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C oleção

ANTROPOLOGIA

2
Orientação de:
R o b e rto A u g u s to da M a tta

e
Luiz de C a s tro F a r ia

FICHA CATALOGRAFICA
( Preparada pelo Centro de Cataloçaçáona-fonte do
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, GB)

Radclilfe-Brown, Alfred Beginald, 1881-


R12e Estrutura e função na sociedade primitiva; trad.
de Nathanael C. Caixeiro. Petrópolls, Vozes, 1973.
272p. (Antropologia, 2).
Bibliografia.
1. Antropologia social. I. Titulo. II. Série.
O
73-0055 CDD-301.2
ESTRUTURA E FUNÇÃO
NA SOCIEDADE
PRIMITIVA

A. R. RADCLIFFE-BROW N
Professor Emérito
da Universidade de Oxford

Prefácio dos Professores:


E. E. Evans-Pritchard
Professor de Antropologia Social
na Universidade de Oxford

Fred Eggan
Professor de Antropologia
na Universidade de Chicago

Tradução de
Nathanael C. Caixeiro

P e tr ó p o lis
EDITORA VOZES LTD A.
0° 1973
O ♦
0 m useu r

5 «BUOTECA ^
a * q . h is t. •
Introdução

T oda a m a té r ia aqui r e im p r e s s a é de c ir c u n s tâ n c ia ,
no mais pleno sentido do termo; cada um dos ensaios
foi escrito para circunstâncias especiais. Apesar disto,
conservam certo grau de unidade visto que foram ela­
borados de determinado ponto de vista teórico.
Entendemos por teoria um esquema de interpretação
aplicável, ou supostamente aplicável à compreensão de
fenômenos de determinada espécie. Uma teoria consiste
de um conjunto de conceitos analíticos, que devem ser
claramente definidos em relação com a realidade con­
creta e conservar uma mútua conexão lógica. Propo­
nho-me, portanto, a dar definições de certos conceitos
que emprego para fins de análise dos fenômenos so­
ciais, à guisa de introdução a estes ensaios diversos.
Deve-se ter em mente que poucas vezes concordam en­
tre si os antropólogos quanto a conceitos e expressões
que empregam, de modo que esta Introdução e os es­
critos que se seguem devem ser considerados como ex­
posição de uma teoria particular, e não teoria aceita de
modo geral.

HISTÓRIA E TEORIA

A diferença entre o estudo histórico das instituições so­


ciais e o estudo teórico pode ser facilmente percebida,
comparando-se a história econômica e a economia teó-

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rica, ou a história do direito com a jurisprudência teó­
rica. Na antropologia, porém, sempre houve e persiste
ainda muita confusão através de discussões em que ter­
mos icomo «história», «ciência» e «teoria» são empre­
gados pelos contendores nos mais diferentes sentidos.
Tais confusões poderiam ser evitadas em considerável
grau pelo emprego de termos aceitos de lógica e meto­
dologia e pela diferenciação entre pesquisas idiográficas
e nomotéticas.
Numa pesquisa idiográfica o propósito é estabelecer
como admissíveis determinadas proposições ou certos
enunciados factuais. Uma pesquisa namotética, pelo con­
trário, tem por escopo chegar a proposições gerais ad­
missíveis. Definimos a natureza de uma pesquisa pelo
tipo de conclusões a que se propõe.
A história, como de modo geral é entendida, é o es­
tudo dos registros e monumentos com o fito de pro­
porcionar conhecimento sobre as condições e fatos do
passado, inclusive as investigações relacionadas com o
passado mais recente. E’ evidente que a história con­
siste sobretudo de pesquisas idiográficas. No século pas­
sado houve uma polêmica, a famosa Methodenstreit,
quanto a se os historiadores deviam aceitar considera­
ções teóricas em seu trabalho ou lidar com generaliza­
ções. Não poucos historiadores aceitaram o parecer de
que as pesquisas nomotéticas não deviam fazer parte
dos estudos históricos, que deviam restringir-se a nos
dizer o que aconteceu e como aconteceu. Pesquisas teó­
ricas ou nomotéticas deveriam ficar a cargo da socio­
logia. Mas historiadores há que pensam poder, e mesmo
dever, incluir interpretações teóricas em seu relato do
passado. A controvérsia nesta questão, bem como na re­
lação entre história e sociologia, persiste ainda, decor­
ridos sessenta anos. Há, sem dúvida, escritos de cer­
tos historiadores que devem ser reconhecidos não apenas
como relatos idiográficos dos fatos do passado, mas co­
mo contendo interpretações teóricas (nomotéticas) da­
queles fatos. A tradição nos estudos históricos france­
ses de Fustel de Coulanges e seus seguidores, tais como
Gustave Glotz, ilustra este tipo de combinação. Alguns

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escritores modernos a designam por história sociológica
ou sociologia histórica.
Na antropologia, entendendo por isto o estudo dos
chamados povos primitivos ou atrasados, o termo etno­
grafia aplica-se ao que é especificamente um modo de
pesquisa idiográfica, cujo objetivo é dar explicação acei­
tável desses povos e sua vida social. A_jetnografia difere
da^ história pelo fato de que o etnógrafo adquire conhe­
cimento, ou pelo menos parte fundamental dele, a par­
tir da observação ou contato diretos com o povo sobre
o qual escreve, e não, como o historiador, a partir de
"registros escritos. A arqueologia pré-histórica, que é ou­
tro ramo da antropologia, é estudo nitidamente idio-
gráfico, cujo escopo é o de nos proporcionar conheci­
mento factual sobre o passado pré-histórico.
O estudo teórico das instituições sociais em geral é
comumente mencionado como sociologia, mas como este
nome pode ser amplamente empregado referindo-se a
muitas espécies diferentes de escritos sobre a sociedade,
podemos falar mais especificamente de sociologia teórica
ou comparada. Quando Frazer deu sua Aula Inaugural
como primeiro professor de Antropologia Social, em
1908, definiu antropologia social como o ramo da socio­
logia que trata das sociedades primitivas.
Certas confusões entre os antropólogos resultam do
fato de não saberem distinguir entre elucidação histórica
e compreensão teórica das instituições. Se indagamos
o porquê da existência de certas instituições em determi­
nada sociedade, a resposta adequada será um relato his­
tórico quanto a suas origens. Para explicar por que os
Estados Unidos têm uma constituição política com Pre­
sidente, duas Casas do Congresso, Departamento de
Estado, Corte Suprema, recorremos á história da Amé­
rica do Norte. Trata-se de elucidação histórica no sen­
tido próprio do termo. A existência de certa instituição 7
é, portanto, explicada pela referência a uma seqüência \
complexa de acontecimentos que constituem uma cadeia
causal de que ela é conseqüência.
A aceitação da elucidação histórica depende da pleni­
tude e idoneidade da fonte histórica. Nas sociedades

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primitivas estudadas pela antropologia social não há
quaisquer registros históricos. Não temos, por exemplo,
conhecimento de espécie alguma quanto à evolução das
instituições sociais dos aborígines australianos. Os an­
tropólogos, supondo ser seu estudo uma espécie de es­
tudo histórico, recorrem a conjectura e imaginação, e
inventam explicações «pseudo-históricas» ou «pseudo-
causais». Temos tido, por exemplo, inúmeros relatos
pseudo-históricos e as vezes contraditórios quanto à ori­
gem e evolução das instituições totêmicas dos aborígines
australianos. Nos trabalhos constantes deste volume men­
cionamos algumas dessas especulações pseudo-históricas.
O parecer que mantemos aqui é que tais especulações
são não apenas destituídas de valor, mas ainda pior
que isto. Isto não implica de modo algum a rejeição da
elucidação histórica, muito pelo contrário.
A sociologia comparada, da qual a antropologia-so­
cial é ramo, é concebida aqui como estudo teórico ou
nomotético cujo objetivo é proporcionar generalizações
admissíveis. A compreensão teórica de determinada ins­
tituição é sua interpretação à luz de tais generalizações.

PROCESSO SOCIAL

Ao pretendermos formular uma teoria sistemática da so­


ciologia comparada, a primeira pergunta que surge é
esta: qual.a realidade fenomênica concreta e observável
pela qual a teoria deve interessar-se. Alguns antropólo­
gos diriam que a realidade consiste de «sociedades» con­
cebidas, nym sentido ou noutro, como entidades reais
distintas. Outros, porém, descrevem a realidade a ser
estudada como realidade feita de «culturas», em que
cada qual é, de novo, concebida como uma espécie de
entidade distinta. Outros ainda parecem ver a questão
na relação com ambos os tipos de entidades, «socieda­
des» e «culturas», de modo que a relação entre uma
outra apresenta então um problema.
Meu ponto de vista pessoal é que a realidade con­
creta que o antropólogo social está interessado em ob-

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servar, descrever, comparar e classificar não é uma
"espécie de entidade, mas um processo, o processo da
vídásocial. A unidade da investigação é a vida social
de alguma região determinada da terra, durante certo
período de tempo. O processo em si mesmo consiste nu­
ma enorme multidão de ações e interações de seres
humanos, agindo como indivíduos em combinação ou
grupos. Em meio à diversidade dos fatos particulares
existem regularidades que possibilitam demonstrar e des­
crever certos aspectos gerais da vida social de uma re­
gião escolhida. O levantamento desses aspectos gerais
significativos do processo de vida social constitui des­
crição do que pode ser chamado forma de vida social.
Minha concepção de antropologia social constitui estudo-'
teórico comparado das formas de vida social dos povos (
primitivos. ^
A forma de vida social de certo conjunto de seres
humanos pode permanecer aproximadamente a mesma
por dado período. Mas durante determinado tempo so­
fre ela transformações ou modificações. Por essa razão,
embora possamos considerar os fatos da vida social co­
mo constitutivos de um processo, há além disso o pro­
cesso de mudança na forma de vida social. Numa des­
crição sincrônica, demos um apanhado de uma forma
de vida social tal como existe em determinado tempo,
abstraindo tanto quanto possível das transformações que
possam estar ocorrendo em suas linhas essenciais. Uma
visão diacrônica, por outro lado, há de registrar tais
mudanças através de um período. Na sociologia com­
parada temos que tratar teoricamente da continuidade
das formas de vida social e das transformações que ne­
la se dão.

CULTURA

Os antropólogos empregam a palavra «cultura» com sen­


tidos diferentes. Parece-me que alguns a empregam como
equivalente ao que designo por forma de vida social.
No sentido corrente na «cultura» inglesa, que é mais
ou menos a idéia de cultivo, refere-se a um processo,

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e podemos defini-lo como o meio pelo qual uma pes­
soa adquire conhecimento, especialidade, idéias, crenças,
gostos e sentimentos, mediante contato com outras pes-
^oaá, ou pelo trato com outras coisas, tais como livros
ou obras de arte. Em dada sociedade podemos discernir
processos de tradição cultural, empregando a palavra
tradição no sentido literal de herdar ou legar. A com­
preensão e emprego da linguagem transmitem-se por um
processo de tradição cultural neste sentido. Graças a
ela um inglês aprende a compreender e empregar a lín­
gua inglesa, mas em alguns setores da sociedade pode
vir também a aprender latim, ou grego, francês ou o
dialeto celta dos galeses. Nas complexas sociedades mo­
dernas há grande número de distintas tradições cultu­
rais. Graças a uma delas o indivíduo pode vir a ser
médico ou cirurgião, ou aprender engenharia ou arqui­
tetura, e desempenhar essas profissões. Nas formas de
vida social mais elementares, o número de tradições cul­
turais distintas pode reduzir-se a dois, uma tradição para
os homens e outra para as mulheres.
Se tratamos a realidade social que estamos investi­
gando, não como entidade, mas como processo, neste
caso cultura e tradição cultural são nomes para deter­
minados aspectos identificáveis daquele processo, mas
não, evidentemente, de todo o processo. Os termos são
modos convenientes para designar certos aspectos da
vida social humana. E’ em razão da existência de cul­
tura e tradições culturais que a vida social humana di­
fere muito marcantemente da vida social de outras, es­
pécies animais. A transmissão dos modos aprendidos de
pensar, sentir e atuar constitui o processo cultural, que
é aspecto específico da vida social humana. E’, eviden­
temente, parte daquele processo de interação entre pes­
soas, aqui definido como o processo social, concebido
como a realidade social. Sendo a continuidade e mu­
dança nas formas de vida social os* temas de investigação
da sociologia comparada, a continuidade das tradições
culturais e a das mudanças naquelas tradições contam-se
entre as coisas que devem ser tomadas em consideração.

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SISTEMA SOCIAL

Foi Montesquieu que, em meados do século XVIII, lan­


çou os fundamentos da sociologia comparada e dessa
forma formulou e empregou uma concepção que foi e
pode ser designada como sistema social. Sua teoria, «a
primeira lei da estática social», como mais tarde será
denominada por Comte, afirmava que, em determinada
forma de vida social, existem relações de interconexão
e interdependência, ou, na expressão de Comte, rela­
ções de solidariedade entre os vários aspectos. A idéia
de um sistema natural ou fenomênico supõe um con­
junto de relações entre os fatos, tal como um sistema
lógico (p. ex., a geometria de Euclides) é um conjunto
de relações entre as sentenças, ou um sistema ético é
um conjunto de relações entre juízos de ordem ética.
Quando falamos de «sistema bancário» da Inglaterra
referimo-nos ao fato de que há considerável volume de
atividades, interações e transações, tais como, por exem­
plo, pagamentos por meio de cheque assinado e sacado
contra certo banco, atividades essas que se relacionam
de modo a constituir em sua totalidade um processo do
qual podemos fazer descrição analítica que mostrará
como estão inter-relacionadas e constituindo assim um
sistema. E estamos, evidentemente, diante de um proces­
so, de uma parte complexa do processo social total da
vida social na Inglaterra.
Nestes ensaios falo de «sistemas de parentesco». En­
tendo que em dada sociedade podemos isolar teorica­
mente, se não na realidade, certo conjunto de ações e
interações entre as pessoas; essas ações e interações
nascem das relações de parentesco ou casamento; e en­
tendo também que em certa sociedade tais ações estão
inter-relacionadas de modo que podemos dar uma des­
crição analítica geral delas como partes integrantes de
um sistema. A importância teórica dessa noção de sis­
temas resume-se no seguinte: nosso primeiro passo no
sentido de compreender uma feição comum de uma for­
ma de vida social, tal como o uso de cheques, ou o
costume pelo qual um homem deve evitar contato social

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com a sogra, é descobrir o lugar dessa feição no sis­
tema do qual ela constitui parte.
A( teoria de Montesquieu, porém, é o que podemos
chamar de teoria do sistema social total, de acordo com
a qual todos os aspectos da vida social estão unifica­
dos num todo coerente. Como estudioso da jurisprudên­
cia, Montesquieu estava sobretudo interessado em leis,
e procurava mostrar que as leis de certa sociedade estão
relacionadas com a constituição política, vida econômica,
religião, clima, volume da população, usos e costumes,
e aquilo que ele chamava de espírito geral (esprit gé-
néral) — que mais tarde os escritores chamaram de
«ethos» da sociedade. Uma lei teórica, como esta «lei
fundamental da estática social», não é a mesma coisa
que lei empírica, mas um guia para a investigação. Acho
que podemos avançar nossa compreensão das sociedades
humanas se investigarmos sistematicamente as inter-rela-
ções entre os aspectos da vida social.

ESTÁTICA E DINÂMICA

Comte assinalou que em sociologia, como em outras es­


pécies de ciência, há duas séries de problemas, aos quais
chamava de problemas de estática e dinâmica. Na está­
tica, tentamos descobrir e definir condições de existência
e de coexistência; na dinâmica, empenhamo-nos em des­
cobrir condições de transformação. As condições de exis­
tência de moléculas ou de organismos são questões de
estática, e, analogamente, as condições de existência das
sociedades, sistemas sociais, ou formas de vida social
são questões de estática social. Já os problemas de di­
nâmica social referem-se às condições de mudança das
formas de vida social.
A base da ciência é a classificação sistemática. Cons­
titui primeira tarefa da estática social empenhar-se no
sentido de comparar formas de vida social, a fim de
chegar a classificações. Mas formas de vida social não
podem ser classificadas em espécies e gêneros tal como
classificamos as formas da vida orgânica; a classificação

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não pode ser específica, mas deve ser tipológica, e isto
é um modo mais complicado de investigação. Esta clas­
sificação só pode ser conseguida por meio do estabeleci­
mento de tipologias para aspectos da vida social ou os
complexos de aspectos que são dados em sistemas so­
ciais parciais. A tarefa é complexa e tem sido também
desprezada, em vista da noção de que o método da
antropologia deve ser o histórico.
Não obstante os estudos tipológicos serem parte im­
portante da estática social, outra tarefa se apresenta: a
de formular generalizações sobre as condições de exis­
tência de sistemas sociais, ou de formas da vida social.
A chamada primeira lei da estática social é uma gene­
ralização que declara só poder persistir ou continuar a
forma de vida social cujos vários aspectos exibam cer­
ta espécie ou grau de coerência ou consistência; mas
isto apenas define o problema da estática social, que
consiste em investigar a natureza dessa coerência.
O estudo da dinâmica social ocupa-se em estabelecer
generalizações sobre como os sistemas se transformam.
A hipótese da correlação sistemática de aspectos da vi­
da social tem como corolário que as transformações em
alguns aspectos devem provavelmente ensejar mudanças
em outros aspectos.

EVOLUÇÃO SOCIAL

A teoria da evolução, social foi enunciada por Herbert


Spencer como parte de sua formulação da teoria geral
da evolução. De acordo com aquela teoria o desenvolvi­
mento da vida na terra constitui um único processo ao
qual Spencer aplicava o termo «evolução». A teoria da
evolução orgânica e superorgânica (social) pode ser re­
duzida a duas proposições fundamentais: 1) Que tanto
na evolução das formas da vida orgânica como na evo­
lução das formas de vida social humana houve um pro­
cesso de diversificação pelo qual muitas formas diferentes
de vida orgânica ou vida social desenvolveram-se a par­
tir de um número muito menor de formas originais. 2)

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\

Que houve uma tendência geral de evolução pela qual


as formas mais complexas de estrutura e organização
(orgânica e social) surgiram de formas mais simples. A
aceitação da teoria da evolução exige apenas a aceitação
dessas proposições dando-nos um esquema de interpreta­
ção aplicável ao estudo da vida orgânica e social. Mas
deve-se ter em mente que alguns antropólogos rejeitam
a hipótese da evolução. Podemos aceitar provisoriamen­
te a teoria fundamental de Spencer, embora rejeitemos
as diversas pseudo-especulações que ele acrescentou, e
essa aceitação nos proporciona certos conceitos que po­
dem ser úteis como instrumentos de análise.

ADAPTAÇÃO

A adaptação é um conceito-chave da teoria da evolu­


ção. E’, ou pode ser, aplicado tanto ao estudo das for­
mas de vida orgânica como a formas de vida social
entre seres humanos. Um organismo vivo só existe e
continua existindo se for ao mesmo tempo interna e
externamente adaptado. A adaptação interna depende do
ajustamento dos vários órgãos e suas atividades, de
modo que os diversos processos fisiológicos constituam
um sistema de funcionamento continuado pelo qual a
vida do organismo se mantenha. A adaptação externa
é a do organismo ao meio no qual vive. A diferenciação
de adaptação externa e interna é simplesmente um modQ
de distinguir dois aspectos do sistema adaptacional que
é o mesmo para os organismos de uma única espécie.
Quando tratamos da vida social dos animais, depara­
mos um outro tipo de adaptação. A existência de uma
colônia de abelhas depende da combinação das ativida­
des das abelhas operárias individualmente em colher o
mel e o pólen, da fabricação da cera, da construção das
colmeias, da postura de ovos e larvas bem como da
alimentação destas, da proteção* do armazenamento de
mel contra os ladrões, da ventilação dos favos por meio
da vibração de suas asas, e da conservação da tempe­
ratura no inverno pela aglomeração de todas. Spencer

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emprega o termo «cooperação» para designar este as­
pecto da vida social. Vida social e adaptação social
implicam, portanto, o ajustamento da conduta de orga­
nismos individuais às exigências do processo pelo qual
a vida social continua.
Ao examinarmos uma forma de vida social entre seres
humanos como sistema adaptacional, é útil distinguir três
aspectos do sistema total. Há um modo pelo qual a vida
social é ajustada ao ambiente físico, e podemos, se
quisermos, falar dele como adaptação ecológica. Em se­
gundo lugar, há disposições institucionais pelas quais
uma vida social ordenada se mantém, de modo que se
dá o que Spencer chama de cooperação e o conflito é
reduzido ou regulado. A isto podemos chamar, se qui­
sermos, o aspecto institucional da adaptação social. Em
terceiro lugar, há o processo social pelo qual o indiví­
duo adquire hábitos- e características mentais que o
adaptam para um lugar na vida social e o habilitam a
participar em suas atividades. Isto poderíamos chamar
de adaptação cultural, de acordo com a prévia defini­
ção de tradição cultural como processo. O que se deve
ressaltar é que esses modos de adaptação são apenas
aspectos diferentes dos quais o sistema adaptacional to­
tal pode ser considerado por conveniência da análise
e comparação.
A teoria da evolução social constitui, pois, parte de
nosso esquema de interpretação de sistemas sociais para
examinar qualquer sistema dado como um sistema adap­
tacional. A estabilidade do sistema e, portanto, sua con­
tinuidade por certo período, depende da eficácia da
adaptação.

ESTRUTURA SOCIAL

A teoria da evolução afirma uma tendência de desen­


volvimento em que os tipos mais complexos de estru­
tura vêm a existir a partir de tipos menos complexos.
Inclui-se neste volume uma conferência sobre a Estru­
tura Social, mas como foi feita em época de guerra e
foi publicada de modo resumido não está tão clara co­

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mo deveria. Quando empregamos o termo estrutura, es­
tamos nos referindo a certa espécie de ajuste ordenado
das partes ou dos componentes. Uma composição mu­
sical tem uma estrutura, do mesmo modo que uma frase.
Um edifício tem uma estrutura, do mesmo modo que
uma molécula ou animal. Os componentes ou unidades
da estrutura social são pessoas, e uma pessoa é um ser
humano considerado não como um organismo, mas co­
mo ocupando posição numa estrutura social.
Um dos problemas teóricos fundamentais da sociolo­
gia é o que se refere à natureza da continuidade social.
A continuidade em formas de vida social depende da
continuidade estrutural, isto é, de uma espécie de con­
tinuidade no ajustamento das pessoas umas com as ou­
tras. Atualmente existe um ajustamento das pessoas em
nações, e o fato de que por setenta anos eu pertença
à nação inglesa, embora tenha passado grande parte
de minha vida em outras nações, é um fato de estru­
tura social. Uma nação, uma tribo, um clã, um orga­
nismo como a Academia Francesa, ou como a Igreja
Católica, podem continuar a existir como ajustamento
de pessoas, embora o conjunto das pessoas, as unidades
de que cada um se compõe, mudem vez por outra. Exis­
te continuidade da estrutura, tal como um corpo hu­
mano, do qual os componentes são moléculas e esta
continuidade permanece, embora as moléculas que cons­
tituem o corpo estejam continuamente em mudança. Na
estrutura política dos Estados Unidos deve haver sem­
pre um Presidente; por certo tempo é Herbert Hoover,
em outro período é Franklin Roosevelt, mas a estrutura
permanece contínua como um ajustamento.
As relações sociais, das quais a rede contínua cons­
titui a estrutura social, não são conjunções acidentais de
indivíduos, mas são determinadas pelo processo social,
e qualquer relação é aqueía em que a conduta das pes­
soas em suas interações com as deqjais é controlada por
normas, regras ou padrões. Assim sendo, em qualquer
relação no seio de uma estrutura social a pessoa sabe
que se deve conduzir de acordo com essas normas e
tem razão em esperar que outras pessoas façam o mes­

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mo. Çostuma-se chamar instituições as normas de con­
duta estabelecidas de determinada forma de vida social.
Instituição é_uma norma estabelecida de conduta reco-
Uíhêcida como tal por um grupo social ou classe iden­
tificáveis; a norma lhes serve, pois, de instituição. As
instituições designam um tipo ou classe discernível de
relações ou interações sociais. Assim, em determinada
sociedade regionalmente definida, descobrimos que há
normas aceitas quanto ao modo pelo qual o homem
deve agir em relação à sua mulher e filhos. A relação
das instituições para com a estrutura social é, portanto,
dupla. Por um lado, há a estrutura social, tal como a
família no presente exemplo, para cujas relações consti­
tuintes as instituições proporcionam as normas; por ou­
tro lado, há o grupo, a sociedade local neste exemplo,
na qual a norma é estabelecida pelo reconhecimento ge­
ral dela como a que determina a conduta adequada. As
instituições, se este termo é empregado para designar o
ordenamento da sociedade das interações das pessoas
nas relações sociais, apresenta esta dupla conexão com
a estrutura, com um grupo ou classe da qual se pode
afirmar ser uma instituição, e com aquelas relações no
seio do sistema estrutural ao qual as normas se aplicam.
Num sistema social pode haver instituições que estabe­
leçam normas de conduta para um rei, para juizes quan­
to ao cumprimento dos deveres de seu ofício, para os
policiais, para os chefes de família, e assim por diante,
como também normas de conduta referentes a pessoas
que venham a entrar em contato dentro da vida social.
Devemos mencionar ligeiramente o termo organização.
O conceito está evidentemente em estreita relação com
o conceito de estrutura social, mas é aconselhável não
tratar ambos os termos como sinônimos. Emprego ade­
quado, que não parte do emprego comum em inglês, é
definir a estrutura social como um ajustamento de pes­
soas em relações controladas ou definidas institucional-
mente, como a relação de rei e súdito, ou de marido e
mulher, e empregar organização como designando um
ajustamento de atividades. A organização de uma fá­
brica é um ajustamento das diversas atividades de ad­

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ministração, da chefia, dos operários dentro da atividade
total da fábrica. A estrutura de uma família, compreen­
dendo pais, filhos e empregados, é institucionalmente con­
trolada. As atividades dos diversos membros da casa
serão provavelmente sujeitas a certo ajustamento regu­
lar e a organização da vida do lar neste sentido pode
ser diferente em diversas famílias na mesma sociedade.
A estrutura de um exército moderno consiste, em pri­
meiro lugar, de um ajustamento em grupos — regi­
mentos, divisões, brigadas, etc., e em segundo lugar um
ajustamento hierárquico — generais, coronéis, majores,
capitães, etc. A organização do exército consiste do
ajustamento das atividades de seu pessoal na paz e na
guerra. No seio de uma organização cada pessoa tem
uma função. Podemos, pois, dizer que quando estamos
tratando de um sistema estrutural estamos interessados
num sistema de posições sociais, ao passo que numa
organização tratamos de um sistema de funções.

FUNÇAO SOCIAL

O termo função tem grande variedade de significados,,


dependendo do contexto. Na matemática, conforme apre­
sentada por Euler no século XVIII, a palavra refere-se
a uma expressão ou símbolo que pode ser escrita no
papel como «log. x», e não tem qualquer relação com
a palavra tal qual é empregada numa ciência como a
fisiologia. Na fisiologia o conceito de função é de fun­
damental importância para capacitar-nos a tratar da in­
separável relação de estrutura e processo da vida orgâ­
nica. Um organismo complexo, tal como o corpo hu­
mano, tem a estrutura como uma disposição de órgãos,
tecidos e fluidos. Mesmo um organismo que consista
de uma única célula tem certa estrutura como um ajus­
tamento de moléculas. O organismo tem também vida,
e esta designamos por processo. O conceito de função
orgânica é aquele que empregantos para designar a cor­
relação entre a estrutura de um organismo e o processo
vital desse organismo. Os processos que transcorrem

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dentro de um corpo humano enquanto vivo dependem
da estrutura orgânica. E’ função do coração bombear
sangue através do corpo. A estrutura orgânica, como
estrutura viva, para sua continuidade depende do pro­
cesso que constitui todo o processo vital. Se o coração
cessar de executar sua função, o processo vital termina
e a estrutura como estrutura viva também acaba. Assim,
o processo depende da estrutura, e a continuidade da
estrutura depende do processo.
Com referência aos sistemas sociais e sua compreen­
são teórica, um dos meios de empregar o conceito de
função é idêntico ao emprego científico feito em fisiolo­
gia. Pode ser empregado para designar a interconexão
ènFre a estrutura social e o processo de vida social. E’
o emprego da palavra função que me parece neste sen­
tido útil em sociologia comparada. Os três conceitos:
processo, estrutura e função são, pois, componentes de
uma única teoria ou esquema de interpretação de sis­
temas sociais humanos. Os três conceitos estão logica­
mente inter-relacionados, visto que «função» é usado
Jara designar as relações de processo e estrutura. Teo­
ria é o que podemos aplicar ao estudo tanto da conti­
nuidade em formas de vida social como também ao
processo de transformação nessas formas.
Se consideramos determinado aspecto da vida social
como o castigo do crime, ou, em outras palavras, a
aplicação, mediante certo procedimento organizado, de
sanções penais quanto a certos tipos de conduta, c inda­
gamos qual é sua função social, temos um problema
fundamental de sociologia comparada para o qual uma
das primeiras contribuições foi a de Durkheim em sua
Division da Travail Social. Um problema geral muito
amplo se coloca quando indagamos qual é a função
social da religião. Como foi assinalado em um dos en­
saios deste volume, o estudo deste problema exige a
consideração de grande número de problemas mais res­
tritos, tal como a função social da adoração dos ante­
passados naquelas sociedades em que isto se verifica.
Mas nessas investigações mais limitadas, no caso da
teoria aqui esboçada ser aceita, o procedimento tem de

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ser o exame da correlação entre os aspectos estrutu­
rais da vida social e o correspondente processo social,
na medida em que ambos estejam implicados num sis­
tema contínuo.
O primeiro ensaio desta coleção pode servir para
ilustrar estas idéias teóricas. Trata ele da instituição
pela qual o filho da irmã tem familiaridade privilegiada
permitida em sua conduta para com o irmão de sua
mãe. O costume é conhecido em tribos da América do
Norte como os Winnebago e outros, nos povos da Oceâ-
nia, tais como os habitantes de Fiji e Tonga, e em al­
gumas tribos da África. Minhas observações pessoais
dessa instituição foram feitas em Tonga e Fiji, mas co­
mo o trabalho destinava-se a público sul-africano, pa­
receu-me preferível referir-me a um único exemplo
sul-africano, visto que uma análise comparativa mais
ampla demandaria ensaio mais longo. O modo usual
de tratar desta instituição, tanto na Oceânia como na
África, foi proporcionar uma explicação pseudo-histórica
tendente a demonstrar que se tratava de sobrevivência
numa sociedade patrilinear a partir de uma antiga con­
dição de matriarcado.
O método alternativo de tratar desta instituição é
procurar uma compreensão teórica dela como parte de
um sistema de parentesco de certo tipo, no seio do qual
ela tenha uma função discernível. Não dispomos ainda
de uma tipologia geral sistemática de sistemas de pa­
rentesco, pois a elaboração dessa tipologia é uma taref^
laboriosa. Mencionei alguns resultados parciais e pro­
visórios dessa tentativa de determinar tipos numa recente
publicação sob a forma de Introdução a um livro sobre
Sistemas de Parentesco e Casamento Africanos. Em
meio a imensa diversidade de sistemas de parentesco
podemos, penso, reconhecer um tipo do que podemos
chamar patriarcado, e outro de matriarcado. Em ambos
esses tipos a estrutura do parentesco baseia-se em li­
nhagens com ênfase máxima lias relações de linhagem.
No matriarcado a linhagem é matrilinear, em que um
filho pertence à linhagem da mãe. Praticamente todas as
relações de direito de um homem são com sua linhagem

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matrilinear e seus membros, e, portanto, depende ele am­
plamente dos irmãos de sua mãe, que exercem auto­
ridade e controle sobre sua pessoa e a quem ele pro­
cura no caso de proteção e de herança da propriedade.
Num sistema de patriarcado, por outro lado, o homem
depende amplamente de sua linhagem patrilinear e por­
tanto de seu pai e irmãos de seu pai, que exercem au­
toridade e controle sobre ele, enquanto que é a eles que
tem de recorrer para obter proteção e herança. 0 pa­
triarcado é representado pelo sistema de patria potestas
da Roma antiga, e há sistemas que se aproximam mais
ou menos intimamente do tipo encontrável na África e
alhures. Podemos considerar os Bathonga como tal
aproximação. O matriarcado é representado pelos sis­
temas dos Nayar de Malabar e os Menangkubau da
Malaia, e também nesse caso encontramos.sistemas apro­
ximados deste tipo em outras partes.
A questão tratada no ensaio sobre o irmão da mãe
pode ser considerada contrastante com a explicação pe­
la pseudo-história, cuja interpretação dessa instituição a
ela se refere como tendo uma função num sistema de
parentesco com certo tipo de estrutura. Se tivéssemos
de reescrever o ensaio trinta anos depois, teríamos, sem
dúvida, que modificá-lo e ampliá-lo. Mas foi-me suge­
rido que o ensaio poderia ter certo interesse histórico
menor em relação com o desenvolvimento do pensamen­
to em antropologia e é, portanto, reimpresso quase tal
como foi escrito, exceto alterações mínimas.
Qualquer interesse que este volume possa ter decor­
rerá provavelmente de ser a exposição de uma teoria,
no sentido em que a palavra teoria é aqui empregada
como esquema de interpretação aplicável à compreen­
são de uma classe de fenômenos. A teoria pode ser
enunciada por meio de três conceitos fundamentais e
relacionados de «processo», «estrutura» e «função». De­
corre de escritores antigos como Montesquieu, Comte,
Spencer, Durkheim, e pertence, deste modo, a uma tra­
dição cultural de duzentos anos. Esta introdução con­

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tém uma reformulação na qual certos termos são em
pregados diferentemente do modo como o foram no
antigos ensaios agora reimpressos. Por exemplo, no
primeiros ensaios escritos há vinte ou mais anos, a pa
lavra «cultura» é empregada com o significado admitid'
daquela época como termo geral designativo de um mo
do de vida, inclusive o modo de pensar, de determinad'
grupo social localmente definido.

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