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pombalina.uc.pt
digitalis.uc.pt
Maria Raquel Freire
Coordenação
Política Externa
As Relações Internacionais
em Mudança
• COIMBRA 2011
(Página deixada propositadamente em branco)
1
E N S I N O
EDIÇÃO
2 Imprensa da Universidade de Coimbra
Email: imprensauc@ci.uc.pt
URL: http://www.uc.pt/imprensa_uc
Vendas online http://www.livrariadaimprensa.com
CONCEPÇÃO GRÁFICA
António Barros
INFOGRAFIA
Carlos Costa
Imprensa da Universidade de Coimbra
EXECUÇÃO GRÁFICA
ISBN
978-989-26-0086-4
ISBN Digital
978-989-26-0935-5
DOI
978-989-26-0086-4
DEPÓSITO LEGAL
322732/11
Política Externa
As Relações Internacionais
em Mudança
• COIMBRA 2011
(Página deixada propositadamente em branco)
5
Sumário
Prefácio.. .................................................................................................................. 7
Capítulo 1...............................................................................................................13
Política externa: modelos, actores e dinâmicas, Maria Raquel Freire e Luís da Vinha
Capítulo 2...............................................................................................................55
Alemanha, Patrícia Daehnhardt
Capítulo 3...............................................................................................................77
Arábia Saudita, Ana Santos Pinto
Capítulo 4...............................................................................................................97
Brasil, Carmen Fonseca
Capítulo 5.............................................................................................................125
Estados Unidos da América, Luís Tomé
Capítulo 6.............................................................................................................149
Federação Russa, Maria Raquel Freire
Capítulo 7.............................................................................................................171
França, Verónica Martins
Capítulo 8.............................................................................................................201
Grã-Bretanha, Carlos Gaspar
6
Capítulo 9.............................................................................................................229
Índia, Constantino Xavier
Capítulo 10...........................................................................................................253
Japão, Paula Marques dos Santos
Capítulo 11...........................................................................................................279
Portugal, Nuno Severiano Teixeira
Capítulo 12...........................................................................................................287
República Federal da Nigéria, Paula Duarte Lopes e Daniela Nascimento
Capítulo 13...........................................................................................................313
República Islâmica do Irão, Licínia Simão
Capítulo 14...........................................................................................................339
República Popular da China, Carmen Amado Mendes
Capítulo 15...........................................................................................................361
Turquia, André Barrinha
Notas Biográficas..................................................................................................387
7
Prefácio
8
Coimbra, Novembro de 2010
Maria Raquel Freire
Maria Raquel Freire
Introdução
Este volume tem como temática central a análise de política externa, uma
área vasta, onde o cruzamento de factores internos e externos se evidencia
nos processos de definição, decisão e implementação de políticas. De facto,
o volume explora os processos associados à formulação e implementação
da política externa, como estruturas institucionais, definição da agenda, ins-
trumentos, processo de decisão e prossecução de objectivos, permitindo um
entendimento amplo, num enquadramento multi-nível, embora não exaustivo
das principais dinâmicas associadas à política externa. No entanto, e dado
tratar-se de uma área muito abrangente, o estudo aqui desenvolvido segue
um enfoque de análise político, securitário e económico, em diferentes pesos
e com abordagens distintas, contudo sem detalhar outras áreas de actuação
que fazem parte de uma agenda alargada de política externa, como por
exemplo questões ambientais ou de natureza cultural, cuja menção surge em
alguns casos, embora não como foco de análise prioritário. Além do mais,
apesar da política externa não ser actualmente um domínio exclusivo dos
Estados, constitui ainda uma área de actuação por excelência destes, pelo
que este volume apenas se foca na análise de política externa de Estados
enquanto actores das relações internacionais.
Este exercício, explanado no capítulo teórico, visa fornecer os instrumen-
tos conceptuais e analíticos de base para a compreensão dos vários estudos
de caso que se seguem. Deste modo, o volume apresenta uma componente
empírica muito forte, entendida como essencial para o entendimento dos
processos diferenciados de formulação, implementação e objectivação da
política externa de Estados distintos. Esta opção é ilustrativa da vontade
de que este volume constitua um trabalho de referência inclusivo, onde se
encontram casos díspares ilustrativos da grandeza diferencial dos processos
em análise de acordo com uma série de factores quer de ordem interna,
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incluindo órgãos e procedimentos de decisão, recursos económicos e mi-
litares, entre outros, quer de ordem externa, nomeadamente o contexto
de vizinhança, regional e mesmo internacional. Seguindo esta fórmula, os
estudos de caso exploram os objectivos, actores e instrumentos na formula-
ção e condução das políticas externas destes países, relacionando factores
domésticos e externos fundamentais nesta articulação, e entendidos neste
trabalho como co-constitutivos na definição e entendimento de política
externa de qualquer Estado. São aqui analisados como estudos de caso, e
por ordem alfabética, os seguintes países: Alemanha, Arábia Saudita, Brasil,
Estados Unidos da América, Federação Russa, França, Grã-Bretanha, Índia,
Japão, Portugal, República Federal da Nigéria, República Islâmica do Irão,
República Popular da China, e Turquia.
A escolha dos estudos de caso prendeu-se com três factores essenciais:
primeiro, o facto de se tratar de actores relevantes nas relações interna-
cionais, constituindo por isso mesmo um conjunto de actores dinâmicos e
com implicações claras na determinação e curso de transformação da ordem
internacional; segundo, procurando exprimir, ainda que de forma limitada,
equilíbrios geográficos através da identificação de actores diferenciados
na estrutura mundial; e terceiro, e não menos importante, representati-
vidade da diferença existente em termos dos processos de formulação e
implementação das políticas externas, mesmo em áreas regionais próximas,
como por exemplo ilustrarão os estudos de caso de países europeus, como
a Alemanha, França, Grã-Bretanha ou Portugal. Estes elementos permitem
assim uma combinação que julgamos da maior relevância para um trabalho
desta natureza e que entendemos tratar-se de um contributo fundamental
para os estudos de política externa.
Em termos da estrutura do Manual, este visa analisar a política externa
dos países em questão num período temporal definido, embora não necessa-
riamente determinístico, desde a Segunda Guerra Mundial até à actualidade,
com maior destaque para o período pós-Guerra Fria. Os capítulos seguem
uma estrutura similar ajustada de acordo com as particularidades de cada
caso, que são variadas e evidentes, com o objectivo de garantir maior coesão
no resultado final. Deste modo, em traços gerais, os capítulos empíricos
identificam os principais actores, mecanismos e processos associados à
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formulação e decisão em política externa, e analisam a evolução desta, sa-
lientando as articulações das dinâmicas existentes com a actualidade. São
apresentadas as diferentes perspectivas e opções subjacentes ao processo
evolutivo de formulação e implementação de políticas, explorando relações
de maior ou menor proximidade com terceiros (relações de vizinhança,
inserção no quadro regional, posicionamento nas relações internacionais),
políticas de envolvimento/isolacionismo, limites e possibilidades. Ou seja,
prosseguindo a análise das políticas externas numa relação co-constitutiva,
fazendo a interligação entre recursos, instrumentos e actores internos com
o contexto externo, nas diferentes dimensões em que o Estado em análise
se insere. O resultado é um volume rico, em termos teóricos e empíricos,
que se pretende uma ferramenta de trabalho fundamental para todos os
que se dedicam ao estudo da política externa.
(Página deixada propositadamente em branco)
Maria Raquel Freire
e Luís da Vinha
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Capítulo 1
Po l í t i c a e x t e r n a : m o d e l o s , a c t o r e s e d i n â m i c a s
Modelos teóricos
Organizações Pequenos
Actor Racional Líderes
Burocráticas Grupos
1 Os exemplos da crise dos mísseis de Cuba que servem para ilustrar os diferentes modelos
teóricos seguem a proposta de Kegley e Wittkopf (1995).
Pode haver muitas interpretações sobre o que está certo, o que é possível,
e o que é no interesse nacional» (Kegley e Wittkopf, 1995: 49).
Apesar das virtudes oferecidas pela escolha racional, os impedimentos à
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sua realização são substanciais. Alguns são humanos; derivam de deficiên-
cias nos serviços de informação, capacidade, e aspirações e necessidades
psicológicas daqueles que tomam decisões de política externa sob condições
de incerteza. Outros são organizacionais pois a maior parte das decisões
são tomadas em grupo. Em resultado, a maior parte das decisões requerem
assentimento do grupo quanto ao interesse nacional e ao curso de acção a
seguir. Chegar a um acordo não é fácil, dada a discordância sobre objectivos
ou preferências, e sobre os resultados prováveis de opções alternativas. Por
exemplo, o reconhecimento do problema é muitas vezes adiado. Grandes
quantidades de informação para trabalhar em tempo escasso ou informação
insuficiente ou inadequada para definir problemas emergentes de forma
cuidada, condicionam o processo de formulação política racional.
Uma vez que os decisores políticos trabalham constantemente com
agendas sobrecarregadas e prazos curtos, a procura de opções políticas é
raramente exaustiva. Como Kissinger afirmava, «há pouco tempo para os
líderes reflectirem. Estão presos numa batalha sem fim onde o urgente se
sobrepõe constantemente ao importante. A vida pública de cada figura po-
lítica é uma luta contínua para salvar um elemento de escolha da pressão
das circunstâncias» (Secretário de Estado norte-americano, 1979, em Kegley
e Wittkopf, 1995: 50). Na fase da escolha, em vez de seleccionarem uma
opção ou conjunto de opções com as melhores hipóteses de sucesso, os
decisores geralmente decidem quando surge uma alternativa que parece
melhor que as consideradas anteriormente. Em vez da optimização, dá-se
apenas uma satisfação, através de uma escolha que satisfaça os requisitos
mínimos, evitando opções mais arriscadas.
Ou seja, em certas circunstâncias, os governos tomam decisões como
se estivessem a seguir a norma da racionalidade meios-fins e escolhem a
alternativa que melhor lhes permite atingir os objectivos ou promover os
valores dos decisores. A dicotomia entre os pressupostos da racionalidade
e da irracionalidade no comportamento de indivíduos, grupos e governos
constitui, assim, uma das dimensões mais persistentes e problemáticas.
A «concepção sinóptica» da tomada de decisões que parte do princípio de
que os políticos colocam perante si todas as alternativas possíveis avalian-
do, a partir da sua hierarquia de preferências, todas as consequências das
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mudanças sociais inerentes às diversas acções em consideração, não se
adequa à realidade. Pressupõe uma omnisciência e uma espécie de análise
abrangente demasiado dispendiosa e que a pressão do tempo normalmente
não permite. Cada solução tem de estar limitada a uma série de factores,
incluindo as capacidades individuais de resolução de problemas, a infor-
mação disponível, o custo da análise (em pessoal, recursos e tempo) e a
impossibilidade prática de separar os factos dos valores.
Herbert Simon (1955: 13) foi um dos principais críticos do modelo
clássico da tomada racional de decisões, postulando um mundo de «racio-
nalidade limitada». Substituiu o conceito de maximização ou optimização
do comportamento pelo de comportamento satisfatório. Este pressupõe que
os políticos não elaboram uma matriz com todas as alternativas disponíveis,
os prós e contras de cada uma delas e as avaliações de probabilidade das
consequências esperadas. Em vez disso, as unidades de decisão examinam,
de forma sequencial, as alternativas disponíveis até chegarem a uma que
corresponda aos seus níveis mínimos de aceitabilidade. Por outras palavras,
os indivíduos vão rejeitando as soluções que os não satisfazem até encontra-
rem uma solução suficiente e consensualmente satisfatória que lhes permita
agir. Apesar de os decisores conseguirem absorver rapidamente grandes
quantidades de informação sob grande pressão, e assumir riscos calculados
com base num planeamento ponderado, muitas vezes o grau de racionali-
dade tem pouca relação com o mundo onde os oficiais conduzem as suas
deliberações. Apesar da formulação racional da política externa ser mais um
ideal do que uma descrição da realidade, parece útil aceitar a racionalidade
como imagem do modo como o processo de decisão se deve processar e
como uma descrição dos elementos chave de como pode funcionar.
O modelo do actor racional assume que os estados unitários são os
intervenientes-chave e que agem de forma racional, calculando os custos e
os benefícios inerentes às várias escolhas políticas, na procura da escolha
que maximize a sua utilidade. Este modelo encontra laços estreitos com o
realismo clássico e o neo-realismo ou realismo estruturalista. Apesar disso,
institucionalistas liberais como Keohane, juntamente com teorizadores da
paz democrática como Doyle, são vistos como comungando do essencial do
modelo do actor racional. De qualquer modo, o campo liberal e pluralista
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tende a juntar ao modelo, quadros de referência centrados na máquina
e políticas governativas: os processos organizacionais – segundo modelo
de Allison, que consiste em identificar as organizações governamentais
relevantes envolvidas numa crise, determinando depois os interesses e os
procedimentos operacionais standard que influenciam o comportamento
das organizações; e os processos burocráticos – que analisamos em se-
guida e que se prendem com as políticas internas, não tendo a ver tanto
com escolhas ou com resultados, mas mais com os jogos negociais e de
influência no seio da estrutura hierárquica governativa. Ou seja, enquanto
o actor racional procura maximizar os objectivos estratégicos nacionais; as
organizações comportam-se de acordo com os procedimentos operacionais
estandardizados; e as burocracias envolvem-se em compromissos, negocia-
ções, coligações e competição.
2 Variáveis como localização geoestratégica, poder económico e militar, recursos naturais são
referenciadas comummente como determinantes na formulação e decisão em política externa. Além
do mais, a bibliografia identifica factores como as alianças, as corridas ao armamento, o nuclear ou
o tipo de regime político como aspectos a ter em conta nas análises. Ver Doyle (1983), Foot (2006),
Freedman (2004), Gray (2007), Ikenberry (2008), Levy (1981), Mintz e DeRouen Jr. (2010), Nye Jr.
(2002), Saunders (2009), Wallace (1979).
tais no estudo da política externa. Como referido na secção relativa aos
modelos teóricos, estes factores podem ter um peso determinante nos pro-
cessos de formulação e implementação de decisões, moldando, formatando
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e condicionando opções. De forma variada, estes influenciam, directa ou
indirectamente, o processo de decisão de política externa.
Os grupos de interesse organizados representam variados interesses
distintos. Um grupo muito influente representa os interesses económicos
nacionais, onde organizações de trabalhadores e empresas dispõem de re-
cursos importantes para influenciar os decisores políticos. Seja para proteger
os seus postos de trabalho ou para consolidar e aumentar os seus negócios,
estes grupos de interesse aplicam uma elevada pressão nos políticos e que se
traduz na mobilização eleitoral e financeira dos seus constituintes ( Jacobs e
Page, 2005). Outros grupos organizados representam interesses mais especí-
ficos em termos de política externa. Os lobbies políticos associados a causas
de outros Estados também condicionam os decisores políticos através dos
inúmeros recursos de que dispõem. Um estudo recente testemunha o peso
que o lobby israelita tem na formulação da política externa norte-americana
(Mearsheimer e Walt, 2008). Composto por uma coligação informal de in-
divíduos e grupos, o lobby israelita tem mobilizado um nível assinalável
de apoio material e diplomático para persuadir os decisores americanos a
manterem uma política de apoio a Israel. Os autores argumentam que o
poder do lobby assume proporções tão significativas que as políticas por si
avançadas por vezes acabam por ser prejudiciais e contraproducentes para
o próprio interesse nacional dos EUA (Mearsheimer e Walt, 2008).
Por sua vez, as comunidades epistémicas são compostas por uma «rede
de profissionais com experiência e competência reconhecidas numa de-
terminada área e uma autoridade reconhecida sobre um conhecimento de
interesse político dentro dessa mesma temática» (Haas, 1992: 3). Embora
as comunidades epistémicas compreendam geralmente grupos compostos
por cientistas e académicos, também se referem a grupos constituídos por
outros indivíduos que partilhem um conjunto de características comuns
(Haas, 1992: 3), nomeadamente um conjunto de crenças normativas e
princípios que fornecem uma base valorativa para a actividade social dos
seus membros; a partilha de crenças sobre a causalidade central de um
determinado problema e que estabelece a ligação entre as alternativas de
acção política e os resultados desejados; noções partilhadas de validade,
i.e. critérios intersubjectivos internamente definidos para avaliar e validar o
39
conhecimento na sua área de especialização; e um projecto político comum
que acreditam possa melhorar a situação em causa.
As comunidades epistémicas e os peritos influenciam a decisão política
ao fornecer os decisores com reflexões e recomendações sobre as políticas
a prosseguir, nomeadamente identificando causas, dinâmicas, objectivos
e alternativas políticas inerentes aos eventos políticos internacionais.
O Project for a New American Century (PNAC) reflecte estes preceitos.
Fundado em 1997 por um pequeno conjunto de indivíduos de orienta-
ção conservadora, o PNAC foi moldando o debate de política externa no
seio do Partido Republicano nos EUA. Inicialmente irradiado do palco
principal do debate político, o PNAC conseguiu através da utilização de
diversos recursos à sua disposição, principalmente a autoridade intelectual
reconhecida dos seus membros em questões de política internacional,
afirmar-se como um grupo de pressão altamente eficiente na influência
do poder político. É hoje reconhecido que a afirmação contemporânea
do poder militar americano e a sua orientação intervencionista e trans-
formadora fruem de muitos dos princípios e orientações apontadas pelo
PNAC (Chollet e Goldgeier, 2008).
Vários estudos demonstram que a opinião pública tem um impacto
significativo no processo de decisão política. Os períodos de crise interna-
cional são particularmente susceptíveis ao poder do sentimento popular.
No seu estudo sobre a influência da opinião pública americana, Brulé e
Mintz demonstram que os líderes moderam o uso da força quando há uma
oposição popular generalizada, mas quando há uma maioria favorável os
líderes geralmente optam por políticas mais agressivas (Mintz e DeRouen Jr.,
2010). Contudo, a opinião pública é susceptível a alterações significativas.
Se é certo que pode haver um inequívoco apoio público a uma qualquer
política em determinado momento, tal não significa que essa mesma opi-
nião não se altere de forma substancial em pouco tempo. Todavia, estudos
aprofundados, abrangendo ciclos temporais relativamente longos, evidenciam
uma maior estabilidade na opinião pública do que usualmente se pressupõe
(Holsti, 2006; Jacobs e Page, 2005). De qualquer maneira, a sua influência
não pode ser afastada, particularmente quando se considera a forma como
os decisores percepcionam a vontade popular.
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Estreitamente associado à opinião pública estão os meios de comuni-
cação social. Em muitas situações os decisores aferem o apoio público
através da cobertura que os meios de comunicação atribuem a deter-
minado assunto (Breuning, 2007). Logicamente, o poder dos órgãos de
comunicação é importante não só pela sua capacidade para direccionar
a atenção do público, mas também dos decisores políticos. De facto,
muitos estudos debruçam-se sobre o denominado «efeito CNN», procu-
rando analisar a forma como os meios de comunicação têm influenciado
as decisões políticas. Embora se mantenha um debate vivo sobre os
modelos e metodologias mais apropriadas para averiguar o fenómeno, a
importância efectiva dos meios de comunicação é hoje consensualmente
aceite (Gilboa, 2005). O próprio Richard Nixon (1980: 116) confirma o
poder dos media ao atribuir-lhes um papel determinante no desfecho
da Guerra do Vietname: «A cobertura desonesta e dúbia da Guerra do
Vietname não constituiu um dos mais belos momentos da comunicação
social americana. Distorceu poderosamente a percepção pública, e isso
reflectiu-se no Congresso».
O enquadramento legal doméstico também pode condicionar as decisões
de política externa. A legislação nacional pode, em muitos casos, condicionar
as opções disponíveis aos líderes. A Administração Clinton, por exemplo,
viu-se limitada na sua perseguição a Bin Laden pela proibição consagrada
na Ordem Executiva 12333 de Dezembro de 1981 e que impede as agências
governamentais americanas de participar em assassinatos políticos (Wood
ward, 2005). Noutros Estados esta diversidade de condicionantes não é tão
manifesta. No caso chinês, o Partido Comunista Chinês retém ainda um
elevado controlo sobre o processo de política externa. Embora nos últi-
mos anos se tenham verificado alterações significativas na participação de
outros actores domésticos no processo de decisão política (Gilboy e Read,
2008), «o Partido mantém o seu direito de permanecer como o derradeiro
actor político no país» (Lanteigne, 2009: 24). A abertura chinesa nas últimas
décadas acabou por aumentar a capacidade reivindicativa de vários actores
domésticos que tradicionalmente não tinham qualquer dinâmica política
como são os casos da classe empresarial, das ONG, grupos de interesse
organizados e think tanks (Lanteigne, 2009: 24).
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A discrepância entre o número de factores domésticos que determinam e
condicionam a política externa dos diferentes Estados é muitas vezes conse-
quência de diferenças culturais. As culturas nacionais – conjunto unificado
de ideias que são compartilhadas pelos membros de uma sociedade e que
estabelecem um conjunto partilhado de premissas, valores, expectativas e
predisposições entre os membros da nação como um todo – influenciam o
processo de decisão de diversas formas (Vertzberger, 2002). Mais especifi-
camente, a cultura actua sobre a forma como os indivíduos contextualizam
e compreendem as diferentes situações, destacando determinados tipos de
informações sobre outras, e as formas de lidar com elas. Vários estudos têm
evidenciado como os factores culturais condicionam a política externa. Numa
investigação recente, Yang, Geva e Chang demonstraram que os decisores
americanos são mais propícios ao risco do que os decisores chineses. Os
diferentes contextos culturais determinam que, perante a mesma escolha,
os chineses têm expectativas de benefícios maiores do que os americanos
(Mintz e DeRouen Jr., 2010). Desta forma, os vários estudos têm alegado que
as diferenças culturais afectam tanto a escolha como o processo de decisão.
Todos estes factores contribuem para a complexidade do ambiente de
decisão. Porém, é a dimensão psicológica que permite aos decisores com-
preender e avaliar os factores internacionais e domésticos, integrando-os
no processo de decisão externa.
Factores psicológicos
Conclusão
Leituras recomendadas
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(Página deixada propositadamente em branco)
Patrícia Daehnhardt
55
Capítulo 2
Alemanha
Qual foi o interesse nacional da RFA nos anos imediatos depois da sua
constituição? Perante os condicionalismos da bipolaridade, o primeiro Chan-
celer da República Federal, Konrad Adenauer, da União Democrata Cristã
(CDU), definiu as duas opções da política externa da seguinte forma: pros-
seguir com o objectivo da reunificação das duas Alemanhas ou promover
a integração da RFA nas estruturas institucionais ocidentais que se estavam
a criar através de uma política de Westbindung (aliar-se ao Ocidente).
A primeira opção sugeria uma alteração do status quo recém imposto pelas
potências vencedoras, o que corria o risco de isolar a RFA diplomatica-
mente. A divisão alemã e a presença das quatro potências vencedoras da
Guerra fazia com que qualquer tentativa de resolução deste problema teria
de ser enquadrada num contexto mais amplo de confronto leste-oeste, e
da Guerra Fria que se estava a iniciar. A segunda opção integraria a RFA
nas estruturas institucionais da Europa ocidental, ancorando-a na Aliança
Atlântica e nas Comunidades Económicas Europeias, ao mesmo tempo que
reconhecia, implicitamente e a curto prazo, a efectiva divisão alemã, e corria
1 A cidade de Berlim era o centro nevrálgico desse conflito bipolar. Várias crises da Guerra Fria
decorreram na Europa: a crise de Berlim, em 1948, que levou à partilha da Alemanha, e de Berlim, em
dois, e a crise de 1958-1961, que terminaria com a construção do Muro de Berlim, em Agosto de 1961.
o risco de impopularidade junto do eleitorado devido à artificialidade da
divisão da nação alemã. 2
A escolha entre estas duas opções foi fundamental, porque determinou
59
a condução da diplomacia alemã durante a Guerra Fria. Konrad Adenauer
optou pela política de Westbindung. O objectivo da reunificação era o objec-
tivo primordial, mas teve de ser relegado para segundo plano. Impunha-se,
em primeiro lugar, convencer os aliados, e principalmente a França e os
Estados Unidos, de que a RFA pretendia ocupar um lugar sólido nas novas
estruturas institucionais ocidentais, e que a nova classe política alemã se
tornara uma elite em que o ocidente podia confiar, que não sucumbia às
tentações de uma neutralidade política que poderia vir a desequilibrar o
frágil equilíbrio assegurado pela dissuasão nuclear entre os dois blocos.
Para Adenauer, oriundo da Renânia, a opção externa pela Westbindung era
uma questão existencial e passava por duas relações bilaterais indispensáveis:
a França e os Estados Unidos. Face ao receio francês de um ressurgimento
militar alemão, a RFA aceitou a criação de uma Agência de Controlo de Ar-
mamentos para que a França aceitasse o rearmamento alemão e a integração
da RFA na Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Isto levou
a Alemanha a seguir uma política de reconciliação com a França, que se
traduziu no início do processo de integração europeia na década de 1950.
Quanto aos Estados Unidos, a administração Truman teve a visão estratégica
de, para tornar a política de contenção do comunismo soviético eficaz, ser
essencial incluir a RFA nas estruturas institucionais que os Estados Unidos
estavam a promover no continente europeu, a partir de 1947.
O Chanceler Adenauer não sucumbiu à oferta do líder soviético Estaline,
quando este propôs, em 1952, que a URSS aceitaria a reunificação das duas
Alemanhas desde que uma Alemanha unificada fosse neutra e não integrasse
nenhuma aliança militar. Tal situação teria colocado as forças ocidentais à
esquerda do rio Reno, numa clara desvantagem estratégica face a Mosco-
vo. Para além do mais, uma Alemanha unificada desligada de uma aliança
2 É por essa razão que não existiu, na RFA, uma Constituição, mas apenas uma ‘Lei Básica’
(Grundgesetz) como lei fundamental, elaborada por um ‘período de transição’ que seria terminado
aquando da reunificação do povo alemão.
levantaria, mais uma vez, o ‘problema alemão’: o de que uma Alemanha
demasiado forte seria uma ameaça hegemónica para os seus vizinhos, e uma
Alemanha demasiado fraca seria uma tentação para ambições dos mesmos.
60
Uma Alemanha neutra e desarmada causaria o duplo problema de mantê-la
desarmada e livre da dominação de outras potências; uma Alemanha neu-
tra e armada levantaria o problema oposto de mantê-la neutra e de evitar
uma nova hegemonia de poder. Neste sentido, e apesar da anormalidade
da existência de dois Estados alemães na Europa, a RFA estava firmemente
integrada numa rede de instituições o que evitava simultaneamente o isola-
mento do país e as tentações neutralistas, ao mesmo tempo que assegurava,
voluntariamente, o constrangimento do poderio alemão. O constrangimento
foi tal que levou alguns a falar da transição de uma ‘obsessão pelo poder’
(Machtbesessenheit) para um ‘esquecimento do poder’ (Machtvergessenheit)
(Schwarz, 1994) por parte dos decisores políticos alemães.
É face a este conjunto de cenários que a administração de Dwight Eise-
nhower e Adenauer, conceberam a inclusão da RFA na OTAN para assegurar
a política de contenção de expansionismo militar e ideológico da União
Soviética.3 A integração na OTAN aconteceu através dos Acordos de Paris, de
23 Outubro de 1954, e depois de a França ter recebido garantias do Reino
Unido e dos EUA de que estes manteriam uma presença militar substancial
na RFA e na Europa (Paris Agreements, 1954). Os Acordos terminaram com
o estatuto de ocupação da RFA, que recuperou a sua soberania e integrou
consequentemente a OTAN e a União da Europa Ocidental (UEO). Pelos
Acordos, a RFA podia ter forças militares próprias, comprometendo-se a
integrá-las na totalidade nas estruturas da OTAN, e renunciava ao fabrico
de armas nucleares, biológicas e químicas. Os Acordos incluíram ainda uma
declaração de auto-limitação, onde a RFA se comprometeu a «nunca recorrer
à força para obter a reunificação da Alemanha», e de «resolver por meios
pacíficos» disputas com outros países. Integrar a RFA na OTAN serviria, as-
4 Não foi por acaso que, na sequência da queda do Muro de Berlim, em 9 de Novembro de 1989,
a questão negocial mais controversa, e aquela que ainda hoje é debatida, foi a adesão da Alemanha
unificada à OTAN, mais do que a própria continuidade institucional da OTAN. Ainda hoje em dia é as-
sim, no que se refere à hipótese, de momento remota, da integração da Geórgia e da Ucrânia na OTAN.
Por outro lado, iniciou-se o processo de integração económica na Europa
ocidental. Através do chamado ‘plano Schuman’, que propunha a integra-
ção das indústrias europeias do carvão e do aço, a França e a RFA criaram
62
a CECA, em 1951. A RFA e a França, a Itália e os três países do Benelux
criaram, em 1957, a Comunidade Económica Europeia (CEE). Desde o iní-
cio, a RFA e a França representaram o núcleo do processo de integração
europeia, que foi ao mesmo tempo também catalizador na reconciliação
entre os dois Estados.
Desde então a RFA desenvolveu uma política europeia assente na forte
congruência entre as instituições e interesses entre a RFA e a CEE, o que
fez com que muitos considerassem a Alemanha um ‘Estado europeizado’
(Bulmer et al., 2000). O compromisso da RFA com a integração europeia
teve, desde a sua origem, uma dupla motivação adicional, diferente da dos
restantes países europeus. Por um lado, para Adenauer, a participação no
projecto de integração europeia era uma forma de a RFA recuperar sobera-
nia política. Assim, ao passo que o projecto visava, a longo prazo, delegar
prerrogativas de soberania nacional para as instituições comunitárias, para
Bona o objectivo era, em primeira instância, adquirir margem de manobra
e consolidar a soberania política. Por outro lado, o papel da Alemanha e
a memória histórica dos crimes do nacional socialismo condicionaram a
política externa e moldaram a identidade internacional da RFA, na medida
em que os próprios decisores políticos alemães concebiam a nação alemã
como fortemente europeizada, assente numa identidade pós-nacional. Nesse
sentido, a integração europeia não foi para os alemães apenas uma questão
económica e de reconciliação entre povos europeus, mas também um ins-
trumento para a gradual recuperação da identidade nacional. Num contexto
onde palavras como ‘patriotismo’ eram tabu, o marco alemão tornou-se um
substituto para a identidade debilitada, e o chamado Verfassungspatriotismus
(patriotismo constitucional) (Sternberger, 1990) funcionou como substituto
do patriotismo nacional (Sternberger, 1990).
Adenauer inverteu a lógica da integração ao não delegar elementos de
soberania que a RFA não possuía, mas para recuperar esses mesmos ele-
mentos. É neste duplo sentido que se pode argumentar que a RFA, ao longo
dos quarenta anos de Guerra Fria, se tornou uma potência domesticada,
um «tamed power» (Katzenstein, 1997). Tratou-se de uma política de baixos
custos e de elevadas compensações: num cenário de enfraquecida identi-
dade nacional, a integração europeia correspondeu ao interesse nacional
63
alemão e a melhor forma de alcançar a crescente integração foi através do
multilateralismo político.
Nos 14 anos em que foi Chanceler da RFA, Adenauer prosseguiu uma
política de aproximação ao ocidente, ‘ancorou’ a RFA nas estruturas insti-
tucionais da OTAN e da Comunidade Económica Europeia, e reconciliou
o seu país com a França, o que levou à assinatura do Tratado dos Eliseus,
em Janeiro de 1963, com o Presidente francês, Charles de Gaulle, institu-
cionalizando a relação de parceria entre os dois países.
A unificação alemã
67
Conclusão
6 Military Balance 2010, p. 462. Os Estados Unidos, por exemplo, gastaram, no mes-
mo período, entre 4.53% e 4.88% do PIB.
actor crescentemente auto-confiante e assertivo, tanto nas suas relações
com membros da União Europeia como nas suas relações transatlânticas
com os Estados Unidos.
73
Ao contrário do que se passou na primeira metade do século XX e de
forma menos acentuada durante a Guerra Fria, uma Alemanha unificada
no centro da Europa já não é hoje vista como ameaça à estabilidade do
espaço euro-atlântico. Podem surgir novas questões, como a recente postura
do governo de coligação centro-direita de Angela Merkel face à crise do
euro e à situação destabilizante na Grécia, na Primavera de 2010, quando
a Chanceler não demonstrou a liderança necessária e estratégica que se es-
pera de uma potência central europeia. Mas a expressão ‘a Questão Alemã’,
conotada historicamente com uma postura de política externa agressiva e
destabilizadora já não caracteriza a política externa da Alemanha unificada.
Esta Alemanha não apenas rejeitou um incremento unilateral de poder como
prosseguiu o aprofundamento da integração europeia e o reforço das ins-
tituições ocidentais, e manteve ênfase na continuidade do multilateralismo
como melhor estratégia da política externa alemã até hoje.
Fontes na Internet
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Homepage/home.html
Ministério dos Negócios Estrangeiros, http://www.auswaertiges-amt.de/
diplo/en/Startseite.html
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Deutsche Gesellschaft für Auswärtige Politik, http://en.dgap.org/
Frankfurter Allgemeine Zeitung, http://www.faz.net/
74
Leituras recomendadas
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Shaping the regional milieu. Manchester: Manchester University Press.
Hanrieder, Wolfgang (1989). America, Europe: Forty Years of German Foreign
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Bibliografia
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Schwarz, Hans-Peter (2005) Republik ohne Kompass: Anmerkungen zur deutschen Aussenpolitik.
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(Página deixada propositadamente em branco)
Ana Santos Pinto
77
Capítulo 3
Arábia Saudita
1 Hégira consiste no processo de migração de Maomé e dos seus seguidores de Meca para
Medina, em 622 d. C, onde se constitui como a primeira cidade regida de acordo com os princípios
definidos pelo Profeta. A Hégira é um acontecimento central na história do Islão, cuja importância se
reflecte na sua consagração como a base do calendário religioso.
Arábia Saudita, Abdul Aziz Al Saud (conhecido por Ibn Saud), aproveita o
vazio de poder na Península Arábica e promove a unificação das diversas
províncias através da conquista de territórios. Rapidamente, e apoiado numa
79
coligação de tribos liderada pela família Saud, foram conquistados quatro
quintos da Península Arábica, tendo o novo Estado sido proclamado, pri-
meiro em 1926 – enquanto Reino de Hijaz – e, mais tarde, já como Reino
da Arábia Saudita, em 1932.
Neste sentido, a manutenção do Estado saudita depende, também, de
acordos ad hoc com líderes tribais, que mantêm a sua importância na
estrutura da comunidade nacional (Commins 2006: 104). Isto, porque a
Arábia Saudita assenta numa sociedade de estrutura tribal, que deriva da
existência de diversas regiões com diferentes histórias de relação com
o exterior. No interior do território mantêm-se fortes tradições tribais
e uma interpretação mais estrita do Islão, enquanto nas zonas litorais
e maiores aglomerados urbanos existe um crescente cosmopolitismo e
uma maior diversidade social, económica e política da população (al-
Rasheed 2002: 6).
Por estes motivos, a Arábia Saudita vive uma tensão entre duas perspec-
tivas face à natureza e organização da sua sociedade: por um lado, uma
perspectiva conservadora, que defende a existência de um país culturalmente
uniforme, sustentado no wahabismo sunita e nos valores tribais da região
de Najd (local de origem da família real Saud), e que, como tal, promove
uma estratégia de homogeneização da comunidade nacional; por outro, uma
perspectiva progressista, que reconhece a existência de uma comunidade
diversificada – resultado de um país composto por diversas regiões, tribos e
seitas –, e que, por isso, exige uma estratégia pluralista assente em reformas
inclusivas. Ambas as estratégias reflectem-se em cisões no seio da família
real saudita, bem como das elites nacionais e mesmo na classe religiosa, e
na definição de diferentes posicionamentos face às expectativas e exigên-
cias de reformas internas, designadamente as tentativas de alargamento da
representação política.
No seio da família real, que conta com mais de 22 mil membros, existe
uma luta interna entre aqueles que são mais abertos à promoção de reformas
económicas, políticas e sociais, e aqueles que defendem a manutenção do
status quo. 2 O actual monarca da Arábia Saudita, Rei Abdullah bin Abdu-
laziz, é considerado um pluralista moderado, procurando acomodar, com
cautela, as exigências populares, e tendo já promovido um conjunto de
80
reformas que conduziram, por exemplo, à realização de Diálogos Nacionais
– que envolvem a participação de sunitas e xiitas, homens e mulheres –,
bem como das primeiras eleições municipais, em 2005 (único acto eleitoral
realizado no país até à data). Por seu lado, e em particular desde 2001,
as elites sauditas têm procurado formar um lobby no sentido da concreti-
zação de reformas internas, que incluem a consagração de direitos civis e
políticos, promoção da igualdade de género, responsabilidade governativa,
promoção de medidas anti-corrupção, distribuição equitativa dos recursos
do Estado, promoção de um poder judicial independente e regulação do
poder da estrutura wahabita. Em resposta a estas exigências, a monarquia
saudita tem procurado promover um conjunto de reformas políticas no sen-
tido de responder, por um lado, às pressões internas das elites no sentido
da modernização e, por outro, às pressões internacionais de aproximação
aos princípios de organização dos Estados democráticos. Porém, encontra
obstáculos nos princípios conservadores patentes na sociedade.
Os clérigos wahabitas procuram pressionar o regime para manter os seus
privilégios e a pureza dos princípios islâmicos vigentes na Arábia Saudita.
Ao contrário do que aconteceu com o império Otomano ou com o Egipto,
por exemplo, onde a moderação do Estado resultou na marginalização dos
ulemas, a profunda ligação histórica entre a família Saud e o wahabismo
significa que a componente religiosa do Reino não poderia ser marginalizada.
Assim, os clérigos wahabitas usam o seu controlo sobre a Lei, influenciam
a educação e afirmam uma legitimidade moral para influenciar a população
contra a modernidade ocidental. O wahabismo infiltrou-se, assim, no Estado
e na Administração Pública, utilizando-os para difundir a sua mensagem
(Commins 2006: 105). Os clérigos wahabitas controlam o poder judicial –
todos os Juízes do Reino são nomeados pelos ulemas –, defendem a ma-
2 Recorde-se que o Rei Faisal (1904-1975) foi assassinado por um sobrinho, por ser conside-
rado progressista, já que tinha desenvolvido, entre 1965 e 1975, uma tentativa de alargamento da
representação política, incluindo, no Governo, representantes de diversas tribos e grupos religiosos.
(Yamani, 2008)
nutenção de uma interpretação estrita do Corão e a aplicação da Sharia de
acordo com uma interpretação exclusivamente wahabita. Para além disso,
controlam importantes estruturas e políticas do Estado, como o Ministério
81
dos Assuntos Islâmicos e das Finanças, 3 a definição da política religiosa
(mutaw’a) e educativa, bem como controlam os órgãos de comunicação
social e as Forças Armadas.
A estrutura institucional do Estado saudita assenta numa mistura entre
tradições locais e modelos ocidentais, resultado da influência, mas não
controlo directo, dos impérios ocidentais. Assim, Arábia Saudita é uma mo-
narquia absoluta, onde o Rei é, simultaneamente, Chefe de Estado, Chefe
de Governo, Guardião das Duas Mesquitas Sagradas do Islão e Comandante
Supremo das Forças Armadas, sendo coadjuvado nas suas funções pelo
Príncipe herdeiro, segundo na sucessão ao trono. Os poderes do Rei são
limitados pela Sharia, não tendo o monarca competência para promulgar
leis (apenas emite decretos reais, de acordo com a Lei islâmica), e não
existindo separação entre a Igreja e o Estado. Neste sentido, o Corão e a
Sunna4 compõem a Constituição do Estado, existindo ainda um conjunto de
Leis Básicas de Governo, em vigor desde 1993. O poder executivo centra-se
no Conselho de Ministros, composto actualmente por 22 ministérios. O Rei
é, ainda, aconselhado por um Conselho Consultivo (Majlis Al-Shura), com-
posto por 120 membros com um mandato de quatro anos, cuja composição
é aprovada pelo Rei, não existindo partidos políticos ou eleições nacionais.
De acordo com as tradições sauditas, de natureza tribal, as decisões do
Rei (obrigatoriamente membro da família Saud) devem obter o consenso
da família real, dos líderes religiosos e de outros elementos de destaque da
sociedade saudita. Neste sentido, as decisões em matéria de política externa
seguem um princípio de consulta alargada, sendo o responsável pelo Mi-
nistério dos Negócios Estrangeiros um dos membros da família real saudita.
3 A componente de recolha de impostos tem, também, uma dimensão religiosa já que o Islão
define a existência do Zakat (um dos pilares do Islão), um imposto obrigatório, que exige a todos os
muçulmanos 2,5% do seu rendimento. Uma das categorias de beneficiários do Zakat são os muçul-
manos que lutam pela causa do Profeta, podendo incluir, ainda, a construção de mesquitas, hospitais,
escolas, investimentos em obras de divulgação do Islão ou a defesa da comunidade muçulmana de
agressões externas. (Cf. Esposito, 2003)
4 Síntese dos costumes e práticas do Islão, conforme a vida do Profeta Maomé.
A diplomacia dos ‘petrodólares’
6 Cf. «Arab Peace Initiative 2002 – King Abdullah’s Peace Plan». Saudi-US Relations Information
Service. [http://www.saudi-us-relations.org/fact-book/documents/2006/060609-arab-peace-plan.html].
ao Ocidente (Niblock, 2006: 86). Da mesma forma, os desenvolvimentos do
processo de paz frustraram os policy-makers sauditas, em particular porque
cada momento de intensificação do conflito provocava um sentimento de
91
decepção face aos esforços desenvolvidos e promovia o apoio à retórica de
grupos extremistas. É neste contexto que surge Plano de Paz Árabe, que se
constitui como um instrumento diplomático com o objectivo de reconstruir a
posição externa da Arábia Saudita, pós-11 de Setembro de 2001, e reafirmar
a sua pretensão a ser o representante do mundo árabe, granjeando assim o
apreço dos Estados Unidos pela postura construtiva e reconciliadora face a
Israel (Niblock, 2006: 169). Porém, esta iniciativa surge na mesma altura do
Roteiro para a Paz – apresentado pelo Quarteto (composto pelos Estados
Unidos, Rússia, União Europeia e Nações Unidas) – o que resultou na sua
secundarização, não tendo sido feita justiça às potencialidades que o seu
contributo poderia representar para o processo de paz.
Finalmente, os dois principais desafios estratégicos que se colocam à
Arábia Saudita: Iraque e Irão.
Na década de 1980, a região do Golfo Pérsico ficou marcada pelo
conflito entre o Irão e o Iraque (1980-1988). Na época, a Arábia Saudita
apoiou o regime iraquiano, com base na premissa de que ambos cons-
tituíam uma ameaça ao Reino mas o Irão – xiita liderado pelo Ayatollah
Khomeini – constituía um perigo maior. Desde logo porque o regime
teocrático iraniano ambicionava a posição de representante do mundo
muçulmano e da pureza do Islão, tendo mesmo tentado assumir a função
de verdadeiro Guardião dos lugares sagrados de Meca e Medina. Após o
conflito, o regime de Saddam Hussein deparou-se com importantes difi-
culdades financeiras, tendo contado com o apoio de diversos Estados do
Golfo, entre os quais a Arábia Saudita.
Hoje, a monarquia saudita encontra-se perante um desafio semelhante:
tanto o Iraque como o Irão constituem ameaças ao Reino, mas o Irão pode-
rá constituir um perigo maior. No que diz respeito ao Iraque, a deposição
do regime de Saddam Hussein e a permanente desestabilização do país
resultam numa instabilidade que tem, naturalmente, consequências para o
Reino. Desde logo, ao nível da segurança, existe uma maior mobilidade nos
grupos extremistas que encontram na Arábia Saudita, enquanto tradicional
parceiro dos Estados Unidos, um alvo privilegiado. Como tal, o regime de
Riade poderá fortalecer os mecanismos de segurança interna, o que poderá
representar um atraso significativo nos processos de reforma iniciados na
92
década de 1990.
No que concerne ao Irão, este poderá representar o maior desafio ex-
terno à Arábia Saudita, não só por se pretender afirmar como Guardião da
causa muçulmana, mas pelo risco que representa a promoção do designado
‘arco xiita’ no Médio Oriente. Esta designação decorre do facto de os xii-
tas – principais inimigos dos wahabitas no seio do Islão – constituírem a
maioria dos crentes muçulmanos no Irão, Iraque e Líbano. Por outro lado,
a comunidade xiita da Arábia Saudita, minoritária, reside em áreas de ex-
ploração petrolífera, o que poderá representar um desafio estratégico para
as autoridades sauditas. Acresce que a situação política no Afeganistão,
tal como no Iraque, no Líbano e nos territórios palestinianos, é propícia à
intervenção iraniana.
É neste contexto que a partir de 2007, a Arábia Saudita tem desenvolvido
uma acção diplomática particularmente activa: promoveu a formação de um
Governo de unidade nacional da Autoridade Palestiniana e uma Cimeira para
reactivação do processo de paz, procurando, por um lado, apresentar-se
como parceiro credível no processo de negociação e, por outro, contribuir
para a diminuição da influência iraniana face aos grupos palestinianos; e
desencadeou uma acção diplomática dirigida ao Irão, através do convite ao
Presidente Ahmadinejad para visitar Riade, bem como para o acompanhar
na peregrinação anual a Meca, tal como exigido a todos os muçulmanos
em condições de o realizarem. Esta dupla iniciativa face ao regime iraniano
pretendeu demonstrar a importância que a Arábia Saudita atribui às relações
com aquele país, possivelmente não como estratégia de aproximação, mas
sim como um «estender de braços» a um vizinho perigoso.
No que concerne ao desenvolvimento de um programa nuclear pelo Irão,
a preocupação saudita é evidente: por um lado, porque um dos principais
rivais do regime saudita, e da doutrina wahabita, poderá adquirir capacidade
nuclear; por outro, porque tal significaria o desencadear de um processo de
proliferação nuclear em todo o Médio Oriente, algo a que a Arábia Saudita
sempre se opôs.
Considerações finais
Fontes na Internet
Brookings Institution, http://www.brookings.edu/topics/saudi-arabia.aspx
Embaixada do Reino da Arábia Saudita em Washington, http://www.
saudiembassy.net/
Gulf Research Center, http://www.grc.ae/
Ministério dos Negócios Estrangeiros, http://www.mofa.gov.sa/
Leituras recomendadas
Al-Rasheed, M. (2002) A History of Saudi Arabia. Cambridge: Cambridge
University Press.
Halliday F. (2005) The Middle East in International Relations. Cambridge:
Cambridge University Press.
Lacey, R. (2010) Inside the Kingdom: Kings, Clerics, Modernists, Terror-
ists, and the Struggle for Saudi Arabia. Nova Iorque: Random House.
Niblock, T. (2006) Saudi Arabia: Power, Legitimacy and Survival. Oxford:
Routledge.
Bibliografia
97
Capítulo 4
Brasil
e, por isso, verifica-se uma demissão do Congresso das suas funções le-
gisladoras em matéria de política externa. Lima (2000) argumenta ainda
que ao nível da política externa a delegação da autoridade de decidir é
necessária quer seja para se obterem «políticas mais voltadas aos interesses
da coletividade e não àqueles meramente eleitorais, seja em função do
conhecimento especializado» (Lima, 2000: 282) exigido pela política exter-
na «seja ainda para preservar as decisões em arenas internacionais» (Lima,
2000: 282). Por outro lado, Leany Lemos (2010) considera que não sendo
a ratificação dos Tratados o único indicador da autoridade do Congresso,
é insuficiente basear a argumentação apenas nesse elemento, sendo que
a ausência do Congresso no processo de formulação e decisão da política
externa não deve ser vista como uma abdicação, mas como uma delegação.
Em contrapartida, a autora reforça que o sistema brasileiro é tendencialmente
pró-executivo, pois «as prerrogativas constitucionais favorecem o presiden-
te e o poder executivo em qualquer assunto, mas especialmente naqueles
relacionados com os assuntos externos» (Lemos, 2010: 4). No mesmo senti-
do, João Augusto de Castro Neves (2003) também argumenta que o «poder
legislativo não é alheio ou desinteressado sobre questões internacionais»
(Neves, 2003: 106) e que só delega as suas responsabilidades quando existe
consenso sobre os assuntos em questão, 3 como foi no caso do debate da
criação do Mercosul. No estudo que desenvolveu o autor acrescenta que,
no Brasil «a ausência de um mecanismo claro de delegação de autoridade
100
é a principal causa da percepção de que o poder Legislativo está alheio às
questões internacionais» (Neves, 2003: 117), contrariamente ao que acontece
no sistema presidencialista norte-americano.
Assim, no quadro do poder Executivo, o processo de formulação e
decisão da política externa no Brasil era tradicionalmente associado, exclu-
sivamente ao Ministério das Relações Exteriores. O Itamaraty é tido como
a instituição de onde, desde os tempos do Barão do Rio Branco, e com
brechas efémeras, emanam as estratégias da política externa do Brasil. A
centralidade do Itamaraty no processo de formulação da política externa
resulta, em certa medida, da legitimidade que lhe fora atribuída, quer pelas
elites políticas, quer pela sociedade, tendo em conta a especialização e o
elevado grau de competência do corpo de diplomatas brasileiro. E, por
outro lado, os detentores de cargos políticos, ou os que os almejam, não
tendem a reconhecer qualquer impacto das medidas de política externa no
plano interno logo, não centram o discurso nos temas de política externa,
nem sequer suscitam o seu debate.
Todavia, quer devido ao processo de democratização do Brasil, quer
devido às transformações do sistema internacional, aceleradas com o fim
da Guerra Fria e a globalização, a partir da década de 1990, este processo
começou a ser partilhado com outros actores e, especialmente, com o Presi-
dente da República, através da diplomacia presidencial. Mas esta divisão de
tarefas «não é de todo uma tradição brasileira» (Cason & Power, 2009: 121),
o Itamaraty sempre se caracterizou pela autonomia e isolamento burocrático
na formulação da política externa, pelo elevado grau de profissionalização
da diplomacia, bem como pelo monopólio das responsabilidades políticas
(Cason & Power, 2009: 119-120). A autonomia do Itamaraty reflecte-se
também na ausência de cunhos ideológicos e partidários no seio do corpo
3 O autor analisa o caso das negociações do Mercosul referindo que o distanciamento do Par-
lamento das negociações foi devido ao consenso entre o Executivo e o Legislativo, já no caso da
ALCA não existindo posições semelhantes «aumenta a vontade dos parlamentares de institucionalizar
a participação nas negociações de política externa» (Neves, 2003: 107).
diplomático, 4 como refere Lima (2000) «a política externa é assunto de Es-
tado, insulada da política partidária» (Lima, 2000: 290). Tal ideia começou,
contudo, a ser questionada com mais veemência desde a filiação ao Partido
101
dos Trabalhadores (PT) em 2009, do Ministro das Relações Exteriores, Celso
Amorim. Nesse contexto, o ex-ministro das Relações Exteriores, Celso Lafer,
referiu que o consenso da política externa brasileira como política de Esta-
do foi algo que marcou a democracia brasileira, desde Sarney a Fernando
Henrique Cardoso (FHC), mas que o fim desse consenso «é fruto da inédita
partidarização da política externa promovida pelo governo de Lula» (Lafer,
2009). Como indicadores dessa partidarização Lafer destacou a nomeação de
Marco Aurélio Garcia (membro histórico do PT) como Assessor diplomático
do Presidente bem como a, já referida, filiação de Amorim ao PT. Mas note‑se
por exemplo que em 2008 os únicos Embaixadores de nomeação política
estavam em Cuba e na UNESCO, até mesmo nas organizações internacio-
nais, como a OMC ou a UNCTAD, é comum encontrarem-se diplomatas de
carreira, transversais aos vários governos.
Deste modo, o ponto de viragem, no que toca à redução da exclusividade
da responsabilidade do processo de formulação e decisão da política externa,
ocorre não só devido aos factores atrás mencionados, mas também à figura
de FHC, que assume a presidência da República em 1995. Até então, os
anteriores Presidentes nunca tinham demonstrado interesse pela formulação
da política externa (quer por opção pessoal, ou por factores de política
interna; como no caso de Itamar Franco que herdou três crises internas que
exigiram que o Presidente se concentrasse na resolução dos problemas po-
líticos, económicos e sociais internos e delegasse toda a matéria de política
externa no Itamaraty). Pelo contrário, FHC (intelectual e académico), que
já havia sido Ministro das Relações Exteriores de Itamar Franco, quando
ocupa a Presidência, encarrega-se também da função diplomática para dar
a conhecer ao mundo o Brasil democrático e restaurar a imagem do país.
Inicia-se, assim, de forma empenhada, a chamada diplomacia presidencial,
4 Embora o PR possa nomear Embaixadores da sua confiança para assumirem os postos diplo-
máticos, em 2008 apenas se registavam dois casos de nomeações políticas: em Cuba e na Unesco,
em todos os outros casos os Embaixadores foram nomeados a partir da estrutura diplomática (ver
Mariano & Mariano, 2008).
que o Presidente Lula da Silva continua de forma intensa. Este mecanismo
demonstra que o processo de definição da política externa já não está apenas
no Itamaraty, embora este continue a ser o actor central. É esta autonomia,
102
formação e especialização que caracterizam o corpo diplomático que, de
certo modo, ajudam a explicar a permanência dos princípios tradicionais
na política externa brasileira.
5 Logo em 1949 o Presidente Gaspar Dutra visitou os Estados Unidos retribuindo a visita efectu-
ada por Truman em 1947.
6 Após a Revolução de 1930, Getúlio Vargas foi nomeado Chefe do Governo Provisório, em 1933
foram realizadas eleições indirectas que o elegeram como Presidente da República, e em 1937 em
vez das eleições previstas acabou por acontecer um golpe de estado que deu continuidade à perma-
nência de Vargas no poder até 1945.
que teve consequências no isolamento do próprio Presidente. As políticas
norte-americanas centravam-se na contenção da eventual expansão do co-
munismo, e que nem sempre iam de encontro aos interesses brasileiros.
103
Consequência destas políticas e dos acordos militares 7 celebrados entre os
Estados Unidos e o Brasil foi a intensificação de um discurso anti-americano
(que visava diminuir a dependência em relação aos Estados Unidos) e a
pressão sobre o Presidente que contribuiu para o enfraquecimento da sua
base de apoio. A vontade de diminuir a dependência em relação aos Estados
Unidos veio novamente à tona quando, em 1962, é promovida a Aliança
para o Progresso, através da qual o Presidente Kennedy se comprometeu
a ajudar economicamente a América Latina (com excepção de Cuba, que
não subscreveu a adesão à Aliança).
O suicídio de Vargas, em 1954,põe na sua sucessão o vice-presidente Café
Filho, e, com ele, um grupo mais adepto das políticas norte-americanas e
menos adepto do projecto nacionalista. O desenvolvimento surgiu associa-
do à segurança nacional, tendo sido criada a Escola Superior de Guerra, e
promovida a ideia de que era necessário um alinhamento com o Ocidente,
liderado pelos Estados Unidos. Na verdade, «o hiato representado pelo
governo de Café Filho significou, em termos de política exterior, princi-
palmente no que tange às relações com os Estados Unidos, um retorno ao
período Dutra» (Cervo & Bueno, 2008: 286). Deste modo, Vargas não con-
seguiu implementar o projecto nacional-desenvolvimentista que idealizara,
mas continha as bases para a definição de uma nova política externa para
o Brasil na década de 1960, com a Política Externa Independente.
Na segunda metade da década de 1950, o Presidente Juscelino Kubitschek
implementou uma estratégia de desenvolvimento associada, num primeiro
momento, a um bem sucedido plano económico (caracterizado pela indus-
trialização e pela atracção do capital estrangeiro), e, depois, pela retoma da
«barganha nacionalista» de Vargas. Com base na ideia da interdependência
entre os Estados, e da importância da cooperação internacional, promoveu,
7 Em 1952 foi assinado o Tratado de Assistência Militar Brasil-EUA e, em 1953, o Acordo Militar
Brasil-EUA que definia os termos para a venda de minerais aos EUA, sem quaisquer contrapartidas
para o Brasil.
em 1958, a Operação Pan-Americana, com vista a criar uma estrutura regional
para apoiar financeiramente os países latino-americanos, e que culminou
com a criação do Banco Internacional de Desenvolvimento (BIRD). A sua
104
criação recebeu algumas críticas devido à ausência de medidas concretas,
mas acima de tudo, a Operação Pan-Americana significou a instrumentaliza-
ção da política externa em prol do desenvolvimento nacional, pois «nunca
na história brasileira do século XX valorizara-se tanto o contexto externo
no equacionamento dos problemas nacionais» (Cervo & Bueno, 2008: 288).
No quadro do debate da descolonização, que marcava o contexto interna-
cional da altura, o Brasil não adoptou uma posição resoluta quanto à sua
condenação, embora o seu discurso fosse nesse sentido 8.
A primeira metade da década de 1960, com Jânio Quadros e João
Goulart na Presidência, é marcada pela continuidade do projecto nacional-
-desenvolvimentista. De facto, apesar da instabilidade deste período tanto ao
nível da Presidência como do Ministério das Relações Exteriores, tal não se
reflectiu na formulação da política externa. Entre 1960 e 1964, o Ministério
das Relações Exteriores teve 5 Ministros, e a Presidência foi dividida entre
o Presidente Jânio Quadros9 e o seu vice-presidente, João Goulart, quando
aquele renunciou ao cargo.
Ao nível da política externa destaca-se o papel do Ministro das Rela-
ções Exteriores, San Tiago Dantas (bem como Afonso Arinos e Araújo de
Castro10), que «dotou a Política Externa Independente de um corpo teórico
consistente e colocou-a em prática, pois Quadros pouco ultrapassara o nível
8 Note-se por exemplo a aproximação intensa e positiva entre Kubitschek e Salazar. Dada a
posição de colonizador de Portugal, Kubitshek tinha uma posição dúbia em relação ao colonialismo:
por um lado, condenava tais acções e defendia a auto-determinação dos povos, mas por outro, não
queria perturbar a relação com Portugal, e por isso não afirmava aquela posição com veemência.
9 Jânio Quadros é caracterizado pela sua ousadia, que se reflectiu na forma como abandonou
a Presidência (logo em Agosto de 1961) – ao julgar que recusariam o seu pedido de renúncia,
enganou-se e o mesmo foi aceite. Impedia-se uma primeira tentativa de golpe de estado, já que a
direita desde meados da década de 1950 desejava assumir o poder. Leonel Brizola consegue que
o vice-presidente de Quadros, João Goulart, assuma a presidência e a solução consensual residiu
na implementação de um sistema parlamentarista, em que Tancredo Neves foi nomeado Primeiro-
ministro. Contudo, o governo formado era frágil e o populismo aumentava em desfavor do governo,
antecipando o golpe de estado que teria lugar em 1964.
10 Em 1963, nas Nações Unidas, o Ministro das Relações Exteriores, Araújo de Castro apresenta
o discurso dos três ‘D’: descolonização, desenvolvimento e desarmamento.
do discurso» (Vizentini, 2008: 26). Ao contrário de Kubitschek que concebia
a política externa a partir de uma visão do hemisfério, a Política Externa
Independente partia de uma concepção universal, assente no pragmatismo,
105
na independência de acções, e no nacionalismo, traduzindo-se na multila-
teralização das relações internacionais do Brasil. Entendia-se também que
a política externa promovia o desenvolvimento económico e era a base
das reformas sociais, sendo, por vezes, entendida como típica de um país
capitalista que reage à potência dominante (Vizentini, 2008). A Política Ex-
terna Independente visava a demarcação em relação aos Estados Unidos,
ou a quaisquer outros países, não baseando as relações com os Estados
em ideologias, e por isso «a busca de maior liberdade de movimentos no
concerto internacional foi acompanhada de uma componente de frieza nas
relações com os Estados Unidos» (Cervo & Bueno, 2008: 311). A concepção
de «Brasil potência», que se começava a desenhar, encaixava nesta estratégia
já que o desenvolvimento e a industrialização seriam bem sucedidos «se o
Brasil mantivesse certa autonomia diante dos Estados Unidos» (Vizentini,
2008: 31). Assim, paralelamente à relação pragmática com os Estados Uni-
dos intensificaram-se as relações com a África e a Ásia, bem como com
a Argentina, relacionamento entendido como uma forma de cooperação
importante para os dois países aumentarem o seu grau de participação
nos assuntos internacionais. No mesmo sentido, foram reatadas as relações
diplomáticas com a URSS e, o Brasil não aprovou a expulsão 11 de Cuba da
OEA, em 1962. Todavia, relativamente à situação cubana, a crise dos mísseis
de Cuba contrariou o argumento brasileiro, de que a situação era apenas
um assunto interno, e deu mais credibilidade à posição norte-americana,
do mesmo modo que, ao enfraquecer o governo, criou condições para o
golpe militar que viria a acontecer.
Deste modo, as décadas de cinquenta e sessenta caracterizam-se pelas
tentativas de demarcação em relação à dependência exclusiva dos Esta-
dos Unidos. Mas a influência norte-americana sentiu-se inclusivamente na
queda do regime. O enfraquecimento interno do Governo de Goulart, e a
11 A expulsão de Cuba da OEA foi aprovada com as abstenções da Argentina, Bolívia, Brasil,
Chile, Equador e México.
falta de apoio dos Estados Unidos ao Governo, por um lado, e o apoio ao
sector golpista, por outro, criaram as condições para o golpe militar em
Março de 1964. Esta acção foi antecedida pela renovação do Acordo Militar
106
com os Estados Unidos, negociado pelo Itamaraty sem o conhecimento do
Presidente; bem como pela operação «Brother Sam» no Atlântico, articulada
pelos Estados Unidos e que, em caso de necessidade, previa a ajuda militar
aos golpistas.
O período do regime militar, entre 1964 e 1985, foi marcado por algu-
mas intermitências, ou um governo mais conservador ou um governo mais
nacionalista, em que o epicentro esteve, mais uma vez, na definição da
relação com os Estados Unidos e, consequentemente, na forma como o
Brasil se afirmava no sistema internacional.
Ao analisarmos o regime militar como um todo verificamos que apenas
o governo de Castelo Branco (entre 1964 e 1967), tentou romper com a
linha de política externa anterior ao golpe. Como previsto, começou por
afirmar o projecto da Escola Superior de Guerra (com maior impacto a ní-
vel interno) instituindo a Constituição de 1967. A política externa previa o
alinhamento com os Estados Unidos e o relacionamento entre os Estados
com base nas ideologias. Nesse sentido, as relações com Cuba foram rom-
pidas logo em 1964, assim como se enfraqueceram as relações comerciais
com a URSS, a China e os continentes africano e asiático. Sob a alçada da
OEA, o Brasil interveio no conflito da República Dominicana que, contra-
riamente ao esperado, contribuiu para denegrir a sua imagem na região.12
O regime brasileiro recebeu apoio económico dos Estados Unidos, do Fundo
Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial. Os parceiros norte-
-americanos apresentavam-se como a única alternativa face a uma conjuntura
económica que tendia a agudizar-se, e o Ministro das Relações Exteriores
12 Na mesma lógica, o Brasil, sob influência dos Estados Unidos, tentou agregar parceiros para a
criação de uma Força Interamericana de Defesa, mas tal não foi bem recebido.
afirmou inclusivamente que «o que é bom para os Estados Unidos é bom
para o Brasil» (Vizentini, 2008: 41). Esta cumplicidade não se restringiu ao
âmbito económico, também a nível diplomático se registou um regresso ao
107
«âmbito hemisférico e bilateral» 13 das relações externas (Pecequillo, 2008).
Mas, paralelamente, o Itamaraty conseguiu preservar um certo grau de
autonomia em relação ao regime militar, e, gradualmente, foi reavivada a
Política Externa Independente. É, certamente, neste quadro que se inclui
o incremento das relações com os países africanos, pois a primeira missão
comercial à África Ocidental teve lugar em 1965 lançando-se as bases da
política africana do Brasil.
Em 1967, com a substituição de Castelo Branco por Costa e Silva,
retomaram-se algumas ideias da Política Externa Independente, especial-
mente, no que se refere às questões económicas. Costa e Silva, da linha
nacionalista do regime, inaugurou a chamada «Diplomacia da Prosperida-
de», associando o desenvolvimento à soberania e utilizando a diplomacia
em prol do desenvolvimento económico. Contrariando rigorosamente as
posições norte-americanas, foi quebrada a submissão inicial do Brasil aos
Estados Unidos 14 e foram definidas novas parcerias, especialmente entre
os Países do Terceiro Mundo. Foi neste quadro que a política africana do
Brasil também se redefiniu. No quadro regional foi assinado o Tratado da
Bacia do Prata (Argentina, Bolívia, Brasil, Paraguai e Uruguai), com vista a
promover a integração física daquela área.
No final da década de 1960, o discurso político era marcado pela con-
cepção de «Brasil a potência» e pela «Diplomacia do interesse nacional». O
Brasil não era auto-percepcionado como um país do Terceiro Mundo, nem
se preconizavam essas alianças, recuperava-se novamente a ideia da necessi-
15 Alguns autores (Lechini, 2008) entendem que foi esta viagem, em 1972, que definiu a aproxi-
mação do Brasil a África, enquanto outros (Saraiva, 1996) entendem que tal só foi possível devido ao
que começara a ser delineado na década de 1960, com a missão comercial em 1965. Todavia, nessa
altura o contexto ainda não era favorável à cooperação com o continente africano, pois a falta de
apoio explícito às colónias africanas nem sempre jogou a favor do Brasil.
para os países árabes e com outras potências regionais asiáticas e africa-
nas. Deste modo, recuperou-se a noção de autonomia da política externa,
especialmente em relação às grandes potências, «os anos Geisel situam-se
109
confortavelmente na tendência geral a maior e mais veloz asserção da auto-
nomia nacional face aos estritos limites impostos pelo sistema internacional
da Guerra Fria» (Spektor, 2004: 196). Devido às transformações ocorridas
no sistema internacional, e sob a retórica do início da década de «Brasil a
Potência», Azeredo da Silveira pretendia projectar o Brasil na cena inter-
nacional, acreditando que os países em desenvolvimento poderiam ganhar
espaço e influenciar a agenda internacional. Nesse sentido, foi definida
claramente a posição do Brasil em relação ao colonialismo. E, apesar da
amizade com Portugal, a diplomacia brasileira foi a primeira a reconhecer
a independência de Angola, em 1975.
No que concerne às relações com os Estados Unidos, destaca-se a ces-
sação do Acordo Militar 16 entre os dois países em 1952, dadas as pressões
norte-americanas para que o Brasil não celebrasse o Acordo Nuclear com
a Alemanha. No entender de Spektor (2009) a tese da «rivalidade emergen-
te» – que defende que o processo de modernização e industrialização do
Brasil contribuiu para o aumento da rivalidade com os Estados Unidos –
não é suficiente para explicar o fracasso do relacionamento entre o Brasil
e os Estados Unidos, na década de 1970, é necessário atentar também no
empenho tanto de Azeredo da Silveira como de Richard Nixon. Mas, mesmo
assim, apesar das suas tentativas «os planos de convergência conviveram
com dúvidas profundas e recorrentes desconfianças de ambos os lados»
(Spektor, 2009: 185). No mesmo sentido, Cervo & Bueno (2008: 442) referem
que «as relações entre os dois países permaneceram nos anos 1980, como
nos anos 1970, à espera de propostas substantivas e igualitárias, desprovi-
das de egoísmos nacionais, para se alcançarem ao nível das necessidades
e conveniências bilaterais».
16 Note-se que o Brasil e os Estados Unidos voltaram a assinar um novo Acordo Militar apenas
em Abril de 2010.
O processo de abertura político iniciado com Geisel17 foi continuado
pelo Presidente João Figueiredo, apelidado como o «Presidente da abertura»,
que implementou, logo em 1979, uma reforma partidária. O seu mandato
110
foi influenciado, quer, pelo segundo choque petrolífero de 1979 (em termos
económicos), quer pelo fim da détente. Por um lado, o choque petrolífero
contribuiu para a deterioração da situação económica mundial que atingiu
o Brasil (e a América Latina) através da «crise da dívida». Por outro lado, o
fim da détente, e a agudização das relações entre o bloco americano e o
bloco soviético contribuíram para que, em 1981, o Presidente Ronald Reagan
instituísse uma alta taxa de juro aumentando a dívida externa de países em
desenvolvimento, como o Brasil. Mas a par das dificuldades económicas,
o Brasil continuava a tentar demarcar-se das propostas norte-americanas –
recusando, por exemplo, as propostas de militarização do Atlântico Sul,
mas, em contrapartida, consolidando as relações com alguns Estados
africanos, nomeadamente a Nigéria e outros Estados no Golfo da Guiné.
A diversificação das relações visava não só suprir as necessidades energéticas
do Brasil, assim como unir os países do «sul» de modo a pronunciarem-se
a uma só voz nas organizações económicas multilaterais.
17 Geisel mostrou-se contrário a algumas das acções levadas a cabo, a partir de 1976, pelos
órgãos de repressão, e que incluíam atentados, sequestros e assassinatos. O Presidente demitiu o
Comandante do Exército, o Ministro do Exército e o Chefe de Gabinete Militar.
Mas a linha de continuidade deriva também da componente institucional e
burocrática encontrada no Itamaraty, o que «garante continuidade nas esco-
lhas e relativa consistência nas orientações de política» (Lima, 2000: 289). Ao
111
mesmo tempo que se reconhecia que o novo Governo deveria procurar um
consenso mínimo com os actores sociais de modo a evitar qualquer ruptura
institucional, o que culminou com a adopção da Constituição em 1988.
José Sarney chegou ao poder com um contexto interno que não era de
todo favorável. À explosão simultânea de três crises, política, económica e
social, somava-se a complexidade do país, que o próprio Presidente definiu
como «um Brasil composto por diversos Brasis» (Sarney, 1986). As primeiras
medidas do Governo prenderam-se com a estabilização do país, a convoca-
ção da Assembleia Constituinte, a promoção do crescimento económico e o
investimento no bem-estar social. A recuperação económica exigiu também
que a nível externo se adoptasse uma política firme para reduzir a dívida
externa, resultado do esgotamento do modelo económico iniciado na déca-
da de 1930 (quando o Estado era o actor central). De modo a estabilizar a
economia através da redução dos valores da inflação, Sarney implementou
em 1986, com êxito, o Plano Cruzado.
A conjuntura económica também se repercutiu na actuação externa.
No seguimento da «crise da dívida», adoptou-se uma moratória aos Estados
Unidos. O discurso do Presidente era bastante crítico da atitude norte-
-americana, que no seu entender, tratava o Brasil, um país rico e com
um grande potencial, como um «país de segunda». A incompatibilidade
de posições entre o Brasil e os Estados Unidos foi evidente, quer nas
questões da organização do comércio continental e internacional, quer
nas tentativas de integração da região. O segundo Ministro das Relações
Exteriores de Sarney, Abreu Sodré (antecedido por Olavo Setúbal), além
de reatar relações com Cuba, reconheceu a necessidade de diversificar
as parcerias não se alinhando, exclusivamente, aos Estados Unidos. Por
conseguinte, este período é marcado por um fortalecimento da coopera-
ção entre o Brasil e a Argentina 18 (assim como com o Uruguai). Os dois
19 No Itamaraty têm existido duas correntes de pensamento da política externa, que Miriam
Gomes Saraiva (2010) define como os «autonomistas» («desenvolvimentismo» económico, autonomia,
universalismo, inserção internacional, reforma da ordem internacional) e os «institucionalistas-prag-
máticos» (liberalização económica, apoio crítico aos regimes internacionais, defesa da autonomia e
soberania, prioridade da região sul-americana). Vide, entre outros, Saraiva 2010.
diferenciar de Collor, tal não aconteceu, «o que se percebeu foi a manu-
tenção das políticas iniciadas anteriormente, paralelamente à adoção de
um posicionamento marcado pela condição de país em desenvolvimento»
114
(Hirst & Pinheiro, 1995: 11). Tanto no quadro da política externa como da
recuperação económica, FHC teve um papel fulcral. Ao nível da política
externa começou por reorganizar o Itamaraty, e reconheceu a necessidade
de «adicionar uma base sólida à nossa própria região, se não for por outra
razão, pelo menos para aumentar a nossa capacidade de negociação. (…)»
(Fernando Henrique Cardoso apud Vigevani & Cepaluni, 2009: 47), embo-
ra isso não significasse uma ruptura das relações com os Estados Unidos.
O desenvolvimento do Mercosul é aprofundado através da assinatura, em
1994, do Protocolo do Ouro Preto que institucionalizou a sua estrutura
intergovernamental e implementou o consenso como processo de tomada
de decisão. O Mercosul era, então, entendido como fundamental para o
comércio da região, mas também como forma de compensar a dependência
em relação aos Estados Unidos.
Em 1992, a substituição de FHC por Celso Amorim não significou uma
mudança no rumo da política externa. Contudo, à estratégia de valorização
da região somou-se a definição de uma estratégia de inserção internacional
para afirmar a posição do país, que fora abalada com Collor. No entender
de Amorim, tal inserção internacional poderia ser feita através da reforma
do Conselho de Segurança das Nações Unidas,20 ambição que o Brasil tem
há vários anos. Começavam então a ser delineadas e implementadas algumas
estratégias de acção externa, ao mesmo tempo que o lançamento do Plano
Real aliviou a crise económica do país.
O Plano Real, implementado em 1994 pelo Ministro da Fazenda, Fer-
nando Henrique Cardoso, permitiu controlar a inflação, contribuindo para
o aumento do consumo 21 e a recuperação da economia brasileira, e serviu
20 Neste período, o Brasil foi eleito por dois anos membro do Conselho de Segurança das Nações
Unidas, participou em sete operações de paz, apresentou a proposta de uma agenda de desenvolvi-
mento, e incrementou o relacionamento com os países vizinhos.
21 A euforia provada pelo consumo, e que contribui para os anos de ouro da economia, ocul-
tava os deficits do comércio externo e da balança de pagamentos, que só se revelariam no segundo
mandato do Presidente Fernando Henrique Cardoso.
para melhorar a posição do Brasil no contexto internacional. Noutro domínio
criou, ainda, as condições para a vitória de FHC nas eleições presidenciais
de 1994.
115
Fruto das transformações do sistema internacional, no início da década
de 1990, Collor de Melo «pôs em xeque os princípios da política externa
adotada até então, mas que não foi capaz de consolidar um novo conjun-
to de princípios» (Saraiva, 2007: 45) , embora a tentativa de modernização
seja recuperada posteriormente. Deste modo, o período intercalar (após
o fim do regime militar e a consolidação da democracia) é uma «crise de
transição», ou uma «dança de paradigmas» (Cervo & Bueno, 2008: 455), em
que todas as novas orientações se começam a esboçar – o Mercosul, a re-
forma monetária, a diversificação de relações, a candidatura ao Conselho
de Segurança – sem se forjar contudo um (novo) modelo e persistindo um
balouçar entre os «autonomistas» e os «liberais».
22 Momento que coincide também com a apresentação, pela Goldman Sachs do acrónimo BRIC,
destacando o potencial de crescimento das economias destes países (Brasil, Rússia, Índia e China).
23 A IIRSA corresponde a uma iniciativa dos 12 países sul-americanos, tendo sido instituciona-
lizada em 2000, na Cimeira dos Presidentes da América do Sul. Pressupõe a realização de acções
conjuntas para promover o processo de integração política, económica e social da América do Sul,
estimular a integração e o desenvolvimento de sub-regiões isoladas. Ver: http://www.mp.gov.br/
secretaria.asp?cat=156&sub=302&sec=10.
de América do Sul, uma construção política onde mais facilmente o Brasil
pode fazer valer os seus interesses. A definição da área regional da América
do Sul era algo que já vinha sendo conceptualizado desde os tempos do
118
Barão do Rio Branco, mas foi com Fernando Henrique Cardoso que se con-
solidou, consequência dos processos de regionalização e globalização que
ocorreram, e à tomada de consciência de que «a América do Sul constitui
uma unidade física contígua, que favorece as oportunidades de cooperação
económica» (Lafer, 2002: 67).
Verificamos, portanto, que os anos de FHC permitiram consolidar a demo-
cracia brasileira e projectar a imagem do Brasil no exterior – democrático,
adepto das normas e valores universais, com uma conduta pacífica – embora
alguns autores considerem que não se tenha incrementado, simultaneamen-
te, um desenvolvimento sólido (Vigevani & Oliveira & Cintra, 2003: 58). A
passagem de FHC para Lula da Silva, em 2003, permitiu que se continu-
assem as políticas económicas iniciadas, contribuindo para o crescimento
e estabilidade económica do país, e simultaneamente, para o aumento do
protagonismo internacional do Brasil.
Ao nível dos princípios históricos 24 da política externa brasileira, o Go-
verno de Lula pode ser visto como um contínuo dos anos de FHC, pese
embora os ajustes efectuados, pois «ao exercerem juntos dezasseis anos de
mandato, são determinantes para a evolução do modelo brasileiro de inserção
internacional na passagem do século XX para o XXI » (Cervo & Bueno, 2008:
491). Em 2003, o discurso de tomada de posse do Presidente Lula da Silva
acentuava a ideia de mudança porém, tal não se concretizou, pelos menos
nos eixos que definem a política externa brasileira. Muitas das parcerias
consolidadas por Lula tiveram a sua génese ainda durante a administração
de Cardoso, «mas Lula deu uma nova ênfase a este aspecto da agenda in-
ternacional do Brasil» (Vigevani & Cepaluni, 2009: 81), ou como afirmou o
Ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim,
25 O Brasil faz parte também do G20 que é um fórum de diálogo e cooperação das maiores
economias, criado em 1999 como resposta às crises económicas dos anos 1990. O Brasil acolheu a
cimeira do G20 em 2008.
espécie é tão importante para o futuro da humanidade quanto a consolidação
e o desenvolvimento da democracia no interior de cada Estado» (Silva, 2003).
É, neste sentido, que se assinala a «autonomia pela diversificação» (Viegavi
120
& Cepaluni, 2009) na política externa de Lula, estratégia que pela variedade
de parcerias visa aumentar a capacidade de influência do Brasil na região
e no mundo. Durante o mandato de FHC, essa dinâmica foi desenvolvida
de forma mais moderada. As jogadas brasileiras em arenas diplomáticas,
ora complementares ora alternativas, visam, justamente, a diversificação
de parcerias e a emancipação face aos actores dominantes do sistema
internacional. Note-se, por exemplo, a recuperação da política africana,
desenvolvida por Lula, aproveitando os espaços deixados em aberto pelas
grandes potências. Todavia, não foi descurado o relacionamento com o
Norte, tanto com os Estados Unidos como com a União Europeia (UE). A
parceria estratégica institucionalizada com a UE, em 2007, é disso exemplo,
simbolizando o reconhecimento europeu do papel regional e internacio-
nal do Brasil. Gradualmente, Lula da Silva contribuiu para a definição de
uma postura assertiva do Brasil, que muito se parece com o Pragmatismo
Responsável de Geisel, da década de 1970, não interessando os vínculos
ideológicos para o relacionamento entre os países. E, por isso mesmo, al-
gumas estratégias são marcadas por uma certa inconstância que deriva dos
interesses temporais do Brasil.
No que toca à região, em 2003, o Ministro das Relações Exteriores afirmava
que «a América do Sul será nossa prioridade» (Amorim, 2003). Registou-se
a proliferação de mecanismos de integração e diálogo, como a UNASUL e
o Conselho sul-americano de Defesa, a par do diálogo com a Venezuela
ou a Bolívia, e a missão no Haiti. O Mercosul é percepcionado como um
instrumento político que agiliza negociações internacionais a diversos ní-
veis (inclusivamente, como alternativa à ALCA), conduzindo a vantagens
económicas e comerciais. As relações comerciais do Brasil, no quadro do
Mercosul, são bastante significativas, e especialmente as trocas com a Ar-
gentina conheceram um aumento durante o mandato de Lula.
Mas, como evidenciámos, as relações extra-regionais juntaram-se a esta
opção, devido às vantagens que apresentavam para a afirmação internacional
do Brasil e para a multipolaridade das relações internacionais, defendida
por Lula. Na verdade, o Brasil rentabilizou os vários tabuleiros de actuação
internacional, através da participação nos fora multilaterais (quer seja nas
organizações internacionais, como a Organização Mundial do Comércio,
121
quer seja no fomento de fóruns multilaterais de diálogo, como o IBSA, as
cimeiras BRIC, ou o G20), do incremento do diálogo bilateral com diversos
países (note-se por exemplo as relações com alguns países da União Euro-
peia, como a França ou a Alemanha, e Portugal), assim como aumentando
a sua expressão diplomática no continente africano e asiático.
E daqui deriva um dos debates actuais sobre a política externa do Bra-
sil: liderança regional ou liderança internacional? Na verdade, para o Brasil
permanece o dilema entre a conciliação da sua atitude e reconhecimento
internacional (a UE, e países como os EUA e alguns estados-membros da
UE reconhecem o Brasil como o interlocutor privilegiado da região, do
mesmo modo que em fora internacionais a opinião do Brasil passou a ser
relevante) e a aceitação, pelos países vizinhos, do seu status internacional,
devido à existência de preconceitos históricos, ou à concorrência, que
impedem os países da região de reconhecer a relevância internacional do
Brasil (como a Argentina e o Paraguai, ou também a Venezuela) (ver, entre
outros, Burges, 2009).
Nota final
Fontes na internet
Ministério das Relações Exteriores, http://www.itamaraty.gov.br/
O Estado de São Paulo,http://www.estadao.com.br/
Presidência da República Federativa do Brasil, http://www.presidencia.gov.br/
Revista Brasileira de Política Internacional, http://www.scielo.br/scielo.
php?script=sci_serial&pid=0034-7329&lng=pt
Revista Contexto Internacional, http://publique.rdc.puc-rio.br/
contextointernacional/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?tpl=home
Leituras recomendadas
Brainard, L. & Martinez-Dias, L. (2009) Brazil as an economic superpower?
Washington: Brookings Institution Press.
123
Burges, S. (2009) Brazilian Foreign Policy after the Cold War. Florida:
University Press of Florida.
Cervo, A. L. & Bueno, C. (2008) História da Política Exterior do Brasil. 3ª ed.
Brasília: Ed. Universidade de Brasília.
Vigevani, T. & Cepaluni, G. (2009) Brazilian Foreign Policy in changing times.
The quest for autonomy from Sarney to Lula. Nova Iorque: Lexington Books.
Vizentini, P. (2004) A política externa do regime militar brasileiro. 2ª ed. Porto
Alegre: Editora da UFRGS.
Bibliografia
125
Capítulo 5
1 Logo em 1950, os EUA disponibilizavam ajuda significativa aos franceses na Indochina, assina-
vam um Tratado de Assistência Mútua com a Tailândia e, dois dias após a invasão Norte-Coreana do
Sul, o Presidente Truman levava os EUA a entrarem na Guerra da Coreia, ao mesmo tempo que dava
ordens para a 7ª Esquadra Americana proteger Taiwan da China comunista.
«mundo livre»: em 8 de Setembro de 1951, os EUA promoveram o Tratado
de Paz entre as Potências Aliadas e o Japão e assinaram com Tóquio um
Tratado de Segurança bilateral, ambos em São Francisco. Começava, então,
129
a ser implementado o «Sistema de São Francisco», conjunto de alianças
dos EUA na Ásia-Pacífico para conter o comunismo: cerca de uma semana
antes da assinatura daqueles Tratados com o Japão, os EUA firmaram com
as Filipinas um Tratado de Defesa Mútua e com a Austrália e a Nova Ze-
lândia um Tratado de Segurança tripartido (ANZUS); dois anos mais tarde,
e já depois de assinado o Armistício de Panmunjon que pôs fim à Guerra
da Coreia, os EUA celebraram com a Coreia do Sul um Tratado de Defesa
Mútua; em 1954, após os Acordos de Genebra sobre a Indochina, os EUA
assinaram o Tratado de Defesa Colectiva para o Sudeste Asiático ou Pacto
de Manila com a Austrália, Nova Zelândia, Reino Unido, França, Filipinas,
Tailândia e Paquistão, Pacto que no ano seguinte passaria a ter uma estru-
tura político-militar com a criação da Organização do Tratado do Sudeste
Asiático (OTASE/SEATO). A última unidade a integrar esta rede de alianças
foi a República da China/Taiwan, com quem os EUA assinaram um Tratado
de Defesa Mútua, em 2 de Dezembro de 1954. A política de «contenção»
anti-comunista aplicava-se verdadeiramente na Ásia-Pacífico, mas a política
dos EUA em relação à Península Coreana e ao Estreito de Taiwan definia‑se
pela manutenção do status quo – na prática, duas Coreias e duas Chinas.
Evidentemente, quer os pactos do Sistema de São Francisco quer a OTAN
estavam ligados ao sistema global de containment montado pelos EUA e
que incluiria também o Pacto de Bagdade 2 (1955) e ainda muitos outros
países e movimentos igualmente em África e na América Latina. Enquanto
durou a Guerra Fria, o containment anti-URSS foi o conceito orientador de
toda a política externa e de segurança dos Estados Unidos.
2 Baseado no modelo da OTAN, o Pacto de Bagdade foi firmado, em 1955, entre o Iraque, Irão,
Turquia, Paquistão e Reino Unido a fim de promover a cooperação mútua e conter a influência so-
viética no Médio Oriente e na Ásia Meridional. Apesar de a instigarem, promoverem e financiarem,
os EUA somente aderiram ao Comité Militar desta aliança, em Julho de 1958. Inicialmente designada
Middle East Treaty Organization (METO), a organização renomeou-se Central Treaty Organization
(CENTO), em 1959, por ocasião da retirada da aliança do Iraque operada pelo novo regime republi-
cano iraquiano. Verdadeira aliança fracassada, foi dissolvida, em 1979, após a Revolução Islâmica no
Irão e a consequente saída da CENTO.
Entretanto, desde o final dos anos 1950, início dos anos 1960, emergiu
uma «outra guerra fria» entre as duas grandes potências comunistas, a URSS
e a China. Paralelamente, os EUA enterraram-se no ‘pântano do Vietname’
130
ou Segunda Guerra da Indochina. A Guerra do Vietname rapidamente come-
çou a concentrar os recursos americanos, mas a confrontação sino-soviética
também não podia deixar de interessar aos EUA: contudo, as Administrações
Eisenhower, Kennedy e Johnson não a exploraram e só com o advento da
Administração Nixon, no final de 1968, é que os EUA começaram a tirar
partido da cisão entre as grandes potências comunistas, conectando-a à
disputa bipolar e à guerra no Vietname.
A Guerra Fria e a política de containment tinham empurrado os EUA
para um envolvimento universal em nome do anti-comunismo e era esta
política que precisava de ser reconsiderada à luz do trauma do Vietname.
Por isso, o novo Presidente Americano apressou-se a enunciar, em Julho de
1969, na base naval de Guam, no Pacífico, os novos critérios que pautariam
o envolvimento americano. 3 Sem abandonar o containment mas recusando
o espírito de cruzada anti-comunista e baseando-se na mais pura realpolitik,
a Administração Nixon assumiu o «interesse nacional» como preceito orien-
tador da política externa e de segurança dos EUA e também como principal
critério para julgar os adversários desenvolvendo, consequentemente, a po-
lítica de «articulação» (linkage) na direcção da URSS: «A ideia era enfatizar
as áreas em que a cooperação era possível e usar essa cooperação como
alavanca para modificar o comportamento soviético em áreas em que os
dois países se encontrassem em conflito» (Kissinger, 1996: 622). Na visão do
Presidente Nixon e do seu Conselheiro Kissinger seria crucial arranjar um
3 Reflectindo sobre os envolvimentos militares dos EUA desde o fim da II Guerra Mundial e
a situação no Vietname, Nixon (1969) estipulou «três princípios orientadores para a futura política
americana na Ásia: 1) os EUA manteriam todos os compromissos assumidos; 2) providenciaremos um
escudo se uma potência nuclear ameaçar a liberdade de uma nação nossa aliada ou de uma nação
cuja sobrevivência considerarmos vital para a nossa segurança; 3) nos casos envolvendo outros tipos
de agressão, nós forneceremos a assistência militar e económica quando solicitada de acordo com
os nossos compromissos nos tratados. Mas esperamos que seja a nação directamente ameaçada a
assumir a responsabilidade primordial de dar os meios humanos para a sua defesa». Evidentemente,
à luz deste terceiro critério, a ideia de substituir no Vietname os militares americanos pelos muito
frágeis ‘meios humanos’ vietnamitas, ficando os EUA na retaguarda, só poderia conduzir à retirada
americana da Indochina e, consequentemente, à queda do Vietname do Sul, do Laos e do Camboja
para o ‘campo’ comunista.
incentivo forte para a moderação soviética e o funcionamento da articula-
ção, gizado na aproximação à China: «Excluir das opções diplomáticas da
América um país com a dimensão da China significava que a América estava
131
a agir internacionalmente com uma mão presa atrás das costas. Estávamos
convencidos de que o aumento das opções da política externa da América
abrandaria, em vez de endurecer, a posição de Moscovo» (Kissinger, 1996:
629). O desanuviamento com Moscovo e a abertura a Pequim4 eram, portan-
to, as duas faces da mesma moeda, fazendo Washington explicitamente um
convite a cada uma das grandes potências comunistas para se moderarem
e melhorarem as suas relações com os Estados Unidos.
Assim, num curto espaço de tempo, as relações entre Washington e
Pequim evoluíram da hostilidade para uma frente comum na contenção da
ameaça soviética. É certo que a «doutrina Nixon» não livrou os EUA de uma
saída humilhante do Vietname e conduziu a um relativo «recuo» americano
na Ásia Oriental: ao longo dos anos 1970, as sucessivas Administrações
Americanas (Nixon, Ford e Carter) iriam retirar da Indochina, pôr fim ao
relacionamento oficial e à aliança com Taiwan, dissolver a SEATO (em 30
de Junho de 1977), retirar o dispositivo nuclear estratégico da Coreia do Sul
e reduzir os seus contingentes militares na Coreia, no Japão, nas Filipinas
e na Tailândia. Porém, confortados pelo sucesso da «cartada chinesa», os
EUA puderam retirar do Vietname sem deixar a Indochina simplesmente
à mercê do domínio soviético, uma vez que a China Popular tinha todo o
interesse e estava, mais do que nunca, empenhada em conter a URSS nesta
sua região vizinha, como se veria logo a seguir na Terceira Guerra da Indo-
china – opondo, essencialmente, o Vietname, aliado da URSS e o Camboja
dos Khmers Vermelhos, apoiados pela China. Foi, aliás, em plena crise na
Indochina, em 1 de Janeiro de 1979, que os EUA e a China oficializaram
relações diplomáticas.
6 A «crise dos Euromísseis» resultou da instalação, na Europa de Leste, dos mísseis nucleares
soviéticos SS 20 de curto e médio alcance e a que a OTAN respondeu, em Dezembro de 1979, com a
famosa «dupla decisão»: a instalação de mísseis americanos idênticos (Pershing) na Europa Ocidental
se, entretanto, os soviéticos não desmantelassem todos os seus.
7 A União Soviética reduz, drasticamente, o seu orçamento e panóplia militar; recua no Terceiro
Mundo, fardo impossível de suportar, suprimindo ou reduzindo sensivelmente o auxílio aos mo-
vimentos e regimes aliados, por exemplo, em Angola, Moçambique, Etiópia, Nicarágua, Coreia do
Norte, Síria, Cuba ou Vietname; retira os seus militares do Afeganistão e leva o Vietname a retirar do
Camboja; estabelece, significativamente, relações diplomáticas com o Vaticano (1990) e Israel (1991).
de 1988), sendo uma das mais significativas a de Malta, em Dezembro de
1989, onde Gorbatchov e Bush declararam solenemente o «fim da Guerra
Fria». As transformações operaram-se de forma alucinante, a começar pela
134
Europa: em Novembro de 1989, o Muro de Berlim era desfeito por uma
população eufórica, abrindo caminho à reunificação alemã concretizada
menos de um ano depois; num curtíssimo espaço de tempo, os regimes
comunistas desaparecem na Europa; em 1991, o COMECOM e o Pacto de
Varsóvia eram oficialmente desmantelados e a URSS desfazia-se para dar
lugar a 15 novos Estados independentes. Sem os constrangimentos inerentes
à disputa bipolar, a ONU ganha um novo dinamismo e a Guerra do Golfo
confirmava a emergência de uma Nova Ordem Mundial em que soviéticos
e americanos, finalmente, ‘desbloqueavam’ o Conselho de Segurança per-
mitindo aos EUA liderar a comunidade internacional na punição do Iraque
que tinha invadido o Kuwait.
Entretanto, o massacre de Tiannanmen, em Junho de 1989, prejudicou
gravemente as relações EUA-China: ao terminar a Guerra Fria, a imagem
da China como um país que empreendia reformas e servia de contrapeso à
URSS era subitamente substituída pela de um regime altamente repressivo,
hostil à democracia e violador dos direitos humanos, contrariando o espí-
rito e as expectativas da «nova ordem mundial». A reacção dos EUA, pela
mão da Administração Bush, foi especialmente dura mas também extraor-
dinariamente ambivalente: por um lado, liderou a campanha internacional
contra o regime de Pequim e a imposição imediata de sanções contra a
China, apoiou os «dissidentes» chineses, suspendeu a cooperação militar
com Pequim e aumentou o volume de armamentos entregues a Taiwan;
por outro, promoveu uma imediata «diplomacia secreta» mantendo aberto o
diálogo bilateral, preservou os laços económicos (incluindo o estatuto de
Nação Mais Favorecida à China, não sem um aceso debate no Congresso)
fazendo com que o intercâmbio comercial rapidamente voltasse a uma
certa normalidade e manteve a China envolvida na cooperação económica
regional (incluindo o apoio à adesão chinesa na APEC, em 1991) e na re-
solução de certos problemas regionais e internacionais (como o processo
de paz Cambojano e a Guerra do Golfo). De qualquer forma, no momento
em que o eixo Washington-Moscovo-Pequim se dissolvia, as relações entre
as duas grandes potências vencedoras da «dupla guerra fria» entravam, de
facto, numa nova fase.
135
8 Concebido pelos Secretário da Defesa Dick Cheney e Sub-Secretário Paul Wolfowitz, o docu-
mento em causa era um draft interno do Pentágono de Fevereiro de 1992 preparatório do Defense
Planning Guidance 1994-1999. Perante a polémica e as duras críticas do Congresso, a versão defi-
nitiva acabaria por ser revista e «suavizada».
9 Por exemplo, na Operation Sea Angel, em 1991, soldados americanos assistiram os esforços
internacionais no Bangladesh na recuperação de um desastroso ciclone; no mesmo ano, durante a
Operation Provide Comfort, soldados das forças especiais americanas salvaram cerca de 400.000 cur-
dos da fome iminente nas montanhas do Norte do Iraque e do Sudeste da Turquia.
americanas a darem início à Operation Restore Hope na Somália, liderando
a missão das Nações Unidas (UNITAF).
Criticando a Administração Bush por ter uma «mentalidade de Guerra
136
Fria», o Presidente Bill Clinton (1993-2001) procurou desenvolver uma po-
lítica externa mais adequada ao que chamou New World, articulando uma
nova National Security Strategy of Engagement and Enlargement (The Whi-
te House, NSS, 1996 e 1999) tendo por objectivos estratégicos «promover
a nossa segurança com forças armadas preparadas para lutar e com uma
representação efectiva além fronteiras; promover a democracia além fron-
teiras» (NSS, 1996: Preface), e promovendo o internacionalismo dos EUA
enquanto «nação indispensável» e peacemaker. 10 Por outro lado, para esta
Administração Democrata eleita pela ênfase no vector económico, a Ásia
Oriental assumia uma importância acrescida – só os défices comerciais
americanos face ao Japão e à China representavam mais de dois terços do
total do défice comercial dos EUA no ano em que Clinton tomou posse.
Baseada nas noções de engagement e enlargement, destacam-se cinco
vectores fundamentais da política externa e de segurança da Administração
Clinton: 1) a manutenção do sistema de alianças (ou mesmo a sua expansão,
como revelam a transformação e o alargamento da OTAN e da omnipresença
militar dos EUA englobadas, todavia, numa abordagem mais abrangente ou
presence plus; 2) o envolvimento nos assuntos e nas organizações regionais
e internacionais e o desenvolvimento de novos quadros multilaterais sem,
contudo, avançar na segurança multilateral institucionalizada na Ásia-Pacífico
temendo que isso diluísse a importância das alianças bilaterais dos EUA na
região; 3) a prioridade aos laços económicos e a expansão do liberalismo
10 Daí, por exemplo, a liderança na elaboração do Comprehensive Test Ban Treaty (CTBT), tendo
sido os EUA o primeiro país a assiná-lo, em Setembro de 1996; o activismo do Vice-Presidente Al
Gore na protecção ambiental e em prol do Protocolo de Quioto de 1997 que o Presidente Clinton
assinou nesse mesmo ano (e que, tal como o CTBT, o Congresso se recusou ratificar); o apoio ame-
ricano aos Objectivos do Milénio adoptados pela ONU, em 2000, reconhecendo a íntima associação
entre Segurança e Desenvolvimento; ou o desenvolvimento da ideia de «ingerência humanitária»
quando em causa estão violações massivas dos direitos humanos e/ou valores universais, retórica
que seria exercitada na Somália (onde os EUA se mantiveram até retirarem sob o manto do fiasco,
em 1994) e, sobretudo, no Haiti (1994), na Bósnia (1995) e no Kosovo (1999), as duas últimas com a
OTAN, se bem que no Kosovo sem o consentimento do CSNU, mas não, por exemplo, aquando do
genocídio no Ruanda, em 1994-1995.
económico e comercial; 4) a promoção e expansão dos direitos humanos e
universais, incluindo pela consagração do «direito de ingerência humanitá-
ria», expresso na liderança da intervenção da OTAN na Bósnia e, sobretudo,
137
no Kosovo; e 5) a procura de engagement com todos os actores regionais,
incluindo antigos ou novos virtuais rivais como o Vietname, a Coreia do
Norte, a Rússia e, em particular, a China. Foi neste quadro que Clinton fez,
em 1998, uma longa e sem precedentes visita de 9 dias à China, sem passar
antes pelo Japão ou pela Coreia do Sul, manifestando o desejo de desenvol-
ver com Pequim uma «parceria estratégia construtiva». Todavia, a ressurgente
China continuou a ser encarada pelo Congresso e pelos americanos em geral
mais como um rival estratégico do que um parceiro cooperativo: em Janeiro
de 1999, o Congresso fez publicar a versão não classificada do polémico
U.S. National Security and Military/Commercial Concerns with the People’s
Republic of China; 11 no ano seguinte, o Congresso solicitava em forma de
lei que o Pentágono passasse a elaborar e a submeter-lhe um relatório anual
sobre «O Poder Militar da China».
A verdade é que a estratégia Clintoniana se revelou extraordinariamente
ambivalente, contemplando aspectos similares às Administrações Republica-
nas: a aspiração de «primeiro, e acima de tudo, devemos exercer liderança
global»; o envolvimento selectivo, «focando nas ameaças e oportunidades
mais relevantes aos nossos interesses e aplicando os nossos recursos onde
podemos fazer a maior diferença»; a noção de que muitos dos interesses dos
EUA «são melhor alcançados como líder de uma coligação ad hoc formada
em torno de um objectivo específico… através da formação de coligações
com nações que partilham os nossos princípios»; ou ainda a predisposição
para «agir sozinhos quando esse é o curso mais vantajoso, ou não há alter-
nativa» (referências do NSS, 1996: Cap. II). Além disso, mesmo atribuindo
uma maior importância à relação segurança-desenvolvimento-direitos hu-
manos e às «ameaças transnacionais», Clinton assumiria que «a mais provável
11 Este documento, também conhecido por Cox Report, descreve as actividades chinesas em
busca de tecnologia de ponta e acusa Pequim de se envolver em actividades proliferantes e espio-
nagem industrial.
ameaça futura à nossa existência é… o recurso a armas de destruição em
massa por um estado pária ou grupos terroristas» (1999).
Emergindo em contraposição à política Clintoniana, a Administração Ge-
138
orge W. Bush (2001-2009) sobrevaloriza o interesse nacional e a liderança
mundial dos Estados Unidos como princípios orientadores, muito influenciada
por ‘políticos pensadores’ que reapareceram em postos destacados12 e think
tanks ‘inspiradores’ como o Project for the New American Century (PNAC).
Por conseguinte, o Presidente W. Bush começou por cultivar mais as rela-
ções com os aliados regionais dos EUA do que o engagement com virtuais
adversários. Por outro lado, inicialmente, o ímpeto desta Administração
apontava para um certo «isolacionismo», perfilhando um envolvimento dos
EUA nos assuntos mundiais e regionais muito selectivo e somente quando
estivessem directamente em causa interesses americanos.
Os atentados terroristas do 11 de Setembro, contudo, ocorridos menos de
oito meses depois de W. Bush ter tomado posse, levaram esta Administração
Republicana a declarar a «Global War on Terror» (GWOT) (Bush, 2001) e a
aprovar uma nova estratégia de segurança que, embora fosse abrangente,
multidimensional e multi-instrumental, incluía vectores particularmente con-
troversos: a possibilidade dos EUA efectuarem acções preemptivas (actos
militares antecipatórios) «mesmo se a incerteza permanecer relativamente
ao tempo e lugar do ataque inimigo» (The White House, NSS, 2002: Cap. V)
consagrando, assim, a inovadora doutrina que muitos consideram de «guerra
preventiva»; a intenção de montar coligações de vontade; e a predisposição
para, se necessário, os EUA actuarem sozinhos.
Em nome da «guerra contra o terror», a Administração Bush remilitarizou
a política externa americana, como demonstram o aumento das despesas
militares dos EUA, ultrapassando os 4% do PIB; as intervenções militares
no Afeganistão (Outubro de 2001) e no Iraque (Abril de 2003); o abandono
unilateral do Tratado ABM (2002); a pressão coerciva contra os Estados pária
12 De que se destacam, entre outros, o Vice-Presidente Dick Cheney, o Secretário da Defesa Do-
nald Rumsfeld, o Secretário de Estado Collin Powell, o Deputy Defense Secretary Paul Wolfowitz, o
Deputy Secretary of State Richard Armitage, a National Security Advisor e depois Secretária de Estado
Condoleezza Rice, o Assistant Secretary of State for East Asia James Kelly ou o US Trade Represen-
tative Robert Zoellick.
e regimes tiranos (sobretudo, Iraque, Irão e Coreia do Norte e, também,
Sudão e Myanmar); a intensificação da cooperação militar, anti-terrorista
e contra-proliferação de ADM com aliados e parceiros; a criação de no-
139
vos diálogos e parcerias estratégicas; etc.. Paralelamente, todavia, também
montou uma vasta série de novas «coligações de vontade»; 13 expandiu os
laços económicos e comerciais bilaterais dos EUA através da celebração de
múltiplos acordos, incluindo Trade and Investment Framework Agreements
(TIFAs), Bilateral Investment Treaties (BITs), Free Trade Agreements (FTAs)
e Generalized System of Preferences (GSP) para países considerados elegí-
veis; instigou ‘revoluções coloridas’ pro-democráticas; estabeleceu climate
partnerships bilaterais (com 15 países e organizações, entre 2001 e 2008);
e aumentou significativamente a Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD)
de menos de 10 mil milhões USD, em 2000 para quase 27 mil milhões USD,
em 2008, voltando a colocar os EUA na posição de maior doador mundial
de APD desde 2001 – embora numa percentagem do PIB inferior a outros
doadores e muito abaixo dos compromissos para os Objectivos do Milénio
de 0.7% do PIB.
No contexto pós-11/09, a Ásia assumiu uma nova centralidade estratégica,
para os EUA, propondo-se a Administração Bush manter «parcerias robustas
apoiadas por uma postura de defesa avançada que apoia integração econó-
mica através da expansão do comércio e investimento e da promoção da
democracia e direitos humanos» (NSS, 2006: Cap. VIII). Essa centralidade
seria, aliás, visível, por exemplo, na reforma que a Administração iniciou
no sentido de aumentar a coordenação na política asiática entre os De-
partamentos de Estado e da Defesa ou de reforçar as respectivas unidades
asiáticas ou, e sobretudo, no apreciável reinvestimento americano na Ásia:
The security of the United States, its citizens, and U.S. allies and partners;
A strong, innovative, and growing U.S. economy in an open international
economic system that promotes opportunity and prosperity; Respect for
universal values at home and around the world; and An international order
advanced by U.S. leadership that promotes peace, security, and opportunity
through stronger cooperation to meet global challenges (NSS, 2010: 6).
14 Efectivamente, o Executivo Obama inclui personalidades reputadas e influentes como Joe Biden,
Vice-Presidente e seu antigo concorrente político; Hillary Clinton, Secretária de Estado e sua principal
rival nas primárias do Partido Democrata; Robert Gates, que transitou da Administração Bush como
Secretário da Defesa; Timothy F. Geithner, Secretário do Tesouro e antigo Presidente do Federal Reserve
Bank of New York; ou Steven Chu, Secretário da Energia e galardoado Nobel da Física.
construção e promoção de bases que nos fortaleçam e aumentem a nossa in-
fluência. A nossa segurança nacional depende da capacidade da América para
usar os atributos nacionais únicos, tal como a segurança global depende de
142
uma liderança Americana forte e responsável» (The White House, NSS, 2010:
6). O uso do smart power, o envolvimento alargado e a liderança mundial dos
EUA, são, assim, pedras basilares da política externa de Obama: a ordem para
encerrar a prisão de Guantanamo Bay, a retirada gradual do Iraque, a abertura
para dialogar e estabelecer entendimentos com adversários tradicionais como
Cuba, Venezuela, Myanmar ou Irão, a tentativa de colocar os EUA na lideran-
ça global da protecção ambiental e das energias renováveis, o empenho na
concretização dos Objectivos do Milénio ou a surpreendente predisposição
para os EUA liderarem um processo conducente a um «mundo livre de armas
nucleares» (objectivo que muito contribuiu para que Obama fosse galardoado
com o Prémio Nobel da Paz 2009) demonstram, na prática, essa tentativa de
liderar pelo exemplo e a ruptura face à Administração americana anterior.
Em certos aspectos, porém, parece haver mais continuidade do que
ruptura. Desde logo, ainda que expressando uma concepção de segurança
abrangente e completa, Obama sublinha a importância da presença militar
e das alianças dos EUA quer como factor de estabilidade nas várias regiões
e no mundo quer como instrumento crucial na promoção dos interesses e
valores americanos e, por outro lado, também enfatiza que «não há maior
ameaça ao povo americano do que armas de destruição massiva, particular-
mente o perigo da procura deste armamento por extremistas violentos e a sua
proliferação noutros Estados» (NSS, 2010: 4). Além disso, embora destacando
«que o poder, num mundo interdependente, já não é um jogo de soma nula»
(NSS, 2010: 3), esta Administração mantém-se empenhada no reforço de laços
com o que denomina «outros centros primordiais de influência – incluindo
a China, Índia e Rússia, bem como nações crescentemente influentes, como
o Brasil, África do Sul, e Indonésia – de modo que podemos cooperar em
temas de preocupação bilateral e global» (NSS, 2010: 3).
Relativamente à Europa, onde goza de grande empatia, esta Administra-
ção afirma que «a nossa relação com os nossos aliados europeus permanece
central ao envolvimento dos EUA no mundo, e um catalisador de acção
internacional» (NSS, 2010: 41), mantendo a Aliança Atlântica como principal
quadro referenciador das relações transatlânticas, mas mostrando igualmente
uma certa decepção que vinha de trás com os Aliados europeus por não
contribuírem como os EUA desejam com efectivos para o Afeganistão. Oba-
143
ma mantém também a linha de apoio americano ao processo integrador da
UE, incluindo o desenvolvimento da Política Comum de Segurança e Defesa
(PCSD), bem como ao desenvolvimento dos laços OTAN-UE, ainda que em
2010 só tenha aceitado participar numa Cimeira EUA-UE fazendo-a coincidir
com a Cimeira da OTAN a realizar em Lisboa, em Novembro. Por seu turno,
esta Administração confirma a percepção de crescente centralidade da Ásia-
-Pacífico para os EUA: o primeiro líder estrangeiro recebido por Obama na
Casa Branca foi o Primeiro-Ministro do Japão, Taro Aso; pela primeira vez em
quase 50 anos, a primeira viagem oficial ao estrangeiro de um/a Secretário/a de
Estado Americano, Hillary Clinton, foi à Ásia Oriental; e autodenominando‑se
«o primeiro Presidente do Pacífico» – recordando o facto de ter nascido no
Hawai e de ter vivido na Indonésia quando criança –, Obama sublinhou na
sua primeira visita oficial à região que os EUA são uma «nação do Pacífico»
e que «temos interesse no futuro desta região, porque o que acontece aqui
tem efeito directo nas nossas vidas» (Obama, 2009b).
Também no que concerne à China, esta Administração dá mostras de a
continuar a encarar como central na política externa: o papel atribuído à
China na recuperação da crise económica global ou na protecção ambiental
faz as reuniões do G-20 parecerem antes um «G2+18»; na sua primeira viagem
oficial à Ásia Oriental, em 2009, Obama passou três dias na China e apenas
um no Japão, um na Coreia do Sul e outro em Singapura (na Cimeira da
APEC). Aliás, mais claro não podia ter sido o Presidente Americano quan-
do, na abertura do primeiro encontro U.S.-China Strategic and Economic
Dialogue, em 27 de Julho de 2009, se referiu à relação EUA-China como
«tão importante como qualquer outra relação bilateral no mundo» (Obama,
2009a). Similarmente, todavia, a Administração mantém a tradicional prática
americana de ambivalência em relação às questões de Taiwan e do Tibete:
poucos meses depois de reafirmar, em Pequim, que «os EUA respeitam, a
soberania e integridade territorial da China (…) e reafirmam o compromisso
para com a política de ‘uma China’» (Obama, 2009a), Obama anunciou, no
final de Janeiro de 2010, a venda de armamentos a Taiwan no valor de 6
mil milhões USD e, no mês seguinte, recebeu o Dalai Lama na Casa Branca,
satisfazendo pressões internas, mas irritando Pequim.
144
Considerações finais
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Maria Raquel Freire
149
Capítulo 6
F e d e r a ç ã o R u ss a
O período soviético
Os primeiros anos da Guerra Fria foram marcados por uma crescente des-
confiança entre os dois blocos, prosseguindo políticas de desenvolvimento
assentes em pressupostos antagónicos: o capitalismo ocidental versus o co-
munismo soviético. Além do mais, eram notórios os esforços de salvaguarda
de influências externas de áreas de interesse, em particular no que toca a
Europa Central e de Leste, definida como central na estratégia hegemónica
soviética, que entendia a presença dos EUA na Europa como uma ameaça às
suas ambições. O factor ideológico tornou-se um elemento fundamental nas
políticas soviéticas, expresso em políticas sociais, económicas e de segurança,
revelando o carácter co-constitutivo das dimensões doméstica e externa. As
152
acções de Estaline contra movimentos comunistas alternativos, como na China
e Jugoslávia, constituem sinal da ameaça que a instabilidade externa podia
causar, bem como um reconhecimento das fragilidades do bloco soviético,
incluindo em termos económicos. Isto resultou na redução de contactos com
o mundo ocidental, e proporcionou uma postura fechada e introspectiva, me-
lhor capaz, de acordo com Estaline, de responder à necessidade de projecção
de uma imagem de força da União Soviética, independentemente dos seus
problemas internos. E, neste contexto, o desenvolvimento de capacidades
militares e o redireccionamento de recursos económicos para o esforço de
militarização eram ilustrativos da estratégia de afirmação no contexto bipolar.
Além do mais, em finais dos anos 1940, as acções soviéticas manifestavam já
a sua vontade de manter controlo sobre uma área alargada, bem para além
dos estados satélite. A Guerra da Coreia (1950-1953) é disso exemplo, com
a máquina ideológica soviética a fornecer incentivos para a ofensiva de Ho
Chi Minh na Indochina contra os franceses. Estas acções faziam parte de um
entendimento mais lato de que a angariação de apoios para a causa ideológica
conferiria poder e estatuto adicional à URSS na sua lógica de afirmação e
expansão global. Estaline apoiou o líder da Coreia do Norte Kim Il Sung nos
seus esforços de fortalecer o controlo da República Democrática da Coreia e
eventualmente alargar o seu poder à República da Coreia (sul), deste modo
fazendo pressão sobre a área de influência norte-americana. O resultado deste
envolvimento não foi bem sucedido, e as lições aprendidas desta experiência
demonstraram a verdadeira possibilidade de confrontação armada entre dois
grandes poderes nucleares, mas também que os seus líderes podiam optar
pela contenção (Gaddis, 2005: 61).
O mandato de Khrushchev, que se sucede a Estaline, com o prossegui-
mento da ‘des-Estalinização’ vai marcar um novo curso na política soviética,
com início em 1956, contra o ‘culto da personalidade’ e os procedimentos
internos de colectivização forçada. Isto significou uma nova direcção nas
políticas soviéticas que implicou não só a definição de novos objectivos
económicos, mas também uma abordagem política diferenciada resultante
também do posicionamento pós-Coreia. Esta nova abordagem definiu a
«coexistência pacífica» como o reconhecimento da capacidade de destruição
nuclear mútua (Sakwa, 1998), e o entendimento de que o conflito violento
153
entre capitalismo e comunismo deveria ser substituído por confrontação
económica e ideológica. O objectivo soviético era alcançar e ultrapassar o
poderio económico norte-americano nos anos 1980, o que lhe permitiria
prosseguir o objectivo ideológico de expansão comunista.
Procurando contrapor o poder e influência do bloco ocidental, em Maio
de 1955 foi criada a Organização do Pacto de Varsóvia como contrapeso à
Aliança Atlântica (OTAN). Esta estrutura militar centrada na União Soviética,
incluía estados satélite como a Albânia, Bulgária, Checoslováquia, Hungria,
Polónia e Roménia. Seguia uma estrutura de comando unificada sob controlo
de Moscovo, e tornou-se uma extensão das forças militares soviéticas na
sua área de influência de modo a desempenhar funções várias, incluindo o
monopólio incontestado sobre as forças do Pacto, competição relativa quanto
à representatividade militar dos estados membros, e legitimação da presença
de tropas soviéticas nos territórios dos estados membros do Pacto. A criação
desta estrutura também pretendeu enviar um sinal ao bloco ocidental relativo
às capacidades militares soviéticas, enquanto simultaneamente procuran-
do uma resposta estrutural aos receios da URSS relativamente a perda de
controlo face a dinâmicas de contestação internas, incluindo centralização
económica, comando militar e estratégias de controlo. Esta tensão sublinha
as dificuldades enfrentadas no seio do bloco, mas é também reveladora da
forma como os líderes soviéticos entendiam estas como limitando a sua
capacidade para actuar globalmente.
Contudo, a década de 1950 foi marcante em termos científicos e tecno-
lógicos. Neste período é registado o desenvolvimento da primeira bomba
termo-nuclear, de mísseis balísticos inter-continentais, e de tecnologia es-
pacial avançada com o lançamento do Sputnik, o primeiro satélite artificial.
Estes avanços tecnológicos, apesar dos vários falhanços das experiências de
colectivização e da excessiva concentração na produção industrial pesada,
conferiram à liderança soviética confiança para prosseguir um papel activo
dentro e fora da sua área de influência. O sucessor de Khrushchev, Leonid
Brejnev, cunhou a denominada Doutrina Brejnev, espelhando esta realidade
de um envolvimento mais activo. A União Soviética actuaria face a qualquer
tentativa de minar o poder central de Moscovo, fosse através de tentativas de
mudança revolucionária do regime ou quaisquer esforços para abandonar o
154
bloco (Checoslováquia, Hungria e Polónia, ver d’Encausse, 1983: 159-218).
Deste modo, e apesar do registo de autonomia constante dos estatutos da
União, os estados do bloco não poderiam desafiar a liderança em termos
ideológicos ou materiais, nem a abordagem soviética centralizada à gover-
nação das diferentes regiões. A doutrina foi alargada para além dos estados
satélite, como demonstrado na intervenção soviética no Afeganistão em
1979. Contudo, Moscovo confrontou-se com uma China desconfortável com
a leitura ideológica soviética, resultando em interpretações diferenciadas da
via para o comunismo, e no diferendo ideológico sino-soviético de finais
da década de 1950, inícios dos anos 1960.
A União Soviética procurou reposicionar o seu estatuto de grande po-
tência na década de 1970 após problemas no seio do bloco e a tensão que
marcou a década de 1960, com a construção do Muro de Berlim, e em par-
ticular a crise dos mísseis de Cuba (1962). A elevada tensão resultante da
crise chamou a atenção para a necessidade de uma nova estratégia face ao
reconhecimento da destruição mútua assegurada, e a insegurança associada
a esta capacidade militar deu lugar ao diálogo, que por seu turno permitiu
passos concretos na negociação de acordos de limitação de armamento.
Exemplos incluem o Tratado de Interdição Parcial de Testes Nucleares (1963),
o Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares (1968), e o Acordo de
Limitação de Armas Estratégicas (1972), que iniciou as conversações SALT
(Strategic Arms Limitation Talks). Estes desenvolvimentos são ilustrativos
de dois aspectos fundamentais: por um lado, a necessidade de condições
domésticas favoráveis para avançar os objectivos de política externa, su-
blinhando o reconhecimento da parte dos líderes soviéticos da existência
de constrangimentos internos; e por outro, o entendimento de que para
manter o reconhecimento internacional desejado, a URSS precisava abrir-se
e demonstrar capacidade de diálogo face ao exterior, de modo a alterar a
sua imagem de poder iliberal.
Neste contexto de détente, em 1975 foi assinada a Acta Final de Helsínquia
que estabeleceu a Conferência sobre Segurança e Cooperação na Europa (CSCE)
(HFA, 1975). O objectivo deste organismo político era fomentar o diálogo entre
os dois blocos, com contactos diplomáticos a alcançar um nível substancial
na altura, e permitindo um fórum de contacto que apesar da sua estrutura
155
informal e das suas reuniões com periodicidade indeterminada, fazia a ponte
entre o leste e o ocidente. Mas rapidamente o contexto se deteriorou e na
década de 1980 não houve cimeiras bilaterais URSS-EUA, estes últimos não
participaram nos Jogos Olímpicos de Moscovo de 1980 e, em 1984, foi a vez
dos soviéticos boicotarem a sua participação nos Jogos de Los Angeles. Em
meados da década de 1980, não só os conflitos políticos se adensavam, mas
também a situação da economia soviética se tornava insustentável. A guerra
no Afeganistão, desfavorável aos soviéticos, ainda pressionou mais recursos
parcos: «entre 1986 e 1990 o défice enquanto parte do PIB da União Soviética
oscilava entre 5.7% e 9.1%, atingindo 12-14% em 1991» (Kaufman e Hardt,
1993: 47). A conjugação de vários factores apontava para a necessidade de
reformas estruturais, que Gorbachev encabeça e cujo desfecho, para além
do esperado, leva à desagregação da URSS e ao fim da rivalidade bipolar.
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(Página deixada propositadamente em branco)
Verónica Martins 1
171
Capítulo 7
França
Introdução
2 A autora teve de fazer escolhas quanto às regiões/países e presidentes tratados neste capí-
tulo devido à limitação de espaço. Desta forma, os mandatos dos presidentes Pompidou e Giscard
d’Estaing (período entre 1969 e 1981) não foram abordados; com base na bibliografia generalista
sobre a política externa francesa, e com uma preocupação de comparabilidade entre os presidentes,
a autora seguiu a selecção das regiões e temas mais utilizados, com destaque para Dalloz (2004),
Gallet (1996), De La Gorce & Moschetto (1996) e Bozo (1997).
da França junto dos três grandes vencedores da Guerra, os EUA, o Reino
Unido e a URSS e afirmar a independência do Estado (Bozo, 1997: 6).
Apesar de um sucesso parcial através do reconhecimento por aqueles Es-
173
tados, a França é excluída das conferências que marcaram o pós-guerra,
Yalta e Postdam, e De Gaulle demitiu-se em Janeiro de 1946 (Bozo, 1997: 7).
No entanto, mesmo depois da ausência provisória do General De Gaulle, a
França procurou, por um lado, desenvolver uma acção independente ten-
tando manter um certo equilíbrio entre as duas potências que emergiram
no fim da guerra e, por outro, manter o seu império colonial (Dalloz, 2004:
32). Contudo, desde o início da IV República, estes dois objectivos ficaram
comprometidos com o início da Guerra Fria e a onda de descolonização
dos ex-territórios franceses (Dalloz, 2004: 32).
Após a adopção de uma nova Constituição em Outubro de 1946 e a elei-
ção do primeiro Presidente da Quarta República, Vincent Auriol em Janeiro
de 1947, o General De Gaulle 3 decidiu criar o partido Rassemblement du
Peuple Français (RPF) em Abril de 1947 como instrumento para regressar ao
poder (Dalloz, 2004: 35). A fragilidade que caracterizou a Quarta República
(1947-1958) impediu a França de desenvolver uma política independente,
pois o Estado sofria de uma instabilidade ministerial crónica causada pelo
sistema de escrutínio proporcional que impedia que um partido tivesse a
maioria na Assembleia e, institucionalmente, estabeleceu um processo de
decisão difuso em matéria de política externa. 4
Perante essa paralisia institucional, a diplomacia francesa alinhou-se com
a dos EUA, inclusive com a adesão à Organização do Tratado do Atlântico
Norte (OTAN), cuja ajuda financeira através do Plano Marshall se tornou
3 Visto o presidente De Gaulle ter sido o fundador da V República e, por isso, o primeiro a
pôr em prática os seus princípios, é usual encontrar a divisão «era De Gaulle» e «pós De Gaulle» ou
ainda «legado» ou «herança» para designar os mandatos dos seus sucessores. Contudo, deve ser feita
uma ressalva para o facto da «era pós De Gaulle» designar para a maioria dos autores os mandatos
de Pompidou e de Giscard D’Estaing (Bozo, 1997; Chevallier, Carcassonne e Duhamel, 2009; outros,
como Dalloz (2004), incluem o período que vai até ao fim da Guerra Fria. No entanto, sem ignorar
as consequências geopolíticas e geoestratégicas do fim da bipolaridade, a autora segue esta divisão
para os presidentes que sucederam a De Gaulle visto que os preceitos gaullistas irão manter-se ape-
sar da mudança de estilo inerente a diferentes personalidades e outros factores internos e externos.
4 As principais responsabilidades foram atribuídas ao MNE e ao Presidente do Conselho, en-
quanto o Presidente da República pode influenciar a política e o Parlamento decide as suas grandes
orientações (Bozo, 1997: 9).
indispensável para a reconstrução e modernização da economia (Bozo,
1997: 10-13; Dalloz, 2004: 42-48). Ademais, o endividamento que resultou
das guerras coloniais em África e na Ásia também contribuiu para aumen-
174
tar essa dependência, especialmente a Guerra na Argélia que foi longa e
desgastante (CRDP Champagne-Ardenne, s.d.). Contudo, pela primeira vez,
a França apareceu como líder da política europeia através da iniciativa de
Jean Monnet (CECA) marcada pelo famoso discurso de Robert Schumann
de 9 de Maio de 1950 e, em vez de submeter-se, ela apontou o caminho
(Bozo, 1997: 15) que conduziria à assinatura do Tratado de Roma em 1957.
7 Relativamente à Assembleia: Comissão da Defesa e das Forças Armadas, Comissão dos Negó-
cios Estrangeiros e Comissão das Finanças. Quanto ao Senado, Comissão dos Negócios Estrangeiros
da Defesa e das Forças Armadas e, para um parecer, a das Finanças (Gallet, 1996: 33).
Guerra Fria pelos vetos sucessivos da URSS e dos EUA. Além disso, a França
também se tornou uma potência nuclear (primeiros testes realizados em
Fevereiro de 1960), integrando assim «um clube exclusivo» que lhe permitiu
176
ser encarado como um «actor sério» no plano diplomático durante a Guerra
Fria (Howorth, 1996: 383). Se na Constituição a repartição das responsabi-
lidades em termos de defesa entre o Primeiro Ministro e o Presidente não
era clara, dois decretos (18 Julho 1962 e 14 de Janeiro 1964) promulgados
sobre as forças militares clássicas e sobre as forças nucleares atribuem os
poderes ao Presidente (Kessler, 1999: 166).
À excepção da Argélia, os outros Estados do Magrebe e os Estados de
África já tinham adquirido a sua independência, apesar de as relações es-
tarem integradas num esquema de cooperação quase neocolonial (Bozo,
1997: 33). O conflito na Argélia estava a pesar no papel que a França podia
desempenhar em termos internacionais já que em 1960, a ONU tinha votado
uma resolução proclamando o direito à independência para o povo argelino
(Bozo, 1997: 33). A França estava sem opções e depois de um primeiro
referendo a 8 de Janeiro 1961, um segundo referendo ocorreu no dia 8 de
Abril 1962 para aprovar os Acordos de Evian, assinados em 18 de Março
1962 (Chevallier, Carcassonne e Duhamel, 2009: 68-76).
Depois do «problema argeiino» resolvido e da descolonização terminada,
o General pôde concentrar a sua atenção em termos de política externa
noutras prioridades. O seu desejo de afirmar a independência da França
levou ao desenvolvimento de uma política de defesa forte assente na força
nacional de dissuasão e numa doutrina estratégica (De La Gorce e Mos-
chetto, 1996: 27-28) que se caracterizou por uma dimensão anti-americana,
anti-hegemónica, cuja origem não era ideológica, mas sim derivada de uma
avaliação clássica das relações de poder (Mireur, 2006-2007: 93). Apesar
de procurar uma certa independência em relação aos dois blocos que se
tinham formado nessa época, o desejo de reforma da OTAN contido num
memorando elaborado pelo General De Gaulle em Setembro de 1958 que
reivindicava a tomada de decisões políticas e estratégicas mundiais pela
França, Reino Unido e Estados Unidos, inclusive na aplicação de planos de
acção estratégica que necessitassem a utilização de armas nucleares, tornou‑se
condição para a participação futura da França nos desenvolvimentos da
Aliança (Dalloz, 2004: 166-167). Perante as resistências a essas ideias, com
o desenvolvimento da détente, a ruptura sino-soviética que enfraqueceu
a posição soviética e a constituição da força nuclear francesa, De Gaulle
177
distanciou-se progressivamente da OTAN até à retirada em Março de 1966. 8
Relativamente à construção europeia, o General De Gaulle propôs o
lançamento de uma Europa autónoma no domínio político e militar (plano
Fouchet I, 1961) e a resistência dos seus parceiros europeus causou um en-
durecimento da sua posição (Plano Fouchet II, 1962), reafirmando o carácter
intergovernamental da construção europeia e o afastamento da OTAN, mas
os dois planos foram rejeitados pelo Benelux que reivindicava a adesão do
Reino Unido (Gallet, 1996: 115). No entanto, a França recusou várias vezes
esta adesão, pois receava o potencial controlo americano que se poderia
instalar se aquela aderisse à Comunidade (Dalloz, 2004: 158-160). Entre-
tanto, no seio da construção europeia, a França e a RFA aproximaram-se,
e apesar de o Presidente Adenauer não aprovar a política que De Gaulle
estava a desenvolver relativamente às relações transatlânticas e ao seu de-
sejo de independência, os dois Estados assinaram o Tratado do Eliseu a 22
de Janeiro de 1963 (Bozo, 1997: 44). Com cooperação prevista em termos
militares, o Presidente francês pretendia, de certa forma, obrigar a RFA a
«escolher» entre Washington (e o seu projecto de força nuclear multilateral)
e Paris (Bozo, 1997: 44).
Relativamente ao bloco comunista verificou-se uma tentativa de apro-
ximação à URSS com a realização de uma viagem em 1966 por parte do
Presidente francês, no sentido de promover uma «Alemanha Unificada»
tendo levado à instalação de um «telefone vermelho» entre as duas capi-
tais e uma busca por parte da França de uma aproximação aos países de
Leste em termos bilaterais, nomeadamente com a Roménia, primeiro país
sob tutela soviética a ter respondido ao pedido de diálogo francês (Dalloz,
2004: 168‑169). Não obstante essa aproximação, não se tratava de inverter
alianças, mas de aproveitar o movimento de independência criado pelo
General para ganhar influência na cena internacional e para acabar com
8 Em 1963, o General retirou a frota francesa do comando integrado (Dalloz, 2004: 167). Para
mais informações sobre a política de De Gaulle em relação à OTAN, consultar também Bozo (1996).
o monopólio americano do diálogo com os Soviéticos, beneficiando do
período de détente (Dalloz, 2004: 168).
Finalmente, devemos ainda referir as linhas da política externa do funda-
178
dor da Quinta República para duas regiões que permanecerão componentes
estruturantes das relações externas, 9 África Negra e os países árabes, junto
dos quais a França procurará obter apoio para a independência da sua
política. O Ministério da Cooperação foi criado oficialmente em 1961, em
plena descolonização da África subsaariana, com um campo geográfico
limitado aos países francófonos, tendo por objectivo gerir as relações de
cooperação franco-africanas, pelo menos provisoriamente, mas acabou por
prolongar-se e tornar-se um instrumento essencial nas relações bilaterais.
De facto, os países africanos recém independentes são colocados entre os
principais beneficiários da política de cooperação construindo assim o pré
carré francês em África (Gallet, 1996: 93), onde os presidentes da Quinta
República procurarão continuar a exercer a sua influência de forma directa
e pessoal, o que contribuiu para o «apagamento» dos Primeiros Ministros
apesar de estes continuarem a desempenhar um papel institucional e oficial
(Kessler, 1999: 308).
No que respeita ao Magrebe, como vimos, o principal ponto de preo-
cupação para a França foi a violenta guerra de descolonização na Argélia.
Os Acordos de Evian instituíram a livre circulação de pessoas entre os dois
Estados, visando regular fluxos migratórios, mas o que se verificou foi a
deslocação dos Pieds-noirs e dos Argelinos em direcção à Metropole (Gou-
revitch, 2000: 107). No que concerne os dois vizinhos da Argélia, Marrocos
e Tunísia, ambos procuraram também desenvolver uma relação privilegiada
com a França. Não obstante uma melhoria da imagem na cena internacio-
nal, tendo em conta a oposição francesa à liderança americana na região,
foi necessário esperar por 1967 para assistir a uma viragem decisiva nas
relações franco-árabes (Boniface, 2004: 211). De facto, o General desejou
ocupar de novo um lugar de destaque no mundo árabe, opondo-se inclusive
9 Bertrand Gallet considera as políticas para essas duas regiões e a do eixo franco-alemão como
sendo «políticas particulares da França» (Gallet, 1996: 92).
a Israel.10 Esta mudança na política do Próximo Oriente vai ser perpetuada
e sistematizada numa verdadeira política árabe, até mesmo pro-árabe (Bozo,
1997: 53; Chérigui, 1996: 298-300).
179
10 Sendo um dos principais fornecedores de equipamentos militares para Israel, a França decre-
tou um embargo sobre as exportações de armas para o Médio Oriente (Gallet, 1996: 92).
questões do pós-Guerra Fria (Védrine, 1996: 43, 51). Por outras palavras, se
com o fim da bipolaridade a estratégia mudou, os objectivos permaneceram
os mesmos (Boniface, 1998: 158).
180
A verdade é que, no segundo mandato de Mitterrand, a França reconheceu
a sua incapacidade em manter um impacto mundial por e para ela mesma,
e rompeu a ligação entre a sua independência e a sua influência (Salamé,
1998: 228). Para poder levar a cabo a sua política de forma independente,
a França procurou desenvolver uma terceira via (nem capitalista, nem co-
munista), mas o desaparecimento da URSS tornou caduca essa estratégia.
O desenvolvimento de uma Europa forte já não aparecia como uma tercei-
ra opção, mas como uma forma de fortalecer diplomaticamente a França
num mundo multipolar (Guyomarch, 1998: 121). Assim, nas negociações
do Tratado de Maastricht, a posição francesa evoluiu de apoio a um papel
mais importante da política externa da UE para apoio ao desenvolvimento
de uma política europeia de defesa, sob os auspícios da UEO, permitindo
assim à UE manter a sua independência em relação à OTAN e aos EUA
(Guyomarch, 1998: 121).
A França deixou de seguir uma lógica regional, à excepção do espaço ao
qual ela pertence, e para confirmar essa tendência, Hubert Védrine (1996:
238) apresentou, entre outras justificações para a intervenção da França no
Koweit, a necessidade de evitar que ela fosse moral, diplomatica e militar-
mente desacreditada no terreno europeu e euro-atlântico. Contudo, a Guerra
do Golfo acelerou o reconhecimento da caducidade da política árabe francesa
que começou a perder a sua especificidade com o fim da bipolaridade. 11
Apesar de Mitterrand ter tentado manter as melhores relações possíveis em
simultâneo com os três Estados do Magrebe, devemos assinalar a situação
de guerra civil na Argélia desde 1992 (e) que perturbou a relação com a
França (Védrine, 1998: 11).
Finalmente, que tipo de relações foram mantidas com a África francófona
nos primeiros anos do pós-Guerra Fria? As diversas publicações sobre a
11 Na verdade, já nos anos 1980 François Mitterrand tinha promovido a iniciativa diplomática que
viria a dar origem ao Diálogo 5+5. Depois, em 1994, juntamente com o Egipto, promoveu a iniciativa
do Fórum do Mediterrâneo (Chérigui, 1996: 300).
temática sublinham que, em relação à política dos seus antecessores, hou-
ve algumas pequenas rupturas e grandes continuidades (Marchesin, 1995:
3). Mantiveram-se algumas características como a primazia das relações
181
personalizadas com os dirigentes africanos, já que a África permaneceu
um domaine réservé da presidência, a manutenção dos acordos de defesa
concluídos antes de 1981 e uma recusa de renovação dos mesmos no início
dos anos 1990 (Marchesin, 1995: 3). No entanto, podemos afirmar que Mit-
terrand tentou ir mais longe quanto às regras que deveriam reger a ajuda
francesa aos países africanos com o seu discurso de La Baule, em Junho
de 1990 (Mitterrand, 1990), mas cujas propostas não foram bem acolhidas,
pois assemelhavam-se a uma ingerência nos assuntos internos (Gallet, 1996:
102‑103). Apesar da falta de iniciativas francesas, a política africana da França
aparece como uma das heranças melhor conservadas desde o General De
Gaulle (Marchesin, 1995: 3).
12 Em 1998, foi criada a Zona de Solidariedade Prioritária (ZSP) para uma maior concentração e
selecção da ajuda. Os países beneficiários são dos menos desenvolvidos em termos de rendimentos
e de acesso aos mercados de capitais e com os quais a França pretendia desenvolver uma relação de
parceria. Em 2002, eram 55 Estados, a grande maioria pertence ao continente africano (MAEE, 2007).
As ambições mundiais da França são, por conseguinte, apoiadas pelo
esforço de ajuda ao desenvolvimento em várias zonas do globo e, apesar
das dificuldades financeiras generalizadas, o esforço passou de 7,56 mil
183
milhões de euros em 2008, ou seja, o quarto doador mundial em volume
e o segundo no G8, para 8,92 mil milhões de euros em 2009 (0,46% do
PNB) (MAEE, s.d.d).
Apesar dos protestos de muitos Estados, o primeiro acto forte do Pre-
sidente para testemunhar a «grandeza» da França foi o anúncio do retomar
dos testes nucleares a 13 de Junho de 1995, depois de estes terem sido
abandonados pelo seu antecessor (Lombart, 2007: 380).
No início do primeiro mandato de Jacques Chirac, poderia ter-se acre-
ditado numa nova divisão de tarefas entre o Eliseu e Matignon (Howorth,
2001: 159). Com efeito, Alain Juppé, que no governo de Edouard Balladur
(1993-1995) ocupou o posto de Ministro dos Negócios Estrangeiros, tinha
sido nomeado Primeiro Ministro e exerceu uma certa influência nos mo-
mentos de mudança de questões importantes como as relações com a OTAN
(Howorth, 2001: 162). 13 Houve um terceiro período de coabitação 14 entre
o governo socialista de Lionel Jospin e Jacques Chirac que durou até ao
fim do primeiro mandato (1997-2002). O Primeiro Ministro procurou não
penetrar nas áreas do Presidente e este não contestou o direito do Governo
em pronunciar-se sobre a orientação dos assuntos externos e militares que
ele próprio tinha reivindicado em 1986 (Cohen, 2003: 350-351). No entan-
to, esse acordo não impediu que algumas decisões fossem tomadas pelo
Presidente sem concertação prévia com o Primeiro Ministro (participação
discreta deste último durante a crise do Kosovo) ou que este tenha tido
algumas «derrapagens» mediáticas 15 (Cohen, 2003: 352-353). Disto resultou
13 Esse segundo período de coabitação foi menos conflituoso e a novidade reside na aceitação
de uma co-gestão serena, no respeito das prerrogativas constitucionais do Chefe de Estado e do
Chefe do Governo para evitar choques (Cohen, 2003: 348).
14 O primeiro período de coabitação ocorreu entre 1986 e 1988, tendo sido Jacques Chirac o
chefe do Governo; o segundo entre 1993 e 1995.
15 Devemos referir o facto de ter havido algumas divergências de política, nomeadamente duran-
te a viagem oficial a Israel de Lionel Jospin em Fevereiro de 2000 durante a qual qualificou o Hez-
bollah libanês de grupo terrorista, rompendo assim com a neutralidade da política árabe de Jacques
Chirac (De Chalvron, 2000).
uma monopolização pelo executivo (Presidente/Primeiro Ministro) do trata-
mento das questões de política externa em detrimento do Parlamento e do
debate público, executivo que se empenha em afirmar que a França «fala
184
a uma só voz» (Cohen, 2003: 354).
No que diz respeito à dimensão europeia, podemos afirmar que Jac-
ques Chirac teve uma atitude por vezes divergente face à posição gaullista.
Pode-se considerar que o Presidente chegou à conclusão que era inevitável
que a Europa caminhasse para algo mais federal enquanto prosseguisse a
integração europeia (Zuqian, 2002: 118), nomeadamente através do apoio
firme em favor da União Económica e Monetária no Outono de 1995 e da
consequente política do Governo Juppé em matéria de redução do défice
público (Bozo, 1997: 106). Mais recentemente, podemos também referir o
apoio do Chefe de Estado à campanha para a adopção do Tratado Consti-
tucional em 2005 (Lequesne, 2007a: 5), apesar da sua rejeição com quase
55% de votos contra (AFP e Reuters, 2005).
Devemos ainda referir um aspecto intimamente ligado ao desejo de Jaques
Chirac de voltar a conquistar um lugar de destaque na Europa ocidental
(Bozo, 1997: 106), nomeadamente uma tentativa de ruptura em relação à
política militar com uma eventual reintegração da França na OTAN, frustrada
contudo devido à oposição do governo socialista de 1997 a 2002 (Apathie
e Ottenheimer, 1997).
Quanto à reaproximação da França à OTAN, deu-se num contexto de
degradação da situação no Kosovo já a partir de 1998 e com a tentativa
falhada de paz com a conferência de Rambouillet (Fevereiro 1999), que
conduziu ao lançamento da campanha de bombardeamento da OTAN no
Kosovo a 19 de Março de 1999, à qual Jacques Chirac associou a força
aérea francesa, apesar da presença dominante dos EUA (Lequesne, 2007a:
6). Contudo, essa decisão não foi despropositada pois, tendo sido um dos
protagonistas da Cimeira bilateral de Saint-Malo com o Reino Unido em
1998, encontro fundamental para o projecto de uma defesa europeia com
vocação autónoma, Jacques Chirac via nessa intervenção a possibilidade
de contribuir para a autonomização do pilar europeu no seio da Aliança
Atlântica (Lequesne, 2007a: 6). Esta constitui uma das excepções em termos
de iniciativas de política externa, pois como sublinhou Frédéric Charillon,
os sucessivos períodos de coabitação tiveram um certo efeito de paralisia
pois, por um lado, era necessário evitar que a política externa se tornasse
um assunto importante da política interna e, por outro, devia evitar-se pro-
185
jetar as dimensões internas para a cena internacional (Charillon, 2002: 925).
Outro aspecto intimamente ligado à política europeia da França é o da
relação franco-alemã que foi positivamente incentivada pelo apoio de Jac-
ques Chirac aos alargamentos da UE para Leste,16 já que, como afirmou este
último em 1998, «a França deseja que possa ocorrer, logo que possível, a
adesão de todos os países candidatos que preencherão as condições fixadas
pelos tratados. O alargamento é um dever moral e constitui também uma
oportunidade para a Europa» (Chirac, 1998). No entanto, desde o início do
mandato, as relações do eixo franco-alemão mostraram-se complicadas,
pois as divergências e os mal-entendidos multiplicaram-se, nomeadamente
no que diz respeito às reformas institucionais da União, não conseguindo
restabelecer a harmonia da dupla Mitterrand-Kohl (Lequesne, 2007a: 7-8).
A situação não melhorou com o chumbo do Tratado Constitucional no
referendo de 29 de Maio de 2005, condicionando igualmente o papel da
França no seio da UE até ao final do mandato de Chirac que não dipôs
nem do tempo, nem dos recursos políticos necessários para poder saír da
crise com propostas originais (Lequesne, 2007b: 1).
No que diz respeito às relações com a Rússia, Jacques Chirac mostrou
desde o início do mandato o desejo de não isolar esse Estado na cena
internacional, o que se tornou patente, nomeadamente na reforma da
OTAN para a qual preconisava uma parceria com a Rússia (Chirac, 1996a)
e cuja importância não podia ser negada no fim da década de 1990 dada
a situação na antiga Jugoslávia. Contudo, os dois Estados procuraram dar
um novo impulso às relações bilaterais em 2000, aproveitando a cimeira
UE-Rússia que se realizou sob os auspícios da presidência francesa, através
16 Sem descurar a dimensão mediterrânica, já que foi em parte sob o impulso da presidência
francesa de 1995 que foi lançado o Processo de Barcelona.
do relançar dos encontros bilaterais a todos os níveis. 17 Assim, no campo
diplomático, gerou-se uma relação privilegiada entre Vladimir Putin e Chirac
que solidificou certas posições e terá contribuido para resolver algumas
186
tensões e encetar dinâmicas que ultrapassam o quadro estritamente bilateral
(Gomart, 2007: 128) como foi mencionado em relação aos «campos» criados
na Guerra do Iraque (Gomart, 2007: 130). Tendo em conta que Paris não
tem real capacidade de influência sobre a situação na Rússia, a França teria
vantagens em «desbilateralizar» a relação para estabelecer uma articulação
mais sistemática com o diálogo UE-Rússia (Gomart, 2007: 134), intenção que
foi expressa em 2005 pelo Presidente no que diz respeito à implementação
dos quatros espaços comuns com a UE (Chirac, 2005).
Vamos agora atentar na política externa desenvolvida na África e na
região do Mediterrâneo com os Estados árabes. Nenhum outro Presidente
alimentou tantos laços pessoais com alguns dirigentes africanos e mereceu
tanto o qualificativo de o «Africano» (Claude, 2007: 906). Além disso, no
seu discurso aos Embaixadores em 1998, o Presidente afirmou todo o seu
empenho em manter a ajuda pública ao continente para apoiar os esforços
de alguns Estados em fase de reformas democráticas, assumindo até um
tom moralizador quanto à obrigação de integrar os países mais pobres na
economia mundial (Chirac, 1998). Não esqueçamos que a política francesa
de APD teve sempre como principal fonte de inspiração a manutenção e a
progressão da francofonia, e esta constitui a regra principal de repartição
geográfica dos créditos (Kessler, 1999: 336).
Houve contudo algumas mudanças, nomeadamente no âmbito militar,
pois mesmo com um interesse renovado do Presidente francês pela África,18
19 Os países que compõem o pré carré são os do Magrebe mais o Gabão, o Senegal e a Costa
do Marfim (Claude, 2007: 908).
dos americanos junto de Israel para facilitar a conclusão de um cessar-fogo
no Líbano, pois este manteve-se uma porta de entrada privilegiada para o
Médio Oriente (Gallet, 1996: 113). Ao continuar a apoiar os Palestinianos
188
depois do início da segunda Intifada em 2000, a França aumentou a sua
popularidade junto dos países árabes, mas foi a sua posição relativa à guerra
do Iraque que lhe valeu a sua grande popularidade, não somente junto dos
Estados árabes e muçulmanos em geral, mas também no resto do mundo,
precisamente pelo facto de ter encarnado uma resistência a uma política
americana agressiva considerada injusta e perigosa (Boniface, 2007b).
Assim, a acção diplomática do Presidente Chirac inscreveu-se contra a tese
do choque das civilizações, procurando manter uma certa coerência entre
as suas acções e o seu discurso, decidido a não deixar os EUA agirem sós
(Boniface, 2007b). A política externa de Jacques Chirac foi marcada afinal
por mais elementos de continuidade do que de ruptura com o Gaullismo
(Lequesne, 2007a: 11). Não obstante, foi-lhe várias vezes apontado o facto
de ter exercido uma política externa demasiado pessoal e comportando
poucas iniciativas (Suleiman, 2007).
20 A terceira reflexão desde a criação da V República, ou seja, a primeira foi lançada em 1972 e
depois em 1994.
rar o Ministério para que possa concentrar-se nas suas missões...» (MAEE,
2008). Devemos ainda referir a terceira iniciativa promovida pelo Presidente,
a reforma constitucional, consagrada na lei constitucional de 23 de Julho
190
de 2008, tendo entre outros, o objectivo de re-equilibrar os poderes das
instituições da República, nomeadamente a favor do parlamento (Balladur,
2008: 30). No campo da política externa, o Parlamento viu os seus poderes
reforçados no que diz respeito às operações militares externas e quanto
ao dever de informação do executivo relativo às negociações diplomáticas
(Balladur, 2008: 62-63) apesar de, no final, os poderes do Presidente não
terem sido em nada reduzidos ou questionados.
Se, no fundo, a questão que vimos mais acima sobre a OTAN e a defesa
europeia está incluída na primeira prioridade que consiste em garantir a
segurança da França e dos Franceses, a defesa e promoção dos interesses,
a segunda prioridade consiste em construir uma Europa forte e eficaz com
os seus parceiros. Como tinha anunciado aos Embaixadores, «a construção
da Europa permanecerá a prioridade absoluta» da política externa francesa
(Sarkozy, 2007a). Com efeito:
Não existe uma França forte sem Europa, como não existe uma Europa
forte sem França. Faço parte daqueles que pensam que a emergência de uma
Europa forte, actor importante na cena internacional, pode contribuir de uma
forma decisiva para a reconstrução dessa ordem mundial mais eficaz, mais
justa, mais harmoniosa, que reclamam os nossos povos. (Sarkozy, 2007a)
21 Com efeito, devido às reticências da Alemanha, Reino Unido e outros Estados da UE que tinham
receio de ser excluídos do projecto tal como tinha sido formulado no início. Em Março de 2008, Nicolas
Sarkozy e Angela Merkel chegaram a um entendimento que modificou consideravelmente a proposta
francesa já que todos os membros do Processo de Barcelona poderiam participar, e a União para o Me-
diterrâneo não pretendia substituir-se à Parceria. Além disso, a proposta teria de assumir uma conotação
europeia, ou seja, não deveria ser apresentada como uma iniciativa francesa (s.a., 2008a).
países africanos tinham um certo receio da política que o ‘candidato’ Sa-
rkozy promovia e poderia desenvolver após a sua eleição, nomeadamente
em termos de imigração, tema de grande relevância nas relações bilaterais
193
(Thiam, 2008: 874). Foi aliás por essa ocasião que, em Cotonou, o futuro
Presidente apresentou o seu conceito de «imigração escolhida», tanto para o
país de destino como para o país de origem (Thiam, 2008: 874). Além disso,
o próprio tinha declarado que muitos Africanos se alegravam de ouvir um
novo discurso global sobre a política africana da França (Soudan e Yahmed,
2006: 22). O Presidente pretendia uma nova «visão da parceria» anunciando
um eventual aumento da APD ao qual estaria associada condicionalidade
democrática, já preconizada pelo Presidente Miterrand em 1990 (D’après
agence, 2007).
Contudo, durante a sua primeira deslocação ao continente africano, ao
Senegal, em Julho de 2007, o Presidente tinha proferido um discurso que
suscitou grande polémica à volta da afirmação que o «Homem africano ain-
da não tinha entrado na História» (AFP, 2009), discurso que não convidava
francamente ao diálogo (Mbembe, 2007; Sarkozy, 2008). No entanto, na
cimeira UE-África que se realizou em Dezembro de 2007, Nicolas Sarkozy
procurou lançar as bases do «início da normalização» de relações com a
Costa do Marfim e o Ruanda, dois Estados com os quais as relações se ti-
nham deteriorado durante a presidência de Chirac (Bernard e Nougayrède,
2007). Da mesma forma, no que concerne a Líbia, aproveitando o início
da normalização de relações na viagem de Jacques Chirac em 2004 (Sam-
son, 2004), e no seguimento da libertação bem sucedida das enfermeiras
búlgaras e de um médico palestiniano a 24 de Julho de 2007, criaram-se
novos incentivos, nomeadamente económicos, nas relações franco-líbias.
A grande actividade internacional do Presidente conduziu-o em várias via-
gens pelo continente das quais devemos destacar a tournée realizada em
Março de 2009. 22 Na verdade, apesar de o Presidente desejar «limpar as
relações da Françafrique» de todo o paternalismo e da personalização das
relações entre chefes de Estado e das «redes opacas» (Thiam, 2008: 875),
Conclusão
23 «Eu sou dos que pensam que a França permanece portadora de uma mensagem e de valores
que ressoam pelo mundo fora, os da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, do humanis-
mo, mas também, mais recentemente, do humanitário (...)» (Sarkozy, 2007a).
contribuir para um maior controlo democrático sem prejudicar (e até
melhorar) a eficácia dessa política?
Que futuro tem a dupla franco-alemã num contexto de integração europeia
196
em que as divergências entre as partes tendem a tornar-se mais evidentes?
Analise quais podem ser as consequências da reintegração da França na OTAN
para o desenvolvimento da política de defesa europeia e a afirmação da
França nesse domínio.
À luz da emergência de novas potências, fortes concorrentes da França no
continente africano e da ‘renovação’ de muitos dos líderes africanos,
argumente quanto à capacidade actual de influência da França nesse
continente.
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G r ã -B r e t a n h a
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Capítulo 9
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253
C a p í t u l o 10
Japão
1 Apesar das datas indicadas, Yoshida Shigeru realizou dois mandatos: de Maio de 1946 a Maio
de 1947 e de Outubro de 1948 a Dezembro de 1954. Durante o interregno passaram pelo cargo de
Primeiro-Ministro Katayama Tetsu e Ashida Hitoshi.
acompanhada de modéstia, dão origem a uma expansão extraordinária da
indústria e do comércio.
A Guerra da Coreia (1950-1953) ajudou nessa recuperação ao permitir um
257
incremento nas exportações japonesas. Também apressou os EUA a procurarem
a conclusão de um tratado de paz com os japoneses e levou à assinatura do
Tratado de Segurança (que será renegociado em Janeiro de 1960). Assim, a 8
de Setembro de 1951 é assinado em São Francisco o Tratado de Paz com os
EUA, bem como um Tratado de Defesa Mútua, a que se associam também o
Reino Unido e mais 46 Estados. Segundo este Tratado, o Japão perde 45% do
seu território e é confinado às suas quatro ilhas principais.2 Recupera a sua
soberania total em 28 de Fevereiro de 1952, quando as tropas de ocupação
norte-americanas abandonam as grandes ilhas do Japão, embora permaneça
sob protecção norte-americana. Esta normalização permitiria a entrada do
Japão como membro de pleno direito na ONU, em Dezembro de 1956.
Em 1951, como reacção ao contexto de Guerra Fria e à guerra da Co-
reia, os EUA autorizam o rearmamento nipónico, embora limitado pelos
constrangimentos do art. 9º. A Força de Auto-Defesa (Self Defense Force – a
SDF, nome oficial do exército japonês) limitava-se, por isso, a um arma-
mento defensivo – excluindo certo tipo de armas estratégicas e, claro, o
armamento nuclear (princípios anti-nucleares reafirmados por Kishi). O país
comprometeu-se a não consagrar mais de 1% do PIB às despesas militares.3
Entre 1954 e 1972, a economia japonesa expandiu-se rapidamente. Par-
tindo da sua base industrial anterior à guerra, o Japão importou tecnologia
e maquinaria modernas, e tornou o desenvolvimento económico o cerne
da política nacional e do seu posicionamento no sistema internacional. O
planeamento económico centralizado permitiu ao governo controlar a es-
2 O Japão renunciou a todos os seus direitos sobre a Coreia, Formosa, ilhas Curilhas, Sakalina e
as ilhas que eram antigos mandatos, abandonando igualmente qualquer reivindicação sobre a Chi-
na; reconheceu o direito de se defender e de negociar acordos de segurança colectivos e aceitou a
validade das reparações de guerra.
3 Apesar de estarem limitados a 1% do PIB, este valor bastava para o colocar, na altura, no ter-
ceiro lugar mundial na área do armamento militar. De resto, o Japão passaria a viver sob o ónus da
existência de bases permanentes de tropas norte-americanas no seu território, para as quais o Gover-
no japonês contribui com o host nation support, através do pagamento dos custos com funcionários
japoneses nas bases norte-americanas.
trutura económica, colocando os recursos, capital e força de trabalho onde
o seu potencial de crescimento era maior. O «Estado desenvolvimentista»,
herdeiro dos Meiji, orquestrou uma política industrial, distinta do liberalismo
258
anglo‑saxónico pelo papel central desempenhado pelo Estado na definição
dos grandes objectivos económicos e por uma política comercial mercantilista,
conduzindo o Japão a um lugar cimeiro na economia mundial desde finais
dos anos setenta. Em 1972, a entrega oficial ao Japão da base de Okinawa,
ocupada pelos americanos desde 1945, assinalou o fim da subordinação
nipónica aos EUA, embora se mantivesse a sua presença permanente em
diversas bases no seu território, como é o caso de Futenma.
Durante os sete anos de ocupação efectiva, os japoneses e os america-
nos conheceram-se mais de perto, tendo os americanos contribuído para a
reconstrução do país através de organizações de auxílio e de ajuda indus-
trial. Apesar disso, não se tinha conseguido fundar uma verdadeira amizade
nacional entre duas nações e culturas tão diferentes. Os acompanhantes
inevitáveis de qualquer exército de ocupação (a corrupção, a prostituição,
a droga, o alcoolismo e as numerosas manifestações de falta de tacto dos
vencedores em relação aos vencidos), criaram um clima anti-americano
junto da população.
Os movimentos socialistas, orientados quer para a Rússia quer para a
China de Mao, atingem também o Japão. Face à sua própria decisão de
renunciar para sempre à presença militar, o Japão necessita, neste mundo
convulsionado, de uma garantia de segurança. Em Julho de 1957, os «princí-
pios fundamentais da defesa nacional», aprovados pelo governo Kishi incluem
princípios como: (a) a segurança nacional do Japão baseia-se na cooperação
internacional, no entendimento com os EUA e na procura de independência
económica; (b) as forças de autodefesa japonesas (SDF) serão progressiva-
mente aumentadas, mas até ao limite do estritamente necessário, e Tóquio
afasta-se da opção nuclear; (c) e a presença efectiva de forças americanas
é entendida como tornando mais credível o «guarda‑chuva» nuclear dos
EUA como factor de dissuasão de um possível agressor, ao nível regional.
Um dos principais objectivos do mandato de Kishi foi a revisão do tra-
tado de 1952, melhorando os termos previstos para o seu país. Assim, em
1960, o primeiro-ministro Kishi (que se demite pouco depois) assina um
tratado revisto com os EUA, que concede a estes o direito de estacionar
permanentemente tropas no Japão. Pelo Tratado bilateral de segurança (de
19 de Janeiro), 4 vigente por dez anos, os EUA comprometiam‑se a ajudar
259
na defesa do Japão em caso de ataque, em troca de bases e portos para as
forças armadas norte-americanas em território japonês. Este tratado
4 Este tratado seria o resultado da reformulação do Tratado de 1952, revendo a dependência total
do Japão e procurando conceder bases mais equitativas na relação bilateral.
Acima de tudo, o sistema internacional modifica-se profundamen-
te: ainda que o seu crescimento económico haja restituído ao Japão a
confiança em si próprio que perdera em 1945, o sentimento de extrema
260
vulnerabilidade do arquipélago vai aprofundar-se com a crise energética
de 1973, as difíceis negociações comerciais com os EUA e a, então, Co-
munidade Europeia – mas, sobretudo, com a omnipresença da marinha
soviética, a derrocada das posições ocidentais no Vietname e o relan-
çamento das tensões na península coreana. Um horizonte internacional
subitamente obscurecido, agravado por vezes pela postura do próprio
aliado norte-americano, que sem avisar, procura reencetar relações com
outras potências da região, especialmente com a China, sem pré-aviso
ao governo nipónico.
Num contexto mundial de Guerra Fria, relativamente a questões milita-
res, podemos falar em momentos distintos no relacionamento EUA-Japão:
(a) num primeiro momento, os anos 1950-1960 são de dependência total
dos EUA; (b) de 1961 a 1965, esboça-se uma dependência parcial com
o Japão a começar a produzir o seu próprio armamento e a combinar
com os EUA a sua própria estratégia de defesa; (c) entre 1966 e 1968,
afirma-se a noção de dependência selectiva, considerando-se possível
uma réplica autónoma do Japão a uma agressão aérea ou naval; (d) e a
partir de 1969 abre-se a era da «desamericanização», reforçando-se uma
possível aproximação à vizinha China, marcadamente em contraste com
o afastamento do ocidente.
Em Novembro de 1982, Nakasone Yasuhiro assume a liderança do
Governo do Japão. Como grandes objectivos da sua governação define
essencialmente duas ideias. Em primeiro lugar, o desejo de rejeitar os úl-
timos tabus e partilhar com os EUA as competências e responsabilidades
em matéria de segurança e defesa, procurando assim um novo curso nas
relações americano-nipónicas, ou seja, eliminar a sua menoridade ao nível
militar. Em segundo lugar, defende a integração nipónica no sistema inter-
nacional liberal ocidental, mediante concessões comerciais essencialmente
aos EUA e à União Europeia. Em termos regionais, assume um compromisso
de estratégia regional pacífica, que se traduz, na prática, na reconciliação
com a Coreia do Sul.
Este governo procurava o reforço das capacidades defensivas do Japão,
proporcionalmente ao seu poderio económico. Esta ruptura com a ordem
anterior, simboliza a exigência de maturidade diplomática e militar. Em
261
Janeiro de 1989, a morte do Imperador Hirohito marcou também o fim de
uma era, sucedendo-lhe o seu filho Akihito, que inicia o período Heisei.
A década de 1980 marca, por isso, um ponto de viragem, onde o Japão
inicia uma presença mais visível na cena mundial, tornando-se o maior
fornecedor de ajuda externa ao desenvolvimento (em 1988). 5 Em 1985
liderava o mercado mundial das exportações e permanecia proximamente
ligado aos EUA e à Europa ocidental. Devido ao Japão ser grandemente
dependente de importações petrolíferas do Médio Oriente, foi criticado
pela sua modesta contribuição financeira para o esforço aliado na Guerra
do Golfo de 1991.
O Japão tornou-se, por isso, num grande poder económico, embora a sua
recuperação pós-guerra não tenha sido acompanhada por um crescimento
comparável ao seu peso em termos de política e estratégia internacional,
devido, como já indicámos, à Doutrina Yoshida. Miyazawa (1992) procurou
retirar o Japão do seu tradicional isolacionismo nas relações internacionais,
promovendo um maior intervencionismo na região asiática, através de um
aumento da despesa com a defesa e fomentando um esforço permanente
para a consolidação das relações de vizinhança. 6 Apesar de não gastar
mais do que 1% do seu PIB em defesa e permanecer fiel à Constituição do
pós‑guerra, a força japonesa era em 1994 impressionante, com 250 mil sol-
dados e a maior frota marítima do Pacífico (Yamauchi, 2006: 7). Este poderio
constitui uma preocupação para os seus vizinhos, que recordam bem o seu
passado agressivo. O pacifismo japonês, com estas características militares,
A política japonesa está assente num sistema parlamentar, com uma forte
tendência burocrática, de acordo com os parâmetros da teoria weberiana,
onde a necessidade de consenso entre o Governo, Partidos maioritários,
Dieta e Câmara dos Representantes (ou Câmara Baixa) são os alicerces
para a estabilidade governativa, já que o Imperador detém apenas uma
representação simbólica da soberania nacional.
Pela Constituição de 1947, procurou-se evitar a situação prevalecente na
constituição Meiji, onde a autoridade e responsabilidade estavam difusas
por entre os diversos detentores do poder, situação que havia conduzido
ao reforço das oligarquias não eleitas. Com a Constituição do pós-guerra,
pretendeu-se entregar o poder aos eleitos pelo povo. O poder executivo
recai, assim, no Governo, constituído pelo Primeiro Ministro e pelos Mi-
nistros de Estado, os quais têm responsabilidade colectiva perante a Dieta.
O Primeiro Ministro assume a liderança do Governo, tendo como funções
autoridade sobre a sua administração, homologar propostas de lei, elaborar
relatórios sobre assuntos nacionais e de relações externas (para a Dieta),
bem como exercer o controlo e fiscalização sobre todos os departamentos
administrativos. O Governo, por seu lado, tem como funções conduzir os
assuntos de Estado, gerir a política externa, concluir tratados, preparar o
orçamento, e proceder de acordo com as instruções recebidas do Gabinete
do Primeiro Ministro.
7 Taro Aso defendia que o Japão deveria apoiar os Estados dentro do «arco da liberdade e da
prosperidade» que se estende do Nordeste Asiático à Ásia Central e ao Cáucaso, à Turquia, à Europa
Central e Oriental e aos Países Bálticos, o Japão teria de conseguir oferecer o seu apoio. A título de
exemplo, no Verão de 1989, o Japão declarou-se pronto para fornecer assistência financeira em larga
escala à Polónia e Hungria. Na Bósnia-Herzegovina, no final do conflito em 1995, o Japão prometeu
500 milhões de dólares em assistência financeira.
Todavia, apesar destas pretensões constitucionais, o défice de liderança
política tem minado a capacidade do Governo de agir rapidamente, essen-
cialmente em momentos de crise, ou de exercer uma liderança internacional
264
nas trocas comerciais ou mesmo na política externa. Esta incapacidade
decorre, não só de factores históricos e culturais, mas essencialmente de
factores institucionais. De facto, a existência de lideranças fortes por parte
dos Primeiros Ministros nipónicos tem sido uma excepção e não uma regra
(Mulgan, 200: 183). Esta situação deve-se essencialmente a duas questões
– o poder excessivo dos burocratas e a existência de grupos internos em
cada Partido. A fragmentação interna inerente aos grande partidos, essen-
cialmente do LPD, contribui para o enfraquecimento do próprio Governo,
uma vez que, embora detenham a maioria dos assentos na Dieta, as lutas
entre esses diferentes grupos fazem esquecer, muitas vezes, a solidariedade
política para com os Ministros e o Primeiro Ministro, enfraquecendo a sua
governabilidade.
O poder dos burocratas tem também influenciado consideravelmente a
capacidade de governação de vários Primeiros Ministros, já que a sua influ-
ência nos bastidores políticos consegue manipular e influenciar o desfecho
de muitas negociações e tomadas de decisão, levando mesmo à queda de
alguns líderes do executivo (Curtis, 2002: 6), como podemos verificar na
rotatividade de governos desde 2006 até ao presente. A relação entre estas
duas classes durante o longo período de domínio de governação do LDP 8
não pode, no entanto, ser considerada como um jogo de soma zero onde
os burocratas detinham todo o poder e os políticos nenhum, pois foram os
líderes políticos, não os burocratas, a definir o enquadramento da política
externa e doméstica japonesa do pós-guerra.
A crise económica de 1997, e a sua reedição em 2008, comprova que
ainda há muito a fazer ao nível de regulamentação económico-financeira,
onde o Estado teria de conceder um maior espaço à iniciativa privada, fi-
cando apenas com o papel regulador, bem como ao nível político-militar.
E neste aspecto, a definição dos poderes do Governo e o reforço dos po-
8 O LDP apenas perde o poder em 2009, com a vitória de Hatoyama Yukio do Partido Demo-
crático do Japão, substituído por Kan Naoto, um ano depois ( Junho de 2010) do mesmo partido.
deres legislativos da Dieta têm de ser realizados simultaneamente a uma
aposta na regulamentação de sectores cruciais, como a economia e as finan-
ças, concedendo maior segurança a estes sectores, para fazer face a novos
265
ataques especulativos e permitindo que o investimento privado (nacional
e estrangeiro) possa tornar-se numa realidade e num vector de desenvolvi-
mento do país. Esta tem sido, com efeito, uma preocupação governamental
desde 1997 e reforçada nos programas governativos desde 2001, a par da
luta pela reforma constitucional e da libertação do estigma da menoridade
ao nível da segurança nacional.
9 Joseph Nye desempenhava, nessa altura, as funções de secretário assistente da defesa para os
assuntos de segurança nacional dos EUA.
poderia considerar a possibilidade de adquirir armas nucleares. A China
opôs-se de imediato ao sistema de defesa de mísseis japonês – Theater Missile
Defense (TMD), devido a cinco motivos: o possível envolvimento de Taiwan;
267
a possibilidade de que a capacidade de dissuasão chinesa fosse minada; a
ameaça da remilitarização do Japão; o reforço da aliança EUA-Japão; e o
impacto negativo que poderia ter no processo global de controlo de armas.
A partir de 1997-1998 são adoptadas, no entanto, novas directivas sobre
a cooperação em defesa, especificando detalhes sobre o acesso dos EUA
à área de apoio do Japão, ao abastecimento e aos aeroportos em caso de
emergência. Depois dos testes de um míssil balístico pela Coreia do Norte
(1998), Tóquio concordou em cooperar com Washington e compartilhar
tecnologia de anti-mísseis balísticos de defesa. Mais tarde, em 2001, uma
nova lei permitiu que as forças navais japonesas colaborassem com as for-
ças armadas norte-americanas no Índico, em missões de reabastecimento e
apoio logístico, por ocasião da invasão do Afeganistão.
Em 2005, Condoleezza Rice e Donald Rumsfeld, em reunião com os
representantes do Machimura (MNE) e do Ohno (Ministério da Defesa),
assinaram um documento intitulado US-Japan Alliance: Transformation
and Realighment for the Future. Pode ler-se neste documento que a Aliança
EUA‑Japão continuava a ser o pilar indispensável da segurança do Japão
e da paz e estabilidade da região Ásia-Pacífico. O Japão deveria, por isso,
evoluir gradualmente a fim de assumir maior responsabilidade na segurança
do Extremo Oriente, em aliança com os EUA e os seus aliados. A aliança
entre o Japão e EUA representa a relação de segurança bilateral mais im-
portante para ambos os governos. Quer em termos de poder estrutural, quer
em termos de identidade democrática, o mundo desvia-se cada vez mais
para a Ásia e, por isso, o Japão é um exemplo paradigmático: é um grande
poder e, simultaneamente, possui uma identidade democrática.
Quando Shinzo Abe assumiu a liderança governativa (2006), enfrentou
desafios profundos acerca da necessidade de repensar a estratégia do país
no novo cenário internacional. O período da sua governação foi efémero,
pois, não conseguindo responder à pressão conjuntural, resigna ao cargo,
sendo substituído por Yasuo Fukuda, que toma posse em Setembro de 2007.
A resignação de Abe esteve directamente ligada ao debate sobre a altera-
ção do art. 9º da Constituição japonesa, mas constituiu também o reflexo
da própria instabilidade económica, financeira e mesmo social instalada
no país, apesar de todas as tentativas de retoma que foram desenvolvidas
268
após a recessão de 1997. 10
Shinzo Abe considerava que, tendo em conta as mudanças da situação
internacional como a proliferação de mísseis, armas de destruição em
massa e luta contra o terrorismo, bem como os avanços tecnológicos mili-
tares e a crescente expectativa em relação à contribuição internacional do
Japão, deveriam ser estudados casos específicos para identificar que tipo
de situação se enquadraria no exercício do direito à autodefesa colectiva,
tornando mais eficazes as funções da aliança Japão-EUA e promovendo a
manutenção da paz. Perante este desafio, apontam-se nos nossos dias, para
a revisão da Constituição, dois objectivos principais: legitimar a actual exis-
tência das Forças de Auto-Defesa, criadas em 1954, que alguns pensam não
estar claramente enquadradas pela Constituição; e clarificar a questão da
participação em iniciativas de autodefesa colectivas. 11 Por uma questão de
prestígio nacional e de necessidade estratégica, o Japão terá de se preparar
para alterar o artigo 9º.
A vitória do Partido Democrata Japonês em Agosto de 2009, liderado
por Hatoyama Yukio, levantou novas questões em relação aos benefícios
do Tratado de Segurança, questionando se estes continuam a ser superiores
aos custos. De facto, podemos apontar diversos benefícios para ambos os
países. Se para o Japão este Tratado trouxe benefícios evidentes, permitin-
do‑lhe o robustecimento económico e a consolidação democrática, 12 para
os EUA também foi favorável: possibilidade de prosseguir com a sua estra-
As relações intra-regionais
13 O Japão celebrou, no dia 18 de Dezembro de 2006, o 50º aniversário da sua admissão nas
Nações Unidas. O Japão foi admitido nos Nações Unidas em 1956, tornando-se o seu octogésimo
membro e já foi membro não permanente do Conselho de Segurança por nove vezes. Em 2005, para
ganhar um assento permanente no Conselho de Segurança, o Japão propôs um esboço de resolução
visando a ampliação do número de assentos permanentes juntamente com os outros integrantes do
G4 (Brasil, Alemanha e Índia), mas tal proposta foi rejeitada, parcialmente devido à oposição da
China. A administração de Shinzo Abe retomou esta questão e conseguiu que em finais de 2006 os
EUA expressassem o seu apoio à obtenção de um assento permanente.
não é defendido por toda a população nipónica, razão pela qual o envio
de tropas por Junichiro Koizumi em 2003 para apoiar os EUA no Iraque
foi criticada por muitos. Actualmente, a contribuição financeira do Japão
276
é a segunda maior de todas, representando 19,5% do orçamento da ONU,
perdendo somente para os 22% dos EUA, tendo já disponibilizado 5.700
pessoas para operações para manutenção da paz em 18 ocasiões (Tanaka,
2006; Yamauchi, 2006: 6-7).
Neste momento, repensar o reposicionamento japonês no sistema interna-
cional passa pela capacidade de moderar a influência directa dos EUA sem
perder essa ligação privilegiada; promover uma melhor e maior aceitação ao
nível regional, demonstrando à vizinhança a não vontade de todo de voltar
a ter políticas imperialistas e expansionistas; promover a cooperação regio-
nal, adquirindo uma posição de liderança em organizações de cooperação;
e aceitando o seu papel e responsabilidade perante os conflitos regionais
e internacionais, alargando o seu envolvimento além da ajuda humanitária.
A sua posição no sistema internacional limita, por isso, a sua margem
de manobra. A inserção do arquipélago na economia e na rede militar
americanas da Guerra Fria teceu importantes laços de dependência política
que perduraram quase imutáveis até aos nossos dias. Os EUA moldaram o
sistema político e estimularam a emergência de elites pró-americanas, bem
como do LDP. Durante a Guerra Fria, esta subordinação político-militar era
compensada pela abertura quase incondicional do mercado norte-america-
no aos produtos nipónicos e pela tolerância americana face ao dirigismo
japonês. No pós-Guerra Fria, os japoneses tiveram de se acomodar à ma-
nutenção desta subordinação política, ao mesmo tempo que se sujeitavam
a um questionamento do seu modelo económico.
Sob fortes pressões externas, nos anos 1980-1990 o Estado desobrigou-se
da economia, privatizou o sector público e desregulamentou os mercados
financeiros. Nos finais da década de 1990, após anos de fraco crescimento
e mesmo recessão, o Japão tem de enfrentar a crise de sobre-investimento,
que se voltou a agravar em 2008. Enfraquecendo o Estado desenvolvi-
mentista, a globalização teve um efeito profundamente corrosivo sobre o
modelo económico nacional japonês. No século XXI o Japão enfrenta uma
crise multidimensional que afecta o próprio centro do seu sistema econó-
mico e político. Além disso, é certo que o Japão continua a ser a potência
dominante na Ásia oriental, mas enfrenta a concorrência da China, novo
pólo de integração regional. O Japão está doravante colocado perante o
277
desafio de reinventar o seu modelo e de se dotar de uma autonomia política
à medida do seu peso económico, procurando paralelamente responder à
instabilidade económica mundial que se tem reflectido negativamente na
sua capacidade de retoma interna.
Fontes na internet
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Site oficial do Ministério dos Negócios Estrangeiros do Japão, http://www.
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Leituras recomendadas
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C a p í t u l o 11
Po r t u g a l
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O modelo clássico
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Leituras recomendadas
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Brito, Nuno Filipe (2005) «Política Externa Portuguesa. O Futuro do Passado»,
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Ferreira, José Medeiros (2006) Cinco Regimes na Política Externa. Lisboa:
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edição/reimpressão.
Teixeira, Nuno Severiano (2004) «Entre África e a Europa. A política
Externa Portuguesa 1890-2000», in António Costa Pinto (org), Portugal
Contemporâneo. Lisboa: Dom Quixote, 87-116.
Paula Duarte Lopes
e Daniela Nascimento
287
C a p í t u l o 12
Dimensão interna
3 Informação disponível na página da Freedom House, no relatório sobre Freedom of the Press,
Nigeria (2006) [www.freedomhouse.org/template.cfm?page=251&country=7030&year=2006].
estas questões acabaram por se reflectir naquela que foi sendo a evolução,
nem sempre linear, da política externa nigeriana.
A este nível interno, e ainda que com estratégias e capacidades variá-
290
veis e distintas, a Nigéria pautou sempre a sua política externa pela ideia
de que um país económica e politicamente estável e com uma qualidade
de vida satisfatória está melhor posicionado para desenvolver uma política
externa assertiva. Os princípios orientadores da política externa nigeriana,
finalmente plasmados na Constituição de 1979, passavam, em grande medi-
da, pela «defesa da integridade territorial e da independência do país», pela
promoção do desenvolvimento económico nacional autónomo e sustentável,
pela «promoção da igualdade e auto-subsistência em África, respeitando a
dignidade humana, especialmente para a população negra, bem como [pel]
a promoção e defesa da paz mundial» (Ajibewa, 1998: 86).
Imediatamente após a independência (1960), a política externa nigeriana
durante a primeira república liderada por Balewa (1960-1966) foi caracte-
rizada como «conservadora e tímida» (Abegunrin, 2001: 105) e «sem visão»
(Garuba, 2008: 2). Na verdade, o legado colonial, a relativa pobreza do
país, a personalidade conservadora de Balewa e a falta de experiência no
plano internacional ajudam a explicar esta falta de autonomia e iniciativa
em assuntos internacionais. Por exemplo, alguns autores referem que no que
diz respeito a questões centrais para África, Balewa parecia estar sempre à
espera da tomada de posição de outros países antes de afirmar a posição
nigeriana (Garuba, 2008: 2).
Acresce ainda que a estrutura federal colonial do país criou a possibilidade,
neste período, de cada estado-federado abrir a sua própria representação
diplomática no estrangeiro, o que ilustra o carácter limitado da política ex-
terna nigeriana (Abegunrin, 2001: 105-106). Ainda assim, Balewa criou uma
estrutura de tomada de decisão em matéria de política externa com vários
ministérios e gabinetes ao nível federal. No entanto, a sua postura centrali-
zadora, aliada a uma incapacidade de coordenação das distintas instituições,
determinou não só a centralidade do cargo de chefe de estado, que neste
caso, chegou a acumular a pasta de Ministro dos Negócios Estrangeiros
(Inamete, 2001: 33), mas também a incapacidade das instituições criadas
exercerem as suas funções de forma autónoma e activa.
Apesar de a Nigéria ter sido governada predominantemente por regimes
militares entre 1966 e 1999, é importante distinguir a fase pré e pós 1979,
por dois motivos. O primeiro prende-se com a proclamação da segunda
291
república constitucional entre 1979 e 1983 que criou as condições para
uma maior abertura política, que só foi posta em causa com o regime de
Abacha (1993-1998). O segundo está relacionado com a riqueza resul-
tante de recursos petrolíferos que permitiu à Nigéria concretizar os seus
objectivos de política externa de forma assertiva e autónoma até 1979.
A partir desta data, esta capacidade de concretização da política externa
nigeriana diminuiu significativamente, devido à crise petrolífera, à crise
da dívida e à corrupção interna e desvio de fundos. Convém ainda referir,
que dentro destas duas fases existem também diferenças marcantes entre
os vários regimes.
Em 1966, dão-se os primeiros de vários golpes militares que marcam
estruturalmente a vida política da Nigéria, influenciando directamente a sua
política externa. O regime militar de Gowon (1966-1975), assim como a sua
política externa, são profundamente marcados pela guerra civil no Biafra
(região secessionista). Internamente, o regime teve dificuldade em reagir de
forma rápida e eficaz aos sinais que despoletaram a violência e as estruturas
do Ministério dos Negócios Estrangeiros mostraram-se desadequadas para
lidar com a magnitude da crise. Gowon viu-se mesmo obrigado a enviar
equipas especiais para explicar internacionalmente a posição do governo
federal nesta matéria (Garuba, 2008). A guerra civil ditou uma viragem na
definição da política externa nigeriana, passando-se de uma abordagem
conservadora e tímida para uma abordagem assertiva, defendendo a sua
integridade territorial. A Nigéria ganhou assim uma imagem pública de uma
nação africana activa e rica em petróleo.
Um novo golpe militar em 1975 coloca no poder Mohammed/Obasanjo
(1975-1979). Contrariamente aos anteriores, este período é caracterizado
por uma política externa robusta, assertiva, dinâmica e, muitas vezes, de-
nominada de radical. Os ‘anos de ouro’ da política externa nigeriana foram
maioritariamente financiados pelos rendimentos provenientes do petróleo,
permitindo uma abordagem autónoma e pró-activa. A formulação e imple-
mentação desta nova abordagem foram ainda potenciadas pela reforma das
estruturas internas de tomada de decisão de política externa que passaram
a incluir actores da sociedade civil 4 (Abegunrin, 2001: 110).
Simultaneamente, quer Mohammed, quer Obasanjo mostraram-se empe-
292
nhados em utilizar os militares na persecução dos objectivos nigerianos de
política externa (Inamete, 2001: 88). Esta posição é particularmente visível
na decisão de enviar delegações militares a Angola, reconhecendo o go-
verno do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), sem o aval
desse Ministério (Inamete, 2001: 88). A nacionalização da British Petrol e do
Barcklays Bank, transformando-os em African Petrol e em Union Bank of
Nigeria (Garuba, 2008: 7), respectivamente, ilustram igualmente a determina-
ção nigeriana em se afirmar como uma potência autónoma e independente.
A segunda república nigeriana debateu-se com a diminuição da riqueza
disponível para continuar a financiar a linha de política externa interventiva
e autónoma dos regimes anteriores. Apesar da aprovação de uma constitui-
ção e da possibilidade de realização de eleições, com o fim dos dividendos
das crises petrolíferas, o governo Shagari (1979-1983) viu-se obrigado a
adoptar uma postura mais moderada e pró-ocidental. A situação económi-
ca degradada e a crescente dívida externa do país justificaram o golpe de
estado que coloca Buhari (1983-1985) no poder. A sua política externa foi
caracterizada como agressiva e nacionalista, mas menos ambiciosa e com
menos apoio interno que a do regime anterior. Identificando a corrupção
generalizada no país como um problema estrutural, Buhari decretou ‘Guerra
Contra a Indisciplina’ e a corrupção, apesar de estes esforços não terem
sido suficientes para resolver os problemas internos (Abegunrin, 2003: 131).
Os métodos aplicados por este regime, bem como o aprofundar da crise
económica, criaram um descontentamento crescente no seio da população,
o que propiciou as condições para um novo golpe de estado em 1985, que
coloca Babangida (1985-1993) no poder.
A política externa de Babangida reflectiu a confusão e turbulência po-
lítica interna, tendo o Ministro dos Negócios Estrangeiros sido substituído
cinco vezes ao longo deste regime (Abegunrin, 2001: 120). No sentido de
Dimensão regional
7 Como é ilustrado pela criação da Comissão da Bacia do Rio Níger (1973) e as subsequentes
comissões bilaterais Nigéria-Benin e Nigéria-Níger (Nuamah, 2003: 11).
secessionistas por alguns destes. Este maior envolvimento regional ganhou
fôlego com os meios disponíveis devido ao boom petrolífero, permitindo uma
política regional e africana vigorosa. Esta estratégia culminou com a criação
297
da ECOWAS em 1975, promovendo a integração e cooperação regionais.
O regime de Mohammed/Obasanjo (1975-1979) foi o que mais utilizou os
meios económicos, resultantes da riqueza petrolífera para a concretização de
políticas radicais e assertivas em matéria de política externa. Nesse sentido,
apostou no apoio financeiro, material e técnico bilateral a vários países afri-
canos: assistência a países recém-independentes (Moçambique, Cabo Verde
e Zimbabwe); apoio humanitário a países assolados por catástrofes naturais
(seca na Etiópia); assistência técnica a diferentes países (Argélia e Gâmbia);
concessão de bolsas a estudantes africanos; e venda de petróleo a preços
reduzidos a alguns países africanos mais necessitados (e não a outros). Estes
apoios não eram inéditos, mas adquiriram uma dimensão pujante durante
este regime. A assistência financeira passou a fazer parte integral da política
externa nigeriana, sendo inclusivamente institucionalizada com a criação do
Fundo Nigeriano no âmbito do Banco Africano para o Desenvolvimento.
Esta lógica de apoio económico bilateral e regional baseia-se na convicção
que a estabilidade e desenvolvimento económico dos países africanos con-
tribuem para a estabilidade e desenvolvimento da Nigéria; e, desta forma,
uma Nigéria estável e rica deve apoiar os países vizinhos nesse sentido.
Assim, a Nigéria empenhou-se em «criar, promover e acelerar a integração
económica entre os países africanos da África Ocidental, nomeadamente
através da ECOWAS» (Inamete, 2001: 89-90).
Estes esforços económicos foram acompanhados por uma estratégia polí-
tica de envolvimento e liderança no continente africano. O reconhecimento
do governo angolano do MPLA constituiu um elemento fundamental de
mudança na imagem da Nigéria, enquanto líder regional e continental. Com
esta decisão, não só tomou uma posição contrária à dos Estados Unidos
da América (EUA); como se empenhou na mobilização de países africanos
para que estes também reconhecessem o novo governo angolano. Desta
forma, a Nigéria passou a ser reconhecida como um «membro de facto dos
‘Estados da Linha da Frente’, insistindo no direito de ser consultada como
tal» (Abegunrin, 2001: 114, itálico no original).
Estes esforços continuaram durante o regime militar de Mohammed/
Obasanjo (1975-1979), mantendo, de forma robusta, o lugar central que
o continente africano tinha na política externa nigeriana. No entanto, o
298
governo seguinte liderado por Shagari (1979-1983) protagonizou um revés
na estratégia de afirmação da Nigéria em África. Três acontecimentos em
particular marcaram esta mudança drástica: os confrontos com os Camarões,
a situação no Chade e a política interna de imigração. A Nigéria não conse-
guiu conter os conflitos violentos na fronteira com os Camarões (Península
de Bakassi), acabando por ter de pedir ajuda à então OUA para intervir
(Ajibewa, 1998). No caso do Chade, considerado o «pior reverso diplomático
da Nigéria» (Ajibewa, 1998), Shagari «foi acusado de servir como uma nação
mercenária ‘para proteger os interesses dos EUA’» (Ajibewa, 1998: 89). O
envio de forças armadas nigerianas para participar na missão da OUA no
Chade foi interpretado por vários como um apoio à «intervenção imperia-
lista americana» (Ajibewa, 1998: 89). Finalmente, em 1983, Shagari expulsou
milhões de trabalhadores migrantes do Gana, Chade e Benim, contrariando
os princípios da ECOWAS e fechando as fronteiras com o Benim e o Níger.
Todas estas decisões contribuíram para um denegrir da imagem de lideran-
ça da Nigéria em África, transmitindo uma imagem pouco assertiva, sem
iniciativa própria e sem capacidade de afirmação.
Entre 1984 e 1998, a Nigéria entra na segunda fase dos regimes militares.
Os regimes de Buhari (1984-1985) e Babangida (1985-1993) desenvolveram
esforços no sentido de recuperar a imagem de liderança da Nigéria e de
reafirmar a centralidade africana na sua política externa. Apesar do seu
curto mandato, Buhari (1984-1985) realizou um périplo pelos ‘Estados da
Linha da Frente’ – ‘diplomacia vai-e-vem’ –, reafirmando o compromisso
da Nigéria com os movimentos de libertação; reconheceu a Frente Polisa-
rio como governo legítimo do Sahara Ocidental; e fez uma demonstração
de força ao colocar as forças armadas nas fronteiras com o Chade e os
Camarões.
O regime de Babangida (1985-1993) tomou o poder empenhado em
desenvolver uma política externa dinâmica e coerente, ancorada no pa-
pel central das organizações regionais (OUA e ECOWAS) e no princípio
de boa vizinhança. Um dos reflexos desta vontade política foi a Doutrina
Akinyemi 8 onde se afirmava que «para obter o apoio político, diplomático
ou outro da Nigéria, a Nigéria [devia] ser primeiro consultada por outros
estados africanos antes dos mesmos tomarem alguma acção significativa de
299
política externa» (Ihonvbere, 1994: 50). Ao nível das organizações regionais,
Babangida encetou esforços para reactivar a ECOWAS, garantindo o seu fi-
nanciamento e secretariado, organizando três cimeiras de chefes de estado
e de governo e presidindo à organização quando nenhum outro membro se
mostrou interessado. Estas medidas mostram claramente como o objectivo
de estabilização da região através da ECOWAS se manteve central para a
afirmação política e económica da Nigéria a nível regional.
Em 1993, no âmbito da ECOWAS, a criação do Economic Community of
West African States Monitoring Group (ECOMOG) para a Libéria (1990-1998),
constituiu uma das iniciativas mais assertivas da política externa nigeriana
no pós-Guerra Fria. O envolvimento militar da Nigéria no ECOMOG resultou
em parte da existência de relações privilegiadas entre os chefes de estado
dos dois países e da preocupação em zelar pela estabilidade regional em
resposta a um alegado plano de desestabilização líbio (Abegunrin, 2001: 121).
A OUA manteve-se igualmente o fórum privilegiado de actuação regional
da Nigéria, tendo Babangida presidido à organização em 1991, mediando
vários conflitos armados, nomeadamente no Uganda e em Angola, e criando
um Departamento de Prevenção, Gestão e Resolução de Conflitos. Durante
este período, a Nigéria manteve também o seu estatuto de membro hono-
rário dos ‘Estados da Linha da Frente’, continuando a apoiar os movimentos
de libertação na África do Sul e na Namíbia (Abegunrin, 2001; Ihonvbere,
1994). Um outro acontecimento que marcou a política externa nigeriana de
Babangida foi a visita do seu homólogo sul-africano, De Klerk, em 1992.
Esta visita tem sido entendida, por alguns, como uma contradição da polí-
tica nigeriana de luta contra o apartheid (Garuba, 2008: 10); enquanto para
outros, a visita constituiu um reconhecimento do prestígio da Nigéria, ao
ser incluída no périplo de De Klerk (Abegunrin, 2001: 122).
9 O envolvimento internacional nos esforços de paz regional será abordado na secção seguinte.
para responder a situações de crise, como o Mecanismo para Prevenção,
Gestão, Resolução de Conflitos, Peacekeeping e Segurança, criado em 1999
no âmbito da ECOWAS. No que diz respeito aos seus vizinhos, a disputa
301
com os Camarões sobre a Península de Bakassi fica marcada pela decisão
do Tribunal Internacional de Justiça (2002) favorável aos Camarões. Do
ponto de vista do objectivo de integração económica, durante os mandatos
de Obasanjo, destaca-se ainda o Projecto do Gasoduto da África Ocidental
que integra o Benim, o Gana e o Togo. 10
Na sua dimensão regional é clara a centralidade da ECOWAS para a política
externa nigeriana. A Nigéria esteve envolvida na sua criação, manutenção,
funcionamento, alargamento de funções, quer com recursos financeiros,
quer humanos. No entanto, a estabilidade com base no desenvolvimento
económico ambicionada pela Nigéria para si e para os seus vizinhos não
tem sido alcançada. Por exemplo, os esforços da Nigéria em prol da inte-
gração regional têm sido, paradoxalmente, postos em causa pelo seu papel
dominante no aumento do comércio informal transfronteiriço (Nuamah,
2003: 12). A ECOWAS, no entanto, tem funcionado como um fórum políti-
co importante onde é valorizado o consenso regional (Pham, 2007: 11-12),
no âmbito da qual a Nigéria tem tido um papel fundamental. Do ponto de
vista dos esforços regionais de paz no âmbito da ECOWAS, alguns analistas
avançam um papel de ‘polícia regional’ para caracterizar o envolvimento
da Nigéria. No entanto, o facto de em anos recentes a Nigéria ter retirado
forças armadas do ECOMOG da Serra Leoa e ter recusado participar no da
Guiné-Bissau contraria esta ideia. A Nigéria, na verdade, parece ter optado
por activar regionalmente o seu soft power em detrimento de uma política
assertiva mais militarizada, a qual passa a ser assegurada na região através
de canais multilaterais. Independentemente dos meios utilizados, a sua
presença é reconhecida como indispensável para o sucesso de quaisquer
iniciativas de paz regional (Adebajo, 2002).
Nos últimos anos, o potencial de liderança regional da Nigéria tem di-
minuído face à afirmação de uma África do Sul multi-racial, democrática e
Dimensão internacional
11 Para uma análise do tipo de contratos desenvolvidos pela Nigéria para a exploração petrolífera
com empresas estrangeiras, ver (Taylor, 2007).
entanto, acabou por adoptar medidas económicas que, na verdade, eram
coerentes com os Programas de Ajustamento Estrutural do FMI (Garuba,
2008). Em 2005, o Clube de Paris finalmente decidiu perdoar cerca de 80%
309
da dívida externa nigeriana (Pham, 2007), aliviando de forma estrutural as
pressões económicas externas com que o país se debatia desde o final da
década de 1970.
Considerações finais
Fontes na internet
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The National Think Thank Project, http://www.nationalthinktank.org/
index.php
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nigeria.gov.ng/
Ministério dos Negócios Estrangeiros da República Federal da Nigéria,
http://www.mfa.gov.ng/index2.php
Presidente da Nigéria, http://www.nigeriafirst.org/president.shtml
311
The Nigerian Tribune, http://www.tribune.com.ng/index.php
Leituras recomendadas
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Licínia Simão
313
C a p í t u l o 13
1 Até 1935, a actual República Islâmica do Irão (RII) era conhecida pelo nome oficial de Pérsia.
Por decisão do Xá Muhammad Reza, nesse ano, o país mudou a designação oficial para Irão e, de-
pois de Revolução Islâmica de 1979, adoptou o actual nome. Ao longo deste capítulo serão utilizadas
as designações Irão e RII de forma aleatória.
pelos ingleses, e, mais tarde, o mote promovido pelo primeiro Líder Su-
premo, Aiatola Khomeini, 2 «Nem Oriente, nem Ocidente, mas a República
Islâmica», são boas ilustrações desta abordagem.
314
Um outro aspecto central é a política de alianças e acomodação (Barze-
gar, 2010: 181). Esta combinação de escolhas tácticas, aliando-se a actores
estratégicos e procurado encontrar formas de acomodar, quer os seus inte-
resses, quer os dos seus aliados, reforça a ideia de flexibilidade e fluidez
na política externa iraniana. Embora as relações com os vizinhos sejam
permanentemente tensas, depois da guerra Irão-Iraque e sob a liderança
de Rafsanjani, foi visível uma aproximação às monarquias árabes do Golfo
Pérsico, incluindo à Arábia Saudita, ilustrando a escolha pela acomodação
de interesses regionais. Os líderes iranianos reconheceram que, sendo
um estado Shi’ita motivado pela exportação da sua revolução religiosa, as
relações regionais seriam inevitavelmente marcadas pela suspeição, mas
reconheceram também, que a falta de apoio que o Irão sentiu durante a
guerra com o Iraque se deveu, em parte, à dimensão ideológica e poderia ser
alterada, se esta fosse revista (Takeyh, 2009: 130-139). De forma semelhante,
durante a presidência de Khatami, foram visíveis esforços para reconfigurar
as relações, quer com os vizinhos, quer com os Estados Unidos da América
(EUA) (Barzegar, 2010: 181; Takeyh, 2009: 196-204).
A organização política e a distribuição de poder entre diferentes elites é
outro factor central na definição de políticas externas. A estrutura governativa
iraniana, criada pela Constituição de 1979, estabelece a par das estruturas
seculares eleitas, como o Presidente da República ou o Parlamento nacio-
nal, estruturas religiosas não eleitas com vastos poderes de supervisão e
decisão (ver gráfico em baixo). As responsabilidades pela política externa
estão concentradas, oficialmente, na figura do Líder Supremo. É ele quem
comanda as Forças Armadas (incluindo o Exército dos Guardiães da Revolução
Islâmica) e o seu gabinete tem amplos poderes em matéria de segurança,
defesa e política externa. O Conselho Supremo de Segurança Nacional foi
estabelecido aquando da revisão constitucional de 1989 e funciona como
2 O Irão teve até hoje apenas dois Líderes Supremos: o Aiatola Ruhollah Khomeini (1979-1989)
e o Aiatola Ali Khamenei (1989- ).
o órgão decisório onde a política externa é efectivamente desenhada por
consenso e sob supervisão do Líder Supremo. O Presidente mantém também
poderes na formulação da política externa, devido à sua posição como chefe
315
de governo. A par do Ministro dos Negócios Estrangeiros, cada Presidente
procura imprimir um cunho pessoal nas opções de política externa, mas
em última análise, as decisões finais devem reflectir o equilíbrio de forças
existente na sociedade e entre as elites políticas e religiosas do país.
As relações com os EUA são um tema central e permanente da política
externa iraniana, como são também as relações no contexto regional do
Médio Oriente. A preocupação em manter um equilíbrio de forças que ga-
ranta a segurança da nação Shi’ita, num contexto maioritariamente Sunita é
outro factor central, definidor das suas opções estratégicas, nomeadamente
nas suas relações com movimentos como o Hezbollah no Líbano ou as
minorias Shi’itas no Iraque e no Afeganistão. Assim, tendo em conta os
pilares e opções estratégicas da política externa iraniana, a análise que se
segue procura ilustrar estas dinâmicas, colocando-as no contexto político
doméstico e externo e identificando eventos centrais que marcaram a forma
como o Irão se apresentou ao mundo ao longo do século XX e no início
do século XXI .
Conselho de discernimento
Conselho
de Guardiões
Assembleia
de Peritos
Legenda:
Eleição Directa Veta Candidatos Controla Nomeia ou aprova
Política externa na dinastia Pahlavi
3 A Anglo-Persian Oil Company foi estabelecida em 1908, para explorar as reservas petrolíferas
descobertas na então Pérsia. Em 1935 foi redenominada Anglo-Iranian Oil Company e em 1953
tornou-se na British Petroleum Company (BP).
Os anos que se seguiram tornaram a competição entre as duas potên-
cias da Guerra Fria, em território iraniano, mais visível. Em 1951, após a
nacionalização da indústria petrolífera iraniana pelo Primeiro-ministro Mo-
317
hammad Mosaddeq, os serviços secretos norte-americanos, instigados pelos
parceiros britânicos, organizaram a «operação Ajax», que levou à deposição
do governo. Embora os EUA tenham mantido confiança política no Xá,
tornava-se claro que este se tinha tornado numa figura distante e cada vez
mais desligada da realidade do país. Durante as décadas que se seguiram,
o Xá, tal como outros líderes no Médio Oriente, usou a ameaça comunista
como um meio para conseguir assistência política, económica, financeira
e militar dos EUA, usada principalmente contra os oponentes internos ao
regime (Summitt, 2004: 562).
Durante o regime do Xá Muhammad Reza, o Irão estabeleceu uma
aliança estratégica com os EUA e tornou-se o maior comprador de armas
norte-americanas (Ramazani, 2004: 554). O apoio de Washington ao regi-
me repressivo do Xá constituiu um forte incentivo para a deterioração da
percepção popular sobre os EUA no Irão e, depois da revolução islâmica,
foi um vector central da política externa e doméstica iraniana. A história
das relações entre os EUA e o Irão, até 1979, mostram a construção de uma
aliança de necessidade, tendo em conta a convulsão das relações interna-
cionais durante a Primeira e Segunda Guerras Mundiais e a consolidação
de relações de clientelismo entre os dois estados durante a Guerra Fria
(Gasiorowski, 1991; Ghaneabassiri, 2002: 170).
4 Para uma análise detalhada da visão ideológica de Khomeini ver Rajacc (1983). Ver também
Arjomand (2009: 16-35).
2010; Takeyh, 2009: 15-17). Conseguiu também consolidar um movimento de
oposição nacional ao Xá, albergando diferentes forças políticas e religiosas
sob a bandeira da revolução.
319
A resposta violenta do Xá ao descontentamento crescente na sociedade
iraniana e as sucessivas e inconsequentes reformas revelaram os limites da
monarquia em acomodar as reivindicações sociais e políticas iranianas (Bill,
1978: 324-329; Pollack, 2004: 137-140). Por sua vez, Khomeini consolidou
a sua visão de uma república islâmica como alternativa à corrupção do
regime vigente. No final de 1978 e até 16 de Janeiro de 1979, quando o
Xá abandonou o país, verificaram-se manifestações populares desafiando
a lei marcial, greves gerais e mesmo dentro das forças armadas emergiram
profundas divisões entre a geração mais velha, leal ao Xá, e as gerações
mais novas fascinadas pela ideia de um governo religioso (Algar, 2010).
Com efeito, o objectivo comum e imediato de remover o Xá foi a força
maior que juntou elementos de todas as classes sociais, de todos os qua-
drantes intelectuais, movimentos religiosos e seculares (Katouzian, 2009:
21). O regresso do Imã, a Teerão, a 1 de Fevereiro de 1979, simbolizou o
culminar da revolução e inaugurou o novo período de acomodação política
e social, com profundas implicações na forma como a política externa do
país passou a ser conduzida.
Com a adopção, no final de 1979, de uma nova Constituição instituindo
um governo religioso, a RII tornou-se o primeiro estado a ter um governo
islâmico. Será, pois, Khomeini quem irá definir as grandes linhas da política
externa iraniana no período pós-revolucionário, quer com uma visão ideoló-
gica da nova missão da república islâmica, quer fazendo sentir o seu poder
sobre os outros elementos do novo governo. Segundo o Líder Supremo, a
revolução iraniana simbolizava apenas o começo do que deveria ser um
movimento maior, comum a toda a humanidade, mas em especial a todos
os muçulmanos.5 Subjacente a este princípio estão portanto três ideias cen-
5 «The Iranian Revolution is not exclusively that of Iran, because Islam does not belong to any
particular people. Islam is revealed for mankind and the Muslims, not for Iran… An Islamic move-
ment, therefore, cannot limit itself to any particular country, not even to the Islamic countries; it is the
continuation of the revolution by the prophets». Sermão proferido por Khomeini, a 2 de Novembro
de 1979, citado em Rajacc (1983: 82).
trais: a RII deveria ter um papel de charneira na exportação da revolução
islâmica, principalmente no contexto do Médio Oriente; deveria procurar
consolidar a unidade islâmica (principalmente entre Sunitas e Shi’itas) (Ra-
320
jacc, 1983: 85); e seria necessário reconhecer que a falta de unidade entre
muçulmanos se devia principalmente à presença de potências imperialistas
no Médio Oriente, cujo objectivo era, não só explorar as riquezas da região,
como evitar que o Islão se tornasse uma força relevante. Assim, emerge
como parte crucial do discurso revolucionário e ideológico de Khomeini
a criação de um arqui-inimigo da revolução, simbolizado pelos EUA e por
Israel (Takeyh, 2009: 18-22).
A prevalência de um contexto ideológico e de grande conturbação
durante o período revolucionário facilitou em grande medida a consolida-
ção de uma imagem paranóica dos EUA. A crise dos reféns da embaixada
norte‑americana em Teerão ilustrou esse receio profundo de que Washington
interferisse na revolução iraniana (Pollack, 2004: 153-159; Takeyh, 2009:
36-46). Este episódio acabou por marcar a imagem que as duas nações têm
de si próprias e do outro. A 4 de Novembro de 1979, iniciaram-se 444 dias
de ocupação da embaixada norte-americana em Teerão por um grupo de
estudantes, reivindicando o fim dos planos norte-americanos de subversão
da revolução sagrada. Embora a tomada da embaixada tivesse como objec-
tivo a humilhação do «Grande Satã» e a afirmação de uma nova relação de
poder, esta crise ilustrou também as dinâmicas internas de luta pelo poder.
No imediato contexto pós-revolucionário, uma aliança de partidos de esquer-
da e liberais estabeleceu um novo governo liderado por Mehdi Bazargan,
com o apoio dos clérigos. A par do governo, foi estabelecido o Conselho
Revolucionário, sendo composto por clérigos próximos de Khomeini, por
líderes políticos próximos de Bazargan e elementos das forças armadas. As
decisões políticas que guiaram a RII no período pós-revolucionário viriam
a ser o resultado do confronto entre uma visão conciliadora de Bazargan,
nomeadamente no que toca ao relacionamento com os EUA, e a visão radical
que o Conselho Revolucionário e Khomeini viriam a promover, incluindo
o seu apoio implícito às acções dos estudantes.
Com efeito Bazargan mostrou-se favorável à manutenção de relações com
os EUA, embora o seu objectivo imediato fosse fazer regressar a RII a uma
política de equilíbrio, pondo fim à aliança com os EUA. Para esse efeito, a
RII retirou-se da Organização do Tratado do Médio Oriente, que havia sido
criada em 1955, e cancelou os acordos de defesa que o Xá tinha estabele-
321
cido com Washington (Ramazani, 1989: 204-205). Apesar destas decisões, o
desejo de acomodação com os EUA foi visto pelos clérigos como um sinal
de fraqueza e que contrariava o objectivo maior de Khomeini de estabelecer
uma ordem mundial islâmica. Para além disso, o facto de a administração
Carter ter admitido que o Xá entrasse nos EUA para tratamento médico,
apenas reforçou a ideia de que a revolução estava em perigo. Segundo
Ramazani (1989: 206-210), este período viu a política externa iraniana ser
dividida em dois blocos centrais: por um lado os nacionalistas realistas,
como Bazargan, viam a independência do Irão como um aspecto central,
mas que deveria ser conseguida mantendo relações de equilíbrio com as
duas super-potências e com os seus vizinhos; por outro lado, os idealistas
revolucionários viam o Islão como a razão maior para a política externa
do país e, como tal, todos os outros objectivos deveriam ser subjugados
ao princípio da exportação da revolução e da criação de um Golfo Pérsico
sem influência norte-americana.
Os reféns foram libertados, já em 1981, numa altura em que o poder de
Khomeini e dos clérigos estava consolidado através de uma nova ordem
constitucional. No entanto, em 1980, teve início um dos principais aconte-
cimentos na vida pós-revolucionária do Irão: a guerra com o Iraque, que
durou até 1988 e terminou com um armistício negociado pelas Nações
Unidas. As razões que levaram Saddam Hussein a invadir o Irão a 22 de
Setembro de 1980 são multifacetadas, incluindo disputas territoriais, políticas
e religiosas (Gregory Gause III, 2002). Foi uma combinação de oportuni-
dade e receio que levou Saddam Hussein a iniciar a guerra: oportunidade
de enfraquecer ainda mais o seu inimigo histórico e conquistar parte do
seu território, numa altura em que o seu governo se encontrava fragiliza-
do; e receio de que a nova ideologia, protagonizada por Khomeini, tivesse
um impacto visível na minoria Shi’ita no Iraque, destabilizando o regime
secular Bah’ista (Takeyh, 2009: 82-87). Embora, no início da guerra, o Irão
se apresentasse numa situação de aparente desvantagem, os novos líderes
transformaram o conflito numa ferramenta de consolidação do seu poder.
A guerra ganhou contornos de uma cruzada, representando uma oportu-
nidade para o povo iraniano demonstrar «não só o ardor nacionalista, mas
também a sua devoção religiosa» (Takeyh, 2009: 89).
322
A guerra entre o Irão e o Iraque foi uma dais mais longas e violentas
da história do Médio Oriente. Foi uma guerra total, em que ambos os la-
dos usaram todo o seu poderio militar, humano e financeiro (Hooglund,
1987: 13). Para além das implicações domésticas, a guerra teve um impacto
profundo nas relações do Médio Oriente e acabou por se internacionalizar
no contexto da Guerra Fria (Takeyh, 2009: 101-107). O Irão viu-se isolado
e marginalizado pelo conflito, após a decisão dos estados do Conselho de
Cooperação do Golfo (CCG), todos árabes, e dos EUA, Alemanha, França
e Reino Unido de apoiarem o Iraque (Taremi, 2003: 386). Com efeito as
políticas expansionistas da RII no Médio Oriente, através da criação de mo-
vimentos armados como o Hezbollah no Líbano ou o Hamas na Palestina
criaram uma suspeita profunda, não só entre os seus vizinhos, como a nível
internacional. No contexto da guerra com o Iraque, estes ressentimentos
foram um motivo forte para isolar o regime islâmico.
A RII manteve, nessa altura, relações próximas com Moscovo e com Pe-
quim (Hickey, 1990), bem como com dois aliados improváveis, recorrendo
a uma política de alianças pragmáticas: a Síria e Israel. Para o regime de
Damasco, a ajuda ao Irão representava uma forma de combater a presença
norte-americana, enquanto para Teerão, a Síria representava uma fonte de
armas importante, bem como um sinal de divisão na solidariedade árabe,
que poderia trazer dividendos para Teerão (Takeyh, 2009: 74-79). O apoio
de Israel é ainda mais inesperado, tendo em conta as declarações dos novos
líderes revolucionários contra o «Pequeno Satã» e a sua denúncia da criação
do estado de Israel, como uma imposição das potências imperialistas, que
deveria ser terminada. No entanto, para ambos os estados as exigências da
guerra e os cálculos de longo prazo sobrepuseram-se ao fervor religioso
ou ideológico. Com efeito, Teerão necessitava urgentemente de apoio mi-
litar israelita que colmatasse a falta de acesso a novas armas ou a meios
de reparar o arsenal iraniano de fabrico ocidental. Para Israel, o apoio a
Teerão era uma escolha táctica com vista a garantir que Saddam Hussein
não consolidasse o seu domínio no Médio Oriente (Takeyh, 2009: 61-69). A
dada altura, os próprios EUA recorreram a contactos com os iranianos, para
que fossem libertados reféns no Líbano, em troca de armas (Parsi, 2007).
O que ficou conhecido como o escândalo Irão-Contras foi, porventura, o
323
evento mais demonstrativo do grande pragmatismo e oportunismo nas re-
lações externas do Irão, mas também de Israel e dos EUA.
O fervor ideológico dos anos da revolução e da liderança de Khomeini
marcaram as relações externas iranianas na década de 1980, promovendo
a exportação da revolução, principalmente para o Golfo Pérsico e o Médio
Oriente e consolidando uma aliança islâmica que pudesse ser um contra-
ponto à bipolaridade. No entanto, e como vimos, o pragmatismo foi uma
constante, exigindo cálculos ocasionais que contrariavam os ensinamentos
religiosos e ideológicos. Os traços centrais deste período, marcado pelo
isolamento internacional do Irão e pela consolidação das suas políticas de
intervenção e destabilização regional, permaneceram nas décadas seguin-
tes. Foi, no entanto, a RII a cortar laços com a comunidade internacional,
profundamente desiludida com as suas políticas da acomodação face à utili-
zação de armas químicas pelo Iraque de Saddam Hussein. Para os iranianos
e os seus líderes tornou-se claro que, só dependendo de si mesmo, o Irão
poderia sobreviver num contexto hostil. Estas tendências foram suavizadas
durante a liderança de Rafsanjani, mas permanecem até hoje uma parte
central da política externa iraniana.
6 Uma fatwa, é um edital religioso sobre a aplicação da lei islâmica em qualquer situação da vida
de uma comunidade e é emitida por um clérigo ou autoridade religiosa. No caso de Salman Rushdie,
foi lançada pelo Aiatola Khomeini, devido à alegada blasfémia e apostasia do seu romance Versículos
Satânicos e continha uma sentença de morte por violação da lei islâmica.
entre as diferentes facções da vida política, económica, social e militar ira-
nianas (Moslem, 2002; Siavoshi, 1992). Os apoiantes da revolução islâmica
procuraram consolidar um status quo que lhes fosse favorável, com acesso a
324
benefícios políticos e socioeconómicos. Segundo Alamdari (2005: 1290-1291),
nesta fase consolidaram-se diversos centros de poder verticais e autónomos
que facilitaram o desenvolvimento de relações de clientelismo, com profundas
implicações para as reformas económicas e políticas que o novo Presidente,
Akbar Hashemi Rafsanjani, procurou implementar depois de 1989.
Neste novo contexto, a nomeação de um novo Líder Supremo era uma
prioridade. Presidente da República entre 1981 e 1989, Ali Khamenei, foi
então elevado à categoria de Aiatola e nomeado Líder Supremo pela Assem-
bleia de Peritos. Com a revisão constitucional de 1989, foi abolido o cargo
de Primeiro-ministro, criando um regime presidencialista, de liderança dupla,
e foi estabelecido o poderoso Conselho de Segurança Nacional, com pode-
res reforçados em matéria de política externa. Uma vez resolvido o dilema
imediato da sucessão a Khomeini, a RII precisava agora encontrar soluções
para o avolumar de desafios que o contexto interno, regional e internacional
colocava. Rafsanjani procurou iniciar uma era de reconstrução (Takeyh, 2009:
113), que permitisse reparar os danos causados pela devastadora guerra com
o Iraque e legitimar o novo governo, com base em políticas sociais. Para isso,
contudo, era necessário alterar as relações com os vizinhos do Golfo Pérsico e
abrir novas possibilidades de relações comerciais com os países europeus e a
União Soviética/Rússia, que permitissem ao Irão aceder a importantes créditos
internacionais e reverter o estado de dependência absoluta da sua economia
(Taremi, 2003: 388; Tarock, 1999). Embora as exigências práticas da recons-
trução fossem um aspecto central da nova política de acomodação, a tensão
entre pragmatismo e ideologia manteve-se visível, dando origem a acesso
debates internos, sobre os perigos e as vantagens da cooperação com os EUA.
Perante a existência de uma só superpotência, o Irão viu-se obrigado, também,
a melhorar relações com diversos novos parceiros, não necessariamente mu-
çulmanos, bem como a tentar forjar a sua presença em organizações regionais
não dominadas pelo Ocidente (Herzig, 2004: 505; Ramazani, 1992: 401-403).
Com efeito, no novo contexto pós-Guerra Fria, Teerão viu-se obrigado a
alterar a sua política externa, abandonando o princípio de «nem Ocidente,
nem Oriente» e estabelecendo o princípio de «Norte e Sul» (Ramazani, 1992).
Isto significava, abertura aos novos estados independentes do Cáucaso do
Sul e da Ásia Central (Arjomand, 2009: 141-143; Herzig, 2004; Ramazani,
325
1992) e à Rússia. Apesar dos momentos de tensão entre Teerão e Moscovo,
nomeadamente durante a invasão Soviética no Afeganistão (Milan, 2006:
235-246) e durante a guerra na Chechénia, os dois estados viram benefí-
cios numa cooperação estratégica. Um dos objectivos centrais era limitar
a presença norte americana no Golfo Pérsico e no Mar Cáspio (Lowe and
Spencer, 2006: 40-43) e, desde o final da década de 1990, a cooperação
nuclear passou a ser um aspecto central das suas relações. Teerão, com o
apoio de Moscovo, desempenhou também o papel de mediador no conflito
de Nagorno Karabakh, entre a Arménia e o Azerbaijão, e na guerra civil que
deflagrou no Tajiquistão. Perante a abertura do espaço da Eurásia, quer o
Irão, quer a Turquia procuraram reforçar a sua presença, tendo por base
uma abordagem pragmática e funcionalista. Com efeito, no inicio da déca-
da de 1990, os dois estados entraram em competição por influência nesta
região, principalmente através da promoção de integração regional baseada
em afinidades culturais e linguísticas (Calabrese, 1998; Herzig, 2004: 507).
No contexto do Golfo Pérsico, a nova liderança iraniana procurou al-
cançar dois objectivos centrais: conter o Iraque e reconciliar-se com os
estados do CCG. O fim da guerra com o Iraque não resolveu as disputas
territoriais entre os dois estados. Com efeito, a invasão iraquiana do Kuwait,
em 1990, confirmou o entendimento de Teerão de que a liderança iraquiana
representava o principal elemento destabilizador na região. O Irão usou
esta oportunidade para demonstrar o seu apoio ao pequeno estado árabe
e exigir que o CCG denunciasse a invasão iraquiana (Ramazani, 1992: 396;
Takeyh, 2009: 134). A subsequente primeira guerra do Golfo representou
uma oportunidade para Teerão se afirmar como um actor empenhado na
estabilidade regional, mas também trouxe ameaças claras. A primeira delas
era a presença de tropas internacionais e principalmente norte-americanas,
no Golfo Pérsico. Para as facções radicais no Irão, o dever da república
islâmica era denunciar e combater essa presença. Contudo, numa fase em
que o Irão procurava normalizar a suas relações externas e integrar-se na
economia mundial, as exigências ideológicas teriam de ser calibradas por
interesses económicos e políticos. Um outro desafio foi a permanência de
Saddam no poder e o perigo de desmembramento do estado iraquiano,
especialmente nos territórios curdos e de maioria Shi’ita. Perante a oportu-
326
nidade de apoiar a rebelião Shi’ita no Iraque, Teerão limitou o seu apoio a
questões logísticas (Ramazani, 1992: 398; Takeyh, 2009: 136; Taremi, 2003:
390) e não investiu em destabilizar o país vizinho.
A melhoria de relações com os estados do CCG tinha como objectivos
centrais reforçar a política de contenção do Iraque, melhorar o contexto
económico iraniano e alterar favoravelmente os arranjos de segurança regio-
nais. Para isso, as relações problemáticas de Teerão com a Arábia Saudita
tinham de ser revistas. Em 1988, após a morte de mais de 400 peregrinos,
entre eles perto de 300 iranianos, aquando das peregrinações anuais a Meca,
as relações diplomáticas entre os dois países foram cortadas (Caryl, 2009).
Durante a guerra com o Iraque, o Irão viu os preços do crude descerem
após o aumento da produção saudita, num apoio claro de Riade a Saddam
Hussein. No entanto, a questão que mais separa os dois estados é a parceria
estratégica da Arábia Saudita com os EUA e, embora as relações diplomá-
ticas tenham sido restabelecidas depois da primeira guerra do Golfo, as
diferentes visões relativamente ao papel os EUA não foram reconciliadas.
Efectivamente, para a RII o estabelecimento de um acordo de segurança
no Golfo, que exclua ao EUA e que inclua Teerão é um objectivo central,
mas irreconciliável com a percepção dos estados árabes do Golfo que vêem
os EUA como um aliado e uma garantia de segurança (Taremi, 2003: 390).
Embora o resultado das políticas de aproximação e acomodação regionais de
Rafsanjani tenha sido limitado, o contexto regional após a guerra do Golfo
e com o fim da União Soviética era profundamente diferente, confirmando
a RII como um actor regional incontornável.
Para Israel, este novo contexto regional tinha algumas desvantagens, nomea-
damente a falta de um inimigo comum com os EUA. Após a derrota de Saddam,
a Administração Bush lançou imediatamente o processo de paz israelo-árabe,
que culminaria com os Acordos de Oslo. É neste contexto que a rivalidade
com Teerão irá escalar para novos níveis. Segundo Parsi (2005: 261), Israel e
o Irão acabaram por competir pelo mesmo vácuo de poder deixado com a
derrota do Iraque. Após os acordos de paz com os estados árabes, ambos se
encontravam em posição de se tornarem actores económicos centrais na re-
gião. Para além disso, o Irão, com a sua retórica anti-ocidental e anti-israelita,
representava a ameaça necessária para manter a aliança com os EUA e para
327
garantir apoio doméstico ao processo de paz, em Israel. Para Teerão, a sua
exclusão dos arranjos de segurança regionais e a política de isolamento seguida
por Israel e os EUA exigiu uma presença mais visível que confirmasse o seu
papel central na segurança regional. Nesse sentido, o Irão denunciou o pro-
cesso de paz e renovou o seu apoio aos grupos militantes palestinianos e no
Líbano, reforçando o seu objectivo de travar o processo de paz israelo-árabe.
Embora eventualmente esta política tenha rendido os seus frutos e Israel tenha
alterado a sua posição face a Teerão, os danos nas relações externas do Irão
com os países europeus e com os EUA foram devastadores. A denúncia de
Teerão como um instigador de terrorismo islâmico fundamentalista e as notícias
preocupantes sobre o seu programa nuclear pareciam reverter os resultados
positivos da abertura inicial conseguida por Rafsanjani. Quando o Presidente
Khatami chegou ao poder em 1997, o Irão encontrava-se num processo de
mudança acelerada, exigindo reformas mais profundas do que Rafsanjani tinha
sido capaz de fazer. A RII tinha também consolidado o seu programa nuclear
com apoio russo e chinês e sofria, desde 1996, sanções norte-americanas, es-
tabelecidas depois da adopção do Acto de Sanções Irão-Líbia.
7 Para uma perspectiva completa das ambições nucleares iranianas ver Chubin (2006).
acabasse por se traduzir num triunfo para os reaccionários, que viam o
acordo como uma humilhação para a RII. Efectivamente, Ahmadinejad usou
o programa nuclear iraniano como arma de propaganda e de promoção de
333
orgulho nacional e do mundo Islâmico (Ehteshami and Zweiri, 2007: 98).
Por seu lado, o Líder Supremo, tentou manter a via do diálogo aberta com
os europeus e, em 2006, os cinco membros permanentes do CSNU, mais a
Alemanha (5+1) voltaram à mesa das negociações com o Irão. Embora o
acordo proposto não tenha sido rejeitado pelo Presidente iraniano, a RII
falhou os prazos estabelecidos e acabou por sofrer novas sanções. Durante
2007 e 2008, Ahmadinejad continuou o seu processo de afirmação interna,
por vezes desafiando directamente a autoridade do Líder Supremo. Em 2008,
Khamenei procurou novamente persuadir o CSNU da sua posição central
na definição da política externa da RII e do desejo do país de continuar
negociações (Arjomand, 2009: 202-203). No entanto, com o aproximar das
eleições presidenciais de 2009 e a contestação que se seguiu, foi o cartel
liderado pelos Guardiães da Revolução que beneficiou da fragilização da
posição do Presidente Ahmadinejad e do Líder Supremo, pondo fim a qual-
quer esperança de negociações. Finalmente, em Junho de 2010, o CSNU
aprovou um novo pacote de sanções ao Irão.
A segunda questão prende-se com as relações de um possível Irão nuclear
com o Médio Oriente e os EUA. Com a saída do poder dos Talibã, no Afe-
ganistão e de Saddam Hussein, no Iraque, o Irão é hoje um actor central no
Médio Oriente. Outras potências regionais como a Arábia Saudita, o Egipto
ou mesmo a Turquia poderão sentir-se tentadas a iniciar a uma corrida aos
armamentos, incluindo armas nucleares, para travar a hegemonia regional
iraniana. Sem dúvida, os equilíbrios de poder na região seriam profunda-
mente afectados por essa possibilidade (Kaye and Wehrey, 2007: 111). Para
o estado de Israel, a possibilidade de o Irão adquirir armas nucleares, aliada
à retórica anti-semita e anti-israelita do Presidente Ahmadinejad, é um risco
sem precedentes à sua segurança (Ehteshami and Zweiri, 2007: 109). Daí
que os líderes israelitas mantenham a possibilidade de um ataque preventivo
sobre o Irão, caso a diplomacia não produza resultados. Para os países do
Golfo Pérsico, um confronto nuclear na região teria consequências catastró-
ficas. Independentemente da forma como a região se adapta à possibilidade
nuclear, a presença incontornável do Irão na política regional, incluindo
a sua presença reforçada no Iraque, na Palestina, por via do Hamas, e no
Líbano, após a vitória do Hezbollah sobre Israel, em 2006, deixa adivinhar
334
um processo de afirmação internacional que os EUA terão de reconhecer.
A abertura do Presidente Obama à normalização de relações deverá, pois,
ser entendida como um passo importante nesse reconhecimento, embora
se adivinhem muitas dificuldades.
Conclusões
A política externa iraniana tem sido construída com base em dois pilares
essenciais: pragmatismo e ideologia. Isso traduziu-se, inicialmente, numa
tensão estruturante entre a Monarquia e o Islão, que a revolução de 1979
fez pender em favor do último. Tal como a maior parte dos estados, o Irão
procura salvaguardar o que considera serem os seus interesses nacionais,
tendo em conta um forte sentimento nacionalista persa. Isto tem-se tradu-
zido numa política externa flexível e em constante refluxo. A percepção
de estar inserido num contexto regional e internacional desfavorável, tem
favorecido uma política de alianças e acomodação, quer com os vizinhos
do Golfo Pérsico, quer com os EUA. No entanto, as estruturas internas de
poder e a clara dimensão ideológica trazida pela revolução islâmica têm
permitido que uma visão conservadora e reaccionária tenha tido uma pre-
sença constante na política externa iraniana, antagonizando os EUA e Israel.
As forças pragmáticas e reformadoras têm encontrado grandes dificuldades
para justificar uma abordagem diferente, tendo em conta a profunda idea-
lização do papel da RII no mundo.
Questões para análise
Quais as principais razões que conduziram à Revolução Islâmica de 1979, no
Irão?
335
Que linhas centrais guiam a política externa iraniana no período pós-
‑revolucionário?
De que forma as dinâmicas de política interna afectam as opções de política
externa no Irão? Dê exemplos ilustrativos.
Quais os motivos que levaram a RII a iniciar o seu programa nuclear? E de
que forma isso afectou as suas relações com os EUA?
Qual a abordagem da RII para a segurança no Golfo Pérsico e Médio Oriente?
E de que forma é ilustrativa dos princípios basilares da sua política externa?
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(Página deixada propositadamente em branco)
Carmen Amado Mendes 1
339
C a p í t u l o 14
Re p ú b l i c a Po p u l a r d a C h i n a
1 Artigo elaborado no âmbito do projecto «Uma Análise da Fórmula ‘Um País, Dois Sistemas’: O
Papel de Macau nas Relações da China com a UE e os Países de Língua Portuguesa», Financiado pela
Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCOMP-01-0124-FEDER-009198).
Factores endógenos na formulação da política externa chinesa
A concepção tradicional de Relações Internacionais
340
Entre os factores endógenos que influenciam o processo de tomada de
decisão em política externa, devemos destacar o contexto interno, ou seja,
aspectos políticos, económicos, sociais, culturais e históricos que moldam
as percepções dos líderes relativamente à situação e, consequentemente,
enquadram a selecção da que é considerada a melhor abordagem. No caso
chinês, a cultura e a história continuam a influenciar fortemente a postura
adoptada pelos líderes na cena internacional. As concepções tradicionais
chinesas da ordem internacional são fundamentais para entender a política
externa da China moderna.
Como é que os chineses entendiam as Relações Internacionais antes da
chegada do Ocidente? Antes do século XIX não havia caracteres em chinês
para as palavras «internacional», «raça», «país» – facto que só se alterou com
a entrada de potências estrangeiras na China. Os caracteres da palavra «Chi-
na», ou – consoante usarmos a escrita simplificada ou tradicional
ainda usada em Taiwan, Hong Kong e Macau (lê-se «Zhongguo») – significam
literalmente «centro» e «império/nação», ou seja, Império do Meio. Havia um
desinteresse profundo em relação aos outros «países», ao «internacional» e
às outras «raças». A percepção de supremacia, para além de estar presente
nesta assunção da centralidade, reflecte-se na imposição de um sistema de
vassalagem em que os países interessados no relacionamento com a China
eram obrigados a pagar tributo ao Imperador chinês e os seus embaixadores
e chefes militares tinham de lhe prestar homenagem através do kow-tow,
uma prostração de corpo inteiro em que a testa tocava três vezes no chão,
simbolizando a submissão absoluta. Esta cerimónia tornou-se o símbolo do
choque entre as visões opostas que europeus e chineses tinham do mundo.
Para um europeu, tal prostração significava que um embaixador (logo, o
«seu» rei) seria vassalo do Imperador chinês, gerando mal-entendidos bem
conhecidos na história, nomeadamente na corte britânica. Em suma, o sistema
tributário, através do qual as missões apenas podiam entrar no Império do
Meio nos termos definidos por Pequim, mostra, claramente, o desinteresse
chinês no relacionamento com o exterior.
Esta ideia da superioridade chinesa no plano inter nacional foi
reforçada pelos ideais confucionistas de obediência, estratificação
social, e harmonia, cujas relações uni-direccionais de poder e con-
341
cepções hier árquicas são tr anspostas par a o plano inter nacional.
Segundo Confúcio, a sociedade chinesa está dividida em camadas: o
Imperador está no topo, seguido dos académicos e funcionários da
administração (cujo estatuto advém da aprovação nos exames, no ideal
da meritocracia estabelecida por Confúcio), dos camponeses (a quem
Confúcio atribui uma importância vital, por alimentarem a população),
artesãos e, por fim, dos soldados (mal vistos por um filósofo que cri-
tica o recurso à violência) e comerciantes (percepcionados como uma
classe imprópria por deter o dinheiro do povo). De forma análoga, a
sociedade internacional está hierarquizada: o Império do Meio, que se
considera a «única cultura», está no topo, e engloba as nações vizinhas –
Coreia, Vietname, Japão e restantes países asiáticos – que, estando perto,
absorvem as ideias chinesas e conseguem ser mais civilizados, ao con-
trário dos europeus e africanos que são considerados bárbaros.
Que ilações nos permite tirar esta concepção tradicional das Relações
Internacionais? Em primeiro lugar, ao contrário das ordens ocidentais ac-
tuais, que reflectem uma percepção da cena internacional como palco da
competição entre Estados iguais, à imagem dos ideais de construção de
sociedades igualitárias, a cultura chinesa não tem enraizadas concepções
de igualdade mas sim de hierarquia, quer no plano interno – ao nível da
família, da sociedade e do Estado – quer externo, no relacionamento com
os restantes actores do sistema. Isto vai servir de base para, mais à frente,
argumentarmos que as actuais declarações chinesas sobre a necessidade
de assegurar a igualdade e democracia nas Relações Internacionais não
passam de retórica que cairia por terra se Pequim conseguisse atingir a tão
desejada hegemonia e voltasse a ser o Império do Meio. Esta retórica deu os
primeiros passos com Mao Zedong, que refutou os princípios hierárquicos
confucionistas em troca do igualitarismo, não só em termos de construção
da sociedade ideal mas também no plano internacional; mas apesar de
ser usado nos discursos não reflecte, na sua essência, o pensamento dos
actuais líderes.
Em segundo lugar, o sistema de vassalagem revela o desinteresse chinês
na aproximação a outros povos e o sentimento de superioridade de então.
Este sistema funcionou durante bastante tempo e permitiu a manutenção da
342
paz; o que é notável, se compararmos com a situação na Europa da época.
Estando longe dos seus vizinhos e vendo a sua superioridade respeitada,
o Império não temia ameaças à civilização chinesa e não sofria invasões
(o que explica, em parte, a sua incapacidade para responder à invasão
europeia no século XIX) e não mostra interesse em recorrer à guerra. Isto é
revelado nas descrições dos primeiros comentadores europeus que visitaram
a China: Marco Polo, um visitante controverso (há quem diga que os seus
escritos são baseados em leituras e não nos 17 anos que diz que viveu na
China, no séc. XIII ) caracterizava o Império do Meio como uma «ditadura,
tamanho colossal, rica em comércio, altamente urbanizada, inventiva em
negócios comerciais, fraca nos modos de guerra» (Spence, 1998: 3). Mesmo
nos séculos XVI-XVII manteve-se a percepção de que o Império do Meio era
muito fraco em termos militares, uma vez que tinha uma política de não-
agressão em relação aos seus vizinhos. Estas análises servem hoje de base
aos argumentos de que a China não é um poder bélico mas sim pacifista e
que os seus slogans de «ascensão pacífica» e «paz e desenvolvimento» são
genuínos.
Em terceiro lugar, o facto do Império do Meio permitir aproximações ex-
ternas (embora segundo as suas regras) mas não mostrar particular interesse
nelas, partilhando os conhecimentos da civilização chinesa com os povos
vizinhos e com os «bárbaros» sem no entanto impor esta partilha, revela a
ausência de crença missionária e obsessão em espalhar a civilização. Isto
contrasta fortemente com a cultura ocidental, apologista das missões, ou
seja, na imposição da sua forma de pensar aos outros povos, em termos
religiosos (Cristianismo), sociais (Direitos Humanos), políticos (Democra-
cia) e económicos (Liberalismo). Mais à frente veremos que este contraste
é hoje visível no choque entre o chamado «Consenso de Washington» e o
«Consenso de Pequim»: a postura arrogante de que o Ocidente sabe melhor
como é que as outras civilizações se devem governar é posta em causa
por uma abordagem que não exige pré-condições comportamentais para o
estabelecimento de relações de interesse mútuo.
Antecedentes históricos
O interesse nacional
O momento
352
The multipolarization process may be zigzag, protracted and full of
struggles, but this is a historical trend independent of human will. It is
in conformity with the common aspirations and interests of the majority
of countries and conducive to world peace and security. Our efforts to
promote the development of the world towards multipolarization are not
targeted at any particular country, nor are they aimed at re-staging the old
play of contention for hegemony in history. Rather, these efforts are made
to boost the democratization of international relations, help the various
forces in the world, on the basis of equality and mutual benefit, enhance
coordination and dialogue, refrain from confrontation and preserve jointly
world peace, stability and development. (RPC 2003a)
354
Relações de reciprocidade
Considerações finais
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André Barrinha
361
C a p í t u l o 15
Tu r q u i a
1 A Turquia assistiu durante este período a três golpes militares, em 1960, 1971 e 1980 que de
certa forma serviram para pôr fim a diversos episódios de instabilidade política que, particularmente
nos anos 1970, levaram este país à beira da guerra civil.
ocidentalizada da Turquia; por outro, a concretização do seu lema paz em
casa, «paz no mundo» (Cem, 2001: 2). Como veremos mais adiante, esta
lógica só muito pontualmente foi posta em causa pelos sucessivos governos
363
turcos e, sempre que tal aconteceu, houve igualmente a preocupação de
salientar a compatibilidade com estes mesmos princípios.
Em segundo lugar, há a destacar o papel do aparelho burocrático do
Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE). Um dos pilares kemalistas
do estado turco, o aparelho diplomático turco sempre possuiu um esta-
tuto especial no quadro dos restantes ministérios: os seus concursos de
admissão eram mais exigentes do que os dos outros, os seus funcionários
provinham exclusivamente das universidades de elite turcas e havia uma
lógica subjacente de rigor na execução das suas políticas (Robins, 2003:
72-73). A solidez do MNE fez, assim, com que as sucessivas crises políticas
passassem um pouco à margem da política externa turca, na medida em
que existia uma autonomia do MNE que o isolava dessas mesmas crises.
Fez também com que a Turquia adoptasse uma presença internacional
constante, mas moderada, pouco dada a mudanças radicais de discurso
ou comportamento, focada na reprodução das práticas diplomático-buro-
cráticas vigentes.
Finalmente, é preciso salientar o papel dos militares, igualmente impor-
tante na estabilização da política externa turca do pós-II Guerra Mundial.
Apesar da sua importância política datar dos tempos do Império Otomano
(Drorian, 2005: 263), as Forças Armadas turcas consolidaram o seu prestígio
e legitimidade depois de Mustafa Kemal ‘Atatürk’ ter comandado o seu
exército na libertação do que é a actual Turquia das mãos das potências
vencedoras da I Guerra Mundial. O seu envolvimento directo na esfera
política, 2 contudo, apenas se começou a fazer sentir em finais dos anos
1950. A morte de Atatürk em 1938 abriu um espaço para a contestação
da liderança política que levaria à realização de eleições multi-partidárias
regulares a partir de 1946. Após uma vitória inicial em 1946, o Partido
Republicano do Povo (CHP - Cumburiyet Halk Partisi) perderia o seu lugar
2 Indirectamente, muitos dos líderes políticos da jovem República eram provenientes do apare-
lho militar ( Jenkins, 2001:10).
no poder para o Partido Democrático (DP - Demokrat Parti) de Adnan
Menderes em 1950. O DP trouxe consigo uma nova agenda política de-
fendendo, entre outras medidas, uma maior liberdade religiosa na esfera
364
pública, o que preocupou as Forças Armadas turcas, guardiãs do espírito
kemalista. De acordo com Armağan Kuloglu e Mustafa Şahin, este factor,
juntamente com a imposição de políticas cada vez mais opressivas e de
uma inflação galopante, levaram ao golpe militar de 1960, que tinha por
objectivo «restaurar a democracia e a ordem kemalista» (2006: 94).
A nível externo, esse intervencionismo começou-se a fazer sentir ainda
mais tarde, sendo a sua visibilidade enquanto actor político autónomo
somente manifesta a partir de meados dos anos 1990, período no qual a
instabilidade política turca afectou de forma directa o seu aparelho de política
externa: a forte instabilidade interna levaria a que a Turquia tivesse nove
Ministros dos Negócios Estrangeiros entre Julho de 1994 e Junho de 1997
(Robins, 2003: 65). Nesse período foram os militares que definiram alguns
dos momentos mais marcantes da política externa turca, primeiro através
do desenvolvimento de fortes relações com Israel e, posteriormente, com
o ultimato lançado à Síria em 1998, quando Ancara exigia que Damasco
expulsasse o líder do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK - Partiya
Karkerên Kurdistan), Abdullah Öcalan (Robins, 2003: 77). No entanto, até
aos anos 1990 o papel dos militares tinha essencialmente sido um papel de
estabilização da política externa através da garantia do seu poder, isto é, a
sua existência servia de efeito dissuasor relativamente a eventuais tentações
de envolver a Turquia na conflitualidade do Médio Oriente.
O crescente intervencionismo militar, associado à instabilidade vivida
dentro do MNE turco e à eleição de líderes políticos como Necmettin
Erbakan, cuja agenda política fugia claramente a vários dos princípios
kemalistas, vieram colocar a nu o progressivo desmembramento do triân-
gulo da política externa turca que durante várias décadas tinha permitido
que o país tivesse mantido um registo externo bastante sóbrio, apesar da
enorme complexidade do seu contexto geopolítico. A partir de então a
política externa turca fragmentou-se e flexibilizou-se, o que de certa for-
ma fez com que a Turquia passasse a ter um papel mais activo na esfera
política internacional.
A Turquia e a Guerra Fria
Até à crise dos mísseis de Cuba de 1962, a Turquia tinha sido um ‘bom’
366
aliado no quadro transatlântico, tendo tido um papel de relevo na Guer-
ra da Coreia, ao enviar 4.500 militares para o conflito, o terceiro maior
contingente militar, depois de norte-americanos e coreanos (Robins, 2003:
129). Um envio revestido de simbolismo por ter sido a primeira vez que as
Forças Armadas turcas, enquanto tal, foram destacadas para um cenário de
guerra num quadro multilateral. Era assim claro o empenho de Ancara neste
relacionamento transatlântico. O desfecho da crise de Cuba viria, contudo,
a trazer dúvidas sobre a forma como os restantes membros da Aliança, par-
ticularmente os EUA entendiam o papel da Turquia. No sentido de resolver
a crise, Washington prometeu a Moscovo a retirada dos mísseis Júpiter da
Turquia. Essa retirada já estava prevista, no entanto, esta medida viria a
ser tomada por parte dos EUA sem que Ancara tivesse sido consultada,
aumentando assim a suspeita em vários sectores da sociedade turca de que
a Turquia estava mais empenhada no relacionamento com Washington do
que vice-versa (Eralp, 2003: 110). A esta questão veio juntar-se, em 1964,
a crise da carta de Johnson, em que o Presidente norte-americano Lyndon
Johnson, em face dos problemas que então se viviam no Chipre,4 aconse-
lhou a Turquia a não intervir, pois caso o fizesse isso poderia originar a
intervenção da União Soviética (URSS) e nada garantia que a OTAN pudesse
intervir em defesa da Turquia. Esta carta viria a ser vista com desilusão e
revolta em Ancara, contribuindo para o renascer do síndroma de Sèvres.
O síndroma de Sèvres resulta da relação ambivalente que a Turquia tem
com o Ocidente: por um lado, a matriz do seu desenvolvimento enquanto
estado moderno esteve, durante várias décadas, directamente associada a
uma modernidade ocidental; por outro, existe a suspeita de que esse mundo
ocidental não só não deseja que a Turquia faça parte dele, como pretende
o seu controlo ou desintegração. Este sentimento ambivalente é algo que
advém dos tempos otomanos, o «homem doente da Europa» do século XIX .
5 Como afirma Philip Robins, essa questão só afectou a Turquia relativamente ao seu relaciona-
mento com os membros da Aliança, mas não com a Rússia. Para Ancara, Moscovo continuava a ser
vista com grande suspeição (2003: 23).
caso, Balcãs e Europa de Leste, houve um completo redimensionamento
do espaço geopolítico com a criação e desintegração de vários Estados,
sendo de destacar pelas suas consequências particularmente nefastas,
369
o fim da República Jugoslava. A Turquia necessitava assim de um novo
rumo para a sua política externa que tivesse em consideração todas estas
mudanças em seu redor, assim como a transformação do papel da OTAN
a nível internacional.
No caminho para essa redefinição de política externa, a Turquia viria
a assumir um papel central na Guerra do Golfo, desencadeada pelos EUA
e aliados após a invasão do Kuwait por Saddam Hussein em Agosto de
1990. Devido ao enorme cepticismo interno relativamente ao envolvimento
do país num conflito contra um Estado vizinho, Turgut Özal decidiu não
enviar tropas para o Iraque. Permitiu, contudo, o uso das bases aéreas
conjuntas (Turquia-EUA) do Sudeste turco para o ataque norte-americano
às forças iraquianas (Robins, 2003: 16-17). Isto, para além de ter encerrado
os oleodutos provenientes do Iraque para seu próprio prejuízo 6 - decisivo
para convencer a Arábia Saudita a deixar os EUA intervir no Kuwait a partir
do seu território (idem). A Turquia teve igualmente um papel central na
coordenação da missão humanitária no Norte do Iraque onde a população
curda era alvo da perseguição de Saddam Hussein. É de realçar que o
problema curdo iraquiano do pós-Guerra do Golfo levou a um aumento
exponencial da visibilidade da questão curda na própria Turquia. Nessa
matéria, o envolvimento turco na Guerra do Golfo acabaria por trazer mais
dores de cabeça do que benefícios para a elite de Ancara (Fuller, 2008:
98-99). O conflito que opunha a Turquia ao PKK, liderado por Abdullah
Öcalan desde o início da década de 1980, agudizou-se consideravelmen-
te a partir desta altura, atingindo proporções de uma quase-guerra civil.
A questão curda tornou-se estrutural na política externa turca, passando
a ser um dos cinco principais eixos de acção da política externa turca do
pós-Guerra Fria que iremos agora brevemente analisar.
6 Um enorme prejuízo calculado em mais de oito mil milhões de dólares (Robins, 2003: 322).
Questão Curda
7 Seria o início da última viagem de Öcalan em liberdade, com paragem em Moscovo, Roma e
Nairobi, cidade onde finalmente seria preso pelos serviços secretos turcos em colaboração com os
serviços secretos norte-americanos.
A aposta Europeia e a questão cipriota
8 O Comando desta segunda missão seria inclusive atribuído a um general turco, o Gen. Cevik Bir.
Apesar de não terem sido anos de grande proximidade, foram anos de
convergência de interesses em várias áreas, a começar pela estabilização
dos Balcãs, mas a passar igualmente por questões como: a expansão da
374
NATO, a prevenção da proliferação de Armas de Destruição Maciça (ADM)
e a abertura de novos gasodutos através da bacia do Cáspio (Kirişçi, 2002:
174). Essa sobreposição da comunhão de interesses sobre uma eventual co-
munhão de valores, veio de certa forma animar a relação entre Washington
e Ancara numa base mais realista daquela que tinha predominado durante
a Guerra Fria e que, por mais do que uma vez, levou Ancara a sentir-se
traída pela falta de um empenho equitativo por parte de Washington no
relacionamento entre ambos os países.
O regresso à vizinhança
376
A vitória do AKP nas legislativas de Novembro de 2002 não só significou
a ascensão ao poder de uma nova força política, como correspondeu ao
início de um processo de transformação da política, economia e sociedade
turca. Apesar de mais moderado do que o antigo partido Refah, vários dos
seus principais membros eram, com efeito, ex-membros do partido de Er-
bakan, o que deixou o aparelho kemalista extremamente preocupado. Essa
preocupação revelou-se sem fundamento, pois o governo AKP dedicou boa
parte do seu primeiro mandato a seguir as linhas previamente estabelecidas
em matéria de política externa, principalmente na questão do seu empe-
nho no sentido da integração europeia. Houve, contudo, uma questão que
não só afectou o relacionamento com Washington, como obrigou Ancara a
envolver-se de forma mais activa nas questões do Médio Oriente: a inter-
venção norte-americana no Iraque em 2003.
No início de 2003, os EUA começaram a negociar com o governo de
Recep Tayyip Erdoğan a possibilidade de abrirem uma linha de ataque a
partir do Sudeste turco. O acordo foi obtido sendo, contudo, necessária a
aprovação no Parlamento. Para espanto dos norte-americanos, a proposta
não seria aprovada, tendo-se mais de 100 deputados do AKP aliado à opo-
sição no sentido de bloquearem a proposta. A invasão do Iraque era vista
como contrária aos interesses turcos na região (estabilidade) e contrária à
imagem da Turquia nas sociedades muçulmanas (Alessandri, 2010: 3-4). Um
dos efeitos da recusa de Ancara foi a necessidade de os EUA recorrerem
ao Norte do Iraque (isto é, aos curdos iraquianos) como base de apoio à
sua incursão militar. Tal contribuiu para a atribuição de uma importância
estratégica aos curdos iraquianos que na prática passaram a contar com
o apoio dos EUA na definição de uma entidade política curda no Norte
do Iraque, aspecto que desagradou a Ancara. O PKK voltou às armas em
Junho de 2004 num contexto de grande autonomia curda no Norte do
Iraque e de falta de poder efectivo do estado iraquiano (Larrabee, 2010:
101). O relacionamento entre os EUA e a Turquia começou a deteriorar-se
de forma significativa chegando ao ponto de em 2004 a população turca
considerar os EUA como a maior ameaça à paz internacional e à própria
Turquia (Fuller, 2008: 5). Nos anos que se seguiram, Ancara manteve uma
constante pressão sobre Washington no sentido de os EUA tomarem medi-
377
das efectivas que ajudassem a por termos às incursões do PKK (Barrinha,
2008), sem grande sucesso.
Gradualmente, a Turquia foi reconsiderando a sua política no Norte do
Iraque, concluindo que a recusa em falar com os líderes da região era mais
perniciosa que benéfica para os seus interesses. Num gesto simbólico de
reaproximação, o Ministro dos Negócios Estrangeiros Ahmet Davutoğlu vi-
sitou a região em Outubro de 2009, chegando mesmo a anunciar a abertura
de um consulado em Erbil, capital da região. Durante vários anos os líderes
políticos curdos foram vistos como personas non gratas em Ancara; contu-
do, para além da constatação das limitações associadas a uma abordagem
confrontacional com o governo regional curdo, Ancara chegou à conclusão
que podia controlar melhor as incursões do PKK na Turquia a partir do
Norte do Iraque se conseguisse a cooperação de Massoud Barzani. Além
do mais, a Turquia necessitava igualmente de uma estratégia coerente para
lidar com o ‘novo’ Iraque e o apoio dos líderes curdos podia ser essencial
para estabilizar a transição política que o Iraque tem vindo a sofrer desde
2003. Em Outubro desse mesmo ano, Erdoğan tomou a ousada iniciativa de
fazer deslocar uma enorme comitiva de ministros, empresários e jornalistas
a Bagdade onde foram assinados 48 acordos nas mais diversas áreas, desde
a segurança à gestão da água (Barysch, 2010: 5). Este foi um gesto que
indicou que a Turquia estava decidida a ajudar o vizinho Iraque a retomar
o seu caminho (Alessandri, 2010).
Em Abril de 2009, na sua primeira visita a um país muçulmano enquanto
Presidente dos EUA, Barack Obama deu sinais claros de tentar reparar os
danos causados durante a Administração Bush (Onar, 2009: 1). Isto, apesar
das críticas deixadas relativamente à necessidade de Ancara confrontar o
seu passado, numa clara alusão à questão do genocídio arménio (idem).
Devido aos grupos de pressão da diáspora arménia em França e nos EUA,
esta tem sido uma questão que tem contribuído para o dificultar das relações
com o Ocidente. Os arménios reclamam que nos últimos anos do Império
Otomano, durante a I Guerra Mundial, houve, por parte dos turcos, uma
política concertada de eliminação da população arménia no que hoje é a
Turquia, o que esta rejeita em parte, pois admite a morte de milhares de
arménios, mas num contexto de conflito aberto entre as duas partes (Onar,
378
2009: 6). Esta é uma questão de estabelecimento da verdade histórica que
atingiu fortes proporções políticas devido ao choque entre a intransigência
turca e a pressão da diáspora arménia sobre os governos dos EUA e da
Europa Ocidental. Contudo, os problemas entre a Arménia e a Turquia não
se limitavam a questões históricas. Apesar de a Turquia não se ter envolvido
militarmente no conflito, a guerra entre o Azerbaijão e a Arménia relativa
a Nagorno-Karabagh levou ao encerramento da fronteira com a Arménia
e ao fim das relações diplomáticas entre os dois países. Esta situação só
mudaria em Outubro de 2009, quando os dois países assinaram um acordo
no sentido de reatar as relações diplomáticas (Grigoriadis, 2010: 7). Este
gesto faz parte de uma tentativa de reaproximação 9 entre Ancara e Ierevan
indicadora da possibilidade da normalização das relações entre os dois pa-
íses no médio-prazo. Esta reaproximação está contudo dependente de uma
eventual melhoria nas relações entre Ierevan e Baku, que por enquanto
permanecem bastante tensas.
Em paralelo a estas abordagens conciliadoras, o governo do AKP retomou
a ideia de reforçar os laços com outros países e movimentos muçulmanos,
sobretudo depois da crise política de 2007-2008 que levaria à reeleição do
AKP e à nomeação de Abdullah Gül como presidente da Turquia. O AKP
passou a adoptar uma política externa mais agressiva e de contornos mais
distintos da levada a cabo até então. Vários factores contribuíram para essa
mudança: o contexto político interno, a passagem de Ahmet Davutoğlu para
Ministro dos Negócios Estrangeiros, o rápido crescimento da economia turca
e a atomização do sistema internacional.
O AKP saiu da crise política de 2007-08 com legitimidade política refor-
çada e com um presidente do mesmo partido. É de lembrar que o anterior
9 Entre outras medidas, o Presidente turco Abdullah Gül foi convidado pelo Presidente Arménio,
Serzh Sarkisiyan em Abril de 2008 a assistir ao encontro de futebol entre as selecções dos dois países
na qualificação para o Campeonato do Mundo de futebol de 2010. Esta medida inseriu-se numa série
de passos no sentido da reaproximação dos dois países, ficando conhecida como a ‘diplomacia do
futebol’ (Onar, 2009: 7-8).
presidente, Ahmet Necdet Sezer, tinha tido uma co-habitação difícil com
o AKP, sendo muitas vezes visto como o representante da ala kemalista
na política turca. A sua retirada e consequente substituição por Abdullah
379
Gül permitiu ao AKP ganhar um controlo acrescido sobre o processo de
decisão política.
Em segundo lugar, há a salientar a mudança de Ministro dos Negócios
Estrangeiros. Davutoğlu era o assessor político de Erdoğan no primeiro
mandato, pelo que a sua passagem para a frente da diplomacia turca não
pode ser considerada como uma mudança radical; contudo, passou a ser
possível a Davutoğlu implementar um conjunto de ideias que desenvolveu
durante a sua carreira académica e que passava pela reafirmação dos laços
culturais com o Oriente num quadro neo-otomano.
No seu livro ‘Profundidade Estratégica’ de 2001, o então professor de Re-
lações Internacionais argumentava que a Turquia necessitava de se comportar
na esfera internacional de acordo com o seu posicionamento geográfico
e com o seu passado histórico, incluindo neste o Império Otomano, mas
também a Aliança Atlântica forjada durante a Guerra Fria (Barysch, 2010: 4).
Esta nova política externa devia igualmente distanciar-se da clássica hard
politics turca, focando-se nos aspectos culturais e económicos no sentido
de promover a estabilidade e prosperidade da Turquia (Barysch, 2010: 5), a
«política dos problemas-zero» (Barysch, 2010: 6). De acordo com Davutoğlu,
a Turquia devia ter uma diplomacia activa, focada na inter-ligação entre o
bilateral e o multilateral que visasse a prossecução dos objectivos turcos,
devendo estes passar pela estabilidade regional e promoção dos interes-
ses políticos e económicos da Turquia (Onar, 2009: 11-12). Relativamente
a este ponto, Davutoğlu avança ainda com a ideia da geo-economia, isto
é, o desenvolvimento de relações comerciais com uma lógica estratégica,
privilegiando mercados e fornecedores até então pouco explorados por
Ancara (idem). Este ponto relaciona-se directamente com o terceiro factor
que ajuda a explicar as mudanças ocorridas na política externa turca nos
últimos oito anos – o forte crescimento económico da Turquia.
Desde 2001, ano em que a Turquia sofreu uma forte crise financeira que
exigiu a intervenção do Fundo Monetário internacional (FMI) e fez o Pro-
duto Interno Bruto (PIB) encolher 5.7%, a economia turca não tem parado
de crescer. Entre 2002 e 2006, teve um crescimento do PIB sempre superior
a 5%, atingindo um máximo de 9,4% em 2004. Em 2007, esse crescimento
ficou-se pelos 4,6%, atingindo um mínimo de 1,1% em 2008, ano do início
380
da crise financeira internacional. Contudo, como constata Mustafa Kutlay,
a Turquia está hoje numa posição financeira muito mais forte do que esta-
va noutras ocasiões de crise (como em 2001), sendo de esperar que volte
rapidamente a um crescimento elevado nos próximos anos (2009: 66).
Não é pois de estranhar que Ancara tenha passado a ter em muito maior
consideração a dimensão económica da sua política externa, procurando
novos mercados e oportunidades para o seu tecido empresarial (Barysch,
2010: 7). Esta dinâmica empresarial tem feito com que a Turquia estabeleça
relações com países e regiões até então pouco exploradas, e que proceda
a um entendimento do seu contexto geográfico, cada vez mais sob uma
perspectiva geo-económica, como defende o seu actual Ministro dos Ne-
gócios Estrangeiros.
Apesar da importância das três dinâmicas internas acima mencionadas
(política interna, mudanças no MNE e crescimento da economia turca), é
preciso ter igualmente em consideração que essas mudanças tiveram lugar
num contexto internacional em mudança, baseado numa lógica de atomiza-
ção do poder no sistema internacional. Num quadro de ascensão de novas
potências e de um mundo pós-Americano, a Turquia passou a sentir-se como
parte dessa nouvelle vague, falando directamente com o Brasil, a Rússia e
a China e alargando os seus horizontes para regiões até então largamente
desconhecidas como a África sub-sahariana ou a América Latina.
O reforço da legitimidade interna, a existência de uma doutrina de base
associada ao novo Ministro dos Negócios Estrangeiros e de um forte cres-
cimento económico e a progressiva afirmação de novos pólos de poder
no sistema internacional contribuíram assim para uma mudança de atitude
por parte da Turquia relativamente à sua política externa. Uma mudança
no sentido de um maior envolvimento nas questões do Médio Oriente, mas
com uma presença e actividade de nível global.
2009 foi, nesse aspecto, um ano exemplar, com uma Turquia activa em
várias frentes em simultâneo. Em Agosto, Vladimir Putin deslocou-se a
Ancara, tendo negociado a colaboração em dois projectos de construção
de gasodutos. Nesse mesmo mês, Ancara e Ierevan assinaram, como já
mencionámos, dois protocolos que previam o retomar, 16 anos depois das
relações diplomáticas entre os dois países. Em Novembro, o primeiro-ministro
381
turco visitou Teerão, onde em cima da mesa esteve o desenvolvimento
das relações económicas entre os dois países. Finalmente, em Dezembro,
Erdoğan visitou a Síria no sentido de resolver uma velha disputa territorial
com Damasco. Entre outras medidas resultantes dessa visita, foi decidido
abolir a necessidade de visto para cidadãos sírios (assim como libaneses,
líbios e jordanos) entrarem na Turquia (Barysch, 2010: 5).
A melhoria no relacionamento com a Síria é algo que já se vinha a notar
há mais tempo. Em boa verdade, aquando da incursão militar israelita na Faixa
de Gaza no Inverno de 2008-09, que estaria na base do desentendimento
entre Erdoğan e Shimon Perez no Fórum de Davos, 10 a Turquia estava a
mediar a aproximação entre a Síria e Israel, abruptamente interrompida de-
vido a essa mesma incursão (Barrinha, 2009). Diplomatas, enviados especiais
e membros do governo turco visitaram diversos países do Médio Oriente,
no sentido de obterem algum consenso entre as várias partes do processo.
Como Ahmet Davutoğlu, então enviado da Turquia ao Médio Oriente, fez
questão de realçar, a Turquia era o único país que mantinha relações com
todas as partes envolvidas no conflito – Hamas, Israel, Egipto, Síria e Fatah
(Hurryiet, DN 15/01/09).
O relacionamento com Israel passou a ser a face mais visível da política
externa turca. Contrariamente ao bom relacionamento entre Ancara e Tel-Aviv
durante a última década e meia, uma série de eventos têm levado a uma
crispação no relacionamento entre os dois países. Em 2004, Erdoğan recusou
visitar Israel,11 optando por visitar Damasco no final desse mesmo ano. Foi
ainda bastante crítico relativamente aos assassinatos dos líderes do Hamas
Sheikh Ahmed Yassin e Abdul Aziz Rantisi por parte de Israel, acusando este
de «terrorismo de Estado» (Kirişçi, 2006: 63). Em 2006, Erdoğan iria ainda
mais longe ao receber uma delegação do Hamas em Ancara, liderada por
10 De acordo com Paul Salem, director do Carnegie Middle East Center no Líbano, em entrevista
ao Today’s Zaman, o incidente de Davos foi simplesmente a face visível da mudança de relaciona-
mento da Turquia com Israel (apud Dogan, 2010).
11 Erdoğan acabaria por visitar Israel em 2005.
Khaled Meshaal (idem: 62). No Outono de 2009, Ancara retirou o convite
a Israel para participar em manobras aéreas conjuntas (Barysch, 2010: 6).
Para além das dificuldades de relacionamento directo com Israel, a apro-
382
ximação de Ancara a Teerão veio de certa forma complicar as relações com
Telavive. No seguimento da visita de Erdoğan ao Irão em Novembro de 2009,
Davutoğlu deslocou-se a Teerão em Fevereiro de 2010 com o objectivo de
chegar a um acordo relativamente à questão do urânio enriquecido. Esse
acordo seria de facto obtido 12 em Maio, com o envolvimento do Brasil,
envolvendo a transferência de 1200 quilos de urânio pouco enriquecido
para a Turquia em troca de um reactor de pesquisa, sendo que esse urânio
continua a ser propriedade iraniana.
Em termos de resultados, a Turquia conseguiu melhorar o seu relacio-
namento com o Médio Oriente, Ásia Central e Cáucaso. Não conseguiu,
contudo, melhorar o relacionamento com a União Europeia, continuamente
imergida na complexa problemática do alargamento (Barysch, 2010: 1).
O seu relacionamento com os EUA também não melhorou substancialmente,
apesar da mudança de Administração em Washington e de a Turquia con-
tinuar a ter uma importância estratégica para Washington. 13
Tanto Bruxelas como Washington começam a ficar preocupados com
o empenho orientalista de Ancara. A aproximação por parte da Turquia a
países como a Síria, o Irão e o Sudão não ajudou a tranquilizar o receio de
que a Turquia esteja em busca de alternativas (Barysch, 2010: 2).
Contudo, se é verdade que este empenho externo relativamente ao Médio
Oriente é uma realidade, alicerçada em interesses económicos (expansão de
mercados e investimento), culturais (reforço dos laços com países muçulmanos)
e estratégicos (promoção de estabilidade na vizinhança), é preciso entender
que este activismo político não é exclusivo a essa mesma região. A Turquia
tem sido um dos principais contribuidores de tropas para a missão da OTAN
no Afeganistão, assumiu em 2009 o cargo de membro não-permanente do
12 A sua implementação está contudo dependente da avaliação da situação por parte do Conse-
lho de Segurança das Nações Unidas (BBC News, 17/05/10).
13 De acordo Stephen Larrabee o acesso permanente à base aérea de Incirlik, assim como a ou-
tras bases turcas garante que mais de 70% do carregamento militar enviado para o Iraque seja feito
através da Turquia (2009: 99).
Conselho de Segurança das Nações Unidas, foi impulsionadora de projectos
como a Aliança das Civilizações, envidou esforços para criar, no rescaldo da
crise na Geórgia, uma Plataforma de Estabilidade e Cooperação do Cáucaso
383
e tem, nos últimos meses, desenvolvido relações com países como o Brasil,
com quem até então mantinha um limitado relacionamento externo. A Turquia
abriu sete embaixadas em 2009 e irá abrir vinte e seis em 2010, a maioria na
África Subsaariana e na América Latina (Grigoriadis, 2010: 8).
Podemos, pois, concluir que há, de facto, uma mudança na política
externa turca, que até certo ponto se tem focado mais no Médio Oriente,
mas que é uma mudança sobretudo de atitude, mais do que de alteração
de enfoque regional.
Conclusão
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Notas biográficas
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Carlos Gaspar é director do Instituto Português de Relações Internacionais
da Universidade Nova de Lisboa. Assessor do Conselho de Administração
da Fundação Oriente. Docente convidado da Faculdade de Ciências Socais
e Humanas de Relações Internacionais da Faculdade de Ciências Humanas
e Sociais da Universidade Nova de Lisboa. Assessor do Instituto de Defesa
Nacional. Conferencista no Instituto de Estudos Políticos da Universidade
Católica Portuguesa e no Instituto de Estudos Superiores Militares. Director
da revista Relações Internacionais, membro do Conselho de Redacção das
revistas Nação e Defesa, Finisterra e Respublica. Entre os seus trabalhos,
incluem-se «Portugal y la Union Europea», in Braulio Gomez Fortes, António
Barreto, Pedro Magalhães (2003). «El sistema politico de Portugal», Madrid:
Siglo XXI . «Revisitation du Dernier Homme», in Anne-Marie LeGloannec,
Alexandre Smolar (2003), Melanges en Honneur de Pierre Hassner. Paris:
Esprit. «A Guerra Fria acabou duas vezes», Nação e Defesa, 2(105). «Ray-
mond Aron and the Origins of the Cold War», in Bryan-Paul Frost, Daniel
Mahoney (2007) Essays in Honor of Raymond Aron. Political Reason in the
Age of Ideology. New Brunswick: Transaction Publishers. «The United States
and East Asia», in Luis Tomé, Robert Sutter (org) (2009) East Asia Today.
Coordenador, com João Marques de Almeida e Nuno Severiano Teixeira
(2007) Raymond Aron. Lisboa: IDN, Cosmos.
Ensino
2011