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Política externa: as relações internacionais em mudança

Publicado por: Imprensa da Universidade de Coimbra


URL URI:http://hdl.handle.net/10316.2/2759
persistente:
DOI: DOI:http://dx.doi.org/10.14195/978-989-26-0086-4

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pombalina.uc.pt
digitalis.uc.pt
Maria Raquel Freire
Coordenação

Política Externa
As Relações Internacionais
em Mudança

• COIMBRA 2011
(Página deixada propositadamente em branco)
1

E N S I N O
EDIÇÃO
2 Imprensa da Universidade de Coimbra
Email: imprensauc@ci.uc.pt
URL: http://www.uc.pt/imprensa_uc
Vendas online http://www.livrariadaimprensa.com

CONCEPÇÃO GRÁFICA
António Barros

INFOGRAFIA
Carlos Costa
Imprensa da Universidade de Coimbra

EXECUÇÃO GRÁFICA

Sereer, Soluções Editoriais

ISBN

978-989-26-0086-4

ISBN Digital

978-989-26-0935-5

DOI

978-989-26-0086-4

DEPÓSITO LEGAL
322732/11

Obra Publicada com o apoio:

© JANEIRO 2011, IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA


Maria Raquel Freire
Coordenação

Política Externa
As Relações Internacionais
em Mudança

• COIMBRA 2011
(Página deixada propositadamente em branco)
5

Sumário

Prefácio.. .................................................................................................................. 7

Introdução, Maria Raquel Freire.............................................................................. 9

Capítulo 1...............................................................................................................13
Política externa: modelos, actores e dinâmicas, Maria Raquel Freire e Luís da Vinha

Capítulo 2...............................................................................................................55
Alemanha, Patrícia Daehnhardt

Capítulo 3...............................................................................................................77
Arábia Saudita, Ana Santos Pinto

Capítulo 4...............................................................................................................97
Brasil, Carmen Fonseca

Capítulo 5.............................................................................................................125
Estados Unidos da América, Luís Tomé

Capítulo 6.............................................................................................................149
Federação Russa, Maria Raquel Freire

Capítulo 7.............................................................................................................171
França, Verónica Martins
Capítulo 8.............................................................................................................201
Grã-Bretanha, Carlos Gaspar

6
Capítulo 9.............................................................................................................229
Índia, Constantino Xavier

Capítulo 10...........................................................................................................253
Japão, Paula Marques dos Santos

Capítulo 11...........................................................................................................279
Portugal, Nuno Severiano Teixeira

Capítulo 12...........................................................................................................287
República Federal da Nigéria, Paula Duarte Lopes e Daniela Nascimento

Capítulo 13...........................................................................................................313
República Islâmica do Irão, Licínia Simão

Capítulo 14...........................................................................................................339
República Popular da China, Carmen Amado Mendes

Capítulo 15...........................................................................................................361
Turquia, André Barrinha

Notas Biográficas..................................................................................................387
7

Prefácio

Este volume resulta da necessidade sentida no âmbito das unidades


curriculares de política externa que lecciono, de um trabalho inclusivo,
combinando uma componente teórica com vários estudos de caso sobre
política externa que constitua uma base sólida para a análise e discussão de
tendências e dinâmicas que definem as variações e ajudam a compreender
as modelações nos vários processos de decisão e implementação de política
externa, em contextos diferenciados. Os textos que constituem este volume
respondem a esta necessidade de uma forma não só abrangente, como pro-
fundamente informativa em termos da diversidade de modelos, processos
e formas de implementação das políticas externas de diferentes Estados.
A inclusão num mesmo volume de estudos sobre países tão distintos como
a Alemanha, Arábia Saudita, Brasil, Estados Unidos da América, Federação
Russa, França, Grã-Bretanha, Índia, Japão, Portugal, República Federal da
Nigéria, República Islâmica do Irão, República Popular da China, e Turquia,
é indicativa da riqueza que este volume constitui e um primeiro passo para
discussões que permitam análises aprofundadas e, mesmo criativas, de
dinâmicas associadas à política externa. Não poderia deixar de agradecer
a todos/as quantos se envolveram neste projecto desde o seu início, e me
acompanharam na construção deste volume, através da sua dedicação e
empenho. De facto, o volume que temos em mãos não teria sido possível
sem a colaboração incondicional de todos/as os autores. Agradeço ainda à
Imprensa da Universidade de Coimbra o imediato interesse por este projecto,
bem como o acompanhamento do mesmo, através do apoio necessário para
a sua consecução, e que se revelou fundamental na concretização deste
trabalho. E espero, que de facto este seja um contributo útil para todos/as
aqueles que se interessam por estudos de política externa.

8
Coimbra, Novembro de 2010
Maria Raquel Freire
Maria Raquel Freire

Introdução

Este volume tem como temática central a análise de política externa, uma
área vasta, onde o cruzamento de factores internos e externos se evidencia
nos processos de definição, decisão e implementação de políticas. De facto,
o volume explora os processos associados à formulação e implementação
da política externa, como estruturas institucionais, definição da agenda, ins-
trumentos, processo de decisão e prossecução de objectivos, permitindo um
entendimento amplo, num enquadramento multi-nível, embora não exaustivo
das principais dinâmicas associadas à política externa. No entanto, e dado
tratar-se de uma área muito abrangente, o estudo aqui desenvolvido segue
um enfoque de análise político, securitário e económico, em diferentes pesos
e com abordagens distintas, contudo sem detalhar outras áreas de actuação
que fazem parte de uma agenda alargada de política externa, como por
exemplo questões ambientais ou de natureza cultural, cuja menção surge em
alguns casos, embora não como foco de análise prioritário. Além do mais,
apesar da política externa não ser actualmente um domínio exclusivo dos
Estados, constitui ainda uma área de actuação por excelência destes, pelo
que este volume apenas se foca na análise de política externa de Estados
enquanto actores das relações internacionais.
Este exercício, explanado no capítulo teórico, visa fornecer os instrumen-
tos conceptuais e analíticos de base para a compreensão dos vários estudos
de caso que se seguem. Deste modo, o volume apresenta uma componente
empírica muito forte, entendida como essencial para o entendimento dos
processos diferenciados de formulação, implementação e objectivação da
política externa de Estados distintos. Esta opção é ilustrativa da vontade
de que este volume constitua um trabalho de referência inclusivo, onde se
encontram casos díspares ilustrativos da grandeza diferencial dos processos
em análise de acordo com uma série de factores quer de ordem interna,
10
incluindo órgãos e procedimentos de decisão, recursos económicos e mi-
litares, entre outros, quer de ordem externa, nomeadamente o contexto
de vizinhança, regional e mesmo internacional. Seguindo esta fórmula, os
estudos de caso exploram os objectivos, actores e instrumentos na formula-
ção e condução das políticas externas destes países, relacionando factores
domésticos e externos fundamentais nesta articulação, e entendidos neste
trabalho como co-constitutivos na definição e entendimento de política
externa de qualquer Estado. São aqui analisados como estudos de caso, e
por ordem alfabética, os seguintes países: Alemanha, Arábia Saudita, Brasil,
Estados Unidos da América, Federação Russa, França, Grã-Bretanha, Índia,
Japão, Portugal, República Federal da Nigéria, República Islâmica do Irão,
República Popular da China, e Turquia.
A escolha dos estudos de caso prendeu-se com três factores essenciais:
primeiro, o facto de se tratar de actores relevantes nas relações interna-
cionais, constituindo por isso mesmo um conjunto de actores dinâmicos e
com implicações claras na determinação e curso de transformação da ordem
internacional; segundo, procurando exprimir, ainda que de forma limitada,
equilíbrios geográficos através da identificação de actores diferenciados
na estrutura mundial; e terceiro, e não menos importante, representati-
vidade da diferença existente em termos dos processos de formulação e
implementação das políticas externas, mesmo em áreas regionais próximas,
como por exemplo ilustrarão os estudos de caso de países europeus, como
a Alemanha, França, Grã-Bretanha ou Portugal. Estes elementos permitem
assim uma combinação que julgamos da maior relevância para um trabalho
desta natureza e que entendemos tratar-se de um contributo fundamental
para os estudos de política externa.
Em termos da estrutura do Manual, este visa analisar a política externa
dos países em questão num período temporal definido, embora não necessa-
riamente determinístico, desde a Segunda Guerra Mundial até à actualidade,
com maior destaque para o período pós-Guerra Fria. Os capítulos seguem
uma estrutura similar ajustada de acordo com as particularidades de cada
caso, que são variadas e evidentes, com o objectivo de garantir maior coesão
no resultado final. Deste modo, em traços gerais, os capítulos empíricos
identificam os principais actores, mecanismos e processos associados à
11
formulação e decisão em política externa, e analisam a evolução desta, sa-
lientando as articulações das dinâmicas existentes com a actualidade. São
apresentadas as diferentes perspectivas e opções subjacentes ao processo
evolutivo de formulação e implementação de políticas, explorando relações
de maior ou menor proximidade com terceiros (relações de vizinhança,
inserção no quadro regional, posicionamento nas relações internacionais),
políticas de envolvimento/isolacionismo, limites e possibilidades. Ou seja,
prosseguindo a análise das políticas externas numa relação co-constitutiva,
fazendo a interligação entre recursos, instrumentos e actores internos com
o contexto externo, nas diferentes dimensões em que o Estado em análise
se insere. O resultado é um volume rico, em termos teóricos e empíricos,
que se pretende uma ferramenta de trabalho fundamental para todos os
que se dedicam ao estudo da política externa.
(Página deixada propositadamente em branco)
Maria Raquel Freire
e Luís da Vinha

13

Capítulo 1

Po l í t i c a e x t e r n a : m o d e l o s , a c t o r e s e d i n â m i c a s

A política externa, tradicionalmente associada aos Estados, mas crescen-


temente associada a outros actores, como a União Europeia (UE), projecta
interesses e objectivos domésticos/internos para o exterior. É assim enten-
dida como uma ferramenta essencial no posicionamento dos actores no
sistema internacional. No entanto, o desenho, formulação e implementação
da política externa não é um processo simplista e linear, como analisado
nos diferentes modelos teóricos e na necessidade de conjugação destes
para um entendimento mais compreensivo do processo; e não tem lugar de
forma isolada, revelando o carácter co-constitutivo das dimensões interna
(doméstica) e externa (internacional) que acompanham todo o processo.
A discussão agente/estrutura é, neste quadro, um referencial fundamental
com alguma discordância relativamente à prevalência do agente sobre a
estrutura ou, ao invés, da condicionalidade que a estrutura impõe ao agente.
Neste contexto, a proposta avançada por James Rosenau (1966, 1969) de
que a política externa implica uma relação bi-direccional entre as dimensões
interna e externa, ultrapassando a convicção tradicional de que a política
externa é dirigida por factores internacionais, foi generalizada nos estudos
nesta área. Contudo, a discussão mantém-se relativamente ao peso relati-
vo de cada uma destas dimensões no processo de formulação da política
externa. Por um lado, há autores que argumentam que o contexto interno
constitui a variável relevante na definição e prioritização da agenda de po-
lítica externa (Neack et al., 1995; Saideman e Ayres, 2007: 191); por outro,
as abordagens estruturalistas focam no papel da estrutura como informando
os desenvolvimentos internos, e desse modo constituindo o elemento de
referência fundamental (Keohane e Nye, 2000; Waltz, 1979).
14
Para além da tradução do debate agente/estrutura na teorização sobre
política externa, outras dimensões de análise têm sido incorporadas em
alguns estudos, nomeadamente questões mais subjectivas, mas não menos
relevantes, como atitudes, crenças, valores e interesses subjacentes aos pro-
cessos de formulação e decisão, e que têm contribuído essencialmente para
a análise das motivações implicadas nos processos de política externa. Este
debate implica a discussão do papel e características individuais do decisor,
bem como a consideração dos quadros ideológicos em que as decisões são
tomadas (Carlsnaes, 2003; Houghton, 2007; Jørgensen, 2006; Snyder et al.,
1954). Como expressão deste desenvolvimento, estudos recentes introdu-
ziram novas metodologias na análise de política externa, como análise de
discurso, estudando a linguagem da política externa (Campbell, 1993; Doty,
1997; Larsen, 1997; Sjöstedt, 2007). A análise de política externa tornou-se,
assim, uma área de estudo complexa implicando múltiplas variáveis relati-
vamente aos níveis de análise, actores, processos e resultados.
Este capítulo avança com algumas definições de política externa, apre-
senta os modelos teóricos de formulação e decisão em política externa, e
explicita diferentes variáveis que devem ser tidas em conta em análises de
política externa. Não pretendendo ser exaustivo, procura mapear as bases
teóricas essenciais associadas à política externa, fornecendo os enqua-
dramentos para uma análise mais detalhada e compreensiva de políticas
externas diferenciadas.

As origens da análise de política externa

A análise de política externa enquanto abordagem teórica distinta teve


a sua origem no período a seguir à Segunda Guerra Mundial. Segundo
Hudson e Vore (1995) três trabalhos distintos estão na génese desta abor-
dagem: Foreign Policy Decision-Making de Richard Snyder, Henry Bruck e
Burton Sapin (1954); Man-Milieu Relationship Hypothesis in the Context of
International Politics de Harold e Margaret Sprout (1956 e desenvolvido
mais detalhadamente em 1965 no livro The Ecological Perspective on Human
Affairs: With Special Reference to International Politics); e Pre-theories and
15
Theories of Foreign Policy de James Rosenau (1966).
O estudo de Snyder, Bruck e Sapin foi inovador e importante, pois
identificou o decisor humano como o principal determinante do compor-
tamento do Estado. Desta forma, o foco da análise centrou-se no decisor e
no seu entendimento da situação. Mais concretamente, «o objectivo analítico
principal é a recriação do ‘mundo’ dos decisores conforme eles o vêem»
(Snyder, Bruck e Sapin, 2002: 59). Igualmente significativo, o trabalho de
Herman e Margaret Sprout foi fundamental para determinar a relação entre
o psycho-milieu (o meio percepcionado pelos decisores e ao qual reage) e
o operational milieu (o meio no qual as decisões são executadas). Relati-
vamente à formulação e ao conteúdo das decisões políticas, o que importa
é a forma como os decisores imaginam que o meio é, e não a forma como
realmente é. Relativamente aos resultados operacionais das decisões, o que
importa é como as coisas são, e não a forma como os decisores imaginam
que são (Sprout e Sprout, 1957: 327-328). Por sua vez, o artigo de Rosenau,
reforçando a necessidade de aplicar conhecimentos de outras ciências sociais
nas explicações de política externa, contribuiu para uma análise multi-nível
e multi-causal da complexidade associada à compreensão da mesma.
Embora os estudos de política externa tenham desenvolvido diferentes
abordagens, os trabalhos acima referidos estabeleceram os pressupostos
teóricos basilares da disciplina (Hudson e Vore, 1995), nomeadamente: o
conhecimento das especificidades dos indivíduos envolvidos nas decisões
de política externa é crucial para a compreensão das escolhas; a informação
sobre estas especificidades deve ser incorporada na construção de teorias
transnacionais e de médio-alcance; as teorias resultantes devem integrar
múltiplos níveis de análise; e a compreensão do processo de formulação
da política externa é tão importante, se não mais importante, do que a
compreensão dos outputs da política externa.
Embora todos os trabalhos incorporassem estes pressupostos, cada um
contribuiu de forma particular para o crescimento e consolidação de abor-
dagens distintas na análise da política externa. Desta forma, o trabalho de
Snyder, Bruck e Sapin catalisou os estudos dedicados à decisão de política
externa, com especial enfoque nos processos de decisão e nas estruturas
dos grupos responsáveis por essas mesmas decisões. Ao distinguir entre os
16
diferentes milieu, os Sprout estiveram na génese dos trabalhos dedicados ao
contexto da política externa, nomeadamente os que procuram compreender
a dimensão cognitiva dos decisores (crenças, atitudes, valores, emoções,
estilos, percepções). O enfoque teórico de Rosenau, por sua vez, estabe-
leceu os alicerces para os trabalhos de política externa comparada, com a
sua ênfase na análise dos ‘eventos’ de política externa.
O sucesso destes diferentes trabalhos fez da análise de política externa
uma componente central para a compreensão da política internacional.
Porém, desde o fim da Guerra Fria os pressupostos subjacentes à análise
de política externa adquiriram uma renovada importância e centralidade
(Hagan, 2001). Devido à dificuldade das teorias tradicionais dominantes
em explicar a complexidade da política contemporânea, o enfoque nos
indivíduos e nos processos de decisão passou a assumir um lugar central
na política internacional. Os novos desafios do pós-Guerra Fria cimentaram
a convicção de que as teorias tinham de reconhecer que «com cada trans-
formação sistémica… a vontade e imaginação humana são fundamentais ao
influenciar a condução dos assuntos globais» (Hudson e Vore, 1995: 210).
A natureza fluida do mundo pós-Guerra Fria amplificou a exigência de en-
contrar modelos capazes de lidar melhor com a complexidade da política
internacional do que os modelos sistémicos tradicionais. De acordo com
Hudson (2008), a análise de política externa contemporânea mantém os
compromissos teóricos particulares que a demarcaram desde a sua concepção
e que hoje se continuam a demonstrar relevantes para uma compreensão
mais efectiva da complexidade da política internacional.

Compreender a política externa

Não existe uma definição absoluta e consensual de política externa,


mas as várias definições avançadas contêm atributos e pressupostos
semelhantes:
«o sistema de actividades desenvolvido pelas comunidades para modificar
o comportamento de outros Estados e para ajustar as suas próprias
actividades ao ambiente internacional» (George Modelski apud Kegley e
17
Wittkopf, 1995: 45);

«o esforço de uma sociedade nacional para controlar o seu ambiente


externo pela preservação das situações favoráveis e a modificação das
situações desfavoráveis» ( James Rosenau apud Zorgbibe, 1990: 433);

«programa orientado para a resolução de objectivos ou de problemas


elaborado pelos decisores políticos com autoridade (ou seus representantes),
direccionado a entidades externas à jurisdição dos responsáveis pela
formulação política» (Hermann, 1990: 5);

«o conjunto de objectivos, estratégias e instrumentos escolhidos pelos


responsáveis governamentais pela formulação política para responder ao
ambiente externo actual e futuro» (Rosati, 1994: 225).

Todas estas definições comungam de uma série de princípios e pressu-


postos, dos quais se destacam o papel dos governos estatais como actores
privilegiados na formulação da política externa e a dimensão intencional
da acção política. Nestas conceptualizações há dificuldade em compreender
outros actores como agentes activos na política internacional, pois institui-
ções não estatais não são consideradas. Assim, temos dificuldade em incluir
entidades supra-estatais (como a ONU ou a UE) ou sub-estatais (como o
Hezebollah e comunidades não-estatais) na análise da política internacional.
Igualmente, estas definições não incluem os resultados não intencionais das
decisões políticas, deixando uma lacuna conceptual por resolver. De facto,
Kalevi Holsti (Gustavsson, 1999) já alertou para a distinção entre a política
externa «intencional» e «actual», confirmando que os resultados das decisões
políticas nem sempre são os inicialmente pretendidos. Por sua vez, Kjell
Goldmann (Gustavsson, 1999) e Laura Neack (2008) têm salientado o facto
de haver uma distinção a fazer entre a «política verbalizada» (acção que o
actor declara que persegue) e a «política não-verbalizada» (acção de facto
implementada). Vários autores defendem que as análises devem considerar
a razão porque os actores declaram e seguem determinadas acções, pois
a análise de política externa inclui o estudo dos processos, declarações e
18
comportamentos (Neack, 2008: 10).
Tendo em consideração o exposto, este manual apresenta uma defini-
ção de política externa que procura ser o mais abrangente possível e que
transponha algumas das lacunas conceptuais referidas. Assim, entende-se
por política externa o conjunto de objectivos, estratégias e instrumentos que
decisores dotados de autoridade escolhem e aplicam a entidades externas
à sua jurisdição política, bem como os resultados não intencionais dessas
mesmas acções.
Ao concentrar-se nos diferentes actores e nos diferentes processos e
dinâmicas de decisão, a análise de política externa permite uma abor-
dagem complementar que enriquece o nosso entendimento da política
internacional. Mais concretamente, a análise de política externa centrada
nos processos de decisão ajuda a «identificar padrões de decisão únicos
e genéricos e gerar entendimentos sobre os estilos e personalidades de
liderança que não podem ser revelados através de uma abordagem sis-
témica à política externa» (Mintz e DeRouen Jr., 2010: 5). Como referido,
a política externa envolve dinâmicas complexas, como incerteza sobre o
ambiente político, trade-offs diversos no momento da decisão, difusão da
autoridade política, variabilidade nas estruturas de decisão (Hagan, 2001).
Só uma abordagem assente na compreensão dos processos de decisão
permite compreender estas complexidades. De facto, as teorias tradicionais
das Relações Internacionais, sobretudo as teorias sistémicas, não explicam
convenientemente muitos dos eventos da política internacional (Hagan,
2001), pois ao renunciar à análise dos processos de decisão e seus princi-
pais intervenientes, as teorias tradicionais acabam por não abordar factores
fundamentais para uma compreensão mais completa dos acontecimentos
internacionais, uma vez que qualquer Estado tem de decidir sobre uma
agenda ampla que exige a tomada de decisões (Mintz e DeRouen Jr., 2010).
Além do mais, a análise de política externa, ao focar nos diversos actores
envolvidos nos processos de decisão, permite conhecer a forma como os
indivíduos, grupos e organizações são condicionados pelos vários factores
domésticos, nomeadamente os factores eleitorais, a opinião pública, os
grupos de pressão e as preferências ideológicas (Holsti, 2006).
Em suma, a política externa é uma área abrangente cujo enfoque inclui
19
questões diversas, como segurança, economia, ambiente, e cultura. A agenda
é, por isso, densa, e as burocracias e grupos que apoiam o processo de
formulação e decisão cruzam diferentes valências para poderem responder
à multi-dimensionalidade associada à política externa. Paralelamente ao
quadro institucional, variáveis objectivas como localização geoestratégica,
população e recursos humanos, capacidade militar, económica e de inovação
tecnológica, bem como factores de cariz subjectivo (incluindo motivações,
identidade, valores, percepções) conjugam-se na formulação, decisão e im-
plementação da política externa, com diferentes matrizes a caracterizarem
diferentes actores. Além do mais, os objectivos de política externa, funda-
mentalmente assentes em interesses nacionais, são modelados de acordo
com estes factores e com a interacção destas componentes com os arranjos
do sistema internacional, exigindo ajustes variados e não permitindo uma
projecção dos interesses e objectivos dos Estados sem limites. São estes
múltiplos modelos, actores e dinâmicas que procuramos identificar, descrever
e explicar nas páginas seguintes.

Modelos teóricos

Os assuntos de política externa são muitas vezes abordados de forma


ligeira e informal, sem grandes considerações teóricas. Contudo, análises
mais profundas dos eventos revelam um grau de complexidade que exige
uma maior compreensão teórica. De facto, os estudos realizados pelos
investigadores de política externa «evidenciam características regulares
e previsíveis que reflectem pressupostos nem sempre reconhecidos sobre
o carácter dos desafios, as categorias nas quais os problemas devem ser
considerados, os tipos de provas relevantes e os determinantes das ocor-
rências» (Allison e Zelikow, 1999: 4). Consequentemente, estes pressupostos
estão na base dos diferentes modelos teóricos que auxiliam os investigadores
a melhor compreender os eventos políticos internacionais, nomeadamente
identificando os factores determinantes mais relevantes das ocorrências,
bem como as circunstâncias em que determinados factores conduziram a
um determinado desfecho em vez de outro.
20
Esta secção identifica os principais modelos teóricos relativos aos pro-
cessos de formulação e decisão em política externa. Note-se que apesar de
apresentados em secções distintas, estes modelos não são necessariamente
excludentes, havendo consenso na bibliografia relativamente à interacção
destas diferentes abordagens numa explicação compreensiva dos processos.
O quadro que se segue sintetiza as principais linhas caracterizadoras destes
modelos para uma mais fácil leitura das secções seguintes.

Organizações Pequenos
Actor Racional Líderes
Burocráticas Grupos

Actores Estado age Organizações Pequeno Líderes


envolvidos como decisor burocráticas número de individuais
na decisão racional único formais do indivíduos
de política Estado (variável) junto
externa da liderança
Identificar Organizações Interacção Decisão
interesse agem com base dinâmica entre resultante
nacional; em processos os diversos da escolha
Identificar estandardizados; membros do individual;
opções; Interesses grupo; Apreciação
Dinâmicas Análise custo/ determinados Group think; subjectiva da
do modelo benefício das para organização Imposição de situação;
de decisão opções; a que se solução; Processos
pertence; cognitivos
Escolher Internalização;
Negociações
política que Compromisso
para determinar
melhor serve negocial
política
o interesse
nacional
Teoria da Teoria Psicologia Psicologia
utilidade organizacional; social; cognitiva;
Origens esperada Sociologia das Sociologia Dissonância
e fontes
burocracias; dos pequenos cognitiva;
teóricas
Política grupos Dinâmica
burocrática psicológica

Quadro 1. Modelos de formulação e decisão em política externa


O Estado unitário e o processo de decisão racional

A abordagem tradicional parte do princípio de que os Estados são


21
agentes unitários e monolíticos na formulação e execução das suas polí-
ticas externas; e da existência de uma dicotomia entre a política externa
e a política interna. Nesta perspectiva, a política interna é encarada como
uma esfera distinta e independente da política externa, sendo o principal
problema de análise a necessidade governamental de manter a autonomia
e a integridade do Estado face à possibilidade de agressões exteriores
(os factores externos são determinantes do comportamento dos Estados).
A perspectiva tradicional assume, deste modo, que a política externa
é formulada de forma homogénea e unitária, em conformidade com os
elementos de poder e com base na definição do interesse nacional. Par-
tindo desta perspectiva, os cálculos estratégicos sobre segurança nacional
são os principais determinantes das escolhas dos decisores políticos; a
política interna e o processo de formulação política são preocupações
secundárias. De acordo com este mapa mental, os líderes que fazem a
política externa, os tipos de governo que lideram, as características das
suas sociedades, e as suas condições económicas e políticas internas
não são relevantes.
Aqueles que estudam o processo de decisão e aconselham os decisores
políticos sobre formas de melhorar as suas qualidades políticas, descrevem
a racionalidade como uma sequência de actividades de decisão que en-
volvem os seguintes passos: 1) reconhecimento e definição do problema;
2) selecção de objectivos; 3) identificação de alternativas; 4) escolha a
partir de um leque de várias opções; e 5) selecção racional da alterna-
tiva que melhor poderá levar ao objectivo pretendido. De acordo com a
teoria da utilidade esperada de von Neumann, a racionalidade do actor
(Estado) permite-lhe escolher entre as diferentes alternativas e calcular a
melhor forma para atingir os seus objectivos. Aplicado à política externa,
o modelo da racionalidade implica que o Estado aja intencionalmente,
motivado por objectivos claramente definidos, demonstrando capacidade
para ordenar as suas opções e preferências e maximizar a utilidade da
sua escolha (Mintz e DeRouen Jr., 2010). A crise dos mísseis de Cuba de
1962 1 ilustra o modo como as decisões dos EUA foram conformes a um
processo racional. Uma vez descoberta a presença de mísseis soviéticos
em Cuba, o Presidente John F. Kennedy pediu ao grupo de crise criado
22
para proceder a um levantamento exaustivo relativo aos perigos e possíveis
cursos de acção. Foram definidas seis opções: nada fazer; exercer pressão
diplomática; fazer uma aproximação secreta ao líder cubano Fidel Castro;
invadir Cuba; lançar um ataque aéreo cirúrgico contra os mísseis; e impor
um bloqueio à ilha. Os objectivos tiveram de ser ordenados por ordem de
preferência antes da escolha poder ser feita. Seria o objectivo de retirada
dos mísseis soviéticos retaliação contra Castro ou pretensão de manutenção
da balança de poder? Ou será que os mísseis significavam uma pequena
ameaça aos interesses vitais dos EUA? Até que os mísseis fossem conside-
rados como uma ameaça séria à segurança norte-americana, ‘nada fazer’
não podia ser eliminado como opção. Uma vez acordado que a remoção
dos mísseis era o objectivo, a discussão dos conselheiros voltou-se para
a avaliação das opções do ataque cirúrgico e do bloqueio. Esta última foi
a escolhida devido às suas presumidas vantagens. Permitia aos EUA uma
demonstração de firmeza, enquanto mantendo flexibilidade relativamente
a novas opções de ambos os lados.
Apesar da aplicação aparente da racionalidade a esta crise, o modelo de
decisão racional é mais um padrão idealizado segundo o qual se avaliam
preferências, do que propriamente uma descrição precisa do comportamen-
to no mundo real. Theodore Sorensen, que participou nas deliberações da
crise de Cuba, escreveu não só sobre os passos da administração Kennedy
seguindo o processo de escolha racional, como também sobre a facilidade
com que o processo de decisão real se afasta dele: «não se pode dar cada
passo segundo uma ordem. Os factos poderão ser duvidosos ou estar em
contradição; várias políticas, todas boas, podem entrar em conflito. Vários
meios, todos maus, podem ser tudo o que está em aberto. Os julgamentos
de valor podem ser diferentes. Os objectivos definidos podem ser imprecisos.

1 Os exemplos da crise dos mísseis de Cuba que servem para ilustrar os diferentes modelos
teóricos seguem a proposta de Kegley e Wittkopf (1995).
Pode haver muitas interpretações sobre o que está certo, o que é possível,
e o que é no interesse nacional» (Kegley e Wittkopf, 1995: 49).
Apesar das virtudes oferecidas pela escolha racional, os impedimentos à
23
sua realização são substanciais. Alguns são humanos; derivam de deficiên-
cias nos serviços de informação, capacidade, e aspirações e necessidades
psicológicas daqueles que tomam decisões de política externa sob condições
de incerteza. Outros são organizacionais pois a maior parte das decisões
são tomadas em grupo. Em resultado, a maior parte das decisões requerem
assentimento do grupo quanto ao interesse nacional e ao curso de acção a
seguir. Chegar a um acordo não é fácil, dada a discordância sobre objectivos
ou preferências, e sobre os resultados prováveis de opções alternativas. Por
exemplo, o reconhecimento do problema é muitas vezes adiado. Grandes
quantidades de informação para trabalhar em tempo escasso ou informação
insuficiente ou inadequada para definir problemas emergentes de forma
cuidada, condicionam o processo de formulação política racional.
Uma vez que os decisores políticos trabalham constantemente com
agendas sobrecarregadas e prazos curtos, a procura de opções políticas é
raramente exaustiva. Como Kissinger afirmava, «há pouco tempo para os
líderes reflectirem. Estão presos numa batalha sem fim onde o urgente se
sobrepõe constantemente ao importante. A vida pública de cada figura po-
lítica é uma luta contínua para salvar um elemento de escolha da pressão
das circunstâncias» (Secretário de Estado norte-americano, 1979, em Kegley
e Wittkopf, 1995: 50). Na fase da escolha, em vez de seleccionarem uma
opção ou conjunto de opções com as melhores hipóteses de sucesso, os
decisores geralmente decidem quando surge uma alternativa que parece
melhor que as consideradas anteriormente. Em vez da optimização, dá-se
apenas uma satisfação, através de uma escolha que satisfaça os requisitos
mínimos, evitando opções mais arriscadas.
Ou seja, em certas circunstâncias, os governos tomam decisões como
se estivessem a seguir a norma da racionalidade meios-fins e escolhem a
alternativa que melhor lhes permite atingir os objectivos ou promover os
valores dos decisores. A dicotomia entre os pressupostos da racionalidade
e da irracionalidade no comportamento de indivíduos, grupos e governos
constitui, assim, uma das dimensões mais persistentes e problemáticas.
A «concepção sinóptica» da tomada de decisões que parte do princípio de
que os políticos colocam perante si todas as alternativas possíveis avalian-
do, a partir da sua hierarquia de preferências, todas as consequências das
24
mudanças sociais inerentes às diversas acções em consideração, não se
adequa à realidade. Pressupõe uma omnisciência e uma espécie de análise
abrangente demasiado dispendiosa e que a pressão do tempo normalmente
não permite. Cada solução tem de estar limitada a uma série de factores,
incluindo as capacidades individuais de resolução de problemas, a infor-
mação disponível, o custo da análise (em pessoal, recursos e tempo) e a
impossibilidade prática de separar os factos dos valores.
Herbert Simon (1955: 13) foi um dos principais críticos do modelo
clássico da tomada racional de decisões, postulando um mundo de «racio-
nalidade limitada». Substituiu o conceito de maximização ou optimização
do comportamento pelo de comportamento satisfatório. Este pressupõe que
os políticos não elaboram uma matriz com todas as alternativas disponíveis,
os prós e contras de cada uma delas e as avaliações de probabilidade das
consequências esperadas. Em vez disso, as unidades de decisão examinam,
de forma sequencial, as alternativas disponíveis até chegarem a uma que
corresponda aos seus níveis mínimos de aceitabilidade. Por outras palavras,
os indivíduos vão rejeitando as soluções que os não satisfazem até encontra-
rem uma solução suficiente e consensualmente satisfatória que lhes permita
agir. Apesar de os decisores conseguirem absorver rapidamente grandes
quantidades de informação sob grande pressão, e assumir riscos calculados
com base num planeamento ponderado, muitas vezes o grau de racionali-
dade tem pouca relação com o mundo onde os oficiais conduzem as suas
deliberações. Apesar da formulação racional da política externa ser mais um
ideal do que uma descrição da realidade, parece útil aceitar a racionalidade
como imagem do modo como o processo de decisão se deve processar e
como uma descrição dos elementos chave de como pode funcionar.
O modelo do actor racional assume que os estados unitários são os
intervenientes-chave e que agem de forma racional, calculando os custos e
os benefícios inerentes às várias escolhas políticas, na procura da escolha
que maximize a sua utilidade. Este modelo encontra laços estreitos com o
realismo clássico e o neo-realismo ou realismo estruturalista. Apesar disso,
institucionalistas liberais como Keohane, juntamente com teorizadores da
paz democrática como Doyle, são vistos como comungando do essencial do
modelo do actor racional. De qualquer modo, o campo liberal e pluralista
25
tende a juntar ao modelo, quadros de referência centrados na máquina
e políticas governativas: os processos organizacionais – segundo modelo
de Allison, que consiste em identificar as organizações governamentais
relevantes envolvidas numa crise, determinando depois os interesses e os
procedimentos operacionais standard que influenciam o comportamento
das organizações; e os processos burocráticos – que analisamos em se-
guida e que se prendem com as políticas internas, não tendo a ver tanto
com escolhas ou com resultados, mas mais com os jogos negociais e de
influência no seio da estrutura hierárquica governativa. Ou seja, enquanto
o actor racional procura maximizar os objectivos estratégicos nacionais; as
organizações comportam-se de acordo com os procedimentos operacionais
estandardizados; e as burocracias envolvem-se em compromissos, negocia-
ções, coligações e competição.

As organizações burocráticas e os pequenos grupos no processo de decisão


da política externa

No mundo de hoje, as relações extensivas em termos políticos, militares


e económicos exigem dependência de grandes organizações especializadas
que possam melhor recolher e tratar informação. Os líderes apoiam-se nelas
perante escolhas críticas ao nível da política externa, sendo que se poderá
afirmar que a maior parte das decisões de política externa são tomadas
num contexto organizacional. Sem desvalorizar a noção de liderança, Max
Weber escreveu que, «num estado moderno, o dirigente é necessária e ine-
vitavelmente a burocracia, pois o poder não é exercido, nem por discursos
parlamentares, nem por enunciados monárquicos, mas sim através da rotina
administrativa» (Max Weber in Dougherty: 707). Embora sejam os dirigentes
quem decide o que fazer, é a burocracia que decide como se deve proce-
der. Decidir como fazer pode, por sua vez, moldar o que fazer. Por isso,
as burocracias são de importância vital no estudo da tomada de decisões.
Aliás, segundo Vertzberger (2002) o que distingue as organizações buro-
cráticas é exactamente a sua dependência em procedimentos que auxiliam
na coordenação e na execução de tarefas específicas.
26
Os decisores dependem de conselheiros, chefes de departamentos e de
agências governamentais e do seu pessoal burocrático para obterem infor-
mações fundamentais relativamente às decisões da política externa, o que
não invalida que em muitos casos haja discordância na interpretação das
informações e acontecimentos. As restrições orçamentais podem ser um
factor determinante ao nível da recolha e qualidade da informação, levando
mesmo a competição interna no seio das burocracias por mais recursos.
Além do mais, as burocracias podem moldar as perspectivas dos dirigentes
políticos e da opinião pública sobre assuntos de política externa, podendo
mesmo influenciar o curso dos acontecimentos. A «unidade de decisão le-
gítima» – unidade capaz de atribuir os recursos necessários e de produzir
uma decisão investida de autoridade, pode assumir diferentes formatos: um
dirigente dominante (como Castro), um único grupo onde os elementos se
confrontam directamente (Politburo ou Conselho de Segurança Nacional)
ou múltiplos actores autónomos (sistemas parlamentares).
As burocracias visam melhorar a eficiência e a racionalidade ao conferi-
rem a responsabilidade de diferentes tarefas a diferentes pessoas, definindo
regras e procedimentos operacionais que especificam o modo como as tarefas
devem ser executadas, e a divisão de autoridade entre diferentes organiza-
ções para evitar a duplicação de esforços. Ainda permitem o planeamento
avançado com o objectivo de determinar necessidades a longo prazo e os
meios de as alcançar. Deste modo, a presença destas organizações poderá
resultar numa multiplicidade de opções, melhorando as hipóteses de um
maior número de alternativas ser considerado, bem como de adopção de
procedimentos de resposta estandardizados. Por exemplo, quando a adminis-
tração Kennedy optou pela imposição da quarentena naval a Cuba durante a
crise dos mísseis para prevenir novos carregamentos de mísseis, a marinha
norte-americana pôde pôr em prática a decisão presidencial de acordo com
procedimentos anteriormente definidos. Contudo, estas rotinas limitam a
opção de escolhas políticas viáveis a partir das quais os decisores políticos
poderão seleccionar as suas opções. Mais do que expandir o número de
alternativas em termos de políticas de forma consistente com a lógica da
decisão racional, aquilo que as organizações estão preparadas para fazer
molda o que é e o que não é considerado possível. Na crise de Cuba, o
27
ataque aéreo cirúrgico com vista a destruir os mísseis soviéticos então em
construção foi vista como alternativa possível ao bloqueio, mas quando a
força aérea admitiu que não poderia garantir 100% de sucesso na operação,
essa alternativa foi posta de lado. Assim, as capacidades organizacionais
moldaram claramente as opções da administração Kennedy para alcançar o
seu objectivo de retirar os mísseis soviéticos de solo cubano.
Para além da influência que as organizações burocráticas exercem nas
escolhas dos líderes políticos, podem afectar o ambiente de decisão, assu-
mindo muitas vezes posições destinadas a aumentar a sua influência face a
outras agências. Para proteger os seus interesses, as organizações burocráti-
cas procuram reduzir a interferência dos líderes políticos a quem reportam,
bem como a de outras agências governamentais, e chegam mesmo a não
partilhar informação relativa a actividades internas. Adicionalmente, cada
burocracia desenvolve uma forma dominante de olhar a realidade resultante
da própria solidariedade e coesão que geralmente se gera no interior de
pequenos grupos. Este tipo de perfilamento institucional acaba por reduzir
a criatividade e o pensamento independente, encoraja o ancoramento em
procedimentos operacionais padronizados e dá preferência a procedimentos
já utilizados em vez de novas opções face a novos desafios.
Novamente recorrendo à crise dos mísseis de Cuba de 1962, enquanto
o Presidente Kennedy procurou dirigir a acção e negociação, a sua buro-
cracia em geral, e a marinha em particular, estavam de facto a controlar
os acontecimentos. A marinha escolheu obedecer às ordens que quis e
ignorar as outras. Assim, após discussão com a marinha, Kennedy ordenou
que a linha do bloqueio se aproximasse de Cuba de tal modo que os sovi-
éticos tivessem mais tempo para se retirarem. Tendo perdido na discussão
com o presidente, a marinha simplesmente ignorou a sua ordem. Sem o
conhecimento do presidente, a marinha estava envolvida na pressão aos
submarinos soviéticos para que viessem à superfície, muito antes de Kennedy
autorizar qualquer contacto com os navios soviéticos. E apesar da ordem
presidencial para terminar com acções e informações provocadoras, um
avião norte-americano entrou no espaço aéreo soviético no auge da crise.
Quando Kennedy se apercebeu que não estava no controlo da situação,
pediu ao secretário da defesa para averiguar o que se estava a passar.
28
McNamara fez a sua primeira visita ao posto de comando da marinha no
Pentágono. Num debate acalorado, o chefe das operações navais sugeriu
a McNamara que regressasse ao seu posto de trabalho e deixasse a ma-
rinha gerir o bloqueio.
As organizações burocráticas não são as únicas estruturas a participar e
auxiliar os líderes nos processos de decisão e implementação da sua política
externa. Há muito que se reconheceu o papel dos pequenos grupos na for-
mulação da política externa. Embora os grupos possam variar em tamanho,
composição, importância e funções, eles dispõem de algumas caracterís-
ticas comuns (Vertzberger, 2002): partilham uma série de valores, atitudes
e crenças elementares; a maioria dos membros partilha de uma ligação
efectiva; e dividem os papéis formais e informais entre si. Estes atributos
geram dinâmicas muito particulares que podem ter efeitos significativos no
conteúdo e na qualidade das decisões em que participam (Holsti, 2006).
Os pequenos grupos são úteis para lidar com as complexidades da po-
lítica internacional, contribuindo com uma pletora de perspectivas e com
a possibilidade de um debate mais enriquecedor. Igualmente, a relação
efectiva típica dos pequenos grupos oferece várias formas de apoio aos
decisores, nomeadamente ao nível emocional. Todavia, há também a tendên-
cia para limitarem os processos de decisão através de dinâmicas propícias
à conformidade. Uma das dinâmicas mais significativas é a do groupthink.
Segundo Irving Janis (1971) este fenómeno refere-se à forma de pensar que
ocorre quando a procura de concordância entre os indivíduos se torna tão
dominante no seio de um grupo que tende a impor-se sobre as apreciações
realistas de outras alternativas de acção. O groupthink é reforçado pelo
desejo dos indivíduos em serem aceites no grupo, assim as perspectivas e
interpretações que possam contrariar as percepções comuns do grupo aca-
bam por ser relegadas para segundo plano ou abandonadas por completo.
Em geral, o groupthink apresenta como características (Vertzberger, 2002):
prosseguir uma avaliação racional de modo a ignorar informações contra-
ditórias; alguns membros do grupo auto-nomeiam-se para proteger o grupo
de informação dissonante; o grupo acredita profundamente na sua rectidão,
censurando quaisquer dúvidas relativamente a esta; excesso de optimismo
que predispõe acções com elevados riscos; os adversários são concebidos
29
de forma estereotipada e considerados altamente perigosos ou ignaros; os
membros desviantes são pressionados directamente permitindo consenso
no grupo sobre a existência de uma percepção comum.
Contudo, por vezes podem ocorrer divergências no seio dos grupos,
exigindo alternativas para resolver o impasse. Em primeira instância, os
principais decisores no grupo podem impor a sua preferência, caso tenham
poder para tal. Outra forma de resolução acontece quando existe uma
maioria de elementos a favor de uma determinada interpretação, existindo
uma tendência para os elementos minoritários aceitarem a decisão e em
muitos caso internalizá-la. A internalização da decisão maioritária depende
em grande parte dos atributos do grupo, designadamente a distribuição de
poder, o papel que cada elemento desempenha no grupo, o estatuto de cada
elemento e as ligações afectivas entre os indivíduos (Vertzberger, 2002). Por
último, quando não existem elementos com poder suficiente para impor uma
decisão e não existe uma maioria clara, as resoluções das incongruências
derivam de um compromisso que se atinge através das premissas comuns
existentes entre os diferentes elementos do grupo.
Não surpreendentemente, os vários participantes das deliberações que
levam a escolhas políticas, muitas vezes definem temas e favorecem alterna-
tivas políticas que reflectem a sua afiliação organizacional ou grupo. Assim,
os diplomatas profissionais tipicamente favorecem soluções diplomáticas para
os problemas, enquanto os agentes militares favorecem a opção militar. Mais
do que se tratar de uma escolha maximizante de valor, então, o processo
de formulação política é em si mesmo intensamente político. Assim, face a
uma decisão, mais do que pressupondo a existência de um actor unitário,
é necessário identificar jogos e jogadores, e apresentar coligações, exigên-
cias e compromissos. Desta perspectiva, a decisão de impor um bloqueio
a Cuba foi tanto produto de quem favoreceu a escolha como de qualquer
lógica inerente que a possa ter recomendado. Quando Robert Kennedy
(irmão do presidente e procurador geral), Theodore Sorensen (conselheiro
presidencial) e o secretário da defesa Robert McNamara se uniram em de-
fesa do bloqueio, formou-se uma coligação dos principais conselheiros do
presidente e com os quais ele mais se compatibilizava.
Todavia, Alexander George defende que as decisões acertadas não têm
30
de seguir obrigatoriamente processos racionais e consensuais (Renshon e
Renshon, 2008). Embora não negando a importância dos grupos nos pro-
cessos de decisão de política externa, George salienta que nem todas as
decisões são tomadas em grupo e em muitos casos as decisões executivas
não dependem dos consensos nos grupos. Este argumento reforça o papel
determinante que a psicologia dos líderes tem nas dinâmicas de grupo e
nos processos de decisão. Enquanto alguns líderes dependem dos grupos
para informar e sustentar as suas decisões, outros conseguem determinar
de forma autónoma as políticas a seguir. Desta forma, a necessidade de
analisar o papel dos líderes no processo de decisão é indispensável.

O papel dos líderes no processo de decisão da política externa

Os líderes, e o tipo de liderança que exercem, moldam o modo como


é feita a política externa e o consequente comportamento dos Estados na
política internacional. Este modelo equaciona a acção nacional com as pre-
ferências e iniciativas dos mais altos oficiais dos governos nacionais, uma
imagem clara quando rotineiramente ligamos os nomes de líderes a políticas
(por exemplo, Doutrina Monroe ou Doutrina Brejnev), e quando atribuímos
a maior parte dos sucessos e falhanços na política externa aos líderes no
poder na altura da ocorrência. Há, no entanto, amplas divergências entre
aquilo que os líderes muitas vezes fazem e aquilo que é esperado deles.
Podemos explicar esta divergência, em parte, ao distinguirmos entre
racionalidade procedimental e racionalidade instrumental. A racionalidade
procedimental sustenta a visão da política mundial no mesmo tipo de cál-
culos frios, baseados num balanceamento cuidado de todos os cursos de
acção alternativos possíveis. A racionalidade instrumental, por outro lado,
constitui uma visão mais limitada de racionalidade. Diz simplesmente que
os indivíduos têm preferências, e quando são confrontados com duas ou
mais alternativas, escolherão a que lhes parece conter o desenrolar prefe-
rido. Em oposição à definição de racionalidade procedimental, a definição
instrumentalista não oferece avaliações normativas das preferências de um
actor, por muito repreensíveis ou mal-fundadas que sejam, baseando então
31
a sua explicação na questão dos objectivos. As implicações destas diferenças
aparentemente semânticas são importantes. Demonstram que a racionalida-
de tem limites, o que nem sempre é assumido quando o modelo de actor
racional descrito acima é aplicado a situações reais. Também sugerem que
os indivíduos podem actuar racionalmente (no sentido instrumentalista)
ao mesmo tempo que o processo de decisão e o seu produto surgem de
forma irracional.
Apesar da popularidade deste modelo, não devemos conferir demasiada
importância aos líderes individuais. A sua influência é capaz de ser muito
mais subtil do que as impressões populares nos têm feito crer. A maioria dos
líderes age sob uma variedade de constrangimentos políticos, psicológicos
e circunstanciais que limitam aquilo que podem alcançar e reduzem o seu
controlo dos eventos. Nas palavras de Lincoln, «eu não controlei os aconteci-
mentos, os acontecimentos é que me controlaram a mim» (1864). A questão
passa pelo facto de os líderes não controlarem completamente uma situação,
e a sua influência ser severamente circunscrita. Assim, a personalidade e as
preferências políticas pessoais não determinam de forma directa a política
externa. A questão relevante, então, não é se as características pessoais
do líder fazem a diferença, mas sob que condições as suas características
são determinantes. Em geral, o impacto das características pessoais de um
líder na política externa aumenta quando a sua autoridade e legitimidade
são amplamente aceites pela população ou, em regimes autoritários ou
totalitários, quando os líderes são protegidos de amplas críticas públicas.
Além do mais, alguns tipos de circunstâncias favorecem o potencial impacto
dos indivíduos. Entre elas encontram-se novas situações que libertam os
líderes das abordagens convencionais; situações complexas que envolvem
um grande número de factores diferentes; e situações isentas de sanções
sociais que permitem liberdade de escolha porque as normas que definem
o leque de opções permissíveis não são claras.
A auto-imagem do líder – a crença de uma pessoa na sua capacida-
de para controlar os acontecimentos de forma política (conhecida como
«eficácia política») – também influenciará o grau em que os valores pessoais
e as necessidades psicológicas governam o processo de decisão. Por outro
lado, quando o sentido de auto-importância ou eficácia está ausente, isto
32
minará a capacidade do líder para lidar com e iniciar mudanças nas po-
líticas. Contudo, esta ligação não é directa. O desejo das populações por
uma liderança forte também a afecta. Quando a opinião pública produz
uma preferência forte por um líder poderoso, e quando o chefe de Estado
tem uma necessidade excepcional de admiração, por exemplo, a política
externa irá mais certamente reflectir as necessidades próprias do líder. Por
exemplo, a personalidade de Guilherme II foi ao encontro do desejo do
povo alemão de um líder simbólico poderoso, e as preferências públicas
alemãs influenciaram a política externa da Alemanha durante o seu reinado,
que acabou com a Primeira Guerra Mundial.
A quantidade de informação disponível sobre situações particulares é tam-
bém importante. Sem informação pertinente, as políticas poderão ser baseadas
nos gostos e preferências dos líderes. Por outro lado, quanto mais informação
um indivíduo tiver sobre os acontecimentos internacionais, menos provável será
que o seu comportamento se baseie em influências pouco lógicas. De forma
similar, o timing da chegada de um líder ao poder é importante. Quando um
indivíduo assume pela primeira vez uma posição de liderança, os requisitos
formais de tal posição são menos propensos a circunscrever aquilo que pode
ou não fazer. Isto é especialmente verdade no período inicial do mandato,
durante o qual estão livres de críticas e pressões excessivas. Além do mais,
quando um líder assume governo após um acontecimento dramático (como o
assassínio do seu antecessor), pode definir políticas quase sem impedimento
pois nestes períodos o eleitorado geralmente abstém-se de críticas.
Uma crise nacional é uma circunstância especialmente propensa a
aumentar o controlo do líder sobre a formulação da política externa. O
processo de decisão durante uma crise é tipicamente centralizado e gerido
exclusivamente no topo da liderança. Falta muitas vezes informação crucial
e os líderes vêem-se como responsáveis pelos desenvolvimentos. De forma
não surpreendente, então, os nomes de grandes líderes da história, como
Napoleão Bonaparte, Winston Churchill, e Franklin D. Roosevelt, emergem
facilmente em períodos de grande turbulência. Os líderes são heróis capazes
de determinar os acontecimentos. O momento pode fazer a pessoa, mais do
que a pessoa fazer o momento, no sentido em que a crise pode libertar o
líder dos constrangimentos que normalmente iriam inibir a sua capacidade
33
de controlar acontecimentos ou engendrar mudanças na política externa. Na
história abundam exemplos de líderes políticos que surgem em diferentes
momentos e lugares para tomarem papéis decisivos que mudam o rumo da
história mundial (por exemplo, Gorbachov na União Soviética).
No entanto, o impacto pessoal do líder varia com o contexto, e muitas
vezes o contexto é mais influente que o líder. A questão prende-se em saber
se são os tempos que conduzem à emergência de grandes líderes, ou ao
invés, se grandes pessoas seriam líderes determinantes independentemente
de quando e onde vivessem. Este modelo parece simplista na sua expli-
cação da forma como os Estados reagem, uma vez que a maior parte dos
líderes mundiais seguem as regras do jogo da política internacional, que
sugerem que a forma como os Estados lidam com os ambientes externos
é muitas vezes menos influenciada pelas pessoas na liderança do que por
outros factores. Deste modo, este modelo parece claramente complementar
as abordagens anteriores, somando-lhes o ingrediente fundamental relativo
ao papel da liderança na política externa.

Determinantes e condicionantes do processo de decisão de política externa

Como referido, a política externa envolve uma pletora de realidades


complexas que dificultam a tomada de decisões. Nesta secção analisamos
alguns dos principais determinantes e condicionantes do processo de deci-
são de forma a compreender as dinâmicas mais subtis que estão envolvidas
na formulação de política externa dos diversos Estados. Porém, antes é
necessário identificar os diversos tipos de decisões envolvidos em política
externa (Mintz e DeRouen Jr., 2010):
· Decisões singulares – decisão isolada, sem estar contextualizada num
processo mais amplo. Embora sejam raras em política internacional,
algumas decisões são estudadas pelos investigadores e analistas po-
líticos como actos isolados, como são o caso da decisão americana
para não ratificar o Protocolo de Quioto ou a decisão americana para
não auxiliar as tropas francesas em Dien Bien Phu em 1954;
· Decisões estratégicas interactivas – interacção entre pelo menos dois
34
actores cujas decisões afectam e são afectadas reciprocamente. Neste
caso, a decisão de um actor vai afectar a decisão do outro actor ou
vice-versa. O modelo clássico do Dilema do Prisioneiro atesta este
tipo de situações;
· Decisões sequenciais – envolvem uma sequência de decisões inter-
relacionadas, como por exemplo no caso americano de decidir
invadir ou não o Iraque, ocupar ou não o país, aumentar ou dimi-
nuir a presença de forças militares, retirar ou comprometer mais
activos, término da operação;
· Decisões sequenciais interactivas – sequência de decisões condiciona-
das pela interacção de pelo menos dois actores. Exemplos tradicionais
deste tipo de decisões são as corridas armamentistas, nas quais os
diferentes Estados respondem de forma recíproca às decisões dos
seus adversários para aumentar a sua capacidade bélica.

Podem-se ainda destacar várias formas de decisão (Mintz e DeRouen


Jr., 2010):
· Decisões unilaterais – tomadas pela iniciativa exclusiva de uma parte,
sem considerar a vontade dos outros actores. A decisão da Líbia para
abandonar o seu programa nuclear em 2003 ou a decisão dos EUA
para não ratificar o Tratado de Quioto são exemplos ilustrativos;
· Decisões negociadas – resultam da interacção de pelo menos dois
actores que chegam a um acordo sobre a forma de agir. Um exem-
plo elucidativo foi a decisão da Coreia do Norte de abandonar o seu
programa nuclear em troca de ajuda externa depois de um longo
processo negocial multilateral;
· Decisões forçadas – são determinadas pela pressão ou ameaça de
coacção de um ou mais actores externos. Um exemplo característico
foi a pressão política e económica exercida sobretudo pelos EUA e a
Rússia para forçar a retirada das forças Britânicas, Francesas e Israe-
litas que ocuparam o Canal do Suez em 1956;
· Decisões estruturadas – resultantes da repetição e rotinas formalmente
estabelecidas. Estas decisões são típicas das organizações burocráticas e
envolvem um elevado grau de certeza. A elaboração dos orçamentos de
35
defesa dos diferentes Estados resulta, regra geral, de processos padroni-
zados desenvolvidos pelas respectivas organizações e envolvem pouca
inovação e incerteza;
· Decisões semi-estruturadas – envolvem um maior grau de risco, pois
um ou mais factores não estão previstos nos processos estabelecidos;
· Decisões não-estruturadas – nestes casos, alguns factores estruturais
como os objectivos e opções podem não estar suficientemente es-
pecificadas, impossibilitando a aplicação de soluções disponíveis ou
de rotina. A decisão da intervenção militar americana no Afeganistão
depois do 11 de Setembro enquadra-se neste perfil, pois a com-
plexidade da situação não tinha sido convenientemente antecipada
pelas organizações responsáveis e não havia planos preparados para
responder de forma imediata à ameaça (Woodward, 2005).

Contudo, o processo de decisão de política externa não é um procedi-


mento simples e linear. Pelo contrário, a complexidade é a característica
dominante do processo de decisão (Renshon e Renshon, 2008). Para além
da informação subjacente à decisão ser sempre imparcial e deficiente, a
ambiguidade e incerteza são próprias do ambiente de decisão. Existem
inúmeras variáveis no ambiente de decisão que agravam os obstáculos que
os decisores enfrentam e dificultam a aplicação de estratégias decisórias
optimizadas e das quais se destacam os constrangimentos temporais, con-
textos dinâmicos e interactivos, riscos envolvidos e stress sobre os decisores
(Mintz e De Rouen, Jr., 2010; Renshon e Renshon, 2008). A complicar esta
situação está o ambiente político internacional que é igualmente complexo
devido a um conjunto de características particulares que o tornam opaco e
incerto e dos quais se destacam (Vertzberger, 2002):
· Multiplicidade de actores – existem inúmeros actores activos no am-
biente político internacional – por exemplo, Estados, organizações
internacionais, actores não-estatais – que produzem uma quantidade
considerável de estímulos que são difíceis de ser captados e desco-
dificados eficientemente pelos diversos sistemas de processamento
de informação;
· Assimetrias na acessibilidade tecnológica – embora as tecnologias
36
de informação e comunicação tenham assistido a uma autêntica re-
volução nos últimos anos, nem todas as organizações de informação
têm a mesma capacidade para analisar e interpretar a quantidade de
informação recebida;
· Decepção – muitos actores utilizam a decepção como uma táctica
para iludir ou manipular outros actores, dificultando a distinção entre
estímulos e mensagens autênticas ou simuladas;
· Secretismo – muitos actores guardam muita informação em segredo
impedindo o acesso de outros actores à informação necessária para
proceder a uma avaliação correcta da situação;
· Inexistência de informação – há informação desejada e necessária
que simplesmente não existe;
· Ambiguidade de conteúdo – a informação tende a ser susceptível de
múltiplas interpretações, muitas contraditórias. A ambiguidade da infor-
mação pode resultar do seu próprio conteúdo ser pouco explícito ou
o actor assumir que a decepção é uma regra do jogo político, criando
a tendência para procurar significados alternativos na informação;
· Inconsistência de conteúdo – por vezes um actor pode apresentar
mensagens diferentes e até contrárias conforme os públicos a que
se dirige – i.e. público doméstico, elite doméstica, público opositor,
elite opositora, elites noutros países, opinião pública mundial. Esta
situação cria dificuldades em discernir qual a mensagem que repre-
senta as verdadeiras intenções do actor emissor;
· Ambiguidade da fonte – por vezes é difícil identificar a fonte de
informação o que complica a relevância e importância da infor-
mação;
· Associação de vários assuntos – numa época onde a interdependência
dos assuntos é cada vez maior, assiste-se a uma organização horizon-
tal dos diferentes temas. Esta interdependência leva a que seja difícil
distinguir quando é que as causas e consequências de um tema são
afectadas ou influenciam outro;
· Cinética – o ambiente político está em constante fluxo, obrigando a
uma interpretação permanente das variáveis que se mantêm ou se
alteram. Desta forma, a informação recebida tem de ser constante-
37
mente reinterpretada e avaliada;
· Modularidade – a informação pertinente às decisões de política ex-
terna tem de ser interpretada em conjunto. Todavia, não existe uma
fórmula que determine qual a ordem e lógica subjacente à diferente
informação recolhida para proceder à avaliação mais correcta. As dife-
rentes organizações impõem sequências distintas nos dados avaliados
resultando em interpretações e definições diferentes, se não mesmo
contraditórias, das situações.

Porém, enquanto se reconhece que o ambiente no qual os decisores


actuam é altamente complexo, outros factores contribuem de forma igual-
mente significativa para a complexidade do processo de decisão. Em seguida
examinamos de forma heurística os factores mais determinantes no condicio-
namento das decisões de política externa. Sendo certo que não esgotamos
os diversos factores que determinam e condicionam o processo de decisão
de política externa de um Estado, identificamos os que prevalecem na bi-
bliografia temática,2 com enfoque nos grupos de interesse, comunidades
epistémicas e opinião pública, e nos factores psicológicos, especialmente
processos cognitivos e de representação.

Grupos de interesse, comunidades epistémicas e opinião pública

Os grupos de interesse, comunidades epistémicas e de peritos e a opinião


pública são referidos na bibliografia como factores de análise fundamen-

2 Variáveis como localização geoestratégica, poder económico e militar, recursos naturais são
referenciadas comummente como determinantes na formulação e decisão em política externa. Além
do mais, a bibliografia identifica factores como as alianças, as corridas ao armamento, o nuclear ou
o tipo de regime político como aspectos a ter em conta nas análises. Ver Doyle (1983), Foot (2006),
Freedman (2004), Gray (2007), Ikenberry (2008), Levy (1981), Mintz e DeRouen Jr. (2010), Nye Jr.
(2002), Saunders (2009), Wallace (1979).
tais no estudo da política externa. Como referido na secção relativa aos
modelos teóricos, estes factores podem ter um peso determinante nos pro-
cessos de formulação e implementação de decisões, moldando, formatando
38
e condicionando opções. De forma variada, estes influenciam, directa ou
indirectamente, o processo de decisão de política externa.
Os grupos de interesse organizados representam variados interesses
distintos. Um grupo muito influente representa os interesses económicos
nacionais, onde organizações de trabalhadores e empresas dispõem de re-
cursos importantes para influenciar os decisores políticos. Seja para proteger
os seus postos de trabalho ou para consolidar e aumentar os seus negócios,
estes grupos de interesse aplicam uma elevada pressão nos políticos e que se
traduz na mobilização eleitoral e financeira dos seus constituintes ( Jacobs e
Page, 2005). Outros grupos organizados representam interesses mais especí-
ficos em termos de política externa. Os lobbies políticos associados a causas
de outros Estados também condicionam os decisores políticos através dos
inúmeros recursos de que dispõem. Um estudo recente testemunha o peso
que o lobby israelita tem na formulação da política externa norte-americana
(Mearsheimer e Walt, 2008). Composto por uma coligação informal de in-
divíduos e grupos, o lobby israelita tem mobilizado um nível assinalável
de apoio material e diplomático para persuadir os decisores americanos a
manterem uma política de apoio a Israel. Os autores argumentam que o
poder do lobby assume proporções tão significativas que as políticas por si
avançadas por vezes acabam por ser prejudiciais e contraproducentes para
o próprio interesse nacional dos EUA (Mearsheimer e Walt, 2008).
Por sua vez, as comunidades epistémicas são compostas por uma «rede
de profissionais com experiência e competência reconhecidas numa de-
terminada área e uma autoridade reconhecida sobre um conhecimento de
interesse político dentro dessa mesma temática» (Haas, 1992: 3). Embora
as comunidades epistémicas compreendam geralmente grupos compostos
por cientistas e académicos, também se referem a grupos constituídos por
outros indivíduos que partilhem um conjunto de características comuns
(Haas, 1992: 3), nomeadamente um conjunto de crenças normativas e
princípios que fornecem uma base valorativa para a actividade social dos
seus membros; a partilha de crenças sobre a causalidade central de um
determinado problema e que estabelece a ligação entre as alternativas de
acção política e os resultados desejados; noções partilhadas de validade,
i.e. critérios intersubjectivos internamente definidos para avaliar e validar o
39
conhecimento na sua área de especialização; e um projecto político comum
que acreditam possa melhorar a situação em causa.
As comunidades epistémicas e os peritos influenciam a decisão política
ao fornecer os decisores com reflexões e recomendações sobre as políticas
a prosseguir, nomeadamente identificando causas, dinâmicas, objectivos
e alternativas políticas inerentes aos eventos políticos internacionais.
O Project for a New American Century (PNAC) reflecte estes preceitos.
Fundado em 1997 por um pequeno conjunto de indivíduos de orienta-
ção conservadora, o PNAC foi moldando o debate de política externa no
seio do Partido Republicano nos EUA. Inicialmente irradiado do palco
principal do debate político, o PNAC conseguiu através da utilização de
diversos recursos à sua disposição, principalmente a autoridade intelectual
reconhecida dos seus membros em questões de política internacional,
afirmar-se como um grupo de pressão altamente eficiente na influência
do poder político. É hoje reconhecido que a afirmação contemporânea
do poder militar americano e a sua orientação intervencionista e trans-
formadora fruem de muitos dos princípios e orientações apontadas pelo
PNAC (Chollet e Goldgeier, 2008).
Vários estudos demonstram que a opinião pública tem um impacto
significativo no processo de decisão política. Os períodos de crise interna-
cional são particularmente susceptíveis ao poder do sentimento popular.
No seu estudo sobre a influência da opinião pública americana, Brulé e
Mintz demonstram que os líderes moderam o uso da força quando há uma
oposição popular generalizada, mas quando há uma maioria favorável os
líderes geralmente optam por políticas mais agressivas (Mintz e DeRouen Jr.,
2010). Contudo, a opinião pública é susceptível a alterações significativas.
Se é certo que pode haver um inequívoco apoio público a uma qualquer
política em determinado momento, tal não significa que essa mesma opi-
nião não se altere de forma substancial em pouco tempo. Todavia, estudos
aprofundados, abrangendo ciclos temporais relativamente longos, evidenciam
uma maior estabilidade na opinião pública do que usualmente se pressupõe
(Holsti, 2006; Jacobs e Page, 2005). De qualquer maneira, a sua influência
não pode ser afastada, particularmente quando se considera a forma como
os decisores percepcionam a vontade popular.
40
Estreitamente associado à opinião pública estão os meios de comuni-
cação social. Em muitas situações os decisores aferem o apoio público
através da cobertura que os meios de comunicação atribuem a deter-
minado assunto (Breuning, 2007). Logicamente, o poder dos órgãos de
comunicação é importante não só pela sua capacidade para direccionar
a atenção do público, mas também dos decisores políticos. De facto,
muitos estudos debruçam-se sobre o denominado «efeito CNN», procu-
rando analisar a forma como os meios de comunicação têm influenciado
as decisões políticas. Embora se mantenha um debate vivo sobre os
modelos e metodologias mais apropriadas para averiguar o fenómeno, a
importância efectiva dos meios de comunicação é hoje consensualmente
aceite (Gilboa, 2005). O próprio Richard Nixon (1980: 116) confirma o
poder dos media ao atribuir-lhes um papel determinante no desfecho
da Guerra do Vietname: «A cobertura desonesta e dúbia da Guerra do
Vietname não constituiu um dos mais belos momentos da comunicação
social americana. Distorceu poderosamente a percepção pública, e isso
reflectiu-se no Congresso».
O enquadramento legal doméstico também pode condicionar as decisões
de política externa. A legislação nacional pode, em muitos casos, condicionar
as opções disponíveis aos líderes. A Administração Clinton, por exemplo,
viu-se limitada na sua perseguição a Bin Laden pela proibição consagrada
na Ordem Executiva 12333 de Dezembro de 1981 e que impede as agências
governamentais americanas de participar em assassinatos políticos (Wood­
ward, 2005). Noutros Estados esta diversidade de condicionantes não é tão
manifesta. No caso chinês, o Partido Comunista Chinês retém ainda um
elevado controlo sobre o processo de política externa. Embora nos últi-
mos anos se tenham verificado alterações significativas na participação de
outros actores domésticos no processo de decisão política (Gilboy e Read,
2008), «o Partido mantém o seu direito de permanecer como o derradeiro
actor político no país» (Lanteigne, 2009: 24). A abertura chinesa nas últimas
décadas acabou por aumentar a capacidade reivindicativa de vários actores
domésticos que tradicionalmente não tinham qualquer dinâmica política
como são os casos da classe empresarial, das ONG, grupos de interesse
organizados e think tanks (Lanteigne, 2009: 24).
41
A discrepância entre o número de factores domésticos que determinam e
condicionam a política externa dos diferentes Estados é muitas vezes conse-
quência de diferenças culturais. As culturas nacionais – conjunto unificado
de ideias que são compartilhadas pelos membros de uma sociedade e que
estabelecem um conjunto partilhado de premissas, valores, expectativas e
predisposições entre os membros da nação como um todo – influenciam o
processo de decisão de diversas formas (Vertzberger, 2002). Mais especifi-
camente, a cultura actua sobre a forma como os indivíduos contextualizam
e compreendem as diferentes situações, destacando determinados tipos de
informações sobre outras, e as formas de lidar com elas. Vários estudos têm
evidenciado como os factores culturais condicionam a política externa. Numa
investigação recente, Yang, Geva e Chang demonstraram que os decisores
americanos são mais propícios ao risco do que os decisores chineses. Os
diferentes contextos culturais determinam que, perante a mesma escolha,
os chineses têm expectativas de benefícios maiores do que os americanos
(Mintz e DeRouen Jr., 2010). Desta forma, os vários estudos têm alegado que
as diferenças culturais afectam tanto a escolha como o processo de decisão.
Todos estes factores contribuem para a complexidade do ambiente de
decisão. Porém, é a dimensão psicológica que permite aos decisores com-
preender e avaliar os factores internacionais e domésticos, integrando-os
no processo de decisão externa.

Factores psicológicos

Os factores psicológicos adquirem especial importância quando «as


representações dos problemas são contestadas, quando os problemas não
são rotineiros, quando há muito em jogo para os decisores e quando o am-
biente oferece um grau suficientemente amplo de liberdade que permite um
vasto leque de escolhas» (Stein, 2005). Porém, os factores psicológicos são
determinantes em todas as situações. De acordo com Renshon e Renshon
(2008: 511), «[a] enorme complexidade do mundo real, associada à nossa
incapacidade para apreender e compreender todos os seus elementos, requer
métodos de redução da complexidade». São os processos cognitivos dos
42
indivíduos que permitem reduzir a complexidade do mundo político ( Jervis,
1976). Mais concretamente, os processos cognitivos produzem determinadas
crenças e construções psicológicas que possibilitam aos decisores impor
ordem e sentido ao seu ambiente político.
Deste modo, uma abordagem dos factores psicológicos envolvidos na
decisão de política externa procura conhecer «as estratégias cognitivas
que os responsáveis políticos empregam para construir e manter as suas
imagens simplificadas do ambiente» (Tetlock e McGuire Jr., 1999: 506).
Contudo, existe uma soma infindável de factores cognitivos que influen-
ciam os processos de decisão de política externa. Neste caso, somente
analisamos os mais conhecidos e explorados na bibliografia temática. De
forma a sintetizar a variedade de conceitos e métodos existentes nesta
área temática, empregamos a classificação utilizada por Jerel Rosati (2001)
para distinguir a forma como os factores cognitivos afectam a política
internacional, designadamente através do conteúdo, organização e es-
trutura das crenças dos decisores; dos padrões comuns de percepção e
erros de percepção; da rigidez e flexibilidade cognitiva; e do impacto na
elaboração política.
O conhecimento do conteúdo das crenças é essencial, pois o que os
decisores acreditam é determinante para informar as suas decisões. Existe
uma profusão de abordagens cognitivas que permitem aferir os conteúdos
das crenças dos decisores, desde as mais genéricas às mais particulariza-
das. Uma das abordagens mais utilizadas para identificar as imagens gerais
dos decisores é através da análise dos seus «códigos operacionais». Estes
compreendem um conjunto coerente de convicções sobre a natureza da
vida política internacional (Alexander, 1969). As crenças subjacentes aos
códigos operacionais são decompostas na sua dimensão «filosófica» (crenças
que definem a situação) e «instrumental» (crenças que determinam o com-
portamento). Para poder desvendar os códigos operacionais dos decisores,
Alexander propõe um conjunto de dez perguntas que têm de ser respondi-
das sobre as crenças filosóficas e instrumentais. A sua análise permite aos
investigadores identificar a tendência ideológica e orientação de política
externa geral dos decisores.
Os mapas cognitivos também são utilizados para aferir o conteúdo das
43
crenças dos decisores. A ênfase dos mapas cognitivos é na determinação
da forma como as crenças do decisor motivam determinados comportamen-
tos. De forma a revelar a complexidade do processo de decisão, os mapas
cognitivos evidenciam a relação causal entre as convicções pessoais e as
opções políticas, nomeadamente através da aplicação de modelos matemá-
ticos representados por esquemas ilustrados (Axelrod, 1976).
Outra forma de identificar o conteúdo das crenças dos decisores é através
da análise das imagens que têm sobre o ambiente internacional. As imagens
consistem em simplificações do mundo político e resultam da avaliação que
os decisores fazem relativamente às capacidades, relação e cultura de outro
Estado (Mintz e DeRouen Jr., 2010; Schafer, 1997). As imagens ajudam os de-
cisores a enquadrar e perceber a informação complexa existente no ambiente
político internacional, nomeadamente através da categorização dos diferentes
eventos e actores. Desta forma, estas abordagens cognitivas diferenciadas pos-
sibilitam uma análise ampla das diversas crenças que os indivíduos têm sobre
o ambiente político internacional, desde as mais genéricas às mais específicas.
A forma como o decisor organiza e estrutura as suas crenças é igualmente
determinante para o processo de decisão de política externa. A sua compre-
ensão facilita a análise da coerência do sistema de crenças dos responsáveis
políticos. A questão central desta perspectiva assenta na consistência ou
fragilidade do sistema de crenças e imagens dos políticos. A tese da consis-
tência cognitiva defende que os indivíduos tendem a assimilar informação
nova de forma a encaixá-la congruentemente nas suas crenças e imagens pré-
existentes ( Jervis, 1976). Consequentemente, qualquer informação discordante
é recusada durante o processo de decisão. O estudo de Holsti (2006) sobre o
Secretário de Estado americano John Foster Dulles realça esta tendência para
a manutenção da rigidez cognitiva. Dulles mantinha a sua imagem negativa
dos soviéticos mesmo quando a informação que recebia contrastava essa
ideia. O Secretário de Estado rejeitava as informações contrárias com base
no argumento que os soviéticos estavam a aplicar estratagemas para iludir os
americanos sobre os seus verdadeiros objectivos expansionistas.
Desde a década de 1970 que se desenvolvem perspectivas que privilegiam
processos cognitivos mais complexos. Em vez de inflexibilidade cognitiva, o
decisor é encarado como um «avarento» cognitivo (cognitive miser) no sentido
44
em que devido à sua limitada capacidade para processar informação ele é
obrigado a recorrer a esquemas e atalhos mentais para simplificar a informa-
ção (Rosati, 2001). Desta forma, os esquemas encerram informação genérica
sobre o mundo, pois são «estruturas cognitivas que representam conhecimen-
to sobre um conceito ou tipo de estímulo, incluindo os seus atributos e as
relações entre esses mesmos atributos» (Larson, 1994). Mais do que simples
crenças, os esquemas incluem exemplos específicos e analogias derivados
da experiência pessoal (Larson, 1994). Desta forma, as crenças pré-existentes
ainda são consideradas importantes para interpretar informação nova, mas os
sistemas de crenças são entendidos como mais fragmentados, com diferentes
crenças ou esquemas invocados em diferentes situações para dar sentido à
complexidade do ambiente político. Mediante este entendimento, a possibili-
dade dos decisores modificarem as suas crenças é mais facilmente abraçada.
Alguns estudos têm verificado que ambos os padrões são possíveis. Num
estudo sobre as imagens que a Administração Truman tinha sobre a União
Soviética, Larson testemunha que enquanto Acheson manteve uma imagem
estável e coerente ao longo dos anos, outros elementos da Administração
(por exemplo, Truman, Harriman, Brynes) demonstraram inconsistências em
vários períodos (Rosati, 2001). Por sua vez, Rosati (1991) evidencia o mes-
mo padrão na Administração Carter. Todos os elementos responsáveis pela
política externa revelaram alterar as suas imagens do sistema internacional
ao longo dos anos, passando de uma visão mais optimista e cooperativa
para uma mais negativa e hostil.
De acordo com Rosati (2001) três factores estão implícitos na definição
das estruturas cognitivas e contribuem para a sua maior inflexibilidade ou
fragmentação:

· O nível de conhecimento e experiência do decisor – a distinção en-


tre decisores experientes e principiantes determina que quanto mais
experiência e conhecimento efectivo um indivíduo tem, maior a co-
erência das suas imagens e crenças. Contrariamente, quanto menos
experiência e conhecimento o indivíduo tem, maior a tendência para
a inconsistência e fragmentação das crenças;
· O papel desempenhado pelo decisor – a função que cada indivíduo
45
desempenha no processo de decisão também condiciona a sua estru-
tura cognitiva. No modelo apresentado por Steinbruner existem três
formas comuns de pensar entre os decisores – 1) os burocratas que
assentam as suas actividades em rotinas e na consistência processual;
2) os teóricos, que ocupam os lugares intermédios no processo de
decisão e estão mais dispostos a considerações abstractas, embora
revelando uma notável consistência ao longo do tempo; e 3) os
descomprometidos, que ocupam os lugares cimeiros no processo de
decisão e são alvo de uma vasta quantidade de informação, optando
por soluções diferentes em situações análogas (Rosati, 2001);
· A situação e as expectativas mantidas pelo decisor em determinado
momento – os decisores tendem a ser mais influenciados conforme
preocupações imediatas que os ocupam. De acordo com Jervis (1976)
as preocupações imediatas (evoked sets) dos decisores levam-nos a
interpretar as informações recebidas de acordo com os assuntos que
mais os consomem nesse momento. Assim, «para adivinhar as inferên-
cias que uma pessoa irá retirar de um determinado sinal necessitamos
muitas vezes de saber quais os problemas que a preocupam e qual
a informação que recebeu recentemente» ( Jervis, 1976: 203).

A par com o conteúdo e estrutura cognitiva dos decisores é necessá-


rio analisar os padrões comuns de percepção e erros de percepção para
compreender algumas das dinâmicas inerentes aos processos de decisão
de política externa. Rosati (2001) identifica três padrões de percepção utili-
zados pelos decisores para organizarem e trazerem ordem à complexidade
do ambiente político:

· Tendência para categorizar e estereotipar – para impor alguma ordem


na quantidade de informação que adquirem do seu ambiente político,
os indivíduos compartimentam e organizam a informação recebida.
A simplificação envolvida neste processo leva normalmente à estere-
otipagem dos eventos e actores. Neste processo há propensão para
simplificar as situações de tal forma que se perdem muitos dos traços
distintivos das mesmas, criando-se categorias antagónicas como nós-
46
eles, bons-maus, etc;
· Tendência para simplificar inferências causais – os indivíduos procu-
ram sempre explicações para as diferentes ocorrências. Um erro de
percepção comum é atribuir aos adversários maiores capacidades e
responsabilidades do que efectivamente têm. Assim, assume-se que
o comportamento dos Estados adversários é geralmente mais centra-
lizado, melhor planeado e mais coordenado do que realmente é. Isto
porque, como explica Jervis (1976: 319) «é uma manifestação do ímpeto
para comprimir eventos complexos e não-relacionados num padrão
coerente». Das diversas inferências causais associadas ao processo
de decisão de política externa algumas revelam‑se particularmente
importantes (Rosati, 2001): tendência para sobrestimar ou subestimar
as causas disposicionais e situacionais do comportamento; tendência
para sobrestimar ou subestimar a própria importância; tendência para
sobrestimar o planeamento e centralização das actividades de outros;
tendência para ceder a pensamentos pessimistas ou demasiado op-
timistas; tendência para utilizar analogias históricas – na busca de
soluções simples, os indivíduos têm propensão para utilizar as lições
do passado para responder aos desafios do momento. Os eventos
internacionais passados servem de repertório de opções à disposição
dos decisores. Vertzberger (2002) esclarece que os decisores geralmente
utilizam as analogias históricas para definir a situação, circunscrever
funções, e determinar e justificar a estratégia.
A abordagem cognitiva também é útil para determinar a rigidez e fle-
xibilidade cognitiva dos decisores de política externa. Segundo Rokeach
as diferentes crenças dos indivíduos não têm todas a mesma importância
(Rosati, 2001). Aliás, quanto mais central uma crença é para um indivíduo,
mais resistente será à mudança. Se eventualmente ocorrer uma mudança
numa crença central, maior será a implicação dessa transformação no restante
sistema de crenças. Todavia, conforme foi exposto anteriormente, a teoria
da consistência cognitiva e teoria dos esquemas diferem na probabilidade
e na natureza das transformações das crenças. A primeira, subscrevendo a
inflexibilidade cognitiva, ao salientar a interdependência das crenças as-
sume que uma transformação a ocorrer repercutir-se-ia em todo o sistema
47
de crenças ( Jervis, 1976). Por sua vez, a teoria dos esquemas, apoiando-se
nas teorias da cognição social, argumenta que as crenças são muito menos
interdependentes, facilitando alterações de crenças singulares incrementadas
ao longo do tempo. As implicações destas diferentes perspectivas para o
processo de decisão são profundas. Em última instância, comprometem a
capacidade dos mais variados decisores políticos (incluindo organizações)
para aprender com as suas diversas experiências. Implicam, igualmente, a
capacidade que os decisores possuem para se adaptar a novas situações e
transformações no seu ambiente político (Rosati, 2001).
No que se refere ao impacto dos factores cognitivos na elaboração
política, estes fazem-se sentir em duas etapas distintas: 1) na definição da
agenda e 2) na formulação e decisão da política externa. No primeiro pon-
to, o estudo da definição das agendas tem ocupado um lugar periférico na
análise de política externa (Rosati, 2001). Contudo, é de todo o interesse
compreender como é que os factores cognitivos influenciam as percepções
do ambiente de decisão dos decisores, pois «a forma como o problema é
definido e representado é crucial à sua possível solução» (Sylvan, 1998: 3).
Por sua vez, como anteriormente foi evidenciado, os factores cognitivos
actuam no processo de decisão simplificando o processo, minimizando os
custos psicológicos inerentes ao ambiente político. Mais especificamente, os
processos cognitivos separam os valores e os objectivos, limitam a procura
de informação, reduzem a consideração de alternativas, privilegiam a alter-
nativa mais próxima dos objectivos escolhidos e constringem a capacidade
de aprendizagem (Rosati, 2001).

Propostas para melhorar o processo de decisão de política externa

As decisões de política externa serão sempre resultado de processos


complexos e imperfeitos. Contudo, há formas de melhorar o desempenho
das organizações, grupos e decisores de forma a reduzir a quantidade e
dimensão das condicionantes. Neste sentido, vários modelos têm sido de-
senvolvidos que procuram melhorar a qualidade do processo de decisão,
evitando algumas das tendências e vícios de forma acima referidos. No
48
modelo desenvolvido por Alexander George (1980), este defende a neces-
sidade de um sistema de advocacia múltipla (multiple advocacy), no qual
são potenciados os conflitos e desacordos inerentes ao processo de decisão.
O sistema compreende uma estrutura mista em que o poder executivo se
conjuga com vários actores que representam perspectivas distintas. Desta
forma, para garantir que se analisem as várias opções políticas, o líder
promove a competição entre as diferentes organizações ou indivíduos de
forma a evitar a omissão de alternativas. O modelo de advocacia múltipla
impõe três condições: 1) os diferentes elementos devem exibir diversidade
de perspectivas e deve haver uma distribuição equilibrada em termos de
poder (influência), competência, informação, recursos analíticos e aptidões
negociais ou de persuasão; 2) o poder executivo deve monitorizar e regular
activamente o processo; 3) deve existir tempo suficiente para se debater e
negociar as diferentes opções.
Por sua vez, o modelo do advogado do diabo (devil’s advocate) é
destinado a descrever o papel de um determinado indivíduo e não uma
estrutura de decisão (como o modelo anterior). Na sua concepção teórica,
o modelo implica que nas decisões de política externa mais importantes
haja pelo menos um consultor sénior que tenha (ou tome) uma posição
divergente e argumente em seu favor. O objectivo do advogado do diabo
é contrariar a propensão excessiva para haver conformidade nos grupos,
nomeadamente através de comportamentos que procuram consenso (Ge-
orge, 1980). Contudo, há vários obstáculos à sua aplicação efectiva. Logo
à partida, pode não existir nenhum membro na estrutura de decisão que
tenha uma opinião divergente. Embora se possa nomear um elemento
para argumentar uma posição discordante, este pode ser encarado como
somente desempenhando um papel, não evidenciando nenhuma convicção
real a favor dessa perspectiva. O próprio advogado do diabo indicado
pode também não estar totalmente comprometido com a abordagem dissi-
dente e não desenvolver os esforços necessários para bloquear a posição
maioritária ou até mesmo alterá-la.
Yaacov Vertzberger (2002) propõe medidas mais vocacionadas para au-
mentar a capacidade técnica das organizações burocráticas. No seu entender
deve haver mecanismos que evitem a politização das burocracias, permitin-
49
do a prossecução de propostas livres de caprichos políticos. Porém, nada
garante que as avaliações e recomendações de política externa feitas pelos
tecnocratas das burocracias estatais estejam livres de deficiências e não
evidenciem perspectivas tendenciosas. Vertzberger insiste que é necessário
estimular formas de pensamento criativas para evitar algumas das lacunas
actuais, nomeadamente através da formação contínua dos burocratas e da
monitorização dos processos de decisão. Essas propostas podem contribuir
para de facto aperfeiçoar o processo de decisão. Contudo, acreditamos
que a forma mais elementar para melhorar o processo de decisão passa
pela consciencialização da sua existência e reconhecimento dos principais
desafios que se lhe colocam.

Conclusão

Ao longo deste capítulo procurou-se demonstrar que a política exter-


na é caracterizada por um elevado grau de complexidade. Os problemas
que os decisores enfrentam são complicados e os processos de decisão
envolvem dificuldades múltiplas. A própria definição de política externa
não é consensual e a natureza fluida do ambiente político internacional
contemporâneo impõe uma renovada reflexão sobre a sua conceptualiza-
ção. Todavia, é possível identificar alguns modelos, dinâmicas e actores
que ajudam a atenuar a complexidade e melhor compreender a política
internacional. A formulação e decisão de política externa podem ser anali-
sadas e compreendidas através de vários modelos que se focam em níveis
de análise distintos. Ao tradicional modelo do actor racional, juntam-se-lhe
os modelos das organizações burocráticas, dos pequenos grupos e dos
líderes. Cada modelo encerra vantagens e inconvenientes na sua aprecia-
ção do processo de decisão de política externa. O processo de decisão é
igualmente sujeito a enormes complexidades. Não só as decisões diferem
no seu tipo e na sua forma, como o ambiente de decisão cria imperativos
aos decisores que os obriga a decidir em condições que não são as mais
adequadas. O ambiente político internacional também dificulta o processo,
revelando-se opaco dada a multiplicidade de factores na identificação e
50
avaliação da situação política. O processo de decisão de política externa
é condicionado ainda por factores externos, domésticos e psicológicos. A
maior parte destes factores são imperceptíveis ao olhar desatento. A análise
de política externa centrada nos processos de decisão permite identificar
e explicar muitos destes fenómenos. Acima de tudo, possibilita reconhecer
esses factores e procurar, se não corrigi-los, evitar os seus efeitos perversos
na formulação de política externa.

Questões para análise


Quais os pressupostos basilares dos estudos iniciais de análise de política ex-
terna e como é que se coadunam com a realidade da política internacional
contemporânea?
Porque é que os modelos de análise de política externa adquiriram maior
ênfase com o término da Guerra Fria?
Como é que o ambiente político internacional condiciona o processo de
decisão de política externa?
Como é que os factores cognitivos influenciam a decisão de política externa?
Em que medida é que é possível corrigir algumas das deficiências do processo
de decisão de política externa?

Leituras recomendadas
Allison, Graham e Zelikow, Philip (1999) Essence of Decision: Explaining the
Cuban Missile Crisis. New York: Addison-Wesley Longman, Inc.
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Bibliografia

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(Página deixada propositadamente em branco)
Patrícia Daehnhardt

55

Capítulo 2

Alemanha

A particularidade da política externa alemã após o fim da Segunda


Guerra Mundial foi o facto de tanto a República Federal da Alemanha
como a República Democrática da Alemanha verem as suas margens de
manobra política condicionadas pela presença política e militar das po-
tências vencedoras da Segunda Guerra Mundial, e pela ordem bipolar
emergente pós-1945 que dividiu o continente europeu entre a Europa
ocidental, aliada aos Estados Unidos da América, e a Europa de leste, sob
a hegemonia da União Soviética. A Segunda Guerra Mundial terminou, na
Europa, em Maio de 1945, com a partilha do território alemão entre as
potências vencedoras, os Estados Unidos, a União Soviética, a Grã-Bretanha
e a França com a criação de quatro zonas de ocupação, cabendo à União
Soviética o controlo sobre a parte oriental da Alemanha, e às restantes
três potências aliadas o controlo sobre a parte ocidental do território.
O início da Guerra Fria na Europa, assim como o crescente desentendi-
mento sobre a forma de administração conjunta das zonas de ocupação,
levaria, após o bloqueio soviético à cidade de Berlim, em 1948, à divisão
efectiva e à criação, em 1949, de dois Estados alemães, a República Federal
da Alemanha (RFA), apoiada pelas três potências ocidentais, e a República
Democrática da Alemanha (RDA), inserida na zona de influência da União
Soviética. A cidade de Berlim permaneceria, dividida, sob administração
das quatro potências. Com a unificação, a 3 de Outubro de 1990, a Alema-
nha, potência no centro da Europa, recuperou a sua completa soberania
política e iniciou um percurso de normalização da sua política externa e
de afirmação do seu novo estatuto de poder.
Este capítulo visa analisar a evolução da política externa alemã, abordando
56
a constituição das duas Alemanhas e o papel da RFA durante a Guerra Fria,
e o período após a unificação. Apesar da especificidade do regime político
da antiga RDA, a análise centra-se sobre as decisões políticas tomadas pela
RFA, tendo em conta que a República Federal foi a principal representante
da nação alemã e foi ela que liderou o processo de unificação. Na primeira
parte, o capítulo incide sobre a política externa da RFA durante a Guerra
Fria, sob as lideranças de Konrad Adenauer, Willy Brandt e Helmut Kohl.
Na segunda parte, o capítulo articula as diferenças na condução da política
externa alemã nos períodos de Helmut Kohl, Gerhard Schröder e Angela
Merkel.

A Alemanha no centro da Europa

Historicamente, o território do que é hoje a Alemanha esteve dividido entre


diferentes parcelas políticas e apenas se constituiu como unidade política em
finais do século XIX. Isto prende-se com várias razões que explicam a especi-
ficidade da Alemanha na política europeia. O fim da Guerra dos Trinta Anos,
em 1648, teve um desfecho paradoxal. Enquanto marcou o nascimento do
sistema de Estados modernos, na Europa, através da constituição de estados
soberanos, a mesma data representou, para os alemães, o adiamento, sine
die, do seu próprio projecto de soberania política, já que da guerra resultou
a permanência de várias pequenas entidades políticas alemãs que careciam
de um centro unificador. Foi apenas dois séculos mais tarde, em 1871, que
a Alemanha se unificou enquanto Estado, sob a liderança do Chanceler Otto
von Bismarck, após guerras com a Dinamarca, a Áustria e a França. Para Bis-
marck, a Alemanha, com a Prússia como o seu centro unificador, era agora
uma potência ‘saturada’, sem pretensões expansionistas sobre os territórios
dos seus vizinhos e empenhada em manter o equilíbrio geopolítico europeu.
Para tal, Bismarck definiu uma hábil política de alianças e isolou diplomati-
camente a França. Com Guilherme II, a Alemanha seguiu, a partir de 1890,
uma Weltpolitik (política mundial) e a pretensão de tornar a potência con-
tinental alemã uma potência naval, o que rivalizou com o tradicional papel
marítimo da Grã-Bretanha, e contribuiu para o advento da Primeira Guerra
57
Mundial. A forma como as potências vencedoras do conflito lidaram com a
Alemanha, em 1919, aplicando-lhe elevadas reparações de guerra assim como
impondo‑lhe a ostracização momentânea do sistema internacional, viriam a
acelerar a debilidade do recém criado regime democrático e facilitar a emer-
gência de uma Alemanha revisionista, que, na década de 1930, seguiu uma
política de preparação para a Segunda Guerra Mundial, com o objectivo de
alterar o status quo fragilizado do período entre as duas guerras e prosseguir
uma política expansionista de germanização da Europa.
O que estas diferentes políticas demonstram é que a complexidade da po-
sição da Alemanha no centro da Europa e a forma como os Estados vizinhos
responderam causou, historicamente, aquilo que se denomina de tradicional
‘questão alemã’: o dilema que resultava ou da excessiva fraqueza, ou da
exagerada força do Estado alemão, e da dificuldade de se criar um sistema
de equilíbrio que contivesse esta tensão constante. No primeiro caso, a fra-
queza tornava o estado alemão vulnerável a pressões externas; no segundo,
a Alemanha tornava-se demasiadamente forte para se manter uma potência
europeia equilibrada, com fronteiras estáveis e uma política externa benigna.
Este dilema ajuda também a compreender porque é que, na Alemanha, a
construção do estado e da nação ocorreram tardiamente e porque é que a
nação alemã tem sido qualificada de ‘nação tardia’ (verspatete Nation, Hel-
mut Plessner): uma industrialização tardia, uma emancipação incompleta da
burguesia e uma democratização falhada da estrutura política constitucional
foram as razões internas que se aliaram às condicionantes externas referidas.

O início da Guerra Fria na Europa e a divisão alemã

Se concebermos que a Guerra Fria foi um sistema internacional que


ideologicamente, economicamente e geopoliticamente opôs os Estados
Unidos e a União Soviética, que se combateram numa guerra de ideias,
de territórios e de mercados à escala global, a Europa foi a região mais
decisiva para as duas superpotências, e localizadas no seu centro, as duas
Alemanhas, e principalmente a RFA, eram as peças mais cobiçadas no novo
palco estratégico e político-militar da Guerra Fria. 1 Nenhuma das duas
58
superpotências iria voluntariamente desistir da ‘sua’ parte alemã e permi-
tir que a outra superpotência obtivesse a vantagem de vir a incluir uma
potencial Alemanha unificada no seu bloco. Para a RFA, isto significava
que era simultaneamente o elemento mais vulnerável, com uma margem
de manobra política limitada, e o jogador passivo mais importante porque
excluía a hipótese do seu isolamento internacional.

Interesse nacional: Reunificação ou Westbindung?

Qual foi o interesse nacional da RFA nos anos imediatos depois da sua
constituição? Perante os condicionalismos da bipolaridade, o primeiro Chan-
celer da República Federal, Konrad Adenauer, da União Democrata Cristã
(CDU), definiu as duas opções da política externa da seguinte forma: pros-
seguir com o objectivo da reunificação das duas Alemanhas ou promover
a integração da RFA nas estruturas institucionais ocidentais que se estavam
a criar através de uma política de Westbindung (aliar-se ao Ocidente).
A primeira opção sugeria uma alteração do status quo recém imposto pelas
potências vencedoras, o que corria o risco de isolar a RFA diplomatica-
mente. A divisão alemã e a presença das quatro potências vencedoras da
Guerra fazia com que qualquer tentativa de resolução deste problema teria
de ser enquadrada num contexto mais amplo de confronto leste-oeste, e
da Guerra Fria que se estava a iniciar. A segunda opção integraria a RFA
nas estruturas institucionais da Europa ocidental, ancorando-a na Aliança
Atlântica e nas Comunidades Económicas Europeias, ao mesmo tempo que
reconhecia, implicitamente e a curto prazo, a efectiva divisão alemã, e corria

1 A cidade de Berlim era o centro nevrálgico desse conflito bipolar. Várias crises da Guerra Fria
decorreram na Europa: a crise de Berlim, em 1948, que levou à partilha da Alemanha, e de Berlim, em
dois, e a crise de 1958-1961, que terminaria com a construção do Muro de Berlim, em Agosto de 1961.
o risco de impopularidade junto do eleitorado devido à artificialidade da
divisão da nação alemã. 2
A escolha entre estas duas opções foi fundamental, porque determinou
59
a condução da diplomacia alemã durante a Guerra Fria. Konrad Adenauer
optou pela política de Westbindung. O objectivo da reunificação era o objec-
tivo primordial, mas teve de ser relegado para segundo plano. Impunha-se,
em primeiro lugar, convencer os aliados, e principalmente a França e os
Estados Unidos, de que a RFA pretendia ocupar um lugar sólido nas novas
estruturas institucionais ocidentais, e que a nova classe política alemã se
tornara uma elite em que o ocidente podia confiar, que não sucumbia às
tentações de uma neutralidade política que poderia vir a desequilibrar o
frágil equilíbrio assegurado pela dissuasão nuclear entre os dois blocos.
Para Adenauer, oriundo da Renânia, a opção externa pela Westbindung era
uma questão existencial e passava por duas relações bilaterais indispensáveis:
a França e os Estados Unidos. Face ao receio francês de um ressurgimento
militar alemão, a RFA aceitou a criação de uma Agência de Controlo de Ar-
mamentos para que a França aceitasse o rearmamento alemão e a integração
da RFA na Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Isto levou
a Alemanha a seguir uma política de reconciliação com a França, que se
traduziu no início do processo de integração europeia na década de 1950.
Quanto aos Estados Unidos, a administração Truman teve a visão estratégica
de, para tornar a política de contenção do comunismo soviético eficaz, ser
essencial incluir a RFA nas estruturas institucionais que os Estados Unidos
estavam a promover no continente europeu, a partir de 1947.
O Chanceler Adenauer não sucumbiu à oferta do líder soviético Estaline,
quando este propôs, em 1952, que a URSS aceitaria a reunificação das duas
Alemanhas desde que uma Alemanha unificada fosse neutra e não integrasse
nenhuma aliança militar. Tal situação teria colocado as forças ocidentais à
esquerda do rio Reno, numa clara desvantagem estratégica face a Mosco-
vo. Para além do mais, uma Alemanha unificada desligada de uma aliança

2 É por essa razão que não existiu, na RFA, uma Constituição, mas apenas uma ‘Lei Básica’
(Grundgesetz) como lei fundamental, elaborada por um ‘período de transição’ que seria terminado
aquando da reunificação do povo alemão.
levantaria, mais uma vez, o ‘problema alemão’: o de que uma Alemanha
demasiado forte seria uma ameaça hegemónica para os seus vizinhos, e uma
Alemanha demasiado fraca seria uma tentação para ambições dos mesmos.
60
Uma Alemanha neutra e desarmada causaria o duplo problema de mantê-la
desarmada e livre da dominação de outras potências; uma Alemanha neu-
tra e armada levantaria o problema oposto de mantê-la neutra e de evitar
uma nova hegemonia de poder. Neste sentido, e apesar da anormalidade
da existência de dois Estados alemães na Europa, a RFA estava firmemente
integrada numa rede de instituições o que evitava simultaneamente o isola-
mento do país e as tentações neutralistas, ao mesmo tempo que assegurava,
voluntariamente, o constrangimento do poderio alemão. O constrangimento
foi tal que levou alguns a falar da transição de uma ‘obsessão pelo poder’
(Machtbesessenheit) para um ‘esquecimento do poder’ (Machtvergessenheit)
(Schwarz, 1994) por parte dos decisores políticos alemães.
É face a este conjunto de cenários que a administração de Dwight Eise-
nhower e Adenauer, conceberam a inclusão da RFA na OTAN para assegurar
a política de contenção de expansionismo militar e ideológico da União
Soviética.3 A integração na OTAN aconteceu através dos Acordos de Paris, de
23 Outubro de 1954, e depois de a França ter recebido garantias do Reino
Unido e dos EUA de que estes manteriam uma presença militar substancial
na RFA e na Europa (Paris Agreements, 1954). Os Acordos terminaram com
o estatuto de ocupação da RFA, que recuperou a sua soberania e integrou
consequentemente a OTAN e a União da Europa Ocidental (UEO). Pelos
Acordos, a RFA podia ter forças militares próprias, comprometendo-se a
integrá-las na totalidade nas estruturas da OTAN, e renunciava ao fabrico
de armas nucleares, biológicas e químicas. Os Acordos incluíram ainda uma
declaração de auto-limitação, onde a RFA se comprometeu a «nunca recorrer
à força para obter a reunificação da Alemanha», e de «resolver por meios
pacíficos» disputas com outros países. Integrar a RFA na OTAN serviria, as-

3 É preciso não esquecer o contexto internacional. Devido à constituição da República Popular


da China, que se tornara comunista na sequência da vitória de Mao Tse-Tung, em 1949, e devido
à Guerra da Coreia, entre 1950 e 1953, os Estados Unidos alargaram a sua doutrina de contenção,
concebendo-a em termos globais, e reforçando a defesa da Europa ocidental. Uma consequência
desse reforço foi o apoio norte-americano ao rearmamento alemão e à inclusão da RFA na OTAN.
sim, também para assegurar o controlo militar ocidental sobre o país. Lord
Ismay, o primeiro secretário-geral da OTAN, caracterizou bem a tripla função
da Aliança ao afirmar que a OTAN serviria «to keep the Americans in, the
61
Soviets out and the Germans down». A União Soviética, após as malogradas
‘notas de Estaline’, e após a integração da RFA na OTAN, criou o Pacto de
Varsóvia, em 1955. Ou seja, da perspectiva de Moscovo, uma RFA na OTAN
era mais decisivo do que a própria existência da OTAN. 4
Face à República Democrática da Alemanha, a RFA prosseguia, desde
1955, a diplomacia da chamada doutrina Hallstein, segundo a qual Bona
abstinha-se de celebrar relações diplomáticas ou cortaria relações existentes
com Estados que reconhecessem diplomaticamente a RDA. Com esta política,
a RFA pretendia ser a legítima representante do povo alemão, retirar legiti-
midade ao regime político da RDA e isolá-lo internacionalmente. Ao mesmo
tempo, e consequência da política de Westbindung, isto deveria demonstrar
a pertença da RFA ao mundo ocidental e revelar uma prova de confiança
à França e aos Estados Unidos. A excepção a esta postura foi, contudo, a
celebração de relações diplomáticas com a URSS, em 1955, revelando a im-
portância da URSS como uma das chaves no futuro processo de unificação.
Economicamente, a Alemanha Federal também se integrou nas estruturas
ocidentais. O apoio norte-americano através do plano Marshall à recons-
trução económica da Europa, em 1947, permitiu à RFA desenvolver uma
capacidade económica formidável e contribuiu para a estabilidade política
na Europa ocidental (já que a URSS pressionou os países da Europa de
leste a recusarem a ajuda) e a reconstrução dos países envolvidos na guer-
ra. Internamente, o Ministro da Economia, Ludwig Erhard (CDU), iniciou
uma política social de mercado (soziale Marktwirtschaft) para assegurar a
revitalização da economia alemã, produzindo assim o ‘milagre económico
alemão’. Este rápido desenvolvimento económico fomentou a estabilização
política interna e o fortalecimento das estruturas políticas democráticas.

4 Não foi por acaso que, na sequência da queda do Muro de Berlim, em 9 de Novembro de 1989,
a questão negocial mais controversa, e aquela que ainda hoje é debatida, foi a adesão da Alemanha
unificada à OTAN, mais do que a própria continuidade institucional da OTAN. Ainda hoje em dia é as-
sim, no que se refere à hipótese, de momento remota, da integração da Geórgia e da Ucrânia na OTAN.
Por outro lado, iniciou-se o processo de integração económica na Europa
ocidental. Através do chamado ‘plano Schuman’, que propunha a integra-
ção das indústrias europeias do carvão e do aço, a França e a RFA criaram
62
a CECA, em 1951. A RFA e a França, a Itália e os três países do Benelux
criaram, em 1957, a Comunidade Económica Europeia (CEE). Desde o iní-
cio, a RFA e a França representaram o núcleo do processo de integração
europeia, que foi ao mesmo tempo também catalizador na reconciliação
entre os dois Estados.
Desde então a RFA desenvolveu uma política europeia assente na forte
congruência entre as instituições e interesses entre a RFA e a CEE, o que
fez com que muitos considerassem a Alemanha um ‘Estado europeizado’
(Bulmer et al., 2000). O compromisso da RFA com a integração europeia
teve, desde a sua origem, uma dupla motivação adicional, diferente da dos
restantes países europeus. Por um lado, para Adenauer, a participação no
projecto de integração europeia era uma forma de a RFA recuperar sobera-
nia política. Assim, ao passo que o projecto visava, a longo prazo, delegar
prerrogativas de soberania nacional para as instituições comunitárias, para
Bona o objectivo era, em primeira instância, adquirir margem de manobra
e consolidar a soberania política. Por outro lado, o papel da Alemanha e
a memória histórica dos crimes do nacional socialismo condicionaram a
política externa e moldaram a identidade internacional da RFA, na medida
em que os próprios decisores políticos alemães concebiam a nação alemã
como fortemente europeizada, assente numa identidade pós-nacional. Nesse
sentido, a integração europeia não foi para os alemães apenas uma questão
económica e de reconciliação entre povos europeus, mas também um ins-
trumento para a gradual recuperação da identidade nacional. Num contexto
onde palavras como ‘patriotismo’ eram tabu, o marco alemão tornou-se um
substituto para a identidade debilitada, e o chamado Verfassungspatriotismus
(patriotismo constitucional) (Sternberger, 1990) funcionou como substituto
do patriotismo nacional (Sternberger, 1990).
Adenauer inverteu a lógica da integração ao não delegar elementos de
soberania que a RFA não possuía, mas para recuperar esses mesmos ele-
mentos. É neste duplo sentido que se pode argumentar que a RFA, ao longo
dos quarenta anos de Guerra Fria, se tornou uma potência domesticada,
um «tamed power» (Katzenstein, 1997). Tratou-se de uma política de baixos
custos e de elevadas compensações: num cenário de enfraquecida identi-
dade nacional, a integração europeia correspondeu ao interesse nacional
63
alemão e a melhor forma de alcançar a crescente integração foi através do
multilateralismo político.
Nos 14 anos em que foi Chanceler da RFA, Adenauer prosseguiu uma
política de aproximação ao ocidente, ‘ancorou’ a RFA nas estruturas insti-
tucionais da OTAN e da Comunidade Económica Europeia, e reconciliou
o seu país com a França, o que levou à assinatura do Tratado dos Eliseus,
em Janeiro de 1963, com o Presidente francês, Charles de Gaulle, institu-
cionalizando a relação de parceria entre os dois países.

Willy Brandt e a Ostpolitik

A construção do Muro de Berlim, pela RDA, com apoio da URSS, em Agos-


to de 1961, para impedir a continua fuga de cidadãos da RDA para Berlim
ocidental, levou ao reconhecimento de que a doutrina Hallstein limitava a
margem de manobra diplomática da RFA, e impedia uma aproximação en-
tre os dois Estados alemães que permitisse desenvolver contactos entre os
cidadãos alemães de ambos os países. O novo governo de Willy Brandt, do
Partido Social Democrata (SPD), a partir de 1969, alterou, por isso, a políti-
ca relativamente aos países de leste, iniciando a Ostpolitik (política a leste).
Para o Chanceler, não era a política de isolamento da RDA, mas antes uma
aproximação à RDA e aos países da Europa de leste, que traria os maiores
benefícios à diplomacia da RFA e ao povo alemão dividido. Sem negar os
méritos da Westbindung, o governo de Brandt desenvolveu uma política de
aproximação à Alemanha de leste, à União Soviética e aos restantes países
do Pacto de Varsóvia.
Esta Ostpolitik, que revogou a doutrina de Hallstein, culminou na assina-
tura de uma série de acordos, da RFA com a União Soviética e a Polónia,
e mais decisivamente, entre as duas Alemanhas através do Tratado Básico,
de 21 de Dezembro de 1972, onde ambas as partes se reconhecem como
entidades políticas autónomas (não como Estados soberanos), e concor-
dam resolver disputas através de meios pacíficos (The Basic Treaty, 1972).
A Ostpolitik desenvolveu-se num clima de desanuviamento entre os Estados
Unidos e a União Soviética, e na Europa, que levou à assinatura da Acta Final de
64
Helsínquia, na Conferência sobre Segurança e Cooperação na Europa, em 1975.
Foi contudo a década de 1980 que permitiu desenvolver uma gradual
independência das duas Alemanhas em relação às superpotências, numa
altura em que os EUA e a URSS entraram num novo período de Guerra Fria.
A crise dos euromísseis e a política soviética de expansão multidireccional
para países na América Central, África e a intervenção militar soviética no
Afeganistão desafiaram os princípios da dissuasão entre as superpotências;
contudo, esta nova tensão não se reproduziu no campo inter-alemão, onde a
aproximação se reforçou entre os dois Estados, permitindo um maior contacto
interpessoal entre cidadãos alemães.

A unificação alemã

A RFA chegou ao fim da Guerra Fria numa posição económica poderosa


combinada com um papel reduzido na política internacional, e com uma
fórmula militar limitada. Mas as circunstâncias em que ocorreu a unificação
da Alemanha foram benéficas à política externa alemã. Primeiro, porque o
objectivo foi alcançado de forma pacífica: atipicamente na transição de um
sistema internacional para outro, a Guerra Fria terminou sem a ocorrência
de uma guerra hegemónica (Gaspar, 2002). Segundo, porque pela primeira
vez, uma Alemanha unificada, encontrava-se rodeada, no centro da Euro-
pa, por Estados amigos e vizinhos, e sem questões territoriais por resolver.
Em terceiro lugar, porque os termos da diplomacia da unificação foram,
em larga medida, determinados pelo Chanceler Kohl e pelo seu Ministro
dos Negócios Estrangeiros, Hans-Dietrich Genscher, de uma forma inversa
àquilo que durante décadas fora o possível cenário da unificação. Perante
o acelerar dos acontecimentos que levaram à queda do Muro de Berlim, em
9 de Novembro de 1989, os líderes da RFA conduziram o processo diplo-
mático «2+4» com rapidez e determinação. Depois de reconhecer a fronteira
territorial com a Polónia, a Alemanha unificou-se, em 3 de Outubro de
1990, através da integração da RDA na RFA, e através da permanência da
Alemanha unificada na OTAN e na CEE. Por último, a ordem euro-atlântica
do pós-Guerra Fria é uma ordem construída a partir das consequências da
65
unificação alemã: o início do novo poder da Alemanha deu-se logo em
1989/90 e na forma como decorreram as negociações da unificação. Por
isso, o processo de negociação internacional que antecedeu a unificação e
moldou o fim da Guerra Fria foi crucial na construção da futura ordem de
segurança pós-Guerra Fria na Europa (Daehnhardt, 2009).
A unificação levantou dúvidas quanto à futura política europeia da
Alemanha: a simbiose entre a Alemanha e a Europa foi questionada, au-
mentando expectativas e responsabilidades de ambos os lados. O debate
centrou-se entre aqueles que defendiam a inevitabilidade da afirmação
da Alemanha como potência central europeia (Schwarz, 2005), e aqueles
que argumentavam que a Alemanha não alteraria o seu curso, já que as
instituições, os interesses e a identidade estavam firmemente consolidados
(Bulmer et al., 2000).

Helmut Kohl: a continuidade como motor e o alargamento como estratégia

Em termos bilaterais, as prioridades do governo de coligação Kohl e


Genscher foram a política de cooperação e aliança com a França, e com
os Estados Unidos. Com a França, Kohl e Genscher aprofundaram a inte-
gração europeia, através da assinatura do Tratado de Maastricht, em 1991,
instituindo a União Europeia, e elevando o grau de interligação institucional
europeu. Com os Estados Unidos, reforçaram a relação bilateral. Em Maio de
1989, aquando de uma visita à RFA, o Presidente George Bush propôs uma
parceria na liderança à Alemanha (partnership in leadership), demonstrando
simultaneamente não recear outras grandes potências no sistema interna-
cional ao reconhecer que, para Washington, a Alemanha era o Estado mais
importante na Europa.
A estratégia do governo de Kohl traduziu-se na manutenção da con-
tinuidade do multilateralismo por duas razões. Primeiro, porque tinha
sido uma política bem sucedida que evitava que a Alemanha tivesse que
escolher entre a relação franco-alemã e americano-alemã, e jogasse uma
contra a outra. Segundo, uma política de continuidade deveria tranquilizar
as ansiedades e receios quanto a uma nova hegemonia alemã na Europa.
66
A estratégia escolhida foi a Europeização das políticas alemãs através
do alargamento institucional da União Europeia e da OTAN. O Ministro
alemão da Defesa, Volker Rühe, CDU, foi dos primeiros políticos euro-
peus a sugerir o alargamento da Aliança Atlântica para o leste europeu;
simultaneamente, o alargamento das estruturas institucionais e da ordem
constitucional para a Europa central e oriental foi a fórmula encontrada
para exportar a estabilidade ocidental. Para Kohl não havia alternativas à
Europeização da política externa alemã: a unificação alemã e a unificação
europeia não eram apenas os dois lados da mesma medalha, eram uma
questão de guerra ou paz na Europa. Logo, a característica mais determi-
nante da sua liderança, perante a inevitabilidade das mudanças estruturais,
foi manter a continuidade dos objectivos – aprofundar e alargar a União
Europeia – e dos instrumentos – com a introdução do euro. Assim, o re-
forço da parceria franco-alemã e da aliança americano-alemã serviu para
deliberadamente evitar a mudança dos parâmetros da política externa.
Apesar da continuidade, a política europeia da Alemanha era progressista,
federalista e idealista na defesa da ideia de unificação europeia.
Na política de segurança da Alemanha ocorreu, contudo, uma alteração
importante, tanto pelas mudanças de conteúdo como pela forma como elas
aconteceram: em 12 de Julho de 1994, o Tribunal Constitucional Federal
autorizou a participação de tropas da Bundeswehr em missões militares
out-of-area da OTAN, com o apoio das Nações Unidas, e quando aprova-
das pelo Bundestag (parlamento alemão). Pela primeira vez, o espectro de
acção da Bundeswehr foi para além da mera defesa territorial europeia,
passando a Bundeswehr a participar, em coligação com outras forças
militares da Aliança Atlântica, em operações em território extra-Aliança
Atlântica. O facto de ter sido o órgão de soberania judicial que decidiu
esta mudança política, demonstra a dificuldade de tomada de decisões
quanto a questões militares. Esta mudança na política de segurança, sig-
nificativa em termos de política interna, foi, no entanto, coerente com as
alterações ocorridas nos objectivos estratégicos da OTAN do pós-Guerra
Fria, e que se prendiam, precisamente, com um alargamento do campo
de acção e da natureza das missões.

67

A mudança com Gerhard Schröder: a redefinição do estatuto de poder

A partir de Outubro de 1998, com a constituição do governo de coliga-


ção social-democrata e verdes (SPD/Die Grünen), a política externa assume
novos contornos quando o Chanceler Gerhard Schröder inicia a mudança
do tradicional europeísmo alemão, ao afirmar, perante o Bundestag, pouco
depois de se ter tornado Chanceler, que «nós somos europeus não porque
temos que sê-lo, mas porque queremos sê-lo» (Schröder, 1998). O Chan-
celer representava a primeira geração do pós-guerra que já não sentia os
constrangimentos da história alemã da mesma forma que a geração Kohl.
O europeísmo alemão tinha deixado de ser um pressuposto para uma
política credível e passou a ser uma opção voluntária. Um novo sistema
internacional pressupunha uma nova Alemanha: esta pretendia manter os
laços europeus e transatlânticos, mas redefinir o estatuto da Alemanha no
seio das mesmas estruturas institucionais.
Como é que Schröder e Fischer procederam à redefinição do estatuto da
Alemanha? Em primeiro lugar, na Primavera de 1999, a Alemanha participou,
sob comando da OTAN, pela primeira vez numa missão militar ofensiva
contra um terceiro estado, a Sérvia, em defesa da minoria albanesa, na
guerra do Kosovo. Fê-lo em concordância com os seus parceiros europeus
e os Estados Unidos, mas sem o mandato internacional da ONU, e pôs em
prática a alteração da política de segurança alemã. Decorria a presidência
alemã da União Europeia, e o Conselho Europeu de Colónia decidiu, sob
forte impulso alemão, adoptar o Pacto de Estabilidade para os Balcãs para a
estabilização da região. Em segundo lugar, na sequência do ataque terrorista
aos Estados Unidos, em 11 de Setembro de 2001, o Chanceler declarou,
um dia depois, a «solidariedade sem restrições» (uneingeschränkte Solida-
rität) aos EUA na luta contra o terrorismo internacional (Stenographischer
Bericht 186, 2001). Sem reservas, a Alemanha participou militarmente na
operação militar norte-americana no Afeganistão. Em Novembro de 2001,
o Bundestag pronunciou-se sobre a participação alemã, que foi ao mesmo
tempo um voto de confiança no próprio governo alemão, e que este ga-
nhou apenas por uma pequena margem. 5 Contudo, e em terceiro lugar, o
68
desentendimento transatlântico provocado pelo debate, nas Nações Unidas,
sobre o objectivo dos EUA de intervir militarmente no Iraque, em 2003, foi
instrumentalizado por Schröder, por razões eleitorais, no verão de 2002,
quando este defendeu que a Alemanha não participaria numa guerra contra
o Iraque, mesmo com uma resolução do Conselho de Segurança da ONU.
Pela primeira vez, a Alemanha confrontou politicamente os EUA e manteve
a sua oposição, mesmo após a reeleição da coligação SPD-Verdes, em Se-
tembro de 2002. Schröder justificou a postura ao afirmar que a Alemanha
era uma nação auto-confiante e sem complexos, empenhada no ‘caminho
alemão’ (deutscher Weg), que não estaria disposta a participar em «aventuras
militares» (Schröder, 2002).
Esta posição inédita de unilateralismo alemão contribuiu significativamen-
te para a pior crise transatlântica desde a criação da Aliança Atlântica: em
primeiro lugar, porque a Alemanha desperdiçou valioso capital de confiança
junto dos Estados Unidos, o que levantou dúvidas sobre a sua posição de
aliado responsável e defensor do multilateralismo tradicional. Em segun-
do lugar, o governo alemão não impediu a consequente divisão europeia
entre países transatlanticistas, como o Reino Unido, a Polónia, a Holanda,
a Dinamarca e Portugal, entre outros, e europeus mais críticos da postura
norte-americana, como a Alemanha, a França, a Bélgica e o Luxemburgo,
e que se veio a reflectir na rejeição do Tratado Constitucional, em 2005,
quanto ao futuro da integração europeia. Por último, a contestação alemã
posicionou a Alemanha de novo ao lado da França, após desentendimentos
iniciais, na Conferência Intergovernamental de Nice, em Dezembro de 2000,
quanto à distribuição dos votos por Estado membro da UE. A revitalização da
relação franco-alemã e a celebração mediática do quadragésimo aniversário
do Tratado dos Eliseus, em Janeiro de 2003, sublinhou a contestação da

5 Schröder ligou a necessária votação do Bundestag quanto à participação de soldados alemães


na luta contra o terrorismo no Afeganistão a uma moção de confiança à sua política. A moção foi
aprovada por 336 dos 662 deputados.
própria França à hiperpotência americana (hyperpuissance) como afirmava
o Ministro dos Negócios Estrangeiros francês, Hubert Védrine. Esta prefe-
rência alemã pela relação bilateral com a França em detrimento da relação
69
com os Estados Unidos foi uma decisão consciente que todos os governos
alemães desde 1949 tinham evitado, porque a melhor opção política era
aquela que evitava ter que escolher entre os dois aliados mais importantes
da Alemanha. O Chanceler Schröder, no entanto, quis inverter esta lógica,
ao secundarizar o bilateralismo com os EUA e ao galvanizar o bilateralismo
com a França.
Como foi referido, o tradicional europeísmo alemão alterou-se neste
período. Em Maio de 2000, o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Joschka
Fischer, pronunciou um discurso sobre a União Europeia, na Universida-
de de Humboldt, em Berlim, onde advogou o federalismo europeu e a
constituição de um núcleo duro de países que intensificariam a integração
europeia (Fischer, 2000). Na realidade, foi a última vez que um político
alemão falou publicamente desta forma da unificação europeia, e Fischer
foi, ironicamente, o sucessor de Kohl nesta sua perspectiva federalista.
Schröder, que fora ministro presidente da Baixa Saxónia, até 1998, tinha
uma visão menos europeísta, mais defensor dos interesses dos Estados
federados alemães (Länder), e concebia, por isso, a devolução de alguns
poderes aos Estados membros.
Para Schröder, a normalização da política externa alemã passava, assim,
pelo aumento da capacidade de projecção de poder da Alemanha no sis-
tema internacional. Isto ocorreu, por exemplo, na revitalização da relação
com a Rússia, com a qual Berlim tentou estabelecer uma relação bilateral
forte, por vezes à custa dos países da Europa de leste e fora do quadro
comunitário, e na aproximação à China, onde a Alemanha prosseguiu fortes
interesses económicos. Por último, aumentar o estatuto de poder passou
ainda por uma política activa de perseguir um lugar permanente para a
Alemanha no Conselho de Segurança da ONU, objectivo insistentemente
prosseguido, mas sem resultado.
Enquanto que para Kohl a estratégia preferida foi a estratégia da conti-
nuidade, aliada ao alargamento das instituições euro-atlânticas para o leste
europeu, Schröder alterou essa estratégia ao privilegiar a relação bilateral
com a França, e ao tornar a Alemanha mais assertiva na sua relação com
os EUA. O multilateralismo alemão manteve-se, mas pode falar-se de um
‘multilateralismo transformado’.
70

Angela Merkel e o pragmatismo na política externa alemã

Depois das divergências partidárias quanto à política para o Iraque entre


2002 e 2004, a política externa foi um tema relativamente consensual no
governo da Grande Coligação (CDU e SPD), liderado por Angela Merkel,
CDU, entre 2005 e 2009. Apesar da questão difícil do Afeganistão e do papel
da Bundeswehr na operação ISAF, da OTAN, não existiram controvérsias
semelhantes às de 2002, quando a possibilidade de uma guerra contra o
Iraque colocou os dois principais partidos em campos opostos e a contro-
vérsia desempenhou um papel chave no resultado eleitoral alemão.
O governo de Merkel afirmou, desde 2005, a indivisibilidade entre a
segurança europeia e a segurança atlântica. Era do interesse alemão que a
unificação europeia e a parceria atlântica não constituíssem pólos opostos,
mas funcionassem como os dois pilares mais importantes da diplomacia
alemã. Isto foi feito a partir de uma estratégia integrada, onde o multilate-
ralismo europeu e o transatlantismo bilateral da política externa alemã não
se anularam e onde a OTAN reafirmou-se como o instrumento central da
política de segurança e defesa alemã.
A nova Chanceler criticou a dominância do eixo franco-alemão na política
do anterior governo, e apesar de reconhecer a importância das relações bi-
laterais com Paris, Merkel voltou a ter em consideração a posição de outros
(pequenos) países. À semelhança de Kohl, também Merkel, considerava que
a vocação da Alemanha é a de mediadora no seio da União Europeia face
a potenciais divisões intra-europeias. Assim, não descurando os interesses
alemães, o discurso de Merkel foi um discurso pró-europeu e europeizante
que defendia uma Europa auto-confiante (ao passo que Schröder defendia
a auto-confiança da Alemanha). Foi durante a presidência alemã da UE, no
primeiro semestre de 2007, que o processo do Tratado de Lisboa foi desblo-
queado, levando à sua entrada em vigor, em Dezembro de 2009. Com este
tratado de reforma das estruturas institucionais, a Alemanha aumentou o seu
poder já que a tomada de decisões passou a ser feita através de uma dupla
maioria, composta pelos votos favoráveis de 50% dos estados membros e
71
65% da população dos estados membros, o que favorece a Alemanha, por
ser, com 83 milhões, o Estado mais populoso da UE.
Quanto ao alargamento da União Europeia, Merkel afirmou que a
União deve definir claramente quais as delimitações externas da mesma.
Considerando que é na prática impossível prosseguir paralelamente com
o alargamento a novos membros, por um lado, e com o aprofundamento
institucional, por outro, Merkel defende uma definição clara das fronteiras;
não há, na sua perspectiva, condições para que a UE num futuro próximo
aceite integrar novos países, à excepção dos estados dos Balcãs ocidentais.
Por outras palavras, a Alemanha sente o enlargement fatigue no que se
refere aos potenciais alargamentos da OTAN, como à Geórgia e à Ucrânia,
e da UE, por exemplo, à Turquia.
No relacionamento com a Rússia, o governo de Angela Merkel sublinhou
a parceria estratégia entre a Alemanha e a Rússia, em termos económicos e
na luta contra o terrorismo internacional, mas inseridos na lógica europeia
para fortalecer uma parceria efectiva entre a UE e a Rússia.
O segundo governo liderado por Angela Merkel, desde Outubro de 2009,
é um governo de coligação centro-direita entre a CDU e o Partido Liberal
(FDP), e o Ministro dos Negócios Estrangeiros é Guido Westerwelle, do FDP.
O programa do novo governo comprometeu-se com a continuidade na política
europeia e externa, orientadas simultaneamente por interesses e valores. Na
política europeia, o governo defende que as negociações de adesão à UE
com países candidatos devem ser realizadas sem resultado predeterminado.
Isto implica que as negociações de adesão com a Turquia serão ‘open en-
ded’, e volta-se a falar na ‘parceria privilegiada’ como alternativa em caso
de fracasso das negociações. Esta posição segue a linha tradicional da CDU,
que sempre se mostrou crítica quanto à possível integração da Turquia, en-
quanto que a FDP não se tinha mostrado contrária a uma possível adesão.
Quanto à guerra no Afeganistão, a coligação mantém a sua participação
militar, mas perante a hipótese de retirada gradual, defende que a segu-
rança afegã deve ser cada vez mais transferida para as forças de segurança
afegãs o que criará as condições para a saída da Bundeswehr. O novo go-
verno, à semelhança dos anteriores, defende um lugar permanente para a
Alemanha no Conselho de Segurança da ONU, e também não é contrário a
72
que a União Europeia porventura venha a obter um lugar permanente no
Conselho de Segurança.
Com a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, em 1 de Dezembro de
2009, encerrou-se o capítulo de reformas e aprofundamento institucional
da União Europeia que decorria há mais de uma década. A UE percorreu
uma viragem intergovernamental, e entrou aparentemente numa fase de
sobriedade pós-federalista. Muito por isso, a Alemanha, que decisivamente
moldou esta transformação, tornou-se menos progressista e mais conser-
vadora na prossecução dos seus interesses. A Chanceler Merkel é assim
europeísta, mas não federalista, pragmática, sem seguir apenas a política
europeia de Schröder ou de Kohl.
Contudo, a pretensão alemã de se afirmar como nova grande potência,
desde 1998, levantou sérias questões quanto à capacidade efectiva da Ale-
manha quanto aos meios necessários, materiais e financeiros para custear
tal transformação. O orçamento de defesa da Alemanha tem vindo a dimi-
nuir, e os gastos de defesa, entre 2006 e 2008, não ultrapassaram os 1.31%
do PIB. 6 Por outro lado, os custos da unificação alemã ainda contraem o
orçamento de Estado, e a recente crise financeira internacional, assim como
a crise do euro, de 2010, condicionam a atribuição de verbas consideráveis
à diplomacia alemã.

Conclusão

Durante a Guerra Fria, a Alemanha dividida foi um peão no tabuleiro


de relacionamento entre as duas superpotências. Passo a passo, a RFA tra-
çou uma política externa que lhe permitiu alargar o contexto de actuação.
Após a unificação, a política externa correspondeu à diplomacia de um

6 Military Balance 2010, p. 462. Os Estados Unidos, por exemplo, gastaram, no mes-
mo período, entre 4.53% e 4.88% do PIB.
actor crescentemente auto-confiante e assertivo, tanto nas suas relações
com membros da União Europeia como nas suas relações transatlânticas
com os Estados Unidos.
73
Ao contrário do que se passou na primeira metade do século XX e de
forma menos acentuada durante a Guerra Fria, uma Alemanha unificada
no centro da Europa já não é hoje vista como ameaça à estabilidade do
espaço euro-atlântico. Podem surgir novas questões, como a recente postura
do governo de coligação centro-direita de Angela Merkel face à crise do
euro e à situação destabilizante na Grécia, na Primavera de 2010, quando
a Chanceler não demonstrou a liderança necessária e estratégica que se es-
pera de uma potência central europeia. Mas a expressão ‘a Questão Alemã’,
conotada historicamente com uma postura de política externa agressiva e
destabilizadora já não caracteriza a política externa da Alemanha unificada.
Esta Alemanha não apenas rejeitou um incremento unilateral de poder como
prosseguiu o aprofundamento da integração europeia e o reforço das ins-
tituições ocidentais, e manteve ênfase na continuidade do multilateralismo
como melhor estratégia da política externa alemã até hoje.

Questões para análise


Contextualize a importância da memória histórica recente na definição da
política externa alemã.
Como é que a elite política alemã se adaptou às mudanças estruturais internas
e internacionais ocorridas após a unificação alemã?
Que estratégia seguiram os diferentes governos alemães na articulação da
posição da Alemanha na União Europeia e na Aliança Atlântica?

Fontes na Internet
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Homepage/home.html
Ministério dos Negócios Estrangeiros, http://www.auswaertiges-amt.de/
diplo/en/Startseite.html
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Deutsche Gesellschaft für Auswärtige Politik, http://en.dgap.org/
Frankfurter Allgemeine Zeitung, http://www.faz.net/

74

Leituras recomendadas
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Shaping the regional milieu. Manchester: Manchester University Press.
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Policy. New Haven and London: Yale University Press.
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Bibliografia

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(Página deixada propositadamente em branco)
Ana Santos Pinto

77

Capítulo 3

Arábia Saudita

A Arábia Saudita tem vindo a afirmar-se, nas últimas décadas, como


um dos actores mais activos da diplomacia do Médio Oriente. Fundador
da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), único país
árabe com representação no G-20 e membro respeitado da Liga Árabe, a
monarquia saudita tem marcado presença em diversos esforços de media-
ção e promoção da paz na região, procurando demonstrar ser um parceiro
credível da comunidade internacional. Porém, a natureza conservadora do
regime, sustentado no apoio de clérigos wahabitas, e a permanente ausência
de reformas políticas efectivas, aumentam a desconfiança face ao país de
origem de Osama Bin Laden e de quinze dos suicidas que perpetraram os
atentados terroristas de 11 de Setembro de 2001.
Analisando a acção do regime saudita, em particular a partir da segunda
metade do século XX , é possível identificar três pilares fundamentais, com
implicações na formulação da política externa: ser o guardião dos locais
mais sagrados do Islão (Meca e Medina); deter uma das maiores reservas
de petróleo do mundo; e contar com o apoio das sucessivas administrações
norte-americanas. Este texto procurará analisar as principais orientações da
política externa saudita à luz destes três pilares, numa dinâmica marcada
pela natureza particular do regime vigente na Arábia Saudita.
Tensão no regime: tradição versus modernidade

A Arábia Saudita assenta a sua narrativa de diferenciação face aos res-


78
tantes Estados muçulmanos no facto de ser o guardião das cidades santas
de Meca – local de nascimento de Maomé – e Medina – local onde o Pro-
feta veio a falecer e onde se recolheu após a Hégira. 1 Reconhecida como
o lugar de nascimento do Islão, o significado simbólico da Arábia Saudita
não pode ser subestimado, já que é não só o destino da Hajj (peregrinação
anual a Meca e um dos cinco pilares do Islão) como o local para onde se
orientam as orações diárias de todos os muçulmanos. Esta estreita ligação
às origens do Islão promove um ambiente cultural conservador, sustentado
numa interpretação estrita da Lei Islâmica (Sharia) (al-Rasheed 2002: 5).
É neste contexto que o regime saudita considera ter deveres islâmicos
acrescidos e que, como tal, deve adaptar as necessidades de reforma, im-
postas pela modernidade, aos princípios religiosos mais conservadores. A
este facto não é alheia a importante influência wahabita na formação do
Estado e do regime na Arábia Saudita.
A origem do Estado saudita remonta a 1750, quando um líder local,
Muhammad Bin Saud, uniu forças com um reformador islâmico, Muhammad
Abd al-Wahhab, para a criação de uma nova entidade política. Abd al-Wahhab,
fundador da doutrina wahabita, defendia uma interpretação particularmente
puritana no Islão sunita que, adaptada à contemporaneidade, consiste na
tentativa de purificação do Islão face a quaisquer inovações ou práticas que
o desviam das interpretações do Profeta e dos seus companheiros (Commins,
2006). Ou seja, baseia-se nos princípios do Islão afirmados no séc. VII, rejei-
tando subsequentes acréscimos de crenças e costumes. Desde então, a família
Saud mantém uma aliança com os wahabitas, com o objectivo de conservar
um Estado dirigido de acordo com os princípios do Islão (Yamani, 2008).
Porém, a concretização do Estado saudita só surge já no século XX. Após
o período de domínio Otomano no Médio Oriente, o mentor e fundador da

1 Hégira consiste no processo de migração de Maomé e dos seus seguidores de Meca para
Medina, em 622 d. C, onde se constitui como a primeira cidade regida de acordo com os princípios
definidos pelo Profeta. A Hégira é um acontecimento central na história do Islão, cuja importância se
reflecte na sua consagração como a base do calendário religioso.
Arábia Saudita, Abdul Aziz Al Saud (conhecido por Ibn Saud), aproveita o
vazio de poder na Península Arábica e promove a unificação das diversas
províncias através da conquista de territórios. Rapidamente, e apoiado numa
79
coligação de tribos liderada pela família Saud, foram conquistados quatro
quintos da Península Arábica, tendo o novo Estado sido proclamado, pri-
meiro em 1926 – enquanto Reino de Hijaz – e, mais tarde, já como Reino
da Arábia Saudita, em 1932.
Neste sentido, a manutenção do Estado saudita depende, também, de
acordos ad hoc com líderes tribais, que mantêm a sua importância na
estrutura da comunidade nacional (Commins 2006: 104). Isto, porque a
Arábia Saudita assenta numa sociedade de estrutura tribal, que deriva da
existência de diversas regiões com diferentes histórias de relação com
o exterior. No interior do território mantêm-se fortes tradições tribais
e uma interpretação mais estrita do Islão, enquanto nas zonas litorais
e maiores aglomerados urbanos existe um crescente cosmopolitismo e
uma maior diversidade social, económica e política da população (al-
Rasheed 2002: 6).
Por estes motivos, a Arábia Saudita vive uma tensão entre duas perspec-
tivas face à natureza e organização da sua sociedade: por um lado, uma
perspectiva conservadora, que defende a existência de um país culturalmente
uniforme, sustentado no wahabismo sunita e nos valores tribais da região
de Najd (local de origem da família real Saud), e que, como tal, promove
uma estratégia de homogeneização da comunidade nacional; por outro, uma
perspectiva progressista, que reconhece a existência de uma comunidade
diversificada – resultado de um país composto por diversas regiões, tribos e
seitas –, e que, por isso, exige uma estratégia pluralista assente em reformas
inclusivas. Ambas as estratégias reflectem-se em cisões no seio da família
real saudita, bem como das elites nacionais e mesmo na classe religiosa, e
na definição de diferentes posicionamentos face às expectativas e exigên-
cias de reformas internas, designadamente as tentativas de alargamento da
representação política.
No seio da família real, que conta com mais de 22 mil membros, existe
uma luta interna entre aqueles que são mais abertos à promoção de reformas
económicas, políticas e sociais, e aqueles que defendem a manutenção do
status quo. 2 O actual monarca da Arábia Saudita, Rei Abdullah bin Abdu-
laziz, é considerado um pluralista moderado, procurando acomodar, com
cautela, as exigências populares, e tendo já promovido um conjunto de
80
reformas que conduziram, por exemplo, à realização de Diálogos Nacionais
– que envolvem a participação de sunitas e xiitas, homens e mulheres –,
bem como das primeiras eleições municipais, em 2005 (único acto eleitoral
realizado no país até à data). Por seu lado, e em particular desde 2001,
as elites sauditas têm procurado formar um lobby no sentido da concreti-
zação de reformas internas, que incluem a consagração de direitos civis e
políticos, promoção da igualdade de género, responsabilidade governativa,
promoção de medidas anti-corrupção, distribuição equitativa dos recursos
do Estado, promoção de um poder judicial independente e regulação do
poder da estrutura wahabita. Em resposta a estas exigências, a monarquia
saudita tem procurado promover um conjunto de reformas políticas no sen-
tido de responder, por um lado, às pressões internas das elites no sentido
da modernização e, por outro, às pressões internacionais de aproximação
aos princípios de organização dos Estados democráticos. Porém, encontra
obstáculos nos princípios conservadores patentes na sociedade.
Os clérigos wahabitas procuram pressionar o regime para manter os seus
privilégios e a pureza dos princípios islâmicos vigentes na Arábia Saudita.
Ao contrário do que aconteceu com o império Otomano ou com o Egipto,
por exemplo, onde a moderação do Estado resultou na marginalização dos
ulemas, a profunda ligação histórica entre a família Saud e o wahabismo
significa que a componente religiosa do Reino não poderia ser marginalizada.
Assim, os clérigos wahabitas usam o seu controlo sobre a Lei, influenciam
a educação e afirmam uma legitimidade moral para influenciar a população
contra a modernidade ocidental. O wahabismo infiltrou-se, assim, no Estado
e na Administração Pública, utilizando-os para difundir a sua mensagem
(Commins 2006: 105). Os clérigos wahabitas controlam o poder judicial –
todos os Juízes do Reino são nomeados pelos ulemas –, defendem a ma-

2 Recorde-se que o Rei Faisal (1904-1975) foi assassinado por um sobrinho, por ser conside-
rado progressista, já que tinha desenvolvido, entre 1965 e 1975, uma tentativa de alargamento da
representação política, incluindo, no Governo, representantes de diversas tribos e grupos religiosos.
(Yamani, 2008)
nutenção de uma interpretação estrita do Corão e a aplicação da Sharia de
acordo com uma interpretação exclusivamente wahabita. Para além disso,
controlam importantes estruturas e políticas do Estado, como o Ministério
81
dos Assuntos Islâmicos e das Finanças, 3 a definição da política religiosa
(mutaw’a) e educativa, bem como controlam os órgãos de comunicação
social e as Forças Armadas.
A estrutura institucional do Estado saudita assenta numa mistura entre
tradições locais e modelos ocidentais, resultado da influência, mas não
controlo directo, dos impérios ocidentais. Assim, Arábia Saudita é uma mo-
narquia absoluta, onde o Rei é, simultaneamente, Chefe de Estado, Chefe
de Governo, Guardião das Duas Mesquitas Sagradas do Islão e Comandante
Supremo das Forças Armadas, sendo coadjuvado nas suas funções pelo
Príncipe herdeiro, segundo na sucessão ao trono. Os poderes do Rei são
limitados pela Sharia, não tendo o monarca competência para promulgar
leis (apenas emite decretos reais, de acordo com a Lei islâmica), e não
existindo separação entre a Igreja e o Estado. Neste sentido, o Corão e a
Sunna4 compõem a Constituição do Estado, existindo ainda um conjunto de
Leis Básicas de Governo, em vigor desde 1993. O poder executivo centra-se
no Conselho de Ministros, composto actualmente por 22 ministérios. O Rei
é, ainda, aconselhado por um Conselho Consultivo (Majlis Al-Shura), com-
posto por 120 membros com um mandato de quatro anos, cuja composição
é aprovada pelo Rei, não existindo partidos políticos ou eleições nacionais.
De acordo com as tradições sauditas, de natureza tribal, as decisões do
Rei (obrigatoriamente membro da família Saud) devem obter o consenso
da família real, dos líderes religiosos e de outros elementos de destaque da
sociedade saudita. Neste sentido, as decisões em matéria de política externa
seguem um princípio de consulta alargada, sendo o responsável pelo Mi-
nistério dos Negócios Estrangeiros um dos membros da família real saudita.

3 A componente de recolha de impostos tem, também, uma dimensão religiosa já que o Islão
define a existência do Zakat (um dos pilares do Islão), um imposto obrigatório, que exige a todos os
muçulmanos 2,5% do seu rendimento. Uma das categorias de beneficiários do Zakat são os muçul-
manos que lutam pela causa do Profeta, podendo incluir, ainda, a construção de mesquitas, hospitais,
escolas, investimentos em obras de divulgação do Islão ou a defesa da comunidade muçulmana de
agressões externas. (Cf. Esposito, 2003)
4 Síntese dos costumes e práticas do Islão, conforme a vida do Profeta Maomé.
A diplomacia dos ‘petrodólares’

A Arábia Saudita dispõe, na actualidade, de uma das maiores reservas


82
de petróleo do mundo. Com a descoberta das jazidas, em 1930, deu-se uma
rápida inserção da monarquia saudita na economia mundial, bem como um
acelerado desenvolvimento económico e urbano, com a consequente seden-
tarização de uma população tradicionalmente nómada. Os elevados preços
do petróleo, na última década, têm contribuído para que a Arábia Saudita
disponha de importantes recursos financeiros e de uma economia forte,
porém excessivamente dependente da produção e exportação petrolífera.
Surge, então, um Estado de aparência liberal – tendo em conta que a mo-
dernização da economia e promoção do sector privado estão dependentes
dos interesses da família real, detentora da empresa nacional petrolífera
–, mas conservador face à devoção ao Islão wahabita, por convicção ou
conveniência política dos seus líderes.
A expansão da doutrina wahabita constitui uma das prioridades de
política externa da monarquia saudita, estando dependente dos recursos
financeiros oriundos do petróleo (os designados ‘petrodólares’). Por um
lado, porque é através dos recursos do Estado que se mantém a estrutura
clerical wahabita (o Estado controla todas as Mesquitas), bem como a sua
influência nas mais diversas áreas da sociedade. Desta forma, a monarquia
apoia os ulemas wahabitas na expansão da sua doutrina e, em troca, recebe
o apoio da estrutura clerical às suas decisões políticas. Por outro lado, ao
nível externo, porque a exportação da doutrina é feita, igualmente, através
do recurso a financiamentos estatais. Em diversas áreas regionais onde o
desenvolvimento económico é mais reduzido (como os Estados da Ásia Cen-
tral, Balcãs ou antigas repúblicas soviéticas), grupos radicais que professam
o wahabismo, financiados pela Arábia Saudita, estabelecem organizações de
caridade – criando mesquitas, escolas, orfanatos e hospitais – e promovem
redes de crédito à população. Através da criação destas estruturas, estas or-
ganizações e os seus financiadores granjeiam o apoio das populações locais,
em troca da adesão à doutrina wahabita. Desta forma, a própria monarquia
saudita adquire capacidade de influência nas mais variadas áreas regionais
(Takeyhab & Gvosdevc, 2002: 100-103).
Já ao nível do Golfo Pérsico, uma das prioridades nacionais sauditas
centra-se na definição de fronteiras – resultado da estrutura social tribal e de
se tratar de uma área maioritariamente desértica – e no acesso aos recursos
83
petrolíferos. Aquando da criação do Estado, na década de 1920, foi assinado
um conjunto de Tratados entre a família Saud e os países vizinhos, com
vista à definição de fronteiras e a criação de zonas neutras, face à partilha
de recursos petrolíferos. Contudo, esta é uma questão que se mantém até
à actualidade, em particular com o Sultanato de Oman. Ainda no período
entre Guerras, em 1934, a monarquia saudita desencadeou um conflito com o
único Estado independente à data, o Iémen, com o qual assinou um Tratado
de Paz, em 1935, consagrando a vitória saudita e a incorporação no Reino
de três províncias – Asir, Jizan e Najran –, até então consideradas parte
do Iémen. Porém, esta questão ficou longe de estar resolvida e lançou as
bases para um conflito entre a Arábia Saudita e o Iémen, que durou várias
décadas. Só em Junho de 2000, numa Cimeira entre o Rei Abdullah e o
Presidente al-Abdullah Salih, foi definido um acordo fronteiriço permanente.
Ainda ao nível regional, em 1960, eclodiu um conflito no Iémen que,
para além da dimensão interna, opôs dois dos principais actores do Médio
Oriente: a Arábia Saudita (apoiante do grupo monárquico iemenita) e o
Egipto (em apoio aos republicanos). Este foi, apenas, um dos palcos da
competição pela liderança regional entre sauditas e egípcios, que se alargou
a vários fóruns, designadamente à Liga Árabe, onde a Arábia Saudita levou
vantagem devido aos recursos financeiros provenientes do petróleo – dis-
pondo, por isso, de capacidade de financiamento a diversas iniciativas – e
à expulsão do Egipto, em 1979, após a assinatura do tratado de paz com
Israel (al-Rasheed, 2002: 112-134).
Foi, precisamente, por dispor de uma capacidade financeira superior
a outros Estados da região, que a Arábia Saudita se afirmou, ao longo da
segunda metade do século XX , como um importante financiador do mundo
árabe e muçulmano, designadamente através do apoio à Jordânia, Síria e
grupos palestinianos. No quadro da Guerra Fria, e durante a década de 1980,
a monarquia saudita apoiou a resistência afegã contra a ocupação soviética,
tal como os Estados Unidos e o Paquistão. Este apoio concretizava-se através
da disponibilização de recursos financeiros, em particular a grupos pastun,
que demonstravam uma tendência pró-wahabita. Após a retirada soviética,
esta tendência terá desvanecido, o que originou uma menor capacidade
de influência saudita (Yamani, 2008). Porém, tal não impediu a monarquia
84
de Riade de ser um dos poucos Estados do mundo a reconhecer, diplo-
maticamente o regime Taliban, no Afeganistão, dado que ambos defendem
uma interpretação estrita do Islão. Um dos principais apoiantes do regime
Taliban, Osama Bin Laden, é membro de uma importante família saudita,
mas nem por isso um apoiante da monarquia Saud. Apesar de defender
uma interpretação igualmente puritana do Islão, Bin Laden considera que a
monarquia saudita é uma ‘marioneta’ do Ocidente, em particular dos Estados
Unidos da América, e que por isso deverá ser deposta e substituída por um
regime que garanta a pureza dos princípios islâmicos.
Enquanto Guardiã das Duas Mesquitas, locais sagrados do Islão, a Arábia
Saudita declara-se como detentora de uma legitimidade de representação
dos milhões de muçulmanos, em particular em matérias religiosas. Por isso,
afirma como prioridade de política externa a promoção do Diálogo Inter-
-religioso, defendido pelo Rei Abdullah em 2008, e concretizado através da
promoção de uma conferência em Meca, em Junho desse ano, e de uma
outra em Madrid, no mês seguinte. Estas iniciativas, que tinham sido ante-
cedidas por uma visita histórica, em 2007, ao Vaticano, granjearam o apoio
de diversos líderes religiosos e políticos, tendo resultado na organização de
uma Cimeira dedicada à «Cultura da Paz», promovida no quadro da Organi-
zação das Nações Unidas e patrocinada pela Arábia Saudita, e que contou
com a participação, entre outros, do Presidente israelita Shimon Peres e do
Presidente norte-americano, George W. Bush.
A existência de recursos financeiros decorrentes da exploração e pro-
dução de petróleo têm garantido à Arábia Saudita a inserção no sistema
internacional. Não só através da presença em diversas áreas regionais, mas
também pela participação em vários fóruns internacionais, como o G-20, a
Organização Mundial do Comércio (OMC) ou o Conselho para a Cooperação
no Golfo, do qual é fundador, e que consiste numa organização composta
por seis Estados do Golfo Pérsico dedicada à promoção da cooperação eco-
nómica regional e do desenvolvimento social pacífico. O objectivo saudita,
definido desde a década de 1970, era mover-se da margem para o centro
da política árabe e mundial, assumindo-se como um actor de relevo do
Médio Oriente, para o que contou com o apoio das sucessivas administra-
ções norte-americanas.
85

Continuidades e mudanças: a aliança com os Estados Unidos

A relação de proximidade entre a Arábia Saudita e os Estados Unidos


da América constitui um pilar fundamental do regime e da política ex-
terna saudita. Ao nível interno, porque só o respaldo americano tornou
possível ao regime sobreviver às pressões internacionais de aproximação
aos parâmetros ocidentais de democratização e laicização do Estado. Ao
nível externo, porque a Arábia Saudita foi o parceiro americano no Médio
Oriente, na segunda metade do século XX , não só ao nível económico e
político – através do apoio a intervenções americanas na região, como a
Guerra do Golfo de 1991 –, mas também militar, através da presença de
bases americanas em território saudita.
A década de 1980, e o contexto bipolar, demonstraram a importância da
Arábia Saudita para os interesses americanos na região, face ao expansionismo
soviético no Golfo Pérsico e no Oceano Índico. A sua localização estraté-
gica (com a proximidade ao Iraque, Irão e Israel) bem como a garantia de
acesso a recursos energéticos fundamentais, determinaram a parceria entre
sauditas e norte-americanos. Uma estratégia de cooperação, em matéria de
segurança entre a Arábia Saudita e os Estados Unidos era, por isso, vista
por ambos como uma necessidade. Porém, esta relação demonstrava ser
problemática já que expunha a tensão entre a visão islâmica do mundo,
defendida pelo regime saudita, e a necessidade de apoio por parte de um
parceiro ocidental, como os Estados Unidos, para fazer face aos desafios
à segurança regional (Niblock, 2006: 85-87). A Guerra do Golfo, de 1991,
é disso exemplo, constituindo um importante momento de viragem nas
relações diplomáticas na região.
Perante a ameaça expansionista de Saddam Hussein, plasmada na inva-
são ao território do Kuwait, a Arábia Saudita solicitou auxílio aos Estados
Unidos e à Comunidade Internacional para que, através de uma força in-
ternacional, garantissem a segurança das fronteiras sauditas. Esta decisão
conheceu, contudo, a oposição do Iémen (tradicional rival saudita no Golfo
Pérsico), da Jordânia e da OLP (apoiantes do regime iraquiano). O então
86
monarca saudita, Fahad bin Abdul Aziz Al Saud (1921-2005), destacou-se
enquanto uma das principais vozes de mediação do conflito, orientando o
tom da Comunidade Internacional para um esforço multilateral no sentido
de restaurar a integridade territorial e soberana do Kuwait. Assumiu o papel
de porta-voz da coligação internacional e utilizou a sua influência enquanto
Guardião das Duas Mesquitas Sagradas do Islão para persuadir as nações
árabes e muçulmanas a juntarem-se à coligação (al-Rasheed, 2002).
Existem, contudo, elementos na Guerra do Golfo de 1991 que vale a pena
destacar. Em primeiro lugar, a reacção internacional. Os Estados Unidos da
América reagiram, de forma rápida, à invasão por parte do Iraque – deten-
tor da segunda maior reserva de petróleo mundial – a um território que
lhe permitia alcançar uma posição reforçada no fornecimento energético
mundial (já que as reservas petrolíferas do Kuwait equivaliam a cerca de
10% das reservas mundiais). Isto, porque os Estados Unidos importavam
cerca de 50% das suas necessidades energéticas e não seria aceitável fica-
rem dependentes da disponibilidade de negociação do regime iraquiano.
Em segundo lugar, a reacção regional. Pela primeira vez desde a criação
da Liga Árabe, em 1945, regimes conservadores, como as monarquias do
Golfo, assumiram uma causa comum com Estados mais radicais, como a
Síria e a Líbia. A Jordânia, influenciada pelo apoio popular interno a Saddam
Hussein, recusou-se a juntar-se à coligação internacional e opôs-se ao en-
volvimento americano e ocidental, apelando a uma solução exclusivamente
árabe para o conflito. Esta tensão foi, aliás, objecto de duas reuniões de
emergência da Liga Árabe, que resultaram na aprovação do envio de uma
força de dissuasão para a Arábia Saudita, com o apoio de forças militares
internacionais, primariamente americanas, com o objectivo de defender o
território de um eventual ataque iraquiano (Milton-Eduards & Hinchcliffe,
2004, 95-105). Finalmente, a reacção interna na Arábia Saudita. Os principais
círculos da família real Saud estavam, aparentemente, divididos quanto à
melhor acção a tomar: uns defendiam que seriam necessárias tropas ame-
ricanas para defender o Reino; outros, como o Príncipe Abdullah (actual
monarca), defendiam uma tentativa inicial de acordo negociado, no quadro
da Liga Árabe. Esta segunda opção reflectia a preocupação face ao impacto
da presença de forças militares americanas em solo saudita, quer na opinião
87
pública saudita quer no mundo islâmico (Niblock, 2006: 87).
Como consequência da crise do Golfo, em 1991, o governo saudita de-
cidiu convidar as forças americanas a instalarem-se na Arábia Saudita (cuja
retirada só se verificou em 2003) e a reforçar os seus laços de cooperação
militar, designadamente através da realização de exercícios conjuntos e
aquisição de equipamentos. Esta decisão constituiu um ponto de ruptura
nas relações entre a monarquia saudita e os militantes radicais, liderados
por Osama Bin Laden, nos quais os serviços de intelligence e príncipes
sauditas se tinham apoiado durante a década de 1980. Este foi, sem dúvida
um ponto de viragem importante e que sustentou, uma década mais tarde,
a retórica em torno dos atentados terroristas de 11 de Setembro de 2001
(Halliday, 2005: 151).
O conflito do Golfo gerou tensões sociais e políticas na Arábia Saudita.
Os dissidentes, entre os quais alguns ulemas, começaram a questionar a
liderança da família Saud e, em particular, as suas relações com o Ocidente.
O governo saudita respondeu dando um ênfase renovado ao processo de
reformas políticas económicas. Porém, estas iniciativas não se reflectiram
em resultados visíveis para a população, mas a liderança saudita permanecia
como um parceiro credível aos interesses americanos. O Príncipe Abdullah,
então regente, sempre foi considerado, pelas sucessivas administrações
norte-americanas, como um líder moderado da região, a par do Presidente
egípcio, Hosni Mubarak, e do Rei Abdullah da Jordânia. Para os Estados
Unidos, estes líderes representam o Médio Oriente (Yamani, 2008)
Contudo, a participação de cidadãos sauditas nos atentados terroristas de
2001 prejudicou, em grande medida, a relação entre a Arábia Saudita e os
Estados Unidos da América. Ao mesmo tempo, crescia a oposição interna
no regime à amizade com o Ocidente, e em particular com os americanos,
como resultado da segunda Intifada palestiniana e da crescente retórica do
extremismo islâmico na sociedade saudita. No plano da implementação de
reformas internas, o regime saudita também não correspondia às expectati-
vas norte-americanas, tendo respondido criticamente à iniciativa política do
Grande Médio Oriente, que visava a democratização dos diversos regimes
desta área regional. Os processos de reforma interna, na Arábia Saudita,
tardavam em demonstrar resultados e a população permanecia distante das
88
liberdades democráticas que os Estados Unidos consideravam ser o pilar
de um Médio Oriente estável e próspero.
No plano económico, a monarquia saudita mostrava relutância em abrir
a sua economia ao investimento americano. Por seu lado, os Estados Unidos
concluíram acordos de livre-comércio com outros membros do Conselho
para a Cooperação no Golfo, o que foi encarado internamente como uma
tentativa de prejudicar a política económica saudita (Niblock, 2006: 167). A
par de todas estas questões surgia o debate na sociedade norte-americana
sobre o empenho saudita na luta contra o terrorismo. O Congresso dos
Estados Unidos aprovou o Saudi Arabia Accountability Act, em 2003, que
requeria ao Presidente americano que se certificasse que a Arábia Saudita
estava a desenvolver os máximos esforços para combater o terrorismo. Esta
iniciativa não foi, mais uma vez, bem acolhida pelo regime saudita, que tinha
desenvolvido um programa de reabilitação de terroristas na prisão, através
da re-educação religiosa e aconselhamento psicológico, que considerava
ser de grande sucesso (Yamani, 2008).
Em 2003, os Estados Unidos e um conjunto de aliados decidem desen-
cadear uma intervenção militar no Iraque, com o objectivo de depor o
regime de Saddam Hussein. Porém, desta vez não contaram com o apoio
saudita. Após o fim da intervenção militar, a relação dos Estados Unidos
com a Arábia Saudita foi sujeita a novas pressões: a monarquia do Golfo
foi acusada de não combater e limitar o fluxo de jovens sauditas que par-
ticipavam nas acções insurgentes no Iraque. No mesmo ano, verificou-se
uma alteração das forças americanas no Golfo Pérsico, tendo sido retiradas
as bases militares do território saudita. Esta mudança resultou, por um
lado, da preocupação do regime face à oposição islamista e às questões de
soberania (Cordesman, 2003: 35) e, por outro, de uma renitência americana
em entender a ênfase saudita em mecanismos de cooperação informal e
actividades low-profile, em vez de acordos formais e de alto nível. Para
o regime, a estabilidade interna e externa da Arábia Saudita dependia da
manutenção de uma cooperação estratégica, tão discreta quanto possível,
o que não coincidia com a vontade americana de firmar acordos públicos
e formais.
Apesar das mudanças e continuidades, a Arábia Saudita mantém-se como
89
parceiro privilegiado dos Estados Unidos no Médio Oriente, como demons-
tra, aliás, a escolha do Presidente Barack Obama por uma televisão satélite
saudita (al-Arabyiya) para realizar a sua primeira grande entrevista sobre
o mundo árabe e muçulmano. 5 A relação entre ambos tenderá a manter-se
enquanto os Estados Unidos considerarem que os seus interesses nacionais
e de segurança estarão melhor salvaguardados pela monarquia saudita do
que por um regime democrático naquele país. Porém, verificou-se uma
nova mudança na estratégia americana: da promoção da democracia e da
guerra contra o terrorismo, passou-se para a tradicional ênfase no apoio
aos regimes moderados e na promoção da estabilidade. O que significa que
a Arábia Saudita poderá reemergir como representante do mundo islâmico
perante a administração americana. E, uma vez mais, a utilização de Meca
como instrumento de política externa reforça este estatuto (Yamani, 2008).

Principais desafios regionais

A primeira década do século XXI trouxe um conjunto de novos desafios,


ao nível da política externa e de segurança, à Arábia Saudita. Por um lado,
o regime de Riade tornou-se um alvo das redes terroristas, sustentadas pelo
fundamentalismo islâmico. Tal pode resultar, em primeiro lugar, do regres-
so à Arábia Saudita de combatentes que estiveram no Afeganistão e que
agora se baseiam numa nova dinâmica de radicalismo islâmico decorrente
do conflito no Iraque. Em segundo lugar, existem novas características do
terrorismo internacional: grupos radicais islâmicos que, antes, operavam
de forma independente na arena internacional, agem agora sob o grande
‘chapéu’ da al-Qaida, mesmo que através de acções espontâneas, o que

5 Cf. «TRANSCRIPT of Obama’s interview with Al Arabiya», 27 de Janeiro de 2009. [http://www.


alarabiya.net/articles/2009/01/27/65096.html].
condiciona, em grande medida, o combate e a limitação da acção por parte
das estruturas estatais.
Por outro lado, a Arábia Saudita pretende-se afirmar enquanto actor cen-
90
tral no Médio Oriente face a três importantes questões regionais: o processo
de paz israelo-palestiniano; a estabilização no Iraque e a ascensão do Irão
enquanto actor regional, com potencial capacidade nuclear.
Ao longo das cerca de cinco décadas de história do conflito israelo-pa-
lestiniano, a Arábia Saudita esteve presente enquanto promotor de relações
diplomáticas, seja no seio do mundo árabe seja face ao exterior: perante
a eclosão do conflito e, mais tarde, face à Guerra dos Seis Dias, em 1967,
declarou neutralidade; em 1973, face à Guerra de Yom Kipur, decidiu não
participar militarmente, apesar de ter aderido ao boicote ao fornecimento
de petróleo aos países ocidentais; e, mais tarde, durante as iniciativas de
paz desenvolvidas na década de 1980, designadamente o Plano da Liga
Árabe de 1982 (Plano de Fez), foram utilizadas as propostas do Rei Fahad
que originariam, mais tarde, o principio «terra por paz», que sustenta uma
parte importante das negociações até ao presente. Mais recentemente, em
Março de 2002, o Príncipe Abdallah submeteu à Liga Árabe um plano de
paz – conhecido como Plano de Paz Árabe 6 – que, ao contrário de do-
cumentos anteriores, visava um acordo segundo o qual todos os Estados
regularizariam as suas relações com Israel. Desta forma, o compromisso
não seria, apenas, o reconhecimento da soberania do Estado de Israel e
a manutenção da paz, mas todo um conjunto de relações de cooperação
económica, cultural e política entre Estados. Em troca, Israel teria de retirar
dos territórios ocupados em 1967, tal como consta em todos os documentos
árabes anteriores, designadamente no Plano de Fez.
A questão palestiniana e o conflito israelo-árabe foram determinantes
para a definição das relações externas sauditas. A par da promoção de ini-
ciativas de paz no quadro do mundo árabe, em particular da Liga Árabe,
crescia na população saudita uma percepção de injustiça perante a questão
palestiniana, que influenciou o desenvolvimento das atitudes populares face

6 Cf. «Arab Peace Initiative 2002 – King Abdullah’s Peace Plan». Saudi-US Relations Information
Service. [http://www.saudi-us-relations.org/fact-book/documents/2006/060609-arab-peace-plan.html].
ao Ocidente (Niblock, 2006: 86). Da mesma forma, os desenvolvimentos do
processo de paz frustraram os policy-makers sauditas, em particular porque
cada momento de intensificação do conflito provocava um sentimento de
91
decepção face aos esforços desenvolvidos e promovia o apoio à retórica de
grupos extremistas. É neste contexto que surge Plano de Paz Árabe, que se
constitui como um instrumento diplomático com o objectivo de reconstruir a
posição externa da Arábia Saudita, pós-11 de Setembro de 2001, e reafirmar
a sua pretensão a ser o representante do mundo árabe, granjeando assim o
apreço dos Estados Unidos pela postura construtiva e reconciliadora face a
Israel (Niblock, 2006: 169). Porém, esta iniciativa surge na mesma altura do
Roteiro para a Paz – apresentado pelo Quarteto (composto pelos Estados
Unidos, Rússia, União Europeia e Nações Unidas) – o que resultou na sua
secundarização, não tendo sido feita justiça às potencialidades que o seu
contributo poderia representar para o processo de paz.
Finalmente, os dois principais desafios estratégicos que se colocam à
Arábia Saudita: Iraque e Irão.
Na década de 1980, a região do Golfo Pérsico ficou marcada pelo
conflito entre o Irão e o Iraque (1980-1988). Na época, a Arábia Saudita
apoiou o regime iraquiano, com base na premissa de que ambos cons-
tituíam uma ameaça ao Reino mas o Irão – xiita liderado pelo Ayatollah
Khomeini – constituía um perigo maior. Desde logo porque o regime
teocrático iraniano ambicionava a posição de representante do mundo
muçulmano e da pureza do Islão, tendo mesmo tentado assumir a função
de verdadeiro Guardião dos lugares sagrados de Meca e Medina. Após o
conflito, o regime de Saddam Hussein deparou-se com importantes difi-
culdades financeiras, tendo contado com o apoio de diversos Estados do
Golfo, entre os quais a Arábia Saudita.
Hoje, a monarquia saudita encontra-se perante um desafio semelhante:
tanto o Iraque como o Irão constituem ameaças ao Reino, mas o Irão pode-
rá constituir um perigo maior. No que diz respeito ao Iraque, a deposição
do regime de Saddam Hussein e a permanente desestabilização do país
resultam numa instabilidade que tem, naturalmente, consequências para o
Reino. Desde logo, ao nível da segurança, existe uma maior mobilidade nos
grupos extremistas que encontram na Arábia Saudita, enquanto tradicional
parceiro dos Estados Unidos, um alvo privilegiado. Como tal, o regime de
Riade poderá fortalecer os mecanismos de segurança interna, o que poderá
representar um atraso significativo nos processos de reforma iniciados na
92
década de 1990.
No que concerne ao Irão, este poderá representar o maior desafio ex-
terno à Arábia Saudita, não só por se pretender afirmar como Guardião da
causa muçulmana, mas pelo risco que representa a promoção do designado
‘arco xiita’ no Médio Oriente. Esta designação decorre do facto de os xii-
tas – principais inimigos dos wahabitas no seio do Islão – constituírem a
maioria dos crentes muçulmanos no Irão, Iraque e Líbano. Por outro lado,
a comunidade xiita da Arábia Saudita, minoritária, reside em áreas de ex-
ploração petrolífera, o que poderá representar um desafio estratégico para
as autoridades sauditas. Acresce que a situação política no Afeganistão,
tal como no Iraque, no Líbano e nos territórios palestinianos, é propícia à
intervenção iraniana.
É neste contexto que a partir de 2007, a Arábia Saudita tem desenvolvido
uma acção diplomática particularmente activa: promoveu a formação de um
Governo de unidade nacional da Autoridade Palestiniana e uma Cimeira para
reactivação do processo de paz, procurando, por um lado, apresentar-se
como parceiro credível no processo de negociação e, por outro, contribuir
para a diminuição da influência iraniana face aos grupos palestinianos; e
desencadeou uma acção diplomática dirigida ao Irão, através do convite ao
Presidente Ahmadinejad para visitar Riade, bem como para o acompanhar
na peregrinação anual a Meca, tal como exigido a todos os muçulmanos
em condições de o realizarem. Esta dupla iniciativa face ao regime iraniano
pretendeu demonstrar a importância que a Arábia Saudita atribui às relações
com aquele país, possivelmente não como estratégia de aproximação, mas
sim como um «estender de braços» a um vizinho perigoso.
No que concerne ao desenvolvimento de um programa nuclear pelo Irão,
a preocupação saudita é evidente: por um lado, porque um dos principais
rivais do regime saudita, e da doutrina wahabita, poderá adquirir capacidade
nuclear; por outro, porque tal significaria o desencadear de um processo de
proliferação nuclear em todo o Médio Oriente, algo a que a Arábia Saudita
sempre se opôs.
Considerações finais

A Arábia Saudita confronta-se, no final da primeira década do século


93
XXI , com importantes desafios que poderão influenciar a sua imagem
externa, a médio prazo. No plano interno, a manutenção do regime, por
um lado com base na legitimidade religiosa e, por outro, nos recursos
petrolíferos, levanta importantes questões de sustentabilidade. No plano
religioso, o regime saudita procurará continuar a resistir às pressões de
reforma – internas e externas – e às exigências de aproximação aos pa-
râmetros democráticos e de laicização do Estado. No plano dos recursos
petrolíferos, as variações do preço do petróleo poderão influenciar o nível
de intervenção externa do regime, desde logo porque a maioria das ac-
ções externas sauditas tem como base os ‘petrodólares’. Para além disso,
e ainda o nível económico, a Arábia Saudita encontra-se perante o desafio
de regeneração e reactivação do sector privado nacional, em áreas não
ligadas ao petróleo, visando a diversificação do sector económico. Esta
dimensão poderá abrir novas oportunidades de cooperação internacional,
não só ao nível regional mas também internacional. Finalmente, ao nível
social, a educação e o desenvolvimento dos recursos humanos constituem
uma importante prioridade para o Reino, onde dois terços da população
têm menos de 30 anos.
Já no que concerne aos principais desafios à política externa do regime
saudita, mantêm-se as linhas definidas nas últimas décadas: a manutenção de
uma aliança privilegiada com os Estados Unidos; a promoção do processo
de paz israelo-palestiniano; a estabilização do Iraque e a contenção do Irão.
As ambições da monarquia saudita também se mantêm: constituir-se como
o representante legítimo do Islão, enquanto Guardião das Duas Mesquitas
Sagradas (Meca e Medina) e afirmar-se enquanto líder do mundo árabe
e muçulmano. Resta saber como é que as idiossincrasias do regime, bem
como o desenvolvimento do contexto regional e internacional, contribuirão
para este objectivo.
Questões para análise
De que forma a ideologia wahabita está presente nas acções externas
da Arábia Saudita?
94
Identifique as principais prioridades de política externa do regime saudita.
Analise a tensão entre os princípios tradicionais/conservadores e as pres-
sões de modernidade, à luz dos processos de reforma do regime e das
suas consequências para a imagem internacional da Arábia Saudita.

Fontes na Internet
Brookings Institution, http://www.brookings.edu/topics/saudi-arabia.aspx
Embaixada do Reino da Arábia Saudita em Washington, http://www.
saudiembassy.net/
Gulf Research Center, http://www.grc.ae/
Ministério dos Negócios Estrangeiros, http://www.mofa.gov.sa/

Leituras recomendadas
Al-Rasheed, M. (2002) A History of Saudi Arabia. Cambridge: Cambridge
University Press.
Halliday F. (2005) The Middle East in International Relations. Cambridge:
Cambridge University Press.
Lacey, R. (2010) Inside the Kingdom: Kings, Clerics, Modernists, Terror-
ists, and the Struggle for Saudi Arabia. Nova Iorque: Random House.
Niblock, T. (2006) Saudi Arabia: Power, Legitimacy and Survival. Oxford:
Routledge.

Bibliografia

Al-Rasheed, M. (2002) A history of Saudi Arabia. Cambridge: Cambridge University Press.


Commins, D. (2006) The Wahhabi Mission and Saudi Arabia. Londres: I. B. Tauris.
Cordesman, Anthony H. (2003) Saudi Arabia enters the 21st century. The military and interna-
tional security dimensions. Center for Strategic and International Studies (CSIS).
Esposito, J. (2003) The Oxford Dictionary of Islam. Oxford: Oxford University Press.
Halliday F. (2005) The Middle East in International Relations. Cambridge: Cambridge University
Press.
Karsh E. & Karsh I. (2003) Empires of the Sand. The struggle for mastery in the Middle East
(1789-1923). 3ª ed. Harvard: Harvard University Press.
95
Milton-Eduards B. & Hinchcliffle P. (2004) Conflicts in the Middle East since 1945. 2ª ed.
Oxford: Routledge.
Niblock, T. (2006) Saudi Arabia – Power, Legitimacy and Survival. Oxford:Routledge.
Takeyhab R. & Gvosdevc N. (2002) «Do terrorist networks need a home?», The Washington
Quarterly, 25(3), 97-108.
Yamani, M. (2008) «The Two Faces of Saudi Arabia», Survival, 50(1), 143–156.
(Página deixada propositadamente em branco)
Carmen Fonseca

97

Capítulo 4

Brasil

No Brasil, a transição para a democracia não marcou uma ruptura nas


principais linhas da política externa brasileira. Os princípios de políti-
ca externa são constantes e transversais à grande parte dos diferentes
momentos políticos, embora, por vezes, sejam instrumentalizados de
forma diferente. O próprio regime militar caracteriza-se por uma maior
oscilação de preferências, do que alguns períodos políticos (anteriores
e posteriores) e a própria democracia. Gradualmente, muitas das es-
tratégias adoptadas, inclusivamente durante os anos do regime militar,
foram recuperadas em momentos subsequentes. As principais alterações
registam-se, como iremos ver de seguida, no que é definido como prio-
ridade, e nas estratégias formuladas para a alcançar, que se ajustam em
função das conjunturas internas e externas e, naturalmente, por influência
dos próprios actores políticos.

A formulação e decisão da política externa: o Presidencialismo e autonomia


do Itamaraty

O sistema político e partidário do Brasil é bastante complexo não obstan-


te o seu enquadramento no perfil presidencialista. A Constituição de 1988
confere ao chefe do Executivo, o Presidente da República, amplos poderes
sobre a administração pública1 o que, por um lado define a forma como se
relaciona com o Congresso e, por outro, como lida com as forças políticas
dos vários estados federados. Deste modo, os estudos especializados têm
98
distinguido o presidencialismo brasileiro dos restantes, definindo-o como
«presidencialismo de coligação». Esta categorização justifica-se pelos múltiplos
arranjos de coligações partidárias necessárias para a obtenção de maiorias
no Congresso. Verifica-se por isso uma grande heterogeneidade ideológica
e fragmentação parlamentar, que atingiu com Lula a maior diversificação,
«Lula foi o presidente que mais partidos trouxe para o primeiro escalão do
governo federal, 9 (…). Trata-se do mais fragmentado ministério formado
na história do presidencialismo latino-americano» (Neto, 2007: 132).
Na verdade, as instituições políticas brasileiras concentram o poder no
Executivo. O papel do Chefe do Executivo é reforçado constitucionalmen-
te através da faculdade de editar medidas provisórias, 2 o que lhe permite
controlar e, consequentemente, enfraquecer o Poder Legislativo. No quadro
dos sistemas presidencialistas, no caso brasileiro «é natural que o poder
executivo seja o centro de gravidade do regime político» (Neto, 2007:
131), mas tal como acrescenta Octavio Amorim Neto, isso não é condição
necessária do sistema presidencial (por exemplo, nos Estados Unidos o
Congresso é o órgão mais relevante na condução dos assuntos internos). No
Brasil, «a centralidade do Poder Executivo deriva não apenas da estrutura
constitucional do país, mas também de fatores históricos e do padrão de
carreiras políticas» (Neto, 2007: 131), especialmente o tradicional papel do
Estado na economia e no desenvolvimento do país que contribuiu para o
fortalecimento do Executivo.
O que fica evidente é que, no sistema político brasileiro, o Poder
Executivo tem o direito de iniciativa legislativa, e, consequentemente, in-
fluencia directamente a agenda legislativa. Ao nível da política externa esta

1 Pode nomear e demitir livremente os ministros de Estado.


2 As medidas provisórias são decretos que têm força de lei a partir do momento em que são pu-
blicados no Diário Oficial. Até 2001 o Congresso tinha 30 dias para votá-la, se nada fizesse, a medida
expirava, o que acontecia na maioria dos casos. Em 1989 o Tribunal declarou que o Executivo po-
deria repetir o pedido, e assim fez. Em 2001, o prazo para apreciação pelo Congresso foi aumentado
para 60 dias e as medidas só podem ser apresentadas uma vez (ver Neto, 2007).
dinâmica é também uma prática comum. A intervenção do Congresso na
formulação da política externa é muito reduzida, porque a competência que
lhe é atribuída se cinge à ratificação de tratados e acordos internacionais
99
(Artº 49º da Constituição do Brasil). Neste sentido, é comum o debate em
torno da partilha do poder entre os órgãos Executivos e Legislativos, e o
dilema sobre a delegação ou a abdicação das funções pelo órgão Legisla-
tivo. Embora à partida seja evidente a centralidade do Executivo, existem
argumentos contraditórios. Maria Regina Soares de Lima e Fabiano Santos
(1998) consideram que

As posições do Presidente, como iniciador político, e as do Congresso,


meramente de ratificação ex-post, geram um cenário em que é extremamente
difícil para o legislador intermédio rejeitar as políticas negociadas pelo
Executivo em fóruns internacionais (Lima e Santos, 1998: 10)

e, por isso, verifica-se uma demissão do Congresso das suas funções le-
gisladoras em matéria de política externa. Lima (2000) argumenta ainda
que ao nível da política externa a delegação da autoridade de decidir é
necessária quer seja para se obterem «políticas mais voltadas aos interesses
da coletividade e não àqueles meramente eleitorais, seja em função do
conhecimento especializado» (Lima, 2000: 282) exigido pela política exter-
na «seja ainda para preservar as decisões em arenas internacionais» (Lima,
2000: 282). Por outro lado, Leany Lemos (2010) considera que não sendo
a ratificação dos Tratados o único indicador da autoridade do Congresso,
é insuficiente basear a argumentação apenas nesse elemento, sendo que
a ausência do Congresso no processo de formulação e decisão da política
externa não deve ser vista como uma abdicação, mas como uma delegação.
Em contrapartida, a autora reforça que o sistema brasileiro é tendencialmente
pró-executivo, pois «as prerrogativas constitucionais favorecem o presiden-
te e o poder executivo em qualquer assunto, mas especialmente naqueles
relacionados com os assuntos externos» (Lemos, 2010: 4). No mesmo senti-
do, João Augusto de Castro Neves (2003) também argumenta que o «poder
legislativo não é alheio ou desinteressado sobre questões internacionais»
(Neves, 2003: 106) e que só delega as suas responsabilidades quando existe
consenso sobre os assuntos em questão, 3 como foi no caso do debate da
criação do Mercosul. No estudo que desenvolveu o autor acrescenta que,
no Brasil «a ausência de um mecanismo claro de delegação de autoridade
100
é a principal causa da percepção de que o poder Legislativo está alheio às
questões internacionais» (Neves, 2003: 117), contrariamente ao que acontece
no sistema presidencialista norte-americano.
Assim, no quadro do poder Executivo, o processo de formulação e
decisão da política externa no Brasil era tradicionalmente associado, exclu-
sivamente ao Ministério das Relações Exteriores. O Itamaraty é tido como
a instituição de onde, desde os tempos do Barão do Rio Branco, e com
brechas efémeras, emanam as estratégias da política externa do Brasil. A
centralidade do Itamaraty no processo de formulação da política externa
resulta, em certa medida, da legitimidade que lhe fora atribuída, quer pelas
elites políticas, quer pela sociedade, tendo em conta a especialização e o
elevado grau de competência do corpo de diplomatas brasileiro. E, por
outro lado, os detentores de cargos políticos, ou os que os almejam, não
tendem a reconhecer qualquer impacto das medidas de política externa no
plano interno logo, não centram o discurso nos temas de política externa,
nem sequer suscitam o seu debate.
Todavia, quer devido ao processo de democratização do Brasil, quer
devido às transformações do sistema internacional, aceleradas com o fim
da Guerra Fria e a globalização, a partir da década de 1990, este processo
começou a ser partilhado com outros actores e, especialmente, com o Presi-
dente da República, através da diplomacia presidencial. Mas esta divisão de
tarefas «não é de todo uma tradição brasileira» (Cason & Power, 2009: 121),
o Itamaraty sempre se caracterizou pela autonomia e isolamento burocrático
na formulação da política externa, pelo elevado grau de profissionalização
da diplomacia, bem como pelo monopólio das responsabilidades políticas
(Cason & Power, 2009: 119-120). A autonomia do Itamaraty reflecte-se
também na ausência de cunhos ideológicos e partidários no seio do corpo

3 O autor analisa o caso das negociações do Mercosul referindo que o distanciamento do Par-
lamento das negociações foi devido ao consenso entre o Executivo e o Legislativo, já no caso da
ALCA não existindo posições semelhantes «aumenta a vontade dos parlamentares de institucionalizar
a participação nas negociações de política externa» (Neves, 2003: 107).
diplomático, 4 como refere Lima (2000) «a política externa é assunto de Es-
tado, insulada da política partidária» (Lima, 2000: 290). Tal ideia começou,
contudo, a ser questionada com mais veemência desde a filiação ao Partido
101
dos Trabalhadores (PT) em 2009, do Ministro das Relações Exteriores, Celso
Amorim. Nesse contexto, o ex-ministro das Relações Exteriores, Celso Lafer,
referiu que o consenso da política externa brasileira como política de Esta-
do foi algo que marcou a democracia brasileira, desde Sarney a Fernando
Henrique Cardoso (FHC), mas que o fim desse consenso «é fruto da inédita
partidarização da política externa promovida pelo governo de Lula» (Lafer,
2009). Como indicadores dessa partidarização Lafer destacou a nomeação de
Marco Aurélio Garcia (membro histórico do PT) como Assessor diplomático
do Presidente bem como a, já referida, filiação de Amorim ao PT. Mas note‑se
por exemplo que em 2008 os únicos Embaixadores de nomeação política
estavam em Cuba e na UNESCO, até mesmo nas organizações internacio-
nais, como a OMC ou a UNCTAD, é comum encontrarem-se diplomatas de
carreira, transversais aos vários governos.
Deste modo, o ponto de viragem, no que toca à redução da exclusividade
da responsabilidade do processo de formulação e decisão da política externa,
ocorre não só devido aos factores atrás mencionados, mas também à figura
de FHC, que assume a presidência da República em 1995. Até então, os
anteriores Presidentes nunca tinham demonstrado interesse pela formulação
da política externa (quer por opção pessoal, ou por factores de política
interna; como no caso de Itamar Franco que herdou três crises internas que
exigiram que o Presidente se concentrasse na resolução dos problemas po-
líticos, económicos e sociais internos e delegasse toda a matéria de política
externa no Itamaraty). Pelo contrário, FHC (intelectual e académico), que
já havia sido Ministro das Relações Exteriores de Itamar Franco, quando
ocupa a Presidência, encarrega-se também da função diplomática para dar
a conhecer ao mundo o Brasil democrático e restaurar a imagem do país.
Inicia-se, assim, de forma empenhada, a chamada diplomacia presidencial,

4 Embora o PR possa nomear Embaixadores da sua confiança para assumirem os postos diplo-
máticos, em 2008 apenas se registavam dois casos de nomeações políticas: em Cuba e na Unesco,
em todos os outros casos os Embaixadores foram nomeados a partir da estrutura diplomática (ver
Mariano & Mariano, 2008).
que o Presidente Lula da Silva continua de forma intensa. Este mecanismo
demonstra que o processo de definição da política externa já não está apenas
no Itamaraty, embora este continue a ser o actor central. É esta autonomia,
102
formação e especialização que caracterizam o corpo diplomático que, de
certo modo, ajudam a explicar a permanência dos princípios tradicionais
na política externa brasileira.

Nacionalismo e Desenvolvimento, e a relação com os EUA

O Brasil foi o único país da América do Sul a enviar tropas para a 2ª


Guerra Mundial de apoio aos Aliados. Findo o conflito manteve-se um fiel
parceiro dos Estados Unidos 5 desempenhando um importante papel na
criação da Organização dos Estados Americanos (em 1948) e na influência
aos restantes países latino-americanos para a assinatura, em 1947, do Tra-
tado Inter-americano de Assistência Recíproca (TIAAR). Esperava-se que,
tal como havia acontecido em 1918, os Estados Unidos reconhecessem o
contributo brasileiro durante o conflito e incluíssem o país nas negociações
internacionais de paz, contudo, tais expectativas saíram frustradas, ao que
se somou a intensificação das relações dos Estados Unidos com a Argentina.
Deste modo, nos anos imediatamente após o final da 2ª Guerra Mundial
registou-se uma indefinição da política externa do Brasil, especialmente
nas relações com os Estados Unidos, que oscilavam entre uma dependência
passiva (e frustrada), e o desejo de quebrar esse alinhamento.
A Presidência de Getúlio Vargas – tinha estado no poder como Chefe do
Governo Provisório e depois como Presidente da República, entre 1930 e
1945 6 – demonstra essa ambiguidade nas relações com os Estados Unidos,
ou como o historiador Paulo Vizentini refere uma «política de ziguezagues»,

5 Logo em 1949 o Presidente Gaspar Dutra visitou os Estados Unidos retribuindo a visita efectu-
ada por Truman em 1947.
6 Após a Revolução de 1930, Getúlio Vargas foi nomeado Chefe do Governo Provisório, em 1933
foram realizadas eleições indirectas que o elegeram como Presidente da República, e em 1937 em
vez das eleições previstas acabou por acontecer um golpe de estado que deu continuidade à perma-
nência de Vargas no poder até 1945.
que teve consequências no isolamento do próprio Presidente. As políticas
norte-americanas centravam-se na contenção da eventual expansão do co-
munismo, e que nem sempre iam de encontro aos interesses brasileiros.
103
Consequência destas políticas e dos acordos militares 7 celebrados entre os
Estados Unidos e o Brasil foi a intensificação de um discurso anti-americano
(que visava diminuir a dependência em relação aos Estados Unidos) e a
pressão sobre o Presidente que contribuiu para o enfraquecimento da sua
base de apoio. A vontade de diminuir a dependência em relação aos Estados
Unidos veio novamente à tona quando, em 1962, é promovida a Aliança
para o Progresso, através da qual o Presidente Kennedy se comprometeu
a ajudar economicamente a América Latina (com excepção de Cuba, que
não subscreveu a adesão à Aliança).
O suicídio de Vargas, em 1954,põe na sua sucessão o vice-presidente Café
Filho, e, com ele, um grupo mais adepto das políticas norte-americanas e
menos adepto do projecto nacionalista. O desenvolvimento surgiu associa-
do à segurança nacional, tendo sido criada a Escola Superior de Guerra, e
promovida a ideia de que era necessário um alinhamento com o Ocidente,
liderado pelos Estados Unidos. Na verdade, «o hiato representado pelo
governo de Café Filho significou, em termos de política exterior, princi-
palmente no que tange às relações com os Estados Unidos, um retorno ao
período Dutra» (Cervo & Bueno, 2008: 286). Deste modo, Vargas não con-
seguiu implementar o projecto nacional-desenvolvimentista que idealizara,
mas continha as bases para a definição de uma nova política externa para
o Brasil na década de 1960, com a Política Externa Independente.
Na segunda metade da década de 1950, o Presidente Juscelino Kubitschek
implementou uma estratégia de desenvolvimento associada, num primeiro
momento, a um bem sucedido plano económico (caracterizado pela indus-
trialização e pela atracção do capital estrangeiro), e, depois, pela retoma da
«barganha nacionalista» de Vargas. Com base na ideia da interdependência
entre os Estados, e da importância da cooperação internacional, promoveu,

7 Em 1952 foi assinado o Tratado de Assistência Militar Brasil-EUA e, em 1953, o Acordo Militar
Brasil-EUA que definia os termos para a venda de minerais aos EUA, sem quaisquer contrapartidas
para o Brasil.
em 1958, a Operação Pan-Americana, com vista a criar uma estrutura regional
para apoiar financeiramente os países latino-americanos, e que culminou
com a criação do Banco Internacional de Desenvolvimento (BIRD). A sua
104
criação recebeu algumas críticas devido à ausência de medidas concretas,
mas acima de tudo, a Operação Pan-Americana significou a instrumentaliza-
ção da política externa em prol do desenvolvimento nacional, pois «nunca
na história brasileira do século XX valorizara-se tanto o contexto externo
no equacionamento dos problemas nacionais» (Cervo & Bueno, 2008: 288).
No quadro do debate da descolonização, que marcava o contexto interna-
cional da altura, o Brasil não adoptou uma posição resoluta quanto à sua
condenação, embora o seu discurso fosse nesse sentido 8.
A primeira metade da década de 1960, com Jânio Quadros e João
Goulart na Presidência, é marcada pela continuidade do projecto nacional-
-desenvolvimentista. De facto, apesar da instabilidade deste período tanto ao
nível da Presidência como do Ministério das Relações Exteriores, tal não se
reflectiu na formulação da política externa. Entre 1960 e 1964, o Ministério
das Relações Exteriores teve 5 Ministros, e a Presidência foi dividida entre
o Presidente Jânio Quadros9 e o seu vice-presidente, João Goulart, quando
aquele renunciou ao cargo.
Ao nível da política externa destaca-se o papel do Ministro das Rela-
ções Exteriores, San Tiago Dantas (bem como Afonso Arinos e Araújo de
Castro10), que «dotou a Política Externa Independente de um corpo teórico
consistente e colocou-a em prática, pois Quadros pouco ultrapassara o nível

8 Note-se por exemplo a aproximação intensa e positiva entre Kubitschek e Salazar. Dada a
posição de colonizador de Portugal, Kubitshek tinha uma posição dúbia em relação ao colonialismo:
por um lado, condenava tais acções e defendia a auto-determinação dos povos, mas por outro, não
queria perturbar a relação com Portugal, e por isso não afirmava aquela posição com veemência.
9 Jânio Quadros é caracterizado pela sua ousadia, que se reflectiu na forma como abandonou
a Presidência (logo em Agosto de 1961) – ao julgar que recusariam o seu pedido de renúncia,
enganou-se e o mesmo foi aceite. Impedia-se uma primeira tentativa de golpe de estado, já que a
direita desde meados da década de 1950 desejava assumir o poder. Leonel Brizola consegue que
o vice-presidente de Quadros, João Goulart, assuma a presidência e a solução consensual residiu
na implementação de um sistema parlamentarista, em que Tancredo Neves foi nomeado Primeiro-
ministro. Contudo, o governo formado era frágil e o populismo aumentava em desfavor do governo,
antecipando o golpe de estado que teria lugar em 1964.
10 Em 1963, nas Nações Unidas, o Ministro das Relações Exteriores, Araújo de Castro apresenta
o discurso dos três ‘D’: descolonização, desenvolvimento e desarmamento.
do discurso» (Vizentini, 2008: 26). Ao contrário de Kubitschek que concebia
a política externa a partir de uma visão do hemisfério, a Política Externa
Independente partia de uma concepção universal, assente no pragmatismo,
105
na independência de acções, e no nacionalismo, traduzindo-se na multila-
teralização das relações internacionais do Brasil. Entendia-se também que
a política externa promovia o desenvolvimento económico e era a base
das reformas sociais, sendo, por vezes, entendida como típica de um país
capitalista que reage à potência dominante (Vizentini, 2008). A Política Ex-
terna Independente visava a demarcação em relação aos Estados Unidos,
ou a quaisquer outros países, não baseando as relações com os Estados
em ideologias, e por isso «a busca de maior liberdade de movimentos no
concerto internacional foi acompanhada de uma componente de frieza nas
relações com os Estados Unidos» (Cervo & Bueno, 2008: 311). A concepção
de «Brasil potência», que se começava a desenhar, encaixava nesta estratégia
já que o desenvolvimento e a industrialização seriam bem sucedidos «se o
Brasil mantivesse certa autonomia diante dos Estados Unidos» (Vizentini,
2008: 31). Assim, paralelamente à relação pragmática com os Estados Uni-
dos intensificaram-se as relações com a África e a Ásia, bem como com
a Argentina, relacionamento entendido como uma forma de cooperação
importante para os dois países aumentarem o seu grau de participação
nos assuntos internacionais. No mesmo sentido, foram reatadas as relações
diplomáticas com a URSS e, o Brasil não aprovou a expulsão 11 de Cuba da
OEA, em 1962. Todavia, relativamente à situação cubana, a crise dos mísseis
de Cuba contrariou o argumento brasileiro, de que a situação era apenas
um assunto interno, e deu mais credibilidade à posição norte-americana,
do mesmo modo que, ao enfraquecer o governo, criou condições para o
golpe militar que viria a acontecer.
Deste modo, as décadas de cinquenta e sessenta caracterizam-se pelas
tentativas de demarcação em relação à dependência exclusiva dos Esta-
dos Unidos. Mas a influência norte-americana sentiu-se inclusivamente na
queda do regime. O enfraquecimento interno do Governo de Goulart, e a

11 A expulsão de Cuba da OEA foi aprovada com as abstenções da Argentina, Bolívia, Brasil,
Chile, Equador e México.
falta de apoio dos Estados Unidos ao Governo, por um lado, e o apoio ao
sector golpista, por outro, criaram as condições para o golpe militar em
Março de 1964. Esta acção foi antecedida pela renovação do Acordo Militar
106
com os Estados Unidos, negociado pelo Itamaraty sem o conhecimento do
Presidente; bem como pela operação «Brother Sam» no Atlântico, articulada
pelos Estados Unidos e que, em caso de necessidade, previa a ajuda militar
aos golpistas.

O regime militar brasileiro e a Guerra Fria

O período do regime militar, entre 1964 e 1985, foi marcado por algu-
mas intermitências, ou um governo mais conservador ou um governo mais
nacionalista, em que o epicentro esteve, mais uma vez, na definição da
relação com os Estados Unidos e, consequentemente, na forma como o
Brasil se afirmava no sistema internacional.
Ao analisarmos o regime militar como um todo verificamos que apenas
o governo de Castelo Branco (entre 1964 e 1967), tentou romper com a
linha de política externa anterior ao golpe. Como previsto, começou por
afirmar o projecto da Escola Superior de Guerra (com maior impacto a ní-
vel interno) instituindo a Constituição de 1967. A política externa previa o
alinhamento com os Estados Unidos e o relacionamento entre os Estados
com base nas ideologias. Nesse sentido, as relações com Cuba foram rom-
pidas logo em 1964, assim como se enfraqueceram as relações comerciais
com a URSS, a China e os continentes africano e asiático. Sob a alçada da
OEA, o Brasil interveio no conflito da República Dominicana que, contra-
riamente ao esperado, contribuiu para denegrir a sua imagem na região.12
O regime brasileiro recebeu apoio económico dos Estados Unidos, do Fundo
Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial. Os parceiros norte-
-americanos apresentavam-se como a única alternativa face a uma conjuntura
económica que tendia a agudizar-se, e o Ministro das Relações Exteriores

12 Na mesma lógica, o Brasil, sob influência dos Estados Unidos, tentou agregar parceiros para a
criação de uma Força Interamericana de Defesa, mas tal não foi bem recebido.
afirmou inclusivamente que «o que é bom para os Estados Unidos é bom
para o Brasil» (Vizentini, 2008: 41). Esta cumplicidade não se restringiu ao
âmbito económico, também a nível diplomático se registou um regresso ao
107
«âmbito hemisférico e bilateral» 13 das relações externas (Pecequillo, 2008).
Mas, paralelamente, o Itamaraty conseguiu preservar um certo grau de
autonomia em relação ao regime militar, e, gradualmente, foi reavivada a
Política Externa Independente. É, certamente, neste quadro que se inclui
o incremento das relações com os países africanos, pois a primeira missão
comercial à África Ocidental teve lugar em 1965 lançando-se as bases da
política africana do Brasil.
Em 1967, com a substituição de Castelo Branco por Costa e Silva,
retomaram-se algumas ideias da Política Externa Independente, especial-
mente, no que se refere às questões económicas. Costa e Silva, da linha
nacionalista do regime, inaugurou a chamada «Diplomacia da Prosperida-
de», associando o desenvolvimento à soberania e utilizando a diplomacia
em prol do desenvolvimento económico. Contrariando rigorosamente as
posições norte-americanas, foi quebrada a submissão inicial do Brasil aos
Estados Unidos 14 e foram definidas novas parcerias, especialmente entre
os Países do Terceiro Mundo. Foi neste quadro que a política africana do
Brasil também se redefiniu. No quadro regional foi assinado o Tratado da
Bacia do Prata (Argentina, Bolívia, Brasil, Paraguai e Uruguai), com vista a
promover a integração física daquela área.
No final da década de 1960, o discurso político era marcado pela con-
cepção de «Brasil a potência» e pela «Diplomacia do interesse nacional». O
Brasil não era auto-percepcionado como um país do Terceiro Mundo, nem
se preconizavam essas alianças, recuperava-se novamente a ideia da necessi-

13 O paradigma hemisférico-bilateral foi dominante entre 1902 e 1961 e defendia a preservação


de uma boa relação com os Estados Unidos que oscilou entre um alinhamento pragmático ou auto-
mático. Após 1961 esta concepção é substituída pelo paradigma global e multilateral, que se resume à
Política Externa Independente e que pressupõe a quebra do alinhamento automático com os Estados
Unidos e a procura de novas parcerias e alianças (o melhor exemplo é o Pragmatismo Responsável
de Geisel). Collor de Melo, Itamar Franco e FHC representam o paradigma hemisférico-bilateral em
que se preconizam as relações com os países mais desenvolvidos e há o desejo de pertencer ao
Primeiro Mundo (Pecequillo, 2008).
14 Tal posição deve-se, em certa medida, a um desentendimento do Presidente brasileiro com o
sub-secretário de Estado norte-americano para a América Latina.
dade de uma relação cordial com os Estados Unidos. Ainda assim, em 1972,
o Ministro das Relações Exteriores, Gibson Barboza, realizou uma missão a
vários países africanos contribuindo para o fomento da política africana. 15
108
Simultaneamente, Médici permitiu conjugar as boas relações com os Estados
Unidos com o seu projecto de desenvolvimento nacional, o que foi facilitado
também pela posição norte-americana em ter um aliado estável na região
(quando os governos de esquerda e as guerras civis tendiam a proliferar).
O interesse nacional foi ainda favorecido pelo «milagre económico» que
o Brasil conheceu entre 1970 e 1973, e que contribuiu para o aparecimento
de uma classe média consumidora. Todavia, este período foi perturbado
pelo choque petrolífero de 1973 que ditou, não só, a quebra da prospe-
ridade, mas também o fracasso da aproximação aos países árabes, e com
isso a falência do projecto de desenvolvimento do Brasil. Assim, quando
Ernesto Geisel chegou ao poder, em 1974, começou por implementar o II
Plano Nacional de Desenvolvimento que previa a diversificação das fontes
de energia, a capacitação tecnológica e a definição do Estado como o maior
agente produtivo, com o objectivo de controlar o elevado deficit comercial
e contribuir para a estabilidade do país.
O início do processo de abertura política do regime registou um sinal
importante com o Presidente Geisel que desde a sua tomada de posse
definiu a abertura como a sua prioridade, começando por pôr fim à cen-
sura da imprensa (ver Spektor, 2004: 210-214). A própria política externa
foi utilizada para reunir consenso interno e como moeda de troca com as
facções militares rivais do regime. Mais concretamente, no que se refere à
política externa, o Ministro das Relações Exteriores de Geisel, Azeredo da
Silveira apresentou-se como um actor-chave, definindo juntamente com o
Presidente, e com base na Política Externa Independente da década de 1960,
o Pragmatismo Responsável. Esta concepção visava conciliar as necessida-
des económicas com as estratégias de política externa, direccionando-se

15 Alguns autores (Lechini, 2008) entendem que foi esta viagem, em 1972, que definiu a aproxi-
mação do Brasil a África, enquanto outros (Saraiva, 1996) entendem que tal só foi possível devido ao
que começara a ser delineado na década de 1960, com a missão comercial em 1965. Todavia, nessa
altura o contexto ainda não era favorável à cooperação com o continente africano, pois a falta de
apoio explícito às colónias africanas nem sempre jogou a favor do Brasil.
para os países árabes e com outras potências regionais asiáticas e africa-
nas. Deste modo, recuperou-se a noção de autonomia da política externa,
especialmente em relação às grandes potências, «os anos Geisel situam-se
109
confortavelmente na tendência geral a maior e mais veloz asserção da auto-
nomia nacional face aos estritos limites impostos pelo sistema internacional
da Guerra Fria» (Spektor, 2004: 196). Devido às transformações ocorridas
no sistema internacional, e sob a retórica do início da década de «Brasil a
Potência», Azeredo da Silveira pretendia projectar o Brasil na cena inter-
nacional, acreditando que os países em desenvolvimento poderiam ganhar
espaço e influenciar a agenda internacional. Nesse sentido, foi definida
claramente a posição do Brasil em relação ao colonialismo. E, apesar da
amizade com Portugal, a diplomacia brasileira foi a primeira a reconhecer
a independência de Angola, em 1975.
No que concerne às relações com os Estados Unidos, destaca-se a ces-
sação do Acordo Militar 16 entre os dois países em 1952, dadas as pressões
norte-americanas para que o Brasil não celebrasse o Acordo Nuclear com
a Alemanha. No entender de Spektor (2009) a tese da «rivalidade emergen-
te» – que defende que o processo de modernização e industrialização do
Brasil contribuiu para o aumento da rivalidade com os Estados Unidos –
não é suficiente para explicar o fracasso do relacionamento entre o Brasil
e os Estados Unidos, na década de 1970, é necessário atentar também no
empenho tanto de Azeredo da Silveira como de Richard Nixon. Mas, mesmo
assim, apesar das suas tentativas «os planos de convergência conviveram
com dúvidas profundas e recorrentes desconfianças de ambos os lados»
(Spektor, 2009: 185). No mesmo sentido, Cervo & Bueno (2008: 442) referem
que «as relações entre os dois países permaneceram nos anos 1980, como
nos anos 1970, à espera de propostas substantivas e igualitárias, desprovi-
das de egoísmos nacionais, para se alcançarem ao nível das necessidades
e conveniências bilaterais».

16 Note-se que o Brasil e os Estados Unidos voltaram a assinar um novo Acordo Militar apenas
em Abril de 2010.
O processo de abertura político iniciado com Geisel17 foi continuado
pelo Presidente João Figueiredo, apelidado como o «Presidente da abertura»,
que implementou, logo em 1979, uma reforma partidária. O seu mandato
110
foi influenciado, quer, pelo segundo choque petrolífero de 1979 (em termos
económicos), quer pelo fim da détente. Por um lado, o choque petrolífero
contribuiu para a deterioração da situação económica mundial que atingiu
o Brasil (e a América Latina) através da «crise da dívida». Por outro lado, o
fim da détente, e a agudização das relações entre o bloco americano e o
bloco soviético contribuíram para que, em 1981, o Presidente Ronald Reagan
instituísse uma alta taxa de juro aumentando a dívida externa de países em
desenvolvimento, como o Brasil. Mas a par das dificuldades económicas,
o Brasil continuava a tentar demarcar-se das propostas norte-americanas –
recusando, por exemplo, as propostas de militarização do Atlântico Sul,
mas, em contrapartida, consolidando as relações com alguns Estados
africanos, nomeadamente a Nigéria e outros Estados no Golfo da Guiné.
A diversificação das relações visava não só suprir as necessidades energéticas
do Brasil, assim como unir os países do «sul» de modo a pronunciarem-se
a uma só voz nas organizações económicas multilaterais.

A transição democrática: mudança de regime sem mudança de política

No seguimento das reformas introduzidas por Geisel e Figueiredo cria-


ram‑se as condições mínimas necessárias para que, em 1984, sob o lema
das «Diretas já», se realizassem eleições. Das eleições de 1984 saiu vencedor
Tancredo Neves que acabou por não tomar posse dadas as suas condições
de saúde. O seu lugar foi ocupado por José Sarney, eleito vice-presidente.
Assim, a democracia re-instalou-se no Brasil de forma gradual não se veri-
ficando qualquer processo revolucionário e, por isso, também, ao nível da
política externa não se verificou qualquer corte abrupto com o passado.

17 Geisel mostrou-se contrário a algumas das acções levadas a cabo, a partir de 1976, pelos
órgãos de repressão, e que incluíam atentados, sequestros e assassinatos. O Presidente demitiu o
Comandante do Exército, o Ministro do Exército e o Chefe de Gabinete Militar.
Mas a linha de continuidade deriva também da componente institucional e
burocrática encontrada no Itamaraty, o que «garante continuidade nas esco-
lhas e relativa consistência nas orientações de política» (Lima, 2000: 289). Ao
111
mesmo tempo que se reconhecia que o novo Governo deveria procurar um
consenso mínimo com os actores sociais de modo a evitar qualquer ruptura
institucional, o que culminou com a adopção da Constituição em 1988.
José Sarney chegou ao poder com um contexto interno que não era de
todo favorável. À explosão simultânea de três crises, política, económica e
social, somava-se a complexidade do país, que o próprio Presidente definiu
como «um Brasil composto por diversos Brasis» (Sarney, 1986). As primeiras
medidas do Governo prenderam-se com a estabilização do país, a convoca-
ção da Assembleia Constituinte, a promoção do crescimento económico e o
investimento no bem-estar social. A recuperação económica exigiu também
que a nível externo se adoptasse uma política firme para reduzir a dívida
externa, resultado do esgotamento do modelo económico iniciado na déca-
da de 1930 (quando o Estado era o actor central). De modo a estabilizar a
economia através da redução dos valores da inflação, Sarney implementou
em 1986, com êxito, o Plano Cruzado.
A conjuntura económica também se repercutiu na actuação externa.
No seguimento da «crise da dívida», adoptou-se uma moratória aos Estados
Unidos. O discurso do Presidente era bastante crítico da atitude norte-
-americana, que no seu entender, tratava o Brasil, um país rico e com
um grande potencial, como um «país de segunda». A incompatibilidade
de posições entre o Brasil e os Estados Unidos foi evidente, quer nas
questões da organização do comércio continental e internacional, quer
nas tentativas de integração da região. O segundo Ministro das Relações
Exteriores de Sarney, Abreu Sodré (antecedido por Olavo Setúbal), além
de reatar relações com Cuba, reconheceu a necessidade de diversificar
as parcerias não se alinhando, exclusivamente, aos Estados Unidos. Por
conseguinte, este período é marcado por um fortalecimento da coopera-
ção entre o Brasil e a Argentina 18 (assim como com o Uruguai). Os dois

18 O Brasil e a Argentina assinaram a Acta para a Integração e Cooperação Económica, em 1981,


e o Tratado de Integração, Cooperação e Desenvolvimento Brasil-Argentina, em 1988.
países associaram-se ainda ao Grupo de Apoio a Contadora, como forma
de manifestarem o seu desagrado pelas políticas norte-americanas para a
América Latina. Em retaliação, os Estados Unidos aplicaram sanções co-
112
merciais ao Brasil, o que comprova o desacordo norte-americano quanto
às tentativas de integração entre as duas principais potências da América
do Sul. Por conseguinte, o Brasil procurou novos parceiros noutras áreas
regionais, como a República Popular da China e a URSS, ao mesmo tempo
que desenvolveu e aprofundou as suas relações com os países africanos
e do Médio Oriente.
O governo de José Sarney foi, essencialmente, um período de transi-
ção, em que as dificuldades económicas do país e as condições políticas
e sociais internas, bem como as incompatibilidades com os Estados
Unidos, ainda num contexto de Guerra Fria, ditaram muitas das opções
que se fizeram.
Os dois governos seguintes, de Collor de Mello e de Itamar Franco,
encaixam-se ainda num período de indefinição e ajustes. Na verdade, as
transformações na política internacional, com o fim da Guerra Fria, tiveram
consequências também para o Brasil, nomeadamente com a importância
crescente das dinâmicas de regionalização, que criavam novas condições
para a consolidação de grandes potências regionais, bem como para a
autonomia da América do Sul, e forçaram o início de uma revisão das
prioridades da política externa brasileira. No Brasil, gerou-se um grande
debate entre os que defendiam a revitalização da relação com os Estados
Unidos, reformando a política interna de acordo com as suas orientações,
e os que defendiam uma correcção da postura global do país, de modo
a adaptar-se às mudanças internacionais. Collor de Mello, eleito em 1989,
optou pela primeira concepção, pois, no seu entender, «a proposta de
modernização econômica pela privatização e abertura é a esperança de
completar a liberdade política, reconquistada com a transição democrática»
(Mello, 1990). Collor de Mello optou pelo alinhamento com os Estados
Unidos e adoptou as medidas neoliberais propostas pelo «Consenso de
Washington», e «a chegada de Collor de Mello à presidência trouxe à arena
do processo decisório de política externa uma corrente liberal, minoritária
no Itamaraty, mas seu impeachment reduziu suas influências até os dias
atuais» 19 (Saraiva, 2010: 2). Contrariamente ao Governo anterior, a política
externa teve como ponto de atracção a relação com os Estados Unidos,
entendida por alguns autores como a «ilusão norte-americana de Collor»
113
(Vizentini, 2003: 61) . Se o jovem Presidente começou por defender a ine-
vitabilidade da aproximação aos Estados Unidos para modernizar o país,
cedo reconheceu as desvantagens desse alinhamento. O insucesso das
políticas económicas e a deterioração da situação política, levaram-no a
chamar para o Itamaraty o Embaixador Celso Lafer que introduziu novos
padrões de referência para o Brasil, diminuindo a excessiva centralida-
de dos Estados Unidos. Lafer entendia que a «autoridade do Itamaraty»
(Vigevani & Cepaluni, 2009: 42) era necessária para uma política externa
efectiva, e os seus discursos destacavam a «adaptação criativa» da política
externa e a «visão de futuro».
No plano regional, destaca-se a articulação entre o Brasil e a Argentina
que culminou com a criação do Mercosul, em 1991, entendido acima de
tudo como um mecanismo para acelerar a liberalização da economia do
Brasil, uma das prioridades de Collor de Mello (a importância estratégica
da estrutura regional só viria a ser reconhecida com Itamar Franco).
Itamar Franco assumiu a presidência num contexto de crise – não muito
diferente daquele deixado por Sarney, no final do seu mandato. Deparando‑se
com a necessidade de responder à crise económica interna, o Presidente
Itamar concentra todos os seus esforços nesse campo, transferindo as tare-
fas de política externa, na sua totalidade, para o Itamaraty, que tinha como
Ministro das Relações Exteriores, Fernando Henrique Cardoso.
O curto mandato de Itamar Franco foi, em parte, distinto do anterior:
em vez de fragilizar a condição do país conseguiu definir algumas estra-
tégias para a política externa e económica, que nem sempre seguiram as
directrizes dos Estados Unidos. Embora a percepção internacional inicial
fosse de que o país iria adoptar uma actuação mais nacionalista para se

19 No Itamaraty têm existido duas correntes de pensamento da política externa, que Miriam
Gomes Saraiva (2010) define como os «autonomistas» («desenvolvimentismo» económico, autonomia,
universalismo, inserção internacional, reforma da ordem internacional) e os «institucionalistas-prag-
máticos» (liberalização económica, apoio crítico aos regimes internacionais, defesa da autonomia e
soberania, prioridade da região sul-americana). Vide, entre outros, Saraiva 2010.
diferenciar de Collor, tal não aconteceu, «o que se percebeu foi a manu-
tenção das políticas iniciadas anteriormente, paralelamente à adoção de
um posicionamento marcado pela condição de país em desenvolvimento»
114
(Hirst & Pinheiro, 1995: 11). Tanto no quadro da política externa como da
recuperação económica, FHC teve um papel fulcral. Ao nível da política
externa começou por reorganizar o Itamaraty, e reconheceu a necessidade
de «adicionar uma base sólida à nossa própria região, se não for por outra
razão, pelo menos para aumentar a nossa capacidade de negociação. (…)»
(Fernando Henrique Cardoso apud Vigevani & Cepaluni, 2009: 47), embo-
ra isso não significasse uma ruptura das relações com os Estados Unidos.
O desenvolvimento do Mercosul é aprofundado através da assinatura, em
1994, do Protocolo do Ouro Preto que institucionalizou a sua estrutura
intergovernamental e implementou o consenso como processo de tomada
de decisão. O Mercosul era, então, entendido como fundamental para o
comércio da região, mas também como forma de compensar a dependência
em relação aos Estados Unidos.
Em 1992, a substituição de FHC por Celso Amorim não significou uma
mudança no rumo da política externa. Contudo, à estratégia de valorização
da região somou-se a definição de uma estratégia de inserção internacional
para afirmar a posição do país, que fora abalada com Collor. No entender
de Amorim, tal inserção internacional poderia ser feita através da reforma
do Conselho de Segurança das Nações Unidas,20 ambição que o Brasil tem
há vários anos. Começavam então a ser delineadas e implementadas algumas
estratégias de acção externa, ao mesmo tempo que o lançamento do Plano
Real aliviou a crise económica do país.
O Plano Real, implementado em 1994 pelo Ministro da Fazenda, Fer-
nando Henrique Cardoso, permitiu controlar a inflação, contribuindo para
o aumento do consumo 21 e a recuperação da economia brasileira, e serviu

20 Neste período, o Brasil foi eleito por dois anos membro do Conselho de Segurança das Nações
Unidas, participou em sete operações de paz, apresentou a proposta de uma agenda de desenvolvi-
mento, e incrementou o relacionamento com os países vizinhos.
21 A euforia provada pelo consumo, e que contribui para os anos de ouro da economia, ocul-
tava os deficits do comércio externo e da balança de pagamentos, que só se revelariam no segundo
mandato do Presidente Fernando Henrique Cardoso.
para melhorar a posição do Brasil no contexto internacional. Noutro domínio
criou, ainda, as condições para a vitória de FHC nas eleições presidenciais
de 1994.
115
Fruto das transformações do sistema internacional, no início da década
de 1990, Collor de Melo «pôs em xeque os princípios da política externa
adotada até então, mas que não foi capaz de consolidar um novo conjun-
to de princípios» (Saraiva, 2007: 45) , embora a tentativa de modernização
seja recuperada posteriormente. Deste modo, o período intercalar (após
o fim do regime militar e a consolidação da democracia) é uma «crise de
transição», ou uma «dança de paradigmas» (Cervo & Bueno, 2008: 455), em
que todas as novas orientações se começam a esboçar – o Mercosul, a re-
forma monetária, a diversificação de relações, a candidatura ao Conselho
de Segurança – sem se forjar contudo um (novo) modelo e persistindo um
balouçar entre os «autonomistas» e os «liberais».

A revelação internacional do Brasil

Fernando Henrique Cardoso, em 1995, introduziu uma nova atitude nas


estratégias da política externa do Brasil preconizando uma intervenção mais
activa do Brasil na política internacional, demonstrada através da vontade
de «influenciar o desenho da nova ordem» internacional (Oliveira, 2010: 14).
O discurso do novo Ministro das Relações Exteriores, Luiz Felipe Lampreia
expressava também essa ideia, «nem a maior autonomia, nem o aumento
da nossa capacidade de influência poderão ser alcançados por meio do
isolamento ou da pretensa autosuficiência» (Lampreia, 1998: 9).
Por um lado, a administração de FHC demonstrou-se empenhada na po-
lítica externa e na área económica, e por outro, habilmente separou estes
dois domínios, reformando as atribuições do Itamaraty e as do Ministério
da Fazenda, e concentrando uma parte importante da política externa nas
mãos do Presidente da República. No que se refere à política externa, os
dois mandatos de FHC foram marcados pela «diplomacia presidencial»; pela
aposta na região Sul-americana através da integração regional e da revalo-
rização do Mercosul; pela adopção das regras e dos regimes internacionais,
e num segundo momento, pela intensificação das relações com o Sul. A
«diplomacia presidencial» valorizou a inserção internacional do país, através
das visitas oficiais realizadas pelo Presidente, mas não diminuiu a importância
116
da afirmação regional do Brasil. FHC quis conciliar uma dimensão global
com uma outra mais centrada na América do Sul, espelhada na postura
de participação e de integração do Brasil – integração não só em termos
regionais, como também integração do Brasil no que se refere às normas e
aos regimes internacionais. Como referiu Lampreia, «a política externa do
Presidente FHC busca a autonomia pela integração, ou seja, ao invés de
uma autonomia isolacionista, uma autonomia articulada com o meio inter-
nacional» (Lampreia, 1998:11). Nesse sentido, foi possível registar também
uma coincidência entre a definição da identidade do Brasil e os valores
universais, ao que Luiz Felipe Lampreia denominou de «convergência crítica».
As relações Sul-Sul começaram a ser desenhadas no final do governo de
FHC, motivadas pela conjuntura internacional que se traduziu no cepticismo
de FHC quanto à associação automática com as normas do neo-liberalismo,
que se mostraram negativas nos países em desenvolvimento (como o Brasil,
ou a Argentina). Na verdade, FHC começou por recuperar, no início do seu
mandato, o modelo neo-liberal, que fracassou com Collor de Mello, embora
reclamasse simultânea e paradoxalmente, a reforma do sistema internacional.
Mas a verdade é que, no final do segundo mandato, FHC reconheceu as
fragilidades do modelo neo-liberal: a conjuntura internacional, associada à
crise financeira e cambial de 1999 desmoronou o projecto brasileiro, pois
«todo o cenário mundial em que o governo baseara a sua inserção interna-
cional veio abaixo» (Vizentini, 2008: 98). Em 2001, a Argentina passou por
uma grave crise económica que anunciou o colapso do neoliberalismo e
das políticas recomendadas pelo FMI e pelo Banco Mundial no país e na
região. Por conseguinte, no discurso que, em 2001, FHC fez na abertura da
Assembleia Geral das Nações Unidas refere que «nosso lema há-de ser o da
‘globalização solidária’, em contraposição à atual globalização assimétrica»
(Folha Online, 2001).
Na verdade, o relacionamento com o Norte (símbolo dos países ricos)
foi uma prioridade da política externa de FHC, que se aproximou não só
dos Estados Unidos, mas também da Europa e do Japão, colocando em se-
gundo plano as relações com os países menos desenvolvidos, e os países
africanos em particular. Aliás, a aproximação do Brasil a África durante os
mandatos de Cardoso é normalmente apelidada de «opções selectivas» por
117
existir uma grande precisão nas parcerias estabelecidas.
Nesse sentido, a relação com os Estados Unidos manteve-se estável.
As incompatibilidades registaram-se no respeitante às políticas comerciais
e aos objectivos de integração, especialmente à proposta norte-americana
para a criação de uma Área de Livre Comércio das Américas (ALCA). Em
todo o caso, verificou-se, também, uma aparente alteração da postura bra-
sileira, pelo menos em termos retóricos, quanto ao projecto da ALCA, mas
que, na prática, não surtiu grandes efeitos. A inconsistência da posição
brasileira visava apenas evitar qualquer possibilidade de isolamento do
Brasil, caso o projecto de criação da ALCA se viesse a concretizar. O final
do mandato de Cardoso registou, contudo, um enfraquecimento do relacio-
namento com os Estados Unidos, que se deveu, sobretudo, à alteração da
estratégia internacional dos Estados Unidos, esboçada após os ataques do
11 de Setembro, que passou a privilegiar as questões de segurança e a dar
menos importância ao sul do continente. Ora, o fortalecimento da postura
unilateral norte-americana, levou FHC a incrementar a vertente multilateral,
diversificando as relações e aproximando-se das potências regionais. 22
Concomitantemente, a realização da Cimeira da América do Sul, em
Brasília em 2000, representou um marco importante na política externa
brasileira ao propor a Iniciativa para a Integração da Infra-estrutura Re-
gional Sul-Americana 23 (IIRSA) e dando ao discurso diplomático brasileiro
um carácter autonomista, que de certo modo, chocava com o projecto da
ALCA. A realização da Cimeira simbolizou a redefinição da identidade re-
gional do Brasil, que, gradualmente, deixou de se referir à América Latina,
considerada uma construção artificial e imprecisa, para utilizar o conceito

22 Momento que coincide também com a apresentação, pela Goldman Sachs do acrónimo BRIC,
destacando o potencial de crescimento das economias destes países (Brasil, Rússia, Índia e China).
23 A IIRSA corresponde a uma iniciativa dos 12 países sul-americanos, tendo sido instituciona-
lizada em 2000, na Cimeira dos Presidentes da América do Sul. Pressupõe a realização de acções
conjuntas para promover o processo de integração política, económica e social da América do Sul,
estimular a integração e o desenvolvimento de sub-regiões isoladas. Ver: http://www.mp.gov.br/
secretaria.asp?cat=156&sub=302&sec=10.
de América do Sul, uma construção política onde mais facilmente o Brasil
pode fazer valer os seus interesses. A definição da área regional da América
do Sul era algo que já vinha sendo conceptualizado desde os tempos do
118
Barão do Rio Branco, mas foi com Fernando Henrique Cardoso que se con-
solidou, consequência dos processos de regionalização e globalização que
ocorreram, e à tomada de consciência de que «a América do Sul constitui
uma unidade física contígua, que favorece as oportunidades de cooperação
económica» (Lafer, 2002: 67).
Verificamos, portanto, que os anos de FHC permitiram consolidar a demo-
cracia brasileira e projectar a imagem do Brasil no exterior – democrático,
adepto das normas e valores universais, com uma conduta pacífica – embora
alguns autores considerem que não se tenha incrementado, simultaneamen-
te, um desenvolvimento sólido (Vigevani & Oliveira & Cintra, 2003: 58). A
passagem de FHC para Lula da Silva, em 2003, permitiu que se continu-
assem as políticas económicas iniciadas, contribuindo para o crescimento
e estabilidade económica do país, e simultaneamente, para o aumento do
protagonismo internacional do Brasil.
Ao nível dos princípios históricos 24 da política externa brasileira, o Go-
verno de Lula pode ser visto como um contínuo dos anos de FHC, pese
embora os ajustes efectuados, pois «ao exercerem juntos dezasseis anos de
mandato, são determinantes para a evolução do modelo brasileiro de inserção
internacional na passagem do século XX para o XXI » (Cervo & Bueno, 2008:
491). Em 2003, o discurso de tomada de posse do Presidente Lula da Silva
acentuava a ideia de mudança porém, tal não se concretizou, pelos menos
nos eixos que definem a política externa brasileira. Muitas das parcerias
consolidadas por Lula tiveram a sua génese ainda durante a administração
de Cardoso, «mas Lula deu uma nova ênfase a este aspecto da agenda in-
ternacional do Brasil» (Vigevani & Cepaluni, 2009: 81), ou como afirmou o
Ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim,

24 Como por exemplo o pacifismo, a não-intervenção, a auto-determinação e a segurança colectiva.


os princípios básicos são os mesmos. Mudaram as ênfases e as
intensidades com que certos temas são tratados. Quando eu era embaixador
na ONU, o Brasil sempre teve proximidade com os africanos. Não se
119
pode dizer, portanto, que a boa relação com a África é uma invenção
do governo atual. Agora, vá comparar a intensidade dessa relação antes
e depois. (Amorim, 2008)

A política externa desenvolvida nos dois mandatos de Lula reflecte


não só os constrangimentos e oportunidades do ambiente internacional e
interno, como o aproveitamento das oportunidades criadas pelo anterior
Governo. Os temas e relacionamentos privilegiados são, na sua maioria,
reavivados, e não uma novidade. É possível registar também a recupera-
ção da instrumentalização da política externa em prol do desenvolvimento
nacional, «no meu Governo, a ação diplomática do Brasil estará orientada
por uma perspectiva humanista e será, antes de tudo, um instrumento do
desenvolvimento nacional» (Silva, 2003).
Lula da Silva define o multilateralismo como um instrumento prioritário
da sua estratégia externa, bem como as relações Sul-Sul. A demarcação da
dependência exclusiva das grandes potências é concretizada através da
participação em organizações internacionais, da definição de uma agenda
externa própria e da prioridade dada à diversificação de parcerias. Tal é
representado, por exemplo na posição firme (e por vezes intransigente) do
Brasil nas negociações da Organização Mundial do Comércio, que em 2003
reúne um conjunto de países em desenvolvimento e com posições comuns
em torno do que ficou conhecido com o Grupo dos 20,25 funcionando como
um mecanismo para contrabalançar o poder de influência dos países ricos
relativamente às questões agrícolas e comerciais. A estratégia foi expressa
também no discurso de tomada de posse do Presidente afirmando que «a
democratização das relações internacionais sem hegemonias de qualquer

25 O Brasil faz parte também do G20 que é um fórum de diálogo e cooperação das maiores
economias, criado em 1999 como resposta às crises económicas dos anos 1990. O Brasil acolheu a
cimeira do G20 em 2008.
espécie é tão importante para o futuro da humanidade quanto a consolidação
e o desenvolvimento da democracia no interior de cada Estado» (Silva, 2003).
É, neste sentido, que se assinala a «autonomia pela diversificação» (Viegavi
120
& Cepaluni, 2009) na política externa de Lula, estratégia que pela variedade
de parcerias visa aumentar a capacidade de influência do Brasil na região
e no mundo. Durante o mandato de FHC, essa dinâmica foi desenvolvida
de forma mais moderada. As jogadas brasileiras em arenas diplomáticas,
ora complementares ora alternativas, visam, justamente, a diversificação
de parcerias e a emancipação face aos actores dominantes do sistema
internacional. Note-se, por exemplo, a recuperação da política africana,
desenvolvida por Lula, aproveitando os espaços deixados em aberto pelas
grandes potências. Todavia, não foi descurado o relacionamento com o
Norte, tanto com os Estados Unidos como com a União Europeia (UE). A
parceria estratégica institucionalizada com a UE, em 2007, é disso exemplo,
simbolizando o reconhecimento europeu do papel regional e internacio-
nal do Brasil. Gradualmente, Lula da Silva contribuiu para a definição de
uma postura assertiva do Brasil, que muito se parece com o Pragmatismo
Responsável de Geisel, da década de 1970, não interessando os vínculos
ideológicos para o relacionamento entre os países. E, por isso mesmo, al-
gumas estratégias são marcadas por uma certa inconstância que deriva dos
interesses temporais do Brasil.
No que toca à região, em 2003, o Ministro das Relações Exteriores afirmava
que «a América do Sul será nossa prioridade» (Amorim, 2003). Registou-se
a proliferação de mecanismos de integração e diálogo, como a UNASUL e
o Conselho sul-americano de Defesa, a par do diálogo com a Venezuela
ou a Bolívia, e a missão no Haiti. O Mercosul é percepcionado como um
instrumento político que agiliza negociações internacionais a diversos ní-
veis (inclusivamente, como alternativa à ALCA), conduzindo a vantagens
económicas e comerciais. As relações comerciais do Brasil, no quadro do
Mercosul, são bastante significativas, e especialmente as trocas com a Ar-
gentina conheceram um aumento durante o mandato de Lula.
Mas, como evidenciámos, as relações extra-regionais juntaram-se a esta
opção, devido às vantagens que apresentavam para a afirmação internacional
do Brasil e para a multipolaridade das relações internacionais, defendida
por Lula. Na verdade, o Brasil rentabilizou os vários tabuleiros de actuação
internacional, através da participação nos fora multilaterais (quer seja nas
organizações internacionais, como a Organização Mundial do Comércio,
121
quer seja no fomento de fóruns multilaterais de diálogo, como o IBSA, as
cimeiras BRIC, ou o G20), do incremento do diálogo bilateral com diversos
países (note-se por exemplo as relações com alguns países da União Euro-
peia, como a França ou a Alemanha, e Portugal), assim como aumentando
a sua expressão diplomática no continente africano e asiático.
E daqui deriva um dos debates actuais sobre a política externa do Bra-
sil: liderança regional ou liderança internacional? Na verdade, para o Brasil
permanece o dilema entre a conciliação da sua atitude e reconhecimento
internacional (a UE, e países como os EUA e alguns estados-membros da
UE reconhecem o Brasil como o interlocutor privilegiado da região, do
mesmo modo que em fora internacionais a opinião do Brasil passou a ser
relevante) e a aceitação, pelos países vizinhos, do seu status internacional,
devido à existência de preconceitos históricos, ou à concorrência, que
impedem os países da região de reconhecer a relevância internacional do
Brasil (como a Argentina e o Paraguai, ou também a Venezuela) (ver, entre
outros, Burges, 2009).

Nota final

A análise permite-nos constatar uma evidente dinâmica entre o contex-


to internacional e interno e a formulação da política externa do Brasil. É
evidente o reflexo da conjuntura internacional da Guerra Fria na criação
de constrangimentos e possibilidades aos actores brasileiros, assim como
as condições económicas e políticas internas, especialmente nos momentos
de crise, tiveram um impacto nas opções de política externa.
A necessidade de definir a relação com os Estados Unidos, assente du-
rante muito tempo na «aliança não escrita» do princípio do século XX , tem
sido uma das marcas da política externa brasileira, especialmente durante
e após o período de Guerra Fria. Esta exigência deve-se não apenas aos
constrangimentos internacionais, dado o papel hegemónico dos Estados
Unidos; mas também à própria posição de vizinhança entre os dois países,
partilhando áreas de influência comuns; e com isso o tradicional desejo
brasileiro em obter um lugar importante no sistema internacional, o que
122
em alguns momentos choca com os interesses americanos.
A política externa do Brasil tem reflectido as tentativas de definição da
sua identidade internacional, que deriva das múltiplas identidades que ao
longo dos tempos o país foi agregando. A dicotomia entre o contexto interno
(pobreza e desigualdade), o crescimento económico e o reconhecimento
internacional tem dificultado, inclusivamente, a definição do lugar do Brasil
no sistema internacional, o que não deixa de ser característico das potências
médias. Contudo, cada vez mais se torna evidente, pelo menos no plano
externo, a coincidência entre as ambições e as capacidades do Brasil.

Questões para análise


De que forma o sistema política brasileiro determina a formulação da política
externa do país?
A política externa brasileira é marcada por um paradoxo de mudanças na
continuidade. Comente esta ideia tendo por base os principais eixos da
política externa do Brasil desde a década de 1960.
O discurso oficial brasileiro enuncia a pertença do Brasil a um espaço
regional restrito à América do Sul. Analise a evolução da política externa
brasileira para esta área, tendo em conta as influências norte-americanas
no continente.
As tentativas de integração regional são uma constante na América do Sul.
Identifique os principais processos e analise o papel do Brasil.

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Leituras recomendadas
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Luís Tomé

125

Capítulo 5

Estados Unidos da América

Este capítulo analisa as grandes matrizes que vêm orientando a política


externa dos Estados Unidos da América (EUA), centrando-se nos períodos
de Guerra Fria e da chamada «Nova Ordem Mundial» que se lhe seguiu.
O texto faz o levantamento das principais políticas e estratégias dos EUA,
frequentemente associadas ao nome dos Presidentes em exercício, situando‑as
nos respectivos contextos, procurando identificar objectivos, prioridades e
aspectos definidores, e caracterizando ainda a política externa americana
na actualidade.

Objectivos e elaboração da política externa americana

Enquanto os outros actores se focalizam primeiramente nas regiões


onde ‘residem’, os Estados Unidos, potência proeminente desde o final do
século XIX e única superpotência desde o fim da Guerra Fria, encaram a
política externa à luz das suas aspirações globais e dos seus objectivos:
liderança/hegemonia mundial; segurança dos EUA e dos seus aliados e
parceiros; prosperidade e desenvolvimento com base na inovação e num
sistema económico e comercial internacional livre e aberto; expansão da
democracia, das liberdades e dos direitos humanos; e ordem internacional
estável. Conceber e implementar uma política externa coerente e consistente
na promoção destes objectivos tem demonstrado ser, porém, um exercício
complexo e delicado para Washington, com oscilações e reajustamentos
constantes em resultado, por um lado, das evoluções, transformações e
circunstâncias específicas dos contextos interno e internacional e, por ou-
126
tro, do carácter específico e democrático do sistema político americano e,
portanto, do cruzamento da visão das sucessivas Administrações no poder,
da relação de forças entre os Partidos Democrata e Republicano nas duas
Câmaras do Congresso e dos necessários compromissos entre a Administra-
ção e o Congresso, bem como dos muitos e variados grupos de interesse
e de pressão e, naturalmente, dos calendários eleitorais.
Como é evidente, independentemente das suas percepções e tendências
de base, «todos os Presidentes Americanos têm de proteger os interesses
particulares, e por vezes egoístas, de eleitorados particulares; (…) têm de
dar resposta às reivindicações de vários eleitorados dentro dos Estados
Unidos» (Fukuyama, 2006: 97), tal como têm todos de defender, afirmar e
promover os interesses e valores dos EUA nos palcos regionais e mundial.
Simplesmente, apesar da sua supremacia, os Estados Unidos defrontam‑se
com um mundo sempre complexo e em constante transformação onde não
só não estão em posição de determinar o comportamento de todos os outros
actores como também se deparam com interesses distintos, autónomos e,
frequentemente, contraditórios dos seus aliados e parceiros regionais, o que
exige da Casa Branca uma gestão muito delicada da agenda internacional
americana e dos compromissos internos com o Congresso. Alguns exemplos
são paradigmáticos disto mesmo. Ao findar a I Guerra Mundial, o Presi-
dente Wilson propôs e envolveu‑se na criação da inovadora Sociedade das
Nações (SDN) em que os EUA tomariam parte como membro-permanente
do Conselho; porém, o Congresso não ratificou a adesão dos EUA à SDN.
Mais recentemente, a Administração Clinton (Democrata) empenhou-se na
celebração e assinatura do Protocolo de Kyoto e do Comprehensive Test
Ban Treaty (CTBT) que o Congresso (então, maioritariamente Republicano)
não ratificou e que a Administração W. Bush que se lhe seguiu abando-
naria expressamente. Em Maio de 2008, a Administração Republicana de
W. Bush assinou com a Federação Russa um Acordo de Cooperação em
matéria de energia nuclear para fins civis (um dos denominados «Tratados
123» americanos) que o Congresso, já maioritariamente Democrata, recusou
ratificar. Também o Presidente Obama tem enfrentado os constrangimentos
provocados pelo Congresso mesmo sendo este também maioritariamente
Democrata, como evidenciam os processos em torno das putativas soluções
127
para a crise económica americana e internacional, da reforma do sistema de
saúde americano, do encerramento do presídio de Guantanamo e o destino
dos respectivos prisioneiros, ou das estratégias e dos financiamentos para
os conflitos no Iraque e no Afeganistão.
Na realidade, apesar de todas as Administrações considerarem os objec-
tivos Americanos em política externa «mutuamente reforçadores», estes nem
sempre são conciliáveis, ou são-no muito dificilmente e ambiguamente: nos
últimos anos, por exemplo, a sustentação da primazia/liderança dos EUA,
o incremento dos laços económicos e a expansão da democracia e dos di-
reitos humanos têm demonstrado ser difíceis de conciliar e de implementar
coerentemente na política Asiática dos EUA e, em particular, na relação com
a República Popular da China.
A política externa Americana é, por conseguinte, elaborada em função
do ambiente internacional e das prioridades da Administração em exercício
mas é igualmente o produto da competição e dos equilíbrios entre as várias
tendências que concorrem para a influenciar e determinar, dos wilsonia-
nistas aos neoconservadores, dos isolacionistas aos internacionalistas e aos
intervencionistas: «Esta batalha entre multilateralistas e unilateralistas, muitas
vezes jogada como luta entre o Presidente e o Congresso, levou a uma po-
lítica externa americana de algum modo esquizofrénica» (Nye, 2002: 156).

Na era de Guerra Fria

No final da II Guerra Mundial, os Estados Unidos eram a potência he-


gemónica cabendo-lhes, por isso, o papel principal na reorganização do
sistema internacional para onde transpuseram os seus interesses e valores.
Vencida a guerra, reduziram drasticamente o seu orçamento de defesa e
iniciaram uma rápida e extensa desmobilização militar sem, todavia, come-
terem os mesmos ‘erros’ que tinham cometido após a I GM: não retiraram
completamente nem da Europa nem da Ásia-Pacífico e tornaram-se mem-
bros fundadores da nova Organização das Nações Unidas (ONU) e um dos
cinco membros permanentes do respectivo Conselho de Segurança. Por
esta altura, aquele que parecia vir a ser o principal factor de fricção na
128
política internacional era o direito de autodeterminação, colocando lado a
lado Washington e Moscovo ante os colonizadores europeus. No entanto, as
profundas divergências e a competição entre os EUA e a URSS rapidamente
transformaram o espírito cooperativo em confrontação.
No teatro europeu, a Guerra culminara com o avanço simultâneo dos
exércitos Aliados a partir do Ocidente (Americano, fundamentalmente) e
do Leste (Soviético, essencialmente), funcionando como uma autêntica
tenaz sobre a Alemanha mas que também deixava a Europa automatica-
mente dividida por uma «cortina de ferro». Logo depois, as manobras de
Estaline destinadas a «sovietizar» toda a Europa Central e Oriental levaram
os EUA, em 1947, a enunciar a chamada «Doutrina Truman», a propor a
todos os países europeus um programa de recuperação económica («Plano
Marshall») e a avançar com a política de containment, isto é, «uma política
de firme contenção, delineada para confrontar os russos com um constante
contra‑poder relativamente a todos os sinais de invasão dos interesses do
mundo Livre» (Kennan, 1947: 575) criando, neste quadro e em plena pri-
meira crise de Berlim, em Abril de 1949, a Aliança Atlântica/OTAN. Por seu
lado, os soviéticos proclamaram a «Doutrina Jdanov», criaram o Kominform,
recusaram e obrigaram os seus Estados satélite a recusar o Plano Marshall e
estabeleceram depois o Pacto de Varsóvia (1955). A Guerra Fria começava,
assim, na Europa, epicentro da disputa entre as duas superpotências que
rapidamente se alastrou a todo o globo.
Em relação à Ásia-Pacífico, só com a vitória comunista na China (1949),
a Guerra da Coreia (1950-1953) e o agravar da Primeira Guerra da Indo-
china (1947-1954) é que o perímetro de segurança americano se começou
a expandir. 1 Desde logo, a pressão comunista tornava imprescindível e
urgente substituir a política de ocupação do Japão pela sua ancoragem ao

1 Logo em 1950, os EUA disponibilizavam ajuda significativa aos franceses na Indochina, assina-
vam um Tratado de Assistência Mútua com a Tailândia e, dois dias após a invasão Norte-Coreana do
Sul, o Presidente Truman levava os EUA a entrarem na Guerra da Coreia, ao mesmo tempo que dava
ordens para a 7ª Esquadra Americana proteger Taiwan da China comunista.
«mundo livre»: em 8 de Setembro de 1951, os EUA promoveram o Tratado
de Paz entre as Potências Aliadas e o Japão e assinaram com Tóquio um
Tratado de Segurança bilateral, ambos em São Francisco. Começava, então,
129
a ser implementado o «Sistema de São Francisco», conjunto de alianças
dos EUA na Ásia-Pacífico para conter o comunismo: cerca de uma semana
antes da assinatura daqueles Tratados com o Japão, os EUA firmaram com
as Filipinas um Tratado de Defesa Mútua e com a Austrália e a Nova Ze-
lândia um Tratado de Segurança tripartido (ANZUS); dois anos mais tarde,
e já depois de assinado o Armistício de Panmunjon que pôs fim à Guerra
da Coreia, os EUA celebraram com a Coreia do Sul um Tratado de Defesa
Mútua; em 1954, após os Acordos de Genebra sobre a Indochina, os EUA
assinaram o Tratado de Defesa Colectiva para o Sudeste Asiático ou Pacto
de Manila com a Austrália, Nova Zelândia, Reino Unido, França, Filipinas,
Tailândia e Paquistão, Pacto que no ano seguinte passaria a ter uma estru-
tura político-militar com a criação da Organização do Tratado do Sudeste
Asiático (OTASE/SEATO). A última unidade a integrar esta rede de alianças
foi a República da China/Taiwan, com quem os EUA assinaram um Tratado
de Defesa Mútua, em 2 de Dezembro de 1954. A política de «contenção»
anti-comunista aplicava-se verdadeiramente na Ásia-Pacífico, mas a política
dos EUA em relação à Península Coreana e ao Estreito de Taiwan definia‑se
pela manutenção do status quo – na prática, duas Coreias e duas Chinas.
Evidentemente, quer os pactos do Sistema de São Francisco quer a OTAN
estavam ligados ao sistema global de containment montado pelos EUA e
que incluiria também o Pacto de Bagdade 2 (1955) e ainda muitos outros
países e movimentos igualmente em África e na América Latina. Enquanto
durou a Guerra Fria, o containment anti-URSS foi o conceito orientador de
toda a política externa e de segurança dos Estados Unidos.

2 Baseado no modelo da OTAN, o Pacto de Bagdade foi firmado, em 1955, entre o Iraque, Irão,
Turquia, Paquistão e Reino Unido a fim de promover a cooperação mútua e conter a influência so-
viética no Médio Oriente e na Ásia Meridional. Apesar de a instigarem, promoverem e financiarem,
os EUA somente aderiram ao Comité Militar desta aliança, em Julho de 1958. Inicialmente designada
Middle East Treaty Organization (METO), a organização renomeou-se Central Treaty Organization
(CENTO), em 1959, por ocasião da retirada da aliança do Iraque operada pelo novo regime republi-
cano iraquiano. Verdadeira aliança fracassada, foi dissolvida, em 1979, após a Revolução Islâmica no
Irão e a consequente saída da CENTO.
Entretanto, desde o final dos anos 1950, início dos anos 1960, emergiu
uma «outra guerra fria» entre as duas grandes potências comunistas, a URSS
e a China. Paralelamente, os EUA enterraram-se no ‘pântano do Vietname’
130
ou Segunda Guerra da Indochina. A Guerra do Vietname rapidamente come-
çou a concentrar os recursos americanos, mas a confrontação sino-soviética
também não podia deixar de interessar aos EUA: contudo, as Administrações
Eisenhower, Kennedy e Johnson não a exploraram e só com o advento da
Administração Nixon, no final de 1968, é que os EUA começaram a tirar
partido da cisão entre as grandes potências comunistas, conectando-a à
disputa bipolar e à guerra no Vietname.
A Guerra Fria e a política de containment tinham empurrado os EUA
para um envolvimento universal em nome do anti-comunismo e era esta
política que precisava de ser reconsiderada à luz do trauma do Vietname.
Por isso, o novo Presidente Americano apressou-se a enunciar, em Julho de
1969, na base naval de Guam, no Pacífico, os novos critérios que pautariam
o envolvimento americano. 3 Sem abandonar o containment mas recusando
o espírito de cruzada anti-comunista e baseando-se na mais pura realpolitik,
a Administração Nixon assumiu o «interesse nacional» como preceito orien-
tador da política externa e de segurança dos EUA e também como principal
critério para julgar os adversários desenvolvendo, consequentemente, a po-
lítica de «articulação» (linkage) na direcção da URSS: «A ideia era enfatizar
as áreas em que a cooperação era possível e usar essa cooperação como
alavanca para modificar o comportamento soviético em áreas em que os
dois países se encontrassem em conflito» (Kissinger, 1996: 622). Na visão do
Presidente Nixon e do seu Conselheiro Kissinger seria crucial arranjar um

3 Reflectindo sobre os envolvimentos militares dos EUA desde o fim da II Guerra Mundial e
a situação no Vietname, Nixon (1969) estipulou «três princípios orientadores para a futura política
americana na Ásia: 1) os EUA manteriam todos os compromissos assumidos; 2) providenciaremos um
escudo se uma potência nuclear ameaçar a liberdade de uma nação nossa aliada ou de uma nação
cuja sobrevivência considerarmos vital para a nossa segurança; 3) nos casos envolvendo outros tipos
de agressão, nós forneceremos a assistência militar e económica quando solicitada de acordo com
os nossos compromissos nos tratados. Mas esperamos que seja a nação directamente ameaçada a
assumir a responsabilidade primordial de dar os meios humanos para a sua defesa». Evidentemente,
à luz deste terceiro critério, a ideia de substituir no Vietname os militares americanos pelos muito
frágeis ‘meios humanos’ vietnamitas, ficando os EUA na retaguarda, só poderia conduzir à retirada
americana da Indochina e, consequentemente, à queda do Vietname do Sul, do Laos e do Camboja
para o ‘campo’ comunista.
incentivo forte para a moderação soviética e o funcionamento da articula-
ção, gizado na aproximação à China: «Excluir das opções diplomáticas da
América um país com a dimensão da China significava que a América estava
131
a agir internacionalmente com uma mão presa atrás das costas. Estávamos
convencidos de que o aumento das opções da política externa da América
abrandaria, em vez de endurecer, a posição de Moscovo» (Kissinger, 1996:
629). O desanuviamento com Moscovo e a abertura a Pequim4 eram, portan-
to, as duas faces da mesma moeda, fazendo Washington explicitamente um
convite a cada uma das grandes potências comunistas para se moderarem
e melhorarem as suas relações com os Estados Unidos.
Assim, num curto espaço de tempo, as relações entre Washington e
Pequim evoluíram da hostilidade para uma frente comum na contenção da
ameaça soviética. É certo que a «doutrina Nixon» não livrou os EUA de uma
saída humilhante do Vietname e conduziu a um relativo «recuo» americano
na Ásia Oriental: ao longo dos anos 1970, as sucessivas Administrações
Americanas (Nixon, Ford e Carter) iriam retirar da Indochina, pôr fim ao
relacionamento oficial e à aliança com Taiwan, dissolver a SEATO (em 30
de Junho de 1977), retirar o dispositivo nuclear estratégico da Coreia do Sul
e reduzir os seus contingentes militares na Coreia, no Japão, nas Filipinas
e na Tailândia. Porém, confortados pelo sucesso da «cartada chinesa», os
EUA puderam retirar do Vietname sem deixar a Indochina simplesmente
à mercê do domínio soviético, uma vez que a China Popular tinha todo o
interesse e estava, mais do que nunca, empenhada em conter a URSS nesta
sua região vizinha, como se veria logo a seguir na Terceira Guerra da Indo-
china – opondo, essencialmente, o Vietname, aliado da URSS e o Camboja
dos Khmers Vermelhos, apoiados pela China. Foi, aliás, em plena crise na
Indochina, em 1 de Janeiro de 1979, que os EUA e a China oficializaram
relações diplomáticas.

4 A aproximação à RPC implicava, necessariamente, começar a abrir mão de Taiwan e, em 25


de Outubro de 1971, a AGNU aprovava a Resolução 2758 pela qual a China se tornava na «única
representante legal da China na ONU». O epílogo desta aproximação ocorreu com a viagem que o
próprio Presidente Nixon efectuou à Mainland China, de 21 a 27 de Fevereiro de 1972, no que se
pode considerar como o reconhecimento de facto da RPC pelos EUA: no final desta visita histórica,
a primeira de um Presidente Americano à China, Mao e Nixon assinaram o famoso «Comunicado de
Xangai» que se destinava a orientar as relações sino-americanas no futuro.
Por seu lado, se os EUA e a URSS continuavam adversários irredutíveis,
a «destruição mútua garantida» provocada pelas armas nucleares dissuadia
o conflito militar directo, pelo que ambos tinham de ir além da simples
132
confrontação e construir uma ordem mundial que, na medida do possível,
estipulasse regras acordadas entre as superpotências e impostas a todos os
outros. Esta foi, sem dúvida, uma das grandes motivações para que Moscovo
e Washington se empenhassem no desanuviamento, embora cada uma das
superpotências tivesse outras motivações suplementares para o condomi-
nium.5 Paralelamente, parece inquestionável que a aproximação dos EUA à
China fez acelerar o processo de détente Leste-Oeste. Efectivamente, do final
dos anos 1960 a 1979, regista-se uma vaga de desanuviamento Leste-Oeste
que abriria a porta a toda uma série de iniciativas da maior importância: a
implementação da ostpolitik pela RFA (a partir de 1969), o fim da Guerra
do Vietname (1973-75), o início do processo de paz israelo-árabe (1973
e 1978), o lançamento da Conferência sobre Segurança e Cooperação na
Europa (CSCE) e os Acordos de Helsínquia (1975) ou ainda os múltiplos e
fundamentais acordos e convenções sobre «controlo de armamentos» – do
TNP (1968/70) aos chamados SALT 1 (1972) e SALT 2 (1979), passando pelo
Tratado ABM (1972), a BTWC/BWC (1972), as MBFR (1973) ou o Acordo
Sovieto-Americano Sobre a Prevenção da Guerra Nuclear (1973). Mas tal
como a Guerra Fria não era um conflito normal, a détente também não
era uma paz verdadeira: nenhuma das superpotências abandonou os seus
propósitos hegemónicos, continuando a competir e a confrontar‑se «por
procuração», da América Latina (Chile e Nicarágua, por exemplo) a África

5 Os EUA precisavam de espaço para respirar, a fim de se libertarem do trauma do Vietname, a


que se somavam outros problemas: a crise política interna na sequência do escândalo de Watergate
que levaria à resignação do Presidente Nixon, em 1974; a subida vertiginosa dos défices orçamental e
comercial americanos; e a primeira grande crise económica internacional pós-II Guerra Mundial des-
poletada pela conjugação da desvalorização do dólar e a suspensão da sua convertibilidade em ouro,
fazendo ruir o edifício das paridades fixas que vinha desde os Acordos de Bretton Woods, e do cho-
que petrolífero na sequência da guerra Israelo-Árabe do Yom Kippour, em Outubro de 1973. Por seu
lado, a URSS tinha também motivos fortes para procurar uma trégua devido ao conflito sino-soviético
e às tensões e dissidências no seio do seu bloco (que levara, por exemplo, à proclamação da Doutri-
na Brejnev e à intervenção do Pacto da Varsóvia contra um dos seus membros, a Checoslováquia, em
1968), mas também porque a sua economia se revelava cada vez menos eficiente comparativamente
às economias capitalistas, efeito agravado pela corrida aos armamentos. No fundo, ambas as super-
potências pareciam querer ‘recuperar fôlego’ para uma decisiva etapa de confrontação.
(incluindo as ex‑colónias portuguesas), passando pela Europa, pelo Médio
Oriente ou pela Ásia-Pacífico (incluindo a «aceitação» americana da invasão
de Timor-Leste pela Indonésia), com a pressão comunista a acentuar-se.
133
Essas ambições hegemónicas conduziriam a um novo período de grande
tensão EUA-URSS. Em 1979, três acontecimentos foram particularmente de-
cisivos para o fim da détente: a invasão vietnamita do Camboja, a invasão
soviética do Afeganistão e a chamada «crise dos Euromísseis». 6 Entrava‑se,
assim, na fase de «guerra fresca» Leste-Oeste, clima que foi decisivo para a
eleição Presidencial de Ronald Reagan, em 1980, com uma retórica invul-
garmente agressiva contra a União Soviética que apelidou de «Império do
Mal». No essencial, a «Doutrina Reagan» recuperou a estratégia de roll-back
de Foster Dulles segundo a qual os EUA deviam activamente forçar o recuo
soviético de onde já estava instalado, admitindo todo o tipo de acções e
em apoio de todo o tipo de «forças da liberdade» anti-comunistas, do So-
lidariedade na Polónia aos Contras anti-Sandinistas na Nicarágua ou aos
mujahadeen no Afeganistão: afinal, «apoio a freedom fighters é auto-defesa»
(Reagan, 1985). Além disso, a Administração Reagan lançou um espectacular
desafio aos soviéticos com a sua Iniciativa de Defesa Estratégica (IDE), vul-
go «guerra das estrelas»: a URSS bem invocou o Tratado ABM de 1972, mas
via-se confrontada com a iminência de uma nova competição tecnológica
e militar que, de facto, já não tinha condições para acompanhar.
A par da pressão americana, a retórica conciliatória do novo líder soviético,
M. Gorbatchov, a partir de 1985, e a «ofensiva da paz» soviética 7 puseram
termo à confrontação EUA-URSS. As cimeiras entre Gorby e os líderes Oci-
dentais sucederam-se a um ritmo sem precedentes, nomeadamente, com
os Presidentes Americanos Ronald Reagan e George Bush (eleito no final

6 A «crise dos Euromísseis» resultou da instalação, na Europa de Leste, dos mísseis nucleares
soviéticos SS 20 de curto e médio alcance e a que a OTAN respondeu, em Dezembro de 1979, com a
famosa «dupla decisão»: a instalação de mísseis americanos idênticos (Pershing) na Europa Ocidental
se, entretanto, os soviéticos não desmantelassem todos os seus.
7 A União Soviética reduz, drasticamente, o seu orçamento e panóplia militar; recua no Terceiro
Mundo, fardo impossível de suportar, suprimindo ou reduzindo sensivelmente o auxílio aos mo-
vimentos e regimes aliados, por exemplo, em Angola, Moçambique, Etiópia, Nicarágua, Coreia do
Norte, Síria, Cuba ou Vietname; retira os seus militares do Afeganistão e leva o Vietname a retirar do
Camboja; estabelece, significativamente, relações diplomáticas com o Vaticano (1990) e Israel (1991).
de 1988), sendo uma das mais significativas a de Malta, em Dezembro de
1989, onde Gorbatchov e Bush declararam solenemente o «fim da Guerra
Fria». As transformações operaram-se de forma alucinante, a começar pela
134
Europa: em Novembro de 1989, o Muro de Berlim era desfeito por uma
população eufórica, abrindo caminho à reunificação alemã concretizada
menos de um ano depois; num curtíssimo espaço de tempo, os regimes
comunistas desaparecem na Europa; em 1991, o COMECOM e o Pacto de
Varsóvia eram oficialmente desmantelados e a URSS desfazia-se para dar
lugar a 15 novos Estados independentes. Sem os constrangimentos inerentes
à disputa bipolar, a ONU ganha um novo dinamismo e a Guerra do Golfo
confirmava a emergência de uma Nova Ordem Mundial em que soviéticos
e americanos, finalmente, ‘desbloqueavam’ o Conselho de Segurança per-
mitindo aos EUA liderar a comunidade internacional na punição do Iraque
que tinha invadido o Kuwait.
Entretanto, o massacre de Tiannanmen, em Junho de 1989, prejudicou
gravemente as relações EUA-China: ao terminar a Guerra Fria, a imagem
da China como um país que empreendia reformas e servia de contrapeso à
URSS era subitamente substituída pela de um regime altamente repressivo,
hostil à democracia e violador dos direitos humanos, contrariando o espí-
rito e as expectativas da «nova ordem mundial». A reacção dos EUA, pela
mão da Administração Bush, foi especialmente dura mas também extraor-
dinariamente ambivalente: por um lado, liderou a campanha internacional
contra o regime de Pequim e a imposição imediata de sanções contra a
China, apoiou os «dissidentes» chineses, suspendeu a cooperação militar
com Pequim e aumentou o volume de armamentos entregues a Taiwan;
por outro, promoveu uma imediata «diplomacia secreta» mantendo aberto o
diálogo bilateral, preservou os laços económicos (incluindo o estatuto de
Nação Mais Favorecida à China, não sem um aceso debate no Congresso)
fazendo com que o intercâmbio comercial rapidamente voltasse a uma
certa normalidade e manteve a China envolvida na cooperação económica
regional (incluindo o apoio à adesão chinesa na APEC, em 1991) e na re-
solução de certos problemas regionais e internacionais (como o processo
de paz Cambojano e a Guerra do Golfo). De qualquer forma, no momento
em que o eixo Washington-Moscovo-Pequim se dissolvia, as relações entre
as duas grandes potências vencedoras da «dupla guerra fria» entravam, de
facto, numa nova fase.

135

Política externa dos EUA no período pós-Guerra Fria

Coube à Administração George Bush (1989-1993) a tarefa de começar a


reinventar a política externa dos EUA no fim da Guerra Fria. Em 1990, na
Assembleia-Geral da ONU, o Presidente Americano expunha a sua visão
sobre a «Nova Ordem Mundial», baseada numa «nova parceria de nações»
(Bush, 1990). No ano seguinte, na ressaca da Guerra do Golfo, novamente
perante a AGNU, Bush (1991) assegurava que «os EUA não têm intenção de
lutar por uma Pax Americana… procuramos uma Pax Universalis construída
sobre responsabilidades e aspirações partilhadas». Um documento do Pen-
tágono enunciava, contudo, outra ambição: «O nosso principal objectivo é
prevenir a emergência de um novo rival (…) A nossa estratégia deve agora
recentrar-se em evitar a emergência de qualquer potencial competidor global
futuro» (The New York Times, 1992), naquilo que passaria a ser conhecido
por «Doutrina Cheney-Wolfowitz». 8
Num contexto de profunda transformação, os EUA optam imediatamente
por manter o sistema de alianças herdado da confrontação bipolar, embora
redimensionando o seu dispositivo no estrangeiro, com uma nova região
e uma nova potência a emergirem nas prioridades e preocupações de Wa-
shington por razões económicas e de segurança: a Ásia-Pacífico e a China.
Paralelamente, ganhava ênfase o impulso americano para usar o seu enorme
hard power em missões de soft power, 9 bem como para o intervencionismo
humanitário: em Dezembro de 1992, o Presidente Bush autorizava as forças

8 Concebido pelos Secretário da Defesa Dick Cheney e Sub-Secretário Paul Wolfowitz, o docu-
mento em causa era um draft interno do Pentágono de Fevereiro de 1992 preparatório do Defense
Planning Guidance 1994-1999. Perante a polémica e as duras críticas do Congresso, a versão defi-
nitiva acabaria por ser revista e «suavizada».
9 Por exemplo, na Operation Sea Angel, em 1991, soldados americanos assistiram os esforços
internacionais no Bangladesh na recuperação de um desastroso ciclone; no mesmo ano, durante a
Operation Provide Comfort, soldados das forças especiais americanas salvaram cerca de 400.000 cur-
dos da fome iminente nas montanhas do Norte do Iraque e do Sudeste da Turquia.
americanas a darem início à Operation Restore Hope na Somália, liderando
a missão das Nações Unidas (UNITAF).
Criticando a Administração Bush por ter uma «mentalidade de Guerra
136
Fria», o Presidente Bill Clinton (1993-2001) procurou desenvolver uma po-
lítica externa mais adequada ao que chamou New World, articulando uma
nova National Security Strategy of Engagement and Enlargement (The Whi-
te House, NSS, 1996 e 1999) tendo por objectivos estratégicos «promover
a nossa segurança com forças armadas preparadas para lutar e com uma
representação efectiva além fronteiras; promover a democracia além fron-
teiras» (NSS, 1996: Preface), e promovendo o internacionalismo dos EUA
enquanto «nação indispensável» e peacemaker. 10 Por outro lado, para esta
Administração Democrata eleita pela ênfase no vector económico, a Ásia
Oriental assumia uma importância acrescida – só os défices comerciais
americanos face ao Japão e à China representavam mais de dois terços do
total do défice comercial dos EUA no ano em que Clinton tomou posse.
Baseada nas noções de engagement e enlargement, destacam-se cinco
vectores fundamentais da política externa e de segurança da Administração
Clinton: 1) a manutenção do sistema de alianças (ou mesmo a sua expansão,
como revelam a transformação e o alargamento da OTAN e da omnipresença
militar dos EUA englobadas, todavia, numa abordagem mais abrangente ou
presence plus; 2) o envolvimento nos assuntos e nas organizações regionais
e internacionais e o desenvolvimento de novos quadros multilaterais sem,
contudo, avançar na segurança multilateral institucionalizada na Ásia-Pacífico
temendo que isso diluísse a importância das alianças bilaterais dos EUA na
região; 3) a prioridade aos laços económicos e a expansão do liberalismo

10 Daí, por exemplo, a liderança na elaboração do Comprehensive Test Ban Treaty (CTBT), tendo
sido os EUA o primeiro país a assiná-lo, em Setembro de 1996; o activismo do Vice-Presidente Al
Gore na protecção ambiental e em prol do Protocolo de Quioto de 1997 que o Presidente Clinton
assinou nesse mesmo ano (e que, tal como o CTBT, o Congresso se recusou ratificar); o apoio ame-
ricano aos Objectivos do Milénio adoptados pela ONU, em 2000, reconhecendo a íntima associação
entre Segurança e Desenvolvimento; ou o desenvolvimento da ideia de «ingerência humanitária»
quando em causa estão violações massivas dos direitos humanos e/ou valores universais, retórica
que seria exercitada na Somália (onde os EUA se mantiveram até retirarem sob o manto do fiasco,
em 1994) e, sobretudo, no Haiti (1994), na Bósnia (1995) e no Kosovo (1999), as duas últimas com a
OTAN, se bem que no Kosovo sem o consentimento do CSNU, mas não, por exemplo, aquando do
genocídio no Ruanda, em 1994-1995.
económico e comercial; 4) a promoção e expansão dos direitos humanos e
universais, incluindo pela consagração do «direito de ingerência humanitá-
ria», expresso na liderança da intervenção da OTAN na Bósnia e, sobretudo,
137
no Kosovo; e 5) a procura de engagement com todos os actores regionais,
incluindo antigos ou novos virtuais rivais como o Vietname, a Coreia do
Norte, a Rússia e, em particular, a China. Foi neste quadro que Clinton fez,
em 1998, uma longa e sem precedentes visita de 9 dias à China, sem passar
antes pelo Japão ou pela Coreia do Sul, manifestando o desejo de desenvol-
ver com Pequim uma «parceria estratégia construtiva». Todavia, a ressurgente
China continuou a ser encarada pelo Congresso e pelos americanos em geral
mais como um rival estratégico do que um parceiro cooperativo: em Janeiro
de 1999, o Congresso fez publicar a versão não classificada do polémico
U.S. National Security and Military/Commercial Concerns with the People’s
Republic of China; 11 no ano seguinte, o Congresso solicitava em forma de
lei que o Pentágono passasse a elaborar e a submeter-lhe um relatório anual
sobre «O Poder Militar da China».
A verdade é que a estratégia Clintoniana se revelou extraordinariamente
ambivalente, contemplando aspectos similares às Administrações Republica-
nas: a aspiração de «primeiro, e acima de tudo, devemos exercer liderança
global»; o envolvimento selectivo, «focando nas ameaças e oportunidades
mais relevantes aos nossos interesses e aplicando os nossos recursos onde
podemos fazer a maior diferença»; a noção de que muitos dos interesses dos
EUA «são melhor alcançados como líder de uma coligação ad hoc formada
em torno de um objectivo específico… através da formação de coligações
com nações que partilham os nossos princípios»; ou ainda a predisposição
para «agir sozinhos quando esse é o curso mais vantajoso, ou não há alter-
nativa» (referências do NSS, 1996: Cap. II). Além disso, mesmo atribuindo
uma maior importância à relação segurança-desenvolvimento-direitos hu-
manos e às «ameaças transnacionais», Clinton assumiria que «a mais provável

11 Este documento, também conhecido por Cox Report, descreve as actividades chinesas em
busca de tecnologia de ponta e acusa Pequim de se envolver em actividades proliferantes e espio-
nagem industrial.
ameaça futura à nossa existência é… o recurso a armas de destruição em
massa por um estado pária ou grupos terroristas» (1999).
Emergindo em contraposição à política Clintoniana, a Administração Ge-
138
orge W. Bush (2001-2009) sobrevaloriza o interesse nacional e a liderança
mundial dos Estados Unidos como princípios orientadores, muito influenciada
por ‘políticos pensadores’ que reapareceram em postos destacados12 e think
tanks ‘inspiradores’ como o Project for the New American Century (PNAC).
Por conseguinte, o Presidente W. Bush começou por cultivar mais as rela-
ções com os aliados regionais dos EUA do que o engagement com virtuais
adversários. Por outro lado, inicialmente, o ímpeto desta Administração
apontava para um certo «isolacionismo», perfilhando um envolvimento dos
EUA nos assuntos mundiais e regionais muito selectivo e somente quando
estivessem directamente em causa interesses americanos.
Os atentados terroristas do 11 de Setembro, contudo, ocorridos menos de
oito meses depois de W. Bush ter tomado posse, levaram esta Administração
Republicana a declarar a «Global War on Terror» (GWOT) (Bush, 2001) e a
aprovar uma nova estratégia de segurança que, embora fosse abrangente,
multidimensional e multi-instrumental, incluía vectores particularmente con-
troversos: a possibilidade dos EUA efectuarem acções preemptivas (actos
militares antecipatórios) «mesmo se a incerteza permanecer relativamente
ao tempo e lugar do ataque inimigo» (The White House, NSS, 2002: Cap. V)
consagrando, assim, a inovadora doutrina que muitos consideram de «guerra
preventiva»; a intenção de montar coligações de vontade; e a predisposição
para, se necessário, os EUA actuarem sozinhos.
Em nome da «guerra contra o terror», a Administração Bush remilitarizou
a política externa americana, como demonstram o aumento das despesas
militares dos EUA, ultrapassando os 4% do PIB; as intervenções militares
no Afeganistão (Outubro de 2001) e no Iraque (Abril de 2003); o abandono
unilateral do Tratado ABM (2002); a pressão coerciva contra os Estados pária

12 De que se destacam, entre outros, o Vice-Presidente Dick Cheney, o Secretário da Defesa Do-
nald Rumsfeld, o Secretário de Estado Collin Powell, o Deputy Defense Secretary Paul Wolfowitz, o
Deputy Secretary of State Richard Armitage, a National Security Advisor e depois Secretária de Estado
Condoleezza Rice, o Assistant Secretary of State for East Asia James Kelly ou o US Trade Represen-
tative Robert Zoellick.
e regimes tiranos (sobretudo, Iraque, Irão e Coreia do Norte e, também,
Sudão e Myanmar); a intensificação da cooperação militar, anti-terrorista
e contra-proliferação de ADM com aliados e parceiros; a criação de no-
139
vos diálogos e parcerias estratégicas; etc.. Paralelamente, todavia, também
montou uma vasta série de novas «coligações de vontade»; 13 expandiu os
laços económicos e comerciais bilaterais dos EUA através da celebração de
múltiplos acordos, incluindo Trade and Investment Framework Agreements
(TIFAs), Bilateral Investment Treaties (BITs), Free Trade Agreements (FTAs)
e Generalized System of Preferences (GSP) para países considerados elegí-
veis; instigou ‘revoluções coloridas’ pro-democráticas; estabeleceu climate
partnerships bilaterais (com 15 países e organizações, entre 2001 e 2008);
e aumentou significativamente a Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD)
de menos de 10 mil milhões USD, em 2000 para quase 27 mil milhões USD,
em 2008, voltando a colocar os EUA na posição de maior doador mundial
de APD desde 2001 – embora numa percentagem do PIB inferior a outros
doadores e muito abaixo dos compromissos para os Objectivos do Milénio
de 0.7% do PIB.
No contexto pós-11/09, a Ásia assumiu uma nova centralidade estratégica,
para os EUA, propondo-se a Administração Bush manter «parcerias robustas
apoiadas por uma postura de defesa avançada que apoia integração econó-
mica através da expansão do comércio e investimento e da promoção da
democracia e direitos humanos» (NSS, 2006: Cap. VIII). Essa centralidade
seria, aliás, visível, por exemplo, na reforma que a Administração iniciou
no sentido de aumentar a coordenação na política asiática entre os De-
partamentos de Estado e da Defesa ou de reforçar as respectivas unidades
asiáticas ou, e sobretudo, no apreciável reinvestimento americano na Ásia:

13 De que constituem exemplos as coligações montadas para as intervenções no Afeganistão e


no Iraque e outras, muito mais amplas, para as subsequentes fases de estabilização; o Quarteto para
o Médio Oriente (EUA, Rússia, UE e ONU), estabelecido em 2002; a Container Security Initiative
(CSI), lançada em 2002; a Middle East Partnership Initiative (MEPI), no final de 2002; a Proliferation
Security Initiative (PSI), em 2003; as Conversações a 6 sobre a Coreia, em 2003; a Global Initiati-
ve To Combat Nuclear Terrorism, em Julho de 2006; a Merida Initiative, em 2007, juntando EUA,
México e países da América Central com vista a combater o narcotráfico, o crime transnacional e
o terrorismo; a coligação para resolver a crise em torno do programa nuclear do Irão envolvendo,
fundamentalmente, os EUA, o G3/UE (Reino Unido, França e Alemanha), a Rússia, a AIEA e a ONU
(CS e Secretário-Geral).
além do reforço da presença militar dos EUA em virtude das intervenções no
Afeganistão e no Iraque, de envolver os aliados regionais nas suas iniciativas
e coligações de vontade ou de tornar o Japão, a Coreia do Sul, as Filipinas,
140
a Tailândia e a Austrália parceiros de contacto da OTAN, desenvolveu novas
parcerias estratégicas, por exemplo, com a Mongólia (que contribuiu com
mais de 1000 militares para as coligações no Iraque e no Afeganistão) ou
com a Indonésia (maior país muçulmano do mundo e a quem Bush levantou
totalmente as restrições à venda de armamentos, em 2005, que haviam sido
impostas por Clinton, em 1999, para pressionar Jacarta a aceitar a autode-
terminação timorense); aumentou a pressão contra os ‘regimes tiranos’ da
Coreia do Norte e do Myanmar; promoveu, em 2003, as Conversações a 6
(EUA, China, Japão, Rússia, Coreia do Norte e Coreia do Sul) para gerir a
crise em torno do programa nuclear norte-coreano); firmou novas áreas de
comércio livre com Singapura e a Coreia do Sul – iniciando negociações
para o mesmo fim com a Tailândia e a Malásia – e Trade and Investment
Framework Agreements (TIFAs) com o Brunei, a Tailândia, a Malásia, o Cam-
boja, a ASEAN e o Vietname; estabeleceu climate partnerships com o Japão,
a Austrália, a China, a Coreia do Sul, a Índia e a Rússia; e reorientou o
sentido da APD Americana, fazendo da Ásia a principal região destinatária –
acolhendo mais de metade do total – em vez de África.
Por outro lado, ainda que preservando como objectivos dos EUA «manter
a força militar acima de qualquer desafio» e «moldar as escolhas de países
atravessando momentos cruciais» (Bush, 2002), a Administração W. Bush
mostrou-se particularmente activa no «desenvolvimento de agendas para
acção cooperativa com outros centros fulcrais do poder global» com o pro-
pósito declarado de «promover um equilíbrio de poder favorável à liberdade»
(NSS, 2002: Caps. I e VIII), incluindo a Rússia, a Índia e, sobretudo, a China
em relação à qual abandonou a retórica inicial de rival estratégico para a
incentivar a ser uma parte responsável nos assuntos mundiais.
Eleito numa lógica de ruptura com a política de W. Bush e num contexto
profundamente marcado pela crise económica, as guerras assimétricas no
Afeganistão e no Iraque e uma imagem desgastada dos EUA internacional-
mente, o Presidente Barak Obama (desde Janeiro de 2009) já fez História ao
tornar-se o primeiro negro a desempenhar o cargo e provocando uma onda
de empatia e expectativas no mundo sem precedentes nos recém-empossados
Presidentes dos EUA, juntando no seu Gabinete ‘transpartidário’ o que pode
ser descrito como uma dream team mas também uma team of rivals. 14
141
Os objectivos gerais e interesses definidos pela Administração Obama,
conforme enunciados no mais importante documento publicado por esta
Administração até agora, incluem

The security of the United States, its citizens, and U.S. allies and partners;
A strong, innovative, and growing U.S. economy in an open international
economic system that promotes opportunity and prosperity; Respect for
universal values at home and around the world; and An international order
advanced by U.S. leadership that promotes peace, security, and oppor­tunity
through stronger cooperation to meet global challenges (NSS, 2010: 6).

A fim de se demarcar da Administração predecessora, e fortemente in-


fluenciada por outros ‘políticos pensadores’ como Joseph Nye ou Richard
Armitage, esta Administração proclama pautar-se pela conjugação de todos
os instrumentos do poder americano, hard e soft, usando o chamado smart
power: «temos de ter o que tem sido chamado smart power, o conjunto de
todos os instrumentos à nossa disposição», nas palavras da Secretária de
Estado Hilary Clinton (2009) na sua audição de confirmação no Congresso.
Paralelamente, baseado na convicção de que «o mundo partilha uma hu-
manidade e segurança comuns», na recusa «da falsa dicotomia entre os nossos
valores e a nossa segurança» e na predisposição «de ouvir e conversar com os
nossos adversários de modo a promover os nossos interesses» (Obama/The
White House-Foreign Policy), este Presidente proclama A New Strategy for a
New World em que «o ponto de partida para essa acção colectiva será o nosso
envolvimento com outros países» (The White House, NSS, 2010: 3). Mais, na
nova estratégia, «os EUA devem renovar a sua liderança mundial através da

14 Efectivamente, o Executivo Obama inclui personalidades reputadas e influentes como Joe Biden,
Vice-Presidente e seu antigo concorrente político; Hillary Clinton, Secretária de Estado e sua principal
rival nas primárias do Partido Democrata; Robert Gates, que transitou da Administração Bush como
Secretário da Defesa; Timothy F. Geithner, Secretário do Tesouro e antigo Presidente do Federal Reserve
Bank of New York; ou Steven Chu, Secretário da Energia e galardoado Nobel da Física.
construção e promoção de bases que nos fortaleçam e aumentem a nossa in-
fluência. A nossa segurança nacional depende da capacidade da América para
usar os atributos nacionais únicos, tal como a segurança global depende de
142
uma liderança Americana forte e responsável» (The White House, NSS, 2010:
6). O uso do smart power, o envolvimento alargado e a liderança mundial dos
EUA, são, assim, pedras basilares da política externa de Obama: a ordem para
encerrar a prisão de Guantanamo Bay, a retirada gradual do Iraque, a abertura
para dialogar e estabelecer entendimentos com adversários tradicionais como
Cuba, Venezuela, Myanmar ou Irão, a tentativa de colocar os EUA na lideran-
ça global da protecção ambiental e das energias renováveis, o empenho na
concretização dos Objectivos do Milénio ou a surpreendente predisposição
para os EUA liderarem um processo conducente a um «mundo livre de armas
nucleares» (objectivo que muito contribuiu para que Obama fosse galardoado
com o Prémio Nobel da Paz 2009) demonstram, na prática, essa tentativa de
liderar pelo exemplo e a ruptura face à Administração americana anterior.
Em certos aspectos, porém, parece haver mais continuidade do que
ruptura. Desde logo, ainda que expressando uma concepção de segurança
abrangente e completa, Obama sublinha a importância da presença militar
e das alianças dos EUA quer como factor de estabilidade nas várias regiões
e no mundo quer como instrumento crucial na promoção dos interesses e
valores americanos e, por outro lado, também enfatiza que «não há maior
ameaça ao povo americano do que armas de destruição massiva, particular-
mente o perigo da procura deste armamento por extremistas violentos e a sua
proliferação noutros Estados» (NSS, 2010: 4). Além disso, embora destacando
«que o poder, num mundo interdependente, já não é um jogo de soma nula»
(NSS, 2010: 3), esta Administração mantém-se empenhada no reforço de laços
com o que denomina «outros centros primordiais de influência – incluindo
a China, Índia e Rússia, bem como nações crescentemente influentes, como
o Brasil, África do Sul, e Indonésia – de modo que podemos cooperar em
temas de preocupação bilateral e global» (NSS, 2010: 3).
Relativamente à Europa, onde goza de grande empatia, esta Administra-
ção afirma que «a nossa relação com os nossos aliados europeus permanece
central ao envolvimento dos EUA no mundo, e um catalisador de acção
internacional» (NSS, 2010: 41), mantendo a Aliança Atlântica como principal
quadro referenciador das relações transatlânticas, mas mostrando igualmente
uma certa decepção que vinha de trás com os Aliados europeus por não
contribuírem como os EUA desejam com efectivos para o Afeganistão. Oba-
143
ma mantém também a linha de apoio americano ao processo integrador da
UE, incluindo o desenvolvimento da Política Comum de Segurança e Defesa
(PCSD), bem como ao desenvolvimento dos laços OTAN-UE, ainda que em
2010 só tenha aceitado participar numa Cimeira EUA-UE fazendo-a coincidir
com a Cimeira da OTAN a realizar em Lisboa, em Novembro. Por seu turno,
esta Administração confirma a percepção de crescente centralidade da Ásia-
-Pacífico para os EUA: o primeiro líder estrangeiro recebido por Obama na
Casa Branca foi o Primeiro-Ministro do Japão, Taro Aso; pela primeira vez em
quase 50 anos, a primeira viagem oficial ao estrangeiro de um/a Secretário/a de
Estado Americano, Hillary Clinton, foi à Ásia Oriental; e autodenominando‑se
«o primeiro Presidente do Pacífico» – recordando o facto de ter nascido no
Hawai e de ter vivido na Indonésia quando criança –, Obama sublinhou na
sua primeira visita oficial à região que os EUA são uma «nação do Pacífico»
e que «temos interesse no futuro desta região, porque o que acontece aqui
tem efeito directo nas nossas vidas» (Obama, 2009b).
Também no que concerne à China, esta Administração dá mostras de a
continuar a encarar como central na política externa: o papel atribuído à
China na recuperação da crise económica global ou na protecção ambiental
faz as reuniões do G-20 parecerem antes um «G2+18»; na sua primeira viagem
oficial à Ásia Oriental, em 2009, Obama passou três dias na China e apenas
um no Japão, um na Coreia do Sul e outro em Singapura (na Cimeira da
APEC). Aliás, mais claro não podia ter sido o Presidente Americano quan-
do, na abertura do primeiro encontro U.S.-China Strategic and Economic
Dialogue, em 27 de Julho de 2009, se referiu à relação EUA-China como
«tão importante como qualquer outra relação bilateral no mundo» (Obama,
2009a). Similarmente, todavia, a Administração mantém a tradicional prática
americana de ambivalência em relação às questões de Taiwan e do Tibete:
poucos meses depois de reafirmar, em Pequim, que «os EUA respeitam, a
soberania e integridade territorial da China (…) e reafirmam o compromisso
para com a política de ‘uma China’» (Obama, 2009a), Obama anunciou, no
final de Janeiro de 2010, a venda de armamentos a Taiwan no valor de 6
mil milhões USD e, no mês seguinte, recebeu o Dalai Lama na Casa Branca,
satisfazendo pressões internas, mas irritando Pequim.

144

Uma política «cocktail»

É famosa a observação atribuída a Lord Salisbury segundo a qual «o mais


comum erro político é manter-se preso a carcaças de políticas mortas». Esta
tendência parece evidenciar-se na estratégia dos Estados Unidos na nova
ordem uma vez que, apesar das diferenças entre as sucessivas Administrações,
todas preservaram uma robusta presença militar americana no estrangeiro
(incluindo a OTAN na área euro-atlântica e o Sistema de São Francisco na
Ásia-Pacífico) como primeira fonte da proeminência americana e da segu-
rança e estabilidade internacional e, por outro lado, reorientaram até certo
ponto o containment para a China. Neste sentido, os EUA comportam-se
como uma potência status quo.
Estes vectores representam, contudo, apenas parte de uma estratégia global
americana muito mais vasta e diversificada. Efectivamente, a fim de promoverem
os seus objectivos e de maneira a ultrapassarem os seus dilemas, internos e
externos, os EUA vêm implementando uma autêntica estratégia cocktail que
consiste, genericamente, numa amálgama de várias políticas e estratégias:
a) hub and spokes – posicionando-se no centro do sistema coordenando
as actividades e interacções dos outros actores e surgindo como a nação
indispensável e líder na gestão dos assuntos locais, regionais e globais;
b) primacy – empregando todos os instrumentos do seu poder, hard
e soft, no sentido de garantir a hegemonia e a liderança global;
c) containment – contendo a ascensão, o poder e a influência de outras
potências para um nível que possa representar uma ameaça à supremacia
americana e, sobretudo, opondo-se à reemergência de uma potência virtu-
almente rival (em particular, a China) e/ou à criação de um eixo estratégico
hostil (eventualmente, envolvendo a China, Rússia e Índia mais o Irão,
Myanmar e Coreia do Norte);
d) engagement – mantendo-se sempre envolvidos na generalidade dos
assuntos e organismos regionais e cultivando laços quer com aliados e
parceiros, quer com virtuais rivais. Ainda, variantes desta como o selective
engagement, seguindo uma ordem de prioridades estabelecida com base
nos interesses nacionais americanos e nos desafios e oportunidades mais
145
relevantes, e o comprehensive engagement, pretendendo que esse envolvi-
mento seja abrangente, completo, multi-instrumental e multi-dimensional;
e) balancing – procurando manter os equilíbrios geopolíticos regionais
balanceando, em particular, a Rússia pós-soviética e, sobretudo, a rápida e
poderosa ressurgência da China, com base nas parcerias e capacidades tanto
americanas como dos seus aliados e parceiros e promovendo o estatuto e
o papel de actores ‘contra-peso’ como a UE (Reino Unido, Alemanha, Itália,
Polónia, Países Bálticos, Ucrânia, Geórgia, etc.), o Japão, a ASEAN, a Coreia
do Sul, a Índia e a Austrália. Ciclicamente, praticando a variante off-shore
balancing, aceitando a ascensão de outras potências e mantendo um re-
lativo distanciamento que torne possível limitar a sua intervenção apenas
a situações em que os interesses vitais americanos estejam directamente
postos em causa;
f) enlargement – promovendo a expansão do liberalismo económico,
democracia e estado de direito, comércio livre, direitos humanos, segurança
humana, enfim, valores universais confundidos, frequentemente, com valores
americanos;
g) carrot and stick – recompensando ou punindo determinadas con-
dutas de outros Governos, através de incentivos às boas práticas com
reconhecimento político e ajuda económica segundo critérios prévios de
elegibilidade, ou impondo/ameaçando impor sanções e medidas restritivas
e até dispondo-se à intervenção militar; e
h) grand facilitator – arbitrando e mediando as relações regionais mais
sensíveis, gerindo disputas, crises e conflitos e promovendo interdependên-
cias e cooperações regionais e inter-regionais.

Considerações finais

Os EUA recorrem a todos os elementos dos seus hard power e soft


power, combinando o enunciado smart power, desde as capacidades e om-
nipresença militares à ajuda ao desenvolvimento, passando pela influência
política, diplomática e económica, o auto-proclamado ‘exemplo moral’ ou
ainda utilizando o seu dispositivo militar em missões de soft power – auxílio
146
humanitário e ajuda de emergência em resposta a catástrofes naturais, por
exemplo. Utilizam também todos os canais possíveis, procurando que se
complementem o unilateralismo, o bilateralismo, o trilateralismo e o multi-
lateralismo, tanto institucionalizado como ad hoc e quer intergovernamental
quer não-governamental ou track 2, apoiando ainda os esforços tendentes à
construção das comunidades Americana, Transatlântica e do Pacífico desde
que, naturalmente, englobem os próprios EUA. Onde todas as Administrações
Americanas se têm mostrado mais reticentes é, ao contrário do que fazem
no teatro europeu, na institucionalização da segurança multilateral tanto no
Continente Americano como, sobretudo, na Ásia-Pacífico, receando que isso
possa reduzir a centralidade do sistema americano de alianças e parcerias
bilaterais e, logo, o papel e o estatuto regional dos EUA.
A ‘estratégia cocktail’ Americana é ainda o resultado do chamado hedging,
baseado numa postura que além de ser cautelosa, difusa, omni-direccional e
multi-instrumental contempla ainda outras duas características essenciais, a
flexibilidade e o pragmatismo, presentes em todas as Administrações Ameri-
canas na nova ordem. A Rússia e, em particular, a China são, naturalmente,
os objectos centrais do hedging americano.
Finalmente, o idealismo/messianismo e a realpolitik são dois traços que
se combinam na política externa dos EUA, exemplarmente expressos numa
alocução do então Conselheiro para a Segurança Nacional da Administração
Clinton, Anthony Lake (1993): «temos de promover liberdade no mundo (…)
porque esta reflecte valores que são Americanos e universais (…) apenas
um factor fundamental pode determinar se os EUA devem actuar de modo
multilateral ou unilateral, e esse são os interesses americanos (…) A questão
simples em cada momento é: o que funciona melhor?».
Questões para análise
De que forma o sistema político Americano condiciona a política externa
Americana?
147
Explique em que consistiu e como foi implementada a política de containment
dos EUA durante a Guerra Fria.
Analise as principais diferenças e similitudes em matéria de política externa
entre as várias Administrações Americanas nas duas últimas décadas.
Enuncie as razões que justificam a aparente crescente centralidade da Ásia-
- Pacífico na política internacional dos EUA.

Fontes na internet
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Leituras recomendadas
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The White House (2010) «The National Security Strategy of the United States of America», Washington, D.C..
Maria Raquel Freire

149

Capítulo 6

F e d e r a ç ã o R u ss a

Este capítulo traça as principais linhas de política externa da União das


Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e depois da Federação Russa, iden-
tificando linhas de decisão e actuação em contextos diferenciados que se
revelam fundamentais para a compreensão das suas dinâmicas de política
externa. O texto segue um alinhamento histórico dado o processo de tran-
sição que a desagregação da URSS pressupôs e as implicações em matéria
de política externa que o final da Guerra Fria e a redefinição geográfica,
política e socioeconómica da Rússia exigiram.

Processo de formulação e decisão em política externa: centralismo


e autoridade

Na URSS o processo de formulação e decisão de política externa estava


concentrado nos líderes do Partido Comunista, sendo que o governo apenas
ratificava as decisões aí tomadas, conferindo-lhes legitimidade. O papel dos
líderes foi sempre fundamental na União Soviética e na Rússia pós-soviética
dado o carácter dirigista do sistema, como analisado. O contexto de Guerra
Fria e o modelo ideológico de base à política Marxista-Leninista condicio-
navam fortemente a política externa, bem como as políticas domésticas,
assentes em princípios de centralismo e autoridade. O centralismo dirigista
inerente ao modelo permitia um processo de decisão e implementação
unificado, prosseguindo o interesse da União num cenário de nenhuma
abertura a críticas ou pressões anti-linha do Partido. A militarização da
Guerra Fria constituiu um factor determinante na orientação das políticas
150
do país no contexto bipolar. Com o final da Guerra Fria a política externa
altera-se radicalmente dada a alteração profunda quer a nível interno, com a
desagregação do bloco soviético e a redimensionação da área pós-soviética,
quer externo, com o final da bipolaridade que havia caracterizado a ordem
internacional por mais de cinco décadas. A nova Constituição da Federação
Russa institucionaliza as principais competências em matéria de política ex-
terna no presidente, apoiado por uma estrutura burocrática, onde as elites
vão alcançar influência substancial.
A política externa russa é essencialmente da responsabilidade do presi-
dente, incumbido da definição das linhas de actuação de base subjacentes
ao posicionamento da Federação Russa nos assuntos internacionais (The
Constitution of the Russian Federation, 1993, art.80). O executivo está encar-
regue da implementação da política externa (ibid, art.114), sob supervisão
presidencial, especialmente no contexto de governação centralizada exis-
tente. De facto, este é um dos elementos de continuidade mais vincado,
a par do peso histórico da ‘grande Rússia’, como factor determinante na
orientação das suas políticas.
A institucionalização do ruling vertical (autoridade vertical), termo cunha-
do pelas elites russas para designar um sistema de governo hierárquico
assente em princípios de subordinação e num papel de domínio do ramo
executivo (Shevtsova, 2005: 7), com apoio da elite política próxima do Pre-
sidente, tem assegurado controlo político e social na Rússia pós-soviética.
Os lobbies económicos e na área da segurança e defesa, essencialmente,
têm-se confundido nos meandros dos grandes grupos económicos estatiza-
dos ou quasi-estatizados. Quanto a grupos de pressão e opinião, estes têm
tido expressão limitada num contexto de governação centralizada, onde o
activismo cívico se mantém sob escrutínio apertado das autoridades. De
facto, o controlo de actividades e vozes dissidentes, práticas comuns nos
tempos dos czares e sob o regime Soviético, são nos dias de hoje comuns
na Rússia. «A Rússia é ainda melhor explicada por uma rede de relações
clientelistas e patrimonialistas. Esta é uma das razões pelas quais a Rússia
pós-Soviética tem tanta dificuldade em gerar o seu próprio sentido de co-
munidade cívica» (Hosking, 2003: 10).
O processo de construção identitária ainda em curso na Rússia, e cujas
151
influências europeias e asiáticas são historicamente conhecidas, tem marcado
a própria delineação da política externa, onde a tensão entre as dimensões
ocidental e oriental tem sido visível, em particular no período pós-Guerra
Fria. A consubstanciação da identidade russa pós-soviética passa não só pela
linhagem sociológica europeia ou asiática, mas também pela identificação
ideológica já não soviética de orientação comunista, mas também não demo-
crática no entendimento ocidental, o que tem implicado o desenho de uma
identidade muito própria – uma nova identidade num contexto diferenciado.
As divisões internas na Rússia, com os Euro-Atlantistas a favorecer ligações
mais próximas aos Estados Unidos da América e Europa, os Eurasianistas
a olharem o cenário a leste para alianças estratégicas, incluindo a China
e Índia, e a estratégia nacionalista a centrar-se no quadro interno, procu-
rando a afirmação do poder russo com base no legado imperial do país,
na sua força política, influência e recursos económicos, mostram, de forma
simplificada, a multi-dimensionalidade do discurso de política externa (ver
Porter, 1996: 121; Lowenhardt, 2000: 167-174).
Deste modo, a política externa, bem como as políticas internas, conju-
gam-se numa lógica de articulação multi-nível, com heranças importantes e
padrões de formulação e decisão de política externa que se vão ajustando
quer a contextos quer a momentos, como analisado nas próximas secções.

O período soviético

Os primeiros anos da Guerra Fria foram marcados por uma crescente des-
confiança entre os dois blocos, prosseguindo políticas de desenvolvimento
assentes em pressupostos antagónicos: o capitalismo ocidental versus o co-
munismo soviético. Além do mais, eram notórios os esforços de salvaguarda
de influências externas de áreas de interesse, em particular no que toca a
Europa Central e de Leste, definida como central na estratégia hegemónica
soviética, que entendia a presença dos EUA na Europa como uma ameaça às
suas ambições. O factor ideológico tornou-se um elemento fundamental nas
políticas soviéticas, expresso em políticas sociais, económicas e de segurança,
revelando o carácter co-constitutivo das dimensões doméstica e externa. As
152
acções de Estaline contra movimentos comunistas alternativos, como na China
e Jugoslávia, constituem sinal da ameaça que a instabilidade externa podia
causar, bem como um reconhecimento das fragilidades do bloco soviético,
incluindo em termos económicos. Isto resultou na redução de contactos com
o mundo ocidental, e proporcionou uma postura fechada e introspectiva, me-
lhor capaz, de acordo com Estaline, de responder à necessidade de projecção
de uma imagem de força da União Soviética, independentemente dos seus
problemas internos. E, neste contexto, o desenvolvimento de capacidades
militares e o redireccionamento de recursos económicos para o esforço de
militarização eram ilustrativos da estratégia de afirmação no contexto bipolar.
Além do mais, em finais dos anos 1940, as acções soviéticas manifestavam já
a sua vontade de manter controlo sobre uma área alargada, bem para além
dos estados satélite. A Guerra da Coreia (1950-1953) é disso exemplo, com
a máquina ideológica soviética a fornecer incentivos para a ofensiva de Ho
Chi Minh na Indochina contra os franceses. Estas acções faziam parte de um
entendimento mais lato de que a angariação de apoios para a causa ideológica
conferiria poder e estatuto adicional à URSS na sua lógica de afirmação e
expansão global. Estaline apoiou o líder da Coreia do Norte Kim Il Sung nos
seus esforços de fortalecer o controlo da República Democrática da Coreia e
eventualmente alargar o seu poder à República da Coreia (sul), deste modo
fazendo pressão sobre a área de influência norte-americana. O resultado deste
envolvimento não foi bem sucedido, e as lições aprendidas desta experiência
demonstraram a verdadeira possibilidade de confrontação armada entre dois
grandes poderes nucleares, mas também que os seus líderes podiam optar
pela contenção (Gaddis, 2005: 61).
O mandato de Khrushchev, que se sucede a Estaline, com o prossegui-
mento da ‘des-Estalinização’ vai marcar um novo curso na política soviética,
com início em 1956, contra o ‘culto da personalidade’ e os procedimentos
internos de colectivização forçada. Isto significou uma nova direcção nas
políticas soviéticas que implicou não só a definição de novos objectivos
económicos, mas também uma abordagem política diferenciada resultante
também do posicionamento pós-Coreia. Esta nova abordagem definiu a
«coexistência pacífica» como o reconhecimento da capacidade de destruição
nuclear mútua (Sakwa, 1998), e o entendimento de que o conflito violento
153
entre capitalismo e comunismo deveria ser substituído por confrontação
económica e ideológica. O objectivo soviético era alcançar e ultrapassar o
poderio económico norte-americano nos anos 1980, o que lhe permitiria
prosseguir o objectivo ideológico de expansão comunista.
Procurando contrapor o poder e influência do bloco ocidental, em Maio
de 1955 foi criada a Organização do Pacto de Varsóvia como contrapeso à
Aliança Atlântica (OTAN). Esta estrutura militar centrada na União Soviética,
incluía estados satélite como a Albânia, Bulgária, Checoslováquia, Hungria,
Polónia e Roménia. Seguia uma estrutura de comando unificada sob controlo
de Moscovo, e tornou-se uma extensão das forças militares soviéticas na
sua área de influência de modo a desempenhar funções várias, incluindo o
monopólio incontestado sobre as forças do Pacto, competição relativa quanto
à representatividade militar dos estados membros, e legitimação da presença
de tropas soviéticas nos territórios dos estados membros do Pacto. A criação
desta estrutura também pretendeu enviar um sinal ao bloco ocidental relativo
às capacidades militares soviéticas, enquanto simultaneamente procuran-
do uma resposta estrutural aos receios da URSS relativamente a perda de
controlo face a dinâmicas de contestação internas, incluindo centralização
económica, comando militar e estratégias de controlo. Esta tensão sublinha
as dificuldades enfrentadas no seio do bloco, mas é também reveladora da
forma como os líderes soviéticos entendiam estas como limitando a sua
capacidade para actuar globalmente.
Contudo, a década de 1950 foi marcante em termos científicos e tecno-
lógicos. Neste período é registado o desenvolvimento da primeira bomba
termo-nuclear, de mísseis balísticos inter-continentais, e de tecnologia es-
pacial avançada com o lançamento do Sputnik, o primeiro satélite artificial.
Estes avanços tecnológicos, apesar dos vários falhanços das experiências de
colectivização e da excessiva concentração na produção industrial pesada,
conferiram à liderança soviética confiança para prosseguir um papel activo
dentro e fora da sua área de influência. O sucessor de Khrushchev, Leonid
Brejnev, cunhou a denominada Doutrina Brejnev, espelhando esta realidade
de um envolvimento mais activo. A União Soviética actuaria face a qualquer
tentativa de minar o poder central de Moscovo, fosse através de tentativas de
mudança revolucionária do regime ou quaisquer esforços para abandonar o
154
bloco (Checoslováquia, Hungria e Polónia, ver d’Encausse, 1983: 159-218).
Deste modo, e apesar do registo de autonomia constante dos estatutos da
União, os estados do bloco não poderiam desafiar a liderança em termos
ideológicos ou materiais, nem a abordagem soviética centralizada à gover-
nação das diferentes regiões. A doutrina foi alargada para além dos estados
satélite, como demonstrado na intervenção soviética no Afeganistão em
1979. Contudo, Moscovo confrontou-se com uma China desconfortável com
a leitura ideológica soviética, resultando em interpretações diferenciadas da
via para o comunismo, e no diferendo ideológico sino-soviético de finais
da década de 1950, inícios dos anos 1960.
A União Soviética procurou reposicionar o seu estatuto de grande po-
tência na década de 1970 após problemas no seio do bloco e a tensão que
marcou a década de 1960, com a construção do Muro de Berlim, e em par-
ticular a crise dos mísseis de Cuba (1962). A elevada tensão resultante da
crise chamou a atenção para a necessidade de uma nova estratégia face ao
reconhecimento da destruição mútua assegurada, e a insegurança associada
a esta capacidade militar deu lugar ao diálogo, que por seu turno permitiu
passos concretos na negociação de acordos de limitação de armamento.
Exemplos incluem o Tratado de Interdição Parcial de Testes Nucleares (1963),
o Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares (1968), e o Acordo de
Limitação de Armas Estratégicas (1972), que iniciou as conversações SALT
(Strategic Arms Limitation Talks). Estes desenvolvimentos são ilustrativos
de dois aspectos fundamentais: por um lado, a necessidade de condições
domésticas favoráveis para avançar os objectivos de política externa, su-
blinhando o reconhecimento da parte dos líderes soviéticos da existência
de constrangimentos internos; e por outro, o entendimento de que para
manter o reconhecimento internacional desejado, a URSS precisava abrir-se
e demonstrar capacidade de diálogo face ao exterior, de modo a alterar a
sua imagem de poder iliberal.
Neste contexto de détente, em 1975 foi assinada a Acta Final de Helsínquia
que estabeleceu a Conferência sobre Segurança e Cooperação na Europa (CSCE)
(HFA, 1975). O objectivo deste organismo político era fomentar o diálogo entre
os dois blocos, com contactos diplomáticos a alcançar um nível substancial
na altura, e permitindo um fórum de contacto que apesar da sua estrutura
155
informal e das suas reuniões com periodicidade indeterminada, fazia a ponte
entre o leste e o ocidente. Mas rapidamente o contexto se deteriorou e na
década de 1980 não houve cimeiras bilaterais URSS-EUA, estes últimos não
participaram nos Jogos Olímpicos de Moscovo de 1980 e, em 1984, foi a vez
dos soviéticos boicotarem a sua participação nos Jogos de Los Angeles. Em
meados da década de 1980, não só os conflitos políticos se adensavam, mas
também a situação da economia soviética se tornava insustentável. A guerra
no Afeganistão, desfavorável aos soviéticos, ainda pressionou mais recursos
parcos: «entre 1986 e 1990 o défice enquanto parte do PIB da União Soviética
oscilava entre 5.7% e 9.1%, atingindo 12-14% em 1991» (Kaufman e Hardt,
1993: 47). A conjugação de vários factores apontava para a necessidade de
reformas estruturais, que Gorbachev encabeça e cujo desfecho, para além
do esperado, leva à desagregação da URSS e ao fim da rivalidade bipolar.

A política externa em transição e a delineação da nova Rússia

Mikhail Gorbachev foi um político central na transformação da União


Soviética após o desencanto dos anos de Leonid Brezhnev, e das curtas
lideranças de Yury Andropov e de Konstantin Chernenko (1982-1985).
Gorbachev concentrou-se no processo de mudança que entendia como
necessário à modernização e crescimento da URSS (Sakwa, 1998: 72, 75-
76). Contudo, as políticas da reestruturação (perestroika) da economia, de
aceleração (uskorenie) e de abertura (glasnost), indicando um curso refor-
mista que visava a transformação política e o desenvolvimento económico,
quer a nível interno quer na política externa, não foram capazes de alterar
práticas profundamente enraizadas, afastando-se dos seus objectivos iniciais.
A política externa de Gorbachev reflectia o seu curso reformista a nível
interno, acompanhado pela vontade de aproximação ao ocidente, em termos
externos. Esta política de aproximação ao ocidente foi expressa em medidas
concretas, como a assinatura em Dezembro de 1987 com os EUA do Tra-
tado sobre Forças Nucleares de Alcance Intermédio; o anúncio da retirada
soviética do Afeganistão em 1988; e uma política de abertura e proximidade
ao leste. Internamente, qualificou o sistema económico socialista e o papel
156
de gestão política operado pelo Partido Comunista como desadequados à
nova realidade que a União experimentava.
Pôs assim em marcha os princípios da dimensão humana contidos na
Declaração de Helsínquia de 1975 (incluindo, por exemplo, a promoção de
liberdades civis e discussão pública), encontrando no entanto oposição do
aparelho burocrático que claramente entendia estas medidas como ameaça
à sua autoridade e poder, agravado pelos movimentos nacionalistas que por
todo o espaço pós-soviético exigiam independência. Contudo, revelou‑se
tarefa difícil operacionalizar as reformas estruturais profundas a nível po-
lítico e económico necessárias à consolidação do crescimento no seio da
União. Como acelerador deste processo, Gorbachev procurou consolidar o
seu poder, para que a sua capacidade de decisão e implementação fosse
reforçada, mas foi incapaz de desenvolver a maior parte dos seus projectos
reformistas face à crescente resistência com que se deparava – o aparelho
do partido permaneceu um forte desafiador da perestroika.
No entanto, e apesar destes obstáculos, Gorbachev conseguiu levar a
cabo reformas político-administrativas fundamentais, como o estabeleci-
mento do Congresso dos Deputados do Povo em 1989, sob a sua liderança,
e com maior poder de decisão que o Soviete Supremo. De facto, foi eleito
um novo Soviete Supremo pelo novo Parlamento e Gorbachev conseguiu
aqui reunir amplo poder, permitindo terminar com o monopólio do Partido
Comunista da União Soviética enquanto única organização política legal.
Gorbachev permitiu uma política externa diferente, mais democrática para
com o leste – especialmente os estados-satélite desde a Segunda Guerra
Mundial –, bem como mais flexível relativamente às repúblicas constituin-
tes da URSS. Estas mudanças profundas permitiram o fim da Guerra Fria
e conduziram à queda da URSS. «Foi Gorbachev que simbolizou a trans-
cendência das revoluções progressistas e que assim permitiu à Rússia o
regresso às políticas ‘normais’, um tipo de políticas que não incluía uma
fronteira emancipatória. O sujeito da emancipação acabou por não ser
o povo no sentido dos sujeitos soberanos da democracia, mas uma elite
transformadora guiada pelos princípios de liderança e modernização das
elites para as populações» (Sakwa, 2005: 272).
A queda da URSS teve implicações várias no reordenamento a diferentes
157
níveis que se seguiu. Tratou-se do fim de uma ideologia unificada sustentada
em princípios Marxistas-Leninistas que permitiam coesão social; implicou a
perda de identidade, agregada durante décadas sob a planificação e gover-
nação centralizada do Partido Comunista; pôs em marcha um processo de
transição para um modelo de governação que a Rússia nunca antes havia
experimentado; alterou fronteiras e exigiu redefinição de relações com uma
vizinhança instável, lado a lado com a redefinição do papel e lugar da Rússia
na Europa e no mundo. Este foi um processo de mudança complexo com
impacto claro na definição de uma política externa diferenciada no contexto
pós-Guerra Fria. A Federação Russa assumiu muitas das responsabilidades da
extinta URSS, incluindo o controlo do arsenal nuclear soviético, bem como
representações em fora internacionais, como as Nações Unidas, incluindo
um lugar permanente no Conselho de Segurança.
Na Rússia da transição, a política externa reflectiu os constrangimentos
que as políticas russas enfrentavam internamente. Muitas das dinâmicas até
então reprimidas surgem agora de forma desarticulada, revelando os limites
inerentes ao processo burocrático centralizado que havia vigorado durante
décadas. O pluralismo associado ao modelo democrático em experimentação
revelou-se sinónimo de pressão e desordem. A incapacidade de estrutura-
ção de princípios delineadores assentes em processos discutidos e plurais,
acabou por levar à tendência de centralização dos processos de decisão e
implementação de políticas, incluindo a política externa, e a um crescente
autoritarismo, claramente visíveis na Rússia de hoje.

A primeira década pós-Guerra Fria: Boris Ieltsin

Boris Ieltsin chegou à política sob anuência de Gorbachev na altura


em que o último se tornou presidente da URSS (1985). Apesar de uma
trajectória sinuosa, em 1989 foi eleito para o Congresso dos Deputados do
Povo e tornou-se mais tarde Presidente do Parlamento russo. Nesta altura,
Ieltsin e Gorbachev prosseguiam objectivos incompatíveis, com o primeiro a
enfrentar hostilidade interna para com medidas que se revelaram difíceis e
não recompensadoras, e o último a criticar duramente Gorbachev por actuar
158
lentamente na reforma do sistema, exigindo um ritmo mais acelerado e medi-
das mais resolutas. Face à situação de tensão vivida, agravada pela sucessão
de declarações de independência de antigas repúblicas, foi convocado um
referendo para aferir sobre o futuro da União enquanto federação de repú-
blicas soberanas igualitárias, cujo resultado foi favorável à preservação da
URSS enquanto entidade agregadora, mas não aglutinadora, das diferentes
repúblicas. Na Rússia uma outra questão foi colocada a escrutínio: se a elei-
ção Presidencial se devia manter como processo selectivo e fechado, ou ao
invés, decorrer a nível nacional com participação alargada das populações.
O referendo da União de Março de 1991 foi favorável a eleições pre-
sidenciais directas, que culminaram na vitória de Boris Ieltsin, marcando
claramente o descontentamento generalizado com o processo de transição
iniciado por Gorbachev. A tentativa falhada de golpe de estado em Agosto
de 1991, criticando os falhanços da perestroika e glasnost, sinalizava então
uma União Soviética fragmentada que oficialmente cessou a sua existência
a 25 de Dezembro.
Dias antes, a 8 de Dezembro de 1991, foi criada a Comunidade de Estados
Independentes (CEI) por um acordo assinado entre a Rússia, Bielorrússia
e Ucrânia, com base no princípio da igualdade soberana dos seus estados
membros. O objectivo era constituir um mecanismo agregador que permitisse
continuidade nas unidades constituintes da União Soviética, agora sob uma
nova designação. Contudo, a criação da CEI não evitou que as repúblicas
seguissem o seu próprio curso, independentemente da sua adesão à nova
organização. Actualmente, a CEI, bastante fragilizada no que toca o nível
de coesão interna, é essencialmente um fórum de diálogo.
Eleito como a nova face da reforma, Ieltsin não foi bem sucedido no pro-
cesso de transição democrática, tornando-se progressivamente dependente e
ávido de poder, centralizando autoridade e deixando pouco espaço de manobra
para visões alternativas em formação na nova Rússia. Apesar de acordo quanto
ao pacote alargado de reformas necessárias, quer a nível institucional quer
económico e social, a transição de um modelo de organização e desenvolvi-
mento socialista, planificado e centralizado, não foi simples. A privatização de
empresas russas, entendida como forma de invalidar o regresso a um sistema
comunista, beneficiou essencialmente a elite próxima de Ieltsin. «Os velhos
159
oficiais soviéticos apoiavam enfaticamente [Ieltsin] enquanto tomavam conta
de bens públicos – desde o pequeno comércio à indústria petrolífera –, e se
transformavam em capitalistas ao mesmo tempo que a inflação dizimava os
rendimentos da população comum» (Daniels, 2008: 33). A nível externo, os
críticos da postura europeísta promovida por Gorbachev apelaram a um en-
foque da política externa na Eurásia, enquanto os nacionalistas pressionaram
para a concentração das decisões políticas nas questões internas, para que
a Rússia pudesse reunir condições económico-sociais e políticas essenciais à
sua projecção externa de forma sustentada no que era definido como o seu
«estrangeiro próximo», leia-se espaço pós-soviético.
Os primeiros anos de governação são conhecidos como período romântico
quando boas relações com o ocidente são privilegiadas e é prosseguida uma
política de não-ingerência no espaço pós-Soviético. A Doutrina Sinatra – «I’ll
do it my way» – permitiu às antigas repúblicas consolidarem o seu curso
de independência, muitas das quais pela primeira vez, dado que apesar da
autonomia que formalmente gozavam no quadro da União, esta equivalia
na realidade a uma relação de submissão face ao poder central do Partido
Comunista em Moscovo. A definição da Rússia como aliado natural da Eu-
ropa será evidenciada na procura de integração em instituições ocidentais,
solicitando a adesão ao Conselho da Europa (concretizada em Fevereiro
de 2006), aderindo à Parceria para a Paz no contexto da OTAN ( Junho de
1995), e aprofundando relações com a Comunidade Europeia, com base
na assinatura do Acordo de Parceria e Cooperação (APC) de 1994 (apenas
ratificado em 1997), a par do estreitamento de relações com Washington.
No entanto, a esperada ajuda financeira internacional chegou tardiamente
e revelou-se insuficiente, sendo que a condicionalidade associada acabou
por gerar sentimentos anti-ocidentais e uma exigência interna de mudan-
ça, essencialmente promovida pelos grupos nacionalistas e comunistas. As
críticas sobre a ingerência ocidental nos assuntos russos, em particular no
que toca o tratamento das minorias russas fora do país (leia-se espaço pós-
-soviético), aumentaram o descontentamento e levaram as autoridades de
Moscovo a adoptarem uma política mais interventiva. Note-se, no entanto,
o cariz reactivo desta opção.
Na sequência destes desenvolvimentos, Ieltsin aprovou um novo conceito
160
de política externa em Abril de 1993, reflectindo já o tom reactivo ao crescente
desencanto com a opção ocidental e aos baixos benefícios resultantes dessa,
levando à equação de democracia com caos, oportunismo e corrupção. A vi-
zinhança próxima tornou-se foco de atenção de Moscovo, tendência esta que
se manteve até aos nossos dias. Referências ao ex-espaço Soviético incluem
o uso de expressões como «interesses vitalmente importantes», constituindo
uma «primeira prioridade» e tornando-se de «importância fundamental», e
reflectindo também uma política mais equilibrada entre ocidente e oriente.

… A Federação Russa, apesar da crise que atravessa, permanece uma


grande potência em termos do seu potencial, da sua influência no curso
dos acontecimentos mundiais e da responsabilidade que assume como
resultado disso. É responsável não só pela nova ordem mundial que
emergiu após o colapso do campo socialista, mas especialmente pela
criação de um novo sistema de relações positivas entre os estados que
faziam parte da União Soviética, oferecendo a garantia de estabilidade
nestas relações (Foreign Policy Concept, 1993).

Mais tarde, em Novembro, Ieltsin anunciou o documento plasmando a


nova doutrina militar russa, identificando as principais linhas de política
militar, o cariz não ameaçador dos meios militares russos (nucleares e não
nucleares), e a identificação de fontes de instabilidade existentes ou poten-
ciais, bem como de eventuais ameaças. A doutrina afirma que os «interesses
vitais da Federação Russa de modo algum colidem com a segurança de outros
estados e são assegurados no quadro de relações interestaduais equitativas
e mutuamente benéficas» (Russian Military Doctrine, 1993). O novo con-
ceito de política externa e a doutrina militar reforçam o interesse nacional,
a interconexão próxima entre a política e os militares, e a vontade de po-
sicionar a Rússia enquanto actor fundamental nas relações internacionais.
A partir de 1993, e apesar das dificuldades associadas, o curso de reafir-
mação tornou-se claro na orientação política do Kremlin: reafirmar o papel
da Rússia como actor influente, em particular em termos regionais. Este
objectivo foi prosseguido através de influência e poder político, pressão
político-económica e presença militar dissuasora no espaço pós-Soviético,
161
para descontentamento de algumas destas repúblicas. Como garante da es-
tabilidade na sua área de vizinhança, a Rússia assumiu-a como de interesse
estratégico nacional onde ingerências externas não eram bem acolhidas.
Desde 1995 esta abordagem consolidou-se, com a definição inicial de uma
política externa multi-vectorial pelo Kremlin. Em meados dos anos 1990,
a política externa russa encontrava-se traçada em torno de dois círculos
principais: um círculo mais restrito revestido de primazia que incluía as
repúblicas ex-soviéticas, e outro mais alargado, envolvendo o ocidente
(Europa e EUA) e a Ásia, embora inicialmente não enquanto dimensões de
relevância paralela, com a primeira a dominar a agenda. Até ao final da
década pós-Guerra Fria esta tendência foi reforçada.
Após as eleições de 1995, Yevgeni Primakov, um líder pragmático, assumiu
o Ministério dos Negócios Estrangeiros. Conhecido como o «Eurasianista»,
recalibrou a dimensão oriental como peça fundamental nos interesses de
política externa russos. Procurou marcar também o descontentamento russo
face a algumas políticas ocidentais, em particular a questão da OTAN. As
relações tortuosas de maior ou menor proximidade ao ocidente, o relacio-
namento nem sempre fácil com as novas repúblicas independentes, e a
prossecução do objectivo de reconhecimento da Rússia enquanto potência
internacional marcaram os anos de Ieltsin, não pela sua capacidade de
gestão de interesses e oportunidades, mas antes pela sua incapacidade de
formulação e implementação de políticas coesas e claramente orientadas
para os objectivos máximos da política externa russa, nomeadamente a
promoção do interesse nacional.

A política externa de Vladimir Putin e Dmitry Medvedev

Enquanto presidente da Rússia entre 2000 e 2008, Putin definiu a política


externa do país como multi-vectorial e multipolar. Os principais documentos
adoptados no início do seu primeiro mandato sublinham o potencial desta-
bilizador de uma «estrutura unipolar do mundo com o domínio económico e
poder dos Estados Unidos», a CEI como área de importância estratégica e a
dimensão leste (Ásia-Pacífico) como uma região relevante na política exter-
162
na de Moscovo (National Security Concept 2000; Russian Military Doctrine
2000; Foreign Policy Concept 2000). Assim, a Rússia procura uma política
externa equilibrada onde a procura de pólos múltiplos tem por objectivo
diversificar aliados e permitir a alteração de relações privilegiadas numa
procura constante de contra-peso e primazia. A fórmula multi-vectorial
ganha nova dimensão com Putin.
O 11 de Setembro adicionou um novo elemento a este desenho da
política externa: uma nova ordem internacional sob primazia dos Estados
Unidos. Putin ofereceu o seu apoio à luta global contra o terrorismo, e
as vozes críticas ocidentais face ao desrespeito pelos direitos humanos e
liberdades fundamentais na Rússia, e em particular na República da Che-
chénia, foram quase silenciadas. Além do mais, a realização concreta de
que a Rússia não podia fazer muito face a desenvolvimentos inevitáveis,
como o alargamento da UE e da OTAN, levaram a que a Rússia alterasse o
seu discurso. «As mudanças na política externa russa desde 11 de Setem-
bro, assim, baseiam-se em cálculos de prioridade e interesse, onde o risco
se distingue da ameaça e as necessidades reais estão separadas de falsas
ambições» (Lynch, 2003: 29-30).
Com um olhar realista sobre o interesse nacional e as prioridades de política
externa, o chamado «pragmatismo nacionalista» (Light, 2003: 48), a projecção
de poder e curso afirmativo de Vladimir Putin assentam numa ordem interna
estável e em crescimento económico derivado essencialmente das receitas
do petróleo e gás natural. Como o Ministro dos Negócios Estrangeiros Sergei
Lavrov afirmou, «a política externa russa hoje é tal que pela primeira vez
na sua história, a Rússia está a começar a proteger o seu interesse nacional
usando as suas vantagens competitivas» [geopolítica da energia] (RFE/RL,
2007). Contudo, o crescimento da Rússia entre 2000 e 2008 não escondeu as
fragilidades que o país enfrenta face a um sistema económico demasiada-
mente dependente dos recursos energéticos, visíveis na crise do Outono de
2008. No entanto, um contexto interno favorável permitiu a Putin uma política
externa assertiva no espaço CEI e para além deste, demonstrando o seu des-
contentamento face a uma série de acontecimentos, como o alargamento da
OTAN, o projecto de instalação de equipamentos relacionados com o escudo
de defesa anti-míssil em território polaco e checo, ou as pressões da União
163
Europeia para assinatura da Carta Energética, entendida como não coincidente
com os interesses russos. A não renovação do APC no quadro das relações
com a UE, e a retirada unilateral do Tratado sobre Forças Convencionais na
Europa (Tratado CFE), são exemplo da demonstração de desagrado face a
um conjunto de desenvolvimentos entendidos como hostis à projecção de
poder e influência russos. Paralelamente, a consubstanciação da cooperação
no âmbito da Organização de Cooperação de Xangai, com especial relevân-
cia para a China, incluindo a realização de vários exercícios militares, surge
como factor de contenção da primazia norte-americana, não escondendo o
mesmo tipo de exercício face à China. Formas várias de a Rússia prosseguir
o seu curso de afirmação internacional, contestando de forma mais activa
acções que entende como contrárias aos seus interesses. Uma postura mais
assertiva a que Dmitry Medvedev vai dar continuidade.
A eleição de Dmitry Medvedev como presidente da Rússia (Março 2008),
implicou linhas de continuidade aos alinhamentos de política externa defi-
nidos por Putin. Medvedev apresentou em Setembro de 2008 o que definiu
como os cinco pressupostos de base que informam a política externa. Estes
incluem o primado do direito internacional; uma ordem internacional multi-
polar, novamente sublinhando os limites da unipolaridade e o contra-peso
à primazia norte-americana; uma política não confrontacionista e o não
isolamento da Rússia através do prosseguimento de relações de amizade
na Europa, EUA e com outros estados (note-se o contexto pós-guerra na
Geórgia); a protecção dos cidadãos russos independentemente da localiza-
ção das diásporas, mantendo o discurso nacionalista; e o reconhecimento
de áreas de influência, nomeadamente as áreas de fronteira descritas como
«regiões prioritárias» (Reynolds, 2008). Estes princípios estão expressos no
documento de política externa de 2008, bem como têm tradução, num tom
mais acutilante, na nova doutrina militar aprovada em Fevereiro de 2010
(Russian Military Doctrine, 2010; Foreign Policy Concept, 2008).
Medvedev trouxe ainda uma nova abordagem aos temas económicos.
Uma mudança muito necessária, expressa numa política de diversificação
de investimentos, e no desenvolvimento de outras áreas sectoriais (não-
-energéticas) de forma a ultrapassar uma excessiva concentração nos recursos
energéticos. Esta excessiva dependência de um sector económico tornou a
164
economia russa extremamente vulnerável, demonstrando a necessidade de
ajustes estruturais para evitar flutuações inesperadas nos preços do petróleo
e do gás, com consequências directas no desempenho e resultados da eco-
nomia russa. Aliás, a política de investigação, inovação e desenvolvimento
tecnológico tem sido referida como um novo vector na política externa rus-
sa, ao permitir não só a consolidação de desenvolvimentos internos, como
também a promoção de cooperação com parceiros externos, em diferentes
áreas sectoriais.
Estes princípios sintetizam as linhas fundamentais de política externa
que se foram consolidando na Rússia pós-soviética, sublinhando no en-
tanto questões fundamentais relativamente à guerra na Geórgia de Agosto
de 2008, e em particular às leituras desta. A intervenção russa na Geórgia
teve lugar num contexto internacional com contornos de dissensão cla-
ros, como referido. A Rússia aproveitou a oportunidade para demonstrar
o seu descontentamento face a um conjunto de acções que descreveu
como provocadoras, não só da parte da república da Geórgia, mas tam-
bém e em grande medida, dos seus aliados ocidentais. Estas incluem, por
um lado, um alinhamento de política externa na Geórgia pro-ocidental,
reforçado após a revolução rosa, e cuja determinação sempre desagradou
a Moscovo. Por outro lado, a possibilidade em discussão de alargamento
da OTAN a países como a Geórgia e Ucrânia, os avanços do projecto de
defesa anti-míssil e o bloqueio nas conversações para a renegociação do
APC, com as discussões a seguirem um curso que a Rússia entende como
contrário aos seus interesses, entre outros, pesaram na decisão. Com a
intervenção armada na Geórgia, Moscovo demarcou as linhas relativas a
áreas de influência e interferência, enfraquecendo uma Geórgia cujo curso
pro-soviético de desalinhamento era há muito entendido como provocador;
reforçando a sua política de contenção dos EUA na Eurásia; e sublinhando
o seu reposicionamento no sistema internacional como grande potência.
De facto, em 26 de Agosto de 2008, por decreto presidencial, Medvedev
reconhece a independência das duas repúblicas, a Ossétia do Sul e a
Abcázia, formalizando um status quo entendido como consonante com os
interesses russos.
Apesar da radicalização da tensão nas relações com a Europa e os EUA
165
após a intervenção armada na Geórgia, rapidamente as relações foram
normalizadas quer nos contextos bilaterais quer no âmbito multilateral,
com a retomada de conversações no quadro da UE relativamente a um
novo documento refundador da parceria, quer no quadro da OTAN com a
retomada das sessões do Conselho OTAN-Rússia. Esta normalização pro-
gressiva, enquadrada também na reset policy promovida pelo presidente
Obama, tem dado lugar a um contexto mais favorável. A assinatura em
Abril de 2010 do novo Tratado START, que vem substituir o Tratado de
1991, sobre redução de armas estratégicas, é demonstrativa de progresso.
Os EUA e a Rússia combinados detêm cerca de 90% do arsenal nuclear
mundial, pelo que o acordo relativo a uma redução nos arsenais nuclea-
res, inspecções conjuntas e troca de informação, constitui um momento
fundamental na construção de confiança. Apesar de pender ratificação,
este é um primeiro passo de um longo caminho. A adicionar à dimensão
nuclear, note-se que a anterior proposta de instalação de um escudo de
defesa anti-míssil na Europa (Polónia e República Checa), como referido,
foi revista pelo presidente Obama, que propõe a instalação de sistemas
interceptores em navios de guerra norte-americanos no Mediterrâneo,
com bases terrestres móveis eventualmente após 2015. Este será um tema
debatido na Cimeira da OTAN em Lisboa, em Novembro de 2010, tendo
sido a Rússia formalmente convidada a participar nas discussões. De novo,
este tipo de entendimento e a presença do presidente russo na Cimeira da
OTAN em Lisboa, constituem sinais de que a cooperação é possível, e de
que certamente os discursos inflamados sobre uma nova guerra fria, aca-
baram mesmo por se revelar desajustados. No Outono de 2010, a política
externa russa para com o ocidente segue linhas de cooperação, apesar de
animosidade em temas difíceis, como mencionado, com espaço de diálogo
aberto, sendo no entanto muito necessário assegurar que paralelamente
a este aja também espaço para a transformação de percepções, pois só
desse modo a consolidação das chamadas parcerias poderá assumir ver-
dadeira substância.
Considerações finais

A Rússia tem lutado internamente com ambiguidade, tentando lidar com


166
uma evolução nas atitudes e um contexto doméstico e internacional muda-
do, enquanto procurando lidar com o seu passado histórico e as heranças
de séculos de governação autocrática e estatuto imperial. Uma mistura de
tendências que se revela nas actuações da Rússia, demonstrando as dificul-
dades que o estado tem enfrentado na definição da sua própria identidade,
fundamental para justificar tendências, opções e atitudes. Estas dificuldades
internas têm expressão a nível internacional. O curso afirmativo no cenário
internacional é como o espelho da imagem doméstica da Rússia, de conso-
lidação e afirmação de poder. As linhas de orientação de base da política
externa russa pós-Guerra Fria têm-se pautado pela multi-vectorialidade,
com a identificação de áreas prioritárias de actuação, e multipolaridade, na
defesa de um sistema internacional multipolar onde a primazia dos EUA
seja constrangida. O desejo de reconhecimento do seu estatuto enquanto
grande potência tem estado na agenda, demonstrando a relevância e peso
da história não só naquilo que a Rússia é hoje, mas também naquilo a que
a Rússia aspira, quer em termos de consolidação doméstica, quer relativa-
mente à sua projecção a nível internacional.

Questões para análise


De que forma o papel dos líderes tem condicionado/projectado a política
externa soviética/russa?
Analise o binómio ideologia/pragmatismo na política externa soviética
e russa.
Face a um espaço pós-soviético heterogéneo onde se jogam políticas
muito diferenciadas, argumente quanto ao poder e influência russos
actuais no espaço da Comunidade de Estados Independentes (CEI).
Rússia entre leste e oeste: gestão comprometida de interesses? Comente
a política externa russa de Putin para com a União Europeia e os
Estados Unidos/Aliança Atlântica (OTAN).
Fontes na internet
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Ministério da Defesa, http://www.mil.ru/eng/
167
Ministério dos Negócios Estrangeiros da Federação Russa, http://www.
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(Página deixada propositadamente em branco)
Verónica Martins 1

171

Capítulo 7

França

Introdução

A França atingiu o estatuto de potência média depois da Segunda Guerra


Mundial (Bozo, 1997: 3), estatuto que parece ter criado algum embaraço
junto dos Franceses para situar a França no mundo actual, como referiu
o antigo Ministro dos Negócios Estrangeiros Hubert Védrine: «Observai as
nossas contorções quanto às noções de ‘grande potência’ ou de ‘potência
média’. Para mim, a França é, logo atrás dos Estados Unidos, uma das seis
potências de influência mundiais» (Védrine, 1998: 2).
A saída da Segunda Guerra Mundial originou, sem dúvida, grandes
mudanças nas linhas adoptadas pela França na condução da sua política
externa sem, contudo, pôr em causa a sua história cuja interpretação ge-
rou a ambição de desempenhar um papel mundial. O peso da história é,
de facto, decisivo na compreensão da política externa da França e, como
refere o historiador Bertrand Gallet, é difícil poder falar-se de doutrina
da política externa forjada por políticos e ensinada a diplomatas, é mais
correcto falar-se em herança, atitudes, comportamentos e leis não escritas

1 A autora agradece o financiamento do seu projecto de doutoramento, no qual a temática deste


capítulo se insere parcialmente, pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito do QREN -
POPH - Tipologia 4.1 - Formação Avançada, comparticipado pelo Fundo Social Europeu e por fundos
nacionais do MCTES.
(Gallet, 1996: 86). Nesse contexto, os objectivos diplomáticos promovidos
pela França fundam-se numa análise do «lugar da França no mundo» e do
balanço das forças presentes e podem resumir-se à busca de um estatuto de
172
grande potência e a garantia dos seus interesses nacionais e à necessidade
de preservar valores fundamentais como a sua independência nacional e a
defesa do seu território (Kessler, 1999: 143-144). Estes preceitos gaullistas
irão manter-se na política francesa.
O contexto internacional do fim da Segunda Guerra Mundial constitui a base
para o contexto do fim da Quarta República e criação da Quinta República
pelo General de Gaulle, pois esta fixou o quadro institucional actualmente
em vigor em França. Da mesma forma, veremos quais são as relações entre a
França e as regiões que marcam o seu passado colonial, o Mediterrâneo e a
África negra francófona, mas também com a República Federal Alemã (RFA –
e depois a Alemanha reunificada) no quadro da integração europeia, com
os Estados Unidos da América (EUA) e com a União Soviética(URSS)/Rússia.
Num segundo tempo, num contexto pós-bipolar, focalizaremos brevemente
a nossa atenção, sobre a acção de François Mitterrand e, atentaremos com
mais pormenor, sobre a política externa dos Presidentes Chirac e Sarkozy,
considerando os instrumentos e recursos disponíveis à luz do novo contexto
internacional 2 e, finalmente, concluiremos a nossa reflexão.

A passagem da Quarta para a Quinta República: a busca de um estatuto para


a França

Logo a seguir ao armistício da Segunda Guerra Mundial, o General De


Gaulle esteve a dirigir o Governo provisório francês da República (Agosto
1944-Janeiro 1946) com a ambição de restabelecer o estatuto internacional

2 A autora teve de fazer escolhas quanto às regiões/países e presidentes tratados neste capí-
tulo devido à limitação de espaço. Desta forma, os mandatos dos presidentes Pompidou e Giscard
d’Estaing (período entre 1969 e 1981) não foram abordados; com base na bibliografia generalista
sobre a política externa francesa, e com uma preocupação de comparabilidade entre os presidentes,
a autora seguiu a selecção das regiões e temas mais utilizados, com destaque para Dalloz (2004),
Gallet (1996), De La Gorce & Moschetto (1996) e Bozo (1997).
da França junto dos três grandes vencedores da Guerra, os EUA, o Reino
Unido e a URSS e afirmar a independência do Estado (Bozo, 1997: 6).
Apesar de um sucesso parcial através do reconhecimento por aqueles Es-
173
tados, a França é excluída das conferências que marcaram o pós-guerra,
Yalta e Postdam, e De Gaulle demitiu-se em Janeiro de 1946 (Bozo, 1997: 7).
No entanto, mesmo depois da ausência provisória do General De Gaulle, a
França procurou, por um lado, desenvolver uma acção independente ten-
tando manter um certo equilíbrio entre as duas potências que emergiram
no fim da guerra e, por outro, manter o seu império colonial (Dalloz, 2004:
32). Contudo, desde o início da IV República, estes dois objectivos ficaram
comprometidos com o início da Guerra Fria e a onda de descolonização
dos ex-territórios franceses (Dalloz, 2004: 32).
Após a adopção de uma nova Constituição em Outubro de 1946 e a elei-
ção do primeiro Presidente da Quarta República, Vincent Auriol em Janeiro
de 1947, o General De Gaulle 3 decidiu criar o partido Rassemblement du
Peuple Français (RPF) em Abril de 1947 como instrumento para regressar ao
poder (Dalloz, 2004: 35). A fragilidade que caracterizou a Quarta República
(1947-1958) impediu a França de desenvolver uma política independente,
pois o Estado sofria de uma instabilidade ministerial crónica causada pelo
sistema de escrutínio proporcional que impedia que um partido tivesse a
maioria na Assembleia e, institucionalmente, estabeleceu um processo de
decisão difuso em matéria de política externa. 4
Perante essa paralisia institucional, a diplomacia francesa alinhou-se com
a dos EUA, inclusive com a adesão à Organização do Tratado do Atlântico
Norte (OTAN), cuja ajuda financeira através do Plano Marshall se tornou

3 Visto o presidente De Gaulle ter sido o fundador da V República e, por isso, o primeiro a
pôr em prática os seus princípios, é usual encontrar a divisão «era De Gaulle» e «pós De Gaulle» ou
ainda «legado» ou «herança» para designar os mandatos dos seus sucessores. Contudo, deve ser feita
uma ressalva para o facto da «era pós De Gaulle» designar para a maioria dos autores os mandatos
de Pompidou e de Giscard D’Estaing (Bozo, 1997; Chevallier, Carcassonne e Duhamel, 2009; outros,
como Dalloz (2004), incluem o período que vai até ao fim da Guerra Fria. No entanto, sem ignorar
as consequências geopolíticas e geoestratégicas do fim da bipolaridade, a autora segue esta divisão
para os presidentes que sucederam a De Gaulle visto que os preceitos gaullistas irão manter-se ape-
sar da mudança de estilo inerente a diferentes personalidades e outros factores internos e externos.
4 As principais responsabilidades foram atribuídas ao MNE e ao Presidente do Conselho, en-
quanto o Presidente da República pode influenciar a política e o Parlamento decide as suas grandes
orientações (Bozo, 1997: 9).
indispensável para a reconstrução e modernização da economia (Bozo,
1997: 10-13; Dalloz, 2004: 42-48). Ademais, o endividamento que resultou
das guerras coloniais em África e na Ásia também contribuiu para aumen-
174
tar essa dependência, especialmente a Guerra na Argélia que foi longa e
desgastante (CRDP Champagne-Ardenne, s.d.). Contudo, pela primeira vez,
a França apareceu como líder da política europeia através da iniciativa de
Jean Monnet (CECA) marcada pelo famoso discurso de Robert Schumann
de 9 de Maio de 1950 e, em vez de submeter-se, ela apontou o caminho
(Bozo, 1997: 15) que conduziria à assinatura do Tratado de Roma em 1957.

O estabelecimento da Quinta República e o legado do General De Gaulle

No sentido de compreender de que maneira a França dispõe de diver-


sos instrumentos para levar a cabo a sua política externa, é necessário,
em primeiro lugar, compreender o funcionamento da Quinta República
resultante da Constituição de 4 de Outubro 1958. 5 Esta Constituição assenta
nos princípios de separação e equilíbrio dos poderes e, contrariamente à
sua antecessora, conferiu um lugar privilegiado à Presidência da República
no processo de decisão da política externa, poderes que fazem desta um
domaine réservé do Presidente da República (Kessler, 1999: 23).6 Contudo,
a primazia presidencial tem dependido, em larga medida, da personalidade
dos presidentes que se sucederam. São numerosos os actores que intervêm
no processo de decisão, mas de acordo com os poderes particulares con-
feridos pelas normas constitucionais e legislativas, Marie-Christine Kessler
identificou um núcleo decisório que, para além do Presidente, é constituído
pelo Primeiro Ministro, o Ministro e o Ministério dos Negócios Estrangeiros
e o Parlamento (Kessler, 1999: 20). Contudo, como é observado por alguns
autores, durante mais de dez anos, a política externa foi «obra pessoal» de
De Gaulle que escolheu conservar o mesmo Ministro dos Negócios Estran-

5 Para um aprofundamento da temática da Quinta República, consultar Chantebout (2004), Che-


vallier, Carcassonne e Duhamel (2009).
6 O estatuto do Presidente saiu reforçado com a revisão constitucional que ocorreu em 1962 e
que instituiu a eleição do Presidente por sufrágio universal directo.
geiros, Maurice Couve de Murville, durante todo o seu mandato (De La
Gorce e Moschetto, 1996: 26).
Veremos adiante que o Ministério dos Negócios Estrangeiros e o Governo
175
ganharão mais peso (neste último caso especialmente durante os períodos
de coabitação), cenário que não se verificará realmente com o Parlamento,
pois este não tem poder de iniciativa e o Presidente não responde perante
essa instituição em matéria de política externa (Kessler, 1999: 52), apesar
da reforma constitucional de 2008. Assim, o poder do Parlamento é essen-
cialmente consultivo e orçamental, pois a lei de finanças em matéria de
defesa e de política externa é analisada por várias comissões 7 e exerce um
poder de controlo a posteriori dos compromissos assumidos ao nível eu-
ropeu e/ou internacional para ratificação, nomeadamente os que implicam
as finanças do Estado e as cessões/transferências de território (Constitution
de la République Française: article 53).
Apesar de a descolonização ter ocorrido até 1962 e a economia francesa
ter-se aberto à Europa, os laços com as antigas colónias mantiveram‑se, no-
meadamente em termos culturais e linguísticos, devido à diplomacia cultural
promovida pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros e ao movimento da
Francofonia, apoio importante da diplomacia bilateral, mas que se multilate-
ralizou a partir dos anos 1960 (Kessler, 1999: 411). De facto, já em 1962 um
líder africano tinha referido a ideia de uma «commonwealth à francesa», e
mesmo se o General De Gaulle, que organizou a descolonização em África,
teve o receio que a institucionalização de um sistema de francofonia fosse
rotulado de neocolonialismo, este tornou-se um instrumento incontornável
da diplomacia cultural (Kessler, 1999: 412-413).
Contudo, a França tinha outros recursos para se impor no mundo do
pós-guerra. Na verdade, o estatuto da França foi igualmente reconhecido
na altura da criação da ONU em 1945, pois foi designada como um dos
cinco membros permanentes do Conselho de Segurança, embora o poder
de negociação decorrente desse estatuto tenha sido hipotecado nos anos de

7 Relativamente à Assembleia: Comissão da Defesa e das Forças Armadas, Comissão dos Negó-
cios Estrangeiros e Comissão das Finanças. Quanto ao Senado, Comissão dos Negócios Estrangeiros
da Defesa e das Forças Armadas e, para um parecer, a das Finanças (Gallet, 1996: 33).
Guerra Fria pelos vetos sucessivos da URSS e dos EUA. Além disso, a França
também se tornou uma potência nuclear (primeiros testes realizados em
Fevereiro de 1960), integrando assim «um clube exclusivo» que lhe permitiu
176
ser encarado como um «actor sério» no plano diplomático durante a Guerra
Fria (Howorth, 1996: 383). Se na Constituição a repartição das responsabi-
lidades em termos de defesa entre o Primeiro Ministro e o Presidente não
era clara, dois decretos (18 Julho 1962 e 14 de Janeiro 1964) promulgados
sobre as forças militares clássicas e sobre as forças nucleares atribuem os
poderes ao Presidente (Kessler, 1999: 166).
À excepção da Argélia, os outros Estados do Magrebe e os Estados de
África já tinham adquirido a sua independência, apesar de as relações es-
tarem integradas num esquema de cooperação quase neocolonial (Bozo,
1997: 33). O conflito na Argélia estava a pesar no papel que a França podia
desempenhar em termos internacionais já que em 1960, a ONU tinha votado
uma resolução proclamando o direito à independência para o povo argelino
(Bozo, 1997: 33). A França estava sem opções e depois de um primeiro
referendo a 8 de Janeiro 1961, um segundo referendo ocorreu no dia 8 de
Abril 1962 para aprovar os Acordos de Evian, assinados em 18 de Março
1962 (Chevallier, Carcassonne e Duhamel, 2009: 68-76).
Depois do «problema argeiino» resolvido e da descolonização terminada,
o General pôde concentrar a sua atenção em termos de política externa
noutras prioridades. O seu desejo de afirmar a independência da França
levou ao desenvolvimento de uma política de defesa forte assente na força
nacional de dissuasão e numa doutrina estratégica (De La Gorce e Mos-
chetto, 1996: 27-28) que se caracterizou por uma dimensão anti-americana,
anti-hegemónica, cuja origem não era ideológica, mas sim derivada de uma
avaliação clássica das relações de poder (Mireur, 2006-2007: 93). Apesar
de procurar uma certa independência em relação aos dois blocos que se
tinham formado nessa época, o desejo de reforma da OTAN contido num
memorando elaborado pelo General De Gaulle em Setembro de 1958 que
reivindicava a tomada de decisões políticas e estratégicas mundiais pela
França, Reino Unido e Estados Unidos, inclusive na aplicação de planos de
acção estratégica que necessitassem a utilização de armas nucleares, tornou‑se
condição para a participação futura da França nos desenvolvimentos da
Aliança (Dalloz, 2004: 166-167). Perante as resistências a essas ideias, com
o desenvolvimento da détente, a ruptura sino-soviética que enfraqueceu
a posição soviética e a constituição da força nuclear francesa, De Gaulle
177
distanciou-se progressivamente da OTAN até à retirada em Março de 1966. 8
Relativamente à construção europeia, o General De Gaulle propôs o
lançamento de uma Europa autónoma no domínio político e militar (plano
Fouchet I, 1961) e a resistência dos seus parceiros europeus causou um en-
durecimento da sua posição (Plano Fouchet II, 1962), reafirmando o carácter
intergovernamental da construção europeia e o afastamento da OTAN, mas
os dois planos foram rejeitados pelo Benelux que reivindicava a adesão do
Reino Unido (Gallet, 1996: 115). No entanto, a França recusou várias vezes
esta adesão, pois receava o potencial controlo americano que se poderia
instalar se aquela aderisse à Comunidade (Dalloz, 2004: 158-160). Entre-
tanto, no seio da construção europeia, a França e a RFA aproximaram-se,
e apesar de o Presidente Adenauer não aprovar a política que De Gaulle
estava a desenvolver relativamente às relações transatlânticas e ao seu de-
sejo de independência, os dois Estados assinaram o Tratado do Eliseu a 22
de Janeiro de 1963 (Bozo, 1997: 44). Com cooperação prevista em termos
militares, o Presidente francês pretendia, de certa forma, obrigar a RFA a
«escolher» entre Washington (e o seu projecto de força nuclear multilateral)
e Paris (Bozo, 1997: 44).
Relativamente ao bloco comunista verificou-se uma tentativa de apro-
ximação à URSS com a realização de uma viagem em 1966 por parte do
Presidente francês, no sentido de promover uma «Alemanha Unificada»
tendo levado à instalação de um «telefone vermelho» entre as duas capi-
tais e uma busca por parte da França de uma aproximação aos países de
Leste em termos bilaterais, nomeadamente com a Roménia, primeiro país
sob tutela soviética a ter respondido ao pedido de diálogo francês (Dalloz,
2004: 168‑169). Não obstante essa aproximação, não se tratava de inverter
alianças, mas de aproveitar o movimento de independência criado pelo
General para ganhar influência na cena internacional e para acabar com

8 Em 1963, o General retirou a frota francesa do comando integrado (Dalloz, 2004: 167). Para
mais informações sobre a política de De Gaulle em relação à OTAN, consultar também Bozo (1996).
o monopólio americano do diálogo com os Soviéticos, beneficiando do
período de détente (Dalloz, 2004: 168).
Finalmente, devemos ainda referir as linhas da política externa do funda-
178
dor da Quinta República para duas regiões que permanecerão componentes
estruturantes das relações externas, 9 África Negra e os países árabes, junto
dos quais a França procurará obter apoio para a independência da sua
política. O Ministério da Cooperação foi criado oficialmente em 1961, em
plena descolonização da África subsaariana, com um campo geográfico
limitado aos países francófonos, tendo por objectivo gerir as relações de
cooperação franco-africanas, pelo menos provisoriamente, mas acabou por
prolongar-se e tornar-se um instrumento essencial nas relações bilaterais.
De facto, os países africanos recém independentes são colocados entre os
principais beneficiários da política de cooperação construindo assim o pré
carré francês em África (Gallet, 1996: 93), onde os presidentes da Quinta
República procurarão continuar a exercer a sua influência de forma directa
e pessoal, o que contribuiu para o «apagamento» dos Primeiros Ministros
apesar de estes continuarem a desempenhar um papel institucional e oficial
(Kessler, 1999: 308).
No que respeita ao Magrebe, como vimos, o principal ponto de preo-
cupação para a França foi a violenta guerra de descolonização na Argélia.
Os Acordos de Evian instituíram a livre circulação de pessoas entre os dois
Estados, visando regular fluxos migratórios, mas o que se verificou foi a
deslocação dos Pieds-noirs e dos Argelinos em direcção à Metropole (Gou-
revitch, 2000: 107). No que concerne os dois vizinhos da Argélia, Marrocos
e Tunísia, ambos procuraram também desenvolver uma relação privilegiada
com a França. Não obstante uma melhoria da imagem na cena internacio-
nal, tendo em conta a oposição francesa à liderança americana na região,
foi necessário esperar por 1967 para assistir a uma viragem decisiva nas
relações franco-árabes (Boniface, 2004: 211). De facto, o General desejou
ocupar de novo um lugar de destaque no mundo árabe, opondo-se inclusive

9 Bertrand Gallet considera as políticas para essas duas regiões e a do eixo franco-alemão como
sendo «políticas particulares da França» (Gallet, 1996: 92).
a Israel.10 Esta mudança na política do Próximo Oriente vai ser perpetuada
e sistematizada numa verdadeira política árabe, até mesmo pro-árabe (Bozo,
1997: 53; Chérigui, 1996: 298-300).
179

A política externa francesa do pós-Guerra Fria: a gestão do legado do General


De Gaulle e os desafios de um mundo multipolar

Na primeira parte desta análise, olhamos para as linhas e o funcionamen-


to da política externa tal como foi concebida pelo General De Gaulle, que
lançou as bases da política que seria praticada pela França em várias regiões
do mundo. Não podemos deixar de referir que os sucessores do General
tiveram estilos diferentes que poderão ter contribuido para alguns reajustes,
além de considerar as mudanças geradas pelo fim da bipolaridade, mas no
essencial as grandes linhas gaullistas foram conservadas. Mesmo no caso de
François Mitterrand, primeiro Presidente socialista da Quinta República, a
continuidade das principais linhas da política externa acabou por impôr-se
pois, apesar de se considerar opositor do Gaullismo na altura do regresso do
General ao poder, o Presidente Mitterrand afirmou contudo querer «assumir
a herança, mas fazê-la evoluir suavemente» (Védrine, 1996: 89).
Não é aqui nosso objectivo fazer uma análise dos dois mandatos de
Mitterrand, mas vamos delinear o panorama da política externa no fim da
bipolaridade. Para o seu segundo mandato, o partido socialista não obteve
maioria absoluta na Assembleia dificultando a acção do governo nos as-
suntos internos e externos, mas já no Verão de 1989, François Mitterrand
conseguiu estabelecer um maior controlo sobre as questões de segurança e
de política externa (Howorth, 1992: 49). O Presidente tinha antes decidido
colocar homens capazes e seguros em postos chave para dispôr de infor-
mações fiáveis e para garantir lealdade, mas Mitterrand foi o coração do
sistema e mesmo se o Primeiro Ministro não teve um papel negligenciável
na política externa, o Presidente procurou monopolizar todas as grandes

10 Sendo um dos principais fornecedores de equipamentos militares para Israel, a França decre-
tou um embargo sobre as exportações de armas para o Médio Oriente (Gallet, 1996: 92).
questões do pós-Guerra Fria (Védrine, 1996: 43, 51). Por outras palavras, se
com o fim da bipolaridade a estratégia mudou, os objectivos permaneceram
os mesmos (Boniface, 1998: 158).
180
A verdade é que, no segundo mandato de Mitterrand, a França reconheceu
a sua incapacidade em manter um impacto mundial por e para ela mesma,
e rompeu a ligação entre a sua independência e a sua influência (Salamé,
1998: 228). Para poder levar a cabo a sua política de forma independente,
a França procurou desenvolver uma terceira via (nem capitalista, nem co-
munista), mas o desaparecimento da URSS tornou caduca essa estratégia.
O desenvolvimento de uma Europa forte já não aparecia como uma tercei-
ra opção, mas como uma forma de fortalecer diplomaticamente a França
num mundo multipolar (Guyomarch, 1998: 121). Assim, nas negociações
do Tratado de Maastricht, a posição francesa evoluiu de apoio a um papel
mais importante da política externa da UE para apoio ao desenvolvimento
de uma política europeia de defesa, sob os auspícios da UEO, permitindo
assim à UE manter a sua independência em relação à OTAN e aos EUA
(Guyomarch, 1998: 121).
A França deixou de seguir uma lógica regional, à excepção do espaço ao
qual ela pertence, e para confirmar essa tendência, Hubert Védrine (1996:
238) apresentou, entre outras justificações para a intervenção da França no
Koweit, a necessidade de evitar que ela fosse moral, diplomatica e militar-
mente desacreditada no terreno europeu e euro-atlântico. Contudo, a Guerra
do Golfo acelerou o reconhecimento da caducidade da política árabe francesa
que começou a perder a sua especificidade com o fim da bipolaridade. 11
Apesar de Mitterrand ter tentado manter as melhores relações possíveis em
simultâneo com os três Estados do Magrebe, devemos assinalar a situação
de guerra civil na Argélia desde 1992 (e) que perturbou a relação com a
França (Védrine, 1998: 11).
Finalmente, que tipo de relações foram mantidas com a África francófona
nos primeiros anos do pós-Guerra Fria? As diversas publicações sobre a

11 Na verdade, já nos anos 1980 François Mitterrand tinha promovido a iniciativa diplomática que
viria a dar origem ao Diálogo 5+5. Depois, em 1994, juntamente com o Egipto, promoveu a iniciativa
do Fórum do Mediterrâneo (Chérigui, 1996: 300).
temática sublinham que, em relação à política dos seus antecessores, hou-
ve algumas pequenas rupturas e grandes continuidades (Marchesin, 1995:
3). Mantiveram-se algumas características como a primazia das relações
181
personalizadas com os dirigentes africanos, já que a África permaneceu
um domaine réservé da presidência, a manutenção dos acordos de defesa
concluídos antes de 1981 e uma recusa de renovação dos mesmos no início
dos anos 1990 (Marchesin, 1995: 3). No entanto, podemos afirmar que Mit-
terrand tentou ir mais longe quanto às regras que deveriam reger a ajuda
francesa aos países africanos com o seu discurso de La Baule, em Junho
de 1990 (Mitterrand, 1990), mas cujas propostas não foram bem acolhidas,
pois assemelhavam-se a uma ingerência nos assuntos internos (Gallet, 1996:
102‑103). Apesar da falta de iniciativas francesas, a política africana da França
aparece como uma das heranças melhor conservadas desde o General De
Gaulle (Marchesin, 1995: 3).

Jacques Chirac: afirmação e adaptação do legado do General De Gaulle

Jacques Chirac, líder do partido Rassemblement pour la République, foi


eleito para o seu primeiro mandato presidencial a 7 de Maio de 1995 e no
seu primeiro discurso ao corpo dos Embaixadores, confirmou a aspiração
gaullista (Lombart, 2007: 379) de procurar manter a França na sua posição
de potência mundial através «de um esforço constante de vontade, adaptação,
imaginação, a partir de uma visão lúcida e de uma abordagem pragmática
das grandes evoluções do nosso mundo» (Chirac, 1995).
Quando assumiu o poder, fê-lo ainda por sete anos, já que no segui-
mento do referendo de 24 de Setembro 2000, foi decidido que o mandato
presidencial iria passar a ser um quinquénio. O Presidente Chirac tinha
um programa ambicioso e estava decidido a implementar rapidamente as
reformas prometidas, mas o país estava a braços com graves perturbações
causadas por uma acumulação de problemas domésticos do ponto de vista
social, político e económico. Jacques Chirac estava contudo decidido a
lançar uma política de influência apoiada na apologia do multilateralismo
e na promoção do direito internacional (Howorth, 2001: 159).
Para apoiar estes objectivos, devemos aqui referir um instrumento im-
portante para a credibilidade da acção internacional da França: a política
de ajuda ao desenvolvimento, política que adquiriu uma dimensão cada vez
182
mais transversal incluindo a governação democrática, o desenvolvimento
sustentável ou ainda a igualdade de género (MAEE, 2007: 9-10). Apesar de
uma estrutura institucional governamental complexa, devemos destacar o
Comité Interministerial da Cooperação Internacional (CICID) sob presidên-
cia do Primeiro Ministro, o papel do Ministério dos Negócios Estrangeiros
e Europeus e do Ministério da Economia e das Finanças, sendo este último
o maior contribuidor, e a Agência Francesa de Desenvolvimento (Kessler,
capítulo 8). O seu campo geográfico tradicional estava centrado na Áfri-
ca francófona, mas ao longo dos anos foi progressivamente alargado aos
Estados do Oceano Índico e às antigas colónias inglesas, portuguesas ou
espanholas, assim como a Estados das Caraíbas (Kessler, 1999: 312-313). A
grande reforma da política de desenvolvimento ocorreu em 1998 quando
o Conselho de Ministros formalizou a decisão de suprimir o Ministério da
Cooperação e as suas competências foram absorvidas pelo Ministério dos
Negócios Estrangeiros (Tavernier, 1999). Com essa reforma, foi igualmente
criada uma Zona de Solidariedade Prioritária que inclui todos os Estados
beneficiários cuja extensão foi definida em 2002. 12 Desde 2000, a França
aumentou regularmente o PNB dedicado à ajuda ao desenvolvimento, pas-
sando de 0,30% a 0,41% em 2004 e 0,47% em 2005 e 2006 (8,5 mil milhões
em 2006) (MAEE, s.d.d), mas esse aumento não se manteve em 2007 como
foi globalmente o caso da ajuda pública mundial (MAEE, 2007: 17) e vol-
tou a caír para 0,39% em 2008 (MAEE, s.d.c). Conforme ao compromisso
europeu, a França tem como ambição atingir o objectivo de 0,7% de ajuda
pública ao desenvolvimento em 2015 e o aumento da ajuda tem beneficiado
principalmente o aumento da ajuda europeia (cerca de 20% da APD fran-
cesa tramita pelo dispositivo comunitário) e multilateral (MAEE, 2007: 17).

12 Em 1998, foi criada a Zona de Solidariedade Prioritária (ZSP) para uma maior concentração e
selecção da ajuda. Os países beneficiários são dos menos desenvolvidos em termos de rendimentos
e de acesso aos mercados de capitais e com os quais a França pretendia desenvolver uma relação de
parceria. Em 2002, eram 55 Estados, a grande maioria pertence ao continente africano (MAEE, 2007).
As ambições mundiais da França são, por conseguinte, apoiadas pelo
esforço de ajuda ao desenvolvimento em várias zonas do globo e, apesar
das dificuldades financeiras generalizadas, o esforço passou de 7,56 mil
183
milhões de euros em 2008, ou seja, o quarto doador mundial em volume
e o segundo no G8, para 8,92 mil milhões de euros em 2009 (0,46% do
PNB) (MAEE, s.d.d).
Apesar dos protestos de muitos Estados, o primeiro acto forte do Pre-
sidente para testemunhar a «grandeza» da França foi o anúncio do retomar
dos testes nucleares a 13 de Junho de 1995, depois de estes terem sido
abandonados pelo seu antecessor (Lombart, 2007: 380).
No início do primeiro mandato de Jacques Chirac, poderia ter-se acre-
ditado numa nova divisão de tarefas entre o Eliseu e Matignon (Howorth,
2001: 159). Com efeito, Alain Juppé, que no governo de Edouard Balladur
(1993-1995) ocupou o posto de Ministro dos Negócios Estrangeiros, tinha
sido nomeado Primeiro Ministro e exerceu uma certa influência nos mo-
mentos de mudança de questões importantes como as relações com a OTAN
(Howorth, 2001: 162). 13 Houve um terceiro período de coabitação 14 entre
o governo socialista de Lionel Jospin e Jacques Chirac que durou até ao
fim do primeiro mandato (1997-2002). O Primeiro Ministro procurou não
penetrar nas áreas do Presidente e este não contestou o direito do Governo
em pronunciar-se sobre a orientação dos assuntos externos e militares que
ele próprio tinha reivindicado em 1986 (Cohen, 2003: 350-351). No entan-
to, esse acordo não impediu que algumas decisões fossem tomadas pelo
Presidente sem concertação prévia com o Primeiro Ministro (participação
discreta deste último durante a crise do Kosovo) ou que este tenha tido
algumas «derrapagens» mediáticas 15 (Cohen, 2003: 352-353). Disto resultou

13 Esse segundo período de coabitação foi menos conflituoso e a novidade reside na aceitação
de uma co-gestão serena, no respeito das prerrogativas constitucionais do Chefe de Estado e do
Chefe do Governo para evitar choques (Cohen, 2003: 348).
14 O primeiro período de coabitação ocorreu entre 1986 e 1988, tendo sido Jacques Chirac o
chefe do Governo; o segundo entre 1993 e 1995.
15 Devemos referir o facto de ter havido algumas divergências de política, nomeadamente duran-
te a viagem oficial a Israel de Lionel Jospin em Fevereiro de 2000 durante a qual qualificou o Hez-
bollah libanês de grupo terrorista, rompendo assim com a neutralidade da política árabe de Jacques
Chirac (De Chalvron, 2000).
uma monopolização pelo executivo (Presidente/Primeiro Ministro) do trata-
mento das questões de política externa em detrimento do Parlamento e do
debate público, executivo que se empenha em afirmar que a França «fala
184
a uma só voz» (Cohen, 2003: 354).
No que diz respeito à dimensão europeia, podemos afirmar que Jac-
ques Chirac teve uma atitude por vezes divergente face à posição gaullista.
Pode-se considerar que o Presidente chegou à conclusão que era inevitável
que a Europa caminhasse para algo mais federal enquanto prosseguisse a
integração europeia (Zuqian, 2002: 118), nomeadamente através do apoio
firme em favor da União Económica e Monetária no Outono de 1995 e da
consequente política do Governo Juppé em matéria de redução do défice
público (Bozo, 1997: 106). Mais recentemente, podemos também referir o
apoio do Chefe de Estado à campanha para a adopção do Tratado Consti-
tucional em 2005 (Lequesne, 2007a: 5), apesar da sua rejeição com quase
55% de votos contra (AFP e Reuters, 2005).
Devemos ainda referir um aspecto intimamente ligado ao desejo de Jaques
Chirac de voltar a conquistar um lugar de destaque na Europa ocidental
(Bozo, 1997: 106), nomeadamente uma tentativa de ruptura em relação à
política militar com uma eventual reintegração da França na OTAN, frustrada
contudo devido à oposição do governo socialista de 1997 a 2002 (Apathie
e Ottenheimer, 1997).
Quanto à reaproximação da França à OTAN, deu-se num contexto de
degradação da situação no Kosovo já a partir de 1998 e com a tentativa
falhada de paz com a conferência de Rambouillet (Fevereiro 1999), que
conduziu ao lançamento da campanha de bombardeamento da OTAN no
Kosovo a 19 de Março de 1999, à qual Jacques Chirac associou a força
aérea francesa, apesar da presença dominante dos EUA (Lequesne, 2007a:
6). Contudo, essa decisão não foi despropositada pois, tendo sido um dos
protagonistas da Cimeira bilateral de Saint-Malo com o Reino Unido em
1998, encontro fundamental para o projecto de uma defesa europeia com
vocação autónoma, Jacques Chirac via nessa intervenção a possibilidade
de contribuir para a autonomização do pilar europeu no seio da Aliança
Atlântica (Lequesne, 2007a: 6). Esta constitui uma das excepções em termos
de iniciativas de política externa, pois como sublinhou Frédéric Charillon,
os sucessivos períodos de coabitação tiveram um certo efeito de paralisia
pois, por um lado, era necessário evitar que a política externa se tornasse
um assunto importante da política interna e, por outro, devia evitar-se pro-
185
jetar as dimensões internas para a cena internacional (Charillon, 2002: 925).
Outro aspecto intimamente ligado à política europeia da França é o da
relação franco-alemã que foi positivamente incentivada pelo apoio de Jac-
ques Chirac aos alargamentos da UE para Leste,16 já que, como afirmou este
último em 1998, «a França deseja que possa ocorrer, logo que possível, a
adesão de todos os países candidatos que preencherão as condições fixadas
pelos tratados. O alargamento é um dever moral e constitui também uma
oportunidade para a Europa» (Chirac, 1998). No entanto, desde o início do
mandato, as relações do eixo franco-alemão mostraram-se complicadas,
pois as divergências e os mal-entendidos multiplicaram-se, nomeadamente
no que diz respeito às reformas institucionais da União, não conseguindo
restabelecer a harmonia da dupla Mitterrand-Kohl (Lequesne, 2007a: 7-8).
A situação não melhorou com o chumbo do Tratado Constitucional no
referendo de 29 de Maio de 2005, condicionando igualmente o papel da
França no seio da UE até ao final do mandato de Chirac que não dipôs
nem do tempo, nem dos recursos políticos necessários para poder saír da
crise com propostas originais (Lequesne, 2007b: 1).
No que diz respeito às relações com a Rússia, Jacques Chirac mostrou
desde o início do mandato o desejo de não isolar esse Estado na cena
internacional, o que se tornou patente, nomeadamente na reforma da
OTAN para a qual preconisava uma parceria com a Rússia (Chirac, 1996a)
e cuja importância não podia ser negada no fim da década de 1990 dada
a situação na antiga Jugoslávia. Contudo, os dois Estados procuraram dar
um novo impulso às relações bilaterais em 2000, aproveitando a cimeira
UE-Rússia que se realizou sob os auspícios da presidência francesa, através

16 Sem descurar a dimensão mediterrânica, já que foi em parte sob o impulso da presidência
francesa de 1995 que foi lançado o Processo de Barcelona.
do relançar dos encontros bilaterais a todos os níveis. 17 Assim, no campo
diplomático, gerou-se uma relação privilegiada entre Vladimir Putin e Chirac
que solidificou certas posições e terá contribuido para resolver algumas
186
tensões e encetar dinâmicas que ultrapassam o quadro estritamente bilateral
(Gomart, 2007: 128) como foi mencionado em relação aos «campos» criados
na Guerra do Iraque (Gomart, 2007: 130). Tendo em conta que Paris não
tem real capacidade de influência sobre a situação na Rússia, a França teria
vantagens em «desbilateralizar» a relação para estabelecer uma articulação
mais sistemática com o diálogo UE-Rússia (Gomart, 2007: 134), intenção que
foi expressa em 2005 pelo Presidente no que diz respeito à implementação
dos quatros espaços comuns com a UE (Chirac, 2005).
Vamos agora atentar na política externa desenvolvida na África e na
região do Mediterrâneo com os Estados árabes. Nenhum outro Presidente
alimentou tantos laços pessoais com alguns dirigentes africanos e mereceu
tanto o qualificativo de o «Africano» (Claude, 2007: 906). Além disso, no
seu discurso aos Embaixadores em 1998, o Presidente afirmou todo o seu
empenho em manter a ajuda pública ao continente para apoiar os esforços
de alguns Estados em fase de reformas democráticas, assumindo até um
tom moralizador quanto à obrigação de integrar os países mais pobres na
economia mundial (Chirac, 1998). Não esqueçamos que a política francesa
de APD teve sempre como principal fonte de inspiração a manutenção e a
progressão da francofonia, e esta constitui a regra principal de repartição
geográfica dos créditos (Kessler, 1999: 336).
Houve contudo algumas mudanças, nomeadamente no âmbito militar,
pois mesmo com um interesse renovado do Presidente francês pela África,18

17 O primeiro de uma série de encontros realizou-se ao nível dos Primeiros Ministros a 19 de


Dezembro de 2000. Vários eixos foram estabelecidos nessa cooperação renovada: altas tecnologias,
apoio às reformas encetadas na Rússia, a multiplicação de intercâmbios entre jovens, as relações
culturais, assim como cooperação comercial que tomou logo forma com a conclusão de um contrato
de equipamento de três satélites da Alcatel (s.a., 2000).
18 Devemos aqui sublinhar que a política africana passou por duas transformações importantes
que tinham fragilizado a relação entre a França e os países africanos do pré carré, a saber, a depre-
ciação do Franco CFA por causa da apreciação do Franco e da depreciação do Dólar em Janeiro de
1994 e um segundo acontecimento, a crise do Ruanda (Marchesin, 1998: 92-93).
houve também um certo desinvestimento no pré carré,19 pois o número
de militares franceses baseados no continente diminuiram e mais nenhuma
intervenção armada ocorreu desde Junho 1996 (Dalloz, 2004: 222) o que é
187
interpretado como a última etapa da política de retirada do continente, pois
a França não teria mais nada a defender em África (Marchesin, 1998: 199).
Contudo, a França manteve o seu apoio à criação de forças interafricanas
de interposição (Dalloz, 2004: 222).
Durante a Cimeira dos Chefes de Estado França-África organizada em
Cannes entre 15 e 17 de Fevereiro 2007, o balanço foi muito negativo e,
para vários observadores, a cimeira marcou uma viragem na história das
relações entre a França e, em particular, a África subsaariana francófona: há
menos nacionais franceses a viverem em África, várias empresas perderam
a sua influência e a APD, contrariamente ao pretendido por Chirac, dimi-
nuiu passando de 0,63% do PNB em 1995 para atingir no fim do segundo
mandato 0,46% (Soppelsa, 2007: 216). Para alguns especialistas, a África
permanece uma componente da soberania francesa (Dozon citado em Claude,
2007: 917). Por outras palavras, a acção de Jacques Chirac não corrigiu as
grandes orientações da política marcada pelo intervencionismo, o apoio
aos regimes «amigos», mas também houve mudanças externas nos últimos
anos com a emergência dos EUA ou ainda da China como novas potências
na África e a confiança ficou enfraquecida entre a França e alguns estados
africanos francófonos o que a levou a aproximar-se de Estados africanos
anglófonos e lusófonos (Claude, 2007: 917-918).
Quanto à política árabe da França, ganhou novamente toda a sua im-
portância em termos bilaterais, pois já em Julho de 1996, o Presidente
tinha efectuado duas viagens pelo Próximo e Médio Oriente. O discurso
pronunciado no Cairo no dia 8 de Abril de 1996 marcou o lançamento da
sua política (Chirac, 1996b). Como o seu antecessor, reconheceu o direito do
povo palestiniano em dispor de um Estado, opondo-se à política pro-israelita
dos americanos. Foi igualmente em 1996 que ocorreu a crise israelo-libanesa
e a França soube tirar proveito do alinhamento incondicional e tradicional

19 Os países que compõem o pré carré são os do Magrebe mais o Gabão, o Senegal e a Costa
do Marfim (Claude, 2007: 908).
dos americanos junto de Israel para facilitar a conclusão de um cessar-fogo
no Líbano, pois este manteve-se uma porta de entrada privilegiada para o
Médio Oriente (Gallet, 1996: 113). Ao continuar a apoiar os Palestinianos
188
depois do início da segunda Intifada em 2000, a França aumentou a sua
popularidade junto dos países árabes, mas foi a sua posição relativa à guerra
do Iraque que lhe valeu a sua grande popularidade, não somente junto dos
Estados árabes e muçulmanos em geral, mas também no resto do mundo,
precisamente pelo facto de ter encarnado uma resistência a uma política
americana agressiva considerada injusta e perigosa (Boniface, 2007b).
Assim, a acção diplomática do Presidente Chirac inscreveu-se contra a tese
do choque das civilizações, procurando manter uma certa coerência entre
as suas acções e o seu discurso, decidido a não deixar os EUA agirem sós
(Boniface, 2007b). A política externa de Jacques Chirac foi marcada afinal
por mais elementos de continuidade do que de ruptura com o Gaullismo
(Lequesne, 2007a: 11). Não obstante, foi-lhe várias vezes apontado o facto
de ter exercido uma política externa demasiado pessoal e comportando
poucas iniciativas (Suleiman, 2007).

Nicolas Sarkozy: ruptura no estilo mas incerta no seu conteúdo

A 6 de Maio de 2007, sucedeu ao fundador da UMP, Nicolas Sarkozy,


que tinha assumido a presidência desse partido em 28 de Novembro de
2004. Os três primeiros anos de mandato demonstraram a extrema energia
e implicação do Presidente na política interna, contrariamente ao último
mandato do seu predecessor, mas também um forte desejo de açambarcar a
exclusividade da acção externa. Na altura em que assumiu as suas funções,
eram grandes e contraditórias as expectativas em termos de política externa,
nomeadamente quanto a uma eventual ruptura com a diplomacia tradicional
da V República que consistiria em adoptar uma visão da construção europeia
doravante próxima da britânica, uma viragem estratégica pro-americana, o
fim de uma política activa dentro e com o mundo árabe a favor de uma
reafirmação prioritária de uma aliança com Israel (Boniface, 2007a). Mas
terá realmente seguido essas directivas e terá havido uma ruptura?
Alguns meses depois do início do seu mandato, Nicolas Sarkozy lançou
três iniciativas para uma reforma profunda que mereceram um certo des-
taque, a primeira sendo o lançamento em Agosto de 2007 de uma reflexão
189
sobre um Livro Branco sobre a segurança e a defesa nacional. 20 Como
afirmou o Presidente Sarkozy:

Os livros brancos traduzem a ambição do Estado sobre o essencial, ou


seja, a sobrevivência da Nação. E nesse contexto faço minhas as palavras
do General De Gaulle: «A Defesa! É a primeira razão de ser do Estado. Não
pode falhar esse objectivo sem destruir-se a si próprio». (Sarkozy 2007b)

A política seguida pelo Chefe de Estado em matéria de defesa, até ago-


ra, não entrou realmente em ruptura em relação ao seu predecessor. Com
efeito, reafirmou a justeza da posição da França quanto à sua oposição à
guerra do Iraque (e manteve o compromisso em relação ao Afeganistão)
(Boniface, 2007a), prosseguiu e finalizou a linha reformadora encetada por
Jacques Chirac no sentido de reintegrar a França na OTAN, decisão ofi-
cializada em Março de 2009, assumindo nesse sentido uma ruptura com a
política gaullista. Para o Presidente Sarkozy, a política de defesa da UE e a
OTAN são complementares e a reintegração da França na Aliança Atlântica
visou também o reposicionamento da França num mundo multipolar junto
dos seus aliados «na sua família ocidental» (Sarkozy, 2008). Na verdade, o
novo Presidente nunca escondeu as suas afinidades com os Estados Uni-
dos, tendo-lhe sido mesmo atribuído o nome de «O Americano» (s.a., 2007).
Contudo, «amizade não é submissão» (Reuters, 2007) e o Chefe de Estado
afirmou sentir-se «perfeitamente livre para exprimir os acordos e os desa-
cordos, sem complacência nem tabus» (Sarkozy, 2007a).
A segunda iniciativa é inédita, pois tratou-se de lançar uma reflexão para
um Livro Branco sobre a política externa em Outubro de 2007, ou seja,
«identificar de forma operacional as missões prioritárias incumbentes ao
aparelho diplomático num contexto mundial em plena evolução, restructu-

20 A terceira reflexão desde a criação da V República, ou seja, a primeira foi lançada em 1972 e
depois em 1994.
rar o Ministério para que possa concentrar-se nas suas missões...» (MAEE,
2008). Devemos ainda referir a terceira iniciativa promovida pelo Presidente,
a reforma constitucional, consagrada na lei constitucional de 23 de Julho
190
de 2008, tendo entre outros, o objectivo de re-equilibrar os poderes das
instituições da República, nomeadamente a favor do parlamento (Balladur,
2008: 30). No campo da política externa, o Parlamento viu os seus poderes
reforçados no que diz respeito às operações militares externas e quanto
ao dever de informação do executivo relativo às negociações diplomáticas
(Balladur, 2008: 62-63) apesar de, no final, os poderes do Presidente não
terem sido em nada reduzidos ou questionados.
Se, no fundo, a questão que vimos mais acima sobre a OTAN e a defesa
europeia está incluída na primeira prioridade que consiste em garantir a
segurança da França e dos Franceses, a defesa e promoção dos interesses,
a segunda prioridade consiste em construir uma Europa forte e eficaz com
os seus parceiros. Como tinha anunciado aos Embaixadores, «a construção
da Europa permanecerá a prioridade absoluta» da política externa francesa
(Sarkozy, 2007a). Com efeito:

Não existe uma França forte sem Europa, como não existe uma Europa
forte sem França. Faço parte daqueles que pensam que a emergência de uma
Europa forte, actor importante na cena internacional, pode contribuir de uma
forma decisiva para a reconstrução dessa ordem mundial mais eficaz, mais
justa, mais harmoniosa, que reclamam os nossos povos. (Sarkozy, 2007a)

Neste contexto, o Presidente Sarkozy afirmou pretender um novo re-


lacionamento entre os Estados e as instituições europeias, como é o caso
da Comissão e do Parlamento Europeu (Sarkozy, 2008). Apesar da imagem
enfraquecida da França devido ao chumbo do Tratado Constitucional,
Sarkozy procurou aproveitar a proximidade entre a França e a Alemanha para
apresentar um plano de resgate do Tratado sob a forma de um «mini-tratado»
que retomava as inovações institucionais do texto de origem (Tardieu, 2007).
Com efeito, Nicolas Sarkozy viu assim uma nova oportunidade de implicar
a França no debate europeu e de relançar o debate sobre a construção eu-
ropeia e as questões institucionais na cena política francesa (Tardieu, 2007).
Outro facto que merece ser sublinhado foi a presidência da França no
segundo semestre de 2008 durante a qual o Presidente Sarkozy procurou
promover um programa ambicioso e se destacou, nomeadamente na gestão
191
da crise gerada pela guerra da Geórgia permitindo à UE responder «de uma
só voz » e na intervenção relativa à crise financeira através da reunião do
Eurogrupo ao nível dos Chefes de Estado e de Governo para elaborar um
plano de apoio aos bancos europeus. Além da Presidência, a França tem
apresentado múltiplas iniciativas no seio da Europa, em todos os domínios,
o que reflete bem o dinamismo que caracteriza a condução da política
externa de Nicolas Sarkozy.
Referindo a crise da Geórgia de Agosto 2008, não podemos deixar de
mencionar a política desenvolvida por Sarkozy para a Rússia. Se o Presidente
mostrou desde logo o seu interesse por uma aproximação aos EUA, o mesmo
não aconteceu com a Rússia pelo menos no seu primeiro ano de mandato.
Com efeito, durante o seu discurso aos embaixadores em 2007, o Chefe de
Estado fez declarações muito firmes em relação ao regime de Vladimir Putin
e à sua acção na cena internacional (Sarkozy, 2007a). Por outras palavras,
parece que o Eliseu decidiu destacar-se da política externa dos anos Chirac
pondo fim ao que era considerado como uma forma de complacência (Vau-
lerin, 2007). Contudo, durante a sua primeira visita à Rússia, em Outubro
de 2007, a firmeza da linguagem anunciada não se verificou e o Presidente
francês declarou que «A Rússia é um país forte que tem responsabilidades
internacionais e quer assumi-las. (…) Tenho a convicção que as nossas po-
sições mostram uma certa convergência» (Sarkozy e Poutine, 2007).
Os jornais russos notaram contudo o pragmatismo do Presidente francês,
«preocupado em mostrar que a ‘amizade franco-russa’ não chegou ao fim
com a partida de Jacques Chirac» (LCI, 2007). Ademais, a partir de 2009,
verificou-se uma melhoria nas relações entre os dois Estados e o bom
entendimento existente entre os presidentes Medvedev e Sarkozy tem co-
notações essencialmente económicas e comerciais já que desde 2009, vários
contratos importantes foram assinados, contribuindo para a aproximação
franco-russa (Rocco, 2010).
Nicolas Sarkozy anunciou ainda uma ruptura relativa à política do Pró-
ximo Oriente (Sarkozy, 2007a). Por inclinação pessoal, também podemos
dizer que ele está mais próximo de Israel (Cogan, 2010: 90); enquanto já se
deslocou várias vezes ao território hebraico, a primeira visita aos territórios
palestinianos ocorreu apenas em 23 e 24 de Junho de 2008. No entanto, se
192
esse interesse por Israel poderia ter sido interpretado como uma ruptura
com a política gaullista, como nos primeiros anos de Mitterrand, na verdade,
todos os países ribeirinhos do Mediterrâneo foram alvo de atenção parti-
cular, e disso testemunha a ideia de uma «União mediterrânica » anunciada
em Fevereiro de 2007 (Sarkozy, 2007c) e que evoluiu, principalmente fruto
de negociações bilaterais com a Alemanha, 21 até ao lançamento formal da
«União para o Mediterrâneo » em Julho de 2008 (s.a., 2008b). Uma das prin-
cipais razões subjacentes ao seu lançamento repousa no enquadramento
das relações entre a UE e a Turquia. Com efeito, enquanto Jacques Chirac
se mostrou sempre a favor da adesão da Turquia, Nicolas Sarkozy, ao con-
trário, manifestou a sua firme oposição à integração desse país no espaço
europeu, mas com a abertura das negociações em Outubro 2005, as relações
euro-turcas acabaram por inscrever-se numa clara path dependency da qual
só poderá sair com uma alternativa credível. Contudo, durante a cimeira de
lançamento, o Presidente francês aproveitou para ‘relaxar’ as relações com
a Turquia e afirmar ao Primeiro Ministro turco que não bloquearia a pro-
gressão das negociações de adesão (s.a., 2008b). Para alguns observadores,
as viagens que Nicolas Sarkozy efectuou no Próximo Oriente e no Golfo
tiveram como propósito reforçar o papel regional da França para além da
sua esfera de influência constituída pelo Magrebe, aproveitando a imagem
algo degradada dos EUA (Klein, 2008: 10).
Foram também numerosas as viagens efectuadas na África negra pelo
Presidente Sarkozy que durante a sua campanha tinha prometido renovar,
procurando «limpar» a relação dos mal-entendidos do passado (Thiam, 2008:
873). Com efeito, em Novembro de 2006, ainda antes da sua eleição, os

21 Com efeito, devido às reticências da Alemanha, Reino Unido e outros Estados da UE que tinham
receio de ser excluídos do projecto tal como tinha sido formulado no início. Em Março de 2008, Nicolas
Sarkozy e Angela Merkel chegaram a um entendimento que modificou consideravelmente a proposta
francesa já que todos os membros do Processo de Barcelona poderiam participar, e a União para o Me-
diterrâneo não pretendia substituir-se à Parceria. Além disso, a proposta teria de assumir uma conotação
europeia, ou seja, não deveria ser apresentada como uma iniciativa francesa (s.a., 2008a).
países africanos tinham um certo receio da política que o ‘candidato’ Sa-
rkozy promovia e poderia desenvolver após a sua eleição, nomeadamente
em termos de imigração, tema de grande relevância nas relações bilaterais
193
(Thiam, 2008: 874). Foi aliás por essa ocasião que, em Cotonou, o futuro
Presidente apresentou o seu conceito de «imigração escolhida», tanto para o
país de destino como para o país de origem (Thiam, 2008: 874). Além disso,
o próprio tinha declarado que muitos Africanos se alegravam de ouvir um
novo discurso global sobre a política africana da França (Soudan e Yahmed,
2006: 22). O Presidente pretendia uma nova «visão da parceria» anunciando
um eventual aumento da APD ao qual estaria associada condicionalidade
democrática, já preconizada pelo Presidente Miterrand em 1990 (D’après
agence, 2007).
Contudo, durante a sua primeira deslocação ao continente africano, ao
Senegal, em Julho de 2007, o Presidente tinha proferido um discurso que
suscitou grande polémica à volta da afirmação que o «Homem africano ain-
da não tinha entrado na História» (AFP, 2009), discurso que não convidava
francamente ao diálogo (Mbembe, 2007; Sarkozy, 2008). No entanto, na
cimeira UE-África que se realizou em Dezembro de 2007, Nicolas Sarkozy
procurou lançar as bases do «início da normalização» de relações com a
Costa do Marfim e o Ruanda, dois Estados com os quais as relações se ti-
nham deteriorado durante a presidência de Chirac (Bernard e Nougayrède,
2007). Da mesma forma, no que concerne a Líbia, aproveitando o início
da normalização de relações na viagem de Jacques Chirac em 2004 (Sam-
son, 2004), e no seguimento da libertação bem sucedida das enfermeiras
búlgaras e de um médico palestiniano a 24 de Julho de 2007, criaram-se
novos incentivos, nomeadamente económicos, nas relações franco-líbias.
A grande actividade internacional do Presidente conduziu-o em várias via-
gens pelo continente das quais devemos destacar a tournée realizada em
Março de 2009. 22 Na verdade, apesar de o Presidente desejar «limpar as
relações da Françafrique» de todo o paternalismo e da personalização das
relações entre chefes de Estado e das «redes opacas» (Thiam, 2008: 875),

22 Em 36 horas o Presidente visitou a República Democrática do Congo, o Congo-Brazzaville e


o Niger (Boisbouvier, 2009: 36).
a África não consegue fazer abstracção do facto da França tentar explorar
os recursos do pré carré (Thiam, 2008: 876).
Além disso, a Cimeira África-França que decorreu em Nice nos dias 31
194
de Maio e 1 de Junho pretendeu precisamente privilegiar a parceria com
todos os Estados africanos (pelo menos os presentes), e pôr o acento no
aspecto económico – relevo para o papel dos empresários – mostrando
que as suas afirmações quando ainda era candidato, «a França, econo-
micamente, não precisa da África» (Sarkozy citado em Bernard, 2010)
já não são actuais (Bernard, 2010). Além disso, em termos políticos, a
França comprometeu-se em apoiar os Estados africanos nas suas reivin-
dicações para uma melhor representação nas instâncias internacionais
(Bernard, 2010).
Assim, em três anos, pudemos constatar algumas mudanças nas linhas
da política de Sarkozy pois, finalmente, reintegrou a França na OTAN con-
cretizando o que era apenas uma intenção de Jacques Chirac, demonstrou
uma grande pro-actividade no seio da UE com o intuito de reconquistar
um lugar de destaque e, junto dos países africanos, manifestou durante a
última cimeira África-França, o desejo de reformar as bases da relação que
caracterizou até agora a Françafrique, apesar de nenhuma mudança ser
ainda realmente visível.

Conclusão

Como afirma o especialista Pascal Boniface, a história, as tradições e,


em particular os interesses, são factores poderosos que não podem sim-
plesmente ser postos de lado na condução da política externa (Boniface,
2007a). No desenvolvimento deste capítulo foi assim possível constatar
que os princípios de base lançados pelo General De Gaulle – a busca de
um estatuto de grande potência, a garantia dos seus interesses nacionais, a
preservação de valores fundamentais como a sua independência nacional e
a defesa do seu território (Kessler, 1999: 143-144) – mantiveram-se ao lon-
go das décadas seguintes mas tiveram de adaptar-se às grandes mudanças
geradas pelo fim da bipolaridade.
Na verdade, apesar da recuperação conseguida durante o mandato de De
Gaulle e dos recursos diversos, a aspiração gaullista a um estatuto de «grande
potência» foi, de forma realista, reformulada por Valéry Giscard d’Estaing que
195
forjou o termo «potência média», apercebendo-se que era necessário atenuar
as pretensões algo excessivas da França, guiadas essencialmente pela ideia
do universalismo da sua mensagem (Védrine, 2002: 8). Contudo, conforme
indicou Hubert Védrine pouco depois de ter assumido funções e no segui-
mento da observação das mudanças operadas após o fim da Guerra Fria, a
França é uma das «potências de influência mundial» (Védrine, 1998: 2 e 8).
Vimos igualmente que, pelas disposições constitucionais da Quinta República
e uma certa «dependência do caminho», a continuidade dos principais eixos
da política externa francesa foi mais forte que as mudanças, mesmo se essas
não podem ser ignoradas e decorrem em grande parte das mudanças no sis-
tema internacional e nas regiões com as quais a França tem tradicionalmente
exercido a sua influência. Além disso, devemos ainda referir uma evidência:
a multiplicação da concorrência e das ameaças que afectam os interesses
franceses e o facto de esta continuar a preconizar uma política externa uni-
versal.23 Por outras palavras, considerando que os recursos nacionais não são
ilimitados, poderemos igualmente concluir que a participação no projecto de
integração europeu tem evoluído de forma estratégica mas sempre prioritá-
ria, pois a França acredita que uma Europa forte poderá contribuir para um
melhor equilíbrio mundial e uma acção mais ambiciosa da França.

Questões para análise


O pragmatismo que caracteriza a acção do Presidente Sarkozy e a evolução
das relações internacionais obrigarão a França a rever as suas alianças
internacionais?
Perante uma personalização por vezes excessiva da política externa francesa
pelos Presidentes, em que medida um reequilíbrio institucional poderia

23 «Eu sou dos que pensam que a França permanece portadora de uma mensagem e de valores
que ressoam pelo mundo fora, os da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, do humanis-
mo, mas também, mais recentemente, do humanitário (...)» (Sarkozy, 2007a).
contribuir para um maior controlo democrático sem prejudicar (e até
melhorar) a eficácia dessa política?
Que futuro tem a dupla franco-alemã num contexto de integração europeia
196
em que as divergências entre as partes tendem a tornar-se mais evidentes?
Analise quais podem ser as consequências da reintegração da França na OTAN
para o desenvolvimento da política de defesa europeia e a afirmação da
França nesse domínio.
À luz da emergência de novas potências, fortes concorrentes da França no
continente africano e da ‘renovação’ de muitos dos líderes africanos,
argumente quanto à capacidade actual de influência da França nesse
continente.

Fontes na internet
Presidência da República francesa, http://www.elysee.fr/president/accueil.1.html
Ministério dos Negócios Estrangeiros, http://www.diplomatie.gouv.fr
Organisation Internationale de la Francophonie, http://www.francophonie.org/
Institut Français des Relations Internationales, http://www.ifri.org
Institut de Relations Internationales et Stratégiques, http://www.iris-france.org

Leituras recomendadas
Bozo, F. (1997) La Politique étrangère de la France depuis 1945. Paris: La
Découverte e Syros.
Chevallier, J-J.; Carcassonne, G. e Duhamel, O. (2009) Histoire de la Vè
République 1958-2009. (13è Ed). Paris: Dalloz.
Dalloz, J. (2004) La France et le Monde depuis 1945. Paris: Armand Colin.
De La Gorce, P.-M. e Moschetto, B. (1996).La Vè République. (7ª ed). Paris:
Presses Universitaires de France.
Gallet, B. (1996) Précis de politique étrangère française. Paris: Ellipses.
Kessler, M-C. (1999) La politique étrangère de la France. Acteurs et processus.
Paris: Presses de Sciences-Po.
Bibliografia

AFP (2009) «Au Sénégal, Segolène Royal demande ‘pardon’ pour le ‘discours de Dakar’», Li-
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AFP e Reuters (2005) «La France rejette nettement le traité constitutionnel», Le Monde, 30 Maio.
Apathie, J-M e Ottenheimer, G. (1997) «Entre Chirac et Jospin: la paix armée», L’Express, 10 Julho.
Balladur, E. (2007) Une Vè République plus démocratique: Comité de réflexion et de proposition
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Carlos Gaspar

201

Capítulo 8

G r ã -B r e t a n h a

Nos últimos sessenta e cinco anos, a política externa britânica ficou


marcada por três transições que corresponderam a mudanças sucessivas da
sua posição internacional. Durante a primeira transição, acelerada pela II
Guerra Mundial, a Grã-Bretanha procurou orientar um processo de transfe-
rência gradual das suas responsabilidades como primeira potência ocidental
para os Estados Unidos. Na segunda transição, quando a estabilidade da
divisão bipolar e o fim do império confirmaram a tendência de declínio,
os responsáveis políticos concentraram-se na valorização da posição es-
pecífica da Grã-Bretanha no centro das relações entre os Estados Unidos
e a Europa Ocidental. A terceira transição, depois do fim da Guerra Fria,
realizou-se sob o signo de uma crescente, embora relutante, «europeização»
do velho império.
Em 1945, a Grã-Bretanha era uma das três grandes potências vencedoras
que definiram uma nova ordem internacional assente na institucionalização
das Nações Unidas. Mas o reconhecimento desse estatuto não podia escon-
der que a Grã-Bretanha já não tinha um poder comparável ao dos Estados
Unidos ou da União Soviética, como dizia Sir Alexander Cadogan, os «três
grandes» eram «2 ½ !» (Dilks, 1972: 778). Nesse contexto, para garantir a
continuidade do seu lugar na primeira linha da política internacional, era
necessário encontrar uma forma de assegurar que os Estados Unidos estavam
em posição de preencher os vazios estratégicos criados pelo retraimento
gradual do império britânico. Em 1973, a transferência de poder entre os
dois aliados ocidentais estava feita, quando, finalmente, a Grã-Bretanha entrou
nas Comunidades Europeias e reconheceu a centralidade da política europeia
e ocidental. Depois da descolonização, o velho império quis definir uma
202
posição alternativa onde a sua «relação especial» com os Estados Unidos e o
seu lugar na Aliança Atlântica se articulassem positivamente com uma maior
intervenção na construção europeia. Na altura, a détente bipolar consolidou
a preponderância dual dos Estados Unidos e da União Soviética, ao mesmo
tempo que se iniciava uma viragem na política internacional. Em 1991, o fim
da Guerra Fria e a vitória ocidental acentuaram ainda mais a preponderân-
cia singular dos Estados Unidos, que não precisou de aliados para definir o
sentido da evolução das suas políticas externas, mas também confirmaram
uma tendência de regionalização internacional, onde se tornou mais saliente
a identidade da Grã-Bretanha como uma potência regional europeia.
Entre o fim da II Guerra Mundial e o princípio do pós-Guerra Fria, a
Grã-Bretanha, não obstante ter sido membro proeminente das coligações
vencedoras em todas as guerras hegemónicas do século XX , deixou de ser
uma das três principais potências internacionais, ao lado dos Estados Uni-
dos e da União Soviética, e tornou-se uma das três potências relevantes
da União Europeia, a par da Alemanha e da França, sem nunca se resignar
inteiramente às consequências dessa mudança no seu estatuto internacional.

A terceira superpotência

A vitória da Grã-Bretanha contra a Alemanha na II Guerra Mundial foi


um feito excepcional. A expansão alemã e japonesa, nos primeiros anos
da guerra, parecia irresistível e, depois da rendição da França, o império
britânico enfrentou sozinho as potências do Eixo. A vulnerabilidade da In-
glaterra ficou demonstrada durante o blitz, enquanto a ofensiva japonesa e
a queda de Singapura, onde se renderam mais de cem mil soldados britâ-
nicos, confirmou a vulnerabilidade de um império fragmentado. A invasão
alemã da União Soviética e a entrada dos Estados Unidos na guerra garan-
tiram o lugar da Grã-Bretanha entre as potências vencedoras. Em Teerão,
na Crimeia e em Potsdam, o Primeiro Ministro britânico, Winston Churchill,
esteve ao lado do Presidente Franklin Roosevelt e do Marechal Stalin para
participar nas decisões cruciais sobre a estratégia aliada e a nova ordem
das Nações Unidas.
203
A Grã-Bretanha foi o único Estado da Europa Ocidental que pôde preser-
var o seu estatuto como potência no fim da «guerra civil europeia». A fúria
totalitária do nazismo destruiu a Alemanha e a derrota de 1940 comprometeu
duradouramente o prestígio da França. Em 1944, quando inventou o conceito
de «superpotência», William T.R. Fox incluiu, naturalmente, a Grã‑Bretanha
ao lado dos Estados Unidos e da União Soviética como um dos três Estados
que mereciam essa classificação. Porém, o peso crescente das duas grandes
potências de escala continental revelou os limites do poder britânico, num
contexto em que as ilusões sobre a cooperação internacional eram substi-
tuídas pela competição entre as potências vencedoras.
Em Novembro de 1945, Ernest Bevin, Secretário do Foreign Office, consi-
derava que «we are rapidly drifting into spheres of influence or what it can
be described as three great Monroes» (Warner, 1994: 106). Nesse quadro,
Bevin entendia que, para manter a posição da Grã-Bretanha como um dos
«três grandes» era urgente consolidar o seu estatuto como a principal po-
tência europeia: «Provided we can organize a Western European system it
should be possible to develop our own power equal to that of the United
States of America and the USSR» (Reynolds, 2000: 175).
Os responsáveis britânicos tinham preparado as condições para garantir
a estabilidade europeia no pós-guerra. Na cimeira de Yalta, Churchill e
Anthony Eden, Secretário do Foreign Office, obtiveram, não sem dificul-
dade, o reconhecimento formal da França como membro permanente do
Conselho de Segurança das Nações Unidas e como potência ocupante da
Alemanha. Para Churchill, a restauração da França era indispensável para
conter a ressurgência alemã. A vitória do Partido Trabalhista, nas eleições
de Julho de 1945, confirmou essa estratégia, partilhada pelo novo Primeiro
Ministro, Clement Attlee. Para Bevin, a aliança entre as duas democracias
era a chave para consolidar a Europa Ocidental como uma «Terceira Força»
entre os Estados Unidos e a União Soviética.
Esse processo, porém, foi travado pela crise financeira britânica, pela
resistência do general de Gaulle à aliança britânica e, sobretudo, pela
força da ameaça soviética. O Governo trabalhista acabou por reconhecer
que a Grã-Bretanha, para poder continuar a ser uma grande potência in-
ternacional, não podia, simultaneamente, sustentar um império colossal,
204
conter a pressão soviética e assegurar a reconstrução de uma Europa física
e moralmente arruinada. O preço da vitória na II Guerra Mundial foi uma
dependência crescente em relação aos Estados Unidos. Quando a sobrevi-
vência da Grã‑Bretanha estava em causa, a aliança americana era a única
alternativa, que justificava a cedência de bases militares aos Estados Unidos
nas possessões britânicas no hemisfério ocidental, um endividamento maciço
e a transferência do programa nuclear para território norte-americano, bem
como o reconhecimento da supremacia financeira da nova grande potência
nos acordos de Bretton Woods. A força das coisas legitimou a estratégia
pela qual o velho império transferiu, gradualmente, as posições de poder
que não podia continuar a manter para o seu principal aliado, procurando
influenciar as políticas externas norte-americanas. A troca de lugares entre as
duas principais potências ocidentais na hierarquia internacional representou
um processo sem precedentes históricos, que limitou as consequências do
declínio da Grã-Bretanha e consolidou a preponderância dos Estados Unidos.
O momento crítico ocorreu no início de 1947, quando o Governo to-
mou decisões cruciais sobre o seu programa nuclear, o futuro da Índia e
da Palestina e a situação na Grécia e na Turquia, num contexto de crise
económica interna. Em Janeiro, a incerteza sobre as intenções dos Esta-
dos Unidos para cumprirem os acordos bilaterais de cooperação nuclear
forçou as autoridades britânicas a decidir, secretamente, desenvolver a sua
capacidade autónoma de produção de armas nucleares, sem a qual o seu
estatuto como grande potência ficaria comprometido. No mês seguinte,
Bevin anunciou a decisão de devolver a questão da Palestina, que mobi-
lizava mais de cem mil soldados britânicos, às Nações Unidas, enquanto
Attlee, depois das revoltas que causaram centenas de milhares de mortos
em confrontos entre as comunidades hindu e muçulmana, fixava a data da
independência da Índia, marcada para Junho de 1948. Esses recuos não
eram uma retirada e deviam abrir caminho à consolidação da Commonwealth
e reforçar as restantes posições britânicas na Ásia e no Médio Oriente.
Finalmente, em 21 de Fevereiro, Bevin comunicou ao Secretário de Estado
norte-americano, George Marshall, que o seu Governo decidira cessar o
apoio à Grécia e à Turquia, ambas sob forte pressão soviética, a partir de 31
de Março. Nos termos da nota oficial, as autoridades britânicas esperavam
205
que os Estados Unidos pudessem assumir esse fardo, avaliado em cerca de
quatrocentos mil dólares por ano, o que representava 1% do orçamento
federal norte‑americano para esse ano. Quando, em 5 de Março, Bevin e o
seu homólogo francês, Georges Bidault, assinaram, em Dunkerk, o tratado
de aliança bilateral entre a Grã-Bretanha e a França, era tarde demais para
o transformar no instrumento de construção de uma «terceira potência»
europeia assente na entente das duas democracias.
A transferência de responsabilidades na Grécia e na Turquia foi um sinal
dramático do declínio britânico. O Presidente Harry Truman respondeu, em
12 de Março, com a «doutrina Truman», que garantia o apoio dos Estados
Unidos às nações dispostas a defender a sua independência. Em 5 de Junho,
o «Plano Marshall» foi apresentado e a Grã-Bretanha e a França assumiram,
em conjunto, a resposta europeia às propostas norte-americanas, que pro-
vocaram a primeira divisão formal da Europa, quando a União Soviética se
recusou a participar e proibiu a Checoslováquia e a Polónia de aderir ao
Programa de Recuperação Europeia.
A «cortina de ferro», anunciada por Churchill em Fulton, desfez as ilusões
sobre a paz europeia e provocou uma escalada das tensões no eixo Leste-
Oeste. Numa continuidade sem falhas – os diplomatas do Foreign Office
diziam que a política de Bevin era a de Eden «without the haches» –, a
estratégia britânica concentrou-se em assegurar a permanência das forças
militares norte-americanas na Alemanha e em institucionalizar a posição
dos Estados Unidos como uma potência europeia.
O Plano Marshall e a fusão das zonas de ocupação britânica e norte‑ame-
ricana na Alemanha foram passos importantes nesse sentido, tal como a
definição de uma estratégia comum para a criação da nova moeda e de
um banco central alemão, concertada entre Marshall, Bevin e Bidault na
Conferência de Londres, em Dezembro de 1947. A resposta de Stalin foi,
primeiro, o golpe de Praga e, depois, o corte das vias de comunicação de
superfície com os sectores ocidentais de Berlim que atravessavam a zona
de ocupação soviética da Alemanha. Bevin foi crucial na decisão de resistir
ao bloqueio de Berlim e de criar uma ponte aérea permanente para manter
os abastecimentos indispensáveis à sobrevivência dos habitantes, o que
exigiu uma mobilização maciça dos meios aéreos americanos e britânicos
206
durante meses sucessivos.
O erro de Stalin precipitou a formação da aliança ocidental. Em Janeiro
de 1948, Bevin propusera a Marshall a criação de um Atlantic Approaches
Pact, reunindo os países nas duas margens do Atlântico Norte. Mas os Estados
Unidos queriam uma demonstração prévia da determinação europeia em ga-
rantir a sua defesa e a Grã-Bretanha, em conjunto com a França, a Holanda,
a Bélgica e o Luxemburgo, criou, em Março, a União Ocidental – «a sprat to
catch the mackerel», na fórmula prosaica atribuída a Bevin (Shlaim, 1977:
48). Nos meses seguintes os Estados Unidos, o Canadá e os cinco membros
da União Ocidental definiram os termos do Pacto do Atlântico Norte, para
o qual convidaram também a Noruega, a Dinamarca, a Islândia, a Itália e
Portugal. Os doze fundadores assinaram o tratado de Washington em 4 de
Abril de 1949, nas vésperas do fim da crise de Berlim e da fundação da
República Federal, o novo Estado alemão constituído no território das três
zonas de ocupação ocidentais.
A Aliança Atlântica era o instrumento perfeito para consolidar a «relação
especial» entre os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, que garantia não só a
segurança europeia perante a ameaça da União Soviética, como a contenção
dos riscos da ressurgência alemã, ao mesmo tempo que reforçava a posi-
ção britânica como a principal potência europeia – para Bevin, como para
Churchill, a Grã-Bretanha era um arco entre os Estados Unidos e a Europa.
Mas a garantia norte-americana tornou também possível uma convergência
entre a França e a República Federal, que se concretizou na formação da
Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, com o apoio empenhado dos
Estados Unidos.
O Ministro dos Negócios Estrangeiros francês, Robert Schuman não in-
formou Bevin da sua iniciativa de 8 de Maio de 1950, da qual só tinham
conhecimento o Chanceler alemão, Konrad Adenauer e o Secretário de
Estado norte-americano, Dean Acheson. Na altura, o Secretário do Foreign
Office não escondeu a sua fúria contra Acheson e Schumann, mas a sua
reacção significava o reconhecimento de um problema que prejudicava
a estratégia britânica e não uma vontade de estar presente na criação do
projecto federal europeu.
A Grã-Bretanha não queria ser parte do processo comunitário. Na
207
frase de Churchill, os britânicos «are with, but not of Europe» (White,
1992: 14). No pós-guerra, os britânicos não partilhavam com os outros
europeus a profunda desilusão com o Estado nacional em que assentou
o projecto de unificação da Europa. Ao contrário dos outros Estados
europeus, a Grã-Bretanha demonstrou a sua capacidade de sobreviver,
mesmo depois da Europa continental se ter unido contra o velho impé-
rio. Nesse sentido, os britânicos tinham razões válidas para continuar
a confiar no Estado e o cepticismo perante a integração europeia era
partilhado tanto pelos conservadores, como pelos trabalhistas. Bevin
justificava a sua oposição ao federalismo invocando os clássicos gregos:
«if you open Pandora’s box you never know what Trojan horses will
jump out» (Bullock, 1983: 659).
Essa divergência política fundamental sustentou uma estratégia que
procurava definir a posição britânica como o lugar geométrico em que, na
fórmula de Churchill, se uniam «três círculos» – o círculo imperial, o círculo
atlântico e o círculo europeu. Só a Grã-Bretanha era uma grande potência em
cada um desses três círculos e, nesse sentido, tinha uma capacidade única
para os articular. O círculo imperial garantia à Grã-Bretanha uma presença
efectiva em todos os continentes: a Commonwealth of Nations prefigurava
um «império informal», onde a Índia ou o Paquistão se encontravam ao
lado dos velhos dominions brancos, como o Canadá, a Austrália, a Nova
Zelândia ou a União da África do Sul, enquanto as autoridades coloniais
britânicas se empenhavam em federar os territórios dependentes na Ásia
do Sudeste, na África Central e na África Oriental. Os Estados Unidos e a
Grã-Bretanha (e o Canadá) eram membros da Organização do Tratado do
Atlântico Norte (OTAN), a «relação especial» incluía uma dimensão nuclear
única, reforçada pela presença de uma parte significativa dos bombardei-
ros nucleares norte-americanos em Inglaterra desde a crise de Berlim e
os britânicos eram o único aliado internacional dos Estados Unidos, com
uma presença estratégica na Ásia do Sudeste, na Ásia do Sul e no Médio
Oriente. A Grã‑Bretanha ligava a Europa aos Estados Unidos através da
Aliança Atlântica e o seu estatuto como potência nuclear reforçava a sua
superioridade militar na relação com os parceiros europeus.
A vitória do Partido Conservador nas eleições de Outubro de 1951 trouxe
208
Churchill e Eden de regresso aos seus respectivos lugares como Primeiro
Ministro e Secretário do Foreign Office, sem alteração significativa das po-
líticas externas. Churchill defendeu o regresso às cimeiras entre os Estados
Unidos, a União Soviética, a Grã-Bretanha e a França, que valorizava a sua
posição internacional. Eden teve uma intervenção decisiva para impedir que
a débâcle da Comunidade Europeia de Defesa (CED) prejudicasse a arqui-
tectura de segurança europeia e garantiu a entrada da Alemanha na Aliança
Atlântica, depois da revisão do tratado de Bruxelas e do alargamento da
União da Europa Ocidental (UEO). O Governo conservador manteve intacta
a oposição à adesão britânica ao processo comunitário – «something which
we know, in our bones, that we cannot do» (Carlton, 1981: 311), segundo o
Secretário do Foreign Office – antes e depois de Eden ter substituído Chur-
chill como Primeiro Ministro e ganho as eleições gerais, em Maio de 1955.
A posição internacional da principal potência europeia, consolidada pela
formação da Aliança Atlântica, pelo sucesso do seu programa nuclear e pela
estabilização da segurança europeia, foi posta à prova no Médio Oriente.
A Grã-Bretanha, em Fevereiro de 1955, formou o Pacto de Bagdad, com
a Turquia, membro da Aliança Atlântica, e o Iraque, o seu melhor aliado
regional, aos quais se juntaram o Irão e o Paquistão. Eden queria integrar
o Egipto nesse pacto ocidental, mas o Coronel Nasser resistiu às pressões
britânicas e norte-americanas e pôde desenvolver as suas relações com a
União Soviética para modernizar o exército e a força aérea egípcia, cujos
bombardeiros se tornaram uma ameaça séria contra Israel.
Em 26 de Julho de 1956, os britânicos foram surpreendidos pela na-
cionalização do Canal do Suez, que dividiu os aliados ocidentais. Para
os europeus, nomeadamente para Eden, aceitar a provocação de Nasser
seria repetir os erros dos anos trinta, com cedências sucessivas perante as
potências revisionistas, mas, para os norte-americanos, a Companhia do
Suez não passava de uma relíquia colonial. A Grã-Bretanha e a França, em
conjunto com Israel, decidiram intervir contra o Egipto, para provocar a
mudança do regime de Nasser. As forças israelitas avançaram até ao Suez e
a invasão franco-britânica iniciou-se em 5 de Novembro. Porém, Eden não
tinha concertado a intervenção com os Estados Unidos e não antecipou a
oposição do Presidente Dwight Eisenhower, o qual, nas vésperas da ree-
209
leição, decidiu demarcar-se do seu principal aliado e condenar a invasão
nas Nações Unidas, ao lado da União Soviética, cujos exércitos estavam a
invadir a Hungria nesse momento. Nesse contexto inédito, Eden decidiu
recuar, ordenar a retirada das suas forças e demitir-se.
É difícil subestimar a importância da crise do Suez. Por certo, o recuo
britânico (e francês) não fez mais do que confirmar a sua perda de poder
e o novo Primeiro Ministro conservador, Harold Macmillan, pôde restaurar
rapidamente a «relação especial», numa cimeira com o General Eisenhower,
em Março de 1957, que confirmou a aliança nuclear bilateral. Não obstante,
a crise do Suez foi uma demonstração clara da preponderância das super-
potências – os Estados Unidos não admitiam uma intervenção dos seus
aliados que não tinham autorizado, mas não fizeram nada contra a invasão
soviética da Hungria. Por outro lado, marcou o declínio definitivo dos impé-
rios ultramarinos europeus, como o reconheceu Macmillan no seu discurso
célebre sobre os «ventos da mudança», que acelerou a descolonização afri-
cana. Finalmente, em plena crise, perante a condenação norte-americana e
o recuo britânico, o Primeiro Ministro francês, Guy Mollet, e o Chanceler
alemão, Konrad Adenauer, decidiram dar um passo crucial no processo de
integração, que levou à assinatura dos tratados de Roma e à formação da
Comunidade Económica Europeia (CEE), em Março de 1957.
A Grã-Bretanha não podia continuar à margem do processo comunitário
e, no ano seguinte, respondeu à criação da «Little Europe» com uma proposta
para formar uma área de livre comércio entre todos os países da Europa
Ocidental, prontamente vetada pelo General de Gaulle. Nesse contexto,
em 1959, a Grã-Bretanha decidiu formar a Associação Europeia de Livre
Comércio (EFTA), em conjunto com a Suécia, a Noruega, a Dinamarca, a
Irlanda, a Suíça, a Áustria e Portugal, numa tentativa de opor uma «Europa
dos Sete» à «Europa dos Seis», que não resistiu ao sucesso das Comunidades
Europeias. A integração comunitária não só fortalecia a posição relativa
da França e da Alemanha no contexto europeu, como tinha o apoio dos
Estados Unidos. O Presidente Eisenhower tomou posição a favor da CEE
contra a EFTA e o Presidente John Kennedy era um defensor dos Estados
Unidos da Europa e de uma nova «Parceria Transatlântica».
Em Julho de 1961, Macmillan admitiu na Câmara dos Comuns a necessidade
210
de conhecer os termos de uma possível adesão às Comunidades Europeias,
depois de lhe ter sido confirmado, em Washington, que as relações com
os Estados Unidos seriam reforçadas, e não enfraquecidas, pela entrada da
Grã-Bretanha na ‘Europa dos Seis’. Paralelamente, para neutralizar a von-
tade francesa (e alemã) de desenvolver um programa nuclear europeu, os
Estados Unidos propuseram a criação de uma Força Multilateral (MLF) que
garantiria um controlo conjunto das armas nucleares no quadro da OTAN
e admitiram rever a sua relação com a Grã-Bretanha, cuja força nuclear era
considerada supérflua.
Na cimeira anglo-americana de Nassau, em Dezembro de 1962, Macmillan
conseguiu preservar a posição da Grã-Bretanha como potência nuclear, em-
bora dependente dos Estados Unidos na escolha dos vectores de lançamento.
No final de um processo confuso, que prejudicou a posição de Macmillan,
Kennedy acabou por impor a entrega, em condições razoáveis, dos mísseis
Polaris à força nuclear britânica, que estava integrada no dispositivo militar
da OTAN, embora o Governo pudesse actuar independentemente quando
estivessem em causa os «supremos interesses nacionais». Em resposta, no
dia 14 de Janeiro de 1963, o General de Gaulle anunciou o seu veto à
entrada da Grã-Bretanha nas Comunidades Europeias, que significaria a
formação de uma «colossal comunidade atlântica dependente dos Estados
Unidos que rapidamente absorveria a comunidade europeia» (Reynolds, 2000:
207). O General considerava a Grã-Bretanha como um «cavalo de Tróia»
norte‑americano, cuja entrada nas Comunidades Europeias podia abrir a
caixa de Pandora e destruir o projecto europeu.
Dean Acheson concluiu que a Grã-Bretanha «had lost an Empire and
has not yet found a role» (Horne, 1989: 429). O veredicto do Macmillan,
no seu diário, não era menos severo, «All our policies at home and abroad
are in ruins» (Horne, 1989: 447). Em Outubro, o Primeiro Ministro demitiu-
se, mas a sua linha de consolidação da «relação especial» com os Estados
Unidos inserindo a Grã-Bretanha nas Comunidades Europeias para manter
o seu estatuto internacional manteve-se nos dez anos seguintes e assegurou
o consenso entre o Partido Conservador e o Partido Trabalhista sobre a
necessidade de entrar nas Comunidades Europeias.

211

O parceiro indispensável

Depois da demissão do General de Gaulle, em 1969, o Presidente Georges


Pompidou e o Chanceler Willy Brandt empenharam-se ambos, ao lado do
Primeiro Ministro Edward Heath, em acelerar a adesão britânica e, em 1 de
Janeiro de 1973, a Grã-Bretanha, em conjunto com a Dinamarca e a Irlanda,
tornou-se membro das Comunidades Europeias. Os acordos negociados
pelo Governo conservador foram contestados pelo Partido Trabalhista, que
ganhou as eleições em Fevereiro de 1974, mas o novo Primeiro Ministro,
Harold Wilson, pôde renegociar os termos da adesão e, em Junho de 1975,
num referendum sem precedentes, mais de dois terços dos eleitores bri-
tânicos pronunciaram-se a favor da entrada nas Comunidades Europeias.
A entrada da Grã-Bretanha nas Comunidades Europeias representou uma
mudança profunda na sua política externa. No fim da década de sessenta, a
descolonização estava concluída – faltava resolver a questão da declaração
unilateral de independência da Rodésia para encerrar a última etapa africana.
O Governo tinha decidido retirar de todas as bases no Médio Oriente e na
Ásia – East of Suez, na fórmula canónica da doutrina imperial britânica –,
com excepção de Hong Kong, até 1971. A doutrina militar oficial deixou
de admitir a possibilidade de intervir militarmente numa crise externa sem
os Estados Unidos, enquanto o Governo trabalhista se recusava, invocando
razões internas, a participar na Guerra do Vietname ao lado do seu prin-
cipal aliado. Essa redução drástica das responsabilidades internacionais da
Grã-Bretanha correspondia a uma concentração dos recursos estratégicos,
incluindo o dissuasor nuclear independente, das dimensões europeia e
transatlântica da sua política externa.
Na viragem da Guerra Fria, entre a détente bipolar e a Ostpolitik alemã,
parecia ser possível restaurar a posição internacional da Europa. O Livro
Branco sobre a Grã-Bretanha e a Europa, publicado em Julho de 1971, con-
siderava que «num mundo mais multipolar, uma Europa unida teria os meios
para recuperar a posição internacional perdida por uma Europa dividida».
Nesse contexto, a adesão tornava-se imperativa: se a Grã-Bretanha voltasse
a recusar a entrada nas Comunidades, teria «na mesma geração, renunciado
212
ao império e rejeitado um futuro europeu» (Reynolds, 2000: 228).
Porém, por força dos sucessivos adiamentos, a Grã-Bretanha acabou
por se integrar na Europa comunitária no pior momento possível, no fim
do longo período de crescimento europeu e nas vésperas da crise ener-
gética. O «euro-pessimismo» paralisante dos anos seguintes foi acentuado
pela percepção do declínio dos Estados Unidos, manifesto na passividade
perante a intervenção cubana em Angola ou no Ogaden e na ausência de
uma resposta à instalação dos novos mísseis SS-20 no teatro europeu.
A finalidade da estratégia britânica de adesão era restaurar um círculo
virtuoso em que a sua «relação especial» com os Estados Unidos e a sua
posição nas Comunidades Europeias se fortalecessem reciprocamente. A
retirada da França dos comandos militares integrados da OTAN e a adesão
britânica às Comunidades Europeias reforçaram o estatuto da Grã-Bretanha
como o parceiro indispensável dos Estados Unidos. Mas a visão britânica
permaneceu imune ao charme do federalismo e céptica acerca dos méritos
do «método comunitário», enquanto a sua estratégia pragmática defendia uma
concertação ao mais alto nível entre as três principais potências europeias
no Conselho Europeu. Essa posição podia contar, pelo menos conjuntu-
ralmente, com o apoio dos gaullistas franceses e dos sociais-democratas
alemães e o Conselho Europeu passou a ter uma nova centralidade nas
Comunidades Europeias.
Numa fase inicial, com Heath, Pompidou e Brandt, o «trilateralismo»
garantiu à Grã-Bretanha uma posição relevante no centro da decisão co-
munitária, que, de resto, se traduziu em posições comuns contra a política
norte-americana. Nos meses seguintes à adesão, o entusiasmo europeísta
de Edward Heath ficou demonstrado quando a Grã-Bretanha se juntou à
França para rejeitar as propostas do Secretário de Estado norte-americano,
Henry Kissinger, sobre uma nova Carta do Atlântico. No mesmo sentido,
em Outubro de 1973, os aliados europeus, com excepção da Holanda e de
Portugal e incluindo a Grã-Bretanha, rejeitaram o pedido dos Estados Unidos
para usar as suas bases na ponte aérea para Israel, durante a Guerra do
Yom Kippur. Esse breve intervalo não sobreviveu à restauração do «eixo»
franco-alemão, com o Presidente Giscard d’Estaing e o Chanceler Helmut
Schmidt. Em 1974, a Grã-Bretanha deixou de ter lugar no centro das decisões
213
comunitárias sem que a sua diplomacia conseguisse compensar essa perda
com uma maior intervenção internacional. No ano seguinte, a formação do
G7 – uma cimeira ao mais alto nível com os Estados Unidos, a França, a
Alemanha, o Japão, a Grã-Bretanha, a Itália e o Canadá – resultou de uma
iniciativa do Presidente francês. Em Março de 1979, a Grã-Bretanha foi o
único membro das Comunidades Europeias a não aderir ao Mecanismo de
Taxas de Câmbio (ERM) do Sistema Monetário Europeu, confirmando os
limites da sua integração. A «dupla decisão» da OTAN, que abriu caminho à
instalação dos Pershing II na Europa Ocidental para contrabalançar os SS-20
soviéticos, foi imposta pela intervenção do Chanceler alemão.
Nos primeiros anos da adesão, acumularam-se os sinais de crise económica
e social na Grã-Bretanha. Em 1976, o Primeiro Ministro James Callaghan teve
de pedir um empréstimo ao Fundo Monetário Internacional para travar a
queda da Libra estrelina. Entre 1973 e 1979, a inflação média foi de 15% e
o produto interno bruto cresceu somente 1.3% por ano, os piores números
das Comunidades Europeias. As greves sucediam-se com aumentos salariais
constantes. Em Maio de 1979, o Partido Conservador regressou ao poder com
um programa de reformas radical, determinado a travar a inflação e a conter
a força dos sindicatos. Mas as novas políticas precisaram de tempo antes
de produzir efeitos e, nos anos seguintes, a inflação continuou demasiado
elevada, o produto interno bruto diminuiu, o desemprego ultrapassou 10%
e persistiu a instabilidade social. Em finais de 1981, Margaret Thatcher era
o Primeiro Ministro mais impopular desde Neville Chamberlain.
Thatcher foi salva pela Junta militar argentina que, no dia 2 de Abril de
1982, decidiu invadir as ilhas Falkland – um minúsculo arquipélago com
pouco mais de mil habitantes, isolado nos confins do Atlântico Sul. A crise
das Falkland inverteu o paradigma da crise do Suez. A Grã-Bretanha tinha
a obrigação de defender a sua colónia e a Argentina foi condenada pelo
Conselho de Segurança, no dia seguinte à invasão. Dois dias depois, Tha-
tcher enviou uma força de intervenção para o Atlântico Sul que expulsou
as forças da Junta militar da capital das Falkland no dia 14 de Junho. Os
Estados Unidos prestaram um apoio decisivo à intervenção britânica no
Atlântico Sul e as Comunidades Europeias decretaram sanções contra a
Argentina. No fim do conflito, as sondagens indicavam que mais de 80%
214
dos britânicos apoiavam o modo como o Governo tinha resolvido a crise.
O Partido Conservador venceu as duas eleições gerais seguintes, em 1983
e em 1987.
No momento da vitória, o Primeiro Ministro proclamou: «We have ceased
to be a nation in retreat» (Reynolds, 2000: 245). Mas a crise das Falkland
não alterou a posição internacional, nem a politica externa britânica. O
Governo conservador mostrara o seu pragmatismo desde o princípio do seu
mandato, em 1980, com os acordos de Lancaster House, quando Peter Car-
rington, Secretário do Foreign Office, resolveu a crise rodesiana e assegurou
a independência do Zimbabwe. Em 1983, quando a República Popular da
China impôs a realização de negociações sobre a colónia de Hong Kong, a
parte chinesa, perante a resistência inicial da parte britânica às propostas
sobre o processo de transferência de poderes, limitou-se a sublinhar que
«a China não era a Argentina e Hong Kong não era as Falkland». Em 1985,
Margaret Thatcher e Zhao Ziyang, o seu homólogo chinês, assinaram, em
Pequim, a Declaração Conjunta sino-britânica sobre o futuro de Hong
Kong, que confirmou a transferência de soberania para a China em Julho
de 1997. A flexibilidade britânica voltou a ser comprovada em 1985, nos
acordos com a Irlanda sobre a segurança no Ulster, uma viragem crucial
no processo de paz.
A prioridade atribuída à «relação especial» era dogmática para Thatcher,
não obstante o fortalecimento da linha europeísta no partido conservador.
A eleição do Presidente Ronald Reagan foi importante para consolidar a
aliança anglo-americana. O Governo conservador esteve na primeira linha
de defesa da instalação dos Euromísseis da OTAN, incluindo a sua instalação
em território britânico, não obstante ter de enfrentar uma forte campanha
pacifista, que radicalizou as posições do Partido Trabalhista. Em 1982,
a aliança nuclear foi confirmada pela decisão britânica de substituir os
mísseis Polaris pelos novos Trident. No momento crucial, a administração
republicana apoiou a intervenção nas Falkland e, em 1986, échange de bons
procédés, Thatcher, contra a posição dos seus parceiros europeus, apoiou
a intervenção norte-americana na Líbia, a partir de bases na Grã-Bretanha.
No intervalo, em 1983, Thatcher não protestou quando os Estados Unidos
invadiram Grenada, um Estado membro da Commonwealth, sem ter previa-
215
mente avisado o seu melhor aliado europeu.
O Primeiro Ministro britânico foi importante na definição da resposta
americana à sucessão interna na União Soviética, em 1985. Thatcher de-
fendeu uma posição de abertura quando Mikhail Gorbachev foi nomeado
Secretário-Geral do Partido Comunista. Contra o cepticismo ocidental sobre
o sentido da perestroika, Thatcher, que os soviéticos tinham baptizado como
a «Iron Lady», deu a sua bênção a Gorbachev – «We can do business toge-
ther» (Young, 1991: 393) – e contribuiu para uma posição convergente de
Reagan e para uma segunda détente nas relações Leste-Oeste. A diplomacia
britânica voltou a ter uma projecção relevante na política internacional, bem
como na política europeia.
Desde a adesão, a política comunitária britânica ficou marcada pelo pro-
blema da sua contribuição excessiva e desproporcionada – a Grã-Bretanha
pagava perto de mil milhões de libras anualmente para o orçamento das
Comunidades Europeias – que, de resto, tinha sido o objecto principal da
renegociação reclamada pelo Governo trabalhista, em 1974. Thatcher deci-
diu transformar esse tema numa questão política para mobilizar a opinião
pública contra as Comunidades Europeias – «We want our money» era a
sua palavra de ordem –, e para se demarcar do projecto federalista, mesmo
à custa de um isolamento crescente no Conselho Europeu, resumida na
frase deselegante de Giscard d’Estaing que se referia ao Primeiro Ministro
britânico como «la fille d’épicier» (Young, 1991: 187).
A linha de Thatcher era um «gaullismo liberal», uma contradição de
termos que combinava um nacionalismo anti-federalista com uma posição
anti-estatista: «We have not rolled back the fortress of the state in Britain
only to see it re-imposed at a European level with a European super-state»
(Reynolds, 2000: 255). Todavia, essa linguagem, que contrastava com a
ideologia europeia, não se traduziu numa estratégia de ruptura, como a
«cadeira vazia» do General de Gaulle, confirmando a interpretação de Lord
Soames sobre a sua política: «On Europe, she is an agnostic who continues
to go church» (Young, 1991: 185).
O Conselho Europeu de Fontainebleau, em Junho de 1984, resolveu a
questão da contribuição britânica, com o reembolso de 66% da sua contri-
buição anual em imposto de valor acrescentado. Esse acordo tornou possível
216
aprovar o Acto Único Europeu, em Dezembro de 1985, bem como completar
o alargamento das Comunidades europeias às novas democracias em Portugal
e em Espanha. Por uma vez ao lado do Presidente da Comissão Europeia,
Jacques Delors, Thatcher empenhou-se na defesa do Acto Único e aceitou o
voto por maioria qualificada para a execução do programa de liberalização
da economia europeia. No mesmo sentido, o Governo conservador era a
favor da Cooperação Política Europeia (CPE) e de uma maior articulação
das políticas externas, nomeadamente entre a Grã-Bretanha, a França e a
Alemanha. A estabilização da posição britânica nas Comunidades Europeias
não só contribuiu para a uma política externa mais equilibrada, como se
revelou decisiva para a recuperação económica da Grã-Bretanha. Mas a
revolução europeia de 1989, que abriu caminho à unificação da Alemanha,
provocou mais uma crise grave.
Em coerência com o seu apoio a Gorbachev, Thatcher empenhou-se em
apoiar a linha reformista na Europa de Leste. O Primeiro Ministro teve um
encontro com a direcção do Solidarnosc em Gdansk, durante a sua visita
oficial à Polónia, que contribuiu para o início do processo da «mesa redonda»,
onde o regime comunista e a oposição definiram o processo de transição
que esteve na origem da mudança que levou à queda do Muro de Berlim
e à deposição sucessiva dos regimes comunistas na Europa de Leste. Mas o
entusiasmo da «Iron Lady» sobre o fim do comunismo não incluía a unifica-
ção da Alemanha. Para Thatcher, a «questão alemã» persistia intacta no final
do século XX: «Germany is by its very nature more of a destabilizing than
a stabilizing force in Europe» (Thatcher, 1993: 791). Na melhor tradição, o
Primeiro-Ministro queria contra-balançar o regresso do perturbador europeu
com uma aliança entre a Grã-Bretanha e a França. Num primeiro momento,
Thatcher e o Presidente François Mitterrand uniram esforços para travar a
estratégia de unificação acelerada do Chanceler Helmut Kohl, apoiada pelo
Presidente George Bush. Mas o Presidente francês acabou por preferir um
compromisso com o Chanceler alemão sobre uma nova etapa da unificação
europeia e deixou o Primeiro Ministro britânico isolado.
Depois do seu fracasso, a oposição radical de Thatcher às propostas
franco-alemãs sobre a unificação monetária e a reforma das instituições
europeias subiu de tom, quando declarou na Câmara dos Comuns que a
217
Comissão Europeia queria «extinguir a democracia» e impor o federalismo
«pela porta das traseiras» (Reynolds, 2000: 271). Essa radicalização esteve
na origem da demissão do seu Vice-Primeiro Ministro, Geoffrey Howe, que
desencadeou o processo interno de substituição de Margaret Thatcher pelo
Ministro das Finanças, John Major, escolhido para dirigir o Partido Conser-
vador em 28 de Novembro de 1990.

Os dilemas da política externa britânica

O fim da Guerra Fria não resolveu os dilemas da política externa bri-


tânica. Mais uma vez, a Grã-Bretanha tinha uma posição destacada na
coligação vencedora, como o principal aliado dos Estados Unidos. O Go-
verno britânico antecipou a viragem soviética e apoiou a linha reformista
na Europa de Leste, mas resistiu à estratégia norte-americana de unificação
da Alemanha, mesmo depois de a França ter mudado de campo. De certa
maneira, tanto a nova preponderância internacional dos Estados Unidos,
como o peso crescente da Alemanha, tornavam mais difícil a posição da
Grã-Bretanha, dividida, como sempre, entre a sua vocação internacional e
a sua vinculação europeia.
A «relação especial» passou a ser menos relevante para os aliados ame-
ricanos e os alemães eram candidatos alternativos ao lugar de principal
parceiro europeu, enquanto a integração europeia se tornou mais impor-
tante para todos os Estados europeus e os britânicos corriam o risco de ser
secundarizados pelo eixo franco-alemão na formação da União Europeia.
As prioridades britânicas não tinham mudado, mas as circunstâncias do
pós-Guerra Fria pareciam exigir uma alteração dos equilíbrios entre a di-
mensão internacional, a dimensão atlântica e a dimensão europeia da sua
política externa.
Foi nesse contexto que John Major iniciou o seu primeiro mandato como
Primeiro Ministro. A «relação especial» estava em declínio. O Presidente
George Bush tinha conduzido as conversações sobre a unificação da Ale-
manha com a União Soviética e a Alemanha sem contar com os seus aliados
britânicos. A Grã-Bretanha e a França participaram ambas nas conferências
218
2+4, entre a República Federal e a RDA e as quatro potências ocupantes,
e assinaram os acordos finais que restauraram a soberania da Alemanha,
mas não tiveram uma intervenção decisiva na diplomacia da unificação.
Thatcher foi intransigente sobre a necessidade da Alemanha unificada
permanecer na OTAN como membro de parte inteira, quando o Secretário
de Estado, James Baker, e o Ministro dos Negócios Estrangeiros alemão,
Hans-Dietrich Genscher, se comprometiam a limitar a expansão oriental da
Aliança Atlântica. Na mesma linha, opôs-se às propostas norte-americanas
e alemãs de revisão da doutrina nuclear da OTAN no comunicado final da
cimeira do Conselho do Atlântico Norte, realizada em Julho de 1990, nas
vésperas do encontro crucial entre Gorbachev e Kohl. Em Agosto, o Primei-
ro Ministro encontrou-se com Bush logo nos dias seguintes à invasão do
Koweit, quando uma parte importante dos responsáveis da administração
republicana, incluindo o Secretário da Defesa, Richard Cheyney, admitiam
reconhecer a anexação como um facto consumado. Thatcher defendeu que
os Estados Unidos deviam intervir sozinhos para expulsar o Iraque, como
ela própria tinha feito nas Falklands. O Presidente norte-americano fez o
contrário e reuniu uma vasta coligação internacional, sob a égide das Na-
ções Unidas, antes de iniciar as hostilidades contra o Iraque para restaurar
a independência do Koweit.
Na fase final da crise iraquiana, John Major, o novo Primeiro Ministro,
seguiu a linha americana e mobilizou 35 mil soldados – o maior contingente
aliado – para apoiar a intervenção militar dos Estados Unidos, em Fevereiro
de 1991. Mas os factores de crise da «relação especial» eram mais fundos
e o estatuto excepcional da única superpotência sobrevivente implicava
uma distância crescente dos Estados Unidos em relação à Grã-Bretanha e à
comunidade transatlântica. Paralelamente, a política comunitária britânica
também estava em crise. Major, um defensor da estratégia de integração que
assegurou a adesão britânica ao Mecanismo de Taxas de Câmbio (ERM),
entendia bem que o lugar da Grã-Bretanha nas Comunidades Europeias de-
via ser no centro da decisão, nas suas palavras, «within the charmed circle»
(Reynolds, 2000: 280), ao lado da França e da Alemanha. Mas o sucessor
de Thatcher não tinha condições políticas para pagar o preço de entrada
nesse círculo e a sua posição foi sempre defensiva perante as propostas
219
francesas e alemãs apresentadas nas conferências inter-governamentais
durante a negociação do Tratado da União Europeia.
Nesse processo crucial, a Grã-Bretanha era a favor da institucionali-
zação da Política Externa e de Segurança Comum (PESC), mas contra as
tentativas francesas de criar um quadro autónomo para a defesa europeia
e recusou-se a discutir sequer a possibilidade de integrar a UEO na União
Europeia, ou a admitir qualquer iniciativa que pudesse prejudicar a OTAN,
num momento crítico em que os próprios Estados Unidos podiam querer
deixar cair a aliança transatlântica. No mesmo sentido, os britânicos conti-
nuavam a defender a união europeia como uma associação entre Estados
soberanos e não aceitaram incluir no novo tratado a definição do sentido
federal do projecto comunitário. O Governo conservador não queria aceitar
as reformas sociais e era contra a moeda única, pelo que negociou duas
cláusulas de opting-out que excluíram a Grã-Bretanha do «capítulo social»
do tratado e das fases finais da União Económica e Monetária (UEM). Ma-
jor, como muitos outros, previa o fracasso do longo processo previsto para
a criação da moeda única europeia, que selava o compromisso crucial do
eixo franco-alemão sobre a unificação, resumido na fórmula irónica citada
por Timothy Garton-Ash, «Half the Deutsche Mark for Mitterrand, the whole
of Germany to Kohl».
A Grã-Bretanha assinou o Tratado da União Europeia mas, com as suas
reservas quanto ao «capítulo social» e a moeda única, era uma «minoria de
um» entre os doze fundadores, o que confirmava a sua posição como um
parceiro relutante na integração europeia. Nesse contexto, parecia igual-
mente excessivo concluir que Maastricht tinha sido um novo «Waterloo»,
como queria Major, ou que era um novo «Munique», na versão de Thatcher
e dos seus apoiantes.
A crescente força da Alemanha ficou demonstrada, logo em Dezembro de
1991, quando impôs aos parceiros comunitários o reconhecimento da inde-
pendência da Eslovénia e da Croácia e, mais tarde, da Bósnia-Herzegovina,
que marcaram o regresso da guerra à Europa, no início do processo de
secessão da Jugoslávia. No Conselho Europeu de Maastricht, o voto favorá-
vel do Governo conservador foi uma clara contrapartida do apoio alemão
às cláusulas de opting out do Tratado de União Europeia, mas, a posteriori,
220
a posição britânica tornou-se mais cautelosa. As sucessivas tentativas de
mediação europeia entre as partes, dirigidas primeiro por Lord Carrington
e, depois, por David Owen, dois antigos Secretários do Foreign Office, bem
como a participação de tropas britânicas, ao lado dos franceses e dos ho-
landeses, nas forças de interposição das Nações Unidas, eram consistentes
com uma estratégia de contenção cuja finalidade principal era impedir a
realização da profecia de Mitterrand, quando o Presidente francês anuncia-
va que a unificação da Alemanha seria o «regresso a 1913» (Bozo, 2005), e
impedir que a questão jugoslava voltasse a dividir as potências europeias.
O fracasso das tentativas de mediação e a brutalidade da guerra civil na
Bósnia-Herzegovina demonstraram os limites da capacidade estratégica
da União Europeia e tornaram necessária a intervenção norte-americana.
Nesse quadro, formou-se, em 1994, um «Grupo de Contacto», ao qual os
Estados Unidos, a Alemanha, a Grã-Bretanha e a França associaram a Rús-
sia, antes da diplomacia norte-americana impor, em 1995, os acordos de
Dayton, que puseram fim às hostilidades e garantiram a constituição da
Força de Intervenção (IFOR), pela qual a OTAN assegurou a ocupação da
Bósnia‑Herzegovina.
Tal como Macmillan se enganara no seu cálculo inicial sobre a Comu-
nidade Económica Europeia, também Major falhou na previsão sobre o
fracasso da União Económica e Monetária. Em Maio de 1997, quando o
Partido Trabalhista ganhou as eleições, era claro que a criação da moeda
europeia ia para a frente, deixando para trás a Grã-Bretanha, a Dinamarca
e a Suécia, os países que tinham decidido ficar de fora, bem como a Grécia,
que não reunia as condições mínimas para poder entrar.
O novo Primeiro Ministro, Tony Blair, representava uma nova geração
política na esquerda democrática, cujas orientações foram apresentadas no
manifesto do «Third Way», e era o mais europeísta de todos os chefes de
governo britânicos desde Edward Heath. A sua posição foi enunciada duran-
te a campanha eleitoral: «I want Britain to be one of the leading countries
in Europe» (Wall, 2008: 162). Todavia, as escolhas do Governo do «New
Labour» estavam condicionadas pelas decisões do seu predecessor e pelo
compromisso de realizar um referendum antes de aderir à moeda única.
Em Outubro, o Ministro das Finanças, Gordon Bown, confirmou que a Grã-
221
Bretanha não entraria no Euro durante o mandato do novo parlamento.
Para contrabalançar essa decisão, Blair inverteu a posição da Grã-Bretanha
sobre a defesa europeia e, na cimeira bilateral de Saint Malo, em Dezembro
de 1998, o Primeiro Ministro e o Presidente Jacques Chirac aprovaram uma
declaração onde se definiram os termos em que a União Europeia passaria
a ter, pela primeira vez, capacidades militares próprias para se responsabi-
lizar pela resolução de crises, nomeadamente nos casos em que os Estados
Unidos e a OTAN entendessem não dever intervir.
A iniciativa de Blair, que esteve na origem da Política Europeia de Se-
gurança e Defesa (PESD), foi crucial para demonstrar que o seu Governo
estava determinado a ocupar uma posição central na União Europeia apesar
de não pertencer à União Económica e Monetária. A nova dimensão de se-
gurança equilibrava a posição da Grã-Bretanha e da França, os dois Estados
europeus membros permanentes do Conselho de Segurança, em relação à
Alemanha, sem pôr em causa a União Europeia e, simultaneamente, as no-
vas responsabilidades estratégicas moderavam os riscos de uma excessiva
dependência dos aliados europeus em relação aos Estados Unidos, sem
pôr em causa a OTAN. Pelo contrário, a PESD fortalecia a centralidade da
União Europeia e uma partilha de responsabilidades mais equilibrada podia
fortalecer a Aliança Atlântica.
No mesmo sentido, o Primeiro Ministro empenhou-se no duplo alargamento
da Aliança Atlântica e da União Europeia para consolidar os dois pilares da
comunidade ocidental e integrar as democracias pós-comunistas na Europa
Central e Oriental numa Europa livre e unida. Para Blair, o alargamento da
União Europeia era a prioridade crucial, muito mais importante do que a
moeda única. Em Outubro de 2000, em Varsóvia, o Primeiro Ministro quis
intervir no debate sobre o futuro constitucional da União Europeia para
contrapor à posição dos federalistas a visão de uma Europa alargada, que
devia ser «a superpower, but not a superstate», uma concepção que tinha
não só o mérito da ambiguidade, como o de valorizar as dimensões políti-
cas, estratégicas e de segurança da União Europeia.
Nesse quadro, o «pólo ocidental» voltaria a ter duas superpotências, tal
como tinha previsto William T.R. Fox, com a diferença de que os Estados
Unidos deixariam de estar acompanhados só pela Grã-Bretanha, como na
222
versão original, e passariam a ter a toda a União Europeia como parceiro.
Em conjunto, as democracias ocidentais deviam poder consolidar o modelo
multilateralista que estava no centro da «doutrina da comunidade interna-
cional» (Seldon, 2005: 398) apresentada por Blair em Chicago, em Abril de
1999. Essa visão cosmopolita do internacionalismo liberal era partilhada pelo
Primeiro Ministro britânico e pelo Presidente Bill Clinton e fundamentava
a «relação especial» anglo-americana numa versão aggiornata da defesa
comum dos valores da democracia e num esforço conjunto para definir as
normas da ordem internacional do pós-Guerra Fria.
A intervenção da OTAN no Kosovo, em nome da doutrina da intervenção
humanitária, serviu para pôr à prova a Aliança Atlântica e concretizar a
nova visão cosmopolita. A guerra preventiva contra a Sérvia, sem mandato
do Conselho de Segurança das Nações Unidas, era legitimada pela necessi-
dade de punir um regime autoritário que não cumpria os seus deveres de
protecção e ameaçava expulsar a minoria albanesa concentrada no Kosovo,
parte integrante do que restava do Estado jugoslavo. Embora com limitações
importantes – os norte-americanos não queriam ter baixas e opuseram-se
à intervenção de forças terrestres, proposta pelos britânicos –, a interven-
ção da Aliança Atlântica, a instituição multilateral de defesa colectiva das
democracias ocidentais, devia garantir a segurança dos kosovares e, sobre-
tudo, a deposição de Slobodan Milosevic. O dirigente comunista resistiu,
mas o Kosovo foi ocupado pelas tropas da OTAN no quadro da Força do
Kosovo (KFOR).
Nas vésperas dos ataques terroristas de 11 de Setembro, Blair tinha acabado
de ganhar, pela segunda vez, as eleições gerais, depois de ter conseguido
restaurar a posição internacional da Grã-Bretanha. A intervenção das suas
forças especiais para restabelecer a missão das Nações Unidas na Serra
Leoa, a importância decisiva da decisão britânica para a intervenção da
OTAN na guerra do Kosovo, ou a constante pressão anglo-americana sobre
o Iraque mostravam que a Grã-Bretanha voltara a ter uma posição única
entre as potências europeias como garante da segurança internacional. No
mesmo sentido, o Governo trabalhista tinha demonstrado a sua relevância
no quadro da União Europeia, com a PESD e o processo de alargamento.
A eleição do Presidente George W. Bush não prejudicou a linha de continui-
223
dade da «relação especial», não obstante ser evidente os dois dirigentes não
partilharem as afinidades políticas e ideológicas que aproximavam Clinton
e Blair. Os atentados contra Nova Iorque e Washington coincidiram com a
conferência anual do Partido Trabalhista, onde Blair substituiu o seu discurso
por uma declaração de solidariedade contra o terrorismo, que definiu logo
como a nova ameaça internacional: «This mass terrorism is the new evil in
our world today» (Seldon, 2007: 5).
Num primeira fase, a solidariedade internacional prevaleceu e os Esta-
dos Unidos puderam intervir no Afeganistão no exercício do seu direito
de legítima defesa para neutralizar os santuários da Al Qaida e derrubar o
regime dos Talibã. A OTAN invocou, por iniciativa do Secretário-Geral, o
princípio da defesa colectiva, mas os Estados Unidos dispensaram os seus
aliados, cuja intervenção se limitou à acção das forças especiais britânicas,
francesas, alemãs e australianas na campanha afegã.
Numa segunda fase, a administração republicana decidiu alargar a «guerra
global contra o terrorismo» aos três Estados renegados suspeitos de terem
armas de destruição maciça, incluindo o Iraque, o Irão e a Coreia do Nor-
te. Depois de George W. Bush ter denunciado o «Eixo do Mal», a unidade
ocidental foi posta em causa e, não obstante os esforços de Tony Blair para
evitar uma divisão entre os aliados e obter uma autorização do Conselho de
Segurança das Nações Unidas para legitimar uma intervenção militar contra
o Iraque, a ruptura tornou-se inevitável.
Em Janeiro de 2003, nas comemorações do tratado do Eliseu (e do veto
do General de Gaulle à entrada da Grã-Bretanha), Chirac e o Chanceler
Gerhard Schroeder confirmaram a sua oposição à intervenção militar contra
o regime de Saddam Hussein. Em resposta, o Secretário da Defesa, Donald
Rumsfeld, quis desvalorizar essa tomada de posição, dizendo que os Estados
Unidos, quando se referiam à Europa, falavam da «nova Europa» e não da
«velha Europa» – o «Eixo da Paz» franco-alemão. Paralelamente, Blair mobi-
lizou os aliados europeus dos Estados Unidos, que publicaram uma «Carta
dos Oito», na qual o Presidente da República Checa e os chefes de Gover-
no da Grã-Bretanha, da Espanha, da Itália, da Dinamarca, de Portugal, da
Polónia e da Hungria manifestavam o seu apoio à política norte-americana.
A Grã-Bretanha foi o único aliado cujas forças militares acompanharam
224
as tropas dos Estados Unidos na invasão do Iraque, em Março. Mais de 40
mil soldados britânicos participaram na guerra e na ocupação do Iraque,
depois da deposição de Saddam Hussein. No momento decisivo, Blair
não hesitou quando teve de escolher entre a «relação especial» e a «velha
Europa». Mas os custos da sua decisão, entre a demissão de Robin Cook,
Secretário do Foreign Office, as divisões internas no Partido Trabalhista e a
onda de anti-americanismo na opinião pública britânica e europeia, foram
elevados. De certa maneira, foi essa decisão que definiu os seus mandatos
como Primeiro Ministro e condicionou a sua carreira política.
No dia seguinte, Blair voltou a empenhar-se na restauração da aliança
atlântica e da sua política europeia. Embora as tropas francesas e alemãs
não participassem na ocupação do Iraque, as suas forças integraram a
missão da OTAN que se tornou responsável pela ocupação do Afeganistão,
no quadro da Força Internacional de Assistência e Segurança (ISAF), em
Agosto de 2003. Nos meses seguintes, os trabalhos da Convenção Europeia
puderam contar com uma rara convergência das três principais potências
europeias na feitura do Tratado Constitucional da União Europeia. Por
iniciativa de Chirac, que quis assegurar a participação de Blair na definição
do quadro da defesa europeia, o trilateralismo esteve presente na negocia-
ção do novo tratado, que consolidou o consenso de Saint Malo sobre as
responsabilidades de segurança da União Europeia. Essa convergência era
tanto mais necessária, quando o alargamento da União Europeia tornava
indispensável o reforço da posição política e institucional da Alemanha,
da França e da Grã-Bretanha. Mas também era, por definição, limitada,
embora o Governo trabalhista tenha aceitado a definição do novo tratado
como um «Tratado Constitucional», enquanto Blair defendia a criação de
um Presidente do Conselho Europeu mais forte e independente do que
Chirac e Schroeder podiam aceitar. Não obstante, as posições britânicas
na política externa e na defesa marcaram o novo Tratado Constitucional e
o peso crescente da Grã-Bretanha ficou demonstrado, na fase final, pela
capacidade de Blair impedir a nomeação do candidato franco-alemão e
impor, em Junho de 2004, o seu candidato português como o novo Pre-
sidente da Comissão Europeia.
A crise transatlântica prejudicou a posição internacional da Grã-Bretanha,
225
enquanto a crise europeia, aberta pela rejeição francesa e holandesa do
Tratado Constitucional em Junho de 2005, não só confirmou a necessidade
política de ultrapassar as ilusões federalistas, como criou condições para não
realizar um novo referendum europeu na Grã-Bretanha, que podia compro-
meter a ratificação do Tratado de Lisboa, tendo em conta a radicalização
das posições do Partido Conservador. No entanto, a crise europeia também
prejudicou a concertação entre a Grã-Bretanha, a Alemanha e a França na
política externa ou um maior empenho da União Europeia na política de
defesa e segurança, não obstante a formação da EUFOR, que substituiu as
forças da OTAN na ocupação da Bósnia-Herzegovina. As divisões europeias
eram, sobretudo, manifestas na relação com a Rússia e, mais tarde, a opo-
sição conjunta da Chanceler alemã, Angela Merkel, e do Presidente francês,
Nicolas Sarkozy à entrada da Turquia na União Europeia deixou o Primeiro
Ministro britânico isolado. Do mesmo modo, na Aliança Atlântica, persistiam
as divisões internas quer quanto ao alargamento da comunidade transatlântica
à Ucrânia e Geórgia, quer em relação ao Afeganistão, onde a Grã-Bretanha
estava na primeira linha dos combates ao lado dos Estados Unidos, enquanto
a Alemanha e a França punham em causa a prioridade atribuída à missão
da ISAF, mesmo depois da eleição do Presidente Barack Obama ter criado
as condições para recuperar uma maior coesão transatlântica.
A crise financeira de Setembro de 2008, pouco depois de Gordon Brown
ter substituído Tony Blair como chefe do Governo trabalhista, confirmou
essas divisões e a paralisia europeia. A União Europeia não soube definir
uma resposta conjunta à crise, ou sequer unir-se para propor um quadro
de resposta. O Presidente francês, em nome da União Europeia, quis que
Bush convocasse de urgência a cimeira do G8, enquanto o Primeiro Ministro
britânico sugeria uma reunião inédita do G20 ao nível de Chefes de Estado
e de Governo, como veio a acontecer em Novembro.
Nesse contexto, os dilemas que marcaram a política externa britânica
desde o fim da II Guerra Mundial permanecem intactos. Obviamente, o
fim do império prejudicou a prioridade atribuída à dimensão internacio-
nal, embora a Grã-Bretanha tenha continuado a assumir responsabilidades
políticas e de segurança a esse nível, como membro permanente do Con-
selho de Segurança, como potência nuclear e pela sua participação em
226
todas as principais missões militares internacionais das Nações Unidas, da
OTAN e da União Europeia. No fim da Guerra Fria, a «relação especial»
anglo-americana, que representa o essencial da dimensão transatlântica,
perdeu relevância estratégica, no sentido em que a última superpotência
sobrevivente se distanciou dos seus aliados, mas ganhou saliência, quando
a Grã-Bretanha foi a única potência com que os Estados Unidos puderam
contar na Guerra do Iraque. A tendência de regionalização internacional
fez com que a dimensão europeia tivesse uma importância cada vez maior
para a definição da posição da Grã-Bretanha, que se tornou, no essencial,
uma potência regional, embora o legado político e institucional da II Guerra
Mundial e a persistência da «relação especial» continuem a contrabalançar
esse estatuto mais reduzido.
Em 1947, Ernest Bevin declarou no Parlamento que «His Majesty’s
Government do not accept the view that we have ceased to be a Great
Power» (Reynolds, 2000: 309). A política externa britânica nunca desistiu
de demonstrar que a Grã-Bretanha não está preparada para desistir dessa
qualidade gloriosa.

Fontes na internet
BBC News, http://www.bbc.co.uk/news/
British Foreign and Commonwealth Office, http://www.fco.gov.uk/en/
Chatham House, http://www.chathamhouse.org.uk/
Ministério da Defesa, http://www.mod.uk/DefenceInternet/Home/
The International Institute for Strategic Studies, http://www.iiss.org/

Leituras recomendadas
Hitchcock, William (2002) The Struggle for Europe. Nova York: Random House.
Dumbrell, John (2001) A Special Relationship: Anglo-American Relations in
the Cold War and After. Basingstoke: Palgrave MacMillan.
Self, Robert (2010) British Foreign and Defence Policy Since 1945: Challenges
and Dilemmas in a Changing World. Basingstoke: Palgrave MacMillan.
Wall, Stephen (2008) A Stranger in Europe. Oxford: Oxford University Press.
227
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Bibliografia

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Fox, William T.R. (1944) The Superpowers. The United States, Britain, and the Soviet Union –
Their Responsibility for Peace. Nova York: Harcourt, Brace and Company.
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Young, Hugo (1989, 1991) One of Us. A Biography of Margaret Thatcher. Londres: Macmillan.
(Página deixada propositadamente em branco)
Constantino Xavier

229

Capítulo 9

Índia

O grande mito da evolução

A emergência da Índia como um actor preponderante na política in-


ternacional tem sido objecto de diversas interpretações. Há quem aponte
como factores explicativos o seu tamanho e peso económico, a sua cultura
estratégica milenar, o seu relativo isolamento geopolítico, ou mesmo o seu
regime democrático e o sucesso da sua transição pós-colonial. As várias
explicações são, no entanto, todas influenciadas por uma narrativa central
que apresenta a política externa indiana como tendo sofrido uma profunda
evolução, «do idealismo para o realismo» (Mohan, 2003). Esta ideia baseia‑se
num grande mito que urge desconstruir para avaliar a real dimensão da
transformação indiana.
O mito apresenta a política externa indiana como objecto de um perío-
do de ‘amadurecimento’ desde 1947, progressivamente abandonando a sua
‘despropositada’ vertente idealista e retórica moralista pós-colonial, a favor
de uma crescente vertente realista e pragmática baseada em objectivos e
interesses materiais. Nas palavras de Sumit Ganguly:

As características estruturais da ordem global conduziram, por fim, os


decisores indianos a abandonarem a sua agenda transformativa (idealista)
e a adoptar políticas adequadas a alcançar os interesses estratégicos e
de segurança da Índia. (Ganguly, 2010: 2)
Neste entendimento, as bases da política externa da Índia sofreram uma
profunda mutação ao longo das últimas seis décadas, o país sendo inicialmen-
te punido pelo excessivo idealismo de Nehru e depois obrigado a reajustar
230
as suas prioridades, abraçando só em 1991 os princípios da Realpolitik pura
e dura. Esta tese linear e quasi-biológica, que apresenta a Índia como uma
nação adolescente que só recentemente atingiu a maioridade, encontra
forte acolhimento entre os próprios académicos, diplomatas e estrategas
indianos, ecoando na percepção de que a Índia foi, por demasiado tempo,
desrespeitada internacionalmente por ser um soft state com boas intenções,
mas capacidades materiais insuficientes.
Não há dúvida de que Nehru, Primeiro Ministro e titular da pasta dos
Negócios Estrangeiros até 1964, partilhava de uma Weltanschauung idea-
lista fortemente influenciada pela sua experiência pessoal no movimento
anti‑colonial. O sucesso da independência da Índia apresentava-se como um
caso inédito na primeira metade do século XX , em que o Império Britânico
tinha sido derrotado por via da não-violência e dos ideais pacifistas, e tudo
indicava que a Índia iria perseguir os mesmos ideais na sua política externa
independente, a começar pelo facto de, a partir de 1959, acolher o Dalai
Lama e o seu governo tibetano no exílio. De facto, a retórica oficial iria
adoptar esses valores até aos anos 1990, e ainda hoje o faz pontualmente,
mas na prática cedo emergiu uma política externa extremamente calculista
e pragmática, colocando os interesses nacionais acima de qualquer ideal.
Assim, o caso mais exemplar deste «pragmatismo prático» é o da posição
ambígua de Nehru, em 1947, sobre a possibilidade de a Índia pacifista vir
a desenvolver o seu embrionário programa de armamento nuclear, uma
hipótese que sempre se recusou a descartar, declarando que o país não
hesitaria a recorrer a «todos os meios disponíveis» para se defender. As po-
líticas para Caxemira e o Tibete, a gestão do contencioso fronteiriço com
a China (que viria culminar na guerra sino-indiana de 1962), ou a invasão
militar do Estado da Índia Portuguesa, em 1961, são exemplos adicionais
do pragmatismo de Nehru, ciente em consolidar a Índia como uma potên-
cia regional e delimitar a sua zona de influência e autonomia. O período
pós-Nehru é igualmente fértil em exemplos, especialmente com a sua filha
Indira Gandhi, considerada por muitos como um dos expoentes máximos
do realismo indiano, incluindo as suas decisões de intervir na guerra de
independência do Bangladesh em 1971, activar o programa nuclear indiano
em 1974, e apoiar a invasão soviética do Afeganistão em 1979.
231
O papel da Índia nestes vários cenários, longe de qualquer ingénua mo-
tivação idealista, denota uma cultura estratégica extremamente sofisticada
e pragmática, dedicada a evitar que o país caísse na dependência de uma
das esferas de influência do sistema bipolar da Guerra Fria. Nesse sentido,
tendo em conta que o interesse máximo era o de preservar a autonomia
estratégica a todo o custo, a retórica idealista e a prática não-alinhada ser-
viam a estratégia de criar um espaço de manobra mínimo e assim garantir
a sua autonomia para além dos dois blocos.
É difícil imaginar uma política externa mais realista do que esta. Assim, o
que realmente mudou no período pós-Guerra Fria não foi a política externa
indiana, mas o contexto internacional em que esta se inseria, bem como
as relativas capacidades indianas para materializar as suas prioridades. É
por isso que a transição de 1989-1991 merece um olhar aprofundado para
descortinar as linhas de continuidade e mudança no pensamento estraté-
gico indiano.

O trauma da transição

O abrupto colapso da União Soviética, o consequente fim da Guerra Fria


e a emergência de um sistema unipolar liderado pelos Estados Unidos emer-
giram, de forma adversa, no preciso momento em que a Índia beneficiava
de níveis inéditos de estabilidade, crescimento económico e autonomia.
Os anos 1980 tinham visto a Índia iniciar o seu processo de reformas
liderado por Rajiv Gandhi, o seu mais jovem e empreendedor Primeiro Mi-
nistro de sempre, o lançamento do seu programa de mísseis balísticos, um
período de paz nas relações com o Paquistão e a normalização das relações
com a China. Ao nível doméstico, tinha sido também controlada a insurrei-
ção separatista sique no Panjabe, bem como outros movimentos armados
tribais no Nordeste do país. Mais importante ainda, perante a normalização
das relações sino-americanas em 1972, a relação privilegiada de Nova Deli
com a União Soviética tinha-se cristalizado numa semi-aliança, Moscovo
passando a representar os interesses indianos no Conselho de Segurança
das Nações Unidas (ONU) e a ser o principal fornecedor militar da Índia.
232
É neste contexto estrutural relativamente favorável que o fim do sistema
bipolar, e em particular o colapso da parceria indo-soviética, representou
um rude choque para as ambições indianas, deixando a sua política externa
mais isolada do que nunca. Com a sua autonomia seriamente ameaçada, a
transição sistémica assumiu um carácter traumático na perspectiva indiana,
agravado por quatro factores adicionais.
Primeiro, o colapso financeiro e a crise económica. Em 1991, a Índia
chegou a ter uma balança de pagamentos extremamente deficitária e re-
servas externas para cobrir menos de duas semanas de importações. O
Governo foi assim obrigado a recorrer a um inédito empréstimo do Fun-
do Monetário Internacional (FMI), o que foi visto como uma violação da
soberania financeira do país e como uma submissão a interesses externos
potencialmente hostis.
Segundo, o país atravessava um grave período de instabilidade política, com
uma fragmentação inédita no parlamento. O histórico Partido do Congresso
estava reduzido à oposição entre 1989 e 1991, o que em quarenta anos de
independência só por uma vez tinha acontecido, em finais dos anos setenta.
Terceiro, as aspirações de a Índia se afirmar como uma potência regio-
nal tinham sofrido um duro revés com a intervenção militar no Sri Lanka
(1987‑1990), que se saldou numa derrota militar com elevados custos huma-
nos, numa retirada precipitada, e no assassinato de Rajiv Gandhi durante a
campanha eleitoral em que se preparava para ser reeleito Primeiro Ministro.
E, por quarto, o sentimento de vulnerabilidade foi amplificado pela violenta
insurreição que assolou a região de Jamu e Caxemira em 1989, marcando o
início da radicalização do movimento separatista e de um crescente apoio
tácito do Paquistão, assim agudizando o sentimento de insegurança indiano.
É neste contexto de vulnerabilidade que Nova Deli foi obrigada a re-
equacionar todas as suas prioridades estratégicas. Compreende-se que,
desaparecido o «guarda-chuva de segurança» soviético e exposto o ana-
cronismo da retórica do não-alinhamento, a preservação da autonomia
se apresentasse como prioridade absoluta indiana no pós-Guerra Fria.
É precisamente esta a principal linha de continuidade que atravessa os vários
períodos históricos do posicionamento externo indiano e que nos permite
entender as suas actuais prioridades.
233

Duas linhas de continuidade: ambição e autonomia

A quasi-obsessão em assegurar a maior autonomia possível deve ser vista


como fundamentada num profundo desconforto com o sistema internacional
pós-1945 e a posição marginal que a Índia nele mantém. Neste sentido, a
Índia alimenta, desde a sua independência, um agudo descontentamento
com o processo ‘exclusivo’ que esteve na origem da arquitectura interna-
cional pós-Segunda Guerra Mundial e com a sua relativa irrelevância, pelo
menos a nível formal, em termos de representatividade – em especial, em
comparação com a China, a sua ausência como membro permanente do
Conselho de Segurança da ONU.
Ao contrário do que hoje começa a ser reconhecido (o anacronismo da
actual arquitectura institucional), para a Índia esta questão não se colocou
só agora, subsequente à sua emergência internacional nos anos 1990. Para
a Índia, o desconforto tem raízes históricas e culturais bem mais profundas,
o que se deixa explicar por uma certa ansiedade pós-colonial que, por
vezes, assume contornos retóricos vingativos. Estas percepções baseiam‑se
num entendimento profundamente negativo do passado histórico, em par-
ticular do domínio externo do subcontinente durante o último milénio, a
Índia sendo sucessivamente dominada, primeiro pelas dinastias islâmicas
e depois pelas potências coloniais europeias. É neste prisma que deve ser
entendida a contínua prioridade indiana em preservar a autonomia estraté-
gica e recusar entrar nos jogos de poder da Guerra Fria – o objectivo era (e
é ainda) profundamente conservador, determinado a sobreviver as actuais
circunstâncias hierárquicas consideradas injustas, se não hostis, e aguardar
um contexto mais oportuno para realizar o ímpeto revisionista e actualizar
o seu ambicionado estatuto.
No que consiste esta histórica ambição indiana que motiva, por sua vez,
a sua orientação ‘autonomista’? Acima de tudo, na ideia de que a Índia, por
natureza e por defeito, é uma grande potência extra-regional e que deve
ser reconhecida como tal. Quando os diplomatas indianos advogam um
mundo «mais multipolar» não defendem necessariamente um mundo mais
234
«democrático», «pacífico», ou «justo», ideias geralmente subentendidas na
definição europeia de multipolaridade. Em vez disso, entendem o conceito
como um simples estágio no desenvolvimento das relações internacionais,
ou seja, um ‘trampolim’ para voos maiores. No plano concreto, a ambição
indiana de se afirmar como grande potência baseia-se em diversas ‘premis-
sas’ que são frequentemente invocadas por diplomatas indianos quando se
discute a legitimidade de o seu país aspirar a uma posição mais relevante.
Incluem-se frequentemente indicadores de dimensão (território, população,
economia), materiais (capacidades militares, em particular a nuclear), mas
também normativos (regime democrático, credenciais pacifistas) e históricos
(civilização e cultura milenar).
Este último factor é particularmente importante para compreender as
posições da política externa indiana. Assumindo o papel de herdeira de
uma grande civilização, a Índia reveste as suas principais visões do mundo
com um tom universalista, tal como é aliás reflectido na sua expressão vé-
dica vasudhaiva katumbakam (o mundo é a minha família). Deste modo,
os destinos da Índia e do mundo são vistos como estando intimamente
ligados, um sentimento expresso no histórico discurso de Nehru perante
a Assembleia Constituinte, no qual afirmou que «os sonhos da Índia são
também os sonhos do mundo», equiparando ainda o país a «uma nova es-
trela de liberdade no Oriente» (Nehru 1947). A ideia encontra-se também
subtilmente representada na forma normativa como a Constituição descreve
as tarefas indianas a nível internacional (ênfase adicionada):

51. Promoção da paz e segurança internacional. O Estado deverá:


(a) promover a paz e segurança internacionais;
(b) manter relações justas e honradas entre as nações;
(c) incentivar ao respeito pelo direito internacional e às obrigações dos
tratados nas relações entre os povos organizados;
e (c) encorajar a resolução de diferendos internacionais por via da ar-
bitragem (Indiacode, 2010).
Assim, é possível constatar que a diplomacia indiana identificou, desde cedo,
a política internacional como uma área privilegiada para sublinhar e promover
a sua superioridade moral, assumindo um carácter pedagógico, legitimado pelo
235
sucesso precoce do seu movimento independentista. Embora seja pouco claro
qual o preciso conceito de «grande potência» que os estrategas indianos ambi-
cionam para o seu país, é incontestável que estes argumentos originam todos
no desconforto com a actual ordem internacional e que procuram legitimar,
muitas vezes de forma contraditória, a sua ambição (Xavier, 2006).
Analisada a principal linha de continuidade da política externa indiana
torna-se mais simples contextualizar a segunda linha de continuidade, no-
meadamente a eterna preocupação em preservar e maximizar a autonomia
estratégica do país na arena internacional. Para os estrategas indianos, desde
1947 até hoje, este objectivo sagrado decorre precisamente da centralidade
da ambição de grande potência. Na perspectiva indiana, preservar a au-
tonomia dos centros de decisão, a agenda e o ritmo de transformação em
várias áreas-chave (economia, defesa, sociedade etc.), é entendido como
uma estratégia obrigatória para um país que aspira ao estatuto de grande
potência, mas enfrenta um contexto adverso e capacidades insuficientes
para o poder materializar imediatamente.
Vários exemplos recentes demonstram que é precisamente perante a
progressiva abertura e interdependência de vários sectores do país à eco-
nomia global e a influências externas que os debates sobre a autonomia
(self-reliance) se têm agudizado e, por vezes, conduzido a decisões radicais.
É o caso das celebrações com que foram recebidos os testes nucleares em
1998 (simbolizando assim a autonomia estratégica do país ao mais alto
nível das capacidades militares); do intenso debate acerca da contraparti-
da imposta pelos Estados Unidos no acordo bilateral de cooperação civil
nuclear (2005) de colocar vários reactores sob tutela dos inspectores da
Agência Internacional de Energia Atómica (IAEA); da recusa em aceitar
qualquer apoio humanitário internacional a seguir ao tsunami de 2004; e a
hostilidade com que são recebidas todas as ofertas de mediação, incluindo
as norte‑americanas, para o conflito indo-paquistanês da Caxemira.
Esta hiper-sensibilidade indiana no que concerne a autonomia do
país e os riscos de dependência externa não se restringe só ao sector
estratégico, mas influencia também importantes decisões económicas e
culturais – é o caso das medidas proteccionistas impostas a investimentos
e importações chinesas, invocando «razões de segurança», bem como do
236
debate sobre o impacto cultural das reformas económicas e o associado
‘perigo’ de submissão a valores ocidentais (em 1998, os nacionalistas do
BJP adoptaram com sucesso o slogan eleitoral «import electronic chips,
not potato chips»).

Três dimensões de mudança

Ambição e autonomia caracterizam assim as duas linhas de continuidade


que marcam a política externa indiana e que, em certa medida, têm reforçado
a sua influência no contexto da abertura do país nas últimas duas décadas.
Coexistem no entanto importantes dimensões de mudança, indicando uma
progressiva transformação das prioridades desde 1991.
O primeiro elemento de mudança deixa-se caracterizar pelo desenvol-
vimento de uma diplomacia crescentemente económica. Embora o modelo
indiano, ao contrário do caso chinês, nunca tivesse dependido das exportações
para acelerar as taxas de crescimento, os interesses indianos inseriram-se
rapidamente na nova economia global. Entre 1991 e 2007, o volume de
comércio internacional cresceu sete vezes, de 46 para 320 mil milhões de
dólares norte-americanos (MUSD), e o volume total de investimento directo
estrangeiro acumulado na Índia de 540 milhões para 56 mil MUSD. No que
concerne as reservas externas, em menos de dez anos, passaram de 28 mil
para 316 mil MUSD em 2008 (Kowalski e Dihel, 2009).
Também as crescentes necessidades energéticas obrigaram a novas prio-
ridades no plano externo. O consumo energético tem crescido anualmente
entre 5 e 7 p.c. e espelha o rápido aceleramento da sua economia que, mesmo
com a crise financeira, deverá crescer entre 7 e 9 p.c., podendo em 2010 vir
mesmo a ultrapassar, pela primeira vez, a taxa chinesa. O carvão representa
uma parte substancial (55 p.c.) do mix energético indiano, seguindo-se o
petróleo (31 p.c.), o gás natural (8 p.c.), as energias renováveis (5 p.c.) e
o nuclear (1p.c.) (Madan, 2006).
A Índia já é o terceiro maior consumidor de petróleo na Ásia, e distin-
gue‑a, neste sector em particular, não só a sua imensa dependência em
termos de importações (perto de dois terços), mas também uma dependência
237
concentrada em termos geográficos: mais de dois terços das importações
petrolíferas originam no Médio Oriente, e mais de metade em só quatro
países daquela região: 25 p.c. da Arábia Saudita, 12 p.c. do Kuwait, 10 p.c.
do Iraque, e 7 p.c. do Irão (Xavier, 2009). Estima-se aliás que a dependência
de hidrocarbonetos irá aumentar significativamente nas próximas décadas,
possivelmente para 90 p.c. em 2030, e compreendem-se assim os esforços
indianos em apostar no desenvolvimento da energia nuclear (depois do
acordo com os Estados Unidos), nas energias renováveis (nas eólicas é já um
dos líderes mundiais), e também na diversificação regional das importações
petrolíferas, nomeadamente para África e a América Latina.
Estas novas prioridades económicas tiveram um impacto profundo na
política externa indiana, obrigada a diversificar o leque das suas relações
estratégicas. Primeiro, logo nos anos 1990, conduziu a uma aproximação
ao Japão e ao Sudeste Asiático, bem como aos Estados Unidos, à União
Europeia (UE) e à China, vistos como fontes de investimento e mercados
de exportação. Segundo, acelerou o processo de penetração institucional,
a Índia passando a membro da OMC em 1995 e a participar de forma mais
regular no FMI, Banco Mundial e outros fóruns económicos, incluindo
quadros alternativos como os eixos BRIC ou IBSA. Por fim, no campo dos
recursos energéticos, obrigou a diplomacia indiana a investir fortemente no
Médio Oriente e, já mais recentemente, em África e na América Latina, e a
adicionar uma política Look West à congénere Look East iniciada nos anos
1990 para o Japão e a Ásia do Sudeste ( Jaffrelot, 2003).
O grau de profundidade desta viragem económica é revelado pelo papel da
diáspora indiana. Até aos anos oitenta, os mais de vinte milhões de indianos
residentes no estrangeiro eram ignorados e por vezes mesmo hostilizados
por Nova Deli, com as reformas de 1991 e as novas prioridades económicas
nacionais, esta abordagem mudou de forma abrupta. Os governos indianos,
concentrados em maximizar potenciais fontes de investimento, remessas,
depósitos, e know-how para modernizar sectores-chave emergentes (caso das
tecnologias de informação), viram-se obrigados a redesenhar por completo
o relacionamento com a diáspora, instituindo uma política especial para
os emigrantes (incluindo os estrangeiros de origem indiana) que passou
pela criação do Ministry of Overseas Indian Affairs e pela revisão da lei de
238
nacionalidade (Lal, 2006).
A segunda dimensão de mudança diz respeito a uma nova posição
perante um outro indicador fundamental de capacidades materiais – as
capacidades militares, estratégicas e, em particular, nucleares. Obrigada
pelas novas circunstâncias pós-Guerra Fria, e capacitada pelo crescimento
da sua economia, a Índia iniciou um vasto processo de modernização das
suas Forças Armadas. Os testes nucleares de Maio de 1998, duas semanas
depois dos nacionalistas do BJP terem chegado ao poder, assumem uma
importância crucial, marcando um ponto de ruptura com a ambiguidade
que até então envolvia o estatuto nuclear do país. Nova Deli tem, desde
então, efectuado elevados investimentos no seu programa de mísseis
balísticos, indústria de defesa convencional, programa espacial, e tropas
especializadas (counterterrorism, urban, jungle e high-altitude warfare,
entre outras), chegando a ultrapassar a China e a assumir-se como maior
importador de armamento convencional entre os países em desenvolvi-
mento.
Ao mesmo tempo, indicando também uma maior extroversão estratégica,
o país tem apostado na projecção de poder militar. Destacam-se o crescente
número de exercícios bilaterais ou multilaterais, a expansão da actividade
da sua Marinha de Guerra no Oceano Índico, a participação maciça em
missões de paz internacionais da ONU (é um dos três maiores contribuintes
em termos de forças) e a aposta na formação de oficiais estrangeiros nas
suas academias militares.
A terceira dimensão de mudança aplica-se à estratégia de alianças e
parcerias da política externa indiana. Até ao fim da Guerra Fria, a Índia
teve na União Soviética o seu aliado mais próximo, mas, para além de
Moscovo, os seus relacionamentos bilaterais eram, no melhor dos casos,
cordiais e inócuos. O Movimento dos Não-Alinhados nunca se cristalizou
num efectivo bloco diplomático e, com as restantes grandes potências (Es-
tados Unidos, Reino Unido, França, Alemanha, China e Japão) as relações
eram geralmente superficiais.
Nas últimas duas décadas, a estratégia tem sido, no entanto, profun-
damente alterada, Nova Deli abraçando o que Kanti Bajpai apelidou de
«omni-alinhamento» (Bajpai, 2005). Este comportamento é indicado pelo facto
239
de Nova Deli ser hoje das capitais mundiais que acolhe o maior número
de missões diplomáticas. Motivado em boa parte pela primeira dimensão
de mudança (a necessidade de acelerar a diplomacia económica) os Gover-
nos indianos têm, desde 1991, procurado aprofundar as relações bilaterais
com praticamente todos os principais actores no xadrez internacional.
A Índia conseguiu assim estabelecer parcerias estratégicas com um conjunto
extremamente diverso de actores, não só com os Estados Unidos, a UE e as
principais potências europeias, o Japão e a Austrália, mas também com a
Rússia, o Irão e a China. Esta polivalência (ou mesmo «poligamia estratégi-
ca») é mais um indicador da sua preocupação em alargar a sua autonomia
no pós-Guerra Fria. Contudo, em contraste com o passado, estas parcerias
envolvem agora trocas e entendimentos muito mais substanciais nos capí-
tulos económico e estratégico.
Já no plano multilateral, esta mudança espelha-se também no crescimento
exponencial do número de fóruns institucionais de que a Índia é membro
ou observador, incluindo a ASEAN, APEC, ARF, Organização de Coopera-
ção de Xangai (OSC), IBSA e BRIC. Esta dimensão de mudança espelha
assim uma Índia proactiva em termos bilaterais e multilaterais, empenhada
em institucionalizar parcerias, maximizar o número de alternativas e assim
alargar a sua autonomia.
É porém interessante observar que a sustentabilidade deste omni-alinha-
mento estratégico começa a ser posta em causa nos círculos estratégicos
indianos, especialmente perante a crescente ameaça que a China apresenta
para os interesses indianos. Depois de várias décadas em que era tabu falar
sobre, ou mesmo estudar o vizinho chinês em Nova Deli, a Índia acordou
repentinamente para o novo equilíbrio de forças, estando a reformular todas
as suas prioridades perante o novo poderio da China. Assim, coloca-se a
possibilidade de a ascensão da China estar já a despoletar uma nova dimensão
de mudança na política externa indiana – designadamente a necessidade de
o país se reequilibrar no contexto regional, possivelmente com recurso aos
Estados Unidos, mas também à Europa, ao Irão e o Japão. No entendimento
indiano, para preservar a autonomia do país, vale tudo, incluindo cultivar um
leque de relações profundamente antagónicas que resultam, por exemplo,
em parcerias estratégicas simultâneas com Israel e o Irão.
240

A agenda diplomática indiana

A agenda diária dos diplomatas indianos no South Block, em Nova Deli,


e nas mais de uma centena de representações externas no estrangeiro, é um
imenso masala de prioridades tão diversas como a nova ordem nuclear, a
nova cidadania para os indianos da diáspora e a defesa dos interesses de
Nova Deli em relação às questões climáticas. No total, é possível identificar
25 questões que, de acordo com a sua importância relativa, são classificadas
de forma resumida em quatro categorias diferentes, desde as de prioridade
absoluta até às que são consideradas indesejáveis, se não mesmo um tabu.
Num primeiro nível, encontramos um conjunto de cinco questões que
são de prioridade absoluta para Nova Deli. Primeiro, tendo em conta um
passado de três guerras e o estatuto nuclear deste vizinho e rival, encon-
tra-se o Paquistão e, por associação, a situação no Afeganistão. O futuro
desta frente Af-Pak é de importância vital para os interesses de Nova Deli,
que nela identifica várias ameaças de segurança, em especial no que con-
cerne a disputada região de Caxemira. Uma segunda prioridade absoluta
relaciona-se com a China que surge de forma crescentemente ameaçadora
no horizonte estratégico, muitas vezes ressuscitando o trauma da derrota
na guerra de 1962. Embora as relações bilaterais se tenham intensificado
de forma impressionante nos últimos dez anos, com grandes vantagens
comerciais, subsistem vários focos de tensão (como a disputa fronteiriça
ou a presença do Dalai Lama na Índia) e ganha terreno a posição de que
é preciso desenvolver opções militares para enfrentar a crescente expansão
da China na Ásia do Sul.
Uma outra prioridade de primeira categoria relaciona-se com a neces-
sidade de garantir externamente os recursos energéticos necessários para
sustentar as altas taxas de crescimento económico, o que tem conduzido a
uma intensificação de relações com vários países no Médio Oriente (Arábia
Saudita, Irão) e em África (Sudão, Nigéria, Angola). Uma quarta prioridade
absoluta relaciona-se com a necessidade de desenvolver uma nova diplo-
macia económica, não só promovendo a Índia como mercado de capitais e
241
destino atractivo para investimentos estrangeiros, mas também assistindo as
novas multinacionais indianas (TATA, Essar, Reliance, Bharti, etc.) a operarem
no plano global. Finalmente, a quinta prioridade absoluta de Nova Deli é
afirmar-se como a grande potência residente no Oceano Índico, procurando
dotar a sua Marinha de capacidades de projecção de poder oceânico ao
mesmo tempo que desenvolve novas iniciativas multilaterais como o Indian
Ocean Naval Symposium e reavivar a Indian Ocean Rim-Association for
Regional Cooperation (IOR-ARC).
Num segundo nível de prioridade externa, encontramos um conjunto de
nove questões importantes, mas não vitais. Primeiro, as relações com os Es-
tados Unidos que, principalmente desde a administração Bush e em paralelo
à ascensão da China, têm testemunhado uma melhoria sem precedentes,
culminando no acordo de cooperação nuclear civil de 2008 e no apoio
de Obama, em 2010, a um lugar permanente para a Índia no Conselho de
Segurança da ONU. Segundo, a região da Ásia do Sul, considerada como o
espaço estratégico ‘natural’ da Índia, onde iniciativas políticas multilaterais
de integração regional como a South Asian Association for Regional Coopera-
tion (SAARC) têm dado lugar a relações mais pragmáticas, de cariz bilateral,
económico e militar, principalmente com o Nepal, Bangladesh e Sri Lanka.
Terceiro, surge a política Look East iniciada na década de noventa, com o
objectivo de reforçar os laços económicos e políticos com o Sudeste asiáti-
co e a Ásia Oriental, em particular com o Japão. Esta aproximação assume
presentemente importância acrescida no sentido de contra-balançar a China.
Em quarto lugar, surge o objectivo de colocar a Índia no seio das novas
potências económicas não-ocidentais e emergentes, tal como cristalizadas
nas cimeiras BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China) ou na trilateral IBSA (Índia,
Brasil, África do Sul). Associada a esta prioridade encontra-se a reivindica-
ção indiana de reforma das principais instituições internacionais incluindo,
em particular, o Conselho de Segurança da ONU. Esta quinta prioridade
inclui também a actualização do peso relativo da Índia, por exemplo em
termos de voto, em organizações como o Banco Mundial ou o FMI. Uma
sexta prioridade inclui a nova diplomacia indiana para África, vista como
uma fonte importante de recursos energéticos e como mercado apetecível
para investimentos indianos. Embora consciente dos seus limitados recur-
242
sos em comparação com a China, Nova Deli tem vindo a explorar a ideia
de se demarcar positivamente de Pequim, procurando oferecer um modelo
de cooperação mais sustentável para os interesses africanos. Uma sétima
prioridade de Nova Deli relaciona-se com a necessidade de desenhar uma
nova ordem nuclear para além do Tratado de Não-Proliferação Nuclear
(NPT) que os indianos vêem como arcaico e discriminatório, especialmente
no seguimento do acordo com os Estados Unidos, que confere ao seu país
um reconhecimento nuclear de facto, mas não de jure.
A oitava prioridade inclui os esforços indianos de condenação ao ter-
rorismo internacional, visto como uma das maiores ameaças para a sua
segurança doméstica. Enquanto que em público isto se tem reflectido mais
na retórica diplomática, no terreno menos visível da cooperação na área
das informações ou do treino em práticas anti-terroristas, esta temática tem
tido uma importância crescente na agenda externa da Índia. Finalmente,
uma última questão prioritária diz respeito à necessidade de desenvolver
o imenso soft power indiano, ou seja, a imagem e capacidade de atracção
internacional da Índia no plano cultural, educacional e económico. A criação,
em 2006, de uma divisão de diplomacia pública no Ministério dos Negócios
Estrangeiros indiano, é um importante passo nesse sentido.
Num terceiro nível de prioridade externa, encontra-se um conjunto de
nove questões de importância menor, ou seja, de terceira categoria. É o caso
da UE que, embora como bloco conjunto seja o maior parceiro comercial
da Índia, continua a ter uma relevância reduzida na óptica indiana, Nova
Deli preferindo sempre o plano bilateral ao contacto directo com Bruxelas,
especialmente depois do falhanço de um acordo de comércio livre, em
2008. Segundo, em relação ao Médio Oriente, a Índia tem vindo a assumir
uma posição crescentemente pragmática, aproximando-se de Israel (agora
um dos seus principais fornecedores de equipamento militar) e mostra-se
muito menos interessada em assumir um papel de liderança na resolução
do contencioso israelo-árabe à volta da Palestina. Os recursos energéticos
e militares em jogo, bem como a sua vasta diáspora residente na região,
têm-se sobreposto ao prisma político-ideológico com que Nova Deli tradi-
cionalmente abordava o Médio Oriente.
Terceiro, a Rússia mantém-se como um dos mais importantes parceiros
243
na área da defesa, mas a sua importância tem vindo a decrescer signifi-
cativamente desde os anos 1990, especialmente no plano comercial. Uma
quarta prioridade ‘menor’ reside na Ásia Central, onde a Índia tem procu-
rado novos recursos energéticos, conter a presença da China e, ao mesmo
tempo, alcançar profundidade estratégica de forma a contrabalançar a in-
fluência paquistanesa no Afeganistão. A ambição de se ver na liderança de
um ressuscitado bloco afro-asiático de países em desenvolvimento surge
como uma outra prioridade indiana. Aqui, a diplomacia indiana procura
distinguir-se de uma China «superpotência do Norte» e posicionar-se como
voz representativa do «Sul Global», um eufemismo moderno para o que ou-
trora se designava por Movimento dos Não-Alinhados. Uma sexta prioridade
é a antiga questão do desarmamento mundial, tal como defendida no plano
de acção de Rajiv Gandhi em 1988, nas Nações Unidas: embora de forma
hesitante, os diplomatas indianos do South Block continuam a afirmar esta
como uma das suas grandes bandeiras. Já a possibilidade de um novo acor-
do comercial global, no seguimento do falhanço da ronda de negociações
de Doha, é visto como uma questão importante, mas já não prioritária na
óptica externa indiana, que desde então tem preferido apostar em acordos
ou parcerias de comércio livre bilaterais (por exemplo com a Coreia do Sul
ou os países da ASEAN). Finalmente, uma última questão de importância
relaciona-se com a nova diplomacia para a imensa diáspora indiana, vista
como um recurso económico e diplomático para os interesses externos da
Índia, tal como já discutido mais acima.
Finalmente, num quarto nível e tudo menos prioritárias, encontram-se
três questões ‘intocáveis’ que, na perspectiva diplomática indiana, equivalem
praticamente a tabus. Uma primeira questão relaciona-se com as grandes
questões ambientais como as alterações climáticas e a agenda internacional
para a redução de emissões de carbono. Neste capítulo Nova Deli tem assu-
mido muitas vezes posições defensivas e mesmo obstrucionistas, bloqueando
propostas de consenso nas cimeiras de Copenhaga e Bali e insistindo no seu
«direito à poluição» derivado da sua necessidade de crescimento industrial
equivalente ao que diz ter sido gozado pelos países ocidentais desde o
século XIX. Uma segunda questão-tabu diz respeito aos regimes autoritários
e às violações de direitos humanos, onde Nova Deli recusa radicalmente
244
a imposição de sanções, votando também muitas vezes contra a adopção
de resoluções de condenação nas Nações Unidas. Embora a diplomacia
indiana seja uma histórica advogada do princípio soberanista e do princí-
pio da não-ingerência, esta vertente tem-se intensificado nos últimos anos,
fruto das novas prioridades económicas e estratégicas que nem sempre são
compatíveis com posições mais normativas.
Finalmente, e por estas mesmas razões, a terceira temática ‘intocável’
na agenda externa indiana diz respeito aos rogue states com pretensões
nucleares ou ligações terroristas (como o Irão, o Sudão, a Síria ou a Co-
reia do Norte) e as iniciativas internacionais, principalmente sob liderança
norte‑americana, que visam o seu isolamento ou punição. Receosa de ver o
seu espaço de manobra reduzido, Nova Deli procura, em vez disso, preservar
os seus privilegiados contactos bilaterais com estes párias da comunidade
internacional, por vezes mesmo defendendo-os.

A agenda diplomática indiana


Prioridades absolutas
1. Afeganistão-Paquistão
2. China
3. Recursos energéticos
4. Diplomacia económica
5. Oceano Índico
Prioridades de segunda categoria
6. Estados Unidos
7. Vizinhança regional/Ásia do Sul
8. Ásia oriental e do Sudeste
9. Nova ordem económica (BRICs)
10. Reforma das instituições internacionais (ONU)
11. África
12. Nova ordem nuclear pós-NPT
13. Combate ao terrorismo
14. Diplomacia pública (soft power)
Prioridades de terceira categoria
15. União Europeia
16. Médio Oriente
17. Rússia
18. Ásia Central
19. Liderança Global South / G77
20. Desarmamento internacional 245
21. Comércio livre / Doha
22. Diáspora indiana
Tabus
23. Combate às alterações climáticas
24. Regimes autoritários e direitos humanos
25. Estados-pária

Limitações infra-estruturais

Será o país capaz de gerir esta complexa agenda diplomática e os va-


riadíssimos obstáculos que enfrenta no plano externo? Que infra-estrutura
institucional suporta a ambição indiana? No plano doméstico, identificam-se
limitações a três níveis.
Primeiro, no plano institucional, é questionável até que ponto o pequeno
e arcaico Ministério dos Negócios Estrangeiros indiano (o Ministry of Exter-
nal Affairs) será capaz de dar conta do imenso recado que é representar os
interesses do país ao nível global. O ministério sofre de uma falta crónica
de diplomatas: por cada indiano, há quatro congéneres brasileiros e sete
chineses. Acresce uma rede de representações externas manifestamente
insuficiente, muitas vezes na dependência de um ou dois diplomatas de
carreira. A qualidade dos novos diplomatas também tem vindo a decrescer ao
longo dos últimos anos, os jovens indianos agora preferindo uma carreira no
lucrativo sector privado à estabilidade e prestígio anteriormente associados
ao funcionalismo público. Mesmo entre os que procuram fazer uma carreira
no Indian Administrative Services (IAS, ao qual concorrem anualmente cerca
de duzentos mil candidatos para cerca de quinhentas vagas) a preferência é
maior para os serviços domésticos (polícia, magistratura, etc.) do que para
o diplomático que oferece menos regalias financeiras e obriga a ausências
prolongadas do país (Markey, 2009; Rana, 2000).
Uma segunda limitação decorre do regime democrático, tamanho e
diversidade da população indiana. É certo que a aparência coerente e cen-
tralizada da política externa de um país autoritário como a China é muitas
vezes uma mera ilusão, mas não deixa de ser igualmente verdade que os
processos de tomada de decisão numa democracia são bem mais comple-
xos. No caso concreto da Índia há uma multiplicidade extrema de actores
246
que influenciam ou determinam a política externa em várias dimensões.
São exemplos os partidos comunistas que no parlamento se opuseram a
um acordo nuclear com os Estados Unidos (2005); os governos estaduais
do Querala e Maharastra no caso de acordos de comércio livre que afectam
os seus interesses agrícolas ou industriais; a imensa minoria muçulmana no
caso da oposição a um eventual apoio indiano nas duas guerras do Golfo;
ou o caso em que a pressão de grupos nacionalistas hindus obrigou Nova
Deli a abordar os direitos civis e culturais da sua diáspora ao nível bilateral.
Ao mesmo tempo, a comunicação social, livre e extremamente activista, con-
segue também transmitir e mobilizar a opinião pública de uma forma ímpar
na Ásia, obrigando muitas vezes o Governo a importantes compromissos na
sua política externa. Se há quem explique o relativo imobilismo da política
externa indiana com recurso a esta imensa diversidade e complexidade de
actores intervenientes, é também verdade que, quando atingido um con-
senso, a representatividade associada garante aos diplomatas indianos uma
maior celeridade e capacidade negocial (Kapur et al., 2009).
Finalmente, em contraste com esta vibrante comunidade política indiana,
surge uma terceira limitação que diz respeito ao relativo desinteresse da
maioria dos indianos pelas questões internacionais. A política externa tem
uma comissão parlamentar própria na Lok Sabha (a Standing Committe on
External Relations), mas esta é das menos concorridas. O grande debate à
volta da aprovação do acordo de cooperação nuclear com os Estados Unidos,
no Verão de 2008, terá sido talvez a única vez durante a última década em
que uma questão de política externa foi fracturante, obrigando o Governo
a submeter-se a uma moção de confiança. Em geral, no entanto, a política
externa é uma ausente constante nos programas eleitorais de quase todos
os partidos e das suas respectivas campanhas. É possível interpretar este
desinteresse como resultado de várias décadas de introversão estratégica, em
especial desde os anos 1970, quando a Índia se começou a isolar no plano
internacional, com repercussões graves no próprio ensino e investigação
em Relações Internacionais e estudos de área (Alagappa et al., 2009). No
entanto, o animado debate que se trava actualmente em Nova Deli sobre
a possibilidade de a Índia se vir a desenvolver num bridging power, bem
como a emergência de uma nova geração de jovens liberais, por exemplo
247
à volta do projecto The National Interest, promete uma mudança positiva.

Quatro desafios para as próximas décadas

Tendo em conta a trajectória da política externa indiana desde 1947, as


suas principais linhas de continuidade, o «trauma estratégico» do pós-Guerra
Fria, as principais dimensões de mudança, e a sua agenda diplomática e
respectivas limitações infra-estruturais, é possível traçar um conjunto de
quatro desafios.
Primeiro, a ambição indiana de alcançar o estatuto de grande potên-
cia depende, em grande medida, da sustentabilidade do seu modelo de
crescimento (económico e estratégico) e da condição de os seus recursos
domésticos poderem ser gradualmente transferidos para o plano externo.
A questão não é meramente económica e estratégica – apresentam-se como
desafios fundamentais questões tão diversas como a estabilidade e a coesão
do seu sistema político federal, a pacificação da Caxemira, a radicalização da
imensa minoria muçulmana (mais de 150 milhões), as tensões inter-religiosas
e inter-étnicas, a sustentabilidade do já desgastado ecossistema subcontinen-
tal, bem como todos os principais indicadores do que convencionalmente
se entende por segurança humana e que afectam uma população de mais
de mil milhões de pessoas. É por esta razão que, tal como a China, a Índia
(ainda) concentra a esmagadora parte dos seus recursos no nível interno,
assumindo uma posição relativamente conservadora no plano externo.
Segundo, contrastando com o passado em que Nova Deli procurava cons-
tantemente transcender a região da Ásia do Sul e soltar-se do conflito bilateral
com o Paquistão, de forma a assumir-se como uma grande potência global,
os estrategas indianos têm vindo a recentrar as suas prioridades no plano
regional, invertendo as prioridades – nesta perspectiva, a Índia só poderá
aspirar a um papel preponderante a nível global depois de consolidar a sua
posição como potência regional. Perante a crescente presença chinesa neste
espaço de segurança tradicionalmente indocêntrico (do Afeganistão e do
Nepal à Birmânia e ao Sri Lanka), este desafio assume uma urgência ainda
maior, a Índia estando a apostar na interdependência e integração regional
248
económica com os seus principais vizinhos, mas também na projecção de
poder (razão principal que levou ao seu envolvimento no Afeganistão). É
este o objectivo da Gujral Doctrine, que desde os anos 1990 procura integrar
os países vizinhos por via de medidas de confiança político-económicas.
Terceiro, como referido anteriormente, perante a inevitável emergência
da China como segundo pólo num sistema crescentemente bipolar, Nova
Deli terá que reequacionar a sua estratégia omni-alinhada e considerar
uma ainda maior aproximação aos Estados Unidos (ou outros pólos alter-
nativos, como o Japão ou o Médio Oriente). Tendo em conta as linhas de
continuidade fundamentais que marcam a política externa indiana, este é
certamente um desafio monumental, passível de despoletar grandes debates
e tensões internas no campo da cultura estratégica indiana. O objectivo
central será preservar a autonomia (via não- ou omni-alinhamento) e,
ao mesmo tempo, não deixar que o ambicionado estatuto de grande po-
tência sucumba perante as novas realidades geoestratégicas. Na prática,
isto implica alcançar um equilíbrio extremamente difícil: conter a China
de forma pacífica sem, no entanto, entrar numa relação de dependência
perante os Estados Unidos.
Quarto, perante a comunidade internacional, Nova Deli será, a médio
prazo, obrigada a abandonar as suas reticências em relação a um maior
comprometimento, envolvimento e responsabilidade perante as principais
questões de global governance. Até ao momento, a Índia tem aproveitado
o estatuto de free rider, assumindo por vezes mesmo posições divergentes,
bloqueando importantes consensos. Como reagirá a Índia à crescente pressão
para transferir o seu peso em termos de capacidades materiais brutas para o
plano da liderança e influência normativa no plano global, por exemplo em
relação à ordem liberal ou ao regime político democrático? Aceitará abraçar
um discurso mais intervencionista, por exemplo em relação aos rogue states
e regimes autocráticos com que mantém parcerias económicas importantes?
E, mais do que capacidade, terá Nova Deli interesse em assumir esse papel
de responsible stakeholder, ou seja, de accionista empenhado, especialmente
em contraste com uma China igualmente relutante, mas menos interessada
e mais suspeita aos olhos da comunidade internacional?
É do conjunto destes quatro desafios que emergirá a nova política externa
249
indiana nas próximas décadas. Para os interesses europeus, esta transição
assume uma importância vital – o papel da Índia terá um impacto profundo
não só na mutação da ordem regional da Ásia, mas também na estabilidade
ou no conflito com que se desenrolará o processo de mutação do sistema
internacional. Nesse contexto de transição de uma ordem essencialmente
unipolar para um ainda incerto cenário pós-unipolar há uma certeza espe-
cífica que sublinha a importância da Índia: o país encontra-se no epicentro
de um novo espaço geopolítico que é fulcral para a política internacional
das próximas décadas, no cruzamento entre as várias Ásias (Central, do Sul,
Sudeste e Oriental, via China) e como uma «península» estratégica no Oceano
Índico, entre o Atlântico e o Pacífico. É nesse âmbito que a Índia deve ser
vista como uma potência-pivô, ou seja, uma peça-chave para compreender
a nova ordem mundial.

Questões para análise


Faz sentido analisar a política externa indiana desde 1947 como uma evolu-
ção de idealismo para realismo?
O não-alinhamento não morreu em 1990. Comente.
Que obstáculos externos e limitações domésticas poderão dificultar a emer-
gência da Índia como grande potência?
De que forma poderá a ascensão da China alterar as prioridades externas da
Índia?

Fontes na internet
Institute for Defence Studies & Analyses, http://www.idsa.in
Live Fist (Defesa), http://livefist.blogspot.com
Ministério dos Negócios Estrangeiros da Índia, http://www.mea.gov.in
The Hindu, http://www.hindu.com
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and values», Special issue, India Review, 8(3).
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Bibliografia

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Xavier, C. (2009) «Ligando os extremos no Médio Oriente: um potencial papel transatlântico
para a Índia», Relações Internacionais, 22: 47-62.
(Página deixada propositadamente em branco)
Paula Marques dos Santos

253

C a p í t u l o 10

Japão

Este capítulo traça as principais linhas de política externa do Japão,


procurando delinear as principais áreas de actuação e de decisão, essencial-
mente a partir do pós-Segunda Guerra Mundial, procurando contribuir para
uma compreensão das dinâmicas japonesas de política externa enquanto
actor no sistema internacional. Serão analisadas as principais vertentes do
seu posicionamento, de acordo com um alinhamento histórico e cronológi-
co para a compreensão da evolução de políticas nessas mesmas vertentes.

A política externa do Japão: actores e dinâmicas

O Japão tem sido genericamente retratado como um Estado reactivo,


passivo na sua política de segurança, vivendo sob o guarda-chuva securitário
dos Estados Unidos da América (EUA), devido às restrições associadas ao
artigo 9º da sua Constituição, que procura apaziguar os vizinhos asiáticos
por causa das lembranças da sua agressão imperialista na altura da Segun-
da Grande guerra (Hughes et al., 2007). De facto, após a Segunda Guerra
Mundial, o país inicia uma postura internacional completamente diferente
da que havia seguido até 1941. Como potência derrotada e ocupada, adopta
um posicionamento internacional centrado numa imagem pacifista e num
país preocupado em reconstruir-se social e economicamente, tornando-se
rapidamente numa das maiores economias mundiais.
A sua aposta num reposicionamento de low profile e centrado ao nível
das low politics (economia, saúde, etc.) não foi, no entanto, acompanhada
ao longo da segunda metade do século XX pela reformulação da sua po-
254
sição enquanto actor político e militar proeminente, permanecendo como
um actor secundário a estes níveis, não só pelas limitações presentes na
sua Constituição e pelos grandes princípios definidos por Yoshida Shigeru
(pacifismo e reconstrução económica) e por Nobosuke Kishi (princípios
anti-nucleares), mas também pela própria vontade da sua população, mais
preocupada com a recuperação económica do que com o reforço da imagem
político-militar do seu país no sistema internacional.
Além disso, outras das razões que levaram o país a manter este posicio-
namento advêm das próprias pressões regionais, onde muitos países (como
por exemplo, a China ou a Coreia) continuam a demonstrar a sua cautela
quanto a qualquer ressurgimento nipónico, depois de terem sido alvo do
expansionismo do Japão em diversos momentos. Qualquer tentativa para
mudança desta postura tem sido, de facto, vista com grande desconfiança
e, mesmo numa região onde a China surge como uma potência de grande
relevância, o Japão continua a ser considerado com preocupação. Destas
características advém a postura nipónica de um relativo alheamento face
à conjuntura asiática, não só em termos político-militares, mas também ao
nível da cooperação regional (postura que só apenas nos últimos anos se
tem vindo a alterar, como analisaremos adiante).
Assim, perante estas condicionantes, a política externa do Japão reve-
la algumas constantes que influenciaram todo o período após a Segunda
Guerra Mundial: a renúncia à guerra e a postura anti-nuclear; a doutrina
Yoshida e o desenvolvimento de uma postura de low profile no sistema
internacional; a aposta no desenvolvimento económico/tecnológico e a
participação em acções de peacekeeping e humanitárias, como alicerces
para a sua consolidação enquanto potência asiática e mundial; e a relação
privilegiada com os EUA.
Perante estas constantes, aliadas a fragilidades endémicas, verificadas
e comprovadas pelas recentes crises financeiras (finais da década de 1990
e início do século XXI ), e à própria mudança do sistema internacional,
identificam-se alguns desafios aos quais o Japão terá de responder, se
deseja um papel mais evidente e de peso nas relações internacionais, refor-
mulando a sua postura e permanecendo como uma potência relevante no
sistema internacional: (a) repensar a organização interna, ao nível político,
255
económico e financeiro, definindo uma relação diferente entre as forças
que influenciam a tomada de decisão política; (b) promover a defesa dos
direitos humanos e das questões ambientais a par da sustentabilidade do
seu desenvolvimento económico; (c) repensar a sua estratégia de segurança,
com as necessárias reformulações do art. 9º e do relacionamento com os
EUA; (d) repensar o relacionamento intra-regional; (e) reformular as bases
da sua política externa e o seu posicionamento no sistema internacional.
A nível interno, o Japão atravessa também um momento de transfor-
mação. Após quatro décadas de domínio do Partido Liberal Democrático
(Liberal Democratic Party – LDP), quer por eleição directa, quer por meio
de coligações, o governo foi assumido por Hatoyama em Setembro de 2009,
líder do Partido Democrático do Japão (Democratic Party of Japan – DPJ).
Tal situação demonstra uma sociedade em transformação, que procura sair
de uma situação de crise e desemprego, após duas graves crises financeiras
(1997 e 2008) que reconfirmaram as fragilidades do crescimento económico,
a deficiente regulamentação financeira interna e os problemas ambientais
e sociais que resultam do modelo económico desenvolvido desde o final
da Segunda Guerra Mundial, além da reformulação da estrutura ao nível
da decisão política.

O Japão após a II Guerra Mundial até ao presente: principais marcos


e decisores políticos

Após a assinatura da capitulação japonesa no navio de guerra Missouri,


o general Douglas MacArthur desembarca as tropas de ocupação americanas
em solo japonês. Os japoneses – tal como a zona de ocupação alemã – são
reeducados no american way of life, ocupação que se prolonga desde 1945
até 1952. Os grandes trusts concorrentes dos americanos são destruídos
e dissolvidos; o Direito e a Constituição são refeitos segundo o modelo
americano e o Imperador assume um papel meramente simbólico, num
quadro onde o governo é democratizado (parlamentarismo). A 3 de Maio
de 1947 entra em vigor uma nova Constituição, segundo a qual o poder
supremo passa a residir no povo. A Câmara Baixa tem doravante bastante
256
mais competências do que a Câmara Alta e o Imperador. E esta Câmara
Baixa recém-eleita, ainda totalmente sob o choque da derrota no conflito
mundial, renuncia solenemente à guerra ou ao uso da violência na prosse-
cução da política externa, princípio expresso no artigo 9º da Constituição:

Aspirando à paz internacional baseada na justiça e na ordem, o povo


japonês renuncia para sempre à guerra como direito soberano da nação e
à ameaça ou uso da força como meio de resolver disputas internacionais.
A fim de cumprir o objectivo do parágrafo anterior, o potencial de guerra
terrestre, marítimo e aéreo, entre outros, não será mantido. O direito de
beligerância do Estado não será reconhecido (Constituição Japonesa).

Face ao repatriamento de milhões de soldados e civis, o governo lide-


rado por Yoshida Shigeru (1946-1954), 1 trabalha no sentido de reformar o
país e promover a recuperação económica, orientação que ficará conhecida
pela Doutrina Yoshida e que influenciará a postura nipónica durante toda
a segunda metade do século XX :

A doutrina Yoshida (…) subjaz a política externa do Japão subsequente:


confiar nos EUA em primeiro lugar em termos de defesa e concentração
num crescimento económico célere para reintegrar o Japão na família
das nações da Ásia Oriental (Hughes et al., 2007: 157).

Com efeito, nos anos do pós-guerra, os operários e empresários ja-


poneses produziram o milagre de reconstruir as suas cidades e fábricas
destruídas, e mesmo de o fazer da forma mais moderna e melhor do que
tudo o que existira antes. O valor, a capacidade de aprender e a diligência

1 Apesar das datas indicadas, Yoshida Shigeru realizou dois mandatos: de Maio de 1946 a Maio
de 1947 e de Outubro de 1948 a Dezembro de 1954. Durante o interregno passaram pelo cargo de
Primeiro-Ministro Katayama Tetsu e Ashida Hitoshi.
acompanhada de modéstia, dão origem a uma expansão extraordinária da
indústria e do comércio.
A Guerra da Coreia (1950-1953) ajudou nessa recuperação ao permitir um
257
incremento nas exportações japonesas. Também apressou os EUA a procurarem
a conclusão de um tratado de paz com os japoneses e levou à assinatura do
Tratado de Segurança (que será renegociado em Janeiro de 1960). Assim, a 8
de Setembro de 1951 é assinado em São Francisco o Tratado de Paz com os
EUA, bem como um Tratado de Defesa Mútua, a que se associam também o
Reino Unido e mais 46 Estados. Segundo este Tratado, o Japão perde 45% do
seu território e é confinado às suas quatro ilhas principais.2 Recupera a sua
soberania total em 28 de Fevereiro de 1952, quando as tropas de ocupação
norte-americanas abandonam as grandes ilhas do Japão, embora permaneça
sob protecção norte-americana. Esta normalização permitiria a entrada do
Japão como membro de pleno direito na ONU, em Dezembro de 1956.
Em 1951, como reacção ao contexto de Guerra Fria e à guerra da Co-
reia, os EUA autorizam o rearmamento nipónico, embora limitado pelos
constrangimentos do art. 9º. A Força de Auto-Defesa (Self Defense Force – a
SDF, nome oficial do exército japonês) limitava-se, por isso, a um arma-
mento defensivo – excluindo certo tipo de armas estratégicas e, claro, o
armamento nuclear (princípios anti-nucleares reafirmados por Kishi). O país
comprometeu-se a não consagrar mais de 1% do PIB às despesas militares.3
Entre 1954 e 1972, a economia japonesa expandiu-se rapidamente. Par-
tindo da sua base industrial anterior à guerra, o Japão importou tecnologia
e maquinaria modernas, e tornou o desenvolvimento económico o cerne
da política nacional e do seu posicionamento no sistema internacional. O
planeamento económico centralizado permitiu ao governo controlar a es-

2 O Japão renunciou a todos os seus direitos sobre a Coreia, Formosa, ilhas Curilhas, Sakalina e
as ilhas que eram antigos mandatos, abandonando igualmente qualquer reivindicação sobre a Chi-
na; reconheceu o direito de se defender e de negociar acordos de segurança colectivos e aceitou a
validade das reparações de guerra.
3 Apesar de estarem limitados a 1% do PIB, este valor bastava para o colocar, na altura, no ter-
ceiro lugar mundial na área do armamento militar. De resto, o Japão passaria a viver sob o ónus da
existência de bases permanentes de tropas norte-americanas no seu território, para as quais o Gover-
no japonês contribui com o host nation support, através do pagamento dos custos com funcionários
japoneses nas bases norte-americanas.
trutura económica, colocando os recursos, capital e força de trabalho onde
o seu potencial de crescimento era maior. O «Estado desenvolvimentista»,
herdeiro dos Meiji, orquestrou uma política industrial, distinta do liberalismo
258
anglo‑saxónico pelo papel central desempenhado pelo Estado na definição
dos grandes objectivos económicos e por uma política comercial mercantilista,
conduzindo o Japão a um lugar cimeiro na economia mundial desde finais
dos anos setenta. Em 1972, a entrega oficial ao Japão da base de Okinawa,
ocupada pelos americanos desde 1945, assinalou o fim da subordinação
nipónica aos EUA, embora se mantivesse a sua presença permanente em
diversas bases no seu território, como é o caso de Futenma.
Durante os sete anos de ocupação efectiva, os japoneses e os america-
nos conheceram-se mais de perto, tendo os americanos contribuído para a
reconstrução do país através de organizações de auxílio e de ajuda indus-
trial. Apesar disso, não se tinha conseguido fundar uma verdadeira amizade
nacional entre duas nações e culturas tão diferentes. Os acompanhantes
inevitáveis de qualquer exército de ocupação (a corrupção, a prostituição,
a droga, o alcoolismo e as numerosas manifestações de falta de tacto dos
vencedores em relação aos vencidos), criaram um clima anti-americano
junto da população.
Os movimentos socialistas, orientados quer para a Rússia quer para a
China de Mao, atingem também o Japão. Face à sua própria decisão de
renunciar para sempre à presença militar, o Japão necessita, neste mundo
convulsionado, de uma garantia de segurança. Em Julho de 1957, os «princí-
pios fundamentais da defesa nacional», aprovados pelo governo Kishi incluem
princípios como: (a) a segurança nacional do Japão baseia-se na cooperação
internacional, no entendimento com os EUA e na procura de independência
económica; (b) as forças de autodefesa japonesas (SDF) serão progressiva-
mente aumentadas, mas até ao limite do estritamente necessário, e Tóquio
afasta-se da opção nuclear; (c) e a presença efectiva de forças americanas
é entendida como tornando mais credível o «guarda‑chuva» nuclear dos
EUA como factor de dissuasão de um possível agressor, ao nível regional.
Um dos principais objectivos do mandato de Kishi foi a revisão do tra-
tado de 1952, melhorando os termos previstos para o seu país. Assim, em
1960, o primeiro-ministro Kishi (que se demite pouco depois) assina um
tratado revisto com os EUA, que concede a estes o direito de estacionar
permanentemente tropas no Japão. Pelo Tratado bilateral de segurança (de
19 de Janeiro), 4 vigente por dez anos, os EUA comprometiam‑se a ajudar
259
na defesa do Japão em caso de ataque, em troca de bases e portos para as
forças armadas norte-americanas em território japonês. Este tratado

perdurou por meio século de mudanças dramáticas na política mundial –


a Guerra do Vietname, o colapso da União Soviética, a proliferação de
armas nucleares até à Coreia do Norte, a ascensão da China – e, apesar
das ferozes disputas comerciais, trocas de insultos e profundas diferenças
culturais e históricas entre os EUA e no Japão (...) manteve seguro Japão
e os EUA fortes na Ásia Oriental (Packard, 2010).

Mas como tanto a juventude nacional, como sobretudo os movimentos


socialistas e a oposição, se voltam contra esta ligação semi‑militar aos EUA,
Kishi apresenta a sua resignação do cargo no mesmo dia em que o Tratado
é ratificado (23 de Junho), o que demonstra ao Partido Liberal Democrata
(conservadores) que não poderia impor permanentemente a sua vontade à
oposição e população, em matéria de paz e de guerra. O Primeiro Minis-
tro Ikeda Hayato consegue em 1972 a renegociação do Tratado que prevê
a devolução gradual das bases americanas aos japoneses (especialmente
Okinawa). Com prudência, o Japão retoma também relações comerciais e
económicas com a China (essencialmente a partir de 1972, após a norma-
lização das relações EUA-China em 1971).
Na esteira da política dos EUA, o Japão exportador e comerciante volta a
virar a face para o seu parceiro natural, o gigantesco Império do meio que,
na sua poderosa marcha para o futuro, necessita de ajuda industrial. Para
a China, o principal objectivo desta normalização seria obter assistência do
Japão para o seu desenvolvimento e modernização (Inoguchi, 2008: 6), ou
seja, o início da assistência ao desenvolvimento no exterior (ODA – Overseas
Development Assistance) do Japão à China.

4 Este tratado seria o resultado da reformulação do Tratado de 1952, revendo a dependência total
do Japão e procurando conceder bases mais equitativas na relação bilateral.
Acima de tudo, o sistema internacional modifica-se profundamen-
te: ainda que o seu crescimento económico haja restituído ao Japão a
confiança em si próprio que perdera em 1945, o sentimento de extrema
260
vulnerabilidade do arquipélago vai aprofundar-se com a crise energética
de 1973, as difíceis negociações comerciais com os EUA e a, então, Co-
munidade Europeia – mas, sobretudo, com a omnipresença da marinha
soviética, a derrocada das posições ocidentais no Vietname e o relan-
çamento das tensões na península coreana. Um horizonte internacional
subitamente obscurecido, agravado por vezes pela postura do próprio
aliado norte-americano, que sem avisar, procura reencetar relações com
outras potências da região, especialmente com a China, sem pré-aviso
ao governo nipónico.
Num contexto mundial de Guerra Fria, relativamente a questões milita-
res, podemos falar em momentos distintos no relacionamento EUA-Japão:
(a) num primeiro momento, os anos 1950-1960 são de dependência total
dos EUA; (b) de 1961 a 1965, esboça-se uma dependência parcial com
o Japão a começar a produzir o seu próprio armamento e a combinar
com os EUA a sua própria estratégia de defesa; (c) entre 1966 e 1968,
afirma-se a noção de dependência selectiva, considerando-se possível
uma réplica autónoma do Japão a uma agressão aérea ou naval; (d) e a
partir de 1969 abre-se a era da «desamericanização», reforçando-se uma
possível aproximação à vizinha China, marcadamente em contraste com
o afastamento do ocidente.
Em Novembro de 1982, Nakasone Yasuhiro assume a liderança do
Governo do Japão. Como grandes objectivos da sua governação define
essencialmente duas ideias. Em primeiro lugar, o desejo de rejeitar os úl-
timos tabus e partilhar com os EUA as competências e responsabilidades
em matéria de segurança e defesa, procurando assim um novo curso nas
relações americano-nipónicas, ou seja, eliminar a sua menoridade ao nível
militar. Em segundo lugar, defende a integração nipónica no sistema inter-
nacional liberal ocidental, mediante concessões comerciais essencialmente
aos EUA e à União Europeia. Em termos regionais, assume um compromisso
de estratégia regional pacífica, que se traduz, na prática, na reconciliação
com a Coreia do Sul.
Este governo procurava o reforço das capacidades defensivas do Japão,
proporcionalmente ao seu poderio económico. Esta ruptura com a ordem
anterior, simboliza a exigência de maturidade diplomática e militar. Em
261
Janeiro de 1989, a morte do Imperador Hirohito marcou também o fim de
uma era, sucedendo-lhe o seu filho Akihito, que inicia o período Heisei.
A década de 1980 marca, por isso, um ponto de viragem, onde o Japão
inicia uma presença mais visível na cena mundial, tornando-se o maior
fornecedor de ajuda externa ao desenvolvimento (em 1988). 5 Em 1985
liderava o mercado mundial das exportações e permanecia proximamente
ligado aos EUA e à Europa ocidental. Devido ao Japão ser grandemente
dependente de importações petrolíferas do Médio Oriente, foi criticado
pela sua modesta contribuição financeira para o esforço aliado na Guerra
do Golfo de 1991.
O Japão tornou-se, por isso, num grande poder económico, embora a sua
recuperação pós-guerra não tenha sido acompanhada por um crescimento
comparável ao seu peso em termos de política e estratégia internacional,
devido, como já indicámos, à Doutrina Yoshida. Miyazawa (1992) procurou
retirar o Japão do seu tradicional isolacionismo nas relações internacionais,
promovendo um maior intervencionismo na região asiática, através de um
aumento da despesa com a defesa e fomentando um esforço permanente
para a consolidação das relações de vizinhança. 6 Apesar de não gastar
mais do que 1% do seu PIB em defesa e permanecer fiel à Constituição do
pós‑guerra, a força japonesa era em 1994 impressionante, com 250 mil sol-
dados e a maior frota marítima do Pacífico (Yamauchi, 2006: 7). Este poderio
constitui uma preocupação para os seus vizinhos, que recordam bem o seu
passado agressivo. O pacifismo japonês, com estas características militares,

5 Todavia, esta pro-actividade resume-se a acções de apoio ao desenvolvimento, a acções huma-


nitárias (com grande pendor no continente africano) e à participação em acções de manutenção da
paz das Nações Unidas, nunca com a participação enquanto forças militarizadas.
6 Continuando as ideias do seu antecessor, as políticas de Kiichi Miyazawa (Primeiro Ministro
desde 1992) assinalam firmemente a nova direcção da política externa nipónica. De facto, Miyazawa
conseguiu a aprovação de legislação relativa à presença de forças japonesas em acções de manuten-
ção da paz da ONU (forças não combatentes), sendo o Cambodja o primeiro caso de presença de
forças japonesas fora do seu território desde a Segunda Guerra Mundial.
poderia levar ao ressurgimento de um militarismo destinado a lidar com as
disputas territoriais que mantém com a China e a Rússia.
No final da década de 1990, o Japão deparava-se com a primeira crise
262
económico-financeira, que vem demonstrar as fragilidades endémicas do
seu crescimento económico: o sobre-investimento, a falta de regulamentação
relativamente ao sector financeiro e a extrema dependência do exterior ao
nível energético e das matérias-primas, entre outras, e que demonstram o
esgotamento do modelo adoptado no pós-II Guerra Mundial e a necessi-
dade de uma reorganização política, económica e social do Japão. Perante
as fragilidades evidenciadas pela crise, Junichiro Koizumi (2001-2006) es-
tabelece como prioridade a revisão constitucional, ao nível da capacidade
de segurança. Além disso, tendo assumido o governo no início do século
XXI , propôs-se também desenvolver uma reforma profunda a nível interno,
incluindo modificar a Constituição para regularizar a existência das Forças
Armadas; e resistir às exigências de alguns Estados asiáticos (especialmen-
te a China e a Coreia do Sul) de que o país alterasse o enfoque dado à
Segunda Guerra Mundial nos manuais escolares. Todavia, as pressões e as
dificuldades para a sua implementação foram inúmeras.
Shinzo Abe continuou este trabalho reformista através de três pilares funda-
mentais: a reforma educacional, a inovação tecnológica e a revisão constitucional.
Para isso, apostava em cinco alvos políticos: a construção de uma economia
aberta e cheia de vitalidade; a reforma educacional; a transição para uma di-
plomacia mais pró-activa; a reestruturação das medidas de assistência social
(que incluía a expansão da aplicação dos benefícios do seguro social aos que
não trabalham a tempo integral); e a redução de gastos, almejando diminuir
a carga financeira dos contribuintes. Em termos de segurança, defendia que
as funções do Primeiro Ministro teriam de ser reorganizadas e fortalecidas,
acoplando-as da capacidade de reunir informações de inteligência.
Embora a liderança de Shinzo Abe tenha durado apenas um ano, esta
reafirmou as principais questões (que já Koizumi havia levantado) e que
têm marcado os últimos governos. A mudança do partido no poder em
2009, com Hatoyama Yukio (DPJ), não alterou a necessidade de reformas
profundas no processo de formulação política, no controlo da influência
lobbyista e/ou burocrática nesse mesmo processo, bem como a regulamen-
tação das áreas financeira e económica, para que o Japão possa efectivar
a sua capacidade enquanto actor internacional, de acordo com o «arco de
liberdade e prosperidade» defendido por Taro Aso. 7
263

A reformulação da organização interna, a nível político, económico e financeiro

A política japonesa está assente num sistema parlamentar, com uma forte
tendência burocrática, de acordo com os parâmetros da teoria weberiana,
onde a necessidade de consenso entre o Governo, Partidos maioritários,
Dieta e Câmara dos Representantes (ou Câmara Baixa) são os alicerces
para a estabilidade governativa, já que o Imperador detém apenas uma
representação simbólica da soberania nacional.
Pela Constituição de 1947, procurou-se evitar a situação prevalecente na
constituição Meiji, onde a autoridade e responsabilidade estavam difusas
por entre os diversos detentores do poder, situação que havia conduzido
ao reforço das oligarquias não eleitas. Com a Constituição do pós-guerra,
pretendeu-se entregar o poder aos eleitos pelo povo. O poder executivo
recai, assim, no Governo, constituído pelo Primeiro Ministro e pelos Mi-
nistros de Estado, os quais têm responsabilidade colectiva perante a Dieta.
O Primeiro Ministro assume a liderança do Governo, tendo como funções
autoridade sobre a sua administração, homologar propostas de lei, elaborar
relatórios sobre assuntos nacionais e de relações externas (para a Dieta),
bem como exercer o controlo e fiscalização sobre todos os departamentos
administrativos. O Governo, por seu lado, tem como funções conduzir os
assuntos de Estado, gerir a política externa, concluir tratados, preparar o
orçamento, e proceder de acordo com as instruções recebidas do Gabinete
do Primeiro Ministro.

7 Taro Aso defendia que o Japão deveria apoiar os Estados dentro do «arco da liberdade e da
prosperidade» que se estende do Nordeste Asiático à Ásia Central e ao Cáucaso, à Turquia, à Europa
Central e Oriental e aos Países Bálticos, o Japão teria de conseguir oferecer o seu apoio. A título de
exemplo, no Verão de 1989, o Japão declarou-se pronto para fornecer assistência financeira em larga
escala à Polónia e Hungria. Na Bósnia-Herzegovina, no final do conflito em 1995, o Japão prometeu
500 milhões de dólares em assistência financeira.
Todavia, apesar destas pretensões constitucionais, o défice de liderança
política tem minado a capacidade do Governo de agir rapidamente, essen-
cialmente em momentos de crise, ou de exercer uma liderança internacional
264
nas trocas comerciais ou mesmo na política externa. Esta incapacidade
decorre, não só de factores históricos e culturais, mas essencialmente de
factores institucionais. De facto, a existência de lideranças fortes por parte
dos Primeiros Ministros nipónicos tem sido uma excepção e não uma regra
(Mulgan, 200: 183). Esta situação deve-se essencialmente a duas questões
– o poder excessivo dos burocratas e a existência de grupos internos em
cada Partido. A fragmentação interna inerente aos grande partidos, essen-
cialmente do LPD, contribui para o enfraquecimento do próprio Governo,
uma vez que, embora detenham a maioria dos assentos na Dieta, as lutas
entre esses diferentes grupos fazem esquecer, muitas vezes, a solidariedade
política para com os Ministros e o Primeiro Ministro, enfraquecendo a sua
governabilidade.
O poder dos burocratas tem também influenciado consideravelmente a
capacidade de governação de vários Primeiros Ministros, já que a sua influ-
ência nos bastidores políticos consegue manipular e influenciar o desfecho
de muitas negociações e tomadas de decisão, levando mesmo à queda de
alguns líderes do executivo (Curtis, 2002: 6), como podemos verificar na
rotatividade de governos desde 2006 até ao presente. A relação entre estas
duas classes durante o longo período de domínio de governação do LDP 8
não pode, no entanto, ser considerada como um jogo de soma zero onde
os burocratas detinham todo o poder e os políticos nenhum, pois foram os
líderes políticos, não os burocratas, a definir o enquadramento da política
externa e doméstica japonesa do pós-guerra.
A crise económica de 1997, e a sua reedição em 2008, comprova que
ainda há muito a fazer ao nível de regulamentação económico-financeira,
onde o Estado teria de conceder um maior espaço à iniciativa privada, fi-
cando apenas com o papel regulador, bem como ao nível político-militar.
E neste aspecto, a definição dos poderes do Governo e o reforço dos po-

8 O LDP apenas perde o poder em 2009, com a vitória de Hatoyama Yukio do Partido Demo-
crático do Japão, substituído por Kan Naoto, um ano depois ( Junho de 2010) do mesmo partido.
deres legislativos da Dieta têm de ser realizados simultaneamente a uma
aposta na regulamentação de sectores cruciais, como a economia e as finan-
ças, concedendo maior segurança a estes sectores, para fazer face a novos
265
ataques especulativos e permitindo que o investimento privado (nacional
e estrangeiro) possa tornar-se numa realidade e num vector de desenvolvi-
mento do país. Esta tem sido, com efeito, uma preocupação governamental
desde 1997 e reforçada nos programas governativos desde 2001, a par da
luta pela reforma constitucional e da libertação do estigma da menoridade
ao nível da segurança nacional.

Uma nova estratégia de segurança e a segurança estratégica

Se é verdade que o Tratado de Segurança de 1960 durou mais que qual-


quer outra aliança entre duas potências, desde a paz de Vestefália de 1648,
trazendo benefícios evidentes para ambas as partes, também é verdade que
o Japão necessita repensar a sua agenda na área da segurança, reformulando
as limitações constitucionais e consolidando uma posição distinta nas suas
relações intra-regionais, bem como adquirindo um novo posicionamento
no sistema internacional.
A alteração da visão da segurança constitui ainda um imperativo de es-
tabilidade nacional: as grandes indústrias japonesas que fabricam material
militar de primeira linha necessitam de se tornar rentáveis. E, evidentemente,
a máquina militar japonesa tem problemas enormes: muitas tropas têm que
treinar em território norte-americano; e não tem como projectar poder nas
costas asiáticas nem como controlar as vias marítimas de longa distância,
dependendo do apoio dos EUA. Ainda, as restrições legais (que impedem os
soldados japoneses de participarem fora do Japão a não ser em missões de
paz da ONU) e de mentalidade (herança do passado) impedem que essas
forças sejam usadas de forma efectiva. A China, que procura afirmar‑se como
a grande potência regional, teria que se defrontar com um rival histórico
extremamente poderoso. A Rússia veria o seu peso no tabuleiro de xadrez
do Oriente ainda mais reduzido, e a Coreia do Sul sentir-se-ia ameaçada
face a uma presença japonesa mais extensiva.
Em qualquer caso, terá de haver mudanças. Aliás, algumas começaram a
acontecer em 1991, procurando responder às restrições existentes ao empre-
go de forças armadas no exterior e que obrigaram o Japão, por exemplo, a
266
limitar a sua contribuição para a resolução da crise levantada pela invasão
do Kuwait pelas forças de Saddam Hussein a uma ajuda económica. Um
ano depois, uma nova lei passou a permitir a participação das Forças de
Auto-Defesa em operações de manutenção da paz no exterior, desde que
sob mandato da ONU. Desde aí, a presença de militares japoneses passou
a ser efectiva em países como o Camboja (1992), Moçambique (1993),
Ruanda (1994), Montes Golã (desde 1996, como observadores da ONU) e,
posteriormente, em Timor-Leste (1999 e 2002) e Iraque (2003-2004). Em
1995, com o lançamento da Iniciativa Nye, 9 encetaram-se negociações para
a revisão do Pacto de Defesa Mútua EUA-Japão, onde se apontavam quatro
possíveis opções para o Japão: (a) tornar-se uma superpotência através de
um processo de remilitarização; (b) continuar com a sua política economi-
cista do pós-guerra; (c) dar ênfase ao contexto regional; (e) desempenhar
um papel político global em decorrência e em conjunto com o seu poder
económico global.
O Japão sofreu, na altura, três choques de segurança: os testes chineses
de mísseis sobre o Estreito de Taiwan em 1995 e 1996; o teste de lança-
mento do míssil norte-coreano Taepodong-1, em 1998; e um conjunto de
eventos que erodiu a confiança nos fundamentos do regime existente de não
proliferação: os teste nucleares da Índia e Paquistão em 1998 e a decisão
dos EUA de não ratificarem o Tratado de Proibição de Testes. O plano de
reestruturação das Forças de Auto-Defesa previa a melhoria nas tecnologias
de defesa e equipamento militar, enquanto visava redução de pessoal e o
alargamento dos parâmetros operacionais das Forças de Auto-Defesa.
A Dieta japonesa tomou a decisão, em Julho de 1999, de constituir gru-
pos especiais para a revisão do artigo 9º da Constituição. O maior impacto
foi causado pelas declarações, em Outubro desse ano, do Vice-Ministro da
agora extinta Agência de Defesa do Japão, Nishimura Shingo, de que o Japão

9 Joseph Nye desempenhava, nessa altura, as funções de secretário assistente da defesa para os
assuntos de segurança nacional dos EUA.
poderia considerar a possibilidade de adquirir armas nucleares. A China
opôs-se de imediato ao sistema de defesa de mísseis japonês – Theater Missile
Defense (TMD), devido a cinco motivos: o possível envolvimento de Taiwan;
267
a possibilidade de que a capacidade de dissuasão chinesa fosse minada; a
ameaça da remilitarização do Japão; o reforço da aliança EUA-Japão; e o
impacto negativo que poderia ter no processo global de controlo de armas.
A partir de 1997-1998 são adoptadas, no entanto, novas directivas sobre
a cooperação em defesa, especificando detalhes sobre o acesso dos EUA
à área de apoio do Japão, ao abastecimento e aos aeroportos em caso de
emergência. Depois dos testes de um míssil balístico pela Coreia do Norte
(1998), Tóquio concordou em cooperar com Washington e compartilhar
tecnologia de anti-mísseis balísticos de defesa. Mais tarde, em 2001, uma
nova lei permitiu que as forças navais japonesas colaborassem com as for-
ças armadas norte-americanas no Índico, em missões de reabastecimento e
apoio logístico, por ocasião da invasão do Afeganistão.
Em 2005, Condoleezza Rice e Donald Rumsfeld, em reunião com os
representantes do Machimura (MNE) e do Ohno (Ministério da Defesa),
assinaram um documento intitulado US-Japan Alliance: Transformation
and Realighment for the Future. Pode ler-se neste documento que a Aliança
EUA‑Japão continuava a ser o pilar indispensável da segurança do Japão
e da paz e estabilidade da região Ásia-Pacífico. O Japão deveria, por isso,
evoluir gradualmente a fim de assumir maior responsabilidade na segurança
do Extremo Oriente, em aliança com os EUA e os seus aliados. A aliança
entre o Japão e EUA representa a relação de segurança bilateral mais im-
portante para ambos os governos. Quer em termos de poder estrutural, quer
em termos de identidade democrática, o mundo desvia-se cada vez mais
para a Ásia e, por isso, o Japão é um exemplo paradigmático: é um grande
poder e, simultaneamente, possui uma identidade democrática.
Quando Shinzo Abe assumiu a liderança governativa (2006), enfrentou
desafios profundos acerca da necessidade de repensar a estratégia do país
no novo cenário internacional. O período da sua governação foi efémero,
pois, não conseguindo responder à pressão conjuntural, resigna ao cargo,
sendo substituído por Yasuo Fukuda, que toma posse em Setembro de 2007.
A resignação de Abe esteve directamente ligada ao debate sobre a altera-
ção do art. 9º da Constituição japonesa, mas constituiu também o reflexo
da própria instabilidade económica, financeira e mesmo social instalada
no país, apesar de todas as tentativas de retoma que foram desenvolvidas
268
após a recessão de 1997. 10
Shinzo Abe considerava que, tendo em conta as mudanças da situação
internacional como a proliferação de mísseis, armas de destruição em
massa e luta contra o terrorismo, bem como os avanços tecnológicos mili-
tares e a crescente expectativa em relação à contribuição internacional do
Japão, deveriam ser estudados casos específicos para identificar que tipo
de situação se enquadraria no exercício do direito à autodefesa colectiva,
tornando mais eficazes as funções da aliança Japão-EUA e promovendo a
manutenção da paz. Perante este desafio, apontam-se nos nossos dias, para
a revisão da Constituição, dois objectivos principais: legitimar a actual exis-
tência das Forças de Auto-Defesa, criadas em 1954, que alguns pensam não
estar claramente enquadradas pela Constituição; e clarificar a questão da
participação em iniciativas de autodefesa colectivas. 11 Por uma questão de
prestígio nacional e de necessidade estratégica, o Japão terá de se preparar
para alterar o artigo 9º.
A vitória do Partido Democrata Japonês em Agosto de 2009, liderado
por Hatoyama Yukio, levantou novas questões em relação aos benefícios
do Tratado de Segurança, questionando se estes continuam a ser superiores
aos custos. De facto, podemos apontar diversos benefícios para ambos os
países. Se para o Japão este Tratado trouxe benefícios evidentes, permitin-
do‑lhe o robustecimento económico e a consolidação democrática, 12 para
os EUA também foi favorável: possibilidade de prosseguir com a sua estra-

10 De facto, e apesar de todos os esforços de retoma económica no Japão, em Novembro de


2008 é anunciado um novo estado de recessão técnica no país, após a crise do sub-prime nos EUA.
11 Neste debate, existem 3 correntes essenciais: a) os nacionalistas (visão conservadora) enten-
dem que a política de segurança deve centrar-se no Tratado de Segurança com os EUA, cujo âmbito
deve ser expandido, quer a nível regional quer a nível global; b) os internacionalistas (visão mode-
rada) pretendem que tudo se baseie numa maior cooperação com as Nações Unidas ou outros pos-
síveis quadros multinacionais ou regionais; e c) os neo-nacionalistas (visão progressista) defendem a
criação de capacidades de defesa autónomas.
12 O Tratado permitiu ao Japão permanecer sob o guarda-chuva nuclear dos EUA, prosseguindo
com a Doutrina Yoshida e focalizar-se no crescimento económico, sem a necessidade de adquirir ar-
mas nucleares. Além disso, permitiu-lhe ainda o acesso ao mercado norte-americano e, dessa forma,
ter a possibilidade de robustecer as raízes frágeis da democracia parlamentar.
tégia no sudeste asiático, concedendo-lhe uma vantagem estratégica para
observação das manobras soviéticas e possibilidade de ter tropas estacio-
nadas permanentemente na região a baixo custo. Como definiu o Primeiro
269
Ministro Yasuhiro Nakasone (1982-1987), o tratado concedeu aos EUA um
«porta‑aviões inafundável» (Packard, 2010).
Perante isto, se durante todos estes anos, Tóquio se escudou nos três prin-
cípios anti-nucleares de Eisaku Sato, constitucionalmente alicerçados – Tóquio
não produzirá, possuirá ou introduzirá armas nucleares no território –
para se dirimir de uma participação pró-activa no sistema internacional e
na região, o governo liderado por Yukio Hatoyama, e os seus sucessores,
terão de conseguir consolidar uma nova estratégia de defesa, promovendo
um debate nacional que consiga finalizar o processo encetado no início do
século XXI, essencialmente com Koizumi e Shinzo Abe, para a reformulação
do art. 9º e para uma nova política externa e estratégia de segurança. Esta
deve ser mais preocupada e envolvida com a conjuntura regional asiática,
e responder à necessidade de esbater a «pegada» norte-americana no Japão,
incluindo a renegociação das condições de permanência no território, de
forma a tornar este relacionamento mais equitativo.
Perante tal situação, a nova agenda de segurança do Japão terá de re-
pensar o seu posicionamento regional, sem, contudo, eliminar a cooperação
com os EUA no reforço da comunidade no sudeste asiático, ideia já lançada
por Hatoyama.

As relações intra-regionais

Podemos considerar que a normalização definitiva dos relacionamentos


ao nível regional será uma das grandes prioridades para o Japão, procurando
eliminar definitivamente os traumas do conflito mundial e demonstrando uma
postura assertiva e empenhada no desenvolvimento de toda a região. A base
da política externa japonesa passará, então, pelo fortalecimento da aliança
com os EUA e das relações com países vizinhos como a China, Coreia do Sul
e Rússia, além do sudeste asiático. Ou seja, tal como Taro Aso (2008-2009)
defendeu durante o seu governo, além das linhas de orientação tradicionais,
o Japão deveria acrescentar um novo eixo em torno do qual deveria girar a
política externa japonesa, alicerçada numa diplomacia de valores, prioritizando
«valores universais» como democracia, liberdade, direitos humanos, Estado de
270
direito e economia de mercado. Neste sentido, este Primeiro Ministro definiu
ainda um conjunto de novas democracias ao longo dos limites externos da
Eurásia, onde o Japão deveria desenhar o arco da liberdade e prosperidade,
demonstrando uma liderança eficiente, como referido.
O fim da Guerra Fria permitiu ao Japão a oportunidade de desenvolver
uma política independente relativamente à China. Após a assinatura do
Tratado de Paz e Amizade em 1978, os laços entre os dois países desenvol-
veram-se consideravelmente: os japoneses alargaram substancialmente a sua
assistência económica aos chineses com vários projectos de modernização
(participação na ODA), florescendo uma forte relação económica e comercial.
O intercâmbio bilateral comercial e cultural expandiu-se e, na década de
1990, a China tinha-se já tornado no segundo parceiro económico, ultrapas-
sada apenas pelos EUA. Apesar de diferendos ocasionais (Segunda Guerra
Mundial ou condenações nipónicas sobre a repressão chinesa de 1989), a
visita do imperador Akihito à China em 1992, que incluiu um pedido de
desculpas tácito pelo sofrimento severo que o Japão infligiu à população
chinesa durante a guerra, demonstrou que o Japão está determinado não
só em construir laços económicos bilaterais fortes, mas também em ultra-
passar o fosso desde a guerra e restabelecer os laços culturais. Todavia, o
relacionamento político mantém-se muito difícil.
Apesar das relações formais com Taiwan estarem suspensas desde 1978,
o território continua a desempenhar um papel importante para o Japão,
particularmente desde a década de 1980, quando o governo nipónico procu-
rou reforçar os seus laços com os novos países industrializados asiáticos da
altura (Coreia do Sul, Taiwan, Singapura e ainda Hong Kong). Estas regiões
eram vistas como áreas capazes de fornecer produtos de alta qualidade ao
mercado japonês e, consequentemente, como territórios para investimento
directo das empresas nipónicas, criando uma região económica altamente
dinâmica.
Os esforços para consolidar as relações com o sudeste asiático apro-
fundaram-se essencialmente a partir do final do século XX (os sentimentos
de ressentimento e de exploração contra os japoneses mantiveram-se até
à década de 1980). As nações do sudeste asiático, particularmente a Indo-
nésia, tornaram-se destinos de ajuda japonesa ao desenvolvimento. Além
271
disso, o Japão desenvolveu esforços ainda com o Vietname e o Cambodja.
No caso do Vietname existiam grandes interesses económicos, enquanto no
Cambodja o Japão participou amplamente no plano de paz do Conselho
de Segurança das Nações Unidas e ajudou à sua implementação no ano de
1992, através da participação das Forças de Auto-Defesa na operação de
manutenção da paz da ONU (a primeira desde a Segunda Guerra Mundial).
O Governo nipónico procurou ainda aligeirar as animosidades com a pe-
nínsula coreana. Foram formalizados pedidos de desculpa relativos à acção
colonial japonesa (desde 1995 pelo Primeiro Ministro Murayama Tomiichi),
desenvolveram-se visitas mútuas pelos líderes políticos a ambos os territórios
(Coreia do Sul e Japão) e foram negociados acordos de comércio bilateral.
Todavia, estes passos positivos tendem a desvanecer-se por eventos que não
agradam às autoridades da Coreia do Sul: declarações do governo japonês
em defesa das acções coloniais e de guerra do Japão (incluindo a prostituição
forçada de mulheres coreanas durante a guerra), ou revelações acerca de
manuais escolares que exaltam o período colonial, além do estatuto diferen-
ciado dado a coreanos em território japonês, muitos dos quais de terceira e
quarta geração. Apesar destas diferenças, em 2002 os dois países organizaram
conjuntamente o mundial de futebol, a primeira vez que tal evento se realizou
no continente asiático, bem como têm colaborado na busca da resolução do
problema norte-coreano. Com a Coreia do Norte as relações são muito mais
precárias devido ao regime no poder vigente naquele país – o seu projecto
de nuclearização tem levado a contactos frequentes entre o Japão, os EUA
e a Coreia do Sul. De facto, as relações entre o Japão e a Coreia do Norte
não poderão ser normalizadas a menos que o problema dos sequestros seja
resolvido e o regime norte-coreano aceite uma abertura e fiscalização inter-
nacional ao seu território, em termos de armamento.
Quanto à Rússia, este relacionamento bilateral permanece distante. O
problema das Curilhas mantém-se como obstáculo, evitando a assinatura de
um tratado de paz formalmente terminando com as hostilidades da Segunda
Grande Guerra. De facto, o Japão encarou a devolução das quatro ilhas das
Curilhas como uma ameaça ao seu território e, por isso, continuam relutantes
em garantir à Rússia ajuda ao desenvolvimento deste território. Contudo,
e apesar deste impasse, a maioria dos japoneses não sente problemas na
272
relação com a Rússia.
Além destes contactos bilaterais, uma série de movimentos e iniciativas
recentes indicam também que o Japão está a procurar um posicionamento
diferente da sua postura anterior e que pode propiciar o desenho de um
papel mais cooperativo ou de liderança na região asiática:

• iniciativas com ênfase na dimensão inter-regional, visando ampliar a


integração da região asiática com outros espaços, principalmente com
a União Europeia, através do ASEM (Asia Europe Meeting) e com a
América Latina, por intermédio da EALAF (East Asia Latin America
Forum);
• projectos intra-regionais com o objectivo explícito de reforçar novas
modalidades de integração, sem a presença norte-americana, como
a retoma da proposta de um Fundo Monetário Asiático e a recente
configuração da ASEAN (Association of Southeast Asian Nations) em
ASEAN+3, com a inclusão da China, Coreia do Sul e Japão. Nesta
perspectiva, pode-se ainda arrolar a disposição japonesa de assinatu-
ra de tratados comerciais bilaterais, especificamente com Singapura,
Coreia do Sul e Chile;
• uma maior participação nas questões de segurança estratégica
regional, ampliando o seu papel na sua defesa e na defesa re-
gional. Esta ponderação apresenta-se de forma mais complexa
em decorrência da manutenção da aliança militar com os EUA,
inclusive com a sua participação no desenvolvimento do Theater
Missile Defense (TMD).

Todos estes elementos demonstram que o Japão, após um longo período


de aparente inércia, pretende assegurar um papel de maior proeminência
na região asiática e ser um actor regional/internacional com maior peso. A
reunião informal da ASEAN, em Novembro de 1999, ressuscitou a ideia de-
fendida em 1990 pelo Primeiro Ministro da Malásia, Mahathir Mohamad, de
institucionalização de um bloco regional, com características essencialmente
asiáticas. Tanto a proposta inicial do East Asia Economic Group (EAEG),
como a proposta mais suavizada do East Asia Economic Caucus (EAEC),
273
dentro do fórum da APEC, foram fortemente rechaçadas pelos EUA por
terem sido deixados de fora, forçando o Japão a não apoiar a iniciativa ou
a instrumentalizar uma liderança dentro deste bloco asiático. No entanto,
a ASEAN constitui ainda uma força regional e a adesão dos três líderes do
nordeste asiático – Japão, China e Coreia do Sul – reflecte a tendência para
uma crescente cooperação, especialmente económica. A ênfase no reforço
da cooperação económica indica igualmente o cuidado em evitar eventuais
discussões sobre questões políticas e de segurança.
Além do interesse de estreitamento de cooperação económica, o Japão
demonstra igualmente dúvidas em relação ao controlo sobre fluxos de capi-
tais e investimentos das economias ocidentais que dominam o FMI. Assim,
na região da ASEAN, o Japão ganhou o endosso da região na indicação
de Eisuke Sakakibara, antigo Ministro das Finanças do Japão, para a pre-
sidência do FMI. E igualmente procurou apoio para a retoma do processo
de criação do Fundo Monetário Asiático (FMA), o qual se materializou a 5
de Maio de 2007.
Neste sentido, podemos concluir que o Japão está a promover um forte
processo de abertura externa em três níveis: (a) abertura unilateral, repre-
sentada pela reestruturação bancária; (b) abertura multilateral, decorrente
dos esforços de inserção internacional através de instituições internacionais,
em especial a OMC e a APEC; e, (c) abertura bilateral, em reconhecimento
da eficácia de arranjos bilaterais, mas centrados em novas modalidades,
principalmente as que se referem a informações tecnológicas e produção
de conhecimento.
No início da década, a maioria das análises apontavam o Japão ou como
uma superpotência económica ou como um poder incompleto em decorrên-
cia da sua renúncia ao uso da força como instrumento da política externa
ou ao facto de não possuir recursos militares ofensivos, principalmente
nucleares. Mas as suas decisões têm comprovado que o país procura uma
forma de consolidar o seu posicionamento, não só ao nível internacional,
mas também perante a realidade regional asiática.
Considerações finais

Ao longo deste capítulo verificamos que o Japão se encontra num cruce


274
de caminos, onde tem procurado redesenhar o seu posicionamento ao nível
regional e mundial, reformulando, ou pelo menos procurando redefinir, os
paradigmas nacionais ao nível da formulação e decisão política que lhe
permitam esse mesmo reposicionamento.
Tal como Chin Wah (1997: 108-130) demonstra, o Japão deve encarar algu-
mas questões para se apresentar como um grande poder regional. Primeiro,
a retórica do retorno à Ásia não é um substituto para o relacionamento com
os EUA. Consequentemente, deve procurar uma forma de manter equilíbrio
entre ser parte do mundo desenvolvido e um líder na Ásia. Segundo, a Chi-
na será um ponto crítico de referência num envolvimento triangular com
vista à estrutura de estabilidade na Ásia-Pacífico. Mais do que visar uma
política de contenção remodelada com os EUA, seria necessário envolver
positivamente a China num processo de construção de confiança. Terceiro,
com a emergência chinesa como uma força económica, inevitavelmente
comparações serão feitas sobre quem desempenhará um papel crítico no
desenvolvimento regional – o Japão, por um lado, tem a vantagem de ser
a base do investimento e da regionalização dos processos de manufactu-
ração, enquanto a China, por outro lado, deverá continuar a oferecer um
mercado em expansão e oportunidade de investimento para as economias
regionais. E, finalmente, o Japão continuará a ter que escolher entre estar
atento às sensibilidades norte-americanas ou apoiar as iniciativas regionais,
como por exemplo a EAEC.
A preferência e orientação pelo low profile e pela doutrina Yoshida, apesar
das tentativas de reformulação encetadas a partir dos anos de 1980, consti-
tuem ainda um dos grandes desafios à política japonesa. Contudo, o novo
contexto internacional tem questionado o valor desta postura tradicional,
em particular face à nova distribuição de poder pós-Guerra Fria, pós-11 de
Setembro e face a uma China emergente. Apesar do fim da Guerra Fria e
da desagregação da URSS terem feito desaparecer a ameaça hipotética que
pairava sobre o Japão (ainda que o contencioso territorial entre Tóquio
e Pequim sobre as ilhas Curilhas continue por resolver), novas ameaças
parecem cada vez mais claras. O aumento do poderio da China, potência
nuclear, faz parte agora das preocupações de política externa nipónicas.
Independentemente do uso futuro do seu poderio militar, o Japão en-
275
frenta um conjunto alargado de preocupações de segurança, que se podem
intensificar caso a situação na Ásia se agrave, principalmente em relação à
Coreia do Norte, ou face a um eventual afastamento norte-americano radical
da área, que de momento não parece provável. Estes receios poderão, no
entanto, incentivar a participação japonesa na corrida ao armamento que
se tem verificado na região asiática. Ainda mais problemático, com os seus
vizinhos bem equipados em termos militares, o Japão tem colocado questões
sobre uma possível capacidade nuclear futura. Caso se venha a concretizar,
significará uma mudança profunda na doutrina japonesa, iniciando uma nova
postura do país relativamente ao seu papel militar no mundo.
O papel de liderança japonesa em política externa apresenta-se também
dependente de um novo equilíbrio na sua política doméstica, com instabili-
dades contínuas desde início dos anos 1990, ou seja, o estatuto de grande
poder não corresponde só ao direito mas também a responsabilidades na
manutenção da ordem e estabilidade regional. No caso do Japão, a acei-
tação deste papel pelos outros dependerá também de como solucionará a
sua bagagem histórica negativa.
Por fim, o Japão tem também procurado ganhar um novo fôlego enquanto
actor mundial, em conjunto com a crescente procura de participação em
arranjos e fora multilaterais sob a égide da ONU. De facto, o Japão tem
também aumentado a sua capacidade e influência no seio das Nações Uni-
das, lançando uma candidatura na década de 1990 a um lugar permanente
no Conselho de Segurança, 13 além de procurar uma cooperação estreita
com a UE e a NATO. Todavia, um papel mais activo na política externa

13 O Japão celebrou, no dia 18 de Dezembro de 2006, o 50º aniversário da sua admissão nas
Nações Unidas. O Japão foi admitido nos Nações Unidas em 1956, tornando-se o seu octogésimo
membro e já foi membro não permanente do Conselho de Segurança por nove vezes. Em 2005, para
ganhar um assento permanente no Conselho de Segurança, o Japão propôs um esboço de resolução
visando a ampliação do número de assentos permanentes juntamente com os outros integrantes do
G4 (Brasil, Alemanha e Índia), mas tal proposta foi rejeitada, parcialmente devido à oposição da
China. A administração de Shinzo Abe retomou esta questão e conseguiu que em finais de 2006 os
EUA expressassem o seu apoio à obtenção de um assento permanente.
não é defendido por toda a população nipónica, razão pela qual o envio
de tropas por Junichiro Koizumi em 2003 para apoiar os EUA no Iraque
foi criticada por muitos. Actualmente, a contribuição financeira do Japão
276
é a segunda maior de todas, representando 19,5% do orçamento da ONU,
perdendo somente para os 22% dos EUA, tendo já disponibilizado 5.700
pessoas para operações para manutenção da paz em 18 ocasiões (Tanaka,
2006; Yamauchi, 2006: 6-7).
Neste momento, repensar o reposicionamento japonês no sistema interna-
cional passa pela capacidade de moderar a influência directa dos EUA sem
perder essa ligação privilegiada; promover uma melhor e maior aceitação ao
nível regional, demonstrando à vizinhança a não vontade de todo de voltar
a ter políticas imperialistas e expansionistas; promover a cooperação regio-
nal, adquirindo uma posição de liderança em organizações de cooperação;
e aceitando o seu papel e responsabilidade perante os conflitos regionais
e internacionais, alargando o seu envolvimento além da ajuda humanitária.
A sua posição no sistema internacional limita, por isso, a sua margem
de manobra. A inserção do arquipélago na economia e na rede militar
americanas da Guerra Fria teceu importantes laços de dependência política
que perduraram quase imutáveis até aos nossos dias. Os EUA moldaram o
sistema político e estimularam a emergência de elites pró-americanas, bem
como do LDP. Durante a Guerra Fria, esta subordinação político-militar era
compensada pela abertura quase incondicional do mercado norte-america-
no aos produtos nipónicos e pela tolerância americana face ao dirigismo
japonês. No pós-Guerra Fria, os japoneses tiveram de se acomodar à ma-
nutenção desta subordinação política, ao mesmo tempo que se sujeitavam
a um questionamento do seu modelo económico.
Sob fortes pressões externas, nos anos 1980-1990 o Estado desobrigou-se
da economia, privatizou o sector público e desregulamentou os mercados
financeiros. Nos finais da década de 1990, após anos de fraco crescimento
e mesmo recessão, o Japão tem de enfrentar a crise de sobre-investimento,
que se voltou a agravar em 2008. Enfraquecendo o Estado desenvolvi-
mentista, a globalização teve um efeito profundamente corrosivo sobre o
modelo económico nacional japonês. No século XXI o Japão enfrenta uma
crise multidimensional que afecta o próprio centro do seu sistema econó-
mico e político. Além disso, é certo que o Japão continua a ser a potência
dominante na Ásia oriental, mas enfrenta a concorrência da China, novo
pólo de integração regional. O Japão está doravante colocado perante o
277
desafio de reinventar o seu modelo e de se dotar de uma autonomia política
à medida do seu peso económico, procurando paralelamente responder à
instabilidade económica mundial que se tem reflectido negativamente na
sua capacidade de retoma interna.

Questões para análise


Identifique e analise as principais forças que têm influenciado o processo de
decisão política no Japão.
De que forma o relacionamento estreito com os EUA, tem condicionado o
posicionamento ao nível do sistema internacional do Japão?
Perante um sistema internacional onde os EUA pretendem partilhar com as
restantes potências a responsabilidade da estabilidade político-militar,
analise a necessidade da redefinição da estratégia de segurança do Japão.
Identifique os principais desafios com que o Japão se depara ao nível re-
gional, para consolidar e ver reconhecida a sua liderança e importância
enquanto potência.

Fontes na internet
Constituição Japonesa (versão on-line, língua inglesa), http://www.kantei.
go.jp/foreign/constitution_and_government_of_japan/constitution_e.html
Site oficial do Governo do Japão, http://www.kantei.go.jp/foreign/index-e.html
Site oficial do Ministério dos Negócios Estrangeiros do Japão, http://www.
mofa.go.jp/index.html
Site sobre o Japão, http://www.japan-guide.com/e/e2136.html

Leituras recomendadas
Miyashita, Akitoshi e Sato, Yoichiro (org) (2001) Japanese Foreign Policy in
Asia and the Pacific: Domestic Interests, American Pressure, and Regional
Integration. Basingstoke: Palgrave.
Hughes, C. e Krauss, E. (2007) «Japan’s new Security Agenda», Survival, 49(2),
157-176.
Mulgan, A. G. (2009) «Why Japan can’t lead», World Policy Journal, World
278
Policy Institute.
Rooney, K. (2007) Japan’s Foreign Policy since 1945. London: M.E. Sharpe.
Tanaka, Hitoshi (2006) «Strategic Challenges for Japanese Diplomacy in the
Twenty-First Century», Gaiko Forum. Journal of Japanese Perspectives on
Foreign Affairs, 5(4), 3-38.

Bibliografia

Constituição Japonesa, The Constitution of Japan, Prime Minister of Japan and His Cabinet.
[http://www.kantei.go.jp/foreign/constitution_and_government_of_japan/constitution_e.html].
Curtis, G. (2002) «Politicians and Bureaucrats: What’s Wrong and What’s to Be Done», in Curtis,
G. (org) Policymaking in Japan: Defining the Role of Politicians. Tokyo: Japan Center for
International Exchange, pp. 1-17.
Hughes, C. e Krauss, E. (2007) «Japan’s new Security Agenda», Survival, 49(2), 157-158.
Packard, G. (2010) «The United States – Japan Security Treaty at 50», Foreign Affairs, 89(2), 92-103.
Tanaka, Hitoshi (2006) «Strategic Challenges for Japanese Diplomacy in the Twenty-First Cen-
tury», Gaiko Forum. Journal of Japanese Perspectives on Foreign Affairs, 5(4), 3-38.
Yamauchi, Masayuki (2006) «Japan and the UN», in Hanzawa, A and Yamaguchi, J, (org), Japan
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Wah, Chin Kin (1997) «Japan as a Great Power», in Chee, Chan Heng (org), The New Asia-Pacific
Order. Singapura: Institute of Southeast Asian Studies, 108-130.
Nuno Severiano Teixeira

279

C a p í t u l o 11

Po r t u g a l

País europeu, Portugal é também um país atlântico. Potência pequena,


semi-periférica e com uma só fronteira terrestre, Portugal viveu, sempre,
um equilíbrio instável, entre a pressão continental e a procura de uma
alternativa marítima. Dessas condicionantes geopolíticas e desta contínua
tentativa de equilíbrio, decorrem movimentos de longa duração que foram
definindo permanências nas opções estratégicas e nas características histó-
ricas da política externa portuguesa que podemos definir como estruturas
ou modelos de inserção internacional.
E, historicamente, Portugal conheceu três modelos de inserção in-
ternacional, a que correspondem, também, três momentos históricos
diferentes.

O primeiro modelo

O primeiro modelo é o do Portugal medieval. Até ao século XV as rela-


ções externas de Portugal fazem-se no quadro da Península Ibérica, entre
cinco unidades políticas, todas elas mais ou menos da mesma dimensão e
potencial: os reinos peninsulares – Castela, Leão, Navarra, Aragão e Portugal.
A luta contra o Islão no interior da Península e as limitações científi-
co-tecnológicas inviabilizavam, de resto, quaisquer relações sustentadas
extra-peninsulares.
Durante a Idade Média as relações externas de Portugal desenvolvem-se,
pois, no quadro intra-peninsular e num ambiente internacional de equilíbrio
quase natural.
280

O modelo clássico

O segundo modelo começa a desenhar-se a partir do século XV, estende‑se


ao longo de cinco longos séculos e só termina entre 1974 e 1986 com o
processo de democratização e a integração europeia. É o modelo histórico,
ou tradicional de inserção internacional do País.
O que muda, então, relativamente ao modelo medieval? Praticamente,
tudo, a começar pela condicionante geopolítica. Primeiro, a vitória sobre o
Islão e a unificação de Espanha pelos Reis Católicos convertem a Península
Ibérica em duas unidades de desigual dimensão e potencial – Portugal e
Espanha. Segundo, a evolução científica e tecnológica vem possibilitar o
desenvolvimento sustentado de relações internacionais extra-peninsulares.
O equilíbrio medieval converte-se num desequilíbrio geopolítico, o
que obriga Portugal a procurar uma compensação para esse desequilíbrio.
A costa atlântica e a capacidade de sustentação de relações extra-peninsu-
lares vão possibilitar a construção de um vector de compensação: o vector
marítimo. A partir de então, Portugal passa a viver sob a tentativa constante
de equilíbrio entre a pressão continental de Espanha e a procura de uma
compensação marítima do Atlântico.
Daqui decorrem os invariantes históricos que caracterizam o segundo
modelo de inserção internacional. Primeiro, uma percepção contraditória
entre o continente e o mar, entre a Europa e o Atlântico. Segundo, o afas-
tamento estratégico em relação à Europa (percepcionada como ameaça
espanhola) e a afirmação do vector marítimo e da opção atlântica de Por-
tugal. Terceiro, no quadro da opção atlântica, dois movimentos de longa
duração histórica na orientação externa do Estado: em primeiro lugar, a
aliança privilegiada com a potência marítima (a Aliança Inglesa, os Estados
Unidos da América, a NATO); em segundo lugar, o projecto imperial (nos
seus vários ciclos: a Índia, o Brasil, a África). Quarto, a diversificação das
alianças extra-peninsulares relativamente a Espanha e uma diplomacia,
fundamentalmente, bilateral, assente no triângulo Lisboa, Madrid e Londres
e, depois de 1945, Lisboa, Madrid e Washington.
281
É este modelo que preside às relações internacionais de Portugal durante
cinco séculos e são, ainda, estas linhas de orientação estratégica que dão
forma à política externa portuguesa até ao fim do Estado Novo.
São essas opções de afastamento das questões europeias, de afirmação
de um Portugal atlântico e colonial e do equilíbrio triangular entre Lisboa,
Londres e Madrid que estão presentes na posição portuguesa perante a Guerra
Civil de Espanha e na neutralidade durante a Segunda Guerra Mundial. E
são essas mesmas opções que continuam a presidir à posição portuguesa
na ordem internacional da guerra fria: a integração no sistema de segurança
atlântico e a entrada de Portugal na NATO; a reticência e o pragmatismo
face ao processo de construção europeia; e a recusa da descolonização e
a defesa intransigente do Império.
Opções estas que correspondem com uma clareza meridiana ao segundo
modelo histórico de inserção internacional de Portugal.
Em primeiro lugar, a percepção contraditória, entre a Europa e o Atlân-
tico, que atinge o «paroxismo» no final do Estado Novo, precisamente, no
debate político entre as duas opções estratégicas para o País: os africanistas
e os europeístas.
Em segundo lugar, o afastamento da Europa e o predomínio da opção
atlântica e colonial. Predomínio, no plano político e na esfera económica.
No plano político, com um dispositivo diplomático e estratégico totalmente
assente no vector atlântico: integração na NATO e alianças privilegiadas com
Washington e Londres. Na esfera económica, com um dispositivo geoeconómico,
basicamente, ultramarino e colonial. E que, mesmo, quando o pragmatismo
obrigava o País a uma aproximação às instituições económicas europeias, essa
aproximação continuava a fazer-se num quadro estratégico atlântico e nunca
continental. A entrada de Portugal na EFTA é disso o exemplo mais acabado.
Em terceiro lugar, a diversificação constante das alianças extra-penin-
sulares. No quadro atlântico, Portugal entra na NATO, a Espanha não. No
quadro europeu, Portugal entra na EFTA, a Espanha não. Dito de outro
modo, Portugal estará sempre onde a Espanha não está.
Finalmente, a persistência da diplomacia bilateral, assente no triângulo
Lisboa, Madrid e potência marítima.
A democratização em Portugal trouxe consigo a alteração de todo este
282
quadro da política externa. Mas, trouxe mais do que isso. A transição à
democracia e a consolidação democrática em Portugal e Espanha e a pró-
pria evolução internacional conduziram, em apenas doze anos (1974-1986),
ao desaparecimento deste modelo histórico de inserção internacional de
Portugal, velho de cinco séculos.

A formação do modelo democrático

O fim do regime autoritário e o processo de transição à democracia que


se inicia em 25 de Abril de 1974 vêm determinar uma redefinição da política
externa portuguesa de acordo com o espírito do programa do Movimento
das Forças Armadas (MFA), que se traduzia, sinteticamente, pela fórmula «de-
mocratização; descolonização; desenvolvimento». Apesar de o programa do
MFA assegurar o cumprimento de todos os compromissos internacionais de
Portugal, tornava-se claro que esses dois simples princípios – democratizar e
descolonizar – implicariam uma reinterpretação política desses mesmos compro-
missos e uma alteração de fundo na orientação externa do Estado Português.
A descolonização constitui o primeiro grande desafio da política externa
do regime democrático. Mas, ao mesmo tempo que decorre o processo de
descolonização, Portugal ultrapassa o isolamento internacional do fim do
Estado Novo e estabelece relações diplomáticas com os países do bloco
soviético e do terceiro mundo.
Todavia, a descolonização e a abertura ao mundo não bastavam, por si
só, para definir as novas orientações externas da democracia portuguesa.
Muito pelo contrário. Sob as lutas ruidosas do processo de democratização
interna, trava-se uma outra luta, esta silenciosa, sobre os objectivos e as
opções estratégicas da política externa portuguesa. Entre Abril de 1974 e
Janeiro de 1986, a política externa portuguesa oscilou entre duas orientações
de fundo, que marcaram, igualmente, duas fases distintas: a da transição à
democracia, correspondente ao período pré-constitucional, dominado pelo
processo revolucionário; e a da consolidação democrática, correspondente
ao período constitucional, marcado pela institucionalização e pela estabili-
zação do regime democrático.
283
O período pré-constitucional (1974-1976) caracterizou-se pela luta em
torno das opções externas do País, pelo exercício de diplomacias paralelas
e, consequentemente, pela indefinição da política externa. Apesar das lu-
tas, das hesitações e da indefinição, durante os governos provisórios e em
particular aqueles de maior preponderância militar, a orientação global da
política externa portuguesa tende para uma opção terceiro-mundista e para
o desenvolvimento de relações privilegiadas com os novos países saídos da
descolonização portuguesa. Era o último avatar, agora socializante, da tese
da «vocação africana» de Portugal.
O período constitucional (a partir de 1976), que se inicia, precisamente,
com o primeiro governo constitucional, liderado por Mário Soares e tendo
Medeiros Ferreira como ministro dos negócios estrangeiros, caracterizou-se
pela clarificação da política externa portuguesa e pela definição unívoca e
rigorosa do posicionamento externo do Estado. Portugal que assume, in-
teiramente, a sua condição de país ocidental, simultaneamente, europeu e
atlântico. Serão estes, pois, os dois vectores fundamentais e as verdadeiras
opções estratégicas do Portugal democrático.
O vector atlântico significou para Portugal a permanência das caracte-
rísticas históricas da sua política externa e jogou um papel importante não
só ao nível da orientação externa como também da estabilização interna do
País. O reforço das relações bilaterais com os Estados Unidos e o reempe-
nhamento nos compromissos militares com a Organização do Tratado do
Atlântico Norte (OTAN) constituíram a sua tradução mais visível.
A «opção europeia», porém, é a grande novidade da política externa do
regime democrático. Ultrapassadas as resistências anti-europeias, primeiro da
opção africana do regime autoritário, depois da tentação terceiro-mundista
do período revolucionário, Portugal assume claramente, a partir de 1976, a
«opção europeia». Agora, não mais com uma perspectiva estritamente econó-
mica e pragmática, como o Estado Novo, mas enquanto opção estratégica e
projecto político. Em 1976, Portugal entra no Conselho da Europa. Em 1977
pede, formalmente, a adesão à Comunidade Europeia. E em 1985 assina
o Tratado de Adesão. A partir de 1 de Janeiro de 1986, Portugal torna-se
membro de pleno direito da Comunidade Europeia.
Se à opção europeia e ao vector atlântico acrescentarmos o estabeleci-
284
mento de relações de amizade e cooperação com os novos países africanos
de língua oficial portuguesa (PALOP) e com o Brasil, encontraremos aquelas
que são as linhas de orientação estratégica da política externa da democracia.
A partir da década de noventa, a estes três eixos vem juntar-se um quarto:
a participação portuguesa na produção de segurança internacional, com a
presença dos militares portugueses nas operações de paz da Aliança Atlân-
tica, da União Europeia e das Nações Unidas. As Forças Armadas tornam-se
instrumento da política externa.

O novo modelo democrático

As mudanças introduzidas pelo regime democrático não são, porém, de


curto prazo, nem se limitam às prioridades da política externa. Parecem
de longa duração e tudo indica que estão a conduzir Portugal a um novo
modelo de inserção internacional.
Mas o que caracteriza, então, este novo modelo? Quais as permanências
e quais as mudanças?
Primeiro, as permanências. Decorrem dos factores estruturais e geo-
políticos que não se alteram e respeitam, fundamentalmente, às áreas de
interesse estratégico de Portugal que se mantêm: a Europa, o Atlântico e
as relações pós-coloniais.
Segundo, as mudanças. Decorrem dos factores históricos e alteram as
quatro características do modelo anterior, a que deve juntar-se uma quinta,
inteiramente, nova.
Em primeiro lugar, muda a percepção e a lógica contraditória entre o
continente e o mar. Hoje, a Europa e o Atlântico não só não são termos
contraditórios como são complementares. Para a política externa portuguesa
ser atlântica pode significar valor acrescentado na Europa, tal como ser eu-
ropeu pode ter valor acrescentado no Atlântico e em particular o Atlântico
Sul, onde se desenvolvem as relações pós-coloniais.
Em segundo lugar, no binómio Europa-Atlântico mantém-se a equação
geopolítica mas invertem-se as prioridades estratégicas: tradicionalmente
Portugal pensava-se como um país atlântico e colonial e, quando o peso
285
do vector marítimo era excessivo, procurava compensações continentais.
Hoje, pelo contrário, pensa-se como país europeu e é como membro da
União Europeia que procura valorizar e potenciar a posição atlântica e as
relações pós-coloniais.
Em terceiro lugar e como resultado da democratização em Portugal e
Espanha, os dois estados peninsulares aproximaram as suas posições inter-
nacionais. Significa isto que não só o dispositivo geoeconómico português
se continentalizou com a entrada na Comunidade Europeia mas também
que os dispositivos diplomáticos e estratégicos de Portugal e Espanha se
aproximam, progressivamente, até coincidir. Pela primeira vez na sua história,
Portugal e Espanha partilham, hoje, as mesmas alianças extra-peninsulares:
a UE e a NATO.
Em quarto lugar, como resultado da globalização, da interdependência
das relações internacionais e da valorização dos quadros diplomáticos mul-
tilaterais, ao velho triângulo bilateral Lisboa, Madrid e potência marítima
junta-se, hoje, um novo triângulo multilateral, correspondente à presença
de Portugal nas organizações internacionais das suas áreas de interesse es-
tratégico: a UE na Europa, a NATO no Atlântico e a CPLP para as relações
pós-coloniais.
Finalmente, um elemento novo, quinta característica do modelo demo-
crático de inserção internacional: uma política externa de valores. Teve a
sua origem, ainda no Estado Novo, no debate entre africanistas e europe-
ístas. Para os primeiros, a manutenção do Império implicava a continuação
da guerra e a guerra implicava a continuação do regime autoritário. Para
os segundos, a integração europeia implicava a descolonização e a des-
colonização implicava a democratização. Os valores da democracia e do
estado de direito estão, pois na matriz genética da política externa do re-
gime democrático. E nas suas opções estratégicas, a Democracia acabará
por concretizá-los. Na União Europeia como na Aliança Atlântica, todos os
parceiros e aliados de Portugal são democracias. E a presença das forças
armadas portuguesas nas missões de paz, sob a égide das Nações Unidas,
confirma essa diplomacia de valores que teve na independência de Timor
um dos seus maiores sucessos. A política externa parte da formulação dos
interesses. Mas no modelo democrático não só não ignora como assume o
286
seu quadro de valores. Que são os da democracia e do estado de direito.
Será, pois, no quadro deste modelo de inserção internacional que Por-
tugal terá que pensar os seus desafios de futuro.

Questões para análise


Em que consiste um modelo de inserção internacional.
Quais os modelos históricos de inserção internacional de Portugal.
O que diferencia o modelo clássico, do modelo democrático de inserção
internacional de Portugal?

Fontes na internet
Instituto de Defesa Nacional, http://www.idn.gov.pt/index.php
Instituto de Estudos Estratégicos e Internacionais, http://www.ieei.pt/
Instituto Português de Relações Internacionais, http://www.ipri.pt/home/
home.php
Ministério da Defesa, http://www.mdn.gov.pt/mdn/pt/
Ministério dos Negócios Estrangeiros, http://www.mne.gov.pt/mne/pt/

Leituras recomendadas
AAVV (2005) Visões da Política Externa Portuguesa. Lisboa: Instituto Diplomático.
Brito, Nuno Filipe (2005) «Política Externa Portuguesa. O Futuro do Passado»,
Relações Internacionais, 5, 147-161.
Ferreira, José Medeiros (2006) Cinco Regimes na Política Externa. Lisboa:
Editorial Presença.
Macedo Jorge Borges de (2008) História Diplomática de Portugal. Constantes
e Linhas de Força. Estudo de Geopolítica. Lisboa: Tribuna da História,
edição/reimpressão.
Teixeira, Nuno Severiano (2004) «Entre África e a Europa. A política
Externa Portuguesa 1890-2000», in António Costa Pinto (org), Portugal
Contemporâneo. Lisboa: Dom Quixote, 87-116.
Paula Duarte Lopes
e Daniela Nascimento

287

C a p í t u l o 12

República Feder al da Nigéria

Desde a independência da Nigéria (1960) que o seu potencial para liderar


o continente africano tem sido reconhecido e discutido internacionalmente.
Os sucessivos governantes do país sempre incorporaram nas suas políticas
externas a ideia da Nigéria como a ‘líder natural’ do continente africano.
Este potencial tem-lhe valido inclusivamente a designação de ‘Gigante de
África’. O objectivo de liderança regional e continental tem marcado a es-
tratégia de formulação da política externa nigeriana nas suas cinco décadas
de existência, ainda que nem sempre de forma coerente ou eficaz.
A política externa de qualquer país é condicionada pelo seu processo de
tomada de decisão, pela natureza do sistema político, pela personalidade
dos seus governantes, pelos recursos disponíveis e pela natureza do siste-
ma internacional. 1 No caso da Nigéria, a evolução da sua política externa
tem sido particularmente marcada pela personalidade dos seus sucessivos
líderes, inclusivamente como uma extensão das suas ambições pessoais.
Em teoria, os factores que condicionam a formulação da política externa
de um país podem ser analisados segundo uma lógica de ‘círculos concên-
tricos’: interno, regional e internacional, sendo que estes se interligam e
influenciam mutuamente. Esta grelha é particularmente útil para discutir a
evolução da política externa nigeriana (Adebajo e Mustapha, 2008) desde a

1 Ver capítulo teórico neste Manual, secção ‘Compreender a política externa’.


sua independência. No círculo interno, destaca-se a estabilidade económica
e política como factores de sustentação de uma política externa vigorosa
e empenhada. Ao nível regional, distinguem-se as relações no âmbito de
288
uma vizinhança mais próxima (Chade, Camarões, Níger e Benim) e de
uma vizinhança alargada (Angola ou África do Sul), tendo esta um impac-
to directo na projecção internacional do continente africano. Salienta-se
ainda o papel das organizações regionais na afirmação da política exter-
na nigeriana. O círculo internacional inclui as dinâmicas de participação
em organizações internacionais, nomeadamente de natureza multilateral,
bem como as relações com outros países, nomeadamente com potências
internacionais e regionais. É importante referir que a intensidade da in-
fluência de cada um destes círculos na formulação da política externa se
foi alterando ao longo dos anos e de acordo com as linhas de actuação
externa de cada regime.
A ideia de que a Nigéria está destinada a ser o líder da África negra
baseia-se no facto de este ser o país mais populoso do continente africa-
no, com cerca de 150 milhões de habitantes, a terceira maior economia
africana, o maior produtor de petróleo de África e um dos dez maiores
exportadores de petróleo do mundo. 2 Acresce ainda, que em 1960, a
Nigéria encontrava-se numa posição privilegiada para assumir esta lide-
rança: país independente, rico e com uma posição claramente definida a
favor dos movimentos de libertação nacional. Esta luta contra o domínio
colonial em África, bem como conta o apartheid na África do Sul, domina
a política externa nigeriana até à década de 1980 (círculo regional). A
exploração da sua riqueza petrolífera permitiu, principalmente na década
de 1970, uma política externa assertiva, nomeadamente no plano regio-
nal (círculos interno e regional). Este percurso de afirmação da liderança
regional perdeu fôlego na primeira metade da década de 1980, devido à
alteração do regime interno, à queda do preço do petróleo e às pressões
da dívida externa. No final da década de 1980, assiste-se a uma reafir-

2 Informações facultadas pelo Banco Mundial [siteresources.worldbank.org/DATASTATISTICS/


Resources/GDP_PPP.pdf] e pela US Energy Information Administration [tonto.eia.doe.gov/country/
index.cfm].
mação da imagem externa nigeriana no continente africano, permitindo
projectar-se internacionalmente. Esta projecção internacional, por sua vez,
consolidou a sua posição regional. Este período caracterizou-se assim por
289
uma interdependência entre a liderança regional e o papel internacional
da Nigéria (círculos regional e internacional).
A política externa nigeriana da década de 1990 ficou marcada pelo regime
militar violento de Abacha (1993-1998), influenciando de forma devastadora
a imagem externa da Nigéria (círculo interno). Com a transição democrática,
a Nigéria ganha uma nova oportunidade para retomar o seu ‘destino’ de
líder africano negro. No entanto, as mudanças profundas nas conjunturas
regional e internacional limitaram de forma estrutural a capacidade da Nigéria
concretizar o seu papel de liderança. Além disso, internamente, a qualidade
da democracia tem-se revelado frágil e marcada pela corrupção e clientelis-
mo generalizados (círculo interno). A Nigéria não abandona o seu sentido
de responsabilidade regional, mas passa a privilegiar canais multilaterais
para cumprir esse objectivo, nomeadamente através de missões de paz das
Nações Unidas (círculo internacional). Regionalmente, a política externa
nigeriana tem-se pautado por iniciativas de soft power, incluindo mediação
de conflitos e promoção da integração económica regional (círculo regional).

Dimensão interna

Internamente, a Nigéria desde cedo se deparou com os inúmeros desafios


colocados pela imensa e indiscutível diversidade étnica: cerca de 250 grupos
étnicos com predominância de Hausa e Fulani (29%), Yoruba (21%) e Igbo
(18%); e religiosa: população maioritariamente muçulmana (50%) e cristã
(40%). 3 Esta diversidade interna foi-se interligando com outros elementos,
nomeadamente com os recursos naturais, sobretudo o petróleo, reflectindo‑se
em problemas de distribuição dos recursos e dos rendimentos geradores
de tensões constantes entre o sul produtor e o norte mais populoso. Todas

3 Informação disponível na página da Freedom House, no relatório sobre Freedom of the Press,
Nigeria (2006) [www.freedomhouse.org/template.cfm?page=251&country=7030&year=2006].
estas questões acabaram por se reflectir naquela que foi sendo a evolução,
nem sempre linear, da política externa nigeriana.
A este nível interno, e ainda que com estratégias e capacidades variá-
290
veis e distintas, a Nigéria pautou sempre a sua política externa pela ideia
de que um país económica e politicamente estável e com uma qualidade
de vida satisfatória está melhor posicionado para desenvolver uma política
externa assertiva. Os princípios orientadores da política externa nigeriana,
finalmente plasmados na Constituição de 1979, passavam, em grande medi-
da, pela «defesa da integridade territorial e da independência do país», pela
promoção do desenvolvimento económico nacional autónomo e sustentável,
pela «promoção da igualdade e auto-subsistência em África, respeitando a
dignidade humana, especialmente para a população negra, bem como [pel]
a promoção e defesa da paz mundial» (Ajibewa, 1998: 86).
Imediatamente após a independência (1960), a política externa nigeriana
durante a primeira república liderada por Balewa (1960-1966) foi caracte-
rizada como «conservadora e tímida» (Abegunrin, 2001: 105) e «sem visão»
(Garuba, 2008: 2). Na verdade, o legado colonial, a relativa pobreza do
país, a personalidade conservadora de Balewa e a falta de experiência no
plano internacional ajudam a explicar esta falta de autonomia e iniciativa
em assuntos internacionais. Por exemplo, alguns autores referem que no que
diz respeito a questões centrais para África, Balewa parecia estar sempre à
espera da tomada de posição de outros países antes de afirmar a posição
nigeriana (Garuba, 2008: 2).
Acresce ainda que a estrutura federal colonial do país criou a possibilidade,
neste período, de cada estado-federado abrir a sua própria representação
diplomática no estrangeiro, o que ilustra o carácter limitado da política ex-
terna nigeriana (Abegunrin, 2001: 105-106). Ainda assim, Balewa criou uma
estrutura de tomada de decisão em matéria de política externa com vários
ministérios e gabinetes ao nível federal. No entanto, a sua postura centrali-
zadora, aliada a uma incapacidade de coordenação das distintas instituições,
determinou não só a centralidade do cargo de chefe de estado, que neste
caso, chegou a acumular a pasta de Ministro dos Negócios Estrangeiros
(Inamete, 2001: 33), mas também a incapacidade das instituições criadas
exercerem as suas funções de forma autónoma e activa.
Apesar de a Nigéria ter sido governada predominantemente por regimes
militares entre 1966 e 1999, é importante distinguir a fase pré e pós 1979,
por dois motivos. O primeiro prende-se com a proclamação da segunda
291
república constitucional entre 1979 e 1983 que criou as condições para
uma maior abertura política, que só foi posta em causa com o regime de
Abacha (1993-1998). O segundo está relacionado com a riqueza resul-
tante de recursos petrolíferos que permitiu à Nigéria concretizar os seus
objectivos de política externa de forma assertiva e autónoma até 1979.
A partir desta data, esta capacidade de concretização da política externa
nigeriana diminuiu significativamente, devido à crise petrolífera, à crise
da dívida e à corrupção interna e desvio de fundos. Convém ainda referir,
que dentro destas duas fases existem também diferenças marcantes entre
os vários regimes.
Em 1966, dão-se os primeiros de vários golpes militares que marcam
estruturalmente a vida política da Nigéria, influenciando directamente a sua
política externa. O regime militar de Gowon (1966-1975), assim como a sua
política externa, são profundamente marcados pela guerra civil no Biafra
(região secessionista). Internamente, o regime teve dificuldade em reagir de
forma rápida e eficaz aos sinais que despoletaram a violência e as estruturas
do Ministério dos Negócios Estrangeiros mostraram-se desadequadas para
lidar com a magnitude da crise. Gowon viu-se mesmo obrigado a enviar
equipas especiais para explicar internacionalmente a posição do governo
federal nesta matéria (Garuba, 2008). A guerra civil ditou uma viragem na
definição da política externa nigeriana, passando-se de uma abordagem
conservadora e tímida para uma abordagem assertiva, defendendo a sua
integridade territorial. A Nigéria ganhou assim uma imagem pública de uma
nação africana activa e rica em petróleo.
Um novo golpe militar em 1975 coloca no poder Mohammed/Obasanjo
(1975-1979). Contrariamente aos anteriores, este período é caracterizado
por uma política externa robusta, assertiva, dinâmica e, muitas vezes, de-
nominada de radical. Os ‘anos de ouro’ da política externa nigeriana foram
maioritariamente financiados pelos rendimentos provenientes do petróleo,
permitindo uma abordagem autónoma e pró-activa. A formulação e imple-
mentação desta nova abordagem foram ainda potenciadas pela reforma das
estruturas internas de tomada de decisão de política externa que passaram
a incluir actores da sociedade civil 4 (Abegunrin, 2001: 110).
Simultaneamente, quer Mohammed, quer Obasanjo mostraram-se empe-
292
nhados em utilizar os militares na persecução dos objectivos nigerianos de
política externa (Inamete, 2001: 88). Esta posição é particularmente visível
na decisão de enviar delegações militares a Angola, reconhecendo o go-
verno do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), sem o aval
desse Ministério (Inamete, 2001: 88). A nacionalização da British Petrol e do
Barcklays Bank, transformando-os em African Petrol e em Union Bank of
Nigeria (Garuba, 2008: 7), respectivamente, ilustram igualmente a determina-
ção nigeriana em se afirmar como uma potência autónoma e independente.
A segunda república nigeriana debateu-se com a diminuição da riqueza
disponível para continuar a financiar a linha de política externa interventiva
e autónoma dos regimes anteriores. Apesar da aprovação de uma constitui-
ção e da possibilidade de realização de eleições, com o fim dos dividendos
das crises petrolíferas, o governo Shagari (1979-1983) viu-se obrigado a
adoptar uma postura mais moderada e pró-ocidental. A situação económi-
ca degradada e a crescente dívida externa do país justificaram o golpe de
estado que coloca Buhari (1983-1985) no poder. A sua política externa foi
caracterizada como agressiva e nacionalista, mas menos ambiciosa e com
menos apoio interno que a do regime anterior. Identificando a corrupção
generalizada no país como um problema estrutural, Buhari decretou ‘Guerra
Contra a Indisciplina’ e a corrupção, apesar de estes esforços não terem
sido suficientes para resolver os problemas internos (Abegunrin, 2003: 131).
Os métodos aplicados por este regime, bem como o aprofundar da crise
económica, criaram um descontentamento crescente no seio da população,
o que propiciou as condições para um novo golpe de estado em 1985, que
coloca Babangida (1985-1993) no poder.
A política externa de Babangida reflectiu a confusão e turbulência po-
lítica interna, tendo o Ministro dos Negócios Estrangeiros sido substituído
cinco vezes ao longo deste regime (Abegunrin, 2001: 120). No sentido de

4 Nomeadamente através da criação do Instituto Nigeriano de Relações Internacionais e do Ins-


tituto Nacional para Política e Estudos Estratégicos (Abegunrin, 2001: 110).
dar consistência aos compromissos assumidos internacionalmente, Baban-
gida criou o Corpo de Assistência Técnica no âmbito do Ministério dos
Negócios Estrangeiros para dar apoio aos países africanos, das Caraíbas
293
e do Pacífico. O descontentamento interno identificado durante o regime
Buhari manteve-se, acrescido pela percepção de que os recursos utiliza-
dos para concretizar a política externa nigeriana – missões de paz, apoios
financeiros a países vizinhos, fundos de desenvolvimento regional, entre
outros – estavam a ser desperdiçados e/ou indevidamente apropriados.
Babangida tentou responder a estas críticas, lançando um debate nacional
sobre a posição nigeriana relativamente à dívida externa e à relação com o
Fundo Monetário Internacional e realizando uma conferência pública sobre
política externa, numa tentativa de demonstrar abertura e transparência
nesta matéria (Garuba, 2008: 9). A crise económica, no entanto, dificultou
estruturalmente a capacidade da Nigéria assumir as suas responsabilidades
internas e externas (Garuba, 2008: 9).
O ano de 1993, apesar de marcado por vários acontecimentos impor-
tantes – anulação das eleições para a terceira república, nomeação de um
novo chefe de estado (Shonekan) e novo golpe de estado – não permitiu
qualquer revisão da política externa nigeriana. O regime subsequente, lide-
rado por Abacha (1993-1998), tomou o poder disposto a controlar a situação
económica e o descontentamento interno por qualquer meio ao seu dispor.
Assim, este revela-se o regime mais agressivo e opressivo da história da
Nigéria, contendo grupos da oposição interna com ‘mão de ferro’, como
ilustra a condenação a prisão perpétua em 1994 de Obasanjo e Yar’Adua
(Abegunrin, 2001: 126-127) e a execução em 1995 de nove activistas Ogoni.
Neste seguimento, a Nigéria foi suspensa da Commonwealth of Nations e
condenada pela Assembleia Geral das Nações Unidas por alegadas violações
de direitos humanos. Na verdade, durante o regime de Abacha, a sua polí-
tica externa foi essencialmente condicionada pelas reacções internacionais
à situação interna.
Em 1998, Abacha morre e Abubakar (1998-1999) sobe ao poder, abrindo
um novo capítulo na história política do país. De facto, a morte de Aba-
cha foi vista como uma oportunidade para «intensificar as pressões para
o regime libertar todos os prisioneiros políticos, desmilitarizar a política
nigeriana, e transferir o poder para um governo civil eleito» (Abegunrin,
2003: 163), procurando contrariar a imagem negativa deixada pelo regime
anterior. Num gesto claro de concretização do plano estabelecido, Abubakar
294
liberta os prisioneiros políticos, incluindo Obasanjo, o que «constituiu um
passo importante para o recuperar da credibilidade internacional da Nigéria
depois de anos de isolacionismo diplomático» (Abegunrin, 2003: 163). Em
1999, Abubakar passa o poder para um governo civil eleito liderado por
Obasanjo (1999-2003 e 2003-2007), acabando com 15 anos de regime militar.
«Com esta acção, Abubakar salvou os militares nigerianos de si próprios e
restaurou o direito democrático do povo nigeriano de escolher o seu próprio
governo» (Abegunrin, 2003: 164).
A eleição de Obasanjo em 1999 inaugura a quarta república nigeriana que
se caracterizou por um compromisso com a consolidação da democracia,
respeito pelos direitos humanos, reformas económicas liberais, bem como
boa governação e transparência. Este compromisso espelha a ambição da
Nigéria em se consolidar internamente e em se integrar de forma estável
no sistema internacional. Após dois mandatos, Obasanjo é substituído por
Yar’Adua (2007-2010), cujo objectivo principal era transformar a Nigéria
numa das vinte maiores economias do mundo até 2020 (Garuba, 2008: 17).
Uma das características essenciais da sua política externa foi o fomento da
participação interna na sua formulação e definição – ‘diplomacia de cida-
dania’ – procurando contrariar a imagem de um país corrupto.
Do ponto de vista da estabilidade e qualidade democráticas da Nigéria,
apesar da última década ter sido caracterizada por transições de poder ci-
vis e com recurso a eleições, estas têm sido consideradas como «um circo»
(Obasanjo em 1999), como irregulares e manipuladas (Obsanjo em 2003),
e como uma «fraude» e fantochada (Yar’Adua em 2007) (Taylor, 2007). De
referir ainda que a morte de Yar’Adua levou a uma transição pacífica do
poder para o Vice-Presidente, Goodluck Jonathan (2010-). A política externa
do novo governo enfrenta como principais desafios de política interna: a
corrupção e a gestão dos conflitos internos violentos, nomeadamente nas
zonas de exploração petrolífera. As relações clientelares, patrimonialistas e
corruptas sustentam a economia política nigeriana, envolvendo os actores de
investimento directo estrangeiro nesta dinâmica e criando uma elite cada vez
mais rica e poderosa ao nível das decisões estratégicas do país. A criação de
‘economias enclave’ em torno do petróleo agrava os desequilíbrios internos,
alimentando dinâmicas de greed and grievance. Estas dinâmicas têm gerado
295
focos de violência e instabilidade que minam não só a relação da Nigéria
com os seus parceiros na exploração petrolífera (como por exemplo no
Delta do Níger), como a sua própria estabilidade interna, enfraquecendo a
sua capacidade de projecção internacional.

Dimensão regional

A ideia de liderança do continente africano que sempre esteve na base


da definição do papel da Nigéria no sistema internacional é mais saliente a
nível regional. Não só a população nigeriana acredita «que o seu país é uma
superpotência (…) [e] que com uma melhor liderança, a Nigéria rapidamente
se tornará o farol para África»,5 como internacionalmente a Nigéria foi sendo
reconhecida como o «equivalente para África do Brasil, Índia, ou Indonésia»
(Maier, 2000). Neste sentido, a Nigéria desenvolveu esforços em diferentes
planos, ao longo do tempo, e com resultados distintos. A sua política externa
regional tem sido pautada pela promoção do desenvolvimento e estabilidade
regionais, com o intuito de consolidar uma arquitectura de paz africana, a
qual tem sido denominada de Pax Nigeriana (Adebajo and Mustapha, 2008;
Nuamah, 2003; Pham, 2007: 14). Esta abordagem tem incluído projectos
de integração e afirmação económica, como a Economic Community of
West African States (ECOWAS) ou a New Economic Partnership for Africa’s
Development (NEPAD); apoio político e financeiro aos movimentos de des-
colonização em África e contra o apartheid, por exemplo denominando‑se
membro honorário dos ‘Estados da Linha da Frente’;6 e através do apoio

5 Informação constante do Suplemento Especial do The Economist, «Here's Hoping: A Survey of


Nigeria» de 15 de Janeiro de 2000.
6 Os ‘Estados da Linha Frente’ são um grupo regional de estados do sul de África que se orga-
nizaram contra o regime do apartheid e a favor da democracia. O grupo foi criado em 1970, con-
tando com Angola, Botswana, Lesotho, Moçambique, Suazilândia, Tânzania, Zâmbia, e desde 1980,
Zimbabué.
e promoção de estruturas no seio de organizações africanas e missões de
paz, como na Libéria e Serra Leoa.
O papel de líder regional tão ambicionado pela Nigéria, durante o gover-
296
no Balewa (1960-1966), ficou limitado pela ausência de iniciativa própria e
pelo conservadorismo que caracterizava a política externa nigeriana nestes
primeiros anos de independência. Ainda assim, Balewa considerou essencial
que a Nigéria adoptasse e respeitasse os princípios de direito internacio-
nal – não-interferência, integridade territorial e boa vizinhança – como se
esperava de um jovem país independente. E, para este efeito, contribuiu
para a criação da Organização de Unidade Africana (OUA) e desenvolveu
«estruturas institucionais para a exploração de recursos naturais transnacio-
nais para desenvolvimento económico» 7 (Nuamah, 2003: 11).
Durante a primeira fase dos regimes militares (1966-1979), a dimensão
regional da política externa nigeriana sofreu «transformações dramáticas»
(Abegunrin, 2001: 109), não tanto por passar a haver uma coerência ou
estratégia deliberada, mas antes por existirem meios disponíveis, devido à
exploração petrolífera, para ir apoiando determinadas posições. Os dividen-
dos petrolíferos permitiram uma política mais assertiva no que diz respeito
à luta contra o apartheid na África do Sul e à concessão de assistência
bilateral a movimentos de libertação nacional (na Rodésia e em Angola)
– ‘diplomacia spray’. Esta estratégia material foi sendo acompanhada por
uma posição política firme. Por exemplo, durante o curto governo de Ironsi
(1966), o espaço aéreo nigeriano foi fechado aos vôos de e para a África
do Sul, como forma de fazer pressão sobre o regime de apartheid, e a Em-
baixada Portuguesa em Lagos foi encerrada, como forma de protesto contra
o domínio colonial português em África. Através destas medidas, a Nigéria
assumiu o seu papel como «líder negro e africano» (Abegunrin, 2001: 109).
A política externa do regime de Gowon (1966-1975) foi marcada pela guerra
civil, opondo-o aos secessionistas no Biafra. A guerra civil levou o governo
nigeriano a adoptar uma postura mais activa e envolvida com os seus vizinhos
(Nuamah, 2003), nomeadamente no que diz respeito ao apoio concedido aos

7 Como é ilustrado pela criação da Comissão da Bacia do Rio Níger (1973) e as subsequentes
comissões bilaterais Nigéria-Benin e Nigéria-Níger (Nuamah, 2003: 11).
secessionistas por alguns destes. Este maior envolvimento regional ganhou
fôlego com os meios disponíveis devido ao boom petrolífero, permitindo uma
política regional e africana vigorosa. Esta estratégia culminou com a criação
297
da ECOWAS em 1975, promovendo a integração e cooperação regionais.
O regime de Mohammed/Obasanjo (1975-1979) foi o que mais utilizou os
meios económicos, resultantes da riqueza petrolífera para a concretização de
políticas radicais e assertivas em matéria de política externa. Nesse sentido,
apostou no apoio financeiro, material e técnico bilateral a vários países afri-
canos: assistência a países recém-independentes (Moçambique, Cabo Verde
e Zimbabwe); apoio humanitário a países assolados por catástrofes naturais
(seca na Etiópia); assistência técnica a diferentes países (Argélia e Gâmbia);
concessão de bolsas a estudantes africanos; e venda de petróleo a preços
reduzidos a alguns países africanos mais necessitados (e não a outros). Estes
apoios não eram inéditos, mas adquiriram uma dimensão pujante durante
este regime. A assistência financeira passou a fazer parte integral da política
externa nigeriana, sendo inclusivamente institucionalizada com a criação do
Fundo Nigeriano no âmbito do Banco Africano para o Desenvolvimento.
Esta lógica de apoio económico bilateral e regional baseia-se na convicção
que a estabilidade e desenvolvimento económico dos países africanos con-
tribuem para a estabilidade e desenvolvimento da Nigéria; e, desta forma,
uma Nigéria estável e rica deve apoiar os países vizinhos nesse sentido.
Assim, a Nigéria empenhou-se em «criar, promover e acelerar a integração
económica entre os países africanos da África Ocidental, nomeadamente
através da ECOWAS» (Inamete, 2001: 89-90).
Estes esforços económicos foram acompanhados por uma estratégia polí-
tica de envolvimento e liderança no continente africano. O reconhecimento
do governo angolano do MPLA constituiu um elemento fundamental de
mudança na imagem da Nigéria, enquanto líder regional e continental. Com
esta decisão, não só tomou uma posição contrária à dos Estados Unidos
da América (EUA); como se empenhou na mobilização de países africanos
para que estes também reconhecessem o novo governo angolano. Desta
forma, a Nigéria passou a ser reconhecida como um «membro de facto dos
‘Estados da Linha da Frente’, insistindo no direito de ser consultada como
tal» (Abegunrin, 2001: 114, itálico no original).
Estes esforços continuaram durante o regime militar de Mohammed/
Obasanjo (1975-1979), mantendo, de forma robusta, o lugar central que
o continente africano tinha na política externa nigeriana. No entanto, o
298
governo seguinte liderado por Shagari (1979-1983) protagonizou um revés
na estratégia de afirmação da Nigéria em África. Três acontecimentos em
particular marcaram esta mudança drástica: os confrontos com os Camarões,
a situação no Chade e a política interna de imigração. A Nigéria não conse-
guiu conter os conflitos violentos na fronteira com os Camarões (Península
de Bakassi), acabando por ter de pedir ajuda à então OUA para intervir
(Ajibewa, 1998). No caso do Chade, considerado o «pior reverso diplomático
da Nigéria» (Ajibewa, 1998), Shagari «foi acusado de servir como uma nação
mercenária ‘para proteger os interesses dos EUA’» (Ajibewa, 1998: 89). O
envio de forças armadas nigerianas para participar na missão da OUA no
Chade foi interpretado por vários como um apoio à «intervenção imperia-
lista americana» (Ajibewa, 1998: 89). Finalmente, em 1983, Shagari expulsou
milhões de trabalhadores migrantes do Gana, Chade e Benim, contrariando
os princípios da ECOWAS e fechando as fronteiras com o Benim e o Níger.
Todas estas decisões contribuíram para um denegrir da imagem de lideran-
ça da Nigéria em África, transmitindo uma imagem pouco assertiva, sem
iniciativa própria e sem capacidade de afirmação.
Entre 1984 e 1998, a Nigéria entra na segunda fase dos regimes militares.
Os regimes de Buhari (1984-1985) e Babangida (1985-1993) desenvolveram
esforços no sentido de recuperar a imagem de liderança da Nigéria e de
reafirmar a centralidade africana na sua política externa. Apesar do seu
curto mandato, Buhari (1984-1985) realizou um périplo pelos ‘Estados da
Linha da Frente’ – ‘diplomacia vai-e-vem’ –, reafirmando o compromisso
da Nigéria com os movimentos de libertação; reconheceu a Frente Polisa-
rio como governo legítimo do Sahara Ocidental; e fez uma demonstração
de força ao colocar as forças armadas nas fronteiras com o Chade e os
Camarões.
O regime de Babangida (1985-1993) tomou o poder empenhado em
desenvolver uma política externa dinâmica e coerente, ancorada no pa-
pel central das organizações regionais (OUA e ECOWAS) e no princípio
de boa vizinhança. Um dos reflexos desta vontade política foi a Doutrina
Akinyemi 8 onde se afirmava que «para obter o apoio político, diplomático
ou outro da Nigéria, a Nigéria [devia] ser primeiro consultada por outros
estados africanos antes dos mesmos tomarem alguma acção significativa de
299
política externa» (Ihonvbere, 1994: 50). Ao nível das organizações regionais,
Babangida encetou esforços para reactivar a ECOWAS, garantindo o seu fi-
nanciamento e secretariado, organizando três cimeiras de chefes de estado
e de governo e presidindo à organização quando nenhum outro membro se
mostrou interessado. Estas medidas mostram claramente como o objectivo
de estabilização da região através da ECOWAS se manteve central para a
afirmação política e económica da Nigéria a nível regional.
Em 1993, no âmbito da ECOWAS, a criação do Economic Community of
West African States Monitoring Group (ECOMOG) para a Libéria (1990-1998),
constituiu uma das iniciativas mais assertivas da política externa nigeriana
no pós-Guerra Fria. O envolvimento militar da Nigéria no ECOMOG resultou
em parte da existência de relações privilegiadas entre os chefes de estado
dos dois países e da preocupação em zelar pela estabilidade regional em
resposta a um alegado plano de desestabilização líbio (Abegunrin, 2001: 121).
A OUA manteve-se igualmente o fórum privilegiado de actuação regional
da Nigéria, tendo Babangida presidido à organização em 1991, mediando
vários conflitos armados, nomeadamente no Uganda e em Angola, e criando
um Departamento de Prevenção, Gestão e Resolução de Conflitos. Durante
este período, a Nigéria manteve também o seu estatuto de membro hono-
rário dos ‘Estados da Linha da Frente’, continuando a apoiar os movimentos
de libertação na África do Sul e na Namíbia (Abegunrin, 2001; Ihonvbere,
1994). Um outro acontecimento que marcou a política externa nigeriana de
Babangida foi a visita do seu homólogo sul-africano, De Klerk, em 1992.
Esta visita tem sido entendida, por alguns, como uma contradição da polí-
tica nigeriana de luta contra o apartheid (Garuba, 2008: 10); enquanto para
outros, a visita constituiu um reconhecimento do prestígio da Nigéria, ao
ser incluída no périplo de De Klerk (Abegunrin, 2001: 122).

8 Akinyemi foi um dos Ministros dos Negócios Estrangeiros do regime do Babangida.


O regime violento de Abacha (1993-1998) procurou manter o seu envol-
vimento na procura da estabilidade regional e na defesa da sua integridade
territorial. No primeiro caso, mantendo a sua participação no ECOMOG
300
na Libéria e iniciando uma nova missão na Serra Leoa (1997-2000). No
segundo caso, a Nigéria envolveu-se em confrontos fronteiriços, opondo
o seu exército ao dos Camarões, devido ainda à disputa sobre a Península
de Bakassi, mostrando a sua determinação em fazer valer a sua posição de
forma assertiva (Abegunrin, 2001: 126). No entanto, a violência e agressi-
vidade do regime em conter as actividades da oposição interna afectaram
de forma determinante as relações da Nigéria com os países africanos. Em
particular com a África do Sul, a qual manteve «uma política de porta aberta
relativamente aos opositores do regime de Abacha, especialmente aos grupos
pró-democráticos» (Abegunrin, 2001: 126-127). As relações entre os dois países
atingiram o seu nível mais baixo, após a morte dos nove activistas Ogoni
em 1995, o que «Mandela considerou um golpe pessoal, pois tinha recebido
garantias que estes activistas não seriam mortos» (Abegunrin, 2001: 127).
Com o governo de Abubakar (1998-1999), o processo de recuperação
da imagem externa da Nigéria, após o isolamento diplomático a que ti-
nha sido remetida durante o regime de Abacha, ganha novo ímpeto. No
entanto, contrariando a lógica até agora subjacente ao seu papel regional,
Abubakar recusou participar no ECOMOG para a Guiné-Bissau e iniciou
a retirada das forças armadas nigerianas destacadas na Serra Leoa (Pham,
2007: 13). O falhanço da missão da ECOWAS na Guiné-Bissau levou a que
vários analistas considerassem a Nigéria como um elemento indispensável
para qualquer esforço de paz na região (Nuamah, 2003).
Com a eleição dos dois governos consecutivos de Obasanjo (1999-2007),
assistiu-se a um reforço da diminuição do envolvimento militar nigeriano
nos esforços regionais de paz,9 com a continuação da retirada do ECOMOG
da Serra Leoa. O regime de Obasanjo passou a privilegiar regionalmente
o soft power através da mediação de conflitos armados, por exemplo no
Sudão, no Togo ou no Senegal, e da criação de mecanismos institucionais

9 O envolvimento internacional nos esforços de paz regional será abordado na secção seguinte.
para responder a situações de crise, como o Mecanismo para Prevenção,
Gestão, Resolução de Conflitos, Peacekeeping e Segurança, criado em 1999
no âmbito da ECOWAS. No que diz respeito aos seus vizinhos, a disputa
301
com os Camarões sobre a Península de Bakassi fica marcada pela decisão
do Tribunal Internacional de Justiça (2002) favorável aos Camarões. Do
ponto de vista do objectivo de integração económica, durante os mandatos
de Obasanjo, destaca-se ainda o Projecto do Gasoduto da África Ocidental
que integra o Benim, o Gana e o Togo. 10
Na sua dimensão regional é clara a centralidade da ECOWAS para a política
externa nigeriana. A Nigéria esteve envolvida na sua criação, manutenção,
funcionamento, alargamento de funções, quer com recursos financeiros,
quer humanos. No entanto, a estabilidade com base no desenvolvimento
económico ambicionada pela Nigéria para si e para os seus vizinhos não
tem sido alcançada. Por exemplo, os esforços da Nigéria em prol da inte-
gração regional têm sido, paradoxalmente, postos em causa pelo seu papel
dominante no aumento do comércio informal transfronteiriço (Nuamah,
2003: 12). A ECOWAS, no entanto, tem funcionado como um fórum políti-
co importante onde é valorizado o consenso regional (Pham, 2007: 11-12),
no âmbito da qual a Nigéria tem tido um papel fundamental. Do ponto de
vista dos esforços regionais de paz no âmbito da ECOWAS, alguns analistas
avançam um papel de ‘polícia regional’ para caracterizar o envolvimento
da Nigéria. No entanto, o facto de em anos recentes a Nigéria ter retirado
forças armadas do ECOMOG da Serra Leoa e ter recusado participar no da
Guiné-Bissau contraria esta ideia. A Nigéria, na verdade, parece ter optado
por activar regionalmente o seu soft power em detrimento de uma política
assertiva mais militarizada, a qual passa a ser assegurada na região através
de canais multilaterais. Independentemente dos meios utilizados, a sua
presença é reconhecida como indispensável para o sucesso de quaisquer
iniciativas de paz regional (Adebajo, 2002).
Nos últimos anos, o potencial de liderança regional da Nigéria tem di-
minuído face à afirmação de uma África do Sul multi-racial, democrática e

10 O projecto tem sofrido atrasados devido à crise no Delta do Níger.


com uma economia emergente, a qual surge em melhor posição para re-
clamar a liderança africana do que uma Nigéria caracterizada por conflitos
violentos internos e minada pela corrupção. Ainda assim, as relações com
302
a África do Sul melhoraram substancialmente durante o regime de Obasan-
jo, falando-se mesmo de «uma aliança estratégica em evolução» (Nuamah,
2003: 13), a qual se reflectiu, nomeadamente, nos esforços de consolidação
da União Africana (UA) e de criação do NEPAD, como resposta à crise de
desenvolvimento do continente africano. Esta colaboração manifestou-se
também na posição conjunta contra a criação de um comando militar dos
EUA em África (AFRICOM). De referir que Yar’Adua (2007-2010) conseguiu
inclusivamente o perdão de cerca de 30% da dívida externa liberiana para
com a Nigéria, como recompensa por esta se ter negado a acolher a sede
do AFRICOM (Garuba, 2008).
A construção de uma Pax Nigeriana tem, como demonstrado, sido pau-
tada por uma afirmação ora económica, ora político-militar, nem sempre
conseguida. De facto, a predominância regional natural da Nigéria tem con-
tribuído para criar um contexto propício a uma política externa influente
e, por vezes, assertiva, mas também tem sido frequentemente caracterizada
por avanços e recuos estruturais acompanhando claramente as mudanças
de regime interno. Assim, o ‘destino’ nigeriano mantém-se um potencial
reconhecido, mas ainda por concretizar. E, actualmente, «tendo em conta a
realidade dos actuais equilíbrios de poder [em África], a liderança nigeriana
tem de ser articulada com outras potências económicas e políticas da região,
incluindo a África do Sul» (Pham, 2007: 16).

Dimensão internacional

A dimensão internacional da política externa nigeriana, apesar de ter tido


momentos de assertividade unilateral, tem-se pautado por uma ênfase nos
princípios de direito internacional. Assim, a Nigéria recém-independente
rapidamente se tornou membro da Organização das Nações Unidas, do
Movimento dos Não Alinhados e do Grupo dos 77, bem como da Com-
monwealth of Nations. Apesar de Balewa (1960-1966) ser criticado pela
sua tendência pro-ocidental e o seu conservadorismo demasiado colado à
herança colonial britânica, o seu governo procurou passar a imagem de um
país preocupado em aumentar o poder dos países em desenvolvimento no
303
sistema internacional. Para esse efeito, a Nigéria, por exemplo, participou,
entre outras, na criação da Associação de Produtores de Chocolate, no sen-
tido de aumentar o poder negocial internacional desses produtores, com o
objectivo de obter uma melhoria dos termos de troca.
A era dos regimes militares (1966-1998) manteve esta ênfase na par-
ticipação em organizações internacionais, com a entrada da Nigéria na
Organização de Produtores e Exportadores de Petróleo (OPEP), no Fundo
Monetário Internacional (FMI), no Banco Mundial e ainda com a sua assi-
natura do General Agreement on Trade and Tariffs (GATT). De referir, que
a Nigéria também se envolveu nas negociações das Convenções de Lomé
com a então Comunidade Económica Europeia (CEE), chegando mesmo a
liderar algumas das negociações em nome do continente africano. Durante
a primeira fase dos regimes militares, com Gowon (1966-1975) e Moham-
med/Obasanjo (1975-1979), a participação da Nigéria nestas organizações
foi marcada pelos seus esforços na luta contra o domínio colonial em África
e contra o apartheid na África do Sul.
Na segunda fase da época militar (1979-1998), a Nigéria conseguiu uma
maior visibilidade para o seu país no palco institucional internacional. O
reconhecimento da Nigéria como um líder regional ao nível internacional
foi conseguido durante os primeiros governos desta fase com Shagari
(1979-1983) e Buhari (1984-1985), mas, essencialmente, com Babangida
(1985-1993). A Nigéria ocupou vários cargos em diferentes organizações
durante este período que lhe valeram uma visibilidade positiva, de respei-
to e confiança: Presidente do Comité Anti-Apartheid da ONU, Presidente
da 44ª Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas e Secretário-Geral
da Commonwealth of Nations (1990-2000). A Nigéria desenvolveu ainda
esforços para que o General Osabanjo fosse eleito Secretário-Geral das
Nações Unidas, no entanto, sem sucesso. Durante este período, a Nigé-
ria conseguiu ainda que a 13ª Sessão Especial da Assembleia Geral das
Nações Unidas fosse dedicada à situação económica crítica em África. E,
finalmente, para além de ter assumido um papel de responsabilidade re-
gional ao participar nos esforços regionais de paz da ECOWAS na Libéria
e Serra Leoa, quando as Nações Unidas enfrentavam problemas de recur-
sos, a Nigéria ainda participou nas missões de paz da ONU na Somália,
304
ex-Jugoslávia e Bosnia-Herzegovina. Esta foi a época áurea da Nigéria no
sistema internacional demonstrando um compromisso e empenho claros
em seguir e defender as regras de direito internacional e em contribuir
para os esforços colectivos nesse sentido.
Com o regime de Abacha (1993-1998), a imagem internacional da Nigé-
ria sofreu uma deterioração drástica. A violência interna do regime militar
levou à suspensão da Nigéria da Commonwealth of Nations, em 1995, após
a execução de activistas opositores ao regime, bem como a uma conde-
nação veemente por parte da Comissão Social, Humanitária e Cultural da
Assembleia das Nações Unidas. Ainda assim, a Nigéria ocupou o cargo de
Secretário-Geral da OPEP durante este período. A transição para um regime
democrático foi assegurada por Abubakar (1998-1999), o qual encetou esfor-
ços para recuperar a imagem anterior do seu país no sistema internacional,
recebendo mesmo o Secretário-Geral das Nações Unidas, Kofi Annan, em
1998, como um gesto de abertura da Nigéria a uma mudança estrutural
do seu regime de governação. Já com Obasanjo (1999-2007), presidente
eleito por dois mandatos, a Nigéria retoma um pouco da imagem passada
ao presidir o G77, em 2000, e assim assumir um papel de liderança nas
relações entre os países em vias de desenvolvimento e o G8. Salienta-se
particularmente a sua participação em várias missões de paz das Nações
Unidas no continente africano: UNAMSIL (1999-2004, Serra Leoa), UNMIL
(2003, Libéria), UNOCI (2004, Costa do Marfim), UNMIS (2005, Sudão),
MONUC (2007, República Democrática do Congo), UNAMID (2007, Darfur),
MINURSO (2010, Sahara Ocidental) e MINURCAT (2010, Chade e República
Centro-Africana). Esta estratégia revela uma mudança e uma preocupação
em assumir a sua responsabilidade ao nível de hard power nos esforços de
paz regionais mas, ao contrário do passado, privilegiando os mecanismos
multilaterais. Acresce ainda que, com o fim do apartheid na África do Sul
e o aproximar de posições, regional e internacionalmente, entre os dois
países, a Nigéria tem vindo a reivindicar dois lugares permanentes no
Conselho de Segurança das Nações Unidas, assumindo assim o papel de
liderança que a África do Sul tem vindo a desenvolver quer regional, quer
internacionalmente.
Nas suas relações bilaterais fora do continente africano, a Grã-Bretanha
305
naturalmente assume uma posição de destaque. Logo após a independência,
Balewa (1960-1966) foi duramente criticado pela manutenção da depen-
dência relativamente à ex-metrópole, tendo mesmo sido assinado um Pacto
de Assistência Mútua entre os dois países. Mas, ainda na década de 1960,
com a Guerra Civil no Biafra, a Grã-Bretanha recusou financiar a compra
de armas ao governo nigeriano na sua luta armada contra o movimento
secessionista no leste do país. Ainda assim, as relações com a Grã-Bretanha
mantiveram-se estratégicas e amistosas, tendo-se apenas tornado turbulentas
com Mohammed e Obasanjo (1975-1979). Esta mudança deve-se, em parte,
ao facto dos dois países se terem tornado concorrentes internacionais no
mercado petrolífero, mas mais importante porque a política externa nige-
riana entrou em rota de colisão com a britânica no que dizia respeito à sua
política externa para com a África do Sul, sem uma condenação veemente
do apartheid. Na segunda metade dos regimes militares, a situação foi-se
agudizando episódio a episódio. Com Buhari (1984-1985) e a sua política
de ‘olho-por-olho e dente-por-dente’, em 1985, a Nigéria responde à de-
tenção de um avião nigeriano em Londres com a detenção de um avião
britânico em Lagos. Acresce ainda que nos seus esforços para recuperar o
dinheiro desviado pelos seus antecessores, Buhari depara-se com a posição
intransigente da Grã-Bretanha, entre outros países, no sentido de extraditar
os alegados ‘corruptos e ladrões’ que se tinham instalado em terras de sua
majestade. Babangida (1985-1993) chega mesmo a boicotar os jogos da Com-
monwealth of Nations em 1989 como protesto pelo facto de a Grã‑Bretanha
continuar a não tomar uma posição contra ao apartheid. Convém referir
que estas tensões nunca afectaram as relações comerciais entre os dois
países ao longo das décadas. As demonstrações de força referidas ilustram
apenas tomadas de posição simbólicas de parte a parte. Com a eleição de
Obasanjo (1999-2003 e 2003-2007) e o fim do apartheid na África do Sul, as
relações entre a Nigéria e a Grã-Bretanha deixaram de ter focos de tensão
recorrentes. Obviamente que o facto da Grã-Bretanha, conjuntamente com
a Suíça, os EUA e a Alemanha, terem garantido a Obasanjo a recuperação
do dinheiro desviado por governantes anteriores, constituiu um elemento
crucial na consolidação de uma aliança estratégica entre os dois países.
As relações da Nigéria com os EUA e a União Soviética/Rússia foram e
306
têm sido marcadas pelas dinâmicas globais da Guerra Fria e do pós-Guerra
Fria. A Nigéria é membro do Movimento dos Não Alinhados, tendo, no
entanto, ao longo do período da Guerra Fria, tomado posições mais pro-
ocidentais ou pro-bloco de leste, conforme os temas e os governos. Balewa
(1960‑1966) nunca escondeu a sua postura pro-ocidental e de quase hosti-
lidade para com a ex-União Soviética e o bloco de leste. Com a recusa dos
países ocidentais financiarem os esforços de guerra nigerianos no Biafra e
o facto da União Soviética ter vindo em auxílio da Nigéria, as relações com
os países do bloco de leste desenvolveram-se de forma sólida, passando-se
a assistir a um «desafio vigoroso à hegemonia ocidental global» (Abegunrin,
2001: 109), na última metade da década de 1960. Esta posição anti-ocidental
mantém-se com Mohammed/Obasanjo (1975-1979). A Nigéria chega mesmo
a cancelar a visita de Henry Kissinger ao país, aquando da realização de um
périplo africano no sentido de persuadir os Chefes de Estado a não aderirem
ao comunismo e a não seguirem a liderança da Nigéria no reconhecimento
do governo angolano do MPLA (Abegunrin, 2003: 66).
A segunda metade da época dos regimes militares engloba o final da
Guerra Fria, com uma posição pró-ocidental entusiasta por parte de Ba-
bangida (1985-1993): apoio tácito à Guerra do Golfo e acolhimento da
Convenção de Lomé IV (Garuba, 2008). No entanto, com o regime violento
de Abacha (1993-1998), a Nigéria volta a assumir uma posição anti-ocidental
hostil (Abegunrin, 2001: 127). Este anti-ocidentalismo era privilegiadamente
canalizado contra os EUA que desenvolviam esforços para aplicar sanções
e um embargo petrolífero à Nigéria, despoletados pela execução de nove
activistas em 1995. Abacha acusava os países ocidentais de «encorajarem
activamente grupos de oposição [na Nigéria] bem como no estrangeiro»
contra o seu governo (Abegunrin, 2001: 127).
Com as eleições democráticas em 1999, as relações com o Ocidente e,
em especial, com os EUA alteraram-se drasticamente. Em 1999, a Nigéria
e os EUA assinaram um acordo que levantou finalmente as restrições de
vôos directos entre os dois países (restrições aplicadas desde Abacha)
(Garuba, 2008). Apesar desta alteração, continuam a existir momentos de
tensão sobre um ou outro tema. Recentemente, a posição nigeriana contra
o estabelecimento de um comando militar americano em África (AFRICOM)
307
constituiu um desses momentos (Garuba, 2008). O período pós-2001 pro-
porcionou, no entanto, um novo ímpeto para as relações Nigéria-EUA,
nomeadamente na área da cooperação para o desenvolvimento associada
ao combate ao Síndrome da Imuno-Deficiência Adquirida (SIDA) e na luta
contra o terrorismo. A Nigéria é um dos quinze países classificados como
prioritários para o Plano de Emergência para o SIDA do Presidente dos
Estados Unidos da América (PEPFAR) criado em 2004. Este Plano baseia-se
na ideia que para além da tragédia humana per se, o impacto do SIDA na
Nigéria cria condições para a existência de uma base de recrutamento mais
fácil para movimentos extremistas, devido ao elevado número de jovens
órfãos. Apesar de esta teoria não ser consensual, o facto é que a Nigéria é
um dos países que mais apoio recebe dos EUA através deste Plano (cerca
de 1,5 mil milhões de dólares americanos). Acresce ainda, que a Nigéria
tem sido considerada uma fonte de ameaças à segurança regional na África
Ocidental, devido às redes de actividades criminosas e à proliferação de
armas e grupos armados, facilitadas por uma estrutura política corrupta e
muitas vezes omissa. Desde 2005, a Nigéria confirmou-se como um dos
aliados dos EUA no continente africano na luta contra o terrorismo, rece-
bendo ajuda no âmbito da Iniciativa Contra o Terrorismo do Trans-Sahara
e da Operação Liberdade Duradoura no Trans-Sahara, ambas enquadradas
nas actividades do AFRICOM.
Obviamente que a Nigéria mantém relações diplomáticas e comerciais
com vários outros países, mas para além dos países acima referidos, tal-
vez o que mais se destaca actualmente seja a China. A relação entre estes
dois países passou de inexistente, com a recusa de Balewa (1960-1966)
em reconhecer diplomaticamente o então governo da República Popular
da China, a uma relação bastante forte no início do século XXI . Em 2007,
a Nigéria constituía praticamente o segundo maior parceiro comercial da
China, tendo quadruplicado as suas exportações, que não petróleo, entre
1998 e 2001 (Taylor, 2007). De assinalar também que, em 2006, a Nigéria
tornou-se o primeiro país africano a assinar, com Pequim, um Memorando
de Entendimento sobre a Criação de uma Parceria Estratégica entres os dois
países (Taylor, 2007). A China tem apostado numa política de longo prazo
na Nigéria, investindo em infra-estruturas e canalizando uma percentagem
308
significativa do seu investimento directo estrangeiro para a economia ni-
geriana. O impacto estrutural que esta estratégia possa vir a ter na política
externa nigeriana não é ainda claro. Por um lado, a relação com a China
tem criado alguma tensão interna devido às práticas chinesas de gestão fa-
bril. Por outro, a Nigéria não tem sido um parceiro submisso nesta relação,
pois, não só tem apostado na diversificação das suas fontes de recursos na
área da ajuda pública ao desenvolvimento, como tem defendido de forma
assertiva os interesses nacionais em matéria de direitos e benefícios asso-
ciados à exploração petrolífera. 11
A riqueza petrolífera nigeriana tem constituído um elemento estruturante
da sua política externa a nível internacional. Por um lado, tem proporcionado
meios para concretizar as suas decisões. O financiamento de senadores e
líderes afro-americanos dos EUA, durante o regime Abacha (1993-1998), no
sentido de estes fazerem pressão contra a proposta de aplicação de sanções
comerciais e de um embargo petrolífero à Nigéria (Abegunrin, 2003: 154),
é um exemplo claro da capacidade que os rendimentos do petróleo pro-
porcionaram. Por outro lado, as dinâmicas associadas às crises petrolíferas
da década de 1970 também afectaram negativamente a situação económica
nigeriana. Esta é uma situação particular, pois a Nigéria é um país da OPEP.
Neste caso, as dinâmicas internas nigerianas tiveram um impacto directo na
sua capacidade para enfrentar a crise financeira internacional. Regimes cor-
ruptos (Babangida, 1985-1993 e Abacha, 1993-1998), com desvio de fundos
para o estrangeiro e conflitos violentos internos, afectando a estabilidade
da produção petrolífera, diminuíram de forma estrutural a capacidade dos
governos lidarem com a crise económica e financeira. Ainda assim, a Nigéria
tentou manter sempre a sua independência, por exemplo, fazendo frente
ao FMI, ao não aceitar as condições para o reescalonamento da sua dívida
externa no início da década de 1980. O regime Babangida (1985-1993), no

11 Para uma análise do tipo de contratos desenvolvidos pela Nigéria para a exploração petrolífera
com empresas estrangeiras, ver (Taylor, 2007).
entanto, acabou por adoptar medidas económicas que, na verdade, eram
coerentes com os Programas de Ajustamento Estrutural do FMI (Garuba,
2008). Em 2005, o Clube de Paris finalmente decidiu perdoar cerca de 80%
309
da dívida externa nigeriana (Pham, 2007), aliviando de forma estrutural as
pressões económicas externas com que o país se debatia desde o final da
década de 1970.

Considerações finais

A Nigéria tem sido recorrentemente referida como um ‘gigante com pés


de barro’, caracterizada por uma estrutura económica, política e social frágil
que não tem permitido a concretização do seu destino de líder da África
negra. Esta fragilidade tem sido acompanhada pela ausência de uma estra-
tégia coerente de política externa e reforçada pelo surgimento e afirmação
de outras potências regionais africanas e internacionais. Na verdade, um dos
traços mais marcantes da política externa nigeriana desde a independência,
e que é transversal às três dimensões analisadas, tem sido a incoerência
da mesma. Nesse sentido, e uma vez que a política externa nigeriana foi
sempre dependente das dinâmicas de estabilidade e instabilidade que têm
caracterizado o país, a Nigéria continua a enfrentar desafios de natureza
essencialmente interna: a consolidação da sua democracia e dos princípios
de boa governação, a distribuição equitativa da riqueza nacional, o combate
à corrupção, a gestão pacífica dos conflitos internos violentos, e o combate
ao HIV-SIDA. O Conselho de Assessoria ao Presidente sobre Relações Inter-
nacionais criado por Yar’Adua, em 2009, constitui um reconhecimento da
necessidade sentida de criar uma política externa mais coerente e estável
que apoie uma estratégia de recuperação e consolidação de um papel para
a Nigéria como membro respeitável da comunidade internacional, como líder
do continente africano e como exemplo na promoção dos interesses Sul-Sul.
Cronologia dos regimes políticos
Datas Tipo de regime Datas Chefe de estado
— —
1960-1966 Balewa (não eleito)
310 1963-1966 1ª República
1966 Ironsi
1966-1975 Gowon
1966-1979 Militar
1975-1976 Mohammed
1976-1979 Obasanjo
1979-1983 2ª República 1979-1983 Shagari (não eleito)
1983-1985 Buhari

Militar 1985-1993 Babangida


1983-1999
[3ª República 1993 Shonekan
[1993]
(abortada)] 1993-1998 Abacha
1998-1999 Abubakar
1999-2003 Obasanjo
2003-2007 Obasanjo
1999- 4ª República
2007-2010 Yar’Adua
2010- Jonathan

Questões para análise


A riqueza petrolífera pode ser considerada uma ‘maldição’ para a política
externa nigeriana?
Analise criticamente a analogia da Nigéria a um ‘gigante com pés de barro’.
Considera que a Nigéria se pode considerar uma ‘nova polícia’ em África’?
Concorda que a política externa da Nigéria tem sido demasiado centrada
em África?

Fontes na internet
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The National Think Thank Project, http://www.nationalthinktank.org/
index.php
Página oficial do Governo da República Federal da Nigéria, http://www.
nigeria.gov.ng/
Ministério dos Negócios Estrangeiros da República Federal da Nigéria,
http://www.mfa.gov.ng/index2.php
Presidente da Nigéria, http://www.nigeriafirst.org/president.shtml
311
The Nigerian Tribune, http://www.tribune.com.ng/index.php

Leituras recomendadas
Bach, Daniel (2007) «Nigeria’s ‘manifest destiny’ in West Africa: dominance
without power», Afrika spectrum, 2, 301-321.
King, Mae C. (1996) Currents of Nigerian Foreign Policy. Washington
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Morgan, Denny and Webber, Mark (2002) «Sub-Saharan Africa: Nigeria
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Osaghae, Eghosa E. (1998) The Crippled Giant: Nigeria since Indepen-
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Bibliografia

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Taylor, Ian (2007) «China’s Relations with Nigeria», The Round Table, 96(392), 631-645.
Licínia Simão

313

C a p í t u l o 13

República Islâmica do Irão

Principais linhas da política externa iraniana: pragmatismo e ideologia

O Irão 1 apresenta um conjunto de princípios basilares na sua política


externa que se mantiveram inalterados, durante a sua longa história (Frye,
1996): um profundo pragmatismo, que visa assegurar os interesses geoestraté-
gicos do país e a sua segurança; e uma dimensão ideológica, que permanece
parte integrante da identidade, história e cultura iranianas (Ramazani, 2004).
Assim, a política externa iraniana apresenta-se como sendo «caleidoscópica»
(Ramazani, 1989: 211), ilustrando a constante fluidez dos arranjos políticos e
das posições defendidas pelos líderes políticos e religiosos. A defesa primor-
dial do interesse nacional iraniano, que historicamente inclui independência
e segurança num contexto regional desfavorável, é, pois, o principal motor
da definição de uma política externa flexível e pragmática. Tendo em conta
a natureza estratégica e disputada da região do Golfo Pérsico e a presença
de potências externas, os diferentes regimes em Teerão procuraram imple-
mentar uma política de equilíbrio (imparcialidade e não-alinhamento), que
exigia equidistância. A decisão, em 1951, do Primeiro-ministro Muhammad
Mosaddeq de nacionalizar a industria petrolífera iraniana, então dominada

1 Até 1935, a actual República Islâmica do Irão (RII) era conhecida pelo nome oficial de Pérsia.
Por decisão do Xá Muhammad Reza, nesse ano, o país mudou a designação oficial para Irão e, de-
pois de Revolução Islâmica de 1979, adoptou o actual nome. Ao longo deste capítulo serão utilizadas
as designações Irão e RII de forma aleatória.
pelos ingleses, e, mais tarde, o mote promovido pelo primeiro Líder Su-
premo, Aiatola Khomeini, 2 «Nem Oriente, nem Ocidente, mas a República
Islâmica», são boas ilustrações desta abordagem.
314
Um outro aspecto central é a política de alianças e acomodação (Barze-
gar, 2010: 181). Esta combinação de escolhas tácticas, aliando-se a actores
estratégicos e procurado encontrar formas de acomodar, quer os seus inte-
resses, quer os dos seus aliados, reforça a ideia de flexibilidade e fluidez
na política externa iraniana. Embora as relações com os vizinhos sejam
permanentemente tensas, depois da guerra Irão-Iraque e sob a liderança
de Rafsanjani, foi visível uma aproximação às monarquias árabes do Golfo
Pérsico, incluindo à Arábia Saudita, ilustrando a escolha pela acomodação
de interesses regionais. Os líderes iranianos reconheceram que, sendo
um estado Shi’ita motivado pela exportação da sua revolução religiosa, as
relações regionais seriam inevitavelmente marcadas pela suspeição, mas
reconheceram também, que a falta de apoio que o Irão sentiu durante a
guerra com o Iraque se deveu, em parte, à dimensão ideológica e poderia ser
alterada, se esta fosse revista (Takeyh, 2009: 130-139). De forma semelhante,
durante a presidência de Khatami, foram visíveis esforços para reconfigurar
as relações, quer com os vizinhos, quer com os Estados Unidos da América
(EUA) (Barzegar, 2010: 181; Takeyh, 2009: 196-204).
A organização política e a distribuição de poder entre diferentes elites é
outro factor central na definição de políticas externas. A estrutura governativa
iraniana, criada pela Constituição de 1979, estabelece a par das estruturas
seculares eleitas, como o Presidente da República ou o Parlamento nacio-
nal, estruturas religiosas não eleitas com vastos poderes de supervisão e
decisão (ver gráfico em baixo). As responsabilidades pela política externa
estão concentradas, oficialmente, na figura do Líder Supremo. É ele quem
comanda as Forças Armadas (incluindo o Exército dos Guardiães da Revolução
Islâmica) e o seu gabinete tem amplos poderes em matéria de segurança,
defesa e política externa. O Conselho Supremo de Segurança Nacional foi
estabelecido aquando da revisão constitucional de 1989 e funciona como

2 O Irão teve até hoje apenas dois Líderes Supremos: o Aiatola Ruhollah Khomeini (1979-1989)
e o Aiatola Ali Khamenei (1989- ).
o órgão decisório onde a política externa é efectivamente desenhada por
consenso e sob supervisão do Líder Supremo. O Presidente mantém também
poderes na formulação da política externa, devido à sua posição como chefe
315
de governo. A par do Ministro dos Negócios Estrangeiros, cada Presidente
procura imprimir um cunho pessoal nas opções de política externa, mas
em última análise, as decisões finais devem reflectir o equilíbrio de forças
existente na sociedade e entre as elites políticas e religiosas do país.
As relações com os EUA são um tema central e permanente da política
externa iraniana, como são também as relações no contexto regional do
Médio Oriente. A preocupação em manter um equilíbrio de forças que ga-
ranta a segurança da nação Shi’ita, num contexto maioritariamente Sunita é
outro factor central, definidor das suas opções estratégicas, nomeadamente
nas suas relações com movimentos como o Hezbollah no Líbano ou as
minorias Shi’itas no Iraque e no Afeganistão. Assim, tendo em conta os
pilares e opções estratégicas da política externa iraniana, a análise que se
segue procura ilustrar estas dinâmicas, colocando-as no contexto político
doméstico e externo e identificando eventos centrais que marcaram a forma
como o Irão se apresentou ao mundo ao longo do século XX e no início
do século XXI .

Gráfico 1. Estrutura Governativa do Irão.

Instituições Eleitas Instituições Não Eleitas

Eleitorado Presidente Líder Supremo

Governo Forças Armadas

Chefe do Sistema Judicial


Malis
(Parlamento)

Conselho de discernimento

Conselho
de Guardiões

Assembleia
de Peritos

Legenda:
Eleição Directa Veta Candidatos Controla Nomeia ou aprova
Política externa na dinastia Pahlavi

A revolução islâmica de 1979, que levou à deposição do Xá Muhammad


316
Reza Pahlavi, foi motivada pelo descontentamento geral com as políticas
autoritárias do Xá, nomeadamente a actuação da polícia secreta SAVAK, mas
principalmente por um profundo sentimento nacionalista que via o país
refém de interesses estrangeiros, liderados pelos EUA. O Golpe de Estado
que levou ao poder o Xá Reza Pahlavi e deu início à dinastia Pahlavi, em
1921, foi não só em parte facilitado pelo envolvimento britânico, como
permitiu a criação e desenvolvimento formal de um modelo de estado oci-
dental (Chehabi, 1998: 495). Os interesses britânicos no Irão remontam ao
início do século XX , com a criação da Companhia Petrolífera Anglo-Persa 3,
que viria a ser um laço fundamental nas relações do Irão com o ocidente.
Mais tarde, a 25 de Agosto de 1941 e em plena Segunda Guerra Mundial,
receando que a forte presença alemã no Irão se transformasse numa ameaça
aos interesses ingleses e soviéticos na região, os dois países invadem o Irão,
numa manobra militar e política que culminou na prisão e expulsão para
o exílio do Xá Reza Pahlavi e a sua substituição pelo seu filho Muhammad
Reza Pahlavi. Os motivos desta decisão britânico-soviética prenderam-se,
oficialmente, com a necessidade de assegurar direitos de trânsito para as
tropas aliadas, que procuravam derrotar os alemães na frente russa, mas
reflectiram também a vontade de proteger interesses britânicos, nomeada-
mente na exploração dos campos petrolíferos (Eshraghi, 1984: 37-38). Entre
1941 e o fim da Segunda Guerra Mundial, a presença de tropas estrangeiras
no Irão foi uma realidade. Embora os Aliados tenham procurado assegurar
ao Xá o respeito pela integridade territorial do país e a sua intenção de
retirar completamente do seu território, depois de terminada a guerra, os
primeiros ecos da Guerra Fria fizeram-se já anunciar com a recusa soviética
de retirar de território iraniano nas datas acordadas pelo Tratado de Teerão
(Lenczowski, 1972: 47-50).

3 A Anglo-Persian Oil Company foi estabelecida em 1908, para explorar as reservas petrolíferas
descobertas na então Pérsia. Em 1935 foi redenominada Anglo-Iranian Oil Company e em 1953
tornou-se na British Petroleum Company (BP).
Os anos que se seguiram tornaram a competição entre as duas potên-
cias da Guerra Fria, em território iraniano, mais visível. Em 1951, após a
nacionalização da indústria petrolífera iraniana pelo Primeiro-ministro Mo-
317
hammad Mosaddeq, os serviços secretos norte-americanos, instigados pelos
parceiros britânicos, organizaram a «operação Ajax», que levou à deposição
do governo. Embora os EUA tenham mantido confiança política no Xá,
tornava-se claro que este se tinha tornado numa figura distante e cada vez
mais desligada da realidade do país. Durante as décadas que se seguiram,
o Xá, tal como outros líderes no Médio Oriente, usou a ameaça comunista
como um meio para conseguir assistência política, económica, financeira
e militar dos EUA, usada principalmente contra os oponentes internos ao
regime (Summitt, 2004: 562).
Durante o regime do Xá Muhammad Reza, o Irão estabeleceu uma
aliança estratégica com os EUA e tornou-se o maior comprador de armas
norte-americanas (Ramazani, 2004: 554). O apoio de Washington ao regi-
me repressivo do Xá constituiu um forte incentivo para a deterioração da
percepção popular sobre os EUA no Irão e, depois da revolução islâmica,
foi um vector central da política externa e doméstica iraniana. A história
das relações entre os EUA e o Irão, até 1979, mostram a construção de uma
aliança de necessidade, tendo em conta a convulsão das relações interna-
cionais durante a Primeira e Segunda Guerras Mundiais e a consolidação
de relações de clientelismo entre os dois estados durante a Guerra Fria
(Gasiorowski, 1991; Ghaneabassiri, 2002: 170).

A revolução islâmica: o período ideológico liderado por Khomeini

Com a transição do poder político para as mãos dos clérigos Shi’itas e


principalmente do fundador da República Islâmica, o Grande Aiatola Ruhollah
Khomeini, deu-se início a uma profunda revolução que alteraria a face do
Irão nas três décadas seguintes, com implicações profundas nas dinâmicas
do Médio Oriente. Um dos legados mais duradouros do Imã Khomeini foi
a estrutura institucional iraniana que emergiu do processo revolucionário.
O estabelecimento de estruturas dominadas por clérigos, a par de estrutu-
ras de governo seculares e da posição de Líder Supremo, acima de todos,
instituiu não só a legitimação de um governo religioso, como centralizou
todas as decisões nas mãos do Imã. Arjomand (2009: 6) refere a «rotinização
318
do carisma» do Líder Khomeini como um elemento central na construção
da nova ordem constitucional iraniana, ao passo que Takeyh (2009: 2) su-
blinha a longevidade da sua visão na construção do futuro da República
Islâmica do Irão (RII).
Khomeini estabeleceu-se como um jovem clérigo na cidade de Qom e,
especialmente a partir da década de 1960, mostrou interesse pelo debate
de questões públicas, apresentando uma visão política muito influenciada
pelos grandes movimentos anti-colonialistas e nacionalistas (Takeyh, 2009:
11-14).4 Khomeini revelou-se um clérigo influente, determinado a recuperar
um lugar central para o Islão na vida pública iraniana. Para isso, denunciou
a «submissão» do regime do Xá aos interesses norte-americanos e o abandono
das práticas religiosas, que tinham até então formado parte integrante da
vida pública iraniana. A mobilização conseguida por Khomeini, durante a
década de 1960 e 1970, reflectiu um desejo de mudança que seria canali-
zado para a consolidação do poder religioso, em detrimento do poder da
monarquia. Esta tensão entre as duas bases da estrutura de poder iraniano
(o Shi’ismo e a Monarquia) foi radicalmente alterada em favor da primeira.
Daí que Khomeini estivesse profundamente comprometido com o estabe-
lecimento de uma república islâmica, baseada numa forma teocrática de
poder. A centralidade do governo religioso na visão do Imã ficou imortali-
zada no estabelecimento de um modelo político de jurisprudência religiosa
(velayat‑e faqih) que viria a ser aceite, não só pela comunidade religiosa no
Irão, mas também pela população iraniana. Os seus discursos públicos e as
suas estratégias de mobilização da classe religiosa eventualmente levaram
a que o Xá ordenasse primeiro a sua prisão e, em 1964, a sua deportação
para o exílio, na Turquia. No ano seguinte, Khomeini estabeleceu-se em
Najaf, no Iraque, onde desenvolveu o seu pensamento sobre a jurisprudên-
cia religiosa, que viria a ser divulgado de forma clandestina no Irão (Algar,

4 Para uma análise detalhada da visão ideológica de Khomeini ver Rajacc (1983). Ver também
Arjomand (2009: 16-35).
2010; Takeyh, 2009: 15-17). Conseguiu também consolidar um movimento de
oposição nacional ao Xá, albergando diferentes forças políticas e religiosas
sob a bandeira da revolução.
319
A resposta violenta do Xá ao descontentamento crescente na sociedade
iraniana e as sucessivas e inconsequentes reformas revelaram os limites da
monarquia em acomodar as reivindicações sociais e políticas iranianas (Bill,
1978: 324-329; Pollack, 2004: 137-140). Por sua vez, Khomeini consolidou
a sua visão de uma república islâmica como alternativa à corrupção do
regime vigente. No final de 1978 e até 16 de Janeiro de 1979, quando o
Xá abandonou o país, verificaram-se manifestações populares desafiando
a lei marcial, greves gerais e mesmo dentro das forças armadas emergiram
profundas divisões entre a geração mais velha, leal ao Xá, e as gerações
mais novas fascinadas pela ideia de um governo religioso (Algar, 2010).
Com efeito, o objectivo comum e imediato de remover o Xá foi a força
maior que juntou elementos de todas as classes sociais, de todos os qua-
drantes intelectuais, movimentos religiosos e seculares (Katouzian, 2009:
21). O regresso do Imã, a Teerão, a 1 de Fevereiro de 1979, simbolizou o
culminar da revolução e inaugurou o novo período de acomodação política
e social, com profundas implicações na forma como a política externa do
país passou a ser conduzida.
Com a adopção, no final de 1979, de uma nova Constituição instituindo
um governo religioso, a RII tornou-se o primeiro estado a ter um governo
islâmico. Será, pois, Khomeini quem irá definir as grandes linhas da política
externa iraniana no período pós-revolucionário, quer com uma visão ideoló-
gica da nova missão da república islâmica, quer fazendo sentir o seu poder
sobre os outros elementos do novo governo. Segundo o Líder Supremo, a
revolução iraniana simbolizava apenas o começo do que deveria ser um
movimento maior, comum a toda a humanidade, mas em especial a todos
os muçulmanos.5 Subjacente a este princípio estão portanto três ideias cen-

5 «The Iranian Revolution is not exclusively that of Iran, because Islam does not belong to any
particular people. Islam is revealed for mankind and the Muslims, not for Iran… An Islamic move-
ment, therefore, cannot limit itself to any particular country, not even to the Islamic countries; it is the
continuation of the revolution by the prophets». Sermão proferido por Khomeini, a 2 de Novembro
de 1979, citado em Rajacc (1983: 82).
trais: a RII deveria ter um papel de charneira na exportação da revolução
islâmica, principalmente no contexto do Médio Oriente; deveria procurar
consolidar a unidade islâmica (principalmente entre Sunitas e Shi’itas) (Ra-
320
jacc, 1983: 85); e seria necessário reconhecer que a falta de unidade entre
muçulmanos se devia principalmente à presença de potências imperialistas
no Médio Oriente, cujo objectivo era, não só explorar as riquezas da região,
como evitar que o Islão se tornasse uma força relevante. Assim, emerge
como parte crucial do discurso revolucionário e ideológico de Khomeini
a criação de um arqui-inimigo da revolução, simbolizado pelos EUA e por
Israel (Takeyh, 2009: 18-22).
A prevalência de um contexto ideológico e de grande conturbação
durante o período revolucionário facilitou em grande medida a consolida-
ção de uma imagem paranóica dos EUA. A crise dos reféns da embaixada
norte‑americana em Teerão ilustrou esse receio profundo de que Washington
interferisse na revolução iraniana (Pollack, 2004: 153-159; Takeyh, 2009:
36-46). Este episódio acabou por marcar a imagem que as duas nações têm
de si próprias e do outro. A 4 de Novembro de 1979, iniciaram-se 444 dias
de ocupação da embaixada norte-americana em Teerão por um grupo de
estudantes, reivindicando o fim dos planos norte-americanos de subversão
da revolução sagrada. Embora a tomada da embaixada tivesse como objec-
tivo a humilhação do «Grande Satã» e a afirmação de uma nova relação de
poder, esta crise ilustrou também as dinâmicas internas de luta pelo poder.
No imediato contexto pós-revolucionário, uma aliança de partidos de esquer-
da e liberais estabeleceu um novo governo liderado por Mehdi Bazargan,
com o apoio dos clérigos. A par do governo, foi estabelecido o Conselho
Revolucionário, sendo composto por clérigos próximos de Khomeini, por
líderes políticos próximos de Bazargan e elementos das forças armadas. As
decisões políticas que guiaram a RII no período pós-revolucionário viriam
a ser o resultado do confronto entre uma visão conciliadora de Bazargan,
nomeadamente no que toca ao relacionamento com os EUA, e a visão radical
que o Conselho Revolucionário e Khomeini viriam a promover, incluindo
o seu apoio implícito às acções dos estudantes.
Com efeito Bazargan mostrou-se favorável à manutenção de relações com
os EUA, embora o seu objectivo imediato fosse fazer regressar a RII a uma
política de equilíbrio, pondo fim à aliança com os EUA. Para esse efeito, a
RII retirou-se da Organização do Tratado do Médio Oriente, que havia sido
criada em 1955, e cancelou os acordos de defesa que o Xá tinha estabele-
321
cido com Washington (Ramazani, 1989: 204-205). Apesar destas decisões, o
desejo de acomodação com os EUA foi visto pelos clérigos como um sinal
de fraqueza e que contrariava o objectivo maior de Khomeini de estabelecer
uma ordem mundial islâmica. Para além disso, o facto de a administração
Carter ter admitido que o Xá entrasse nos EUA para tratamento médico,
apenas reforçou a ideia de que a revolução estava em perigo. Segundo
Ramazani (1989: 206-210), este período viu a política externa iraniana ser
dividida em dois blocos centrais: por um lado os nacionalistas realistas,
como Bazargan, viam a independência do Irão como um aspecto central,
mas que deveria ser conseguida mantendo relações de equilíbrio com as
duas super-potências e com os seus vizinhos; por outro lado, os idealistas
revolucionários viam o Islão como a razão maior para a política externa
do país e, como tal, todos os outros objectivos deveriam ser subjugados
ao princípio da exportação da revolução e da criação de um Golfo Pérsico
sem influência norte-americana.
Os reféns foram libertados, já em 1981, numa altura em que o poder de
Khomeini e dos clérigos estava consolidado através de uma nova ordem
constitucional. No entanto, em 1980, teve início um dos principais aconte-
cimentos na vida pós-revolucionária do Irão: a guerra com o Iraque, que
durou até 1988 e terminou com um armistício negociado pelas Nações
Unidas. As razões que levaram Saddam Hussein a invadir o Irão a 22 de
Setembro de 1980 são multifacetadas, incluindo disputas territoriais, políticas
e religiosas (Gregory Gause III, 2002). Foi uma combinação de oportuni-
dade e receio que levou Saddam Hussein a iniciar a guerra: oportunidade
de enfraquecer ainda mais o seu inimigo histórico e conquistar parte do
seu território, numa altura em que o seu governo se encontrava fragiliza-
do; e receio de que a nova ideologia, protagonizada por Khomeini, tivesse
um impacto visível na minoria Shi’ita no Iraque, destabilizando o regime
secular Bah’ista (Takeyh, 2009: 82-87). Embora, no início da guerra, o Irão
se apresentasse numa situação de aparente desvantagem, os novos líderes
transformaram o conflito numa ferramenta de consolidação do seu poder.
A guerra ganhou contornos de uma cruzada, representando uma oportu-
nidade para o povo iraniano demonstrar «não só o ardor nacionalista, mas
também a sua devoção religiosa» (Takeyh, 2009: 89).
322
A guerra entre o Irão e o Iraque foi uma dais mais longas e violentas
da história do Médio Oriente. Foi uma guerra total, em que ambos os la-
dos usaram todo o seu poderio militar, humano e financeiro (Hooglund,
1987: 13). Para além das implicações domésticas, a guerra teve um impacto
profundo nas relações do Médio Oriente e acabou por se internacionalizar
no contexto da Guerra Fria (Takeyh, 2009: 101-107). O Irão viu-se isolado
e marginalizado pelo conflito, após a decisão dos estados do Conselho de
Cooperação do Golfo (CCG), todos árabes, e dos EUA, Alemanha, França
e Reino Unido de apoiarem o Iraque (Taremi, 2003: 386). Com efeito as
políticas expansionistas da RII no Médio Oriente, através da criação de mo-
vimentos armados como o Hezbollah no Líbano ou o Hamas na Palestina
criaram uma suspeita profunda, não só entre os seus vizinhos, como a nível
internacional. No contexto da guerra com o Iraque, estes ressentimentos
foram um motivo forte para isolar o regime islâmico.
A RII manteve, nessa altura, relações próximas com Moscovo e com Pe-
quim (Hickey, 1990), bem como com dois aliados improváveis, recorrendo
a uma política de alianças pragmáticas: a Síria e Israel. Para o regime de
Damasco, a ajuda ao Irão representava uma forma de combater a presença
norte-americana, enquanto para Teerão, a Síria representava uma fonte de
armas importante, bem como um sinal de divisão na solidariedade árabe,
que poderia trazer dividendos para Teerão (Takeyh, 2009: 74-79). O apoio
de Israel é ainda mais inesperado, tendo em conta as declarações dos novos
líderes revolucionários contra o «Pequeno Satã» e a sua denúncia da criação
do estado de Israel, como uma imposição das potências imperialistas, que
deveria ser terminada. No entanto, para ambos os estados as exigências da
guerra e os cálculos de longo prazo sobrepuseram-se ao fervor religioso
ou ideológico. Com efeito, Teerão necessitava urgentemente de apoio mi-
litar israelita que colmatasse a falta de acesso a novas armas ou a meios
de reparar o arsenal iraniano de fabrico ocidental. Para Israel, o apoio a
Teerão era uma escolha táctica com vista a garantir que Saddam Hussein
não consolidasse o seu domínio no Médio Oriente (Takeyh, 2009: 61-69). A
dada altura, os próprios EUA recorreram a contactos com os iranianos, para
que fossem libertados reféns no Líbano, em troca de armas (Parsi, 2007).
O que ficou conhecido como o escândalo Irão-Contras foi, porventura, o
323
evento mais demonstrativo do grande pragmatismo e oportunismo nas re-
lações externas do Irão, mas também de Israel e dos EUA.
O fervor ideológico dos anos da revolução e da liderança de Khomeini
marcaram as relações externas iranianas na década de 1980, promovendo
a exportação da revolução, principalmente para o Golfo Pérsico e o Médio
Oriente e consolidando uma aliança islâmica que pudesse ser um contra-
ponto à bipolaridade. No entanto, e como vimos, o pragmatismo foi uma
constante, exigindo cálculos ocasionais que contrariavam os ensinamentos
religiosos e ideológicos. Os traços centrais deste período, marcado pelo
isolamento internacional do Irão e pela consolidação das suas políticas de
intervenção e destabilização regional, permaneceram nas décadas seguin-
tes. Foi, no entanto, a RII a cortar laços com a comunidade internacional,
profundamente desiludida com as suas políticas da acomodação face à utili-
zação de armas químicas pelo Iraque de Saddam Hussein. Para os iranianos
e os seus líderes tornou-se claro que, só dependendo de si mesmo, o Irão
poderia sobreviver num contexto hostil. Estas tendências foram suavizadas
durante a liderança de Rafsanjani, mas permanecem até hoje uma parte
central da política externa iraniana.

Abertura ao mundo: o período pragmático liderado por Rafsanjani

O ano de 1989 representa um marco histórico também na vida política


da RII. Nesse ano, Khomeini, procurando dar um novo impulso à revolução,
anunciou uma fatwa contra Salman Rushdie, devido à publicação de Versículos
Satânicos.6 Pouco tempo depois, o Líder Supremo e arquitecto ideológico
da revolução falecia, dando início a um processo de luta interna pelo poder,

6 Uma fatwa, é um edital religioso sobre a aplicação da lei islâmica em qualquer situação da vida
de uma comunidade e é emitida por um clérigo ou autoridade religiosa. No caso de Salman Rushdie,
foi lançada pelo Aiatola Khomeini, devido à alegada blasfémia e apostasia do seu romance Versículos
Satânicos e continha uma sentença de morte por violação da lei islâmica.
entre as diferentes facções da vida política, económica, social e militar ira-
nianas (Moslem, 2002; Siavoshi, 1992). Os apoiantes da revolução islâmica
procuraram consolidar um status quo que lhes fosse favorável, com acesso a
324
benefícios políticos e socioeconómicos. Segundo Alamdari (2005: 1290-1291),
nesta fase consolidaram-se diversos centros de poder verticais e autónomos
que facilitaram o desenvolvimento de relações de clientelismo, com profundas
implicações para as reformas económicas e políticas que o novo Presidente,
Akbar Hashemi Rafsanjani, procurou implementar depois de 1989.
Neste novo contexto, a nomeação de um novo Líder Supremo era uma
prioridade. Presidente da República entre 1981 e 1989, Ali Khamenei, foi
então elevado à categoria de Aiatola e nomeado Líder Supremo pela Assem-
bleia de Peritos. Com a revisão constitucional de 1989, foi abolido o cargo
de Primeiro-ministro, criando um regime presidencialista, de liderança dupla,
e foi estabelecido o poderoso Conselho de Segurança Nacional, com pode-
res reforçados em matéria de política externa. Uma vez resolvido o dilema
imediato da sucessão a Khomeini, a RII precisava agora encontrar soluções
para o avolumar de desafios que o contexto interno, regional e internacional
colocava. Rafsanjani procurou iniciar uma era de reconstrução (Takeyh, 2009:
113), que permitisse reparar os danos causados pela devastadora guerra com
o Iraque e legitimar o novo governo, com base em políticas sociais. Para isso,
contudo, era necessário alterar as relações com os vizinhos do Golfo Pérsico e
abrir novas possibilidades de relações comerciais com os países europeus e a
União Soviética/Rússia, que permitissem ao Irão aceder a importantes créditos
internacionais e reverter o estado de dependência absoluta da sua economia
(Taremi, 2003: 388; Tarock, 1999). Embora as exigências práticas da recons-
trução fossem um aspecto central da nova política de acomodação, a tensão
entre pragmatismo e ideologia manteve-se visível, dando origem a acesso
debates internos, sobre os perigos e as vantagens da cooperação com os EUA.
Perante a existência de uma só superpotência, o Irão viu-se obrigado, também,
a melhorar relações com diversos novos parceiros, não necessariamente mu-
çulmanos, bem como a tentar forjar a sua presença em organizações regionais
não dominadas pelo Ocidente (Herzig, 2004: 505; Ramazani, 1992: 401-403).
Com efeito, no novo contexto pós-Guerra Fria, Teerão viu-se obrigado a
alterar a sua política externa, abandonando o princípio de «nem Ocidente,
nem Oriente» e estabelecendo o princípio de «Norte e Sul» (Ramazani, 1992).
Isto significava, abertura aos novos estados independentes do Cáucaso do
Sul e da Ásia Central (Arjomand, 2009: 141-143; Herzig, 2004; Ramazani,
325
1992) e à Rússia. Apesar dos momentos de tensão entre Teerão e Moscovo,
nomeadamente durante a invasão Soviética no Afeganistão (Milan, 2006:
235-246) e durante a guerra na Chechénia, os dois estados viram benefí-
cios numa cooperação estratégica. Um dos objectivos centrais era limitar
a presença norte americana no Golfo Pérsico e no Mar Cáspio (Lowe and
Spencer, 2006: 40-43) e, desde o final da década de 1990, a cooperação
nuclear passou a ser um aspecto central das suas relações. Teerão, com o
apoio de Moscovo, desempenhou também o papel de mediador no conflito
de Nagorno Karabakh, entre a Arménia e o Azerbaijão, e na guerra civil que
deflagrou no Tajiquistão. Perante a abertura do espaço da Eurásia, quer o
Irão, quer a Turquia procuraram reforçar a sua presença, tendo por base
uma abordagem pragmática e funcionalista. Com efeito, no inicio da déca-
da de 1990, os dois estados entraram em competição por influência nesta
região, principalmente através da promoção de integração regional baseada
em afinidades culturais e linguísticas (Calabrese, 1998; Herzig, 2004: 507).
No contexto do Golfo Pérsico, a nova liderança iraniana procurou al-
cançar dois objectivos centrais: conter o Iraque e reconciliar-se com os
estados do CCG. O fim da guerra com o Iraque não resolveu as disputas
territoriais entre os dois estados. Com efeito, a invasão iraquiana do Kuwait,
em 1990, confirmou o entendimento de Teerão de que a liderança iraquiana
representava o principal elemento destabilizador na região. O Irão usou
esta oportunidade para demonstrar o seu apoio ao pequeno estado árabe
e exigir que o CCG denunciasse a invasão iraquiana (Ramazani, 1992: 396;
Takeyh, 2009: 134). A subsequente primeira guerra do Golfo representou
uma oportunidade para Teerão se afirmar como um actor empenhado na
estabilidade regional, mas também trouxe ameaças claras. A primeira delas
era a presença de tropas internacionais e principalmente norte-americanas,
no Golfo Pérsico. Para as facções radicais no Irão, o dever da república
islâmica era denunciar e combater essa presença. Contudo, numa fase em
que o Irão procurava normalizar a suas relações externas e integrar-se na
economia mundial, as exigências ideológicas teriam de ser calibradas por
interesses económicos e políticos. Um outro desafio foi a permanência de
Saddam no poder e o perigo de desmembramento do estado iraquiano,
especialmente nos territórios curdos e de maioria Shi’ita. Perante a oportu-
326
nidade de apoiar a rebelião Shi’ita no Iraque, Teerão limitou o seu apoio a
questões logísticas (Ramazani, 1992: 398; Takeyh, 2009: 136; Taremi, 2003:
390) e não investiu em destabilizar o país vizinho.
A melhoria de relações com os estados do CCG tinha como objectivos
centrais reforçar a política de contenção do Iraque, melhorar o contexto
económico iraniano e alterar favoravelmente os arranjos de segurança regio-
nais. Para isso, as relações problemáticas de Teerão com a Arábia Saudita
tinham de ser revistas. Em 1988, após a morte de mais de 400 peregrinos,
entre eles perto de 300 iranianos, aquando das peregrinações anuais a Meca,
as relações diplomáticas entre os dois países foram cortadas (Caryl, 2009).
Durante a guerra com o Iraque, o Irão viu os preços do crude descerem
após o aumento da produção saudita, num apoio claro de Riade a Saddam
Hussein. No entanto, a questão que mais separa os dois estados é a parceria
estratégica da Arábia Saudita com os EUA e, embora as relações diplomá-
ticas tenham sido restabelecidas depois da primeira guerra do Golfo, as
diferentes visões relativamente ao papel os EUA não foram reconciliadas.
Efectivamente, para a RII o estabelecimento de um acordo de segurança
no Golfo, que exclua ao EUA e que inclua Teerão é um objectivo central,
mas irreconciliável com a percepção dos estados árabes do Golfo que vêem
os EUA como um aliado e uma garantia de segurança (Taremi, 2003: 390).
Embora o resultado das políticas de aproximação e acomodação regionais de
Rafsanjani tenha sido limitado, o contexto regional após a guerra do Golfo
e com o fim da União Soviética era profundamente diferente, confirmando
a RII como um actor regional incontornável.
Para Israel, este novo contexto regional tinha algumas desvantagens, nomea-
damente a falta de um inimigo comum com os EUA. Após a derrota de Saddam,
a Administração Bush lançou imediatamente o processo de paz israelo-árabe,
que culminaria com os Acordos de Oslo. É neste contexto que a rivalidade
com Teerão irá escalar para novos níveis. Segundo Parsi (2005: 261), Israel e
o Irão acabaram por competir pelo mesmo vácuo de poder deixado com a
derrota do Iraque. Após os acordos de paz com os estados árabes, ambos se
encontravam em posição de se tornarem actores económicos centrais na re-
gião. Para além disso, o Irão, com a sua retórica anti-ocidental e anti-israelita,
representava a ameaça necessária para manter a aliança com os EUA e para
327
garantir apoio doméstico ao processo de paz, em Israel. Para Teerão, a sua
exclusão dos arranjos de segurança regionais e a política de isolamento seguida
por Israel e os EUA exigiu uma presença mais visível que confirmasse o seu
papel central na segurança regional. Nesse sentido, o Irão denunciou o pro-
cesso de paz e renovou o seu apoio aos grupos militantes palestinianos e no
Líbano, reforçando o seu objectivo de travar o processo de paz israelo-árabe.
Embora eventualmente esta política tenha rendido os seus frutos e Israel tenha
alterado a sua posição face a Teerão, os danos nas relações externas do Irão
com os países europeus e com os EUA foram devastadores. A denúncia de
Teerão como um instigador de terrorismo islâmico fundamentalista e as notícias
preocupantes sobre o seu programa nuclear pareciam reverter os resultados
positivos da abertura inicial conseguida por Rafsanjani. Quando o Presidente
Khatami chegou ao poder em 1997, o Irão encontrava-se num processo de
mudança acelerada, exigindo reformas mais profundas do que Rafsanjani tinha
sido capaz de fazer. A RII tinha também consolidado o seu programa nuclear
com apoio russo e chinês e sofria, desde 1996, sanções norte-americanas, es-
tabelecidas depois da adopção do Acto de Sanções Irão-Líbia.

Diálogo civilizacional: o período reformista liderado por Khatami

As eleições de 1997 marcaram um período fascinante na política domés-


tica do Irão, que teve também impacto na sua política externa. A chegada
surpreendente do movimento reformista ao poder iniciou um processo de
reforma que traduzia, em parte, uma nova realidade social do Irão, mas
também uma ruptura com a ideologia totalitária da revolução islâmica (Arjo-
mand, 2009: 92). O processo de liberalização da sociedade iraniana iniciou-se,
pois, com esta vitória: o número de jornais, de associações e Organizações
Não Governamentais (ONGs) registadas aumentou de forma exponencial; o
respeito pelo estado de direito passou a ser uma prioridade assumida pelo
novo Presidente (Arjomand, 2009: 93-94); e, no seu conjunto, o movimento
procurou «re-conceptualizar as relações entre os cidadãos e o estado, bem
como entre a religião e a democracia» (Takeyh, 2009: 184). Embora o movi-
mento reformista tenha sido em grande parte restringido nos resultados da
328
sua acção, pela estrutura institucional que garantia aos órgãos religiosos a
supervisão e direito de veto de todas as iniciativas legislativas do Presidente
e do Parlamento, a imagem externa de RII alterou-se de forma positiva.
Durante a campanha eleitoral, a reintegração do Irão na comunidade
internacional e a reconciliação com os seus vizinhos figuraram proeminen-
temente nos discursos de Khatami. Uma das suas prioridades foi promover
um diálogo civilizacional, apoiado na coexistência, em vez da rivalidade.
Foi uma mudança de discurso radical, em comparação com os candidatos
conservadores, apoiados pelas estruturas religiosas, que apostavam na
denúncia do ocidente como fonte de decadência e imperialismo (Takeyh,
2009: 182-187). Khatami procurou também estabelecer diálogo com os EUA
e, logo em Janeiro de 1998, após a sua eleição, deu uma entrevista exclusiva
à cadeia televisiva CNN, sublinhando os interesses partilhados entre o Irão e
os EUA, embora reconhecendo que se mantinham graves desentendimentos.
O seu desejo de mostrar uma nova face da RII tinha sido já demonstrado
aquando da sua participação no encontro da Organização da Conferência
Islâmica (OCI), em Dezembro de 1997, quando afirmou «O verdadeiro di-
álogo só será possível quando os dois lados tiverem consciência das suas
raízes e da sua identidade» (citado em Ansari, 2006: 160).
Podemos, pois, afirmar que o movimento reformador, liderado por Kha-
tami, procurou ao nível interno transformar a RII num estado democrático,
preocupado não apenas com a missão universal da revolução islâmica, mas
com a reforma das estruturas domésticas. Por outro lado, o novo discurso
conciliador e os gestos de boa vontade do novo Presidente procuraram mos-
trar ao mundo outra face do RII, facilitando o diálogo e, porventura, criando
novas oportunidades de desenvolvimento económico e político. No entanto,
esta abordagem teve dois problemas centrais, que ilustram a ligação próxima
entre as dinâmicas internas e as opções de política externa (e vice-versa).
Por um lado, a reacção norte-americana às aberturas do Presidente Khatami
foi confusa, demonstrando falta de preparação e entrou em choque com
a sua mensagem de diálogo, numa altura em que a Administração Clinton
mantinha uma política de «contenção dupla» (do Irão e do Iraque), no Mé-
dio Oriente. Apenas a Secretária de Estado, Madeleine Albright, emitiu um
pedido formal de desculpas, em Março de 1998, pelo envolvimento norte-
329
americano no golpe de estado que retirou o Primeiro‑ministro Mosaddeq
do poder em 1951 (Ansari, 2006: 161).
A política de «dissuasão, respeito mútuo e diálogo» de Kahtami (Takeyh,
2009: 198), apoiada inicialmente pelo Líder Supremo, Khamenei, traduziu-se
na melhoria de relações principalmente com a Arábia Saudita e os vizinhos
do Golfo, e, em 1999, Khatami tornou-se o primeiro Presidente iraniano a
visitar Riade. A esta visita seguiram-se uma série de acordos bilaterais e uma
colaboração próxima com a Arábia Saudita dentro da OPEC. Khatami anun-
ciou também que o Irão estaria disposto a respeitar um acordo de paz que
os palestinianos aceitassem (neste caso, uma solução de dois estados) o que
preconizava um reconhecimento implícito do estado de Israel. Na Europa,
a eleição de Khatami foi vista como uma possibilidade real de liberalização
das políticas domésticas, a que a União Europeia respondeu, instituindo uma
nova política de «envolvimento construtivo» em vez de um «diálogo crítico».
Houve uma série de visitas bilaterais sem precedente, com o Presidente
Khatami a ser recebido em diversas capitais europeias. No entanto, embora
a nova abordagem de Khatami fosse vista com bons olhos pelos europeus,
isso não se traduziu em benefícios concretos, nomeadamente na área eco-
nómica, trazendo descrédito à agenda do Presidente. As forças reaccionárias
rapidamente se organizaram para minar a sua autoridade e, por sua vez, isso
teve um impacto visível na imagem externa de Khatami e da RII.
Os acontecimentos de 11 de Setembro de 2001 marcaram a política ex-
terna iraniana de forma radical. A reacção inicial dos líderes iranianos foi de
apoio aos EUA, disponibilizando assistência no combate ao regime Talibã,
no Afeganistão. Este alinhar de interesses foi visto com desconfiança pelas
diferentes forças nos dois países, principalmente entre os grupos mais radicais
(os reaccionários no Irão e os neo-conservadores nos EUA) (Ansari, 2006:
164-165). Efectivamente, o Irão tinha tentado criar, desde a revolução islâmica,
uma esfera de influência ideológica no Afeganistão, procurando mobilizar
as populações Shi’itas, durante os anos de ocupação soviética (Milan, 2006:
236-239). Procurou inclusivamente influenciar os processos políticos neste
país vizinho, criando uma alternativa política que lhe fosse próxima. Por
isso, o interesse norte-americano em derrubar o regime Talibã foi visto de
forma positiva em Teerão e as ligações iranianas à Aliança do Norte foram
330
essenciais para que a coligação internacional, liderada pelos EUA, conseguisse
alguns resultados positivos (Milan, 2006: 246-251). Às oportunidades de coo-
peração com os EUA no Afeganistão, os iranianos contrapuseram também os
perigos de uma presença militar norte-americana no país vizinho, que viria
a ser reforçada, em 2003, com a invasão do Iraque. Um sentimento de cerco
(Ehteshami, 2004: 187; Milan, 2006: 248) e a percepção de que um arco de
instabilidade estava em desenvolvimento nas suas fronteiras fez com que,
durante a Administração Bush, não houvesse melhorias nas relações bilaterais.
Perante os desafios da guerra global contra o terrorismo e o novo con-
texto no Médio Oriente, a política de dissuasão, promovida pelo Presidente
Khatami, tinha ser agora cuidadosamente calibrada com uma cooperação
pragmática com Washington. No entanto, o discurso do Estado da Nação,
do Presidente George W. Bush, em Janeiro de 2002, contrariou as aspira-
ções de uma relação mais próxima, ao incluir o Irão no «eixo do mal». Até
2005, quando o Irão elegeu Mahmoud Ahmadinejad como novo Presidente,
as preocupações iranianas centraram-se em três grandes questões: manter
uma política de envolvimento construtivo na estabilização e reconstrução
do Afeganistão; procurar que os seus interesses estivessem representados na
nova estrutura política iraquiana; e assegurar que os dois princípios basilares
da sua política externa (garantir segurança interna e estabilidade regional)
eram salvaguardados. É nesta óptica que o desenvolvimento do programa
nuclear iraniano deve ser entendido, como uma forma de compensar o
isolamento internacional e regional e de assegurar que a sua política de
independência e auto-suficiência são mantidas.

Liderança regional: o período reaccionário liderado por Ahmadinejad

Apesar das importantes aberturas de Khatami ao mundo, no final dos seus


dois mandatos, o Irão encontrava-se numa situação de grande fragilidade.
A sobrevivência do regime estava sob ameaça directa da super-potência
norte-americana, agora dedicada a combater a proliferação de armamentos
nucleares através da promoção da democracia, e o seu papel regional estava
gravemente debilitado com a presença reforçada do exército norte-americano
331
no Iraque e no Afeganistão. A chegada de uma nova elite ao poder serviu
para rever as prioridades da política externa iraniana. Os representantes
da Nova Direita, conservadores reaccionários liderados por Ahmadinejad,
subiram ao poder com as eleições parlamentares de 2004 e presidenciais
de 2005, apoiados pelas franjas mais conservadoras da elite clerical, pelos
Guardiães da Revolução, em especial pela milícia paramilitar Basij, e, em
última análise, pelo Líder Supremo Khamenei.
Esta era a geração dos veteranos da guerra Irão-Iraque, devotos do Islão
e dos ideais da revolução, promovidos por Khomeini. Na sua mensagem
doméstica enalteceram a redistribuição de riqueza e a justiça social e prome-
teram uma era de prosperidade e equidade. Prometeram também o regresso
às origens da revolução, denunciando os anteriores Presidentes como tendo
corrompido o ideal de Khomeini e a presença de «inimigos internos» ao
regime, que serviram de legitimação às suas políticas de terrorismo e violên-
cia contra os opositores políticos (Arjomand, 2009: 149-156; Takeyh, 2009:
223-227). Inaugurava-se assim um novo período, de delapidação do carácter
democrático dos processos políticos no Irão, com o recurso às milícias Basij,
para cometer fraude eleitoral, nas eleições presidenciais de 2005 e, como ficou
claro, depois novamente em 2009 (Arjomand, 2009: 151; 165-171). Em termos
da sua política externa, os novos líderes promoveram uma política baseada
nos ideais islâmicos, de forte vertente nacionalista, que identificava os EUA
como a potência opressora do mundo islâmico. Esta identificação entre mu-
çulmanos permitiu que Ahmadinejad conseguisse, com algum sucesso, ligar
a segurança iraniana, incluindo o desenvolvimento do seu programa nuclear,
à segurança regional (Barzegar, 2010: 184). Para isso, manteve activa a tradi-
cional política de alianças, reforçando os laços com a Síria, o Hezbollah e o
Hamas, promoveu uma retórica anti-Israelita feroz e fez do programa nuclear
iraniano o símbolo da opressão dos EUA ao mundo islâmico.
O programa nuclear tem sido a principal questão na política externa
da RII, durante os mandatos de Ahmadinejad, embora as origens do sonho
nuclear iraniano remontem ao período do Xá, com apoio directo dos EUA
e das potências europeias (Kibaroglu, 2006). A decisão de reactivar o pro-
grama nuclear prendeu-se, principalmente, com a experiência trágica dos
iranianos durante a guerra com o Iraque. Nesse período consolidou-se a
332
noção de auto-suficiência em termos de segurança (que a opção nuclear
assegura) e a percepção de que o uso indiscriminado de agentes químicos
e bacteriológicos, pelo regime de Saddam, tinha sido aceite pela comuni-
dade internacional e, em última instância, tinha forçado o Irão a assinar
o armistício (Takeyh, 2009: 244-245). Durante o final da década de 1980,
Rafsanjani conduziu uma série de contactos, no Paquistão, Argentina e com
A. Q. Khan do Paquistão, com vista a adquirir tecnologia nuclear, que os
EUA e os parceiros europeus recusavam fornecer. Khatami continuou essa
política e abordou a China e a Rússia, tendo conseguido um acordo com
Moscovo para construir o reactor nuclear de Bushehr. 7 No final de década
de 1990, verificava-se um novo ímpeto no desenvolvimento do programa
nuclear, em parte apoiado em sectores da elite iraniana com interesses
directos nesta área. O resultado deste novo impulso tornou-se público, em
2002, quando foi denunciada a existência de instalações secretas em Natanz
e Arak, que não tinham sido divulgadas à Agência Internacional de Energia
Atómica (AIEA). Iniciou-se então o processo de negociações entre os líderes
iranianos, a AIEA, os EUA e os parceiros europeus.
Relativamente ao programa nuclear e ao seu impacto na política externa
iraniana, iremos centrar-nos em duas questões: a importância dos arranjos
internos de poder na postura da RII nas negociações com os parceiros
internacionais; e os potenciais impactos que um Irão nuclear terá no con-
texto regional do Médio Oriente e nas relações com os EUA. A subida ao
poder dos reaccionários, em 2005, veio alterar a estratégia que Kahatami
e Khamenei tinham delineado e cujo principal objectivo era manter o pro-
grama nuclear, evitando sanções do Conselho de Segurança das Nações
Unidas (CSNU) (Arjomand, 2009: 202). Esta estratégia tinha trazido alguns
resultados positivos, nomeadamente a assinatura do Acordo de Paris, em
2004, embora a falta de apoio dos EUA à iniciativa franco-anglo-germânica

7 Para uma perspectiva completa das ambições nucleares iranianas ver Chubin (2006).
acabasse por se traduzir num triunfo para os reaccionários, que viam o
acordo como uma humilhação para a RII. Efectivamente, Ahmadinejad usou
o programa nuclear iraniano como arma de propaganda e de promoção de
333
orgulho nacional e do mundo Islâmico (Ehteshami and Zweiri, 2007: 98).
Por seu lado, o Líder Supremo, tentou manter a via do diálogo aberta com
os europeus e, em 2006, os cinco membros permanentes do CSNU, mais a
Alemanha (5+1) voltaram à mesa das negociações com o Irão. Embora o
acordo proposto não tenha sido rejeitado pelo Presidente iraniano, a RII
falhou os prazos estabelecidos e acabou por sofrer novas sanções. Durante
2007 e 2008, Ahmadinejad continuou o seu processo de afirmação interna,
por vezes desafiando directamente a autoridade do Líder Supremo. Em 2008,
Khamenei procurou novamente persuadir o CSNU da sua posição central
na definição da política externa da RII e do desejo do país de continuar
negociações (Arjomand, 2009: 202-203). No entanto, com o aproximar das
eleições presidenciais de 2009 e a contestação que se seguiu, foi o cartel
liderado pelos Guardiães da Revolução que beneficiou da fragilização da
posição do Presidente Ahmadinejad e do Líder Supremo, pondo fim a qual-
quer esperança de negociações. Finalmente, em Junho de 2010, o CSNU
aprovou um novo pacote de sanções ao Irão.
A segunda questão prende-se com as relações de um possível Irão nuclear
com o Médio Oriente e os EUA. Com a saída do poder dos Talibã, no Afe-
ganistão e de Saddam Hussein, no Iraque, o Irão é hoje um actor central no
Médio Oriente. Outras potências regionais como a Arábia Saudita, o Egipto
ou mesmo a Turquia poderão sentir-se tentadas a iniciar a uma corrida aos
armamentos, incluindo armas nucleares, para travar a hegemonia regional
iraniana. Sem dúvida, os equilíbrios de poder na região seriam profunda-
mente afectados por essa possibilidade (Kaye and Wehrey, 2007: 111). Para
o estado de Israel, a possibilidade de o Irão adquirir armas nucleares, aliada
à retórica anti-semita e anti-israelita do Presidente Ahmadinejad, é um risco
sem precedentes à sua segurança (Ehteshami and Zweiri, 2007: 109). Daí
que os líderes israelitas mantenham a possibilidade de um ataque preventivo
sobre o Irão, caso a diplomacia não produza resultados. Para os países do
Golfo Pérsico, um confronto nuclear na região teria consequências catastró-
ficas. Independentemente da forma como a região se adapta à possibilidade
nuclear, a presença incontornável do Irão na política regional, incluindo
a sua presença reforçada no Iraque, na Palestina, por via do Hamas, e no
Líbano, após a vitória do Hezbollah sobre Israel, em 2006, deixa adivinhar
334
um processo de afirmação internacional que os EUA terão de reconhecer.
A abertura do Presidente Obama à normalização de relações deverá, pois,
ser entendida como um passo importante nesse reconhecimento, embora
se adivinhem muitas dificuldades.

Conclusões

A política externa iraniana tem sido construída com base em dois pilares
essenciais: pragmatismo e ideologia. Isso traduziu-se, inicialmente, numa
tensão estruturante entre a Monarquia e o Islão, que a revolução de 1979
fez pender em favor do último. Tal como a maior parte dos estados, o Irão
procura salvaguardar o que considera serem os seus interesses nacionais,
tendo em conta um forte sentimento nacionalista persa. Isto tem-se tradu-
zido numa política externa flexível e em constante refluxo. A percepção
de estar inserido num contexto regional e internacional desfavorável, tem
favorecido uma política de alianças e acomodação, quer com os vizinhos
do Golfo Pérsico, quer com os EUA. No entanto, as estruturas internas de
poder e a clara dimensão ideológica trazida pela revolução islâmica têm
permitido que uma visão conservadora e reaccionária tenha tido uma pre-
sença constante na política externa iraniana, antagonizando os EUA e Israel.
As forças pragmáticas e reformadoras têm encontrado grandes dificuldades
para justificar uma abordagem diferente, tendo em conta a profunda idea-
lização do papel da RII no mundo.
Questões para análise
Quais as principais razões que conduziram à Revolução Islâmica de 1979, no
Irão?
335
Que linhas centrais guiam a política externa iraniana no período pós-
‑revolucionário?
De que forma as dinâmicas de política interna afectam as opções de política
externa no Irão? Dê exemplos ilustrativos.
Quais os motivos que levaram a RII a iniciar o seu programa nuclear? E de
que forma isso afectou as suas relações com os EUA?
Qual a abordagem da RII para a segurança no Golfo Pérsico e Médio Oriente?
E de que forma é ilustrativa dos princípios basilares da sua política externa?

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(Página deixada propositadamente em branco)
Carmen Amado Mendes 1

339

C a p í t u l o 14

Re p ú b l i c a Po p u l a r d a C h i n a

Este capítulo traça as principais linhas de política externa da República


Popular da China (RPC). Após um breve enquadramento cultural, o texto
segue um alinhamento histórico desde a fundação da RPC em 1949 à actu-
alidade, reflectindo sobre as alterações provocadas por factores endógenos
e exógenos no processo de tomada de decisão. A análise dos factores en-
dógenos descodifica a concepção tradicional de Relações Internacionais do
Império do Meio, os antecedentes históricos com impacto na formulação da
política externa contemporânea, o papel desempenhado nesta formulação
pelas quatro gerações de líderes desde a fundação da RPC até à liderança
actual, a caracterização do interesse nacional chinês e, por fim, a importância
das tendências políticas do actual momento na tomada de decisão. Entre
os factores exógenos com um impacto relevante na decisão destacam-se
as dinâmicas de competição e cooperação e as relações de reciprocidade
estabelecidas entre a China e outros actores do sistema internacional.

1 Artigo elaborado no âmbito do projecto «Uma Análise da Fórmula ‘Um País, Dois Sistemas’: O
Papel de Macau nas Relações da China com a UE e os Países de Língua Portuguesa», Financiado pela
Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCOMP-01-0124-FEDER-009198).
Factores endógenos na formulação da política externa chinesa
A concepção tradicional de Relações Internacionais

340
Entre os factores endógenos que influenciam o processo de tomada de
decisão em política externa, devemos destacar o contexto interno, ou seja,
aspectos políticos, económicos, sociais, culturais e históricos que moldam
as percepções dos líderes relativamente à situação e, consequentemente,
enquadram a selecção da que é considerada a melhor abordagem. No caso
chinês, a cultura e a história continuam a influenciar fortemente a postura
adoptada pelos líderes na cena internacional. As concepções tradicionais
chinesas da ordem internacional são fundamentais para entender a política
externa da China moderna.
Como é que os chineses entendiam as Relações Internacionais antes da
chegada do Ocidente? Antes do século XIX não havia caracteres em chinês
para as palavras «internacional», «raça», «país» – facto que só se alterou com
a entrada de potências estrangeiras na China. Os caracteres da palavra «Chi-
na», ou – consoante usarmos a escrita simplificada ou tradicional
ainda usada em Taiwan, Hong Kong e Macau (lê-se «Zhongguo») – significam
literalmente «centro» e «império/nação», ou seja, Império do Meio. Havia um
desinteresse profundo em relação aos outros «países», ao «internacional» e
às outras «raças». A percepção de supremacia, para além de estar presente
nesta assunção da centralidade, reflecte-se na imposição de um sistema de
vassalagem em que os países interessados no relacionamento com a China
eram obrigados a pagar tributo ao Imperador chinês e os seus embaixadores
e chefes militares tinham de lhe prestar homenagem através do kow-tow,
uma prostração de corpo inteiro em que a testa tocava três vezes no chão,
simbolizando a submissão absoluta. Esta cerimónia tornou-se o símbolo do
choque entre as visões opostas que europeus e chineses tinham do mundo.
Para um europeu, tal prostração significava que um embaixador (logo, o
«seu» rei) seria vassalo do Imperador chinês, gerando mal-entendidos bem
conhecidos na história, nomeadamente na corte britânica. Em suma, o sistema
tributário, através do qual as missões apenas podiam entrar no Império do
Meio nos termos definidos por Pequim, mostra, claramente, o desinteresse
chinês no relacionamento com o exterior.
Esta ideia da superioridade chinesa no plano inter nacional foi
reforçada pelos ideais confucionistas de obediência, estratificação
social, e harmonia, cujas relações uni-direccionais de poder e con-
341
cepções hier árquicas são tr anspostas par a o plano inter nacional.
Segundo Confúcio, a sociedade chinesa está dividida em camadas: o
Imperador está no topo, seguido dos académicos e funcionários da
administração (cujo estatuto advém da aprovação nos exames, no ideal
da meritocracia estabelecida por Confúcio), dos camponeses (a quem
Confúcio atribui uma importância vital, por alimentarem a população),
artesãos e, por fim, dos soldados (mal vistos por um filósofo que cri-
tica o recurso à violência) e comerciantes (percepcionados como uma
classe imprópria por deter o dinheiro do povo). De forma análoga, a
sociedade internacional está hierarquizada: o Império do Meio, que se
considera a «única cultura», está no topo, e engloba as nações vizinhas –
Coreia, Vietname, Japão e restantes países asiáticos – que, estando perto,
absorvem as ideias chinesas e conseguem ser mais civilizados, ao con-
trário dos europeus e africanos que são considerados bárbaros.
Que ilações nos permite tirar esta concepção tradicional das Relações
Internacionais? Em primeiro lugar, ao contrário das ordens ocidentais ac-
tuais, que reflectem uma percepção da cena internacional como palco da
competição entre Estados iguais, à imagem dos ideais de construção de
sociedades igualitárias, a cultura chinesa não tem enraizadas concepções
de igualdade mas sim de hierarquia, quer no plano interno – ao nível da
família, da sociedade e do Estado – quer externo, no relacionamento com
os restantes actores do sistema. Isto vai servir de base para, mais à frente,
argumentarmos que as actuais declarações chinesas sobre a necessidade
de assegurar a igualdade e democracia nas Relações Internacionais não
passam de retórica que cairia por terra se Pequim conseguisse atingir a tão
desejada hegemonia e voltasse a ser o Império do Meio. Esta retórica deu os
primeiros passos com Mao Zedong, que refutou os princípios hierárquicos
confucionistas em troca do igualitarismo, não só em termos de construção
da sociedade ideal mas também no plano internacional; mas apesar de
ser usado nos discursos não reflecte, na sua essência, o pensamento dos
actuais líderes.
Em segundo lugar, o sistema de vassalagem revela o desinteresse chinês
na aproximação a outros povos e o sentimento de superioridade de então.
Este sistema funcionou durante bastante tempo e permitiu a manutenção da
342
paz; o que é notável, se compararmos com a situação na Europa da época.
Estando longe dos seus vizinhos e vendo a sua superioridade respeitada,
o Império não temia ameaças à civilização chinesa e não sofria invasões
(o que explica, em parte, a sua incapacidade para responder à invasão
europeia no século XIX) e não mostra interesse em recorrer à guerra. Isto é
revelado nas descrições dos primeiros comentadores europeus que visitaram
a China: Marco Polo, um visitante controverso (há quem diga que os seus
escritos são baseados em leituras e não nos 17 anos que diz que viveu na
China, no séc. XIII ) caracterizava o Império do Meio como uma «ditadura,
tamanho colossal, rica em comércio, altamente urbanizada, inventiva em
negócios comerciais, fraca nos modos de guerra» (Spence, 1998: 3). Mesmo
nos séculos XVI-XVII manteve-se a percepção de que o Império do Meio era
muito fraco em termos militares, uma vez que tinha uma política de não-
agressão em relação aos seus vizinhos. Estas análises servem hoje de base
aos argumentos de que a China não é um poder bélico mas sim pacifista e
que os seus slogans de «ascensão pacífica» e «paz e desenvolvimento» são
genuínos.
Em terceiro lugar, o facto do Império do Meio permitir aproximações ex-
ternas (embora segundo as suas regras) mas não mostrar particular interesse
nelas, partilhando os conhecimentos da civilização chinesa com os povos
vizinhos e com os «bárbaros» sem no entanto impor esta partilha, revela a
ausência de crença missionária e obsessão em espalhar a civilização. Isto
contrasta fortemente com a cultura ocidental, apologista das missões, ou
seja, na imposição da sua forma de pensar aos outros povos, em termos
religiosos (Cristianismo), sociais (Direitos Humanos), políticos (Democra-
cia) e económicos (Liberalismo). Mais à frente veremos que este contraste
é hoje visível no choque entre o chamado «Consenso de Washington» e o
«Consenso de Pequim»: a postura arrogante de que o Ocidente sabe melhor
como é que as outras civilizações se devem governar é posta em causa
por uma abordagem que não exige pré-condições comportamentais para o
estabelecimento de relações de interesse mútuo.
Antecedentes históricos

Em relação aos aspectos históricos que mais influenciam o contexto de


343
tomada de decisão na política externa chinesa, destaca-se a vitória da Grã-
Bretanha na Guerra do Ópio de 1840 e a assinatura do Tratado de Nanquim,
que lhe cedeu a colónia de Hong Kong, abrindo o precedente à ocupação
da China por potências estrangeiras e à imposição de direitos de extraterri-
torialidade (aplicação da lei dos países ocupantes a crimes cometidos pelos
seus nacionais na China). Aos tratados que regem essa ocupação, naquele
que o povo chinês considera ter sido o «Século de Humilhações», os líderes
da China chamam «Tratados Desiguais», por eles considerados inválidos à luz
do direito internacional, uma vez que foram impostos por potências ocupan-
tes. Este período histórico, que à partida parece longínquo do contexto de
tomada de decisão actual, não foi apagado da memória colectiva, avivada
em momentos críticos de fragilidade chinesa perante os restantes actores
do sistema internacional; ou seja, tudo o que envolva «perder a face», como
foi o caso da reacção internacional à repressão chinesa das manifestações
tibetanas em vésperas dos Jogos Olímpicos de 2008.
«Face» é prestígio, reputação atingida através da prosperidade, do sucesso
e da ostentação. Este conceito aplica-se quer ao indivíduo em relação à
sociedade civil – uma pessoa tem «face» se a sociedade confia na sua inte-
gridade moral – quer a um país em relação à sociedade internacional. Pode
ganhar-se «face», escolhendo cuidadosamente o ambiente e o contexto em
que se vai desenrolar a interacção, tendo cuidado com as aparências ou
adoptando comportamentos específicos de forma a transmitir uma imagem
positiva e um estatuto elevado durante os momentos de relacionamento
com os outros. Mas também se pode perder «face», quer por culpa própria,
caso se adoptem comportamentos desadequados, quer por intervenção de
terceiros (ver Bond, 2008: 225 e 246). Os exemplos históricos acima referi-
dos estão registados na memória chinesa como insultuosos e humilhantes,
resultando numa perda de «face» motivada pela arrogância estrangeira. Estes
sentimentos de injustiça e vitimização ainda hoje condicionam fortemente
a formulação da política externa chinesa, não só em relação ao Ocidente,
mas também em relação ao Japão que, ao ser uma potência asiática, ainda
traumatizou mais a China com a sua demonstração de superioridade eviden-
ciada na brutalidade das invasões perpetradas em território chinês durante
a II Guerra Mundial: a ausência de um sinal claro de arrependimento por
344
parte dos líderes japoneses tem contribuído fortemente para exacerbar
atitudes nacionalistas no vizinho asiático.
Para além do desejo de vingança das opressões estrangeiras, a herança
histórica também deixou o seu rasto na obsessão colectiva pela restauração
da integridade territorial, a que a política de reunificação nacional dá voz.
A preocupação, para além de manter regiões com tendências separatistas
como é o caso do Tibete e do Xinjiang, passa pela recuperação dos territó-
rios «perdidos». A forma entusiasta como o povo chinês celebrou o regresso
de Hong Kong e Macau, em 1997 e 1999, e o aproveitamento feito pelas
autoridades centrais que incentivaram o despertar do nacionalismo com
base em sentimentos anti-coloniais, reflectem essas duas dinâmicas: por um
lado, a libertação do imperialismo; por outro, o sonho de um país forte e
unido. Estas dinâmicas exigem também a recuperação das pequenas ilhotas
do Mar do Sul da China (Spratly) e no Pacífico (Diaoyutai), cujas águas são
ricas em recursos energéticos, mas principalmente da ilha de Taiwan. Como
é que Taiwan se tornou o corolário da política de reunificação nacional?
Importa, mais uma vez, recordar a história.
A República da China, fundada em 1912 por Sun Yat-sen, dirigente do
Partido Nacionalista (Kuomintang), que levou a que o último Imperador,
Pu Yi, abdicasse, foi abanada pela já referida invasão japonesa em 1937.
A partir da capitulação do Japão em 1945, a guerra civil entre comunistas
e nacionalistas ganhou novo fôlego e terminou em 1949 com a vitória de
Mao Zedong sobre Chiang Kai-shek, sucessor de Sun Yat-sen na liderança
do Kuomintang. A 1 de Outubro desse ano, Mao proclamou a República
Popular da China; Chiang fugiu com o Kuomintang e criou o governo da
República da China, no exílio, em Taiwan, ilha recentemente libertada pelos
invasores japoneses. Durante o início da Guerra Fria, a República da China
em Taiwan foi reconhecida pela Organização das Nações Unidas (ONU)
como o único governo legítimo da China mas, com os votos das novas na-
ções independentes africanas cujos movimentos de libertação tinham sido
apoiados por Pequim e a evolução dos interesses do bloco ocidental, o
assento da China foi transferido para Pequim. O apoio norte-americano a
Taipé, no entanto, manteve-se inalterável, tendo um impacto evidente nas
relações bilaterais entre Washington e Pequim.
345
Do ponto de vista chinês, Taiwan é uma província chinesa «renegada»,
onde se refugiaram os derrotados na guerra civil, cujos descendentes não
têm qualquer direito em ocupar um território que pertence, de forma le-
gítima, à China continental. O facto do conflito no Estreito de Taiwan ser
percepcionado como uma questão interna leva os líderes chineses a recusar
qualquer interferência externa. Isto tem um impacto inegável na política
externa chinesa, não só no que diz respeito às relações com os Estados
Unidos da América e com o Japão, que possui um poderosíssimo lobby
pró-Taiwan, mas também com o resto do mundo, particularmente com os
países que mantêm relações diplomáticas com Taipé. A questão de Taiwan
tem uma importância simbólica inestimável em termos de identidade na-
cional, pois tem sido usada pelas quatro gerações de líderes (ver quadro
1) para reforçar o sentimento nacionalista e de pertença colectiva. Assim, o
seu impacto na contextualização no processo de tomada de decisão chinês
não deve, jamais, ser menosprezado.
Para uma civilização em que a noção de tempo é bem diferente da oci-
dental, a memória histórica não é curta e a identidade do povo constrói-se
com raízes num passado por vezes longínquo, como revelam as manifes-
tações de orgulho nacionalista e a ênfase posta na política de reunificação
nacional. Estes factores endógenos explicam a influência do contexto interno
na percepção dos factores exógenos e nas reacções que eles provocam. As
históricas palavras de Mao na praça de Tiananmen aquando da fundação
da RPC, «a China levantou-se!», ecoam desde então nas cabeças de todos os
chineses: o Século das Humilhações seria vingado a seu tempo.

O papel dos líderes

Ainda hoje recordado como o «Libertador» da China (a sua imagem num


cartaz gigante pesa sobre a simbólica praça de Tiananmen, no coração
de Pequim, e o mausoléu com o seu corpo é aí diariamente visitado),
Mao Zedong conseguiu, de facto, unificar o país. No entanto, abriu um
novo período de instabilidade, ao extravasar o ódio profundo que cul-
tivou contra os «imperialistas», que tinham repartido o Império do Meio,
346
a todos os «elementos contra-revolucionários», aplicando a «purificação
moral» ao país inteiro, incluindo a vários dirigentes políticos que foram
perseguidos. A partir de 1966, os Guardas Vermelhos da Revolução Cul-
tural criam um clima de terror e de caos em Pequim que só termina com
a morte de Mao em 1976. Após dois anos de convulsões e disputas de
liderança, em 1978 Deng Xiaoping, que passara seis anos em «reedu-
cação» condenado a trabalho manual, foi restabelecido como Chefe do
Estado-Maior do Exército Popular de Libertação e abre uma nova página
na história da China. Apelando à modernização do país e às reformas,
o «pequeno timoneiro» autoriza os camponeses a vender uma parte da
sua produção no mercado livre, inicia a descolectivização da agricultu-
ra, cria as famosas Zonas Económicas Especiais, substitui as subvenções
do Estado por empréstimos bancários e autoriza as cidades costeiras a
atrair investimento estrangeiro. Mas, apesar de criar um sistema econó-
mico socialista de mercado, divulgando o slogan «enriquecer é glorioso!»,
Deng não aceita que a modernização política preceda a económica, ao
contrário de perestroika soviética. Em Junho de 1989, não se opõe a que
o Primeiro Ministro Li Peng afaste os líderes mais reformistas e manda
avançar os tanques do Exército contra os manifestantes que protestavam
na praça de Tiananmen contra os efeitos destabilizadores das reformas
económicas e contra a corrupção.
De que forma é que estes dois líderes decisivos na história da RPC mar-
caram a sua política externa? Mao manteve uma atitude hostil em relação ao
exterior, combinando-a com o recurso ao modelo soviético; desinteressado
pela política externa, delegou esta pasta no Primeiro Ministro Zhou Enlai.
Deng, num contexto de equilíbrio da máquina burocrática entre tendên-
cias conservadoras e radicais, afastou os elementos das Forças Armadas
das posições centrais de decisão política. Em relação ao mundo exterior, o
dinamizador das reformas económicas mudou gradualmente a tradicional
abordagem da China, fechada sobre si mesma, para uma abertura progressiva
ao exterior. Esta postura foi intensificada pelos líderes da terceira geração
(ver quadro 1) em que Jiang Zemin, líder menos carismático, manteve a
política do seu antecessor. Nesta linha de continuidade, a política externa
conduzida pelo actual Presidente Hu Jintao é formulada em função da política
347
económica da RPC, onde a atracção de Investimento Directo Estrangeiro, o
acesso a recursos naturais e a procura de mercados para escoar a produ-
ção, são as prioridades, num modelo económico assente nas exportações
e, consequentemente, dependente do exterior.

Quadro 1. Gerações de Líderes da República Popular da China

1ª – Líder: Mao Zedong.


Datas: 1949 – Instaura a República Popular da China;
1976 – Morre.
2ª – Líder: Deng Xiaoping.
Datas: 1978 – Lança reformas e abertura ao exterior;
1992 – Resigna aos cargos no Partido.
3ª – Líder: Jiang Zemin.
Datas: 1992 – Secretário-geral do Partido;
2002 – Substituído por Hu Jintao.
4ª – Líder: Hu Jintao.
Datas: 2002 – Secretário-geral do Partido;
2012 – Novo Secretário-geral será nomeado.

Neste contexto, importa analisar a importância, na formulação da


política externa chinesa, da elite política, ou seja, dos vários elementos
que compõem determinada geração de líderes, para além do Presidente.
Numa notória promiscuidade entre Estado, Partido Comunista Chinês
(PCC) e Exército, as mesmas personalidades ocupam o topo das três
instituições, dominando o processo de tomada de decisão, tendencial-
mente vertical, salvaguardando o papel dirigente do partido e evitando
o colapso do socialismo. Os indivíduos mais velhos, embora possam não
estar já formalmente em funções, exercem o seu poder num círculo de
decisão paralelo à burocracia estatal, geralmente através de cédulas do
PCC, e são consultados pelos líderes em funções, apoiando a ascensão
na hierarquia do Partido e do Estado de um sucessor. Apesar de terem
sido feitas algumas tentativas para «horizontalizar» o processo de tomada
de decisão, nomeadamente por Deng, ao afastar os militares de carreira
de cargos políticos, a geração de Hu ainda segue a tradicional lógica de
bastidores do politburo. Assim, podemos questionar-nos sobre o peso da
personalidade do líder por oposição à burocracia ou mesmo à ideolo-
348
gia na orquestração da política externa chinesa. Se alguns líderes foram
particularmente carismáticos, como Mao e Deng, a verdade é que foram
sempre fiéis à base ideológica da decisão. Ainda hoje, não obstante a
evolução visível nas acções externas chinesas, é inegável a preocupação
com a formulação do discurso e dos slogans, de forma a colar argumentos
marxistas a um socialismo «com características chinesas» (ver discursos e
princípios do quadro 2 e citações oficiais incluídas neste capítulo).
De referir ainda a existência de três importantes grupos de pressão: mili-
tares, intelectuais e empresários procuram influenciar os líderes chineses na
tomada de decisão. Os militares foram obrigados a assumir um papel mais
passivo na sequência de Tiananmen e das já referidas medidas adoptadas
por Deng mas, sendo a modernização militar e o reforço da capacidade
defensiva e ofensiva chinesa uma prioridade nacional, esta tendência está
a alterar-se. Quanto aos intelectuais, assumem tendencialmente um papel
consultivo da elite política, visível no enquadramento que lhes é dado pela
Academia Chinesa de Ciências Sociais, um think tank do Governo chinês
encarregue de elaborar relatórios que apoiam a tomada de decisão. No en-
tanto, à medida que o sistema se vai abrindo, alguns vão saindo da sombra
da elite política e ganham autonomia e muitos dos afastados em Tiananmen
começam a regressar à China. Por fim, paralelamente à emergência econó-
mica da China, o grupo de pressão dos empresários, defendendo interesses
comerciais individuais e privados, tem ganho força.

O interesse nacional

Outro dos factores endógenos presente aquando da tomada de decisão


em política externa é o interesse nacional, que reflecte os grandes desígnios
a salvaguardar para garantir a sobrevivência da nação, justificando, por isso,
o empenho de todos os recursos; esse interesse reflecte-se na formulação
de objectivos vitais/permanentes e conjunturais, de acordo com as capaci-
dades reais do Estado. Ao funcionar como o garante da unidade entre os
membros de uma comunidade, o interesse nacional é, muitas vezes, dis-
torcido por regimes ditatoriais. As autoridades chinesas, para defender um
349
regime de partido único e evitar a fragmentação territorial, propagandeiam
a ausência de alternativa ao Partido Comunista Chinês, cuja manutenção no
poder continua a ser, desde 1949, um objectivo vital. A forma como este
objectivo é atingido tem variado de geração para geração de líderes. Se Mao
Zedong confiava no marxismo-leninismo enquanto ideologia aglutinadora,
a geração de Hu Jintao recorre muito mais ao nacionalismo como fonte de
legitimidade do regime. Ao explorar os sentimentos patrióticos de pertença
à nação de origem, o nacionalismo tem raízes históricas. No caso chinês,
estas raízes remontam ao Século das Humilhações e decorrentes sentimentos
de vitimização, conforme já foi referido, e assumem uma vertente ideoló-
gica para garantir a estabilidade política que tem, então, sido um objectivo
permanente da RPC, reflectindo-se, na actualidade, numa política externa
assertiva relativamente ao Japão e numa inflexibilidade relativamente à
política de reunificação nacional, como já foi referido.
Na conjuntura actual, o interesse nacional chinês passa também por ga-
rantir a manutenção dos níveis de crescimento económico que, por sua vez,
têm ajudado a alimentar o nacionalismo e, consequentemente, a legitimar
a presença do PCC no poder. Isto reflecte-se em dois grandes objectivos
conjunturais: assegurar a procura de recursos naturais, objectivo esse que
resulta numa política externa arrojada com presença em vários pontos do
globo; e a busca de estabilidade regional, essencial à manutenção desse
crescimento, reflectindo-se numa postura muito pragmática da China em
relação aos seus vizinhos.

O momento

Para concluir, qualquer análise dos factores endógenos na formulação


da política externa de um país deve ter em conta o momento específico
em que ela é formulada. No momento actual, são várias as tendências que
influenciam o processo de tomada de decisão chinês. Em primeiro lugar,
a crise civilizacional, com início no «Século de Humilhações», agravou-se
a partir de 1989 com o massacre de Tiananmen e a perda de credibilida-
de do comunismo. A substituição do Confucionismo pelos princípios do
350
marxismo‑leninismo enquanto factor ideológico aglutinador da sociedade
revelar-se-ia dramática com a dissolução da ex-URSS (União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas). Este vazio espiritual do povo chinês tem vindo a ser
preenchido pela actual geração de líderes com o recurso ao nacionalismo.
Por este motivo, a questão de Taiwan assume uma importância inestimável
do ponto de vista identitário, influenciando de forma constante as relações
da RPC com todos os países que dalguma forma apoiam Taipé, incluindo o
Japão e os EUA, e estando presente em qualquer negociação que a China faça,
por exemplo com a União Europeia (qualquer actor que queira relacionar-se
com Pequim deve reiterar a política da «China única», reconhecendo a RPC
como a sua legítima representante). Em terceiro lugar, o fim da URSS e da
luta ideológica sino-soviética alterou o relacionamento com a Rússia, com
quem a China passou a estabelecer dinâmicas de rivalidade mas também de
cooperação. Em quarto lugar, a relação da China com a economia mundial
alterou-se radicalmente, passando de uma postura desinteressada e fechada
a um crescente interesse, envolvimento e dependência. Por fim, os líderes
chineses recorrem cada vez mais a uma nova diplomacia multilateral, par-
ticipando em organizações regionais e internacionais.

Factores exógenos na formulação da política externa chinesa


Dinâmicas de competição vs. cooperação

Apresentados os factores endógenos, vamos agora analisar os elemen-


tos externos que influenciam o processo de decisão chinês. Em primeiro
lugar, há que ter em conta as dinâmicas de competição e cooperação
observáveis no palco das Relações Internacionais pois são elas que, em
conjugação com os já observados factores endógenos, explicam que a
política externa chinesa seja simultaneamente defensiva, pragmática e
assertiva. Essas dinâmicas resultam, por um lado, dos próprios factores
endógenos que condicionam os outros Estados do sistema internacional,
ou seja, do conflito ou complementaridade entre os vários contextos e
interesses nacionais; e, por outro, das normas vigentes, que definem as
regras do jogo na cena internacional. Os actores que ambicionam atingir ou
351
manter o estatuto de grande potência geralmente procuram que os outros
percepcionem que estão a agir de acordo com essas normas, quando se-
leccionam os instrumentos diplomáticos para atingir os objectivos das suas
políticas externas. No caso chinês, isto só se verifica quando as normas
ocidentais servem os seus próprios interesses; quando isto não acontece,
a China avança com normas «com características chinesas», mostrando que
os factores endógenos têm um peso muito maior na formulação da sua
política externa do que os factores exógenos.
Um dos instrumentos diplomáticos que se desenvolveu na segunda
metade do século passado e está cada vez mais em voga é o multilate-
ralismo, que privilegia o processo de consulta entre os vários actores
de determinado espaço geopolítico. Vimos, na secção anterior, que o
Império do Meio não tinha tradição neste processo de consulta, imple-
mentando um sistema tributário marcadamente hierárquico revelador do
desinteresse no relacionamento com o exterior. Os primeiros anos da
República Popular da China também não foram favoráveis ao estabele-
cimento de relações externas, apesar de Mao Zedong dar os primeiros
passos em direcção ao multilateralismo na sequência da ligação política
que desenvolveu com os países em desenvolvimento. É a aceitação da
globalização e o posicionamento da China como uma nação win-win
que vêm dar o grande impulso: quando o seu bem-estar interno passou
a depender do exterior, devido à implementação de um modelo econó-
mico dependente das exportações, a diplomacia chinesa começou a ser
mais visível, sendo hoje em dia muito activa, quer no plano bilateral
quer multilateral.
A análise da história chinesa sugere-nos, então, que o multilateralismo
não seria actualmente a forma preferencial de relacionamento se a China
não estivesse tão agradada com a globalização e se mantivesse a posição
hegemónica em que se encontrava no passado. A existência de uma única
super-potência é, provavelmente, o factor exógeno que mais influencia a
definição da política externa chinesa. Não podendo fazer face à hegemonia
norte-americana, os líderes chineses optaram por tentar esbater essa hege-
monia contrapondo um mundo multipolar como garante da paz mundial:

352
The multipolarization process may be zigzag, protracted and full of
struggles, but this is a historical trend independent of human will. It is
in conformity with the common aspirations and interests of the majority
of countries and conducive to world peace and security. Our efforts to
promote the development of the world towards multipolarization are not
targeted at any particular country, nor are they aimed at re-staging the old
play of contention for hegemony in history. Rather, these efforts are made
to boost the democratization of international relations, help the various
forces in the world, on the basis of equality and mutual benefit, enhance
coordination and dialogue, refrain from confrontation and preserve jointly
world peace, stability and development. (RPC 2003a)

Ora a melhor forma de chegar a esta multipolaridade é reforçando o


papel das instâncias multilaterais, onde os vários actores internacionais são
ouvidos e podem evitar decisões unilaterais. Assim, o recurso ao multilate-
ralismo surge, não por haver um interesse genuíno chinês de agir de acordo
com as normas em vigor mas motivado pelo interesse nacional de combater
a hegemonia de uma potência mais forte. Consequentemente, parece-nos
que se algum dia a RPC substituir os EUA nesse papel de super-potência, o
multilateralismo e o ideal de um mundo multipolar podem progressivamente
esvair-se da retórica chinesa.
Evidenciando a coerência entre discurso e prática, Pequim não se limita a
apelar ao reforço das instâncias multilaterais a nível mundial, como a Orga-
nização da Nações Unidas e a Organização Mundial do Comércio, e dá um
impulso significativo à criação de organismos de dimensão mais reduzida
em áreas que considera de importância estratégica. É neste âmbito que se
insere a dinamização chinesa de fora trans-regionais com países africanos:
o Fórum China-África (Forum on China-Africa Cooperation – FOCAC),
criado em 2000, já conta com 50 Estados membros que reúnem de três
em três anos (FOCAC, 2010); e o Fórum para a Cooperação Económica e
Comercial entre a China e os Países de Língua Portuguesa, conhecido por
Fórum Macau por ter o seu secretariado baseado nesta região, criado em
2003 com o objectivo claro de facilitar o relacionamento com um nicho de
países africanos (Fórum Macau, 2003). Na Ásia, a China participa em todas as
353
organizações da Ásia Oriental – Asia-Pacific Economic Cooperation (APEC),
Association of Southeast Asian Nations (ASEAN) Plus Three (China, Japão e
Coreia), ASEAN Regional Forum (ARF), Council for Security Cooperation in
Asia-Pacific (CSCAP) (Godement, 2006: 64) – e na Ásia Central criou em
conjunto com a Rússia, em 2001, a Organização de Cooperação de Xangai
(Shanghai Cooperation Organization – SCO), que tem ainda como membros
o Cazaquistão, Quirgistão, Tadjiquistão e Uzbequistão e como observadores
o Irão, a Mongólia, a Índia e o Paquistão (SCO, 2010).
Uma análise cuidada da participação chinesa nestes organismos, revela
a prática de um «multilateralismo lucrativo» (Holslag, 2006: 11), ou seja,
de satisfazer os interesses da realpolitik através deste instrumento de soft
power – capacidade de influenciar pela persuasão e não pela coerção, ou
seja, todas as actividades que ultrapassam o domínio da segurança, como
sejam a ajuda humanitária, o investimento económico, a cultura e, neste
caso, a diplomacia multilateral (Kurlantzick, 2006: 1). Ao enquadrar o rela-
cionamento no âmbito multilateral, Pequim mostra que respeita o princípio
da igualdade no tratamento, a tal «democracia das relações internacionais»
(ver discurso oficial chinês sobre a multipolaridade supra-citado) que tanto
defende – um conceito que não deixa de surpreender, vindo de um país de
tradição anti-democrática e apologista das hierarquias. Mas os objectivos da
China são bem mais realistas: os fora com países africanos são usados para
consolidar a sua presença em África, revertendo em proveitos políticos e
económicos; e, com a Organização de Cooperação de Xangai, Pequim visa
conter os Estados Unidos na Ásia Central e o fortalecimento da Rússia e da
Índia. Os líderes chineses têm adoptado uma política de grande pragmatismo
no relacionamento com estes vizinhos desenvolvendo, por um lado, laços
de cooperação na contenção da potência americana e, por outro, tentando
impedir a formação de coligações entre eles, numa lógica de competição:
por exemplo, a formação de um bloco indo-russo ou o reforço das relações
entre a Índia e os EUA, que seriam claramente desvantajosas para a China.
Isto mostra o papel que os factores exógenos – existência de uma superpo-
tência e ressurgimento de duas grandes potências –, nas suas dinâmicas de
competição e cooperação, jogam na formulação da política externa chinesa.

354

Relações de reciprocidade

Outro dos factores exógenos que influencia a forma de fazer política


externa são as relações de reciprocidade que se estabelecem entre os vá-
rios actores. A grande preocupação dos líderes chineses em evidenciar esta
reciprocidade é visível na fidelidade aos Cinco Princípios da Coexistência
Pacífica (ver quadro 2) adoptados na década de 1950, de onde ressalta a
ideia de relações mutuamente benéficas (win-win). Na prática, os gover-
nantes chineses exigem aos líderes das outras potências um tratamento de
igual para igual e enquadram as relações com os países do dito «Sul» numa
lógica de reciprocidade. Grande apologista das relações Sul-Sul, a China
considera-se, enquanto maior país em desenvolvimento do mundo, disponível
para ajudar países africanos e latino-americanos rumo ao desenvolvimento.
Porquê este interesse chinês na reciprocidade?

Quadro 2. Os Cinco Princípios da Coexistência Pacífica

1 Respeito mútuo pela soberania e integridade territorial;


2 Não agressão mútua;
3 Não ingerência nos assuntos internos dos outros Estados;
4 Igualdade;
5 Benefício mútuo.

Na verdade, esta retórica do benefício mútuo tem permitido às autoridades


chinesas ganhar apoios em regiões de interesse político e estratégico. Em
primeiro lugar, não devemos esquecer que a maior parte dos países que
têm relações diplomáticas com Taiwan são africanos ou latino-americanos;
consequentemente, Pequim tem tentado limitar a margem de manobra de
Taipé nessas regiões e convencer líderes políticos a mudar o reconhecimen-
to de uma capital para a outra, apesar de esta competição estar de certa
forma a abrandar. Em segundo lugar, estas regiões são fontes importantes
de matérias-primas, essenciais para manter o crescimento económico, que
já vimos ser uma prioridade interna da China, e oferecem novos mercados
para as suas exportações, facto particularmente relevante neste contexto
355
de crise e consequente redução do consumo europeu e norte-americano.
Em terceiro lugar, os líderes chineses procuram nestas regiões mais apoios
para as suas posições nas Organizações Internacionais, como a ONU, e na
revisão da hierarquia do sistema internacional. Ao cativar estes países com
os Princípios da Coexistência Pacífica, como o benefício mútuo e a igual-
dade, a China consegue apoios para as «suas» normas, como o respeito pela
soberania e integridade territorial e a não ingerência nos assuntos internos
dos outros Estados:

The basic norms governing international relations on equality of


sovereignty and non-interference in each other's internal affairs between
the member states as stipulated in the Charter of the United Nations are
absolutely not outdated. The history and culture, social systems and
development models of various countries should be respected. (RPC, 2003a)

A este respeito há um factor exógeno importante que influencia a política


externa chinesa: a postura ocidental relativamente a questões que Pequim
considera do foro interno, como seja o (des)respeito pelos direitos humanos,
a questão do Tibete e do Xinjiang e o conflito com Taiwan. Revelando total
incompreensão pelo espírito missionário ocidental, parte da reacção da China
passa por tentar que os restantes actores do sistema internacional adoptem os,
já referidos, princípios que considera basilares no enquadramento das Relações
Internacionais, tentando «achinesar» as normas ocidentais ditas «universais».
O princípio da não-ingerência nos assuntos internos leva a uma políti-
ca de incondicionalidade (no-strings-attached) no relacionamento com os
outros Estados, não exigindo o respeito de normas de boa governação ou
respeito pelos direitos humanos. Assim, em troca da Ajuda Pública ao De-
senvolvimento, por exemplo em África e na América Latina, a China apenas
pede contrapartidas económicas ou apoio político, ao contrário do mundo
ocidental que faz depender a ajuda de exigências que muitos líderes dita-
toriais e corruptos não têm interesse em cumprir:
As a member of the developing countries, China is ready to
develop extensive and in-depth cooperation in economic, scientific and
technological, educational and cultural fields on the basis of the principles
356
of equality and mutual benefit, emphasis on results, varied forms and
common development. China stands ready to offer assistance within its
capacity to developing countries having difficulties. Although China’s aid
is limited, it is provided sincerely and without any conditions attached.
(RPC, 2003b)

Este «Consenso de Pequim» apresenta uma fórmula para atingir o desenvol-


vimento radicalmente diferente da proposta pelo «Consenso de Washington»,
defendendo um modelo que contradiz a ideia de liberalização política ou
reformas económicas como condições fundamentais para o desenvolvimento
de longo prazo, privilegiando o comércio e investimento em infra-estruturas
e instituições sociais (Thompson, 2008: 15). Este choque de «consensos» faz-
nos regressar ao conceito de soft power: o poder de atracção da República
Popular da China em determinadas regiões do globo tem aumentado de
forma proporcional à sua emergência económica, com base nesta lógica
da reciprocidade espelhada no slogan da cooperação Sul-Sul (ver citação
anterior). Percepcionada como um parceiro mais conveniente, Pequim desa-
fia os interesses norte-americanos na América Latina e europeus em África,
regiões que as potências ocidentais há muito consideram os seus «pátios
traseiros». Na América Latina, os Estados Unidos perderam terreno quando
concentraram esforços no Médio Oriente na sequência do 11 de Setembro
de 2001, negligenciando a região e permitindo a consolidação da presença
chinesa, facto que muito agradou às elites locais anti-americanas. Quanto a
África, tornou-se a questão mais sensível nas relações sino-europeias: ape-
sar das exportações africanas para a China estarem a aumentar, a Europa
é ainda de longe o maior parceiro comercial do continente africano (Fox;
Godement, 2009: 41) e as antigas potências coloniais temem a capacidade
chinesa de capitalizar a presença económica para obter influência política
(Holslag, 2006: 11). Mais importante ainda, a União Europeia (UE) preocupa-
se com o facto de a China começar a ser percepcionada como o soft power
em África, apresentando-se como um parceiro e não como um guia e ofe-
recendo um modelo mais atractivo do que o europeu, que exige o respeito
das chamadas normas «universais». A confirmar-se esta tendência a UE, cuja
política externa é baseada em linhas directrizes normativas, moldando o que
357
é considerado «normal» em Relações Internacionais (Burton, 2009: 12-14),
vê limitada a sua capacidade de exportar o modelo transnacional basea-
do nos seus valores, ou o que pode ser apelidado de «visão democrática
cosmopolita» – princípios ocidentais de liberalismo, democracia e mercado
livre (Coker, 2007: 30, 33).

Considerações finais

Este capítulo ofereceu um enquadramento histórico-conceptual que


facilita a análise da actuação da República Popular da China no xadrez
geopolítico contemporâneo, permitindo entender as diferentes linhas de
decisão e actuação em contextos diferenciados, nomeadamente através da
análise dos factores endógenos e exógenos com impacto no processo de
tomada de decisão chinês. A conjugação do factor exógeno da imposição
ocidental de normas reguladoras das políticas externas estatais com o factor
endógeno da vitimização perante as humilhações provocadas pelas potências
ocidentais (e Japão), num momento de reemergência chinesa, leva Pequim
a questionar a hegemonia ocidental em ditar as regras de relacionamento
internacional. Como as normas «universais» são, maioritariamente, uma cria-
ção dos governos ocidentais, os líderes chineses não estão particularmente
interessados em segui-las, preferindo substituí-las pelas suas próprias di-
rectrizes (Coker, 2007: 33):

China unswervingly pursues an independent foreign policy of peace.


The fundamental goals of this policy are to preserve China's independence,
sovereignty and territorial integrity, create a favorable international
environment for China's reform and opening up and modernization
construction, maintain world peace and propel common development.
[…] The Five Principles of Peaceful Coexistence and the universally
recognized norms governing international relations should serve as the
basis for setting up the new international political and economic order. […]
China is ready to establish and develop friendly relations of cooperation
with all the countries on the basis of mutual respect for sovereignty and
358
territorial integrity, mutual non-aggression, mutual non-interference in
each other's internal affairs, equality and mutual benefit, and peaceful
coexistence. (RPC, 2003c)

De forma hábil, a política externa chinesa define o sistema normativo


de acordo com os seus interesses desenvolvendo, com grande pragmatis-
mo, uma visão selectiva do multilateralismo e da incondicionalidade nas
relações bilaterais. Mas fá-lo com a subtileza de quem aprendeu depressa
com o discurso hipócrita ocidental: afinal, as suas normas apenas reiteram
o legado dos Tratados de Vestefália (1648), um sistema baseado na afirma-
ção formal da soberania estatal, integridade territorial e não interferência
nos assuntos externos dos outros Estados, limitando-se a pôr em prática os
ensinamentos ocidentais, não é verdade?

Questões para análise


De que forma o papel dos líderes tem condicionado/projectado a política
externa chinesa?
Analise o binómio ideologia/pragmatismo na política externa chinesa; por
exemplo, parece-lhe que a China enquadra o relacionamento com África
e América Latina no âmbito da cooperação Sul-Sul por razões ideológicas
ou económicas?
A ajuda chinesa ao desenvolvimento constitui uma alternativa à agenda de
desenvolvimento ocidental e a exportação do modelo de desenvolvimento
chinês para o Sul é viável?
Considera que a postura chinesa no plano internacional questiona as normas
internacionais vigentes?
A clara preferência chinesa pelo multilateralismo revela um interesse genuíno
em atingir um mundo multipolar ou esconde objectivos hegemónicos?
Haverá uma partilha destes objectivos (pacíficos ou hegemónicos) com
outras potências, como por exemplo a Rússia e a Índia no quadro da
Organização de Cooperação de Xangai ou ainda com o Brasil, visível nas
posições conjuntas dos BRIC no âmbito do G20?
Fontes na internet
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Internet Guide for Chinese Studies, http://sun.sino.uni-heidelberg.de/igcs/
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André Barrinha

361

C a p í t u l o 15

Tu r q u i a

Pretende-se com este capítulo analisar a evolução da política externa


turca desde o fim da II Guerra Mundial. Pelo seu peso económico, mi-
litar e demográfico, pelo posicionamento geográfico, pela sua história e
pela complexidade da sua sociedade, a Turquia é um actor de grande
importância no sistema internacional; contudo, até há bem pouco tempo
conduzia a sua política externa de forma «minimalista», limitando-se em
larga medida a resolver os problemas impostos (e criados) pelas dinâmi-
cas regionais em que está inserida. Este capítulo começará por explorar
as principais linhas de acção da política externa turca, assim como o
papel dos principais actores na formulação dessa mesma política. Seguir-
se-á a análise da evolução histórica da política externa turca, onde serão
exploradas as razões do comportamento externo limitado por parte da
Turquia durante grande parte da Guerra Fria. As mudanças resultantes
do fim do conflito bipolar e a necessária redefinição das prioridades da
política externa turca serão tidas em consideração na terceira parte deste
capítulo. Por fim, a quarta parte do capítulo mostrará como a Turquia
tem, desde a chegada ao poder do Partido da Justiça e Desenvolvimento
(AKP- Adalet ve Kalkinma Partisi) em Novembro de 2002, vindo a mudar
a sua orientação em matéria de política externa no sentido de um papel
mais assertivo na esfera internacional.
Actores e dinâmicas da política externa da Turquia

Em oposição à instabilidade interna verificada durante grande parte da


362
Guerra Fria,1 a política externa turca manteve uma linha de acção estável du-
rante esse mesmo período, focada na limitação das externalidades provenientes
da instável vizinhança de Leste e na manutenção de um bom relacionamento
transatlântico. Houve obviamente excepções e períodos de maior acção a nível
externo (como teremos oportunidade de constatar mais à frente no capítulo)
mas, por regra, Ancara manteve um comportamento discreto. Para tal, muito
contribuiu a existência de uma estrutura de política externa visivelmente resis-
tente a atribulações internas. Esta estrutura era composta por três vértices – o
vértice político-ideológico, o vértice militar e o vértice burocrático.
O vértice político-militar diz respeito ao consensual entendimento de
política externa derivado da ideologia kemalista, por sua vez baseada nas
ideias e políticas do ‘pai fundador’ da Turquia, Mustafa Kemal ‘Atatürk’. Tal
como aprendem os cadetes na Academia militar, «Ataturkismo [ou Kemalis-
mo] é o conjunto realista de ideias e linhas de acção relacionadas com o
estado, com a vida económica e intelectual, e com as instituições sociais
de maior relevância, cujos princípios básicos foram definidos por Atatürk»
(apud Birand, 1991: 69).
Apesar desta lógica kemalista se aplicar igualmente aos dois outros vér-
tices, a sua importância é acrescida no quadro político pois faz contrastar
as profundas divisões existentes ao nível da política interna com o relativo
consenso existente em matéria de política externa. Assim, independente-
mente das orientações políticas, os governos de Ancara mantiveram, durante
a Guerra Fria, a progressiva aceitação da Turquia como parte do mundo
ocidental como principal objectivo de política externa, ao mesmo tempo
que tentavam garantir um relacionamento estável com a sua vizinhança.
Estas duas orientações políticas seguiam os dois grandes objectivos de po-
lítica externa tal como definidos por Atatürk: por um lado, a modernização

1 A Turquia assistiu durante este período a três golpes militares, em 1960, 1971 e 1980 que de
certa forma serviram para pôr fim a diversos episódios de instabilidade política que, particularmente
nos anos 1970, levaram este país à beira da guerra civil.
ocidentalizada da Turquia; por outro, a concretização do seu lema paz em
casa, «paz no mundo» (Cem, 2001: 2). Como veremos mais adiante, esta
lógica só muito pontualmente foi posta em causa pelos sucessivos governos
363
turcos e, sempre que tal aconteceu, houve igualmente a preocupação de
salientar a compatibilidade com estes mesmos princípios.
Em segundo lugar, há a destacar o papel do aparelho burocrático do
Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE). Um dos pilares kemalistas
do estado turco, o aparelho diplomático turco sempre possuiu um esta-
tuto especial no quadro dos restantes ministérios: os seus concursos de
admissão eram mais exigentes do que os dos outros, os seus funcionários
provinham exclusivamente das universidades de elite turcas e havia uma
lógica subjacente de rigor na execução das suas políticas (Robins, 2003:
72-73). A solidez do MNE fez, assim, com que as sucessivas crises políticas
passassem um pouco à margem da política externa turca, na medida em
que existia uma autonomia do MNE que o isolava dessas mesmas crises.
Fez também com que a Turquia adoptasse uma presença internacional
constante, mas moderada, pouco dada a mudanças radicais de discurso
ou comportamento, focada na reprodução das práticas diplomático-buro-
cráticas vigentes.
Finalmente, é preciso salientar o papel dos militares, igualmente impor-
tante na estabilização da política externa turca do pós-II Guerra Mundial.
Apesar da sua importância política datar dos tempos do Império Otomano
(Drorian, 2005: 263), as Forças Armadas turcas consolidaram o seu prestígio
e legitimidade depois de Mustafa Kemal ‘Atatürk’ ter comandado o seu
exército na libertação do que é a actual Turquia das mãos das potências
vencedoras da I Guerra Mundial. O seu envolvimento directo na esfera
política, 2 contudo, apenas se começou a fazer sentir em finais dos anos
1950. A morte de Atatürk em 1938 abriu um espaço para a contestação
da liderança política que levaria à realização de eleições multi-partidárias
regulares a partir de 1946. Após uma vitória inicial em 1946, o Partido
Republicano do Povo (CHP - Cumburiyet Halk Partisi) perderia o seu lugar

2 Indirectamente, muitos dos líderes políticos da jovem República eram provenientes do apare-
lho militar ( Jenkins, 2001:10).
no poder para o Partido Democrático (DP - Demokrat Parti) de Adnan
Menderes em 1950. O DP trouxe consigo uma nova agenda política de-
fendendo, entre outras medidas, uma maior liberdade religiosa na esfera
364
pública, o que preocupou as Forças Armadas turcas, guardiãs do espírito
kemalista. De acordo com Armağan Kuloglu e Mustafa Şahin, este factor,
juntamente com a imposição de políticas cada vez mais opressivas e de
uma inflação galopante, levaram ao golpe militar de 1960, que tinha por
objectivo «restaurar a democracia e a ordem kemalista» (2006: 94).
A nível externo, esse intervencionismo começou-se a fazer sentir ainda
mais tarde, sendo a sua visibilidade enquanto actor político autónomo
somente manifesta a partir de meados dos anos 1990, período no qual a
instabilidade política turca afectou de forma directa o seu aparelho de política
externa: a forte instabilidade interna levaria a que a Turquia tivesse nove
Ministros dos Negócios Estrangeiros entre Julho de 1994 e Junho de 1997
(Robins, 2003: 65). Nesse período foram os militares que definiram alguns
dos momentos mais marcantes da política externa turca, primeiro através
do desenvolvimento de fortes relações com Israel e, posteriormente, com
o ultimato lançado à Síria em 1998, quando Ancara exigia que Damasco
expulsasse o líder do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK - Partiya
Karkerên Kurdistan), Abdullah Öcalan (Robins, 2003: 77). No entanto, até
aos anos 1990 o papel dos militares tinha essencialmente sido um papel de
estabilização da política externa através da garantia do seu poder, isto é, a
sua existência servia de efeito dissuasor relativamente a eventuais tentações
de envolver a Turquia na conflitualidade do Médio Oriente.
O crescente intervencionismo militar, associado à instabilidade vivida
dentro do MNE turco e à eleição de líderes políticos como Necmettin
Erbakan, cuja agenda política fugia claramente a vários dos princípios
kemalistas, vieram colocar a nu o progressivo desmembramento do triân-
gulo da política externa turca que durante várias décadas tinha permitido
que o país tivesse mantido um registo externo bastante sóbrio, apesar da
enorme complexidade do seu contexto geopolítico. A partir de então a
política externa turca fragmentou-se e flexibilizou-se, o que de certa for-
ma fez com que a Turquia passasse a ter um papel mais activo na esfera
política internacional.
A Turquia e a Guerra Fria

Ao contrário do desastre da participação otomana na I Guerra Mundial,


365
que levaria à desintegração do Império, a neutralidade do jovem Estado turco
durante a II Guerra Mundial acabou por ser muito benéfica para o país. Desde
logo, porque a Turquia não sofreu as destrutivas consequências da guerra,
nem teve de investir no esforço militar para esse efeito. A principal vantagem
para a Turquia proveio, no entanto, da reestruturação do sistema internacional
do pós-guerra, com o posicionamento geoestratégico turco (na intersecção
entre o espaço Soviético e o Médio Oriente, mais o controlo sobre o estreito
do Bósforo) a revelar-se central para os interesses do bloco ocidental. No
seguimento da doutrina Truman de 1947,3 Grécia e Turquia aderem à Orga-
nização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) em 1952, garantindo Ancara,
dessa forma, o seu lugar enquanto membro do bloco ocidental. Dois anos
mais tarde, o governo de Adnan Menderes, juntamente com o Reino Unido,
encetou esforços no sentido de elaborar um acordo de segurança no quadro
do Médio Oriente, propondo a criação do chamado Pacto de Bagdade. Este
viria, no entanto, a revelar-se um desastre, pois a maior parte dos Estados
convidados – ex-colónias do tempo do Império Otomano – rejeitaram a
adesão (Hale, 2007: 21). O acordo viria a ser assinado em 1955, envolvendo
apenas a Turquia, o Iraque, o Irão, o Paquistão e o Reino Unido. De todos
os Estados árabes convidados a participar, só o Iraque aceitou o convite.
Contrariamente à ideia comum da Turquia como ponto entre o Ocidente
e o Oriente, durante a maior parte da Guerra Fria, esta foi uma ponte ine-
xistente: para a Turquia, o Médio Oriente e Norte de África eram uma fonte
de instabilidade, de problemas e de subdesenvolvimento; para os países
árabes, a Turquia ainda era a metrópole colonial contra a qual tinham lutado
(Karaosmanoğlu, 2004: 17). Assim, a adesão à Aliança Atlântica, juntamente
com o falhanço do Pacto de Bagdade vieram confirmar a Ancara que a sua
política externa tinha de estar alinhada com a do Ocidente e que o seu
passado Otomano era mais um peso do que uma mais-valia.

3 Em que o Presidente norte-americano defendia a necessidade de ajudar a Grécia e a Turquia a


manterem-se fora da esfera de influência soviética.
Desilusão e reajustamento: a Turquia e o Ocidente

Até à crise dos mísseis de Cuba de 1962, a Turquia tinha sido um ‘bom’
366
aliado no quadro transatlântico, tendo tido um papel de relevo na Guer-
ra da Coreia, ao enviar 4.500 militares para o conflito, o terceiro maior
contingente militar, depois de norte-americanos e coreanos (Robins, 2003:
129). Um envio revestido de simbolismo por ter sido a primeira vez que as
Forças Armadas turcas, enquanto tal, foram destacadas para um cenário de
guerra num quadro multilateral. Era assim claro o empenho de Ancara neste
relacionamento transatlântico. O desfecho da crise de Cuba viria, contudo,
a trazer dúvidas sobre a forma como os restantes membros da Aliança, par-
ticularmente os EUA entendiam o papel da Turquia. No sentido de resolver
a crise, Washington prometeu a Moscovo a retirada dos mísseis Júpiter da
Turquia. Essa retirada já estava prevista, no entanto, esta medida viria a
ser tomada por parte dos EUA sem que Ancara tivesse sido consultada,
aumentando assim a suspeita em vários sectores da sociedade turca de que
a Turquia estava mais empenhada no relacionamento com Washington do
que vice-versa (Eralp, 2003: 110). A esta questão veio juntar-se, em 1964,
a crise da carta de Johnson, em que o Presidente norte-americano Lyndon
Johnson, em face dos problemas que então se viviam no Chipre,4 aconse-
lhou a Turquia a não intervir, pois caso o fizesse isso poderia originar a
intervenção da União Soviética (URSS) e nada garantia que a OTAN pudesse
intervir em defesa da Turquia. Esta carta viria a ser vista com desilusão e
revolta em Ancara, contribuindo para o renascer do síndroma de Sèvres.
O síndroma de Sèvres resulta da relação ambivalente que a Turquia tem
com o Ocidente: por um lado, a matriz do seu desenvolvimento enquanto
estado moderno esteve, durante várias décadas, directamente associada a
uma modernidade ocidental; por outro, existe a suspeita de que esse mundo
ocidental não só não deseja que a Turquia faça parte dele, como pretende
o seu controlo ou desintegração. Este sentimento ambivalente é algo que
advém dos tempos otomanos, o «homem doente da Europa» do século XIX .

4 Ver mais à frente, em A aposta Europeia e a questão cipriota.


O tratado de Sèvres, assinado após o fim da I Guerra Mundial, é, contudo,
o marco definidor da conspiração Ocidental. Tal como a Alemanha, também
o Império Otomano foi obrigado a assinar um tratado humilhante em que
367
grande parte do território que constitui a actual Turquia foi dividido entre
vários países, incluindo a Grécia, a Rússia e o Reino Unido. A aceitação
forçada do Tratado levaria ao movimento independentista desencadeado
por Atatürk que culminaria, três anos mais tarde, na assinatura do Tratado
de Lausanne. Desde então, criou-se na matriz identitária turca esta ideia
do síndroma de Sèvres, particularmente visível em vários momentos no seu
relacionamento com o Ocidente.
Após a crise da Carta de Johnson, a Turquia continuou a ser uma ponta-
de-lança da OTAN entre o espaço Soviético e o Médio Oriente, mas a política
externa turca deixou de estar tão virada para o Ocidente, adoptando uma
visão mais independente dos seus interesses. Em boa verdade, a crise ci-
priota ocupou boa parte das preocupações externas turcas, culminando na
intervenção armada em 1974, dividindo em definitivo a ilha entre cipriotas
gregos e cipriotas turcos. Este período coincidiria com uma moderada expan-
são dos horizontes da política externa turca. Bülent Ecevit, líder do CHP e
primeiro-ministro da Turquia de 1972 até 1979, defendia uma política externa
turca que fosse para lá do relacionamento com Washington. Nesse sentido,
tomou uma série de medidas no sentido de autonomizar a Turquia da Aliança
Atlântica. De entre tais medidas, há a destacar o ‘Documento Político relativo
aos Princípios de Cooperação Amigável’, assinado entre Ancara e Moscovo,
símbolo de uma breve aproximação entre estes dois países (Fuller, 2008: 154).
Para lá do relacionamento com os EUA, o síndroma de Sèvres tem servido
para enquadrar o relacionamento da Turquia com a Europa, em particular
com a União Europeia. Ancara e Bruxelas assinaram em 1963 o Protocolo
de Ancara, que dava à Turquia o acesso a privilégios que nenhum outro
estado fora das então Comunidades Europeias possuía. Entre outras medidas,
este documento previa a possibilidade de a Turquia vir, no futuro, a aderir
à actual União Europeia. Este aspecto foi visto como extraordinariamente
relevante por parte de Ancara pois correspondia à constatação por Bruxe-
las de que a Turquia fazia parte do espaço europeu e, assim, consagrava-a
como parte integrante do mundo Ocidental.
Não houve desenvolvimentos significativos relativamente à eventual
adesão da Turquia às, então, Comunidades Europeias até 1987, altura
em que a Turquia, apesar de aconselhada a não se candidatar, fê-lo por
368
intermédio de Turgut Özal. A resposta seria negativa e a Turquia teria de
esperar uma década para poder finalmente ver aberta a possibilidade de
se candidatar à União Europeia. Em vários momentos (como aquando da
resposta da Comissão Europeia em 1989 ou após a Cimeira do Luxem-
burgo em 1997) a Turquia entendeu a mensagem por parte da UE como
sendo a materialização da ideia de que Bruxelas nunca aceitaria a sua
entrada na UE por preconceito e falta de entendimento da realidade turca
(Robins, 2003: 110).
Em suma, o período da Guerra Fria foi essencialmente um período de
enquadramento da Turquia no mundo ocidental, com algumas excepções de
autonomização de política externa adoptadas durante a liderança de Ecevit.
Um enquadramento com aspectos mais e menos positivos, com momentos
de grande tensão (como a crise cipriota) e outros de confirmação do seu
estatuto enquanto membro do mundo ocidental (como a entrada na OTAN
e a assinatura do Protocolo de Ancara).

O fim da Guerra Fria e a transformação do posicionamento turco

O período relativo ao fim da Guerra Fria trouxe consequências para a


Turquia, tanto de forma directa como de forma indirecta. De forma direc-
ta, no sentido em que a Turquia teve o seu papel de fronteira da OTAN
questionado num contexto em que a fronteira Soviética já não representa-
va a ameaça existencial de até então. 5 Indirectamente, uma vez que com
a desintegração do Bloco de Leste, todo o seu contexto regional se viu
transformado. No Médio Oriente, deixou de haver a influência Soviética
como contra-ponto à presença norte-americana e, na Ásia Central, Cáu-

5 Como afirma Philip Robins, essa questão só afectou a Turquia relativamente ao seu relaciona-
mento com os membros da Aliança, mas não com a Rússia. Para Ancara, Moscovo continuava a ser
vista com grande suspeição (2003: 23).
caso, Balcãs e Europa de Leste, houve um completo redimensionamento
do espaço geopolítico com a criação e desintegração de vários Estados,
sendo de destacar pelas suas consequências particularmente nefastas,
369
o fim da República Jugoslava. A Turquia necessitava assim de um novo
rumo para a sua política externa que tivesse em consideração todas estas
mudanças em seu redor, assim como a transformação do papel da OTAN
a nível internacional.
No caminho para essa redefinição de política externa, a Turquia viria
a assumir um papel central na Guerra do Golfo, desencadeada pelos EUA
e aliados após a invasão do Kuwait por Saddam Hussein em Agosto de
1990. Devido ao enorme cepticismo interno relativamente ao envolvimento
do país num conflito contra um Estado vizinho, Turgut Özal decidiu não
enviar tropas para o Iraque. Permitiu, contudo, o uso das bases aéreas
conjuntas (Turquia-EUA) do Sudeste turco para o ataque norte-americano
às forças iraquianas (Robins, 2003: 16-17). Isto, para além de ter encerrado
os oleodutos provenientes do Iraque para seu próprio prejuízo 6 - decisivo
para convencer a Arábia Saudita a deixar os EUA intervir no Kuwait a partir
do seu território (idem). A Turquia teve igualmente um papel central na
coordenação da missão humanitária no Norte do Iraque onde a população
curda era alvo da perseguição de Saddam Hussein. É de realçar que o
problema curdo iraquiano do pós-Guerra do Golfo levou a um aumento
exponencial da visibilidade da questão curda na própria Turquia. Nessa
matéria, o envolvimento turco na Guerra do Golfo acabaria por trazer mais
dores de cabeça do que benefícios para a elite de Ancara (Fuller, 2008:
98-99). O conflito que opunha a Turquia ao PKK, liderado por Abdullah
Öcalan desde o início da década de 1980, agudizou-se consideravelmen-
te a partir desta altura, atingindo proporções de uma quase-guerra civil.
A questão curda tornou-se estrutural na política externa turca, passando
a ser um dos cinco principais eixos de acção da política externa turca do
pós-Guerra Fria que iremos agora brevemente analisar.

6 Um enorme prejuízo calculado em mais de oito mil milhões de dólares (Robins, 2003: 322).
Questão Curda

Como acima mencionado, as proporções do conflito no Sudeste da


370
Turquia tornaram a questão curda uma questão central não só da política
interna turca, mas também da sua política externa. Internamente, o conflito
curdo levou, ao longo dos últimos 30 anos, a uma radicalização do discurso
político turco, centrado na necessidade de garantir o carácter unitário do
estado e a integralidade do seu território (cf. Barrinha, 2008). Nesse con-
texto, as Forças Armadas e os serviços de segurança assumiram um papel
central na condução da questão curda. O Sudeste do país, maioritariamente
curdo, passou a viver num Estado de excepção, em que as regras de fun-
cionamento democrático estiveram suspensas durante quase duas décadas
(cf. Jacoby, 2005). O conflito curdo foi-se tornando igualmente central na
política externa turca - Grécia, Síria, Irão, URSS e o próprio Iraque foram,
em diferentes períodos, acusados por parte de Ancara de ajudar o movi-
mento de Abdullah Öcalan. Tal como referido anteriormente, em 1998, a
Turquia chegou ao ponto de ameaçar invadir a Síria caso esta não deixasse
de colaborar com o líder curdo, tendo a ameaça resultado na expulsão do
líder do PKK. 7
A questão tornou-se também central no relacionamento com a Europa,
em particular com a União Europeia. Pelo lado turco, Ancara considerava
que vários países Europeus, como a Suécia, Bélgica e França não faziam o
suficiente para acabar com as actividades da diáspora curda ligada ao PKK
nos seus países. Pelo lado da União Europeia, a questão curda afectava de
forma negativa a adopção dos critérios de Copenhaga por parte de Ancara,
tanto ao nível do respeito pelos direitos das minorias, como ao nível do
respeito pelas liberdades civis e políticas na Turquia. Mesmo após a acei-
tação da Turquia como candidato a Estado membro em 1999, esta era uma
questão que permanecia por resolver.

7 Seria o início da última viagem de Öcalan em liberdade, com paragem em Moscovo, Roma e
Nairobi, cidade onde finalmente seria preso pelos serviços secretos turcos em colaboração com os
serviços secretos norte-americanos.
A aposta Europeia e a questão cipriota

Apesar da questão curda e do ocasional síndroma de Sèvres, a Turquia


371
apostou claramente na adesão à União Europeia como aspecto central da
sua política externa. Essa aposta parecia ter ficado irremediavelmente per-
dida em 1997 quando, na Cimeira do Luxemburgo, os Chefes de Estado e
de Governo da União declararam que a Turquia não reunia as condições
necessárias para poder ser considerada candidata a membro. Ancara reagiu
de forma extremamente negativa a esta decisão, cortando relações com
Bruxelas e acusando os líderes europeus de, entre outras coisas, quererem
ser um clube cristão (cf. Robins, 2003; Dismorr, 2008). Dois anos mais tar-
de, numa prova de que os receios turcos eram (pelo menos parcialmente)
infundados, a União Europeia considerava a Turquia como estando no
caminho da integração, o que levou Ancara a finalmente entrar no proces-
so que conduziria em 2005 ao início das negociações para a adesão. Um
aspecto que, entretanto, se tornou central no relacionamento entre Ancara
e Bruxelas foi a questão cipriota.
Em 1963, poucos anos após a independência do Chipre relativamente ao
Reino Unido, dá-se o colapso do acordo que existia entre cipriotas turcos
e cipriotas gregos relativamente à partilha do poder na ilha. Esta situação
levou a um contexto de instabilidade e violência que culminaria com a
ocupação militar turca da parte norte da ilha em 1974 sob o argumento
de salvaguardar a sobrevivência dos cipriotas turcos. Deste então, a ilha
encontra-se dividida entre cipriotas gregos e cipriotas turcos. As Nações
Unidas tentaram por várias vezes encontrar uma solução para o problema.
Em 2004, o então Secretário-Geral, Kofi Annan, propôs um plano que visava
a unificação da ilha e progressiva resolução do conflito. Este plano foi a
referendo, tendo os cipriotas gregos rejeitado a proposta, contrariamente
aos cipriotas turcos, que se mostraram maioritariamente a favor do plano
Annan. Nesse mesmo ano o Chipre aderia à UE tornando o relacionamento
entre Ancara e Bruxelas ainda mais complexo.
Em 2006, a UE decidiu punir a Turquia por esta não abrir os seus portos
marítimos ao Chipre através do congelamento de oito dos 35 dossiers de
adesão (Baryusch, 2010: 3), isto para além de cinco outros dossiers bloque-
ados unilateralmente pela França (Alessandri, 2010: 12). A intransigência
de Ancara levou Bruxelas a renovar as sanções e espera-se que agora em
2011 tome novas medidas relativamente a esta questão. Muito depende da
372
forma como os dois lados do Chipre conseguirem chegar a algum tipo de
acordo relativo ao futuro da ilha.
Um aspecto central na eventual resolução do problema diz respeito à
relação entre Ancara e Atenas. Antagonismos históricos e disputas territo-
riais levaram à securitização do relacionamento entre estes dois Estados, ao
ponto de, apesar da imensa disparidade demográfica, geográfica e territorial,
haver um forte equilíbrio ao nível do investimento militar entre a Turquia e
a Grécia. Disputas relativas a ilhas no Mar Egeu levaram estes dois países
à beira do conflito armado em 1996 (Nachmani, 2002: 99). Contudo, desde
1999 que o relacionamento entre os dois países melhorou substancialmente.
Num episódio que ficaria conhecido pela ‘diplomacia do tremor de terra’
(earthquake diplomacy), os dois países conheceram um período de forte
aproximação depois de terem sofrido tremores de terra num curto espa-
ço de tempo, na Turquia em Agosto e na Grécia em Setembro, nos quais
equipas gregas de salvamento no primeiro caso e turcas no segundo foram
em pronto socorro das vítimas destes desastres naturais (Nachmani, 2002:
100). As imagens de gregos a ajudar turcos e vice-versa gerou um forte
sentimento de empatia entre as populações dos dois países, permitindo, em
certa medida, dissipar a noção do ‘outro’ enquanto ameaçador e diferente.
Será igualmente importante mencionar que, desta aproximação, resultou a
aceitação da Turquia como candidato a Estado membro da União Europeia
na Cimeira de Helsínquia desse mesmo ano. O facto de a Grécia ter con-
tribuído positivamente para este desfecho serviu como um factor adicional
na aproximação entre os dois países (Nachmani, 2002: 113).

Relações com os EUA

Com o fim da Guerra Fria, houve uma necessária reavaliação do rela-


cionamento turco com os EUA. Para o presidente Turgut Özal, a guerra do
Golfo serviria para mostrar aos EUA a centralidade da Turquia numa nova
ordem mundial. Contudo, como salienta Stephen Larrabee, as expectativas
nunca se concretizaram (2009: 100). Pior, o fim da guerra do Golfo veio
de certa forma agudizar as diferenças entre EUA e Turquia. Ancara sentia
373
que Washington não tinha tido em suficiente consideração os prejuízos
causados à Turquia pelo seu envolvimento no conflito que, além de tudo
o mais, veio exacerbar o problema curdo, assunto muito sensível para as
autoridades turcas (idem: 101).
Apesar disso, Ancara continuou a colaborar activamente com os EUA, tendo
inclusive participado dois anos mais tarde, e por pressão de Washington, na
Unified Task Force (Unitaf ), missão liderada pelos EUA com o objectivo de
resolver a crise humanitária que se agudizava na Somália através do envio de
300 soldados turcos. Esta era a primeira vez desde a Guerra da Coreia que
a Turquia enviava forças militares para uma operação num quadro multila-
teral (Robins, 2003: 45). O sucesso da Unitaf levou à criação da Unitaf-2 e
a um crescente envolvimento turco na missão. 8 A Turquia terminaria a sua
participação na Somália em Março de 1994, juntamente com os EUA, depois
da desastrosa tentativa de prender Muhammad Farah Aideed que resultou na
morte de 18 soldados norte-americanos. A Turquia viria ainda a contribuir
para as missões das Nações Unidas e OTAN na Bósnia no início dos anos
1990, assim como no Kosovo em 1999 (próxima secção). Os anos 1990 não
foram, contudo, anos de grande proximidade entre os EUA e a Turquia.
A questão cipriota e a questão curda levaram a um relativo esfriamento no
relacionamento entre Washington e Ancara, algo que só seria ultrapassado
de forma mais consistente com a visita de Bill Clinton à Turquia em 1999
pouco antes da decisão do Conselho Europeu de Copenhaga em aceitar a
Turquia como Estado candidato à adesão à UE. Para além do forte apoio
dos EUA à adesão da Turquia à UE, foram os próprios EUA que apoiaram
a adesão da Turquia ao G-20, grupo dos mais influentes países em desen-
volvimento e desenvolvidos, fórum que entretanto se tornou central nas
relações internacionais contemporâneas.

8 O Comando desta segunda missão seria inclusive atribuído a um general turco, o Gen. Cevik Bir.
Apesar de não terem sido anos de grande proximidade, foram anos de
convergência de interesses em várias áreas, a começar pela estabilização
dos Balcãs, mas a passar igualmente por questões como: a expansão da
374
NATO, a prevenção da proliferação de Armas de Destruição Maciça (ADM)
e a abertura de novos gasodutos através da bacia do Cáspio (Kirişçi, 2002:
174). Essa sobreposição da comunhão de interesses sobre uma eventual co-
munhão de valores, veio de certa forma animar a relação entre Washington
e Ancara numa base mais realista daquela que tinha predominado durante
a Guerra Fria e que, por mais do que uma vez, levou Ancara a sentir-se
traída pela falta de um empenho equitativo por parte de Washington no
relacionamento entre ambos os países.

O regresso à vizinhança

Uma das principais consequências do fim da Guerra Fria para a política


externa turca, diz respeito ao redimensionamento das suas relações, por
um lado, com o ex-espaço Soviético de raízes culturais turcas e, por ou-
tro, com o Médio Oriento. Com a desintegração da URSS e a consequente
formação de várias repúblicas na Ásia Central com ligações culturais à raiz
asiática turca, vários políticos viram na independência destes Estados uma
oportunidade de a Turquia reforçar a sua presença numa zona estratégica
fundamental. Contudo, apesar de alguma euforia inicial, o interesse por
parte de Ancara relativamente a esta região foi-se tornado mais limitado,
chegando ao ponto de hoje em dia ser uma questão secundária na agenda
externa turca (Robins, 2003: 270-272).
A partir de meados da década, a Turquia evoluiu também no sentido de
uma mais activa política externa em relação ao Médio Oriente. Esta política
desenvolveu-se a partir de duas linhas distintas: por um lado, através do de-
senvolvimento de relações político-militares com Israel; por outro, através do
estabelecimento de laços político-religiosos com os países árabes da região.
Em relação ao primeiro caso, o relacionamento com Israel focou-se fortemente
na cooperação militar. No seguimento dos acordos de Oslo, falcões políticos
como a primeira-ministra Tansu Çiller e o Presidente Suleyman Demirel, assim
como as chefias das Forças Armadas conduziram, a partir de 1994, um processo
de aproximação que culminou na assinatura de um acordo de cooperação
militar entre Ancara e Telavive em 1996. Na mesma altura, subia ao poder
375
um governo de coligação liderado pelo islamista Necmettin Erbakan, líder
do Partido Refah, que considerava vital a Turquia retomar os seus laços com
o mundo islâmico. Nesse sentido, desencadeou toda uma série de contactos
com os mais diversos países muçulmanos, do Paquistão à Líbia, passando
por vários países do Médio Oriente. Essa intensa aproximação ao mundo
muçulmano (Erbakan chegou a sugerir a criação de uma OTAN muçulmana)
não era do agrado das Forças Armadas e, em 1997, o governo liderado pelo
Partido pró-islamista Refah era obrigado a demitir-se por pressão dos milita-
res, terminando aí a política externa de cariz religioso encetada por Erbakan.
Primeiro no quadro da ONU e depois no quadro da OTAN, a Turquia
viria igualmente a ter um papel importante no conflito bósnio, com uma
presença de cerca de 1500 militares e a responsabilidade de patrulhamen-
to de uma das zonas de separação definidas no pós-cessar fogo. Apesar
de ter uma posição algo ambígua relativamente à independência kosovar
(a minoria turca nunca esteve claramente ao lado dos albaneses na luta
pela independência e a Turquia não queria, por razões de política interna,
estar a favor de um movimento independentista), a Turquia decidiu seguir
o consenso dos seus aliados da OTAN e participou, mesmo que de forma
discreta, nas operações de bombardeamento à Sérvia (através do envio de
onze F-16 de reconhecimento) e posteriormente através do envio de cerca de
mil soldados para as zonas dominadas pela minoria turca (Uzgel, 2002: 83).
Em suma, os anos 1990 foram anos de adaptação a uma nova realidade
internacional, em que a OTAN já não servia como eixo principal da actuação
externa turca e em que a desintegração do bloco soviético fazia reemergir
toda uma série de estados e regiões com laços culturais e/ou estratégicos
com a Turquia que esta necessitava de ter em consideração no seu rela-
cionamento externo. Com a excepção da adesão à UE, a Turquia, em boa
parte devido à instabilidade política interna, careceu durante os anos 1990
e primeiros anos do século XXI de uma visão estratégica de fundo que lhe
permitisse enquadrar todas as dimensões (novas e velhas) da sua política
externa num enquadramento lógico e coerente.
A eleição do Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP)
e o neo-otomanismo

376
A vitória do AKP nas legislativas de Novembro de 2002 não só significou
a ascensão ao poder de uma nova força política, como correspondeu ao
início de um processo de transformação da política, economia e sociedade
turca. Apesar de mais moderado do que o antigo partido Refah, vários dos
seus principais membros eram, com efeito, ex-membros do partido de Er-
bakan, o que deixou o aparelho kemalista extremamente preocupado. Essa
preocupação revelou-se sem fundamento, pois o governo AKP dedicou boa
parte do seu primeiro mandato a seguir as linhas previamente estabelecidas
em matéria de política externa, principalmente na questão do seu empe-
nho no sentido da integração europeia. Houve, contudo, uma questão que
não só afectou o relacionamento com Washington, como obrigou Ancara a
envolver-se de forma mais activa nas questões do Médio Oriente: a inter-
venção norte-americana no Iraque em 2003.
No início de 2003, os EUA começaram a negociar com o governo de
Recep Tayyip Erdoğan a possibilidade de abrirem uma linha de ataque a
partir do Sudeste turco. O acordo foi obtido sendo, contudo, necessária a
aprovação no Parlamento. Para espanto dos norte-americanos, a proposta
não seria aprovada, tendo-se mais de 100 deputados do AKP aliado à opo-
sição no sentido de bloquearem a proposta. A invasão do Iraque era vista
como contrária aos interesses turcos na região (estabilidade) e contrária à
imagem da Turquia nas sociedades muçulmanas (Alessandri, 2010: 3-4). Um
dos efeitos da recusa de Ancara foi a necessidade de os EUA recorrerem
ao Norte do Iraque (isto é, aos curdos iraquianos) como base de apoio à
sua incursão militar. Tal contribuiu para a atribuição de uma importância
estratégica aos curdos iraquianos que na prática passaram a contar com
o apoio dos EUA na definição de uma entidade política curda no Norte
do Iraque, aspecto que desagradou a Ancara. O PKK voltou às armas em
Junho de 2004 num contexto de grande autonomia curda no Norte do
Iraque e de falta de poder efectivo do estado iraquiano (Larrabee, 2010:
101). O relacionamento entre os EUA e a Turquia começou a deteriorar-se
de forma significativa chegando ao ponto de em 2004 a população turca
considerar os EUA como a maior ameaça à paz internacional e à própria
Turquia (Fuller, 2008: 5). Nos anos que se seguiram, Ancara manteve uma
constante pressão sobre Washington no sentido de os EUA tomarem medi-
377
das efectivas que ajudassem a por termos às incursões do PKK (Barrinha,
2008), sem grande sucesso.
Gradualmente, a Turquia foi reconsiderando a sua política no Norte do
Iraque, concluindo que a recusa em falar com os líderes da região era mais
perniciosa que benéfica para os seus interesses. Num gesto simbólico de
reaproximação, o Ministro dos Negócios Estrangeiros Ahmet Davutoğlu vi-
sitou a região em Outubro de 2009, chegando mesmo a anunciar a abertura
de um consulado em Erbil, capital da região. Durante vários anos os líderes
políticos curdos foram vistos como personas non gratas em Ancara; contu-
do, para além da constatação das limitações associadas a uma abordagem
confrontacional com o governo regional curdo, Ancara chegou à conclusão
que podia controlar melhor as incursões do PKK na Turquia a partir do
Norte do Iraque se conseguisse a cooperação de Massoud Barzani. Além
do mais, a Turquia necessitava igualmente de uma estratégia coerente para
lidar com o ‘novo’ Iraque e o apoio dos líderes curdos podia ser essencial
para estabilizar a transição política que o Iraque tem vindo a sofrer desde
2003. Em Outubro desse mesmo ano, Erdoğan tomou a ousada iniciativa de
fazer deslocar uma enorme comitiva de ministros, empresários e jornalistas
a Bagdade onde foram assinados 48 acordos nas mais diversas áreas, desde
a segurança à gestão da água (Barysch, 2010: 5). Este foi um gesto que
indicou que a Turquia estava decidida a ajudar o vizinho Iraque a retomar
o seu caminho (Alessandri, 2010).
Em Abril de 2009, na sua primeira visita a um país muçulmano enquanto
Presidente dos EUA, Barack Obama deu sinais claros de tentar reparar os
danos causados durante a Administração Bush (Onar, 2009: 1). Isto, apesar
das críticas deixadas relativamente à necessidade de Ancara confrontar o
seu passado, numa clara alusão à questão do genocídio arménio (idem).
Devido aos grupos de pressão da diáspora arménia em França e nos EUA,
esta tem sido uma questão que tem contribuído para o dificultar das relações
com o Ocidente. Os arménios reclamam que nos últimos anos do Império
Otomano, durante a I Guerra Mundial, houve, por parte dos turcos, uma
política concertada de eliminação da população arménia no que hoje é a
Turquia, o que esta rejeita em parte, pois admite a morte de milhares de
arménios, mas num contexto de conflito aberto entre as duas partes (Onar,
378
2009: 6). Esta é uma questão de estabelecimento da verdade histórica que
atingiu fortes proporções políticas devido ao choque entre a intransigência
turca e a pressão da diáspora arménia sobre os governos dos EUA e da
Europa Ocidental. Contudo, os problemas entre a Arménia e a Turquia não
se limitavam a questões históricas. Apesar de a Turquia não se ter envolvido
militarmente no conflito, a guerra entre o Azerbaijão e a Arménia relativa
a Nagorno-Karabagh levou ao encerramento da fronteira com a Arménia
e ao fim das relações diplomáticas entre os dois países. Esta situação só
mudaria em Outubro de 2009, quando os dois países assinaram um acordo
no sentido de reatar as relações diplomáticas (Grigoriadis, 2010: 7). Este
gesto faz parte de uma tentativa de reaproximação 9 entre Ancara e Ierevan
indicadora da possibilidade da normalização das relações entre os dois pa-
íses no médio-prazo. Esta reaproximação está contudo dependente de uma
eventual melhoria nas relações entre Ierevan e Baku, que por enquanto
permanecem bastante tensas.
Em paralelo a estas abordagens conciliadoras, o governo do AKP retomou
a ideia de reforçar os laços com outros países e movimentos muçulmanos,
sobretudo depois da crise política de 2007-2008 que levaria à reeleição do
AKP e à nomeação de Abdullah Gül como presidente da Turquia. O AKP
passou a adoptar uma política externa mais agressiva e de contornos mais
distintos da levada a cabo até então. Vários factores contribuíram para essa
mudança: o contexto político interno, a passagem de Ahmet Davutoğlu para
Ministro dos Negócios Estrangeiros, o rápido crescimento da economia turca
e a atomização do sistema internacional.
O AKP saiu da crise política de 2007-08 com legitimidade política refor-
çada e com um presidente do mesmo partido. É de lembrar que o anterior

9 Entre outras medidas, o Presidente turco Abdullah Gül foi convidado pelo Presidente Arménio,
Serzh Sarkisiyan em Abril de 2008 a assistir ao encontro de futebol entre as selecções dos dois países
na qualificação para o Campeonato do Mundo de futebol de 2010. Esta medida inseriu-se numa série
de passos no sentido da reaproximação dos dois países, ficando conhecida como a ‘diplomacia do
futebol’ (Onar, 2009: 7-8).
presidente, Ahmet Necdet Sezer, tinha tido uma co-habitação difícil com
o AKP, sendo muitas vezes visto como o representante da ala kemalista
na política turca. A sua retirada e consequente substituição por Abdullah
379
Gül permitiu ao AKP ganhar um controlo acrescido sobre o processo de
decisão política.
Em segundo lugar, há a salientar a mudança de Ministro dos Negócios
Estrangeiros. Davutoğlu era o assessor político de Erdoğan no primeiro
mandato, pelo que a sua passagem para a frente da diplomacia turca não
pode ser considerada como uma mudança radical; contudo, passou a ser
possível a Davutoğlu implementar um conjunto de ideias que desenvolveu
durante a sua carreira académica e que passava pela reafirmação dos laços
culturais com o Oriente num quadro neo-otomano.
No seu livro ‘Profundidade Estratégica’ de 2001, o então professor de Re-
lações Internacionais argumentava que a Turquia necessitava de se comportar
na esfera internacional de acordo com o seu posicionamento geográfico
e com o seu passado histórico, incluindo neste o Império Otomano, mas
também a Aliança Atlântica forjada durante a Guerra Fria (Barysch, 2010: 4).
Esta nova política externa devia igualmente distanciar-se da clássica hard
politics turca, focando-se nos aspectos culturais e económicos no sentido
de promover a estabilidade e prosperidade da Turquia (Barysch, 2010: 5), a
«política dos problemas-zero» (Barysch, 2010: 6). De acordo com Davutoğlu,
a Turquia devia ter uma diplomacia activa, focada na inter-ligação entre o
bilateral e o multilateral que visasse a prossecução dos objectivos turcos,
devendo estes passar pela estabilidade regional e promoção dos interes-
ses políticos e económicos da Turquia (Onar, 2009: 11-12). Relativamente
a este ponto, Davutoğlu avança ainda com a ideia da geo-economia, isto
é, o desenvolvimento de relações comerciais com uma lógica estratégica,
privilegiando mercados e fornecedores até então pouco explorados por
Ancara (idem). Este ponto relaciona-se directamente com o terceiro factor
que ajuda a explicar as mudanças ocorridas na política externa turca nos
últimos oito anos – o forte crescimento económico da Turquia.
Desde 2001, ano em que a Turquia sofreu uma forte crise financeira que
exigiu a intervenção do Fundo Monetário internacional (FMI) e fez o Pro-
duto Interno Bruto (PIB) encolher 5.7%, a economia turca não tem parado
de crescer. Entre 2002 e 2006, teve um crescimento do PIB sempre superior
a 5%, atingindo um máximo de 9,4% em 2004. Em 2007, esse crescimento
ficou-se pelos 4,6%, atingindo um mínimo de 1,1% em 2008, ano do início
380
da crise financeira internacional. Contudo, como constata Mustafa Kutlay,
a Turquia está hoje numa posição financeira muito mais forte do que esta-
va noutras ocasiões de crise (como em 2001), sendo de esperar que volte
rapidamente a um crescimento elevado nos próximos anos (2009: 66).
Não é pois de estranhar que Ancara tenha passado a ter em muito maior
consideração a dimensão económica da sua política externa, procurando
novos mercados e oportunidades para o seu tecido empresarial (Barysch,
2010: 7). Esta dinâmica empresarial tem feito com que a Turquia estabeleça
relações com países e regiões até então pouco exploradas, e que proceda
a um entendimento do seu contexto geográfico, cada vez mais sob uma
perspectiva geo-económica, como defende o seu actual Ministro dos Ne-
gócios Estrangeiros.
Apesar da importância das três dinâmicas internas acima mencionadas
(política interna, mudanças no MNE e crescimento da economia turca), é
preciso ter igualmente em consideração que essas mudanças tiveram lugar
num contexto internacional em mudança, baseado numa lógica de atomiza-
ção do poder no sistema internacional. Num quadro de ascensão de novas
potências e de um mundo pós-Americano, a Turquia passou a sentir-se como
parte dessa nouvelle vague, falando directamente com o Brasil, a Rússia e
a China e alargando os seus horizontes para regiões até então largamente
desconhecidas como a África sub-sahariana ou a América Latina.
O reforço da legitimidade interna, a existência de uma doutrina de base
associada ao novo Ministro dos Negócios Estrangeiros e de um forte cres-
cimento económico e a progressiva afirmação de novos pólos de poder
no sistema internacional contribuíram assim para uma mudança de atitude
por parte da Turquia relativamente à sua política externa. Uma mudança
no sentido de um maior envolvimento nas questões do Médio Oriente, mas
com uma presença e actividade de nível global.
2009 foi, nesse aspecto, um ano exemplar, com uma Turquia activa em
várias frentes em simultâneo. Em Agosto, Vladimir Putin deslocou-se a
Ancara, tendo negociado a colaboração em dois projectos de construção
de gasodutos. Nesse mesmo mês, Ancara e Ierevan assinaram, como já
mencionámos, dois protocolos que previam o retomar, 16 anos depois das
relações diplomáticas entre os dois países. Em Novembro, o primeiro-ministro
381
turco visitou Teerão, onde em cima da mesa esteve o desenvolvimento
das relações económicas entre os dois países. Finalmente, em Dezembro,
Erdoğan visitou a Síria no sentido de resolver uma velha disputa territorial
com Damasco. Entre outras medidas resultantes dessa visita, foi decidido
abolir a necessidade de visto para cidadãos sírios (assim como libaneses,
líbios e jordanos) entrarem na Turquia (Barysch, 2010: 5).
A melhoria no relacionamento com a Síria é algo que já se vinha a notar
há mais tempo. Em boa verdade, aquando da incursão militar israelita na Faixa
de Gaza no Inverno de 2008-09, que estaria na base do desentendimento
entre Erdoğan e Shimon Perez no Fórum de Davos, 10 a Turquia estava a
mediar a aproximação entre a Síria e Israel, abruptamente interrompida de-
vido a essa mesma incursão (Barrinha, 2009). Diplomatas, enviados especiais
e membros do governo turco visitaram diversos países do Médio Oriente,
no sentido de obterem algum consenso entre as várias partes do processo.
Como Ahmet Davutoğlu, então enviado da Turquia ao Médio Oriente, fez
questão de realçar, a Turquia era o único país que mantinha relações com
todas as partes envolvidas no conflito – Hamas, Israel, Egipto, Síria e Fatah
(Hurryiet, DN 15/01/09).
O relacionamento com Israel passou a ser a face mais visível da política
externa turca. Contrariamente ao bom relacionamento entre Ancara e Tel-Aviv
durante a última década e meia, uma série de eventos têm levado a uma
crispação no relacionamento entre os dois países. Em 2004, Erdoğan recusou
visitar Israel,11 optando por visitar Damasco no final desse mesmo ano. Foi
ainda bastante crítico relativamente aos assassinatos dos líderes do Hamas
Sheikh Ahmed Yassin e Abdul Aziz Rantisi por parte de Israel, acusando este
de «terrorismo de Estado» (Kirişçi, 2006: 63). Em 2006, Erdoğan iria ainda
mais longe ao receber uma delegação do Hamas em Ancara, liderada por

10 De acordo com Paul Salem, director do Carnegie Middle East Center no Líbano, em entrevista
ao Today’s Zaman, o incidente de Davos foi simplesmente a face visível da mudança de relaciona-
mento da Turquia com Israel (apud Dogan, 2010).
11 Erdoğan acabaria por visitar Israel em 2005.
Khaled Meshaal (idem: 62). No Outono de 2009, Ancara retirou o convite
a Israel para participar em manobras aéreas conjuntas (Barysch, 2010: 6).
Para além das dificuldades de relacionamento directo com Israel, a apro-
382
ximação de Ancara a Teerão veio de certa forma complicar as relações com
Telavive. No seguimento da visita de Erdoğan ao Irão em Novembro de 2009,
Davutoğlu deslocou-se a Teerão em Fevereiro de 2010 com o objectivo de
chegar a um acordo relativamente à questão do urânio enriquecido. Esse
acordo seria de facto obtido 12 em Maio, com o envolvimento do Brasil,
envolvendo a transferência de 1200 quilos de urânio pouco enriquecido
para a Turquia em troca de um reactor de pesquisa, sendo que esse urânio
continua a ser propriedade iraniana.
Em termos de resultados, a Turquia conseguiu melhorar o seu relacio-
namento com o Médio Oriente, Ásia Central e Cáucaso. Não conseguiu,
contudo, melhorar o relacionamento com a União Europeia, continuamente
imergida na complexa problemática do alargamento (Barysch, 2010: 1).
O seu relacionamento com os EUA também não melhorou substancialmente,
apesar da mudança de Administração em Washington e de a Turquia con-
tinuar a ter uma importância estratégica para Washington. 13
Tanto Bruxelas como Washington começam a ficar preocupados com
o empenho orientalista de Ancara. A aproximação por parte da Turquia a
países como a Síria, o Irão e o Sudão não ajudou a tranquilizar o receio de
que a Turquia esteja em busca de alternativas (Barysch, 2010: 2).
Contudo, se é verdade que este empenho externo relativamente ao Médio
Oriente é uma realidade, alicerçada em interesses económicos (expansão de
mercados e investimento), culturais (reforço dos laços com países muçulmanos)
e estratégicos (promoção de estabilidade na vizinhança), é preciso entender
que este activismo político não é exclusivo a essa mesma região. A Turquia
tem sido um dos principais contribuidores de tropas para a missão da OTAN
no Afeganistão, assumiu em 2009 o cargo de membro não-permanente do

12 A sua implementação está contudo dependente da avaliação da situação por parte do Conse-
lho de Segurança das Nações Unidas (BBC News, 17/05/10).
13 De acordo Stephen Larrabee o acesso permanente à base aérea de Incirlik, assim como a ou-
tras bases turcas garante que mais de 70% do carregamento militar enviado para o Iraque seja feito
através da Turquia (2009: 99).
Conselho de Segurança das Nações Unidas, foi impulsionadora de projectos
como a Aliança das Civilizações, envidou esforços para criar, no rescaldo da
crise na Geórgia, uma Plataforma de Estabilidade e Cooperação do Cáucaso
383
e tem, nos últimos meses, desenvolvido relações com países como o Brasil,
com quem até então mantinha um limitado relacionamento externo. A Turquia
abriu sete embaixadas em 2009 e irá abrir vinte e seis em 2010, a maioria na
África Subsaariana e na América Latina (Grigoriadis, 2010: 8).
Podemos, pois, concluir que há, de facto, uma mudança na política
externa turca, que até certo ponto se tem focado mais no Médio Oriente,
mas que é uma mudança sobretudo de atitude, mais do que de alteração
de enfoque regional.

Conclusão

Foi objectivo deste capítulo mostrar a evolução da política externa tur-


ca desde o fim da II Guerra Mundial, com um claro enfoque na crescente
afirmação internacional da Turquia. Como foi possível analisar ao longo
do capítulo, esta maior afirmação turca na cena internacional não deve ser
considerada como uma vitória do Islão sobre o laicismo turco ou sequer
como um favorecimento de uma política externa turca voltada para o Médio
Oriente em detrimento do ‘destino’ Ocidental que a Turquia parecia querer
abraçar durante o pós-II Guerra Mundial. Em boa verdade, e seguindo a
ideia de Omer Taspinar (2010), a Turquia pretende somente diversificar o
seu relacionamento externo, apostando numa política externa que esteja
mais de acordo com o seu crescente peso político, cultural, demográfico
e sobretudo económico na esfera internacional. Utilizando a expressão de
Fareed Zakaria (2008), esta é uma Turquia de uma era ‘pós-Americana’ e é
pois neste contexto que a sua política externa deve ser entendida.
Questões para análise
Analisando a evolução da política externa turca nos últimos cinquenta
anos, até que ponto se pode falar na Turquia como ‘ponte’ entre o
384
Ocidente e Oriente?
O que trouxe de novo o fim da Guerra Fria relativamente ao posiciona-
mento turco face ao complexo quadro geopolítico em que se insere?
É a política externa turca do AKP essencialmente virada para o Médio
Oriente? Justifique.
Comente a política externa turca para com a União Europeia e os Estados
Unidos/Aliança Atlântica (OTAN).

Fontes na internet
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www.tesev.org.tr/default.asp?PG=ANAEN
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Ministério dos Negócios Estrangeiros da República da Turquia, http://
www.mfa.gov.tr
Today’s Zaman, http://www.todayszaman.com/tz-web/
Hurriyet Daily News, http://www.hurriyetdailynews.com

Leituras recomendadas
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Kirişçi, Kemal (2006) Turkey’s foreign policy in turbulent times, Chaillot
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Notas biográficas

Ana Santos Pinto é docente no Departamento de Estudos Políticos da


Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa
(FCSH/UNL). Doutoranda em Ciência Política e Relações Internacionais, Es-
pecialidade de Estudos Político de Área, na mesma Universidade, concluiu
um Mestrado em História das Relações Internacionais, no Instituto Supe-
rior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE), com uma dissertação
subordinada ao tema «A Política Externa da União Europeia e o conflito
israelo-palestiniano: Da cooperação política à estratégia comum (1985-2000)».
Investigadora no Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI-UNL)
desde 2004, desempenhou funções de Research Consultant para a Organi-
zação das Nações Unidas, no Projecto Aliança das Civilizações (2008-2009)
e foi Assistente de Investigação no Instituto de Estudos Estratégicos e
Internacionais (2001-2003). Tem como principais áreas de interesse acadé-
mico os Estudos Europeus, a geopolítica do Médio Oriente e questões de
segurança e defesa.

André Barrinha é professor auxiliar convidado em Relações Internacionais


na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Concluiu em 2009
o seu doutoramento em Relações Internacionais na Universidade de Kent,
tendo defendido uma tese com o título Politics, Security and the Construc-
tion of Protracted Social Conflicts. Possui igualmente uma pós-graduação em
Política Internacional e Resolução de Conflitos da Faculdade de Economia
da Universidade de Coimbra, a mesma instituição onde em 2003 se licenciou
em Relações Internacionais. Esteve entre 2004 e 2006 ligado ao Instituto de
Estudos Estratégicos e Internacionais, em Lisboa. Entre outras publicações
editou em 2008, com a Fundação Friedrich Ebert, a obra Towards a Global
Dimension: EU’s Conflict Management in the Neighborhood and Beyond.

388
Carlos Gaspar é director do Instituto Português de Relações Internacionais
da Universidade Nova de Lisboa. Assessor do Conselho de Administração
da Fundação Oriente. Docente convidado da Faculdade de Ciências Socais
e Humanas de Relações Internacionais da Faculdade de Ciências Humanas
e Sociais da Universidade Nova de Lisboa. Assessor do Instituto de Defesa
Nacional. Conferencista no Instituto de Estudos Políticos da Universidade
Católica Portuguesa e no Instituto de Estudos Superiores Militares. Director
da revista Relações Internacionais, membro do Conselho de Redacção das
revistas Nação e Defesa, Finisterra e Respublica. Entre os seus trabalhos,
incluem-se «Portugal y la Union Europea», in Braulio Gomez Fortes, António
Barreto, Pedro Magalhães (2003). «El sistema politico de Portugal», Madrid:
Siglo XXI . «Revisitation du Dernier Homme», in Anne-Marie LeGloannec,
Alexandre Smolar (2003), Melanges en Honneur de Pierre Hassner. Paris:
Esprit. «A Guerra Fria acabou duas vezes», Nação e Defesa, 2(105). «Ray-
mond Aron and the Origins of the Cold War», in Bryan-Paul Frost, Daniel
Mahoney (2007) Essays in Honor of Raymond Aron. Political Reason in the
Age of Ideology. New Brunswick: Transaction Publishers. «The United States
and East Asia», in Luis Tomé, Robert Sutter (org) (2009) East Asia Today.
Coordenador, com João Marques de Almeida e Nuno Severiano Teixeira
(2007) Raymond Aron. Lisboa: IDN, Cosmos.

Carmen Amado Mendes é doutora pela School of Oriental and African


Studies (SOAS), Universidade de Londres (2004). Professora auxiliar da
Licenciatura e do Mestrado em Relações Internacionais da Faculdade de
Economia da Universidade de Coimbra desde 2006, Coordenadora do Núcleo
de Relações Internacionais e da Licenciatura e do Mestrado em Relações
Internacionais desde 2009. Membro da Direcção da European Association for
Chinese Studies desde 2008. Vogal da Direcção da Associação Portuguesa de
Ciência Política (APCP) em 2006-2010 e Presidente da Secção de Relações
Internacionais da APCP desde 2010. Co-fundadora do Observatório da Chi-
na – Associação para a Investigação Multidisciplinar de Estudos Chineses,
em 2005. Tem várias publicações na área das políticas interna e externa
chinesas. Investigadora Responsável do projecto «Uma Análise da Fórmula
‘Um País, Dois Sistemas’: O Papel de Macau nas Relações da China com a
389
UE e os Países de Língua Portuguesa», no Centro de Estudos Sociais (CES)
da Universidade de Coimbra, financiado pela Fundação para a Ciência e a
Tecnologia (FCT).

Carmen Fonseca é Mestre em Relações Internacionais pela FCSH-UNL


com a dissertação «O Brasil na política externa portuguesa: entre a retórica
e a concretização, 1976-2007», prepara actualmente, na mesma Universidade,
uma tese de doutoramento sobre a política externa brasileira. É investigadora
no IPRI-UNL e assistente convidada no Departamento de Estudos Políticos
da FCSH-UNL.

Constantino Xavier é bolseiro Fulbright e doutorando em International


Affairs na Paul H. Nitze School of Advanced International Studies, Johns
Hopkins University, em Washington DC. Pós-graduado e mestre (M.A.,
M.Phil.) em International Politics pela Jawaharlal Nehru University, em
Nova Deli, onde residiu, estudou e trabalhou entre 2004 e 2008. Licenciado
em Ciência Política e Relações Internacionais pela Universidade Nova de
Lisboa. Os seus interesses de investigação e publicações recentes incidem
sobre processos de decisão na política externa indiana, segurança na Ásia
do Sul, relações UE-Índia e Índia-Africa e políticas migratórias e diásporas.
Em Washington DC prepara actualmente a sua tese de doutoramento sobre
o não-alinhamento na política externa indiana e trabalha como Senior Re-
search Assistant na Brookings Institution.

Daniela Nascimento é professora auxiliar de Relações Internacionais


da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, onde lecciona na
Licenciatura, no Mestrado em Relações Internacionais e no Programa de
Doutoramento em Política Internacional e Resolução de Conflitos. É, desde
2009, investigadora do Centro de Estudos Sociais (CES). É doutorada em
Política Internacional e Resolução de Conflitos pela Universidade de Coimbra,
mestre em Direitos Humanos e Democratização pelo Centro Europeu Inter-
Universitário de Direitos Humanos e Democratização de Veneza e licenciada
em Relações Internacionais pela Faculdade de Economia da Universidade
de Coimbra. Os seus interesses de investigação centram-se nos estudos
390
para a paz, direitos humanos, reconstrução pós-conflito, acção humanitária,
com enfoque em África. Tem publicados nestas áreas capítulos em livros e
artigos em revistas científicas nacionais e estrangeiras.

Licínia Simão é Doutora em Relações Internacionais pela Universidade


de Coimbra, professora auxiliar convidada da Universidade da Beira Interior
e especialista convidada na Universidade de Coimbra. Foi investigadora e
professora convidada da Academia da OSCE, em Bisqueque, em 2010, cola-
boradora do Núcleo de Ciência Política e Relações Internacionais (NICPRI),
Universidade do Minho até 2010 e integrou o Centre for European Policy
Studies, em Bruxelas, como Investigadora convidada, em 2007. A autora tra-
balha sobre as relações externas da União Europeia para o Cáucaso do Sul
e dinâmicas regionais na Eurásia. Publicações recentes incluem «Competing
for Eurasia: Russian and European Union Perspectives» (com S. Fernandes),
in M. R. Freire e R. Kanet (org) Russia in Eurasia: External Player and Re-
gional Dynamics (Palgrave MacMillan); «Carta de Bisqueque: Da democracia
na Ásia Central», Relações Internacionais, 2010; Engaging Civil Society in
the Nagorno Karabakh Conflict: What Role for the EU and its Neighbourhood
Policy?, MICROCON Policy Working Paper 11, Brighton: MICROCON.

Luís da Vinha é licenciado em Geografia pela Faculdade de Letras da


Universidade de Coimbra. Obteve o grau de Mestre em Geografia – Or-
denamento do Território e Desenvolvimento em 2006 com a dissertação
«Dimensão da Inovação no Desenvolvimento Territorial: O Caso da Indústria
de Defesa Nacional». Actualmente frequenta o Programa de Doutoramen-
to em Política Internacional e Resolução de Conflitos, na Faculdade de
Economia da Universidade de Coimbra, onde está a desenvolver uma tese
sobre «Georeferencing the Bush Administration’s Foreign Policy: The Role
of Geographic Mental Maps in Foreign Policy Change». As suas principais
áreas de interesse são: mapas mentais, factores cognitivos nos processos
de decisão, processos de decisão de política externa, política externa dos
EUA, state-building/nation-building. Publicações recentes incluem «Radical
Reconstruction: A Critical Analogy of US Post-conflict State-building», Nação
e Defesa, 2010; «Acquiring Geographic Knowledge in International Politics»,
391
Universitas: Relações Internacionais, 2010 e «Reassessing the ‘Guns and Butter’
Debate: The role of Military Revolutions and Defense Industry Innovation
in Contemporary Spatial Development», Aurora Geography Journal, 2009.

Luís Tomé e doutorado em Relações Internacionais pela Universidade de


Coimbra, Mestre em Estratégia pelo ISCSP-UTL e Licenciado em Relações
Internacionais pela Universidade Autónoma de Lisboa (UAL). É Professor
na UAL e Professor Convidado no Instituto de Estudos Superiores Militares
(IESM) e do Curso de Defesa Nacional do IDN. Foi assessor no Parlamento
Europeu e investigador da OTAN. Investigador nas áreas da geopolítica e
da segurança internacional especializado nas regiões Euro-Atlântica, EurA-
siática e Ásia-Pacífico é autor e co-autor de cerca de uma dezena de livros
(alguns traduzidos para línguas estrangeiras) e de inúmeros ensaios e arti-
gos publicados nas revistas da especialidade. É Director-Adjunto da JANUS.
NET, e-journal of International Relations, autor do website EUROPASIA.NET,
co-fundador do Centro Português de Geopolítica e membro do Conselho
Editorial de várias publicações periódicas especializadas. Conferencista, em
Portugal e no estrangeiro, tem participado em distintos projectos de inves-
tigação e colaborado com vários órgãos de comunicação social, analisando
e comentando assuntos internacionais.

Maria Raquel Freire é investigadora do Centro de Estudos Sociais e


professora auxiliar de Relações Internacionais da Faculdade de Economia
da Universidade de Coimbra, onde lecciona na Licenciatura e Mestrado em
Relações Internacionais e no programa de Doutoramento em Política Inter-
nacional e Resolução de Conflitos. É doutorada em Relações Internacionais
pela Universidade de Kent, Reino Unido, mestre em Relações Internacionais
pela mesma universidade e licenciada em Relações Internacionais pela
Universidade do Minho. Os seus interesses de investigação centram-se nos
estudos para a paz, teorias de Relações Internacionais, política externa,
Rússia e espaço pós-soviético. Tem publicados nestas áreas vários capítulos
em livros e artigos em revistas científicas nacionais e estrangeiras. É autora
de Conflict and Security in the Former Soviet Union: The Role of the OSCE,
Aldershot, Ashgate, 2003; e co-editora de Key Players and Regional Dynam-
392
ics in Eurasia: The Return of the ‘Great Game’ com Roger Kanet, Palgrave,
2010. Os seus projectos de investigação actuais centram-se na análise da
política externa russa e das políticas de segurança europeias, bem como
peacekeeping e peacebuilding.

Nuno Severiano Teixeira é pró-Reitor da Universidade Nova de Lisboa e


professor de Relações Internacionais no Departamento de Estudos Políticos
da FCSH-UNL. Doutorado em História pelo Instituto Universitário Europeu,
Florença e Agregado em Ciência Política e Relações Internacionais pela Uni-
versidade Nova de Lisboa. Foi Visiting Professor na Universidade Georgetown
(2000) e Visiting Scholar no Instituto de Estudos Europeus da Universidade
da Califórnia, Berkeley (2004). Foi Director do Instituto de Defesa Nacional
(1996-2000) e do IPRI-UNL (2003-2006). Foi Ministro da Administração Interna
(2000-2002) e Ministro da Defesa (2006-2009) do governo português. Tem
obra publicada sobre história militar, história das relações internacionais,
história da construção europeia e segurança e defesa.

Patrícia Daehnhardt é professora auxiliar de Relações Internacionais da


Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Lusíada de Lis-
boa, nos cursos de Licenciatura, Mestrado e Doutoramento. É investigadora
do Instituto Português de Relações internacionais (IPRI-UNL). É doutorada
em Relações Internacionais pela London School of Economics and Political
Science. Das suas últimas publicações constam «Germany in the Europe-
an Union», in Reuben Wong e Christopher Hill (org) (2011) National and
European Foreign Policy: Towards Europeanization, Routledge e «O Novo
Conceito Estratégico da NATO: As relações com a União Europeia», Nação e
Defesa, 126, 2010. Os seus interesses de investigação são a politica externa da
Alemanha, as políticas de segurança europeias e as relações transatlânticas.

Paula Duarte Lopes é investigadora do Centro de Estudos Sociais e


professora auxiliar do Núcleo de Relações Internacionais da Faculdade de
Economia da Universidade de Coimbra, leccionando no 1º e 2º ciclos de
Relações Internacionais, bem como no Programa de Doutoramento em Po-
lítica Internacional e Resolução de Conflitos. Doutorada em Ciência Política
393
e Relações Internacionais pela Universidade Johns Hopkins nos Estados
Unidos da América. Mestre em Políticas da Economia Mundial pela London
School of Economics and Political Science na Grã-Bretanha. Licenciada em
Economia pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Os
seus interesses de investigação incidem actualmente sobre os estudos para
a paz, governação ambiental, políticas hídricas internacionais e cooperação
internacional para o desenvolvimento. Tem várias publicações e comuni-
cações sobre dinâmicas de governação internacional hídrica e ambiental.

Paula Marques dos Santos é licenciada em Relações Internacionais, fez


uma Pós-Graduação em Comércio Internacional, e doutorada em História
das Relações Internacionais. Docente da Universidade Lusíada do Porto, na
licenciatura e mestrado em Relações Internacionais e da ESTGL, onde foi
também directora do curso de Secretariado de Administração em 2008-2009.
É responsável pela coordenação da formação contínua e Pós-Graduações
da ESTGL. Tem publicado sobre emigração portuguesa, relações externas
de Portugal, comunicação política, cidadania europeia e política externa.
É ainda membro da Team Europe – equipa de especialistas da Comissão
Europeia e formadora do Centro de Informação Europeia Jacques Delors.

Verónica Martins, depois de uma licenciatura em Relações Internacionais


Culturais e Políticas na Universidade do Minho, especializou-se em questões
de integração europeia com um Master em Estudos Europeus (políticos e
administrativos) no Colégio da Europa, em Bruges. Encontra-se actualmente a
finalizar a sua tese de Doutoramento que realiza em co-tutela entre l’Institut
d’Etudes Politiques de Paris (Centre d’Etudes Européennes) e a Universidade
do Minho sobre a questão da europeização das políticas externas da Fran-
ça e Portugal em relação ao Magrebe central. Interessa-se particularmente
pela investigação de temas ligados à política externa da União Europeia e
políticas externas francesa e portuguesa, região do Mediterrâneo, questões
de imigração, e segurança e defesa. Publicações recentes incluem, «Maghreb
Challenges and EU Measures taken towards the Region» (2009) no âmbito
da rede UE-CONSENT e «Portugal and the Mediterranean region: What role
for Civil Society in Foreign Policy?», in Schäfer I. and Henri J-B (org) (2009),
394
Mediterranean Policies from Above and Below, Baden-Baden: Nomos.
(Página deixada propositadamente em branco)
Série

Ensino

Imprensa da Universidade de Coimbra


Coimbra University Press

2011

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