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1. O MÉTODO COMPARATIVO EM
ANTROPOLOGIA SOCIAL ~,
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Reproduz.ido de RAoéLLFFE-BJtOWN, A R. "The Con1pnnt1he J)te-thoJ ín 5'·x vi'
Antbrop<>Jogy." Haxley Memorial Lecture for 1951. Journrzl q/ r/•e Roral A rHf, ,,...
pological l ns-titute. London, 1951 (pQbliçado em 19.52). v. T_XXXT. r. 15. : ·.
t
AS
vjsões duais de o utros tipos. que se identificam cn1 conexão C<'n 11rn
• pé\r de aves. Mas não é, entretanto, apenas uma qucstã<' de ave~. Nn
Austrália as metades podem ser associadas com outros pare$ d'. lll"'Í-
mais, com duas espécies de canguru numa parte, com dual' esrécir,s de
abelha em outra. Na Califórnia uma metade é associada com o coio e
e a outra com o gato-selvagem.
Nossa coleção de paralelos poderia ser estendida a outro<: C'{fni·
pios em que um grupo ou dh-i são social recebe urna identificac?.rc e é
distinguido de outros por associação com uma espécie naturnl. A-.:.
metades australianas são simplesmente um exemplo de um fcnc\meno
socia1 amplamente distribuído. De um fenômeno particul ar fomos con#
duzidos. pelo método comparativo, a um problema muitn mais !!er3J:
- Como podemos compreender os costumes pelos quai grupoi- t-' <li·
visões sociais são distinguidos pela associação de urr\ gruro nu div ~n
(
particular com uma espécie natural particular? Este é 0 pr0blema ~crI
.do totem ismo, como tem sido designado. Não lh e~ vou nferccer nma
solução para este problema. pois ele me parece resuJ tantc de d o i ~ C'1lr0~
problemas. Um é o problema da maneira pela qual. numa snci<'darl•.
particular, a relação dos seres humanos com as espéciec: nat u rai ~ é re-
presentada, e, como uma contribuição a c~te problema. ofereci uo1:i
análise dos ilhéus andamaneses nã:o-totêmicoc;. O outro f: o pr<'l°en ~
de como os grupos sociais vêm a ser identificado!' em conexão con1
algum emblema, símbolo ou objeto que tenha referência c:in1bólic<l 011
emblemática. Uma nação identificada por . ua bandei ra. urnn família
identificada por seu brasão, uma congregação particultl r d uma igrcjtl 0
dos bastões que lhe podem ser atirados e espere pela oportanidade de
roubar um pedaço de carne para seu jantar.
Entre os contos narrados pelos australi.anos sobre an im ai~ pn<le-
•
1 mos encontrar um número imenso de paralelos deste conto dn gaviãn-
-real e do corvo. Aqui, como exemplo, está um sobre o vom ate e o
cangur ~ da região fronteiriça da Austrália Meridional com Vitória.
Nesta região o vombate e o canguru são os dois maiores animais caçá-
veis. No começo o vombate e o canguru viviam juntoc; como amigo1'.
Um dia o Vombate começou a fazer uma "casa" para si (o vombate vive
numa toca no solo). O Canguru zombou dele e isto o aborreceu. Então
• um dia choveu (deve-se lembrar que nestes contos o que quer que
t
aconteça é considerado como acontecendo pela primeira vez na hi stóri~
do mundo). O ' ' ombate entrou em sua "casa", livrando-se da ch 1,·t1. 1
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como elas são conhecidas na vida social dos seres humanos. Em se-
gundo lugar1 as espécies naturais são colocadas em pares de opostos. Elas
podem ser vistas dessa maneira apenas se houver algun1a característica
em que se pareçam uma com a ·outra. Assim, o gavião-real e o corvo
se parecem um com o outro porque são as duas aves notórias comedoras
de carne. Quando investiguei pela p·rimeira vez os totens sexuais de
Nova Gales do Sul, supus, de modo completamente errado, que a se-
melhança básica entre o morcego e a coruja noturna ou o curiango
(nighrjar) era a de que ambos voam à noite. Mas a ave trepadora
( tree-creeper) não voa à noite e é o totem das mulheres da parte seten-
trional de Nova Gales do Sul. Quando eu estava sentado com um
nativo na região do rio Macleay. uma ave trepadora apareceu, e eu
pedi a ele para falar-me a respeito dela. "Esta é a ave que ensinou
as mulheres a subirem em árvores", disse-me ele. Após alguma con-
versa, perguntei-lhe : ºQue semelhanç,a existe entre o morcego e a ave
trepadora?" E com uma expressão de surpresa na face por eu ter feito
tal pergunta, respondeu: "Mas é claro que ambos vivem nos burácos
das árvores." Percebi que a coruja noturna e o curiango (nightjar)
também vivem em árvores. O fato de certos animais comerem carne
constitui uma sorte de similaridade social~ tal como a do gavião-real e
corvo ou do diogo e . gato-selvagem. Do mesmo modo o hábito de
viver em buracos das árvores.
Podemos agora responder a questão "Por que o gavião-real e o
corvo?··, dizendo que estes são selecionados como representando uma
relação que podemos chamar de "oposição".
A idéia australiana do que se chama aqui de "oposição" constitui
uma aplicação particular daquela associação por contrariedade, que é
uma característica universal do pensamento humano. de · modo que pen-
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samos por pares de contrários: para cima e para baixo, forte e fraco.
pteto e branco. Mas a concepção australiana de "oposição.. combi n~
a idéia de um par de contrários com a de um par de oponentec;. "o~
contos sobre õ gavião-real e õ corvo. as duas aves são oponente!' n o
s_ntido de serem antagonistas. Elas são também contrárias por razão
da sua diferença de cara er: gavião-real, o caçador: cor\'O, o ladrão.
A cacatua preta e a cacatua branca, que representam as metadeC\ em
Vitória Ocidental, constituem um outro exemplo de contrariedade. ~en
do essas aves essencialmente sinúlares, exceto pelo contraste da cor.
Na América as metades são associadas a outros pares d c o n l r~i os. :
Céu e Terra. guerra e paz, montante e jusante. vermelho e brnnc0.
Após um longo estudo comparativo, penso que estou plenamente ju!'ti-
ficado ao estabelecer uma lei geraL segundo a qual cn1 qu alquer lugar.
, seja na Austrália, Melanésia ou América. em que e xist~ 1m~ e ~trun
social de metades exogârnicas, as metades são pensadas como e-.r anelo
em uma relação de. como é aqui chamada, "oposiçn0··.
Obvian1ente. o passo seguinte num estudo comparati vo ~erá ~ en rt"'
descobrir quais as várias formas que toma a oposição entre metade"
de uma divisão dual na vida social real. Na literatura h<í r e f crni~
ocasionais a uma certa hostilidade entre as duas divisões. de~crit como
existente ou registrada como tendo existido no passado. T oda a evi-
dência disponível é a de que não há hostilidade geral no sentido rrópriC1
do termo, mas somente uma atitude convencional que acha cxr c~so
em algum modo usual de comportamento. t certo que na ..1u~tr á l i~ ~
embora em alguns exemplos em que haja uma disputa Cieja pOS<\Ível
observar o membros de duas metades patrilineais formarem "lad(lC\..
separados, a hostilidade real, da espécie daquela que pode conduzir 2
ação violenta, não ocorre entre metades. mas entre grupos tocaie;; e doic;
grupos locais da mesma metade patrilineal parecem es ar tão f reqücnte-
mente em conflito como dois grupos que pertençam a diferentes n1etodcs.
Na verdade, desde que uma fonte comum de conflito real é 0 f<lto d-:
um homem tomar a mulher casad a ou comprometida com outro. O$
dois antagonistas ou grupos de antagonistas em tais ca~o per en~cr1o
ambos à mesma metade patrilineal.
A expressão da oposição entre as metades pode tomar v~ria ~rf
mas. Uma é a instituição a que os antropólogos deram n non1e. ''f<."'
mujto satisfatório, de Hrelações jocosas" ( the joking refari(11p;lrfp ). /\ 0<:.
membros de divisões opostas se permjte, ou deles se espera. que t0lerem
os aborrecimentos que uns causam aoc; outros. em abuso verbal ou
em troca de insultos. Kroeber ( Handbook of / ndian." nf Californin) es-
creve que entre os cupeno
•
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lemos é rei, governa todas as coisa.~· A palavra grega pr~ /e1 nr é itc:
vezes traduzida como "luta'·. mas a tradução apropriadn c:eria t"P'°'c; _
ção'·, no sentido em que esta palavra foi usada nesta conf rência. 0
1 fc1 ·1-
clito usa como exemplo o entalhe e a espiga: não estão em luta : <:ín
contrários ou opostos que se combinam para fazer unidade qunndo <\...
juntam.
Há alguma evidência de que esta jdéia da união dos op~ts f oi
tomada do Oriente por Heráclito e os pitagóricos. De qoalquer modo.
a mais completa elaboração da idéia se encontra na filo<:ofia Yi,-Yang
da, antiga China. A frase em que ela se resume é: "Yi yin yi yang. ..,..ci
tse tao''. Um yin e um yang fazem uma ordem. Y in é o princípio f Ptrii-
nino'; Yang, o masculino. A palavra tao pode aqui ser mai::; hem t r~
duzida como "um todo ordenado''. Um homem (yanf ) e uma n111l'1 DT
(yin ) constituem a unidade de um casal. Um dia (yan,e ) e uma 11ni• "
(yin) fazem um todo unificado ou unidade de tempo. Si mila rn1e11 f? nri
verão (yang ) e um inverno (yin ) fazem a unidade que d e n0 n1i~r<'"
um ano. Atividade é yang e passividade é yin e uma rel~cãn de c. h·~
entidades ou pessoas em que uma é ativa e a outra pasc;; iva c;c coP ccf:\f'
também como uma unidade de opostos. Na antiga filosofia chinesa e-. :o
idéia de unidade de opostos recebe a maior extensãn po~ ~i vel. Todo o
universo, inclusive a sociedade humana. é interpretado como uma · nr-
dem" baseada nisso.
Há evidência histórica de que esta fil osofia se dc: ' <>e nv olv ~u hf4
muitos séculos na região do rio AmareJo. o e.Império do ~f e i o. . H :i
também evidência de que a organização social desta regiilo c;e caracte-
rizava pelo casamento entre clãs de um mesmo par: os d o i ~ cl:l" ~e rru-
niarn nos Festivais da Primavera e do Outono. competindo no canto
de odes, de modo que os homens de um clã podiam encontrar esro-. a~
entre as mulheres do outro. A evidência é de que neste ' ic;tcmo de
casamento um homem se casava com a filha do irmão de 'tlíl mãe. <'11
urna mulher da geração apropriada do clã de sua n âe. Scgund<' ~
informação que possuo. este tipo de organizacão, que nparcnten cf't··
existia há quarenta século!' nesta região. ainda Já sobre' Í \'Í:l cm J 9 ~ 5.
mas a investigação da mesma que planejei para ser c~ cutél dá p rH -
Li Yu foi infelizmente impedida pelo ataque jap onê~ ~ Chi nn. Pnde
ser que ainda não seja tão tarde para realizá-la: ela ro~ rerrnr ' ri-
avaliar mais exatamente a recon~tuçã histórica de Marcel Granc:t.
Esta filosofia Yin-Yang da antiga China é a elaboracno ~istem á
tica do princípio que pode ser uc;ado para definir a c' tru · ur~ c:ocial de
metades nas tr:bos australianas. porque a estrutura de mctadec: c5, com0
foi visto pela breve avaliação aqui realizada, uma unidade de grupos
opostos, no duplo sentido de que os dois grupos são amistosamente
oponentes e de que eles são representados como sendo em algum sen-
tido opostos, do mesmo modo pelo qual o gavião-real e o corvo ou
o branco e o preto são opostos.
Isso pode ser esclarecido pela consideração de outro exemplo de
oposição nas sociedades australianas. Um acampamento australiano
abrange homens de um determinado clã local e suas esposas, que, pela
regra de exogamia, são provenientes de outros clãs. Em Nova Gales
do Sul há um sistema de totemismo sexual, pelo qual uma espécie ani-
mal é "irmão" dos homens e uma outra esp6cie é ''irmã'"' das mulheres.
Ocasionalmente surge dentro de um acampamento nativo uma condição
de tensão entre· os sexos. O que então costuma ·ocorrer de acordo cem
as informações dos aborígines. é que as mulheres saem e matam um
morcego, o "irmãoº ou totem sexual dos homens, e o deixam a jazer
no acampamento, para que· os homens o vejam. Os homens por sua
vez retâJiam, matando o pássaro que é nesta tribo o totem sexual das
mulheres. As mulheres_ então proferem insultos contra os hoJQens e
isto leva a uma luta com bastões (bastões de cávar para as mulheres e
•
bastões-projéteis para os homens) entre os grupos formados pelos dois
sexos em que um bom número de contusões é infligido. Após a luta, a
paz é restaurada e a tensão eliminada. Os aborígines australianos
acham que, quando há uma discórdia entre duas pessoas ou dois
grupos que provavelmente irá se desenvolver em fogo lento. o melhor
será lutar por causa dela e depois fazer as pazes. O uso simbólico do
totem é muito significativo. Este costume nos mostra que a idéia da
oposição de grupos e a união dos opostos não está confinada às metades
exogãmicas. Os dois grupos sexuais provêem uma estrutura de tipo
similar; o mesmo ocorre às vezes com os dois grupos formados por
divisões de gerações altem~s. O grupo dos pais e o grupo de seus
filhos estão numa relação de oposição, não dessemelhante da relação
entre os maridos e suas esposas.
Podemos dizer que na estrutura social relativamente simples das
tribos australianas podem ser reconhecidos três tipos principais de re-
iação entre pessoas ou grupos. Há a relação de inimizade e luta; no
outro extremo há a relação de solidariedade simples, e no sistema aus-
traliano esta deve existir entre ir.mãos ou entre pessoas da mesma ge-
ração no grupo local; tais pessóas não podem lutar, embora em certas
circunstâncias se ache legítimo que uma pessoa ºresmungue" contra a
outra, para expressar no acampamento uma queixa contra a ação da
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