA EM MEIO À CRISE AMBIENTAL GLOBAL

O nível de degradação do meio ambiente global vem aumentando ano a


ano, apesar dos alertas dos cientistas e dos organismos internacionais especia-
lizados.
O processo de aquecimento global (e suas consequências) é considerado
um dos maiores desafios já enfrentados pela humanidade. Contudo, conforme
análises do Climate Action Tracker (2019, p. 1), se as propostas apresentadas
na forma de iNDCs forem totalmente implementadas após 2030, levarão a um
aquecimento mediano de cerca de 2,7 °C até 2100, ou seja, a grande maioria
dos países tem metas que são totalmente inadequadas e, coletivamente, não têm
chance de atingir a meta de temperatura de 1,5 °C do Acordo de Paris.
Dado o presente cenário ambiental global, os serviços ecossistêmicos pres-
tados pela floresta amazônica ganham um contorno especial, para o Brasil e
para o mundo. A floresta amazônica concentra 10% das espécies conhecidas do
planeta, sendo que 75% das espécies vegetais são únicas dessa região e, com
suas três mil espécies de peixes, é o maior viveiro de espécies de peixe de água
doce do mundo (WWF, 2019).
Além disso, a floresta amazônica tem uma capacidade ímpar de sequestrar
o gás carbônico e manter o equilíbrio climático da região. Nobre (2015) destaca
a importância da floresta amazônica na prestação de uma série de serviços ecos-
sistêmicos: na reciclagem de umidade, que mantém o ar úmido na floresta; na
nucleação das nuvens, limpa a atmosfera, tornando o ar mais saudável; na trans-
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piração das árvores, que mantém as chuvas em quaisquer circunstâncias; nos


chamados “rios aéreos” de vapor, que irrigam regiões distantes do continente;
e, finalmente, no efeito dosador e dissipador da energia dos ventos, que inibe a
formação de eventos climáticos extremos (NOBRE, 2015, p. 11-19)
Contudo, o aumento nos níveis de desmatamento ilegal e queimadas na
região vem colocando em risco a continuidade desses serviços. De acordo com
um estudo de Carlos Nobre (2015, p. 2-3):

[...] aproximadamente 40% de remoção da floresta oceano-verde poderá de-


flagrar a transição de larga escala para o equilíbrio da savana, liquidando,
com o tempo, até as florestas que não tenham sido desmatadas. O desmata-
mento por corte raso atual beira os 20% da cobertura original na Amazônia
brasileira, e a degradação florestal, estima-se, já teria perturbado a floresta
remanescente em variados graus, afetando adicionalmente mais de 20% da
cobertura original.

Isso significa que a situação atual da floresta tropical está a meio caminho
do ponto de não retorno ou, em outras palavras, a meio caminho do ponto de
inflexão a partir do qual esse ecossistema pode deixar de ser floresta.
Os estudos científicos promovendo a preservação da floresta não encon-
tram, entretanto, respaldo na realidade fática. As taxas do desmatamento ile-
gal na Amazônia, que haviam apresentado reduções significativas até o ano de
2014, passaram, conforme o Ministério do Meio Ambiente (2019), a apresentar
aumentos expressivos e sucessivos: 5,0 mil km2 em 2014, 6,2 mil km2 em 2015 e
7,9 mil km2 em 2016. Após uma ligeira queda no ano de 2017, o desmatamento
voltou a crescer em 2018, chegando a 7,9 mil km2.
Em agosto de 2019, a divulgação de um crescimento especial nos dados
de desmatamento da Amazônia gerou posicionamentos inusitados por parte
do governo que, inicialmente, desqualificou o órgão responsável pela apuração
e divulgação desses dados, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe),
e, em seguida, levantou suspeitas quanto à veracidade das informações divul-
gadas. O desmatamento verificado pelo Inpe, entre agosto de 2018 até julho de
2019, foi 40% maior do que o período anterior (INPE, 2019).
Aliado aos dados alarmantes a respeito do crescimento do desmatamento
na região, as queimadas também apresentaram um aumento considerável. O
Brasil teve 39% mais incêndios de janeiro a agosto de 2019 do que no mesmo
período de 2018. O ano de 2019 se encaminha para ser o terceiro ano com maior
taxa de incêndios desde 2010 (WEISSE, 2019).
Em adição, Andrade (2019) apresenta que, “Até agora, mais de 76.000 in-
cêndios florestais foram contabilizados no Brasil este ano – a maioria na Ama-
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zônia –, totalizando um aumento de mais de 80% em relação ao mesmo período


do ano passado”.15
A demora na resposta por parte do governo brasileiro em fazer frente,
tanto ao desmatamento ilegal quanto ao aumento no número de queimadas na
Amazônia, trouxe, como consequência, além das críticas da imprensa local e
internacional, uma série de declarações de líderes internacionais repudiando a
inércia do governo brasileiro para lidar com a questão.
A declaração de Emannuel Macron, transcrita na introdução do presente
texto, encontrou eco em diversos outros posicionamentos de lideranças inter-
nacionais ao longo das últimas décadas.
Margareth Thachter, ex-primeira ministra da Inglaterra, afirmou, em
1983, que, “Se os países subdesenvolvidos não conseguem pagar suas dívidas
externas, que vendam suas riquezas, seus territórios e suas fábricas” (FELD-
MAN; FERNANDES, 2007, p. 155). Em 1989, Al Gore, ex-vice-presidente
norte-americano, declarou que, “Ao contrário do que os brasileiros pensam, a
Amazônia não é deles, mas de todos nós” (EM DISCUSSÃO, 2012). Em 1991,
foi a vez François Miterrand, então presidente francês, dizer: “O Brasil preci-
sa aceitar uma soberania relativa sobre a Amazônia” (RAYES, 2019). No ano
seguinte, em 1992, Mikhail Gorbatchev, ex-presidente da União Soviética, afir-
mou que “O Brasil deve delegar parte dos seus direitos sobre a Amazônia aos
organismos internacionais competentes” (EM DISCUSSÃO, 2012). Em 1994,
John Major, ex-primeiro ministro da Grã-Bretanha, tratando a Amazônia como
bem comum da humanidade, disse: “As nações desenvolvidas devem estender o
domínio ao que é comum de todos no mundo” (ARBEX, 2002, p. 28). Em 1996,
Henry Kissinger, ex-secretário de Estado dos Estados Unidos, afirmou: “Os
países industrializados não poderão viver da maneira como existiram até hoje
se não tiverem à sua disposição os recursos naturais não renováveis do planeta.
Terão que montar um sistema de pressões e constrangimentos garantidos de
consecução de seus intentos” (TORRES, 2005, p. 39). Em 2005, o então presi-
dente da Organização Mundial do Comércio, Pascal Lamy, sugeriu que “A saída
para a questão da preservação da Amazônia seria a patrimonialização global
sobre seus recursos” (FERNANDES, 2017). Em 2006, Patrick Hughes, general
norte-americano e ex-diretor da Agência de Inteligência de Defesa dos Estados
Unidos, foi mais enfático e incisivo ao afirmar que, “Caso o Brasil resolva fazer
uso da Amazônia, pondo em risco o meio ambiente nos Estados Unidos, temos
que estar prontos para interromper esse processo imediatamente” (MIRANDA,
2005, p. 198).
Apesar das frases coletadas estarem dispostas, nesta pesquisa, em ordem
cronológica, a frase escolhida para encerrar esta seção reforça uma característi-
15 Tradução livre do autor. Texto original: “So far this year, more than 76,000 wildfires have burned
in Brazil – the majority in the Amazon – amounting to an increase of more than 80% over the same
time period last year”.
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ca própria do meio ambiente. Em 1997, a então secretária de Estado dos Esta-


dos Unidos, Madeleine Albright, contextualizou a questão da seguinte maneira:
“Quando o meio ambiente está em perigo, não existem fronteiras” (ARBEX,
2002, p. 28).

2 FUNDAMENTOS PARA UMA SOBERANIA RESSIGNIFICADA

Os discursos tratando da possibilidade ou da necessidade de ingerência em


assuntos de preservação da Amazônia brasileira passam por uma discussão de
questões envolvendo a soberania estatal ou, mais propriamente, a ressignifica-
ção do conceito de soberania.
Apesar dos impactos que esse conceito vem recebendo ao longo dos séculos
e, de modo particular, a partir da segunda metade do século XX, a soberania
ainda é a linha mestra da relação entre os Estados.
Contudo, alguns movimentos vêm se desenvolvendo de modo a contribuir
para essa discussão. Esses novos elementos vêm ganhando importância e des-
taque ao longo das últimas décadas, a ponto de permitirem o ressurgimento da
discussão a respeito da ressignificação do conceito de soberania.
Os movimentos relacionados com a temática em questão, e que vêm per-
cebendo um desenvolvimento destacado, são: a evolução do Direito Ambiental
Internacional, o recrudescimento dos impactos relacionados com o processo
em curso de mudanças climáticas globais e, diretamente relacionado com esse
item, a importância da Região Amazônica como bem comum da humanidade e,
finalmente, o entendimento do meio ambiente como um direito humano.
O Direito Ambiental Internacional tem verificado um desenvolvimento
sistemático e consistente nas últimas cinco décadas. Desde a realização da pri-
meira Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente, em Estocolmo,
no ano de 1972, a questão ambiental permanece pautando as principais discus-
sões e reuniões da comunidade internacional.
Ao longo dessas quase cinco décadas, a Governança Ambiental Global ob-
teve avanços significativos na promoção das quatro Conferências das Nações
Unidas sobre o Meio Ambiente, bem como na criação de diversos instrumentos
importantes para a defesa e a manutenção da qualidade do meio ambiente global.
Dentre outros importantes instrumentos do Direito Ambiental Internacional,
cabe destacar: o Protocolo de Montreal, a Convenção-Quadro das Mudanças
Climáticas, o Protocolo de Quioto, a Convenção da Biodiversidade, a Agenda
2030, os Objetivos do Milênio, os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável e
o Acordo de Paris.
É possível afirmar que o desenvolvimento do direito ambiental dos Estados
nacionais, particularmente do Direito Ambiental brasileiro, está intimamente
relacionado com o desenvolvimento do Direito Ambiental Internacional. Mui-
tos dos princípios norteadores do Direito Ambiental brasileiro, por exemplo,
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são oriundos de discussões em conferências promovidas pela Governança Am-


biental Global.
O princípio da prevenção, por exemplo, foi estabelecido no Princípio 7 da
Declaração de Estocolmo, no âmbito da Conferência das Nações Unidas sobre
o Meio Ambiente Humano (1972):

Os Estados deverão tomar todas as medidas possíveis para impedir a poluição


dos mares por substâncias que possam pôr em perigo a saúde do homem, os
recursos vivos e a vida marinha, menosprezar as possibilidades de derrama-
mento ou impedir outras utilizações legítimas do mar.

O princípio da precaução surgiu através do Princípio 15 da Declaração do


Rio, na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvi-
mento (MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE, 1992):

Com o fim de proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deverá


ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades.
Quando houver ameaça de danos graves ou irreversíveis, a ausência de cer-
teza científica absoluta não será utilizada como razão para o adiamento de
medidas economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental.

O princípio do poluidor-pagador teve origem em 1972, na Recomendação


da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). A
Declaração da Rio/92 contemplou esse princípio em seu Princípio 16 (MINIS-
TÉRIO DO MEIO AMBIENTE, 1992):

Princípio 16 – Tendo em vista que o poluidor deve, em princípio, arcar com o


custo decorrente da poluição, as autoridades nacionais devem procurar pro-
mover a internalização dos custos ambientais e o uso de instrumentos econô-
micos, levando na devida conta o interesse público, sem distorcer o comércio
e os investimentos internacionais.

Finalmente, o princípio do não retrocesso em matéria ambiental foi discuti-


do na Conferência da Organização das Nações Unidas sobre o Desenvolvimen-
to Sustentável, também conhecida como Rio+20, e apresentado originalmente
na primeira edição da obra Droit de l’environnement, de Michel Prieur, publicado
pela Editora Dalloz, em 1984 (PRIEUR, 2012, p. 15-16).
A esses princípios norteadores do Direito Ambiental, com destacada in-
fluência do Direito Ambiental Internacional, poder-se-ia acrescentar o princí-
pio do desenvolvimento sustentável, o princípio da publicidade, o princípio do
usuário-pagador, dentre outros.
Paralelamente ao desenvolvimento do Direito Ambiental Internacional,
percebeu-se a adaptação de diversas cartas constitucionais a um novo modelo
que continuasse atendendo às demandas sociais, mas que também passasse a
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incluir as questões ambientais. Nos países latino-americanos, esse movimento


de adaptação das cartas constitucionais recebeu o nome de Novo Constitucio-
nalismo Latino-americano.
O Novo Constitucionalismo Latino-americano inovou ao alçar o meio
ambiente como um direito humano e, conforme as cartas magnas de Bolívia e
Equador, foi mais longe ao considerar o próprio meio ambiente como detentor
de direitos (ARMADA, 2014, p. 49-62). Nessas constituições, a Pachamama é
apresentada como a encarnação da Mãe Terra.
O Brasil, integrante do Novo Constitucionalismo Latino-americano, come-
morou, em 2018, os trinta anos de sua “constituição verde” com reconhecidos
avanços em matéria ambiental. Cabe destacar que o reconhecimento do meio
ambiente como um direito do ser humano não é exclusividade dos países latino-
-americanos. Há no mundo, hoje, mais de 100 (cem) constituições que garantem
o direito ao meio ambiente sadio e preservado. (CONSTITUTE PROJECT,
2020).
Esse novo direito deve ser garantido pelo poder público estatal, tendo em
vista o reconhecimento dado pelas constituições, mas também deve ser garan-
tido pelo Direito Internacional. E esse reconhecimento no âmbito do Direito
Internacional também vem recebendo novos contornos.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos, organização integrante do
sistema internacional de proteção dos Direitos Humanos, passou a reconhecer o
meio ambiente como um dos direitos humanos que devem ser garantidos pelos
Estados signatários da Corte. Segundo Almeida (2019), a partir da solicitação
de uma opinião consultiva pela Colômbia, em março de 2016, a Corte, através
da Opinião Consultiva n. 23 de 2017 (OC-23/17), entendeu:

[...] que existe uma interdependência, relação intrínseca e necessária, por-


tanto, indissociável, entre a ideia de direitos humanos, meio ambiente e o
desenvolvimento sustentável. Para que os primeiros sejam satisfeitos ple-
namente, ou seja, sejam realizados, devem ser observados e levados a sério,
como pressupostos necessários (e também como condições concomitantes) a
tutela e respeito aos últimos.

A OC-23/17 é um verdadeiro divisor de águas no entendimento do meio


ambiente como um direito humano no escopo do Direito Internacional Público.
Vale lembrar que os principais documentos internacionais de direitos humanos
não contemplavam, até a OC-23/17, o meio ambiente como um direito.
Além dos exemplos já citados, o entendimento (e o reconhecimento) do
meio ambiente como um direito humano também vem sendo utilizado como
um dos principais fundamentos para uma série de demandas judiciais de nacio-
nais contra os seus próprios governos, no tocante ao alinhamento das políticas
públicas aos compromissos assumidos perante o acordo climático de Paris, ce-
lebrado em 2015.
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Finalmente, o último ponto a ser destacado, e que também tem percebido


uma evolução nas últimas décadas, está relacionado com a incapacidade dos Es-
tados de lidarem com os desafios das mudanças climáticas globais. Nesse senti-
do, o recrudescimento dos impactos (previstos e observados) destaca a relação
deste tema com a questão da segurança internacional.

3 A SOBERANIA ENTRE O DIREITO DE INGERÊNCIA E O DEVER DE


INGERÊNCIA

A possibilidade de intervenção ecológica decorre da consciência de que os


recursos naturais são essenciais para a manutenção da vida e condicionam a
existência da humanidade, mas estão dispostos na natureza de forma significati-
vamente desigual e caminham para o esgotamento (BRANCHER, 2012, p. 103).
É particularmente importante frisar o Princípio 21 da Declaração de
Estocolmo (1972). Esse princípio, apesar de reforçar a importância da sobera-
nia estatal, alerta para a obrigação que os Estados têm de não colocar em risco
o meio ambiente sob sua jurisdição de modo a prejudicar Estados vizinhos:

Princípio 21: Em conformidade com a Carta das Nações Unidas e com os


princípios de direito internacional, os Estados têm o direito soberano de ex-
plorar seus próprios recursos em aplicação de sua própria política ambiental
e a obrigação de assegurar-se de que as atividades que se levem a cabo, dentro
de sua jurisdição, ou sob seu controle, não prejudiquem o meio ambiente de
outros Estados ou de zonas situadas fora de toda jurisdição nacional.

De acordo com o entendimento de Dupuy (2019, p. 5), a proteção da região


florestal na Amazônia, entendida como um bem comum da humanidade, pode
ter o apoio da Corte Internacional de Justiça através de um pedido de parecer
consultivo pela Assembleia Geral.
Mas não é somente através de normas de organizações multilaterais de
alcance global, como aquelas vinculadas às Nações Unidas, que a soberania tra-
dicional, limitada ao Estado-nação, pode ser relativizada ou mesmo superada.
Também é possível que organizações de alcance regional, compostas por paí-
ses limítrofes, cumpram esse papel. No caso da Região Amazônica, desde 1995
está em funcionamento a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica
(OTCA), constituída por oito países membros: Bolívia, Brasil, Colômbia, Equa-
dor, Guiana, Peru, Suriname e Venezuel16 (NUNES, 2016).

16 A Organização institucionalizou o Tratado de Cooperação Amazônica, assinado em 1978. Apesar


das reuniões periódicas de ministros, de vários encontros de chefes de Estado e do lançamento de
programas de cooperação em diversas áreas, a OTCA tem falhado pela baixa operacionalização de
seus programas, o que ocorre, principalmente, devido a divergências políticas e escasso interesse dos
governos dos países membros.
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A organização possui diversos programas de cooperação, que envolvem


proteção à floresta, às águas e às populações humanas, aproveitamento econô-
mico, concessão mútua de livre-navegação, dentre outros. Entretanto, seu trata-
do deixa claro que não haverá órgão supranacional que ultrapasse os limites da
soberania estatal, ressalvado apenas o respeito ao Direito Internacional, como
se lê no artigo IV do Tratado:

Las Partes Contratantes proclaman que el uso y aprovechamiento exclusivo


de los recursos naturales en sus respectivos territorios es derecho inherente
a la soberanía del Estado y su ejercicio no tendrá otras restricciones que las
que resulten del Derecho Internacional. (OTCA, 2020).

Ou seja, a própria OTCA, que poderia adotar os moldes de uma “soberania


ampliada”, colocando-se entre a soberania tradicional (normas do Estado) e a
internacionalização (normas das organizações internacionais), acaba por refor-
çar o entendimento tradicional: preservação da soberania, mas com respeito ao
Direito Internacional.
Desse modo, volta-se à questão fundamental: seria a ingerência ecológica
ou, em outros termos, a interferência (ou intromissão) em assuntos ambientais
internos de um dado Estado, uma afronta ao princípio da soberania estatal?
Poderia ser, por outra ótica, um instrumento de salvaguarda dos interesses co-
muns de outros Estados, ou seja, um direito estatal? Conforme o artigo 21 da
Declaração de Estocolmo (assinada por todos os países amazônicos), reforçada
pelo respeito ao Direito Internacional por parte da OTCA, é dever de cada na-
ção zelar pelo meio-ambiente, de modo a não prejudicar outras nações. Se cons-
tatado que a má gestão da hileia amazônica, seja por parte do Brasil, seja por
qualquer outro país, pode resultar em danos que ultrapassem suas jurisdições
(ou seja, a humanidade como um todo), torna-se lícito, legítimo e autorizado
que mecanismos internacionais sejam acionados em prol da proteção da Ama-
zônia. Relativiza-se, dessa forma, o princípio da soberania estatal. Conforme
Brancher (2012, p. 115):

Mesmo com a presença de soft norms, é certo que todos os Estados têm o de-
ver de colaborar com a política internacional de preservação ambiental, res-
peitando os acordos que firmaram, adotando medidas de proteção, prevenção
e reparação e evitando a ocorrência de danos ambientais locais, assim como
de catástrofes que transcendam os limites geográficos e afetem outras nações.

De um lado, a ingerência no domínio do ambiente é um direito que surge


quando a ação ou omissão de um Estado é responsável pelo desrespeito aos di-
reitos fundamentais das pessoas que residem no seu solo. O fazer ou não fazer
dos Estados e a má gestão do meio ambiente na parte objeto de sua respectiva
soberania gera o “direito” de ingerência. Por outro lado, a ingerência ecológica
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também é um “dever” dos Estados, porque a responsabilidade pela proteção do


meio ambiente exige uma ação coletiva e partilhada (COLOMBO, 2007).
Na prática, já existem diversos exemplos do exercício desse direito/dever
diante da omissão dos cuidados para com a Amazônia, especialmente por parte
do Brasil: o discurso do presidente francês Emanuel Macron no final de 2019;
um artigo publicado na Revista Science, envolvendo 602 cientistas, solicitando
à União Europeia que condicionasse as importações do Brasil ao cumprimento
de obrigações com o meio ambiente; e a pressão de alguns países da União Eu-
ropeia sobre o Brasil, para que assuma compromissos de preservação ambiental
(especialmente na Amazônia), como condição para dar continuidade ao acordo
entre esta organização e o Mercosul.
As queimadas na Amazônia e a retórica antiambientalista do presidente
Jair Bolsonaro também contribuem, conforme Oliver Stunkel (2019), para a
reação contrária ao acordo interblocos na Europa: “Ao afirmar que votaria con-
tra o acordo comercial entre a União Europeia e o Mercosul, Macron recebeu
apoio tanto dos ambientalistas, que detestam o presidente brasileiro, quanto
dos agricultores franceses, que se opõem ao pacto”.
Ressalte-se, por fim, que o direito/dever de ingerência sobre nações omis-
sas nos cuidados ambientais não deve se restringir à região amazônica, tampou-
co ao sul global. Sob o prisma da igualdade e da reciprocidade entre as nações,
países ditos “desenvolvidos” também deveriam ser objeto de ingerência em caso
de ações prejudiciais ao meio ambiente. Sabe-se, no entanto, que questões de
poder e força geopolítica dificultam ou impossibilitam que isso aconteça.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como exposto neste texto, a negligência com a Amazônia, principalmente


por parte do Brasil, consiste em um problema histórico que “insiste” em perma-
necer e tem se agravado nos últimos anos. Relacionado à retórica antiambien-
talista do governo Bolsonaro, ao ceticismo à ciência e à defesa intransigente da
soberania, estão os aumentos nos níveis de desmatamento, principalmente via
queimadas, em toda a região. Esse fato desperta reações de lideranças interna-
cionais, como chefes de Estado, ministros, cientistas, celebridades e imprensa
em geral.
A Governança Ambiental Global, no entanto, vem obtendo avanços signi-
ficativos e ganhando robustez. A promoção de Conferências das Nações Unidas
sobre o Meio Ambiente criou instituições e instrumentos legais, como o Proto-
colo de Montreal, a Convenção-Quadro das Mudanças Climáticas, o Protocolo
de Quioto, a Convenção da Biodiversidade, a Agenda 2030, os Objetivos do Mi-
lênio, os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável e o Acordo de Paris. Além
disso, princípios como da prevenção, do poluidor-pagador e do não retrocesso
em matéria ambiental, dentre outros, consolidam juridicamente a responsabili-
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dade ambiental internacional. Na América Latina, o novo Constitucionalismo


Latino-americano consagra direitos da mãe terra e torna a natureza sujeito de
direitos, não apenas mero objeto de exploração. Já a Corte Interamericana de
Direitos Humanos reconheceu o meio ambiente como parte dos direitos huma-
nos.
Diante dessa evolução, fica clara a responsabilidade ambiental dos Estados
e a proibição de que o exercício individual da soberania venha a prejudicar aos
demais. No princípio 21 da Declaração de Estocolmo, o exercício da soberania
é limitado pelo dever de não prejudicar outros Estados; já no artigo IV do Tra-
tado de Cooperação Amazônico, a soberania deve ser exercida com respeito ao
Direito Internacional. Ou seja: há sustentação jurídica para que o soberanismo
tradicional dê lugar, pelo menos parcialmente, à ingerência internacional, ba-
seada nas normas legitimamente criadas pelas organizações competentes, que
geram ao mesmo tempo um direito e um dever de proteção ambiental interna-
cional.
Conclui-se que a melhor defesa à soberania que os Estados amazônicos
podem fazer é respeitar as normas e princípios de proteção internacional, elimi-
nando, assim, os motivos que fundamentam uma possível ingerência externa.
Ao criar mecanismos de proteção, os países amazônicos, sobretudo o Brasil, não
apenas afastariam o risco de ingerência, como adquiririam cacife para exigir
maiores cuidados com o meio ambiente de outros países, inclusive do norte
global, podendo eles próprios reivindicar a intervenção. Entretanto, diante da
relutância do governo brasileiro em proteger seu patrimônio natural, o Brasil
não apenas seguirá correndo risco de prejudicar a implementação de acordos
comerciais (ex. Mercosul – União Europeia), como continuará dando motivo
para que o intervencionismo internacional, bem ou mal intencionado, siga ten-
do a Amazônia como seu principal destinatário.

REFERÊNCIAS

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