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siaram

Poços de Maré sentir e interpretar


o ambiente dos Açores

http://siaram.azores.gov.pt

A
relação que hoje temos com a água utilizadores para que a água não apodre­ passado – essa solução foi a construção de
é completamente diferente daquela cesse devido à decomposição da matéria poços de maré nas zonas costeiras da ilha.
que os nossos antepassados açoria­ orgânica. Nos nossos dias persistem mais de meia
nos experimentaram. E localizando-nos Um facto curioso, é o facto de na centena de exemplares dispersos pela costa
no tempo, este facto não está tão distante Prainha, haver a figura do “juiz da ribeira”, de toda a ilha do Pico, fora aqueles que
de nós como possa parecer – a título de que era um indivíduo responsável pela já foram soterrados e desactivados, cujo
exemplo na ilha do Pico, só a partir dos limpeza e manutenção da ordem no acesso número se desconhece. Neste aspecto, o
anos 80 (século XX) é que a maioria das à água da ribeira (por exemplo, controlava Pico será a ilha dos Açores onde existem
freguesias ficaram abastecidas pela rede de que o despejo de águas de lavagem acon- poços de maré em maior quantidade.
abastecimento público de água. E mesmo tecesse em zonas em que essas águas não Tal como ir buscar lenha, ir buscar
os tanques e cisternas que hoje são pouco voltassem novamente à ribeira acabando água era uma rotina diária dos nossos
ou nada utilizados, e que proliferam pela por contaminar as águas retidas em outros antepassados: aqueles que viviam mais
paisagem edificada na ilha, são construções poços a jusante). perto, transportavam-na em gamotes ou
relativamente recentes, cuja construção não Comparativamente às outras ilhas deste em potes à cabeça percorrendo quilóme­
será mais antiga do que há cerca de 150 arquipélago, o Pico é uma ilha vulcânica tros diários, enquanto que aqueles que
anos atrás. jovem, sendo por isso que o seu solo é roto, viviam mais longe e tinham meios para isso,
Alguma da água provinha de lagoas e e as ribeiras não eram nem são permanen- transportavam-na em pipas nos carros de
pauis, e também das ribeiras que nos seus tes, havendo também poucas nascentes bois. Era usual formarem-se grandes filas de
leitos formavam poços, poços estes que com caudais suficientemente grandes para gente à espera da sua vez para tirar água:
eram periodicamente limpos pelos seus abastecer a população com fartura. indubitavelmente, este era um local co-
Perante a escassez de água nesta ilha, os munitário e de grande importância social,
Picarotos adoptaram uma solução que lhes embora muitos destes poços pertencessem
permitia aceder a água para uso geral, água a privados.
essa que sendo na sua generalidade salobra, E as mulheres transportavam a roupa
era o melhor que se podia ter durante suja de casa para a lavarem nas pias que
os séculos de povoamento até ao século existiam junto dos poços de maré. Salvo

Texto Mónica Goulart – Arquiteta


Gabinete Técnico da Paisagem Protegida
da Vinha do Pico
Fotos Paulo Henrique Silva/SRAM

Actualizado em Dezembro 2010 RECURSOS HÍDRICOS


siaram
Poços de Maré sentir e interpretar
o ambiente dos Açores

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algumas excepções, a quantidade de roupa Na Vila das Lajes, também acontece os materiais provenientes da escavação. Ao
que cada pessoa tinha era muito reduzida, outra situação única na ilha: o facto da cota nível da superfície do terreno, era construí-
resumindo-se ao traje do domingo e a dois máxima do terreno onde está implantada da a boca do poço, que era constituída por
ou três trajes de trabalho – roupa de “tran- a parte central da vila ser inferior a 10 grandes lajes de pedra rigorosamente talha­
siar”. E a roupa de trabalho que era vestida metros, permitiu que em muitas proprie- da, engatadas entre si com gatos de ferro,
no início da semana servia para vestir a dades privadas fossem escavados poços de assentadas ao alto segundo um rectângulo
semana toda! maré para uso exclusivo privado, havendo ou quadrado, com altura suficiente para
A higiene diária das pessoas era muito situações em que os próprios poços de maré que ninguém caísse para o interior do poço.
diferente da que praticamos: o banho geral desembocavam no interior dos próprios A secção e dimensão da boca do poço é
acontecia só uma vez por semana, havendo edifícios. bastante variável, rondando no entanto
relatos de haverem pessoas que só toma- Conhece-se muito pouco sobre os uma área de cerca de 1m².
vam banho geral umas poucas vezes no métodos de construção dos poços de maré. A sua implantação está localizada em
ano. Diariamente, lavava-se a cara e os pés Todavia, perante a proliferação de poços de cotas de terreno que poderão ir desde os 4
(porque a generalidade das pessoas anda- maré que se encontram no Ilha do Pico, e aos 20 metros de elevação relativamente ao
vam descalças) e pouco mais, começando tendo em conta a sua localização, sujeito- nível médio das águas do mar. E outro facto
pelos mais novos que se lavavam primeiro me a alegar que o local era escolhido de característico é o seguinte: quanto mais
na água limpa, até aos mais velhos que se acordo com o enquadramento de um deter- profundo é o poço, mais frio é o ar que sai
lavam na água em que todos os outros já se minado aglomerado urbano, uma determi- do seu interior.
haviam lavado. nada via, uma determinada propriedade Nos nossos dias, é difícil imaginar o
Na sua generalidade, em casa a água ou determinado edifício, verificando-se que quão difícil foi a construção destes poços.
era depositada em talhões de barro, e o seu os nossos antepassados pareciam confiar Contudo, as necessidades de outrora até
uso era muito racionado, e racional: água que em qualquer local onde escavassem nos fazem parecer hoje que tudo aquilo foi
potável era só para beber e cozinhar, e sem- um buraco profundo iriam encontrar água: fácil e simples de fazer. Mas se pensarmos
pre que possível, provinha das poucas fontes a análise sobre a localização dos poços de um pouco mais, e tivermos em conta que
de água doce existentes na ilha. maré existentes, levam a esta conclusão. muitos destes poços ultrapassam largamente
Mesmo assim, também é um facto que Contudo, a determinação do local era sem uma dezena de metros de profundidade, e
a própria água salgada servia para fazer dúvida, um factor determinante. Primeiro que o solo onde são escavados é rochoso,
muita coisa – pura ou destemperada com era necessário procurar indícios de escor- composto na sua maioria por lajes de
água doce - era utilizada para cozinhar, rências de água doce nas zonas costeiras: basalto que tiveram que ser partidas com
nomeadamente para cozer batatas doces e através da observação de manchas espraia- ferramentas manuais e à força de braços, aí
inhames. A água salgada também era uti- das no mar junto à costa em dias de mar vergamo-nos perante a força, determinação
lizada para a cozedura dos vimes necessári- muito manso e sem vento, ou através da e capacidade de sobrevivência dos nossos
os para a construção de cestos, e para a temperatura da água do mar junto à costa, antepassados.
lavagem dos próprios cestos, quer após a e por intermédio­de vestígios em fendas de Aquilo que fazemos hoje com a água,
sua construção, quer após as vindimas. rochas da costa. Depois, tendo em conta demonstra que não temos a mais pequena
A ponta Este da ilha é onde se encon- presumíveis alinhamentos e suposições noção da preciosidade deste bem.
tram menor número de poços de maré, sobre o local ideal, começava-se a abrir um
não havendo mesmo registo de ter havido grande buraco, retirando a pedra existente,
algum, especificamente nas freguesias da e partindo lajes de rocha até finalmente
Ribeirinha e Piedade, onde a população se encontrar a água. Depois, começavam-se a
abastecia de água em nascentes que jorra- construir as paredes do poço – que podiam
vam junto à costa, e no Paul da Ribeirinha ser de forma circular, rectangular ou qua­
– que também abastecia a população da drangular, entulhando o grande buraco em
Calheta do Nesquim. torno das paredes (pelo lado exterior) com Texto e ilustração Mónica Goulart
Arquiteta – Gabinete Técnico da Paisagem
Protegida da Vinha do Pico
Fotos Paulo Henrique Silva/SRAM
Actualizado em Dezembro 2010 RECURSOS HÍDRICOS

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