Você está na página 1de 14

1

A Viúva Negra da Marvel e sua importância como representatividade


feminina.

Ana Gabriela Felipe Araújo1

Resumo: É muito comum que as personagens femininas no universo de heróis recebam críticas constantes em
relação a sua construção, seja em aparência ou em personalidade, com muitas delas sendo apontadas como
personagens hiper sexualizadas, sem personalidade e elaboradas apenas para suprir um desejo masculino. Essas
críticas ganham força no mundo dos heróis com o avanço das lutas feministas e a ocupação desse espaço,
majoritariamente masculino, pelas mulheres. Nesse sentido, a personagem Natasha Romanoff, a Viúva Negra do
Universo Cinematográfico da Marvel, é alvo de diversas críticas, as quais levantam um questionamento a respeito
de uma aparente dicotomia de uma personagem declarada como feminista utilizar o corpo como “arma” de
manipulação masculina. Dessa forma, a personagem Viúva Negra é apenas um apelo ao desejo masculino ou uma
representação feminista? De que forma a relação da personagem com seu corpo proporciona o empoderamento
feminino?
Palavras-chave: Viúva Negra; Empoderamento; Representatividade.

“As feministas, buscando eliminar do sexo as relações de poder, colocaram-


se contra a própria natureza. Sexo é poder. Identidade é poder. Na cultura
ocidental, não há relações que não sejam de exploração.” (Camille Paglia)

Os super-heróis existem desde a década de 1930 por meio da publicação de Histórias


em Quadrinhos (HQs), rapidamente se tornando populares entre o público masculino.
Apresentando seus personagens extraordinários, com habilidades muito além do que o homem
comum poderia ter, as HQs rapidamente ganharam popularidade, inclusive entre o público
feminino. Com o passar das décadas a figura dos heróis só cresceu, se expandindo para
animações, séries, séries animadas, e live actions. Entretanto, é notável a disparidade entre o
protagonismo feminino e o masculino nas produções desses conteúdos.
Quando as HQs surgiram, na década de 1930, era compreensível que a maioria de
personagens fossem homens, dado que era voltado para o público infanto-juvenil masculino e
seu objetivo era mostrar a figura de um homem poderoso e invencível, associado com o cenário
entre guerras.2 Entretanto, com sua grande popularidade, alcançou o público feminino e alcança
até os dias de hoje, como pronunciou a Ex-presidente de pós-produção e efeitos visuais da
Marvel Studios, uma das maiores produtoras atuais do gênero de super-heróis:

Nosso público é 51% feminino. Nossos filmes, nossos quadrinhos e nossos


personagens são vistos em todas as partes do mundo, não em um setor, não em

1
Ana Gabriela Felipe Araújo: Graduanda do curso de Arquitetura e Urbanismo da UEG – Anápolis.
2
Os super-heróis surgem na década de 30 e ganham força principalmente após a Segunda Guerra Mundial, quando
os “heróis” norte-americanos são convocados para lutar na guerra. Inicialmente, eram produzidas para crianças e,
a partir da década de 60, as produções mais “underground” se popularizaram. (GIONGO, 2016)
2

um país, nem uma província, nem um estado não, não, não. Você não pode ter
o sucesso que o mundo nos deu sem ter uma audiência global. Portanto, incluir
todos é algo que temos que fazer e é algo que considero muito importante que
continue em vigor. Não é você apenas fazer um filme com uma personagem
feminina, um filme com uma personagem afro-americana. Temos que ser
consistentes em representar a nós mesmos e ao nosso público ao longo de nossa
Fase 1, 2, 3, 4 ou 25. Tanto faz [a fase].

Victória Alonso, Ex-presidente de pós produção e efeitos visuais da Marvel


Studios. Disponível em: <https://jamesons.com.br/vice-presidente-da-marvel-
studios-revela-que-51-do-publico-da-marvel-e-feminino/>

A figura feminina sempre esteve presente nas histórias em quadrinhos, no entanto, “as
personagens foram tratadas em segundo plano, com papel sem muita importância para o
desenrolar da história” (GIONGO, 2016). Frequentemente representadas como donzelas em
perigo ou secretárias, a figura feminina estava muito ligada à imagem da “mulher-mãe”, em
algumas ocasiões sendo mostradas também como “mulheres públicas”, se utilizando do aspecto
sexual do corpo feminino. A partir da década de 1940, o cenário da representação feminina
muda e, impulsionado pelos movimentos feministas da primeira onda, surge a primeira heroína
independente da figura masculina, a Mulher Maravilha3. Antes da aparição dessa personagem,
as heroínas femininas se limitavam a ajudantes de outros super-heróis, versões femininas, como
a Supergirl e a Batwoman, ou namoradas (MATHIAS, 2022).
A aparição dessa figura feminina forte e independente foi contra o ideário de
superioridade masculina da época, visto que as mulheres haviam recém conquistado o direito
ao voto e ainda batalhavam pelo direito ao trabalho e educação (MATHIAS, 2022). A Mulher
Maravilha surge em um período muito conturbado para a sociedade como um todo e, além de
ser uma representação feminina muito positiva que valoriza a mulher enquanto independente,
levanta diversas questões que estavam sendo discutidas na época de sua criação, fortalecendo
as ideias do movimento feminista sufragista. Mais adiante, a partir da década de 1960, com a
segunda onda do feminismo, o protagonismo feminino cresce ainda mais nas HQs, com o
surgimento de diversas outras heroínas, fato que só se intensificou nas décadas seguintes. As
feministas da segunda onda (décadas de 1960 e 1970) foram cruciais para a formação de uma
nova imagem da mulher, agora se inserindo e ocupando seu espaço no mundo masculino4, elas
reivindicavam a igualdade (GIONGO, 2016), o que reforçou ainda mais a figura feminina nas

3
A Mulher Maravilha foi criada pelo professor e psicólogo William Moulton Marston em 1941, um grande
apoiador do movimento feminista, que acreditava que os homens deveriam ser subjugados pelas mulheres.
(MATHIAS, 2022).
4
“Foram aquelas mulheres que revolucionaram sua época usando calças compridas e fumando, coisas até então
consideradas essencialmente masculinas.” (GIONGO, 2016)
3

HQs, com as heroínas lutando lado a lado com os heróis, evidenciando que as mulheres eram
tão capazes quanto os homens.
A década de 1990 traz uma grande mudança no movimento feminista, especialmente
um grande desinteresse por parte da sociedade em relação às lutas feministas, visto que as
mulheres já tinham conquistado direito ao voto, estudo e trabalho, insinuando que o objetivo da
igualdade entre os gêneros já havia sido conquistado (MATHIAS, 2022). Durante esse período,
intensificam-se as discussões acerca da construção do gênero dentro da sociedade, refletindo
sobre o papel da mulher, buscando quebrar estereótipos associados à figura feminina a fim de
buscar uma liberdade maior para as mulheres. Nessa época, se levantam questões acerca do que
define o gênero feminino e a sexualidade feminina, considerada um tabu (GIONGO, 2016).
Apesar de todo o avanço das lutas feministas na sociedade, algumas personagens
femininas eram e ainda são representadas de forma muito sexualizada, não só em HQs, mas
também em diversos outros veículos de propaganda nos quais o corpo feminino se mostra
objetificado a fim de satisfazer um desejo do ideário masculino (COSTA, 2018). Essa
representatividade acaba por desvalorizar a figura feminina, muitas vezes desconsiderando o
potencial de intelecto e psicológico das mulheres, colocando-as apenas como um objeto de
consumo. A perpetuação desses padrões de representatividade auxilia na manutenção de
estruturas machistas de dominação e manutenção de uma hierarquia social que reduz a mulher
a um objeto de admiração, além de reforçar a separação entre mulheres “recatadas” e “vadias”
(COSTA, 2018). É inegável também o impacto que a representatividade feminina tem no
desenvolvimento das mulheres, como explicitado por Ana Kerlly Costa:

Os efeitos da Hiper sexualização que alimenta a mídia de insumos de


objetificação do corpo feminino, pode ser percebido nas várias etapas da vida
da mulher; nota-se que a maioria das meninas crescem sem nenhuma reflexão
crítica em relação aos padrões midiáticos, dificultando uma possível saída
desse roteiro unilateral que, na verdade, não foi decidido e nem negociado por
elas, pois vem do mercado e do gênero masculino. (COSTA, 2018, p. 2)

A busca pela quebra dos estereótipos femininos é uma questão discutida até os dias de
hoje, especialmente com a popularização das redes sociais, o que pode ser considerado a quarta
onda do feminismo5 traz um movimento mais inclusivo com todas as mulheres, que busca
entender opressões sofridas por mulheres em todos os âmbitos e se utiliza do alcance das redes
sociais para mobilizar um número significativo de pessoas ao redor do mundo. Essas feministas
lutam constantemente por uma libertação das mulheres, especialmente no âmbito sexual,

5
Diversos autores divergem a respeito da quarta onda do feminismo, sendo que alguns deles consideram que o
feminismo apresenta apenas três. (MATHIAS, 2022)
4

tornando-as livres para fazer suas próprias escolhas, independentemente de quais sejam
(MATHIAS, 2022). Ainda que a hiper sexualização feminina seja um problema real na
sociedade, quando se trata da construção da figura feminina no universo de super heróis, é
importante saber avaliar em que momento o corpo feminino nessas produções é sexualizado
como forma de agrado ao público masculino ou como instrumento de empoderamento
feminino.
Nesse contexto, surge como objeto de análise a personagem da Marvel Studios, Natasha
Romanoff, popularmente conhecida como Viúva Negra. Natalia Alianovna Romanova teve sua
primeira aparição no quadrinho Tales of Suspense Vol. 1 #52, lançado em janeiro de 19646,
como uma agente da KGB cujo objetivo era eliminar um desertor da União Soviética.
Juntamente com um parceiro, Natasha parte para a América e se infiltra nas Indústrias Stark
para realizar sua missão. Apesar de obviamente não possuir a mesma capacidade física de seu
parceiro ela não deixa de ser parte essencial do cumprimento da missão, seduzindo e distraindo
Tony Stark, o Homem de Ferro, para que a missão siga sem interrupções.
Em momento algum a personagem é retratada como frágil ou intelectualmente inferior
aos personagens masculinos, longe disso, Natasha se aproveita desse estereótipo de “mulher
frágil” para sedução e manipulação masculina. Desde sua introdução, inicialmente como
antagonista, ela é uma mulher bonita, sedutora, com uma “beleza de tirar o fôlego”7 e isso não
acontece para que ela seja parte de uma perpetuação de estereótipos prejudiciais femininos, isso
faz parte da construção da personagem. A Viúva Negra é uma mulher sedutora e não só sabe
disso como utiliza sua beleza a seu favor, que enfeitiça os homens com sua sexualidade apenas
para manipulá-los, o que fica bem explícito em suas primeiras aparições nos quadrinhos, nas
quais ela facilmente seduz e engana Tony Stark8. Apesar de sua aparição inicial como vilã, a
Viúva Negra logo se torna aliada dos Vingadores e até cria sua própria equipe em um certo
momento, os Campeões.

6
Disponível em: <https://marvel.fandom.com/wiki/Natalia_Romanova_(Earth-616)>
7
Contracapa da HQ Tales of Suspense Vol. 1 #52, 1964.
8
Em suas duas primeiras aparições, “Madame Natasha” engana Tony Stark não uma, mas duas vezes, sendo que
na segunda vez, em Tales of Suspense Vol. 1 #53, ela só consegue enganá-lo porque ele menospreza as capacidades
dela.
5

Figura 1: Capa da HQ Tales of Suspense com a primeira aparição da Viúva Negra. Nota-se a indicação “Introduzindo a linda
nova ameaça... A Viúva Negra”. Tales of Suspense Vol. 1 (1964). Fonte: <https://readcomiconline.li/Comic/Tales-of-
Suspense-1959/Issue-52?id=35569#4> Acesso em: 07 de junho de 2023.

Figura 2: Trecho da HQ do primeiro encontro entre Tony Stark e a Viúva Negra. Tales of Suspense Vol. 1 #52. Fonte:
<https://readcomiconline.li/Comic/Tales-of-Suspense-1959/Issue-52?id=35569#4> Acesso em: 07 de junho de 2023.

Assim como diversos personagens dos quadrinhos da Marvel, Natasha possui diversas
histórias diferentes a respeito de sua origem, sendo a mais comum que ela nasceu em 1928,
entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial. Sua mãe veio a falecer em um ataque nazista à
Stalingrado e Natasha acabou sendo salva por um soldado russo que a criou e posteriormente
foi mandada para a Sala Vermelha, um programa de treinamento de jovens mulheres para se
tornarem mestres em combate e espionagem9. Além disso, as meninas que participaram do
programa também receberam uma variante do soro de Super Soldado, o mesmo recebido pelo
Capitão América, para melhorar seu desempenho físico e aumentar a expectativa de vida. As
escolhidas pelo programa também passavam por um processo de lavagem cerebral para que se

9
Disponível em: https://cinepop.com.br/viuva-negra-conheca-as-origens-da-personagem-de-scarlett-johansson-
302342/
6

esquecessem do programa e implantando falsas memórias, além de torná-las inférteis, visto que
os comandantes enxergavam a gravidez como uma fraqueza.
No Universo Cinematográfico da Marvel (MCU), a personagem tem uma origem um
pouco diferente. Nascida em 1984, Natalia Alianovna Romanoff foi uma espiã e assassina muito
talentosa que trabalhou para a KGB e posteriormente para a S.H.I.E.L.D. Com os filmes da
Marvel retratando sua vida após se juntar à S.H.I.E.L.D., a Viúva Negra foi um dos membros
fundadores dos Vingadores e mais importantes das três primeiras fases do UCM. Sua primeira
aparição nos filmes da Marvel foi em Homem de Ferro 2 (2010), no qual ela aparece como uma
secretária contratada por Tony Stark que na verdade é uma agente infiltrada da S.H.I.E.L.D. que
foi investigar a saúde de Stark e acaba sendo de grande importância para derrotar o vilão Ivan
Vanko. Obviamente a produção do filme designou um figurino hiper sexualizado para a
personagem, muito justo e com grandes decotes que objetificam sim o corpo feminino e, no
decorrer dos filmes é possível ver que há uma mudança de figurino, com roupas menos
sexualizadas. Isso ocorreu muito por conta das influências da própria atriz Scarlett Johansson,
que batalhou por uma representação mais positiva da personagem, em oposição à sua primeira
aparição, como ela mencionou em entrevista ao Collider:
[...] você revisita Homem de Ferro 2 e, embora seja muito divertido e tenha
ótimos momentos, a personagem é tão sexualizada. [...] Talvez, naquela época,
realmente parecesse um elogio. Sabe o que eu quero dizer? Porque o jeito como
eu pensava era diferente.
Scarlett Johansson, atriz que interpreta a Viúva Negra. Disponível em:
<https://www.omelete.com.br/marvel-cinema/viuva-negra-scarlett-
johansson-hipersexualizacao-heroina-mcu>

Figura 3: Evolução dos trajes da Viúva Negra no UCM. Fonte: <https://www.xn--frumnerd-v3a.com/2020/09/lista-todos-os-


trajes-da-viuva-negra.html>
7

A evolução da representação de Natasha é explicita no decorrer do UCM, mas os trajes


ainda seguem um certo estilo, permitindo uma livre movimentação para ela e ainda exaltando
alguns traços do seu corpo, não perdendo a característica de ser uma mulher sedutora. A Viúva
Negra é uma representação de uma mulher forte e independente, que cuida de si mesma e das
pessoas ao seu redor, luta lado a lado com os grandes heróis e é inegável que ela chegou nesse
posto provando seu valor e não apenas sendo um “rostinho bonito”. As lutas feministas tiveram
e ainda tem muita influência na representatividade feminina, visto que a personagem surge, nos
quadrinhos, em um período no qual as mulheres estavam se impondo no mundo masculino10 e
ela não é menosprezada, sendo uma agente muito respeitada. Nos dias de hoje, o feminismo da
personagem ainda se faz presente, especialmente com o desenvolvimento do UCM e com as
mobilizações feministas a partir do século XXI, discutindo sobre a construção e representação
da personagem, se preocupando não só com desenvolver uma boa personagem, mas também
um bom modelo de representatividade feminina para as gerações de garotas que acompanham
e virão a acompanhar o universo de heróis.
Enquanto feministas, é necessário sim estar atenta às representações femininas e lutar
por uma representatividade mais saudável, que não perpetue estereótipos prejudiciais para a
saúde física e mental das mulheres, como padrões inatingíveis de corpos e modo de agir,
especialmente quando se trata de uma plataforma com um alcance tão grande quanto a Marvel
Studios. No entanto, é importante desenvolver um olhar crítico a respeito do conteúdo que
consumimos quase diariamente e, mais importante, ser capaz de discernir o que é mais relevante
quando levamos em conta a construção de uma personagem como a Viúva Negra. Natasha
Romanoff aparece no UCM pela primeira vez em 2010 e apenas em 2021, na quarta fase do
universo, ganhou seu filme solo, divergindo de seus companheiros de equipe, os Vingadores,

10
As feministas das décadas de 1960 e 1970 que batalharam pelo direito de permanecer no ambiente,
historicamente masculino, mantendo seus empregos e lutando pela independência e autonomia das mulheres.
8

que tiveram seus filmes solo lançados nas primeiras fases, em conjunto com os filmes do grupo.
Abadi (2019) ressalta a disparidade entre a produção de filmes de heróis e heroínas no cinema:

É inegável dizer que o Universo Cinematográfico Marvel reinventou a


produção de filmes de super-heróis nos últimos tempos. Neste ano, estreou o
primeiro filme de super-herói liderado por uma mulher do estúdio — até então,
outros 20 filmes foram lançados em 11 anos. Isso não acontece só com
a Marvel Studios: hoje, no geral, são contabilizados somente cinco filmes de
super-heroínas em 53 anos do gênero. (ABADI, 2019. Disponível em: <
https://feededigno.com.br/filmes/super-heroinas-5-filmes-em-50-anos-e-a-
representatividade-boicotada-nos-cinemas/>)

Considerando o histórico de produções da Marvel, o filme da Viúva Negra é considerado


um avanço e representa o sucesso das lutas feministas contemporâneas em questionar o que foi
e está sendo produzido e produzir conteúdos novos que se conectam com a audiência. Dessa
forma, assim como os heróis foram para os meninos no período de guerras, as heroínas se
tornam um referencial para todas as meninas buscarem descobrir suas identidades com modelos
fortes e empoderados de mulheres. Um filme que mostre não só a heroína Viúva Negra, mas
também a mulher Natasha Romanoff é muito importante para criar uma conexão com a
audiência e mostrar também o lado mais humano da personagem, aproximando-a da mulher
comum, que não acontece com a personagem Capitã Marvel11, por exemplo. O filme Viúva
Negra não só conta uma parte importante da vida de Natasha, com sua formação na Sala
Vermelha e suas relações com sua família, como também foi um sucesso, recebendo 79% de
avaliação dos críticos e 91% de avaliação do público12, o que mostra que as pessoas estão
interessadas nesse conteúdo e gostam dessa representação. Entretanto, a personagem não deixa
de ser alvo de críticas, principalmente em relação a sua aparência e atuação dentro do UCM, de
acordo com Souza,

Por anos, a Viúva foi apenas um modelo de sexualização e sensualidade nos


filmes da Marvel, mas agora que ela se foi, é fácil falar que ela “merecia mais”.
Além disso, todas as mulheres que participaram daquela cena em Ultimato
merecem destaque, inclusive a Capitã Marvel. Quando levamos em conta o
pouco destaque que elas tiveram ao longo dos anos, devemos estimular mais
aparições e não simplesmente dizer que uma merece mais que a outra.
(SOUZA, 2019. Disponível em: <https://cromossomonerd.com.br/o-amor-
pela-viuva-negra-e-sincero-ou-so-uma-desculpa-para-odiar-a-capita-
marvel/>)

11
O filme da Capitã Marvel, apesar de ter recebido 79% de avaliação dos críticos, atingiu apenas 45% da
audiência do público. Disponível em: <https://www.rottentomatoes.com/m/captain_marvel>
12
Disponível em: <https://www.rottentomatoes.com/m/black_widow_2021>
9

É pertinente apontar que a Viúva Negra do UCM é um apenas um apelo ao desejo


masculino? Costa (2018) diz que a “Hiper sexualização dos corpos femininos está tão enraizada
na sociedade que, consequentemente, não construímos o hábito de refletir e/ou questionar
atitudes em que o corpo da mulher é estampado nas propagandas”, tornando-se necessário olhar
para a naturalidade com a qual a cultura machista atual objetifica o corpo feminino. Durante os
anos 2000 e início de 2010, tenho claras memórias de propagandas que passavam nos canais da
TV aberta que apresentavam um corpo feminino extremamente sexualizado, vinculado à
diversos produtos, mas principalmente produtos que naquela época eram voltados ao público
masculino13, como cervejas, claramente vendendo a imagem da mulher como um produto. Em
suas primeiras aparições no UCM, a personagem Viúva Negra é extremamente sexualizada e,
com as críticas e mobilização social, hoje em dia, ela tem uma representação bem menos
sexualizada. Nesse ponto, é importante refletir. Em que momento a sensualidade de Natasha
deixa de ser empoderamento e passa a ser uma hiper sexualização feminina?
A sociedade machista apresenta uma grande dicotomia, colocada em xeque pelos
movimentos feministas, quando se apossa do corpo feminino como objeto de desejo e
propaganda ao mesmo tempo que critica fortemente as mulheres que tomam posse de sua
sensualidade como forma de empoderamento. Camille Paglia, uma das principais teóricas do
“pós-feminismo”, acredita que “a igualdade sexual perante a lei não pode ser tão facilmente
transferida para nossas vidas emocionais” (PAGLIA, 1994) e incentiva que as mulheres se
desvinculem da imagem de “boa moça”, ressaltando que as lutas feministas apenas tiraram as
mulheres do ambiente doméstico e colocaram no ambiente do escritório, se mantendo presas
em outra “prisão burguesa”. Em seu livro Personas sexuais: Arte e decadência de Nefertite a
Emily Dickinson (1992), Paglia critica as posturas feministas que “supersimplificam
grosseiramente o problema do sexo quando o reduzem a uma questão de convenção social: é só
reordenar a sociedade, eliminar a desigualdade social, purificar os papéis sexuais, que reinarão
a felicidade e a harmonia”, o que deixa implícito que o principal problema feminino é a
sociedade, reforçando a natureza pura teorizada por Rousseau. Será mesmo que os diversos
problemas enfrentados hoje em dia pelas mulheres, as violências que elas sofrem, são apenas
frutos de uma sociedade corrupta? Paglia (1992) diz que “a agressão vem da natureza” e que
“estupro e sadismo têm estado presentes em toda a história e, em certos momentos, em todas as
culturas”, o que mostra que a sociedade não é a “vilã” e sim uma ferramenta para conter a
barbaridade da natureza.

13
Vale ressaltar que o Brasil ainda é um país muito vinculado à ideia de família tradicional e critica muito a
imagem da mulher “vadia”.
10

Quando levamos em conta uma personagem como a Viúva Negra, a sensualidade que a
personagem exprime é prejudicial à imagem feminina? Utilizar de um vestuário e linguagem
corporais considerados sensuais é uma imagem ruim para as mulheres e homens que consomem
os conteúdos da Marvel? Camille Paglia (1992) afirma que “Sexo é poder. Identidade é poder”
e que a liberdade sexual que as feministas atuais pregam é uma mera ilusão, pois “a sociedade
é nossa frágil barreira contra a natureza”, ou seja, o momento do sexo é o momento no qual o
homem entra em contato com essa natureza cheia de violência e desejo, e ela é tentadora. Por
esse motivo, o sexo está sempre cercado de tabus e é dentro dessa natureza que a mulher deve
encontrar poder, e o que as feministas não consideram é que os princípios sociais de igualdade
e liberdade sexual são ilusórios, pois as convenções sociais não se aplicam nesse contato entre
o homem e a natureza, onde há sim dominação e exploração. Nesse sentido, a personagem
Viúva Negra é muito consciente a respeito da influência que o corpo feminino tem sobre os
homens e, sendo muito inteligente, ágil e habilidosa, é capaz de utilizar esse elemento a seu
favor, seduzindo os homens e os colocando em uma posição de vulnerabilidade, pois, como
explicitado por Paglia (1992):

Quando o prestígio do Estado e da religião anda baixo, os homens são livres,


mas acham a liberdade intolerável e buscam novos meios de escravizar-se, por
meio das drogas ou da depressão. [...] O romantismo sempre se transforma em
decadência. A natureza é um duro capataz. É o martelo e a bigorna, esmagando
a individualidade. (PAGLIA, 1992, p.15)

Quando Natasha faz sua primeira aparição no MCU em Homem de Ferro 2, ela estava
em uma missão secreta para cuidar de Tony Stark e, para isso, se disfarça e é contratada por
Stark como secretária. Nesse momento, ela usa de sua sensualidade e beleza para seduzir Tony
Stark e garantir que ele tivesse confiança de mantê-la por perto, pois, conhecendo seu histórico
com mulheres, ela sabe que essa técnica é efetiva. Tradicionalmente, a sociedade tende a um
tabu muito grande a respeito do corpo feminino e, de acordo Natália Costa (2015), a ideia de
que ele é amedrontador e deve ser coberto cria um imaginário masculino que, quando busca
saber sobre o prazer, acaba caindo na hiper sexualização e marginalização desses corpos. O fato
da aparição da Viúva Negra em um filme de 2010 ser diferente de sua aparição em um filme de
2021 reflete justamente os esforços dos movimentos feministas em uma representação mais
abrangente e real das mulheres.
11

Figura 4: Aparições da Viúva Negra em Homem de Ferro 2. Fonte:


<https://marvelcinematicuniverse.fandom.com/wiki/Black_Widow>

Juntamente com uma mudança nas relações sociais, política, jurista, médica e
a “exposição” das mulheres, o século XXI traz uma nova percepção sobre o
corpo, um olhar de certa forma mais brando quando se trata do exercício do
poder sobre esse corpo, não só individual, mas social também, e que
ressignifica a experiência das mulheres, sua sexualidade e principalmente as
fazem defrontar com uma outra forma de coerção: a imagem. A imagem do
corpo, refletida não só no espelho, mas nas revistas, jornais, e com a explosão
da internet no início do século XXI, nas redes e mídias sociais. (COSTA, 2015,
p.6)

Quando refletimos sobre que representações são “boas” ou “ruins” sobre e para as
mulheres, é preciso pensar em uma mulher real, que tem capacidade, que tem intelecto, que é
habilidosa e, sobretudo, independente, mas que também tem suas falhas e fraquezas, ambições
e desejos. A felicidade da mulher é alcançada muito além do que as feministas atuais acreditam,
pois tentam aplicar princípios da sociedade na natureza. Toda a construção da Cultura cria um
ambiente no qual “o homem civilizado esconde de si mesmo a extensão de sua subordinação à
natureza” (PAGLIA, 1992) e, em diversas sociedades, a mulher foi e é reprimida, mas, com as
mobilizações feministas que perduram até o dia de hoje, elas estão ocupando seu lugar. Mas é
impossível desassociar a natureza das relações que pautam os corpos masculinos e femininos.
Em seu livro Vampes e Vadias: (1994), Camille Paglia fala sobre a falta da persona sexual no
feminismo contemporâneo e como ele deixa de lado o “antigo poder vampírico” que as
12

mulheres exercem pelos homens e, visto que, “na cultura ocidental, não há relações que não
sejam de exploração” (PAGLIA, 1992) e, da mesma forma que os homens muitas vezes se
aproveitam de possuir maior tamanho ou força física, por que as mulheres não podem se utilizar
do desejo como ferramenta de dominação?
Costa (2018) coloca o empoderamento feminino como “tudo que qualquer pessoa (além
dela própria) pode fazer para fortalecer o feminino e desenvolver a igualdade de gênero” e
Natasha Romanoff não só se utiliza de seu treinamento intensivo, habilidade e intelecto, como
também se utiliza de sua aparência para conseguir o que quer. E isso não deveria ser ruim. A
Viúva Negra é, como muitas outras mulheres do UCM, uma mulher real. Ela enfrenta seus
problemas, se desenvolve enquanto personagem, luta pelo que acredita, e isso, de forma alguma
é apagado da personagem por conta de suas roupas coladas ou pelo uso de decote. A sociedade
se desenvolveu e segue se desenvolvendo, assim como as relações entre homens e mulheres,
buscando abrigo da natureza brutal e impiedosa. Natasha mostrou diversas vezes em diversas
ocasiões que habilidade e inteligência podem ser muito mais úteis que poder bruto14 e também
situações em que sua beleza e aparente fragilidade feminina também são muito úteis.

Figura 5: Cenas de luta da Viúva Negra em diversos filmes da Marvel. Fonte:


<https://www.cinemablend.com/news/2549121/black-widows-best-mcu-fight-scenes-so-far-ranked>

14
Em Vingadores: Guerra Infinita quando a Feiticeira Escarlate e o Visão estão lutando contra algumas tropas
enviadas por Thanos para buscar as Jóias do Infinito e quase sendo derrotados e só derrotam os inimigos quando
a Viúva Negra, o Capitão América e o Falcão aparecem para ajudar.
13

Temos que nos perguntar se, enquanto feministas, devemos olhar com maus olhos a
construção de uma personagem como a Viúva Negra ou esperar que no mundo tenhamos mais
“Natashas”, fortes, independentes e seguras de si, que são capazes de entender a dimensão da
influência que o corpo feminino tem e utilizar isso a seu favor em busca de encontrar felicidade
enquanto mulher. Quando Scarlett Johanson diz que a Viúva Negra é uma personagem
feminista15, não é sobre mulheres colocarem uma roupa justa ou decotada e se entregar ao apelo
masculino. É sobre ser empoderada, saber o seu valor, entender seus pontos fortes e fracos e
usar isso a seu favor. Como o próprio filme solo da personagem, lançado em 2021, é sobre
mulheres se ajudarem e serem independentes e, sobretudo, felizes. Deveríamos olhar com
tristeza para uma personagem tão importante para o Universo Marvel receber um filme só sobre
ela dez anos após sua estreia nas telas. Devemos pegar essa tristeza e transformar em luta, para
que as mulheres continuem ocupando lugar de destaque na sociedade e batalhando por sua
felicidade e bem estar. Precisamos lutar por mais representatividade. Por mais mulheres fortes
e empoderadas. Por mais liberdade e felicidade. E, sobretudo, por mais Natashas.

15
Disponível em: < https://legadodamarvel.com.br/scarlett-johansson-diz-que-viuva-negra-se-baseia-em-
movimento-feminista/>
14

Referências Bibliográficas
ABADI, Dyessica. Super heroínas: 5 filmes em 50 anos e a representatividade boicotada nos
cinemas. In: Feededigno. 2019. Disponível em: <https://feededigno.com.br/filmes/super-
heroinas-5-filmes-em-50-anos-e-a-representatividade-boicotada-nos-cinemas/>
COSTA, Ana Kerly Souza da. Hipersexualização frente ao empoderamento: a objetificação
do corpo feminino evidenciada. VII Seminário Corpo, Gênero e Sexualidade. Universidade
Federal do Rio Grande. Rio Grande do Sul, 2018;
COSTA, Natália Cristine. Os limites social e culturalmente aceitáveis sobre a exposição do
corpo e sexualidade feminina no Brasil do século XXI. XXVIII Simpósio Nacional de
História. Florianópolis, Santa Catarina, 2015. Disponível em:
<http://www.snh2015.anpuh.org/resources/anais/39/1439862300_ARQUIVO_Oslimitessocial
eculturalmenteaceitaveis-NataliaCosta.pdf>
GIONGO, Fernanda Aparecida. O feminino nas histórias em quadrinhos: Análise sobre a
HQ Aline. Trabalho de Conclusão de Curso, Licenciatura em História, Universidade Federal
da Fronteira do Sul. Chapecó, Santa Catarina, 2016.
MATHIAS, Lucas De Souza. Mulher-maravilha, ícone feminista: uma análise dos
imaginários sociodiscursivos. 2022. 205 f. Dissertação (Mestrado em Estudos de Linguagem)
- Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem, Instituto de Letras, Universidade
Federal Fluminense, Niterói, 2022.
PAGLIA, Camille. Personas Sexuais – Arte e Decadência de Nefertite a Emily Dickinson.
CIA. Das Letras: São Paulo, 1992.
PAGLIA, Camille. Vamps & Tramps: New Essays. Vintage Books: Nova York, 1994.
Disponível em: <
https://archive.org/details/VampsTrampsNewEssays1994ByCamilleAnnaPaglia/mode/1up?vi
ew=theater>
RIBEIRO, Ericka Lourenço da Silva. Dilemas de representatividade: estereótipos de gênero
no Universo Cinematográfico Marvel. Orientadora: Luanda Dias Schramm. Monografia
(Graduação em Comunicação Social. Habilitação em Publicidade e Propaganda) — Escola de
Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2021.
SOUZA, Bruna Milany; BARROS, Giovana Corrêa de. A Hipersexualização da Personagem
Feminina na Indústria Cinematográfica: Histórias em Quadrinhos que Viraram Filmes. In:
Medium.com. 2020. Disponível em: <https://medium.com/@brunamilany/a-
hipersexualização-da-personagem-feminina-na-indústria-cinematográfica-histórias-em-
quadrinhos-e8b7996aaaf7>
SOUZA, Guilherme. O amor pela Viúva Negra é sincero ou só uma desculpa para odiar a Capitã
Marvel. In: Cromossomo Nerd. 2019. Disponível em: <https://cromossomonerd.com.br/o-
amor-pela-viuva-negra-e-sincero-ou-so-uma-desculpa-para-odiar-a-capita-marvel/>

Você também pode gostar