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MARIA DE MELO

MELO, Maria de, e outros. Vida a


Dois. Descomunicaçã o na vida a
dois: Siciliano, 1991.

Por que nos descomunicamos na vida a dois

Maria de Melo

Comunicação

Não se pode afirmar que as técnicas de comunicação do mundo moderno


andem mal das pernas. Se uma parcela das inesgotáveis mensagens que recebemos
diariamente atinge o alvo, é por mérito dos chamados comunicadores, dotados de
uma também inesgotável criatividade. Bem manipulada em seus desejos, frustações,
emoções, uma pessoa pode mudar de ideia quanto a um produto de limpeza ou um
candidato a um cargo político, em questão de minutos. Se o recado fosse uma força
transformadora, não sucumbiríamos tão rápido ao próximo apelo consumista,
fustigado pela premência de nos tornar donos da última palavra em eletrodomésticos,
obras de arte, ideias, teorias ou qualquer coisa que esteja na moda.
Esse modelo de “comunicação” que aprendemos com a mídia, em que um
dispara sua mensagem e outro a deve receber como uma flechada, quando contamina
as relações pessoais, é tudo menos comunicação. Para inicio de conversa, portanto,
convém examinarmos o conceito de comunicação. Se não esclarecemos isso já
começamos a nos descomunicar, pois eu estaria supondo que você saiba ou adivinhe o
que entendo por comunicação. Eu estaria impondo meu conceito e a conversa
descambaria para uma série de monólogos que iriam construindo uma verdadeira
babel: eu falando minha língua e você a sua, certos de que o idioma de cada um é o
único – ou o melhor. E os dois sairíamos do “diálogo” tal como entramos.
A palavra comunicação, do latim communicatio, é composta de outras três:
com (juntos), munis (presente, dádiva) e actio (ação). Então, comunicar é trocar
presentes e os comunicadores, juntos, fazerem uma festa. Claro que a vida não é só
festa: é preciso comunicar inclusive coisas tristes. Na origem, no entanto, comunicar
queria dizer “troca de coisas boas”. E quando verdadeiramente trocamos, por mais
que se trate de coisas duras e difíceis de ser ditas, ainda assim é um presente. O
presente não está no que se troca, mas no fato de ser uma troca – no conforto mútuo,
no toque energético, no estar interagindo, dando e recebendo. No tocar deixando-se

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tocar, em um nível de paridade. Algo muito diferente, como se vê, de agredir o outro,
“atirando-lhe” umas verdades sem levar em conta sua sensibilidade, seu momento.
Tomando emprestada a metáfora latina, não é difícil perceber o quanto
gostamos de colocar nosso presente por cima do presente que o outro põe sobre a
mesa. Na maioria das vezes o outro, tão neurótico quando nós mesmos, parte logo
para a revanche. Por exemplo, afastando nosso presente e colocamos o dele no centro
da mesa. Reagimos com raiva porque nosso narcisismo nos autoriza a achar nosso
presente muito superior e nos convence de que ele é ignorante ou imbecil e, ocupados
em preparar-lhes o troco, perdemos a chance de avaliar o que se passou. Isto, sim,
seria um passo para melhor comunicação.
Mesmo que meu presente seja de altíssima qualidade, meu gesto arrogante e
minha falta de consideração serão interpretados como uma provocação. Na melhor
das hipóteses, se meu interlocutor tiver maturidade e bom humor o suficiente, poderá
desistir de trocar limitando-se a ouvir meu palavreado. Mas nem um santo estaria
sempre disposto a ouvir monólogos e ver rejeitadas suas contribuições. Até porque, ao
contrário do que se pensa, muitas vezes é mais fácil dar que receber. Dar nos faz sentir
ricos, poderosos. Receber é reconhecer a potencia do outro, coisas que requer
generosidade e humildade.
Para desqualificar as mensagens do outro, lançamos mão de uma
impressionante quantidade de técnicas – jogamos com as palavras, modificamos seu
significado pela forma de pronunciá-las, negamos com gestos aquilo que afirmamos
verbalmente, chamamos de comunicação essa guerra mal disfarçada, em que atiramos
na cara dos outros nossos “presentes”, destinados a minar sua autoestima. Veja um
exemplo: um casal sai do cinema e ela diz: “Que filme inteligente e bonito, que direção
sensível”. “É, mas...” responde ele. Este frequentíssimo “é, mas...” serve nas mais
variadas circunstâncias, para disfarçar nossa má vontade em admitir, aceitar ou
agradecer a contribuição do outro. Em geral acompanhada de um arcar de
sobrancelhas e um sorriso benevolente, é um dos tantos “truquezinhos” para
demostrar que o que acabamos de ouvir não foi tão grande coisa assim.
O pior é que o fracasso da comunicação costuma acontecer justo com as
pessoas que mais amamos. Mais ainda com nosso parceiro. É notável, no entanto, a
pouca consciência que as pessoas têm de sua dificuldade. É raro encontrar alguém que
não se considere perito em comunicações, desinibido, bem falante, rápido no
raciocínio, capaz de ganhar uma discussão. O outro é quem não entende... Quando
alguém procura terapia por dificuldades de comunicação, em geral é para dominar
melhor as técnicas de vender ou empurrar um peixe qualquer para o freguês. Bem
dentro daquele modelo de “comunicação” que a mídia vende.

Raízes – o cérebro uno e trino

Para quem está atrás de uma comunicação viva e transformadora convém


saber que as raízes de nossas dificuldades estão fincadas no passado. Não só naquele
passado pessoal que vai se desdobrando na terapia, mas, em um passado muito mais
remoto, ligado à própria evolução da espécie.

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Na linguagem dos biológicos a ontogênese repete a fase embrionária até a


maturidade fisiológica, psíquica e emocional que atravessamos, por estágios próprios
dos peixes, dos répteis, de mamíferos inferiores. Para nos conhecermos como gente,
precisamos entender o que nos acontece em todos esses estágios.
Paul McLean, neurofisiologista norte-americano que estudou a fundo a
evolução dos seres vivos, explica que o sistema nervoso humano integra os sistemas
nervosos característicos dos animais que nos antecederam na escala evolutiva e mais
aquele que é típico do ser humano. Temos um cérebro reptiliano semelhante ao dos
animais de sangue frio; um cérebro límbico que nos inclui na família de aves e
mamíferos, animais de sangue quente; e o neocórtex, exclusivo do ser humano. A
saúde física, psíquica e emocional do adulto depende do bom funcionamento,
equilíbrio e integração dos três.
Na infância, no entanto, a situação é diferente. No período intra-uterino e logo
após o nascimento prevalece o cérebro reptiliano. Na fase seguinte, da amamentação,
entra em funcionamento também o cérebro límbico. Por volta de um ano de idade o
neocórtex também está maduro para assumir o seu papel. Na evolução das espécies o
cérebro límbico se desenvolve no momento em que o animal passa a cuidar da prole.
Uma nova força se coloca ao lado daquela que o leva a defender a própria pele: vinculo
afetivo, que o liga ao outro com fios sutis e resistentes. Seu espaço vital se amplia,
incluindo outro ser. Surge a necessidade de contato, de proximidade: com sons e
sinais, aves e mamíferos chamam e protegem os filhotes.
O cérebro reptiliano é acrítico, com respostas do tipo tudo ou nada. No
universo do cérebro límbico surgem as emoções e com elas as infinitas nuanças dos
sentimentos, que tornam as respostas mais flexíveis e criativas. No primeiro nível havia
sensações. Depois vieram os sentimentos. Com o neocórtex aparece o pensamento, o
raciocínio abstrato e a simbolização. Com os recursos do neocórtex nosso antepassado
se pôs de pé, olhou ao redor e se localizou: “Onde estou? Para onde vou? Quem sou
eu?” Ganhou dimensão tridimensional; em sua nova postura, com nova ótica,
percebeu espaço e tempo. Tornou-se um ser histórico, com passado, presente e futuro
– atrás, aqui, lá adiante.
Aos poucos o homem ganha capacidade de introspecção e associação. Coloca
lado a lado duas informações, deduz uma terceira, testa-a na realidade, reflete sobre
as consequências. Significativamente, este momento corresponde à conquista do fogo.
A partir daí as coisas se aquecem e se iluminam; não apenas são como também
significam, elas têm uma representação imaginária, um símbolo. É possível trocar não
só objetos como símbolos, palavras. Surge a linguagem.
Em nosso desenvolvimento passamos por fases em que um dos três cérebros
predomina, atendendo às necessidades do momento. No útero, universo do cérebro
reptiliano ainda sem pele, não é incomum vivermos nosso primeiro medo, e o maior
de todos, o de que se apague a chama da vida que mal começa: o medo de morrer. Um
medo que às vezes permanece inconsciente, inexplicável e sem palavras,
indiferenciado. O bebê que fomos persiste, encolhido e amedrontado em algum canto
de nós, como se ainda esperasse ser atendido. Por ter passado por um stress grande
demais nesse momento, o individuo psicótico está emocionalmente parado na
situação intra-uterina, como se não tivesse terminado de nascer. Mas pessoas

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normais, ou simplesmente neuróticas, como a maioria de nós, também podem ter algo
mal resolvido nessa fase. Em geral elas mantêm seu “bebê” no fundo da alma e do
corpo, fazendo o possível para ignorá-lo.
Se o reconhecessem estariam criando um problema com seu aspecto adulto e
narcisista, que só quer saber daquilo que é forte e poderoso. Só que, por não entrar
em contato com esse aspecto frágil e ameaçado, perde-se contato com o próprio
cerne. A pessoa passa a se identificar apenas com seus aspectos mais desenvolvidos,
corticais, que sugiram quando já podia agir, depois de um ano de idade.
É importante entender o que aconteceu na fase anterior, reptiliana e límbica,
no útero e na amamentação, porque ela pode marcar nossa personalidade,
especialmente na capacidade de contato. Ao perder contato consigo mesmo perde-se
também com o outro. Muitas pessoas falam bem, de um jeito bonito e espirituoso,
mas jamais tocando o outro em sua profundeza. A inteligência, a verbalização e
mesmo certa arrogância ou desprezo nesse tipo de “comunicação”, não passam de
uma bolha protetora da própria fragilidade.
Réptil não faz contato. Para ele a questão é sobreviver, defender-se, defender
seu território. Isso lembra certo tipo de competição da vida adulta? Sinal de que está
diretamente ligada ao nível reptiliano, de que a pessoa sente-se excessivamente
ameaçada por ainda não ter equilibrado a questão com respostas da sobrevivência –
como um bebê, que só consegue reagir com resposta tudo ou nada, sem as nuanças
que o desenvolvimento posterior lhe permitiria. Mal comparado, essa pessoa tem
dentro de si um jacaré, sempre escondido no canto e pronto para morder
desconhecidos, sem flexibilidade nas relações. Situações novas são sentidas como
ameaças. A tendência é buscar situações conhecidas, a compulsão é repetir. Claro que
um adulto tem recursos para disfarçar seu bicho, mas ninguém segura um jacaré o
tempo todo. Porém, se o aceita como parte da casa, poderá avalia-lo e administrá-lo
com objetividade. Jacaré tranquilo e bem alimentado é uma coisa. Jacaré sofrido e
ameaçado é outra bem diferente.
Como não poderia deixar de ser, nessa situação as trocas se dão em clima de
ansiedade, como se a cada passo a existência estivesse sendo ameaçada.
Inesperadamente, o bebê (ou o jacaré) entra na conversa. Esse é o problema de não
aceitarmos nossos aspectos regredidos: se não nos responsabilizamos por eles, ficam
descontrolados como crianças abandonadas e indisciplinadas que de repente
invadissem a sala de estar onde conversamos civilizadamente. Podemos pedir
desculpas às visitas – “estava fora de mim” -, como se aquelas fossem as crianças do
vizinho. Mas o melhor é cuidarmos de nosso pobres bebês, que há muito esperam por
isso. Como está fazendo um amigo, que teve o seguinte sonho: “Tentava fazer amor
com a minha mulher, mas éramos interrompidos e tempo todo pelas crianças que
entravam no quarto. Além disso, estávamos numa casa que não era a nossa, o que nos
tirava a liberdade e a espontaneidade”.
As crianças representam aspectos infantis dele próprio e da mulher. Só
contando com elas – contando mais fundo consigo mesmo – ele poderá fazer amor, ou
seja, relacionar-se em nível adulto com uma mulher também madura, recuperar a
genitalidade, a potência genital. Porque cada aspecto infantil mal administrado leva
embora um pouco de potência genital, da maturidade emocional. No sonho, estar em

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casa alheia significa a falta de contato consigo mesmo. A casa representa o próprio
corpo e, mais do que isto, o próprio cerne; de fato, quem perde contato com seu eu
mais profundo, com seu cerne, quem perde a conexão mais sutil com seus sentidos,
fica fora de si, desencorpado e superficial.
Não é nada desprezível, como se vê, nosso parentesco com os répteis. O
cérebro reptiliano regula o ritmo biológico, a função hormonal; funciona em defesa da
vida, do território e da espécie, regendo o acasalamento; corresponde a um
comportamento rígido e estereotipado, eficiente na organização da rotina. Seu
equilíbrio é a base da saúde mental e física. Se de alguma forma ficarmos estacionados
nessa fase, é claro que teremos problemas de comunicação. Um exemplo: João volta
para casa depois de um dia de trabalho em que foi eficiente e objetivo. Assim que vê
sua mulher, Ester, sente-se exausto, com necessidade de ser cuidado e atendido. Mas
não expressa isso nem com palavras nem com sinais. Limita-se a ficar quieto, calado,
embotado, jogado num canto. Explica-se: João, que não teve boa estadia no útero,
agora quer receber tudo aquilo de que precisa, sem mesmo ter de mostrar a cara,
como o faz um feto...
Situações estressantes para a mãe na gravidez, oriundas do mundo externo ou
interno (pressões, sofrimentos, carências, conflitos emocionais), podem atingir a
criança no útero, perturbando seu paraíso cósmico, a paz de seu momento de
aprontar-se para ver a luz. Mais tarde, essa pessoa pode buscar no casamento, de
maneira mais ou menos clara, uma relação do tipo fusional como a uterina. João, que
usa muito de sua energia para preservar em um bom nível a vida social e profissional,
em casa, com a mulher, espera finalmente encontrar o bom útero de que tanto
necessita.
É possível que no início do relacionamento, consciente ou inconscientemente,
Ester tenha “prometido” a João que seria tal útero por vários motivos presumíveis.
Talvez por sedução, para conquistá-lo. Ou por achar que alimentando com jeito sua
esperança de ser cuidado como bebê, em algum momento a situação se inverteria e
chegaria a vez de ela ganhar um pouco de útero, ou de colo. Acontece que ilusão é
ilusão, e para mantê-la a qualquer custo é preciso desconsiderar a realidade. Se tivesse
encarado a realidade, Ester teria percebido que João não é nada bom de útero ou de
colo e João teria avaliado melhor as bases do negocio que fazia com Ester. Daí virá
muita descomunicação, muita falta de contato. Ambos se sentirão traídos, enganados,
como se tivessem comprado gato por lebre: casaram com a mãe e encontraram no
outro o filho, ou a filha.
Após algum tempo de mutismo ou passividade, no qual na verdade João abre
sua maior ferida, à espera de afinal ser cuidado e resgatado - sem ter mais uma vez a
resposta esperada-, poderá reagir de vários modos. Frustrado, cairá em um mutismo e
isolamento ainda maiores, cheios de ressentimento e mágoa e recusando-se, ou não
conseguindo, contatar e comunicar-se. Ou reorganizará depressa uma defesa
agressiva para proteger seu núcleo de fragilidade exposto, de forma implícita, quando
pedia ajuda. Ele chama então de dentro de si o João narcisista e cabeça dura, incapaz
de reconhecer um erro próprio ou um acerto alheio. Quem diria que, por baixo dessa
arrogância há um bebê ameaçado, medroso, e que João ataca para não ser atacado?

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Seja qual for a reação, fica clara a dificuldade de João em fazer contato – o
outro não existe para ele, a não ser como aquilo de que precisa para sobreviver. Não é
muito provável que na vida a dois ele consiga o necessário para resgatar seu bebê.
Talvez no início tenha algo parecido com o esperado. Depois, a vida irá exigindo sua
energia de adulto nas trocas com a mulher e filhos. E mesmo que consiga alguma
ajuda, ele próprio acabará tendo de assumir seus aspectos regredidos. Em uma relação
a dois, é saudável e até necessária uma certa dose de colo, especialmente se for
mútuo. Mas receber uma atitude maternal é muito diferente de ter uma mãe à
disposição. Quem casa quer um companheiro, aquele com quem repartir o pão, como
a etiologia da palavra indica, e não um eterno dependente. Não uma eterna situação
de desigualdade.
Nascemos e perdemos o útero que nos envolvia por inteiro todo o tempo. É
nossa primeira separação, e pode ou não ser traumática. É o ponto em que algo muda
muito: o tipo de relação com a mãe. Com a mãe-útero vivo uma relação de fusão.
Ainda não identifico meu Eu. Não identifico o outro, o não-eu. Somos um. Estou
fundido nela, não me distingo e por isso não conheço a solidão de ser Eu, único e
diferente. Sou tudo, já que não me identifiquei com algo especifico e portanto
excludente do resto. Se minha permanência no útero foi boa, se fui acolhido com calor
e energia e pude me deixar ficar, receptivo, absorvendo aquilo que chega e que é o
necessário para o meu crescimento, terminando o prazo de nove meses estarei pronto
para nascer, para passar pelo túnel que leva ao mundo externo, a vagina materna.
Poderei fazer a passagem de forma fisiológica, natural, e entrar sem ambivalência no
canal da vida aqui fora. Poderei aguentar perder meu primeiro mundo em busca do
novo. A curiosidade e excitação, a ampliação que o novo trás, tem força maior do que
a falta do que deixamos para trás.
É fundamental também que a mãe se abra, que deixe o filho ir para o mundo
sem tentar retê-lo. Dessa forma, terá condições de esperá-lo fora, como outro ser
diferente de si mesma, para ajudá-lo a começar a reconhecer sua identidade individual
na nova fase; não mais na relação fusional, mas na simbiótica: dois seres que podem
fazer contato e trocar sensações e emoções. Dois eus, dois indivíduos, porque a criança
já se diferenciou da mãe e “aceitou” perder a situação de totalidade do útero.
Ao primeiro contato pele a pele somam-se os outros sentidos, começa-se a
experienciar o mundo. A criança já não é mais tão passiva. Embora, na verdade, nem
no útero a crianção era passiva; já fazia movimentos em busca de seu equilíbrio e bem
estar. Mas esta busca se amplia após o nascimento. Busca seu alimento sugando o
seio. Está mais ativa. Olhando alternadamente para o seio e para a mãe, para seu
próprio nariz e para o rosto materno, vai distinguindo a Si mesma e à mãe. Assim se
inicia a formação do eu. É portanto na relação que a criança encontra sua identidade,
e esta terá mais vitalidade, ou menos, conforme tiver sido essa primeira relação.

Fase intrauterina e fase oral

Estresses no nascimento afetam o desenvolvimento do indivíduo e o marcam


para toda a sua vida. E quanto maior o estresse, é claro, mais forte a marca. Mas

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mesmo um toque sem contato, mecânico, barulhos e cheiros agressivos na sala de


cirurgia, luz em excesso, podem deixar uma marca de medo, de alarme. Este portal é
importante e delicado e assim deveríamos, nós, humanidade, tratá-lo. E consideramos
hoje que esta passagem, o parto, sua dinâmica toda, na verdade se extende até os
primeiros 10 ou 15 dias de vida. E bom não esquecer que o bebê não deve ser afastado
da mãe, sua única referência naquele momento, neste imenso mundo aqui fora. A
mãe, seu corpo, sua vibração energética é o que ele conhece como ‘o mundo’. Sem
seu ‘cantinho’, a mãe, o bebê jacarezinho fica ‘sem chão’.
Após nascer, aos poucos, o sistema límbico vai ganhando espaço e o bebê vai
ficando, predominantemente, um mamífero. Aqui seu chão é a relação com a mãe. O
campo paterno e familiar é o campo maior que vai dar o contorno, a proteção, para a
simbiose mãe-bebê ficar legal, equilibrada. Se as coisas não forem do jeito que se
espera, o bebê irá experimentar a segunda marca, o segundo tipo de medo; o medo do
bebê feto é de não sobreviver, de morrer. Dái vem um tipo de crise de pânico que às
vezes assalta o adulto sem aviso prévio. Muito difícil. O bebê de colo tem um outro
medo típico, que é o de ser abandonado. Afinal, um bebê abandonado, sem ninguém,
morre. Deste período, de como foi vivido esta fase, vem, por exemplo, um tipo de
núcleo depressivo que nos dará muito trabalho vida afora. Numa separação futura, de
um parceiro amoroso, na vida adulta, poderá ser vivido na vibração, no padrão, deste
tempo antigo. A pessoa se sentirá como um ‘menor abandonado’, com risco de
depressão grave, de não conseguir reconstruir, re-significar sua vida. E não fosse este
passado, a pessoa saberia, em algum lugar, apesar da tristeza da separação, que afinal,
não existe ‘maior abandonado’, e sua capacidade de elaborar o luto fica íntegra.
Na fase intrauterina, o outro-de-si, o objeto da relação, no caso a mãe-útero,
existe para mim, é parte de mim. Na fase seguinte, oral, amamentação, o outro, o
objeto relacional, existe junto de mim. O bebê, se tudo deu certo, já reconhece a Si
mesmo e o outro como dua entidades separadas. Ao reconhecer o outro, reconhece a si
mesmo, tem seu primeiro grande salto de organização de sua identidade.
Ao reconhecer sua identidade, ao perceber-se separada, nascida, a criança,
abre um novo mundo para si. Mas descobre também a solidão de ser única e
diferente. É o inicio da independência, com suas possibilidades e seus preços. Bem
nutrida física e emocionalmente, bem recebida neste mundo, terá recursos para ficar
só sem se abandonar. Poderá desenvolver a capacidade de se fazer companhia
enquanto espera a volta do seio e da mãe. Esperar. Eis uma qualidade característica da
maturidade desta fase.
Há pessoas que conservam boa parte de si parada nessa fase – um bebê
sempre em busca de um peito para pendurar-se, sempre com medo de ser
abandonado, pressionado pelo tempo – desesperadas, incapazes de esperar. E no
entanto, uma pessoa assim conseguirá fazer contato, ao contrário da assustada,
alarmada, “pessoa-jacaré”. Mas terá dificuldade em se comunicar. Contato é coisa de
quem já nasceu e comunicação é para quem cresceu um pouco além do nível do
cachorrinho, esse mamífero carinhoso que sabe fazer contato mas é limitado na sua
comunicação.
Quem está parado nessa fase, carregando como questão básica na vida o medo
do abandono e da perda, tem, como já dissemos, um núcleo depressivo na

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personalidade em função de seu desengano. De haver esperado e necessitado algo


fundamental: um bom contato que não veio no tempo certo. Ao nascer abrimos a boca
à espera do alimento físico e emocional de que precisamos. Se não chega, ou chega e é
de má qualidade, nos tornamos cronicamente insatisfeitos, com uma sensação de
vazio, de que algo nos falta, como um buraco no peito. Se não se cuidar, essa pessoa
passará a vida na ilusão de, a cada encontro, ter achado a mãe com quem sonhou e
nunca teve - seguida da previsível desilusão. Projetará, especialmente no
companheiro, a mãe ideal esperando que ele preencha seu peito vazio. E, depois de
sucessivas desilusões, terá de usar sua própria energia para buscar seu alimento físico
e emocional.

Exemplos

Vejamos um exemplo de dificuldades emocionais ligadas a essa fase -


lembrando que esse é o universo do cérebro límbico, o nível de animais de sangue
quente, como o cão. Maria, nossa protagonista neste caso, chega em casa como um
cãozinho que abana o rabo e se energiza inteiro com a aproximação do dono. Ou como
lactente que vibra dos pés à cabeça quando a mãe se aproxima. Isso mostra que já há
contato. O individuo toca e se deixa tocar. O outro existe e influi em seu organismo
através dos sentidos. Há troca de gestos, sinais, expressões sonoras. Sinais corporais
como o latido do cão, o canto dos pássaros e os gritinhos das crianças pequenas, criam
um clima cheio de energia que envolve o outro. Tal troca energética não é banal. Basta
comparar esse clima com a aridez e frieza surgida em torno de pessoas com muita
dificuldade de contato que reduzem a energia do outro. Contato traz alegria, excitação,
vitalidade.
No momento em que ocorre essa troca já não somos como um jacaré, com
seus comportamentos instintivos, excelentes para a sobrevivência. Mas jacaré não
sabe brincar, é um chato! Com a prevalência límbica, muita coisa muda! Já não basta
sobreviver, é preciso viver! E brincar e sorrir, reconhecer a relação, é essencial, é
gostoso! Aqui a gente descobre o sabor da vida! Isto é, se o leite não azedou, se a
relação com a mãe não deu chabu...
Brincar é viver com flexibilidade; o fascínio do novo, a delícia de criar e
descobrir já se fazem sentir. Isso tudo só é possível em situação de relativa calma e
tranquilidade, sem a tensão das questões ligadas à sobrevivência. Ou seja, quando a
fase anterior se equilibrou e o nosso jacaré está mais ou menos sossegado, tem lá seu
cantinho garantido, é bem cuidado.
Nossa Maria faz contato, condições necessárias, mas não o suficiente para uma
comunicação madura. Ela passou relativamente bem pelo período inicial da vida, mas
teve uma amamentação deficiente em uma série de aspectos. Dentro dela, um bebê
de peito ainda espera que o companheiro supra suas carências. Por isso entrará em
casa, por exemplo, falando muito, ansiosa por contar tudo. Ou seja, querendo despejar
no marido as frustações e alegrias do dia. Tal qual uma criança pequena, que precisa

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da mãe para elaborar suas experiências, tanto as frustrantes como as positivas, com as
quais ainda não sabe lidar.
Tão grande é a ansiedade em receber que Maria terá dificuldade em trocar.
Acreditará estar dando, quando tudo o que quer é receber. “Dou a você um sorriso e
você me ouve, me acolhe e me faz carinho e me tranquiliza e me cuida. Quero você
exclusivo, inteiro para mim”, ela parece dizer: Maria é um saco sem fundo em sua
exigência de afeto. No instante em que marido se distrai um pouquinho ela se sente
ameaçada de abandono e a conversa desmorona. Como não tem muitos recursos para
lidar com a frustação, se atrapalha quando se depara com os limites que a realidade
impõe. Sua reação pode ser se desenergizar, ficar deprimida, ou ficar com muita raiva,
passando ao ataque com palavras destrutivas, mordazes. (Mordaz vem de morder,
atacar com os dentes.)

Desmame e prevalência cortical. A maturidade do bípede humano.

É por volta dos noves meses que a criança já tem dentes, sua primeira
possibilidade de defesa. Se tudo tiver corrido bem estará pronta para o desmame,
processo marcante que a prepara para a independência. Se a experiência for
traumática deixará na personalidade um traço de raiva, rancor e mágoa. O seio que
nega, que abandona no desmane precoce, deixa a criança insatisfeita e despreparada.
O seio que seduz e prende no desmame tardio adia a independência.
Quando o desmame é traumático, a criança usa os dentes para expressar a
raiva. A raiva lhe provoca medo de reação da mãe. Medo e culpa em geral a levam a
tornar inconsciente a raiva, que se transforma em outros impulsos e comportamentos,
entre os quais a mordacidade. Por conta dela, nossa protagonista terá uma grande
tensão nos músculos masseteres e no maxilar. Enquanto está tensa e com raiva, Maria
pode esquecer a menininha que quer chorar e assim negar seu núcleo depressivo, sua
necessidade do outro, sentindo-se mais forte. Mas ao negar sua dependência, não
aceitará ajuda. Algo como a criança que, diante do seio que se oferece depois de tê-la
frustrado, não sabe se mama ou se o morde.
Pode ser que o marido de Maria, por não ter sido “todo ouvidos”, procurando
agradá-la, entre em choque contra os seus dentes cerrados.
Admitir a dependência, a necessidade de ser nutrida, será a única forma de
Maria aceitar e procurar ajuda. Não há outro jeito de crescer, a não ser aceitar os
aspectos de nossa personalidade que nos amedrontam ou desagradam.
Graças à maturidade cortical, por volta de um ano a criança passa a ser capaz
de coordenar seus movimentos e assim dirigir-se a seus objetivos. Pode andar e pegar
o que desejar. No que diz respeito ao emocional, com o desmame começa a desfazer a
relação simbólica com a mãe. O campo se abre, para incluir um terceiro, o pai, a
família, o social.
A maturação neocortical possibilita pôr-se de pé. Na posição ereta, a visão é
tridimensional. A criança percebe seus arredores e se localiza. Começa a categorizar

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com mais recursos de elaboração, o que facilita o desmame – percebe novas


possibilidades pela frente e aceita perder o seio. Troca vale a pena! A partir daí
poderá calcular o antes e o depois; a causa e o efeito; criar símbolos e com eles
comunicar-se, oralmente e por escrito: criticar, decidir, optar. Na evolução, esse é o
ponto em que, olhando à sua volta, o homem começa a perceber nexos. Vê-se melhor,
e aos outros, no tempo e no espaço. Percebe-se como um sistema dentro de outro
sistema, o qual por sua vez está dentro de outro sistema... Sistemas que interagem,
fazem trocas mútuas o tempo todo. Comunicam.
Convém lembrar que o neocortéx depende dos níveis anteriores para obter as
informações que passará a elaborar. Recebidas as informações, as analisa e as devolve
aos cérebros reptiliano e límbico. A sensação depende do cérebro reptiliano, a
percepção do cérebro límbico, a consciência do que se percebe do neocortéx. Todos
juntos possibilitam a comunicação.
É necessário que haja equilíbrio entre os três níveis cerebrais. Se um deles
faltar, o equilíbrio se rompe. Tem gente que, em uma atitude reptiliana, fala para si
próprio, faz monólogos; o outro, em um nível afetivo, não existe. Há outras pessoas
que são afetivas, emotivas, mas que não conectam o coração à cabeça – ao
pensamento crítico – e são só coração, sem pé nem cabeça, em um sentimentalismo
exagerado e fora da realidade. É o predomínio do límbico. E há o individuo cortical,
capaz de analisar, explicar, interpretar, mas não liga nada disso a seu coração e se
torna irritantemente frio e distante.
No desenvolvimento individual, as etapas vão se somando. A criança bem
gerada, bem nascida, e cuidada no período oral, consegue a graça da gratidão, a
emoção quase divina de dominar a inveja e acolher dentro de si algo bom que o outro
lhe deu, reconhecendo-o como bom e desejando expressar sua alegria: trocar é um
desejo natural. Assim, o amor maduro envolve os três níveis cerebrais. Como vimos, os
dois primeiros definem a situação de contato e uma comunicação rudimentar. Aqui se
insere a paixão, que é uma relação simbiótica. O amor, ao contrario, é neocortical sem
excluir os dois níveis anteriores; vai além do mero contato afetivo, já que implica
também a capacidade de avaliar. Amor implica estima. Estimar é dar valor, função do
psiquismo, neocortical. Outra característica do amor é não ter necessidade de excluir o
social, como acontece na paixão simbiótica. O amor se enriquece com o social. Amplia,
inclui.
Um sinônimo dessa maturidade é a genitalidade. O abraço genital de duas
pessoas maduras permite o orgasmo, que encerra a possibilidade de perder-se no
outro. É preciso ter muita confiança em si para perder-se em alguém sem o pânico de
não conseguir recuperar-se, deixando escoar o próprio Eu, desestruturando-se,
voltando a ser parte de alguém – como no útero. No orgasmo, entregamo-nos ao outro
através dos sentidos, fundimo-nos por instantes, abandonamo-nos ao êxtase do não-
ser para emergir revitalizados em nosso eu. Nada fácil, como bem mostra o sonho do
meu amigo em que as crianças entravam no quarto com seus medos e ameaças,
impossibilitando o amor.
Para entender a era cortical também é preciso distinguir o conceito de
necessidade e o desejo. A necessidade é reptiliana. O desejo começa com um sistema
límbico equilibrado e se estrutura na maturidade cortical, no ser adulto. A criança

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pequena vive no mundo da necessidade e seus desejos ainda tem sabor de


necessidade. Ainda é sobrevivência. Porisso fica difícil esperar. O ser adulto implica
num equilíbrio dos vários níveis e uma condição de estar além do instinto, sendo
senhor dos instintos, podendo bancar seus desejos, seus projetos pessoais. Neste
sentido, dizemos que o desejo, assim maduro, sabe esperar e construir a hora.
Muitos adultos continuam imersos nos instintos, controlados pelos desejos,
sem se dar conta disso. A maior parte de nós, por exemplo, conserva boa dose de
imaturidade oral, ou reptiliana. Dizemos “preciso falar com você”, com absoluta
urgência, sem poder esperar – como quem precisa ir ao banheiro. Falar não é instinto;
é desejo, é escolha; falar, comunicar, é o fruto mais saboroso do mamífero ótico e
bípede que olha à sua volta e pensa. Para olhar em torno de si o homem tem de
suportar perceber-se em sua individualidade. Ver a si mesmo, seu destino e seu
caminho e ver o outro com o caminho dele, a vida dele, num inevitável aprendizado de
solidão. Quem nunca está só é a criança pequena, que ainda não faz a distinção entre
si própria e a mãe. O adulto que precisa falar, dizer tudo o que passa pela sua cabeça,
muitas vezes é impelido pelo medo infantil de se perceber só – mesmo seus diálogos
interiores supõem outra pessoa. Guardar os pensamentos, processá-los na
profundidade do ser, implica tolerar a solidão e a responsabilidade, total e única, pela
própria vida, pelas próprias escolhas. Quem conseguir isso falará para comunicar-se
não para aliviar a ansiedade ou para estimular-se oralmente, como um bebê com a sua
chupeta.
Negar os próprios desejos não é saber gerenciar bem a si mesmo. Isto torna as
pessoas más companhias até para si mesmas. “Estou muito bem, não preciso de nada,
de ninguém”, dizem os que sentem repugnâncias e medo de seu lado frágil e
dependente e lançam mão até do subterfúgio de não sonhar para não viver a
frustração das decepções, inevitáveis quando se está vivo. Quem entra nesse caminho
de negar até o desejo, a aspiração de contato, de proximidade do outro, funciona
como um balde de água fria para as aspirações também do companheiro.
A comunicação humana depende de palavras, gestos e ações. Quando esse
tripé se integra, é sinal de integração entre os três cérebros. Na prática, a integração
nem sempre é tão harmoniosa. Alguém, por exemplo, diz que gosta muito de mim,
enquanto sua mão me afasta, ou seu rosto exprime repulsa. Ou declara que não gosta,
mas sua mão me procura. É uma situação semelhante a estar diante de um semáforo
que acende todas as luzes ao mesmo tempo. Qualquer que seja a resposta a esta
atitude contraditória do outro, restará sempre uma sensação desagrável. E talvez
também de raiva inconsciente, por ter sido colocado em uma situação sem saída. Se
esta atitude for constante ou frequente num relacionamento, será certamente um
empecilho para uma comunicação real. Como acontecer uma entrega profunda nestas
circunstâncias?
Se as palavras não correspondem a gestos e ações, é porque estão
desconectadas dos níveis mais básicos – sensação e sentimento. A pessoa emite,
então, duas mensagens diferentes, incompatíveis até entre si. Por exemplo: fala
manso, enquanto internamente cresce sua raiva, consciente ou inconsciente. Em
algum momento, o interlocutor captará a mensagem agressiva; mesmo que não seja
capaz de explicar suas sensações, seu “jacaré” e seu “cão” receberão o recado e
reagirão. Talvez a reação também não seja explicita, pois estes níveis primários,

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reptiliano e límbico, muitas vezes não são conscientes. A maioria apenas sente o
perigo; sabe que precisa se defender, mas não detecta bem do quê. E mais: se
perguntarmos a alguém qual é sua sensação naquele momento, é bem possível que
responda o que está pensando, por não conseguir descriminar sensação, sentimento e
pensamento. Mesmo assim, não deixará de ser atingindo pelas mensagens emocionais
da conversa, nem de reagir a elas. Só quem está bem integrado em seus três cérebros
e, portanto, em sua personalidade, consegue perceber sensações, discriminar
sentimentos e transforma-los em expressão verbal. Se um dos interlocutores puder
fazer isso, já será uma maravilha capaz de evitar uma guerra muito irracional.
Ninguém melhor para ilustrar mensagens contraditórias que o famoso João-
Sem-Braço. Bonzinho, não grita, nem dá soco, fala macio, não afronta diretamente,
negocia, aguenta. Mas é perito em destruir. Bate sem querer e esconde o braço, sem
perceber a dor do outro. Especialista em frustrar o companheiro nas pequenas coisas
do dia-a-dia, deixa de dizer o que o outro espera ouvir e fica com sono na hora de
namorar. Seus golpes, alias, são de preferencia para o parceiro amoroso. Com os
demais é prestativo, trabalhador. Bom no que diz respeito a certas ações, mas solapa o
prazer do outro nos gestos e palavras. O que tem mesmo é medo de expressar seus
sentimentos e, de novo, como lhe aconteceu na infância, não ser aceito. Continua
achando que só o aceitam se for bonzinho e prestativo, o que no fundo, lhe causa
muita raiva.
Comunicação madura implica, entre outras coisas, troca em nível de símbolos,
que são culturais e sociais. Implica linguagem. Se quero dizer maçã, preciso preocupar-
me em usar o símbolo sonoro correspondente nesta cultura, a tal fruta do paraíso. Não
posso usar as palavras a meu bel-prazer, supondo que o outro vá traduzir meu discurso
como se fosse a mamãe que atendia meus sinais e quando eu dizia ‘tá tá’ ela sabia que
era maçã...
Quanto mais madura for uma pessoa, maior sua chance de bem comunicar. Por
isso, casais com um modelo de relacionamento do tipo fusional ou simbiótico terão
com certeza mais dificuldade de se comunicar do que casais com um modelo mais
adulto e independente de relação. Neste último caso, haverá menos projeção, no
parceiro amoroso, de questões infantis, vividas com mãe, pai, família. Haverá mais
tolerância, objetividade e leveza na vida em comum.
É justo que se diga que a vida a dois realça nossas dificuldades emocionais.
Como diz o ditado, é comendo um saco de sal juntos que um conhece ao outro. No
social não é necessário expor certos aspectos da personalidade que ficam entre o
casal, sobretudo quando a relação é do tipo simbiótico, onde tudo é depositado no
outro, já que não é permitida nenhuma outra presença significativa. E é o social que dá
opções e saídas, enriquecendo a vida a dois.
Por outro lado, correr risco de ligar-se a alguém, de amar, mesmo que
possamos sofrer e sangrar nas velhas feridas, é o melhor remédio, para elas se
curarem. Quantas vezes descobrimos que nos casamos com uma edição melhorada
(ou piorada) de nossos pais? Uma vantagem de tal casamento é podermos entender
aspectos negativos da mãe e do pai que, por serem até então obscuros, nos
confundiam.

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Amando, colocamo-nos nus e inteiros diante do outro. Isto requer a coragem


de correr o risco, apesar do medo, essa emoção básica que nos faz correr em busca de
segurança. É a aceitação da insegurança como fato existencial que nos dá equilíbrio. O
medo que nos faz sair da relação no primeiro ato, quando a verdade começa a se
revelar, nos impede a satisfação de atravessar as dificuldades, aquele território entre a
lua-de-mel e o terceiro ato, marcado pela alegria da integração e da melhor
comunicação.
A comunicação amorosa exige humildade e generosidade. Como Marília
Gabriela disse em um artigo: “Custa dizer que me ama?”. Conforme o caso, custa
muito. Um faminto não dá ao outro seu sanduiche. Generosidade e gratidão são
sentimentos inviáveis, quando se é muito carente. É difícil perdoar a vida por não
termos encontrado um ser humano que nos tenha acolhido generosamente, quando
estávamos tão frágeis e desamparados, no ínicio da vida. Como aguentar dar ao outro
esse maravilhoso doce, esse mimo de dizer-lhe que o amo e vê-lo iluminar-se num
sorriso de alegria? E tem também o outro lado da questão: se ele disser que me ama,
posso achar que, afinal, a vida começa a saldar sua enorme dívida comigo. Recebo
aquela prestaçãozinha e fico à espera do resto. É óbvio que o outro pode se cansar
antes que eu considere a conta acertada, porque ninguém tem que a obrigação de
arcar com as duplicatas de meu pai e de minha mãe. Por isso, é bom tratar de cuidar
por conta própria desse bebê magoado e rancoroso que possa existir dentro dentro da
gente, criando circunstâncias que nos ajudem a resgatá-lo. Usando de humildade para
obter ajuda, embora, no fim, nós mesmos tenhamos de fazer o serviço.
Conversar é versar juntos. Eu faço uma estrofe, e você faz outra, e assim
formamos uma poesia. Quem versa sozinho, monologa.
Renunciar à comunicação verbal, ou utilizá-la de maneira insuficiente, é
desprezar as incríveis possibilidades que o neocórtex permitiu ao ser humano.
Somando-se a ela o gesto, que nasce do cerne da pessoa transportando sua alma, é
como uma benção. Dele brota o encontro, a oportunidade de colocar-nos juntos do
outro sentindo, juntando a palavra à ação é trocando elaboração e reflexões.
O fruto do encontro é saboroso. Vai além do prazer individual: é alegria que se
alastra e contagia.

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