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FÁBIO RAMOS BARBOSA FILHO

GABRIEL DE ÁVILA OTHERO


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(ORGAN IZAÇÃO)

LINGUAGEM
"NEUTRA"
LíNGUA E GÊNERO
EM DEBATE

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FÁBIO RAMOS BARBOSA FILHO
GABRIEL DE ÁVILA OTHERO
(ORGANIZAÇÃO)
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Sírio Possenti, Heronides Moura, Guilherme R. C. Mader,
Raquel Meister Ko. Freitag, Silvia Cavalcante,
Anna Christina Bentes, Rafaely Carolina da Cruz,
Carolina Jansen Gandara Mendes, Danniel Carvalho,
Fábio Ramos Barbosa Filho, Mara Glozman,
Samuel Gomes de Oliveira

LINGUAGEM
"NEUTRA"
LíNGUA E GÊNERO
EDITOR
Marcos Marcionilo
EM DEBATE
CONSELHO EDITORIAL
Ana Stahl Zilles [Unisinos]
Angela Paiva Dionisio [UFPf]
Carlos Alberto Faraco [UFPR]
Celso Ferrarezi Jr. [UNIFAL]
Egon de Oliveira Rangel [PUC-SP]
Henrique Monteagudo [Universidade de Santiago de Compostela]
José Ribamar Lopes Batista Jr. [UFPI/CTF/LPT]
Kanavillil Rajagopalan [Unicamp]
Marcos Bagno [UnB]
Maria Marta Pereira Scherre rUFES]
Roberto Mulinacci [Universidade de Bolonha]
Roxane Rojo [UNICAMP]
Salma Tannus Muchail [PUC-SP]
Sírio Possenti [UNICAMP]
Stella Maris Bortoni-Ricardo [UnB]
Tommaso Raso [UFMG]
Vera Lúcia Menezes de Oliveira e Paiva [UFMG/CNPq]
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Direção:

Capa e diagramação:
ANDREIA

TELMA
CUSTODIO

CUSTODIO
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Revisão: THIAGOZILlOPASSERINI

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE A língua é um traje coberto de remendos


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
feitos de seu próprio tecido.
L727 FERDlNAND DE SAUSSURE
Linguagem "neutra" : língua e gênero em debate / organização Fábio
Ramos Barbosa Filho, Gabriel de Avila Othero ; Sírio Possenti ... [et alo].- 1.
ed. - São Paulo: Parábola, 2022 ..
216 p.; 23 em. (Lingua[gem]; 95)
A linguagem fez-se para que nos sirvamos dela,
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-7934-254-7 não para que a sirvamos a ela.
1. Linguística. 2. Linguagem e línguas - Igualdade de gênero. I. Barbosa FERNANDO PESSOA
Filho, Fábio Ramos. 11.Othero, Gabriel de Avila.llI. Possenti, Sírio.IV. Série.

22-76117 CDD:410
CDU: 81'1

Meri Gleice Rodrigues de Souza - Bibliotecária - CRB-7/6439

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zída ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou
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ou banco de dados sem permissão por escrito da Parábola Editorial Ltda.

ISBN: 978-85-7934-254-7
978-85-7934-253-0 (e-book)
,. edição - ,. reimpressão, maio de 2022
•••
© do texto: Fábio Ramos Barbosa Filho, Gabriel de Avila Othero,
© da edição: Parábola Editorial, São Paulo, 2022
2022. •••
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APRESENTAÇÃO 9
Gabriel de Ávila Othero

O GÊNERO E O GÊNERO 17
Sírio Possenti

REVERSÃO DE GÊNERO GRAMATICAL NO PORTUGUÊS


Moura e Guilherme R. C. Mader
Heronides
BRASllEIRO 37
APRESENTAÇÃO
CONFLITO DE REGRAS E DOMINÂNCIA DE GÊNERO 53 GABRIEL DE ÁVILA OTHERO
Raquel Meister Ko. Freitag

A MORFOlOGIA DE GÊNERO NEUTRO E A MUDANÇA ACIMA DO NíVEL DE


CONSCIÊNCIA 73
Silvia Cavalcante

FEMINISMO, MíDIAS DIGITAIS E LINGUAGEM INClUSIVA 95


Anna Christina Bentes , Rafaely Carolina da Cruz e Carolina Jansen Gandara Mendes

QUEM É ÊlA? A INVENÇÃO DE UM PRONOME NÃO BINÁRI0 119


Oanniel Carvalho .

PROJETOS DE lEI CONTRÁRIOS À "LINGUAGEM NEUTRA" NO BRASll 141


Fábio Ramos Barbosa Filho

CONTRIBUiÇÕES PARA INTERVIR NA ESFERA PÚBLlCA 161


Mara Glozman

A LINGUAGEM NEUTRA E O ENSINO DE líNGUA PORTUGUESA NA ESCOlA 1??


Samuel Gomes de Oliveira

REFERÊNCiAS 197
OS ORGANIZADORES 209
• ••
AS AUTORAS E OS AUTORES 211 •••
8
Essas perguntas circulam pelos meios de comunicação, redações de
jornal, corredores universitários, escolares e até andam na pauta de polí-
ticos - que têm interesse em respeitar ou atacar a linguagem neutra ou
inclusiva, a depender de seu posicionamento político-ideológico.
Para este livro, convidamos alguns colegas linguistas que têm pensado
a questão a exporem suas ideias e análises sobre o tema, afinal, trata-se -
• • • • • • • • • • •• • antes de tudo - de um fenômeno de linguagem. Independentemente
• • • •• • • • • • • • • área de atuação, cabe-nos conhecer o assunto e nos informar sobre ele, nem
de nossa

que seja para poder iluminar uma conversa com pessoas leigas em linguís-
tica. Como diz Sírio Possenti em seu capítulo,

independentemente de se chegar a uma solução de consenso entre as alterna-


tivas postas, e até mesmo no caso extremo de alguém não aderir a nenhuma
alteração na estrutura língua para atender às demandas postas, o fato é que a
questão está posta. Seria indecente não reconhecer sua relevância.

Aliás, as colegas e os colegas que contribuíram com este livro com-


põem um mosaico muito interessante: cada umía) pensa o fenômeno de um
é uma resposta de parte da comunidade linguística a algumas ponto de vista distinto, o que mostra a complexidade do fato em debate,
E
STE LIVRO

perguntas que têm circulado nos últimos anos: cuja discussão não pode ser ignorada.
Oque é o gênero neutro? O primeiro capítulo, "O gênero e o gênero", é assinado por Sírio Pos-
O que é linguagem neutra? senti, professor titular da Unicamp, que atua principalmente na área de
É o mesmo que linguagem inclusiva? análise do discurso. Em seu capítulo, ele apresenta a questão do gênero
Precisamos disso? neutro trazendo diferentes pontos de vista sobre a nova formação na lín-
Quem se beneficia de toda essa discussão? gua; discute a formação morfológica de substantivos e adjetivos e fala sobre
Trata-se de uma "corrupção" da língua? o masculino como forma não marca da. Possenti faz, como ele mesmo diz,
De uma inovação? "uma espécie de breve pot-pourri", apresentando algumas "vozes" sobre o
Como abordar esse fenômeno em sala de aula? assunto. Mais tarde, ele afirma, citando Charaudeau:
O que ele tem a ver com o movimento feminista?
E com a sociedade em que vivemos? A conotação de um morfema não é uma questão de língua, mas de discurso, o

O que diz a legislação sobre a linguagem inclusiva? que implica postular que ela está ligada a seu uso, que é sempre contextual e

É preciso legislar sobre a língua? historicamente situado.

Uso querid@s, queridXs ou querides? Tem alguma diferença?


E se eu não quiser usar nenhuma dessas formas? o segundo capítulo, "Reversão de gênero gramatical no português bra-
O que é o "masculino não marcado"? É masculino e é não marcado? sileiro", tem como autores Heronides Moura e Guilherme Mãder, Ambos,
O que é um pronome não binário? orientador e doutorando na Universidade Federal de Santa Catarina, vêm da

lQ I jnaLl..At:lArD..IiI!aQutr~o.u.!l_o..aôr:\.o .••
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área da pragmática e estudam a expressão gramatical nas relações de gênero Investigando essas estratégias morfológicas em um corpus de textos
na sociedade. Em seu capítulo, discutem a reversão de gênero gramatical, auto declarados feministas, Anna Christina Bentes, Rafaely Carolina da
que acontece "quando itens lexicais, pronomes ou marcações de gênero Cruz e Carolina Jansen Gandara Mendes nos apresentam análises instigan-
gramatical têm a sua referência invertida", ou seja, quando palavras comu- tes no quinto capítulo, intitulado "Feminismo, mídias digitais e linguagem
mente utilizadas para denotar homens são aplicadas a mulheres e vice-versa. inclusiva". As autoras argumentam: "Os recursos linguísticos mobilizados
Moura e Mâder discutem a suposta neutralidade do masculino em portu- para o exercício da chamada 'linguagem neutra' fazem parte do esforço
guês e argumentam, com uma série de exemplos, que essa neutralidade não mais amplo de construção e de uso do que se tem entendido por 'lingua-
passa de uma cortina de fumaça. Eles também mostram com vários exem- gem inclusiva'" e "a diversidade de marcação de gênero que emerge (...) se
plos uma triste realidade: ''Assim como ocorre também em outras línguas, dá não de maneira aleatória, mas de maneira razoavelmente ordenada e
mantém-se no português uma assimetria na reversão de gênero gramatical". discursivamente qualificada". Para elas, essa diversidade de maneiras de
Para ilustrar minimamente seu ponto, veja exemplos em que a palavra mas- marcar o gênero neutro ou inclusivo "resulta de um conjunto de ações de
culina tem uma conotação positiva, ao passo que a feminina carrega uma natureza metalinguística que mostram (...) modos de apropriação da varia-
conotação plena de "condenação moral": aventureiro/aventureira; pistoleiro/ ção na marcação de gênero", o que parece ser o indício do surgimento de
pistoleira; touro/vaca; galo/galinha; homem da vida/mulher da vida. um "estilo social" que estabelece distinções entre quem emprega a lingua-
Essa discussão nos leva ao terceiro capítulo, de Raquel Meister Ko. gem inclusiva (e como a emprega) e quem não a utiliza.
Freitag, intitulado "Conflito de regras e dominância de gênero". Freitag Após a análise e a exemplificação, em especial, de estratégias de mar-
argumenta: estamos passando "por um período de menor estabilidade na cação de gênero (feminino, masculino e neutro) em substantivos e adjeti-
língua, com a regra de uma hegemonia, o masculino supostamente neu- vos, o sexto capítulo, assinado por Danniel Carvalho, se debruça sobre o
tro, sendo ameaçada por outra regra, a da neutralização do gênero". Para gênero neutro na formação de pronomes em português. Daí o título de seu
ela, "nesse conflito, o gênero feminino é, mais uma vez, apagado e margina- capítulo: "Quem é êla? A invenção de um pronome não binário". Carvalho
lizado". Freitag mostra como a linguagem neutra está relacionada ao movi- tem se dedicado à investigação dos pronomes em português e aqui apre-
mento feminista e às marcas femininas na linguagem. senta um estudo relacionando a formação de pronomes à identidade de
Trazendo a discussão para um ponto de vista de análise gramatical, o gênero em comunidades LGBTQIA+.Trata-se de um capítulo muito pessoal
quarto capítulo, "Amorfologia de gênero neutro e a mudança acima do nível e informativo. Ao escrever o texto, ele não adotou "um rótulo de filiação
de consciência", é assinado por Silvia Cavalcante. Ela discute as formas de teórica ou metodológica". Antes, afirma ele,
marcação morfológica do gênero neutro, seja na escrita, com o recurso do
considero-o um estudo crítico. Julguei importante mencionar a decisão tomada,
@ (car@ alun@s), ou do x (carxs álunxs), seja na fala e escrita, com a vogal-e
não para justificar a excentricidade do texto, mas para registrar de onde falo, de
(cares alunes). Cavalcante trata "especificamente da questão morfológica do
onde vem o meu olhar sobre o tema. É um registro em primeira pessoa, feito a
afixo de gênero neutro, com uma análise baseada na proposta de Camara
partir de minha observação do caleidoscópio sociocultural e linguístico que reflete
Jr.", pioneiro da análise morfológica de flexão nominal em português bra-
minha formação como indivíduo e sujeito acadêmico e social, ao mesmo tempo
sileiro. Ela apresenta propostas para o sistema de gênero neutro em dife-
rentes línguas e explica a mudança morfológica aplicada a substantivos, minha origem de uma cultura nordestina e cuir.

adjetivos e pronomes em português. Além da descrição clara e baseada em


regras morfológicas e sintáticas produtivas da língua, Cavalcante discute Carvalho traz uma ampla discussão sobre o uso pronominal em
uma série de exemplos concretos que coletou em um corpus constituído por português brasileiro (e outras línguas) e sua relação com a identidade de
textos de alunos e professores da Faculdade de Letras da UFRJ. gênero. Para ele,

,~
o caso do português brasileiro ilustra como a integração de pesquisas sobre
trata-se de um projeto elaborado em colaboração entre a Deputada nacional
estrutura da língua, políticas de linguagem e estilo linguístico pode contribuir para
Mónica Macha - atual presidenta da Comissão de Mulheres e Diversidade da
uma justiça linguística de gênero, fomentando a redução da estereotipificação lin-
guística, geradora de discriminação, Câmara de Deputados - com sua equipe parlamentar e uma comissão de asses-
soria técnica, formada por Guadalupe Maradei (professora e pesquisadora da Uni-
versidade de Buenos Aires, especialista em teoria e crítica literária com perspectiva
Aí encontramos não apenas a relevância e a justificativa desse sexto
capítulo, mas deste livro como um todo. de gênero), SaSa Testa (mestra em estudos e políticas de gênero, bolsista CLACSO
em Formação Política, doutorandx em ciências sociais e ativista trans não binária)
Esses seis primeiros capítulos apresentam, descrevem e problemati-
zam o fenômeno da linguagem neutra sob diferentes ângulos e pontos de
vista. Os próximos três capítulos deixam nosso "cercadinho" intelectual e e ela mesma. Nosso oitavo capítulo demonstra como um país tão próximo
acadêmico e discutem como as estratégias de linguagem inclusiva têm sido lida com questões de gênero na linguagem (no caso em tela, o espanhol
abordadas e debatidas em ambientes externos à academia: nas câmaras argentino). Por ser linguista e uma das autoras do projeto encaminhado
legislativas e na sala de aula. à Câmara dos Deputados, Glozman esclarece em detalhes como a legisla-
O capítulo sétimo, de Fábio Ramos Barbosa Filho, discute alguns "Pro- ção pode ser conduzida para fazer avançar as discussões entre gênero e
jetos de lei contrários à 'linguagem neutra' no Brasil". Nele, Barbosa Filho sociedade ou, por vezes, a (tentar) fazer o debate retroceder. Além da dis-
faz uma análise de seis projetos legislativos que tentam proibir ou coibir o cussão do texto da proposta e da problematização sobre legislar os usos da
uso de estratégias de linguagem neutra. A ideia do autor não é argumen- linguagem, a autora ainda explica as semelhanças e diferenças entre tan-
tar a favor da 'linguagem neutra' nem contra ela; tampouco argumentar tos termos que encontramos atualmente em torno do fenômeno, tais como
a favor dos projetos de lei ou contra eles. Antes, ele se propõe a analisar "linguagem inclusiva, linguagem não sexista, linguagem neutra, linguagem
os projetos de lei tal como estão redigidos e verificar em que base se sus- não binária, gender-neutral language, gender-fair language, écriture inclu-
tentam, que pontos de vista estão sendo defendidos (e atacados) etc. São sive, entre outros". É um texto essencial para compreender o fenômeno no
palavras de Barbosa Filho: Brasil, por mais paradoxal que isso possa parecer. Quando vemos alguém
"de fora" lidando com questões muito semelhantes às nossas, podemos ver
Não objetivo aqui dar um veredicto ou 'opinar' sobre os projetos de lei ou sobre com mais clareza e distanciamento o fenômeno.
a própria linguagem neutra, Portanto, não falarei do problema da adequação ou Finalmente, no nono e último capítulo, Samuel Gomes de Oliveira faz
inadequação da inclusão do gênero neutro no português brasileiro, (",) eu gostaria, um fechamento do livro em seu capítulo "Alinguagem neutra e o ensino de
apenas de desconfiar, Desconfiar de que, talvez, o debate legislativo em torno da lin- língua portuguesa na escola". Oliveira retoma as discussões prévias sobre
guagem neutra não seja um debate linguístico (se por linguístico podemos também as possibilidades de aplicação das regras de neutralização de gênero em
entender gramatical), Trata-se, sem dúvida, de um debate semântico, ligado tanto substantivos, adjetivos e pronomes e, a partir daí, aborda o ensino de lín-
aos sentidos de objetos como 'linguagem' e 'língua', quanto aos de 'neutro', 'neutra', gua portuguesa na escola, baseando-se em dois documentos norte adores
'aluno', 'aluna', 'estudante', 'nós', 'eles', 'ideologia', 'gênero', 'nação', entre outros, do sistema escolar brasileiro, a saber, os Parâmetros Curriculares Nacionais
e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC).Para Oliveira,
Na sequência, Mara Glozman discute um projeto de lei sobre a utiliza-
ção de linguagem inclusiva apresentado à Camara de Deputados de nossa a linguagem neutra como um todo - sua realização linguística, sua função social
vizinha Argentina. Seu capítulo intitula-se "Contribuições para intervir na
- deve estar no espaço escolar, afinal, esse espaço (" ,) busca formar cidadãos
esfera pública: projeto de lei sobre a linguagem inclusiva de gênero". Como
críticos capazes de participarem politicamente da sociedade, A afirmação de que
explica Glozman,
a linguagem neutra deve ter lugar na escola se justifica, inclusive, no documento

14
Linguagem "neutra" - Língua e gênero em debate
Apresentação 15
oficial atualmente em vigor, que rege a educação brasileira, a Base Nacional
Comum Curricular (BNCC)",

o autor elenca três razões para trabalhar a linguagem neutra na


escola. São eles
(i) a linguagem neutra é um tema socialmente relevante;
•• •• • • •• • ••• •
(ii) a linguagem neutra possibilita a compreensão de que a língua é • •• • •• •• • • •• •
revestida de poder simbólico;
(iii) o trabalho com a linguagem neutra pode se configurar como
uma boa prática de reflexão linguística.

A partir daí, Oliveira apresenta reflexões e sugestões ao professor e à


professora que pretendem trabalhar com o assunto em sala de aula.
Este livro, organizado por dois linguistas de formação teórica dis-
tinta, pretende ser útil à discussão da linguagem neutra no contexto em
que estamos vivendo. Espero que os capítulos que se apresentam ao leitor
e à leitora nas próximas páginas possam auxiliar em sua formação como
linguistas, como professores ou professoras e, para além disso, como
o GÊNERO
cidadãos e cidadãs que desenvolvem o pensamento crítico e pautado em
estudos científicos sobre os fenômenos da linguagem. Em tempos de pseu-
E O GÊNERO
dociência, nada substitui a discussão de fenômenos linguísticos e sociais SíRIO POSSENTI
baseada em investigação científica séria e comprometida.

•••
•••
16 Linguagem "neutra" - Língua e gênero em debate
uma questão gramatical (morfológica e/ou sintática), talvez precedida de
alguma informação histórica e antropológica. Provavelmente, essa aproxi-
mação chamaria a atenção para alguma arbitrariedade do gênero de cada
palavra em cada língua. Por exemplo: "Cor" é palavra feminina em portu-
guês (a cor) e masculina em espanhol (el colar). Mesmo no que se refere a
• ••• • • •• •• • • • seres humanos e a outros seres animados, a correspondência sexo-gênero
• • • • • • • ••• • • • não é biunívoca. Bastaria citar "crianças" (que, apesar de ser um substan-
tivo feminino, denota um conjunto que pode ser formado tanto por meni-
nos quanto por meninas), porque, segundo a lógica mais banal, um con-
traexemplo é suficiente para falsear uma hipótese.
Atualmente, a palavra "gênero" pode sugerir três temas:
(i) uma questão velhíssima, reatualizada por Bakhtin (a propósito
de textos/discursos);
(ii) uma questão gramatical (palavras masculinas, femininas e neu-
tras, em nossa tradição cultural, com ou sem alusão a questões
antropológicas);
(iii) ou, a maior novidade e a mais recente, uma questão social, caso
em que "gênero" substitui, não com sentido equivalente (isso
A língua é fascista, nunca ocorre), a palavra "sexo". Melhor: mais disputa espaço do
(Barthes) que substitui.
A língua não é sexista, assim como a língua não é
fascista, É do discurso que se trata, e não da língua, Uma evidência de que se trata de fenômeno recente é que um opúsculo
(Charaudeau) de Malcolm Coulthard, escrito há pouco mais de vinte anos e destinado a
A linguagem [é] a um só tempo integralmente combater o machismo - que hoje é uma questão de gênero, no terceiro
formal e integralmente atravessada pelos
embates subjetivos e sociais, sentido -, se chama Linguagem e sexo (Coulthard 1991).
(Maingueneau) Meu pot-pourri trata de um cruzamento da questão gramatical com a
Os alunos e as alunas estão se questão social do gênero, ou, em um jogo de palavras, da questão da repre-
posicionando, E os professores?
(ouvido em assembleia de estudantes)
sentação do gênero pelo gênero. Obviamente, não cobre todos os aspectos,
de maneira que há mais furos do que espaços cobertos.

E mais do que apresentar uma conclusão ou um ponto de


STE CAPíTULO,

vista pessoal em relação à polêmica sobre a questão do gênero ou uma


UM DEPOIMENTO
opção entre diversos posicionamentos, é uma espécie de breve pot-pourri,
ou seja, a apresentação de algumas "vozes" sobre o tema, de certa forma Quase sempre, lecionando nos cursos de letras, de linguística e de
resumidas nas epígrafes, que demandam uma leitura que leve em conta o fonoaudiologia na Unicamp, eu me esforçava por assumir um curso intro-
contexto de produção e o campo de que provêm. dutório destinado a dar a conhecer aos alunos os "problemas" de lingua-
Há algum tempo, o tema sequer existia. Tratando-se de um texto gem (eu me justificava dizendo que meu sonho era transformar secunda-
de linguística, seria óbvio que a palavra "gênero" estivesse associada a ristas em universitários). O objetivo era oferecer um breve panorama das

18
Sírio Possenti o gênero e o gênero 19
questões que provavelmente seriam tratadas durante os anos seguintes do cã~ o~hor amigo do homem
cadela = puta

curso (menos intensamente em fonoaudiologia). vagabunda = puta


vagabundo = desocupado
Um tema constante era o clássico "linguagem e cultura", evocando vaca = puta
= homem
velhos casos, como parentesco e cores, aos quais acrescentava os termos
técnicos, científicos e ideológicos. Além disso, incluía um toque sobre
-
touro

pistoleiro =
forte

assassino
pistoleira = puta

papéis temáticos, porque verbos não são apenas transitivos ou intransitivos aventureiro = destemido, desbravador
aventureira = puta

etc.; eles também selecionam sujeitos e objetos de um tipo ou de outro. Por garoto de rua = menino que vive na rua
garota de rua = puta
exemplo, alfaces não perseguem vacas; bebem-se líquidos e comem-se sóli-
dos (embora não na língua dos índios xetá, entre outras etc.). Enunciados
-
homem da vida = pessoa com sabedoria
mulher da vida = puta

o galinha = o "bonzão", aquele que traça todas


a galinha = puta
como mulher apanha eram comparados com namorado / marido bate etc.
puta = irritado, bravo
puta = puta
Em 1991,tomei conhecimento de dois livros: Falas masculinas, falas
femininas? Sexo e linguagem (publicado em 1991e organizado por Aebischer e
Curiosamente, falta nesta lista a dupla "homem público = aquele que
Forel) e da supramencionada obra de Coulthard. Imediatamente, introduzi
o tema no programa da disciplina. Esta última obra me permitiu conhecer ocupa alto cargo; mulher pública = puta".
Com esse exemplo, cujos itens poderiam ser enormemente aumen-
outra, derivada de uma dissertação de mestrado chamada Sexo e linguagem,
tados, represento o espaço em que, na minha avaliação (não só minha, é
defendida na PUC-Rio.O livro se chamou A mulher na língua do povo (Leitão,
óbvio - ver Coulthard e Leitão, com quem aprendi muito sobre a questão)',
1981),cujos dados são bastante citados por Coulthard. Não sei se o tema foi
se exerce com a maior clareza a discriminação social de gênero. De certa
introduzido antes disso em algum curso de letras ou de linguística.
forma, está aqui assinalada minha provável conclusão ou tese: é no léxico
Este tópico era, em geral, acompanhado de uma pequena pesquisa
que a violência discursiva no campo dos gêneros se exerce mais pesada-
- já que o trabalho básico era ler e discutir o livro de Coulthard e partes
mente e é nesse espaço, em consequência, que a luta é mais relevante e
dos outros dois (em geral, fazíamos isso em doze horas de aula). A pesquisa
mais claramente fundamentada em fatos.
mais óbvia consistia em verificar com algum cuidado os verbetes "homem"
e "mulher" em um dicionário, com especial atenção a subverbetes como
"homem público" e "mulher pública", pesquisa inspirada pelas exposições A VOZ DA GRAMÁTICA
de Leitão e de Coulthard. Mas outros dados, frequentemente lembrados
As gramáticas não tratam do gênero de forma unânime, o que não é
por alunos/as, eram explorados e, pelo menos brevemente, analisados.
surpresa. Mas pode-se dizer, com pouco risco de errar: quanto mais recen-
A experiência dos/as alunos/as fornecia eventualmente sugestões
tes elas são, mais se aproximam da análise que aqui atribuirei à linguística.
interessantes. Uma de que me lembro decorreu da leitura de um texto
Pereira (1957:83-89), por exemplo, depois de breve histórico em que
sobre insultos na Paris do século XVIII,já em uma aula de sociolinguística,
trata da passagem do latim para o português, apresenta de fato algumas
que inspirou um aluno a perguntar às colegas o que mais as ofendia: serem
listas: palavras masculinas e femininas segundo sua significação (gênero
chamadas de putas ou de burras. A maior parte da pequena amostra consi-
de palavras que designam seres vivos do sexo masculino e feminino;
derou que "burra" era uma palavra mais ofensiva. Era um possível sintoma
nomes de letras são masculinas e os de partes do mundo são femininas,
de mudança de valores?
Em algum momento, alguém fez circular o seguinte texto, ainda
I Em Coulthard, vi pela primeira vez dados que desmentem a crendice popular segundo a qual as mulhe-
encontradiço nas redes, que mostra que a palavra feminina de uma dupla é res são "faladeiras" (os dados mostram que os homens falam mais) e do que hoje se chama de manterrup-
frequentemente derrisória e é associada ao campo da sexualidade: ting, uma forma brutal de machismo que não aparece na língua, e sim no discurso.

21
20 Sírio Possenti o gênero e o gênero
por exemplo) e segundo sua forma (terminadas em -o e em -u são mascu- finalmente a sua tese: "O gênero dos substantivos se afirma pela seleção da
linas, terminadas em -gem, -dade e -ice são femininas). Todas as listas são forma do artigo determinante" (Camara Jr. 1966: 152). Não é o caso de reto-
seguidas de uma lista de exceções! Estão incluídas listas de particularida- mar muitas de suas sagazes considerações, mas duas parecem essenciais.
des, uma das quais merece destaque: a de palavras que são femininas ou A primeira diz respeito à formação do feminino em duplas como lobo/
masculinas segundo recebam o artigo a ou o artigo o, como acrobata / con- loba. A questão se desdobra em duas:
sorte / artista - e linguista, acrescento. Destaco também a lista de "subs- (a) a vogal final de "lobo" (-o) não é, para o autor, marca de masculino,
tantivos que formam o feminino com a simples mudança da terminação ou mas apenas o tema da palavra, ou seja, um morfema classificató-
flexão masculina" (p. 87), como lobo / loba. Essa formulação implica que o rio (assim como -e é morfema classificatório em "presidente");
-o é analisado por Pereira como marca de masculino, afirmação que não se (b) a formação do feminino se faz pelo acréscimo de -a, que implica a
encontra em obras de gramáticos mais recentes e de linguistas. queda da vogal átona final da palavra (fenômeno que ocorre sem
Há gramáticas que, embora fazendo uso extensivo das listas - o que exceção em português, seja nos verbos ("devo+es = deves"), seja em
mostra que a questão não se resolve por regras gerais -, aderem à dou- substantivos e adjetivos ("livro+eiro = livreiro"; "rápido-a = rápida").
trina que aqui atribuirei a Mattoso Camara: o gênero de uma palavra se
define pelo artigo que a acompanha: são masculinas as palavras que rece- Pode parecer contra intuitivo sustentar que o artigo definido femi-
bem o e femininas as que recebem a2• nino resulta de "o-a = a", mas uma descrição estrutural dirá exatamente
É claro que esta formulação apenas resume a regra de concordân- isso. Se a vogal final for tônica, ela permanece (café+eiro = cafeeiro). Evi-
cia, que envolve outros elementos, como outros determinantes e os adje- dentemente, a vogal final permanece se o sufixo começa por consoante:
tivos: livro é masculino porque se diz o livro, mas também porque se diz "café+zal = cafezal". Mattoso se dedica a outros casos, já que a morfologia
livro caro. Esta tese está, por exemplo, em Cunha e Cintra (1985: 182) e do português é bastante irregular, mas retenho apenas estes, que são os
em Bechara (1999: 131). Cunha e Cintra acrescentam, na mesma página, mais relevantes para a questão do gênero social.
que "o masculino é o termo não marcado; o feminino é o termo marcado" Sua doutrina, no que se refere à descrição estrutural, se resume nesta
(não se sabe se a tese vem de alguma fonte ou se é uma conclusão dos dois afirmação: "É importante ressalvar que /a/, como desinência do feminino, só
autores). Alguns insistem mais do que outros na arbitrariedade da divi- existe em função de uma oposição com o masculino de desinência ZERO" (p. 150).
são ou na não correspondência geral entre gênero e sexo (além de esta A outra tese importante de Camara Jr. (1970: 78-79), de natureza semân-
valer - quando vale - apenas para "seres" animados; ver, por exemplo, tica, é que "o feminino serve frequentemente para (...) distinguir os seres
Luft 2002: 139-40). por certas qualidades semânticas, como para as coisas as distinções como
jarro-jarra, barco-barca etc. e, para os animais e as pessoas, a distinção de
A VOZ DA LINGuíSTICA sexo, como em urso-ursa, menino-menina". Logo em seguida, ele acrescenta:

Vou tomar como representantes da voz da linguística Mattoso Camara, o masculino é uma forma geral, não marcada, e o feminino indica uma especiali-
Martin e Perini", O primeiro, depois de algumas considerações históricas e
zação qualquer tjetre é uma espécie de "jarro", barca um tipo especial de "barco",
também relativas à diversidade dos fatos "de gênero" em português, chega
como ursa é a fêmea do animal chamado "urso" e menina uma mulher em cres-
cimento na idade dos seres humanos denominados (sic) como a de "menino").
2 Nota do Editor: a proposta de classificar as palavras quanto ao gênero graças ao artigo definido (e não a
características da palavra em si) aparece na obra Regras da língua portuguesa, de Jerônimo Contador de
Argote, de 1721. Evidentemente, a comparação pode soar derrisória para meninas/
3 Querendo saber detalhadamente como a questão é tratada numa linguística "imanente", ver Schwindt
(2020). moças/mulheres, mas penso que não é se se aceita que a morfologia não

22 Sírio Possenti o gênero e o gênero 23


tem nada a ver com questões ideológicas? como igualdade e dignidade marcado (Martin, 1975). A relevância - e a novidade - de seu trabalho
humanas. Mattoso está assumindo duas coisas: reside na consideração mais clara de argumentos sintáticos. Por isso,
(a) o masculino é não marcado; exponho seu breve texto em detalhe.
Martin parte da constatação de que, se não houvesse o fenômeno
(b) as regras de marcação e de divisão de gênero são as mesmas para
sintático da concordância, não haveria razão para falar de gênero em
humanos, animais e coisas (ou seja, trata-se de uma descrição
português6. O primeiro passo é, pois, "provar" que existe concordân-
interna à língua).
cia e, portanto, gênero. Ele propõe, então, considerar fatos simples e
Propor que o feminino é uma especificação do geral (e não do mascu- regras intuitivas:
lino, categoria que não é marcada), não implica em subordinação ou dimi-
(1) Pedra é alto.
nuição de status; uma jarra não é menos que um jarro, uma menina não é
(1') *Pedro é alta.
menos que um menino. (2) Maria é alta.
A seguinte afirmação de Perini (2016: 391) resume a questão: (2') *Maria é alto.

O resultado da análise desse pequeno corpus confirma a existência da


A nomenclatura dos gêneros pode levar a confusão. Essencialmente, o gênero
regra de concordância: "Alto" acompanha "Pedro" e "Maria" exige "alta".
gramatical não tem nada a ver com sexo, e é perfeitamente possível fazer refe-
Por isso (1)e (2) são gramaticais e (1') e (2'), agramaticais.
rência a um homem usando o feminino (a vítima, a pessoa, a criança) ou a Se esses dados representassem todos os fatos da língua, poderiam ser
uma mulher usando o masculino (o cônjuge, o participante, o personagem). E, explicados pela seguinte regra: quando o sujeito é masculino, o predicativo
naturalmente, para a maioria dos casos não há sexo envolvido: xícara, impres- vai para o masculino; quando o sujeito é feminino, o predicativo vai para
sora e teoria são femininos, mas só gramaticalmente. Isso dito, é inegável que o feminino. É a regra tradicional que conhecemos/aprendemos na escola
existe uma tendência a correlacionar gênero e sexo nos nominais que designam (predicativo representa evidentemente todas as classes relevantes para o
pessoas e certos animais: o homemla mulher, o professaria professora, o gatola fenômeno da concordância). Mas há outros fatos, não considerados explici-
gata etc. Mas esse fato não tem relevância na gramática, porque um feminino tamente pela tradição gramatical. Por exemplo:
como professora (que designa uma mulher), um como pessoa (que pode desig-
(3) Está cheio de meninos na praia.
nar tanto um homem como uma mulher) e um como xícara (que não designa
(3') *Está cheia de meninos na praia.
nem macho nem fêmea de espécie nenhuma) são gramaticalmente idênticos
em seu comportamento. Em particular, funcionam da mesma maneira para efei-
(3) é uma sentença do português, mas (3') não é. Assim, cabe a pergunta:
tos de concordância.
com qual sujeito concorda "cheio"? E por que a forma "cheia" não pode
ocorrer nessa construção?
A sentença (3) pode ser considerada sinônima de "a praia está cheia de
Poderia concluir a menção à voz dos linguistas com essas afirmações
meninos" (quando "cheia" concorda com "praia") ou de "meninos enchem
de um gramático linguista (ou de um linguista gramático), mas o final da
a praia". Mas isso não explica a concordância em (3), nem o fato de que (3')
.citação demanda algo mais, o que é fornecido por John Martin-,
é estranha à língua. O argumento fica ainda mais forte se introduzirmos
Em 1975, John Martin publicou artigo apresentando argumentos
que seguem a trilha de Mattoso sobre masculino não marcado e feminino outro dado:
(4) Está cheio de laranja na geladeira.
4 Afastaria, se tivesse poder para tanto, qualquer traço negativo da palavra ideologia/ideológico.
5 Lembro que, quando conheci este texto, me ocorreu pensar (e depois dizer, mais de uma vez) que, talvez
por ser estrangeiro, Martin viu mais claramente uma saída que escapava aos falantes nativos. 6 Deve-se ressalvar os dêiticos e os anafóricos. penso.

25
24 Sírio Possenti o gênero e o gênero
em que as palavras "laranja" e "geladeira" poderiam ser hipotéticas can-
(a) quando se ligam a nomes masculinos;
didatas a receber uma concordância de "cheio" (isto é, cheia), mas não a
(b) quando não se ligam a nada (aqui e hoje são iguais a nada,
recebem, como se vê pela agramaticalidade de
entenda-se);
(4') *Está cheia de laranja na geladeira. (c) quando se ligam a orações (plenas ou com elementos elípticos).
Martin introduz então outra hipótese: quando a oração não tem O que fazer diante de tais fenômenos? O melhor é fazer como Copér-
sujeito, O predicativo vai para o masculino. Essa hipótese pode ser testada nico: começar de outro lugar, mudar de hipótese (se as coisas não dão certo
.com outros fatos que a confirmam: com a Terra no centro do sistema, que tal supor que é o Sol que ocupa esta
(5a) Faz frio (*faz fria). posição?). Foi o que fez John Martin: propôs não haver oposição masculino
(õb) Aqui está gelado (*aqui está gelada). vs. feminino. Para ele, a oposição correta, verdadeira, é marca de gênero vs.
(õc) Hoje choveu feio (*hoje choveu feia) etc. ausência de marca de gênero.
Os nomes com marca de gênero, em português, coincidem exatamente
Mas, diz Martin, seria estranho afirmar que a concordância com
nada é o mesmo que a concordância com masculino (seria uma regra ad com os que estamos acostumados a considerar femininos. Todos os outros
hoc, pecado grave para um cientista). Além do mais, isso daria início a uma
casos seriam considerados sem gênero, inclusive os nomes usualmente
lista, que implicaria desistir de procurar uma regra (não se imagina fazer considerados masculinos (o que implicaria mudanças nos dicionários, algo
isso com a queda dos corpos nem com vírus). como abandonar Ptolomeu).
Além de haver predicativos masculinos concordando com nomes Parece evidente se poder aceitar que não há marca de gênero no sujeito
masculinos e com nada, também se encontram predicativos masculinos quanto não há sujeito (como em "está frio"). Provavelmente ninguém teria
em outros contextos sintáticos, como, por exemplo, na sequência problemas em não considerar masculinas as orações subjetivas ("navegar é
preciso", "tomar uma cerveja seria ótimo", "viver é perigoso" etc.).
(6) Uma cerveja seria ótimo
Resta convencer o povo de que nomes considerados masculinos, na
proferida em um contexto como "Com um calor desses, uma cerveja seria verdade, são apenas um dos casos de ausência de feminino, ou seja, de
ótimo". A sequência (6) pode ser interpretada como 'tomar uma cerveja ausência de marca de gênero (afinal, vemos o pôr do sol todos os dias ...).
seria ótimo', na qual alguns elementos estariam elípticos. Mas se tais ele- As vantagens seriam várias. Na sintaxe, pelas razões expostas, uma
mentos forem recuperados (tomar uma cerveja ...), vê-se logo que não são só regra explicaria todos os casos: só há concordância quando o elemento
nomes masculinos. Apesar disso, qualquer falante do português concor- a ser flexionado se liga ao feminino (marcado). Nos outros casos, a palavra
dará que são estranhas sequências como que potencialmente sofreria concordância não recebe marca alguma. Ou
(7) *Uma cerveja seria ótima. seja: em "O aluno é dedicado", não há concordância, por mais contraintui-
(8) *Tomar uma cerveja seria ótima. tivo que isso pareça (o So1...).As duas palavras envolvidas continuam sem
receber marcas, estão em estado de dicionário (um dicionário mental, ou
Relembremos os argumentos. Há claramente concordância de pre- impresso, mas modernizado). Por isso, outra consequência é que a forma
dicativo no feminino em frases como "Maria é alta". Mas há predicativos
básica dos nomes (e dos adjetivos, artigos e outros determinantes) não é
masculinos tanto em casos como "Pedro é alto" quanto em "Está cheio de
marcada quanto ao gênero. Assim, "menino", "sapato" etc. são apenas for-
laranja na geladeira", ''Aqui é bom" e "Tomar uma cerveja seria ótimo".
mas sem marca de gênero (e não com marca de masculino). O -o final de
Para explicar os três últimos casos, teríamos de aceitar uma regra
"menino" e de "todo", por exemplo, não é marca de masculino, mas uma
muito estranha: os predicativos concordam no feminino com nomes femi-
vogal temática, cuja função é apenas classificar palavras (que terminam
ninos e concordam no masculino em três casos:
assim ou assado, e por isso têm, ou não têm, plurais e femininos assados ou

26
Sírio Possenti o gênero e o gênero 27
para ser confirmada ou infirmada, exigiria outros dados, talvez outros
assim, como ator, cruel, gol etc.). A tese explica também a função de outras
vogais finais ("presidente/infante" têm vogal temática "-e" e caem quando o experimentos.
-a de feminino é acrescido) e a das vogais temáticas dos verbos.
À tese de Martin valeria acrescentar dois fatos:
(a) são cada vez mais frequentes construções como "Foi descoberto
Se, por um lado, -o não é marca de masculino, -a é marca de femi-
duas minas", nas quais a concordância (nem de gênero, nem de
nino, mas apenas quando acrescentada a uma base não marcada (-o, -e, por
número) não se aplica porque o sujeito está posposto (não pre-
exemplo). Assim, a regra que sempre estudamos passa finalmente a fazer
cisa ser composto, como dizem as velhas gramáticas). Dizer "a
sentido: construímos formas femininas acrescentando um -a à base da
concordância não se aplica" significa dizer que "descoberto" é
palavra. Por isso, o que parece ser o "mesmo" -u não é marca de feminino
uma forma não marcada. É outro dado do tipo "concordar com
em palavras como "linguísta", "humorista" e "caixa", por exemplo.
nada", porque o elemento que comandaria a regra está fora de
Mas não parece bobagem falar de formas sem marca de gênero,
sua posição "natural";
depois de ouvir o contrário durante séculos?, Segundo essa tese\ não. As
(b) em algumas regiões do Brasil, notadamente no Mato Grosso,
palavras ditas masculinas são não marcadas. E por isso que se diz "o circo
há ocorrências como casa bem bonito, casado com meu irmã, a
tem dez leões", mesmo que haja ali cinco leões e cinco leoas, mas não se paçoca tá fino, procurar pessoa do meu personalidade, mãe dessa
diz, no mesmo caso, que tem dez leoas. Também é por isso que se tem dito: nora meu, como se pode ver em Lima (2007). O relevante é que
"Todos nascem iguais em direitos", o que inclui as mulheres, mas não se não ocorrem formas como "minha irmão", ou seja, ocorre apenas
incluiriam os homens se a forma fosse "todas nascem iguais em direitos"? a forma não marcada na posição em que, em outros dialetos, a
Um experimento apresentado em Corrêa (2006: 115-16)pode reforçar
forma marcada é categórica.
este argumento:

Quando solicitadas a identificar uma figura masculina ou feminina a partir do A VOZ DO POVO
gênero de um sintagma, em um conjunto de quatro figuras contendo um par (mas- Simplificando um pouco, pode-se dizer que os dicionários registram
culino/feminino) correspondente ao nome em questão (como macaco/macaca), duas acepções fundamentais de "povo": a população de um país ("o povo
crianças de dois anos de idade tendem a escolher, para um sintagma masculino, brasileiro"), por oposição à de outros países ("opovo argentino") e a popula-
como o macaco, tanto figuras com o elemento masculino quanto com elemento ção "pobre" de um país, por oposição aos ricos e menos pobres ou às elites.
feminino do par, enquanto, para o sintagma feminino, como a macaca, o número O verbete "popular" em Williams (2007[1976])mostra que, de fato, a
;11

I de acertos se aproxima a 100% (isto é, assinalam apenas as macacas). complexidade é bem maior, mas vou deixar isso de lado. Apenas anoto que,
I
,,I no que diz respeito à questão de que aqui se trata, as marcas de gênero na
Pode-se argumentar, é certo, que, aos dois anos, um falante já está língua, pode-se dizer que "povo" se refere à quase totalidade da população,
impregnado de ideologia, que já é umta) pequeno(a) machista, tese que, como na primeira acepção registrada nos dicionários, incluídos os linguis-
tas, com poucas exceções.
7 Seria interessante considerar a seguinte possibilidade: em textos filosóficos (jurídicos e alguns outros), Ou seja: como se pode verificar a qualquer momento, especialmente
palavras como "homem/aluno" são generalizantes ("alunos" nunca excluem alunas em textos jurídicos
relativos a seu estatuto numa escola/universidade), mas não em contextos cotidianos: "Aluno" em um re- nas discussões sobre linguagem neutra, determinadas desinências são
gimento seria generalizante, uma palavra não marcada, mas seria marcada em um e-maU do professor assumidas sem qualquer dúvida como marcas de masculino (não só o -o de
dirigido à classe (que então se dirigiria a "alunos/as"). Mas é claro que, mesmo na análise de um corpus
dado, histórico, pode-se argumentar que ele é machista. O documentário Amend é um excelente exemplo "aluno/menino", por exemplo, mas também o -e de "presidente" e mesmo o
de que do mesmo texto (a 148 Emenda à Constituição americana) não se fazem as mesmas leituras em de "professores", que só ocorre no plural). Frequentemente, acrescenta-se
épocas diferentes: primeiro incluiu os negros, depois as mulheres e finalmente os homossexuais.

29
28 Sírio Possenti o gênero e o gênero
que as análises "estruturais" são precárias (devem ser descartadas), embora O que esse discurso revela? Revela que se acredita (e essa crença é
fossem boas até há bem pouco tempo e tenham servido (e ainda servem) a também a de muitos linguistas oficiais) que a verdadeira marca de mascu-
outras causas igualitárias, especialmente às análises sociolinguísticas. lino é o -o final. Não só se aceita que palavras terminadas em -o são mascu-
Simplificando (de novo), pode-se dizer que há dois posicionamentos linas, o que é um fato quase categórico (quando também há, por exemplo,
sobre a questão do gênero no campo da linguagem: uma é evitar palavras "virago"), mas também que o masculino deveria terminar em -o, aplicando
consideradas "masculinas" em empregos universais, como "funcionário" equivocadamente a conversão, que é uma falácia, como se aprende na pri-
(substituídas por "pessoas que trabalham ...");a outra é grafar finais de pala- meira semana de aulas de lógica (se -o é masculino, então masculino é -o).
vras com @, x ou e ("alun@/alunx/alune") ou escrever (efalar) as duas formas, Vai no mesmo sentido a ocorrência cada vez mais comum da abrevia-
especialmente quando se trata de plural ("alunos e alunas", "alunos.as", "alu- ção "profb."em trabalhos universitários, a despeito de ninguém jamais dizer
nos/as"). A última opção foi a escolha de Coulthard (1991),por exemplo. "professoro", pelo simples fato, a meu ver, de que a "oposição" é "prof'.",
Observe-se que as duas últimas soluções põem em pé de igualdade Essa tese da linguística "popular" implica sustentar, em relação ao
masculino e feminino (homens e mulheres), eventualmente invertendo a que aqui importa, que é FALSO que os antigos masculinos são formas não
ordem, mas não contemplam a não binariedade, que, atualmente, é talvez marcadas, portanto generalizantes. São mesmo masculinos, e, se relativos
a questão mais quente. aos humanos - no que é relevante -, referem-se aos (pretensos) machos.
Está em curso um trabalho de incorporação à linguística "oficial" de Por qual razão? Porque é isso que o povo pensa e sente.
uma linguística popular (ver, por exemplo, Baronas; Cox, 2020), cujo obje- E se esta for uma tese pré-copernicana, o que fazer? Pior para os fatos?
tivo é a incorporação de análises de não especialistas (populares, ingênuas,
conforme a fonte) à própria ciência da linguagem.
ANÁLISE NO VÁCUO?
Dos muitos tipos de análise de dados que, segundo essa visão, talvez
não devessem ser descartados, destaco a abordagem do gênero gramatical Análises como as de Camara Jr. têm sido consideradas inadequadas
I

em português, sem esquecer sua relação com o debate sobre a legitimidade por várias razões: por serem estruturalistas, por exemplo, o que signifi-
I1
1
de "presidenta". caria basicamente que não levam em conta valores e conotações que as
111
Como se sabe, durante um certo período, quando políticos e cidadãos formas linguísticas adquirem ao longo da história, como as conotações
I1 empregavam a forma "presidenta" (que constava inclusive no Dário Oficial), machistas (e as racistas). A crítica tem a ver basicamente com não serem
diversas vozes se levantaram contra esta "mudança da língua por decreto". considerados aspectos culturais e ideológicos. A questão cultural essencial
Valem duas observações: é que há falantes/cidadãs-ãos que se sentem excluídas-os pelo uso gene-
(a) defensores radicais da gramática e do dicionário (que preserva- ralizante do "masculino". Portanto, põe-se em questão a legitimidade das
riam a língua de Camões, a ser defendida) não deram importân- análises de tópicos gramaticais que excluem qualquer outro fator que não
cia ao fato de que a forma está registrada há décadas, ou seja, que seja o intrinsecamente linguístico, divisão a que Saussure (2012[1916]) dedi-
a forma não era inovadora. Ocorre que nunca tinha havido uma cou o capítulo sobre a matéria e a tarefa da linguística (p. 13-14),excluindo
presidenta da República no Brasil; questões etnográficas, antropológicas, psicológicas etc.
(b) a segunda observação é a que mais importa aqui: nos jornais É legítimo fazer comparações com outras disciplinas? A física, por
abundaram observações jocosas e pretensamente inteligen- exemplo, formula suas leis sobre queda dos corpos e fenômenos seme-
tes insinuando que, aceitando-se a forma "presidenta", então lhantes com base em experimentos no vácuo. Mas sabemos que, quando
se deveria dizer também "presidento", "jornalista" e "humo- um canhoneiro ou um atirador ajusta a mira contra um inimigo, leva em
risto", por exemplo. Conta o vento, entre outros fatores externos, como vemos nos filmes. A

30
Sírio Possen!i o gênero e o gênero 31
farmacologia/bioquímica testa seus produtos in vitro, mas, se quer colocar tem cão caça com gato", a ser substituído por "quem não tem cão caça como
uma droga no mercado, faz testes com animais e com humanos. São tanto gato" (isto é, sozinho) ou "quem tem boca vai a Roma" (porque com a boca
exigência éticas quanto propriamente científicas. não se vai (!) a lugar nenhum), que deveria ser "quem tem boca vaia Roma"
A analogia com análises linguísticas tem fundamento, seja para defen- (sem explicar por que a cidade mereceria vaias de todos, evidentemente)9.
der as análises no vácuo/in vitro quanto para a consideração de fatores Não se trata da mesma coisa, mas a defesa de alterações na desinên-
"externos"? Pêcheux e Fuchs dizem que as condições de produção não são cia de palavras para evitar o machismo se assemelha à invenção de línguas
simples filtros, como a resistência do ar (Pêcheux e Fuchs 1975: 179). Para artificiais, como o esperanto. A respeito dessa língua, Rónai (1970)10 faz
a análise do discurso que propõem, a análise da língua no vácuo é a tarefa algumas observações interessantes. Primeiro, dá algumas informações: o
da linguística (como eles a conheciam e quando ela ainda não enfrentava artigo é invariável, todos os substantivos terminam em -o, todos os adje-
questões como a do gênero das palavras), mas o discurso implica sempre tivos em -a, há pronomes pessoais diferentes para homens, mulheres e
fatores externos. A tese vale para os discursos, que nunca ocorrem fora da animais, entre outras (p. 66). Depois faz uma observação curiosa: houve
história, a ser sempre considerada. Mas vale para a análise da língua, que críticas à solução de chamar a mãe de patrino e a mulher de »irino, porque
tem sua ordem própria? os radicais lembravam palavras relativas a homens, e também ao fato de
Para fazer uma vacina, deve-se levar em conta exclusivamente as que política significa 'político' e político significa "política" (p. 69), por se
características do vírus. Para evitar pandemia, é necessário também evi- chocarem com a tradição de algumas línguas.
tar sua propagação ... A semelhança de atitude não é tão clara em propostas de escrita com
@ ou x ou de e no lugar de o/a, mas se aproxima um pouco mais em teses
mais "radicais" como ile ou aquile por "ele" e "aquele" (já que o masculino é
INTERVIR NA LíNGUA? (E NOTAS MAIS OU MENOS SOLTAS)
associado também ao -e final, por causa de palavras como professores)
Em relação à língua, tem havido duas atitudes básicas: a dos conser- Outra questão é a do lugar da ideologia em proposições como a da
vadores, que a querem imutável, e a dos sociolinguistas e historiadores da linguagem neutra. Não há dúvida de que se trata de um movimento origi-
língua, que não só constatam como abonam mudanças que ocorram "natu- nado em uma ideologia. Durante muito tempo, a ideologia foi considerada
ralmente" (isto é, social e historicamente), já que as mudanças são um fato a pior inimiga da ciência. De Bachelard a Fichant, passando por Althusser
e já que os próprios defensores da imutabilidade as incorporam, mesmo e Pêcheux, a coupure foi exaltada. No entanto, no interior do marxismo, o
que não O percebam. papel da ideologia foi visto não apenas como o que impede o conhecimento
A questão "nova" diz respeito a uma intervenção voluntária, a uma (como é o caso da ideologia burguesa), mas também como o que fornece
decisão política" para produzir adaptações ou mudanças com objeti- novas questões, como podem fazer os proletários (Lõwy, 1987). Recente-
vos definidos, como evitar discriminação, por exemplo. São conhecidas mente, Carrielo (2020) explicou a guinada de diversos centros universi-
mudanças, mesmo que provisórias, promovidas em nome da "lógica",como tários de estudo de economia na direção de pautas menos conservadoras
foi o caso da substituição de "perigo de vida" por "perigo de morte", espe- como efeito da presença de mulheres e de terceiro-mundistas, em especial
cialmente nos noticiários, como no "fato" de que determinado fato punha a de negros, no rol de economistas de prestígio. Ele considera que é de res-
vida em risco, isto é, que havia risco de morrer. ponsabilidade desses grupos a formulação de novas questões. Não se trata
Surgiu recentemente um movimento "popular" que pretende dar apenas de pautas políticas, de novas demandas, mas de novos problemas
sentido a sentenças ou expressões que não o teriam (!), como "quem não
9 Para mais casos, ver Possenti (2020).
8 Como em relação à ideologia, não se veja aqui qualquer conotação pejorativa, se possível. 10 Que apresenta uma série de fracassos.

o gênero e o gênero
33
32 Sírio Possenti
para a ciência econômica, que só de outros pontos de vista - outras expe- do pastor Silas Malafaia sobre gays, eu utilizei o termo "homossexualismo", e não
riências - poderiam ser formulados. "homossexualidade", como teriam desejado,
O que quero dizer é que o fato de a defesa de uma linguagem não biná- Estou ciente dessa preferência, mas receio que ela não tenha o fundamento ale-
ria ser efeito da militância de mulheres, no início (como o atesta a obra de gado, Ao contrário do que dizem alguns militantes, simplesmente não é verdade
Coulthard) e depois de todos os grupos que não aceitam uma distribuição que "-ismo" seja um sufixo que denota patologia, Quem estudou um pouquinho
binária, ou seja, o fato de ser efeito de uma demanda ideológica não des- de grego sabe que o elemento "-ismós" (que deu origem ao nosso "-ismo") pode
merece nem a luta nem as tentativas de solução no interior da língua. Pelo ser usado para compor palavras abstratas de qualquer categoria: magnetismo,
contrário: o fato atesta que grupos ou pessoas podem, de seu lugar, perceber batismo, ciclismo, realismo, dadaísmo, otimismo, relativismo, galicismo, teísmo,

problemas impossíveis de serem percebidos de outros(s) lugar(es}. Indepen- cristianismo, anarquismo, aforismo e jornalismo, Pensando bem, esta última talvez
dentemente de se chegar a uma solução de consenso entre as alternativas encerre algo de mórbido, mas não recomendo que, para purificar a atividade, se

postas, e até mesmo no caso extremo de alguém não aderir a nenhuma alte- adote "jornalidade",
ração na estrutura da língua para atender as demandas postas, o fato é que a
questão está posta. Seria indecente não reconhecer sua relevância. Não obstante a ironia do final da citação, eu diria que o argumento
Claro está que o fato de a ideologia não funcionar sempre como impe- procede, ou merece, pelo menos, ser considerado. O caso é mais um exem-
dimento da ciência (como o atesta nossa experiência bem recente no Bra- plo do que se está chamando de linguística popular. Pelo menos em domí-
sil), não se pode desconhecer seu papel negativo. Talvez o mais estrondoso nios morais e outros próximos (ver Paveau, 2015), é uma exigência moral
tenha sido o caso Lysenko (ver Lõwy, 1987: 160 e informações relevantes em reconhecer o valor das intuições da comunidade dos falantes, ou mesmo de
https://bit.ly/36fpnu5 ), que se opôs à genética mendeliana também por consi- parte dela, no que se refere a opções a serem adotadas (e a serem excluídas)
derá-Ia burguesa (com prejuízo para a agricultura soviética, segundo alguns quando se fala ou escreve sobre qualquer questão, especialmente as sensí-
críticos). Nos dias atuais, seria lynsenkismo, por exemplo, opor-se a uma vacina veis. Não há razão para não levar em conta as conotações negativas, se é ver-
por ser chinesa ou cubana. Vale a pena considerar esse tipo de questão em dade que há grupos que assim as percebem. O que não parece adequado é
relação às propostas de novas formas linguísticas oriundas de uma demanda a afirmação de que a conotação é intrínseca ao morfema. Charaudeau diria
ideológica (ver nota 7), isto é, verificar se as propostas se opõem de maneira que a conotação de um morfema não é uma questão de língua, mas de dis-
relevante ao que antigamente se chamava de espírito da língua, isto é, sem curso, o que implica postular que ela está ligada ao uso, sempre contextual
"violar" sua estrutura. Talvez seja o caso de propostas como aquile, introdu- e historicamente situado (ver a epígrafe de sua autoria).
zindo no interior da palavra um morfema que tipicamente só ocorre no final.

TERMINANDO
UM CASO ESPECIAL
Expus diversos pontos de vista e deixei minha posição mais ou menos
Trato muito brevemente de um caso especial. Tem havido recusa da implícita. As teses que mais me convenceram sobre o tratamento ade-
palavra "homossexualismo" porque seu sufixo conotaria uma patologia. Cito quado a dar à questão do gênero em português antes de ela ser afetada por
tanto o caso quanto o argumento (que eu construiria, se não o tivesse visto um novo discurso ainda merece uma forte simpatia.
em Schwartzman, 2013). O início do texto é suficiente para meus propósitos: Como todos os discursos são produzidos em condições de produção
específicas, este capítulo não poderia escapar a algumas restrições. Duas
Alguns membros de comunidades homoafetivas e simpatizantes me recrimina- são as essenciais: minha simpatia pelas lutas sociais e a complexidade dos'
ram porque, no sábado passado, numa coluna em que critiquei as declarações discursos sobre a pandemia. Por um lado, as graves questões se tornaram

34 Sírio Possenli o gênero e o gênero 35


ainda mais urgentes. Por outro, ficaram muito claros o papel, o lugar e
as condições de possibilidade da ciência, que, nesta conjuntura, além das
questões clássicas, precisa levar em conta a urgência das respostas e a
necessidade de demarcar-se em relação a crenças de diversos tipos. Não
posso, portanto, me esquecer de considerar os "adquiridos" da linguística
como ciência, apesar de meu trabalho mais comum ser com fatos que a tor-
• • • • • ••• • • • • •
nam insuficiente ou que a subvertem. Penso que minha posição deve ter •• • • • • • ••••• •
ficado clara aos poucos. Os lugares que eu escolho como preferenciais para
a denúncia e a luta pela superação dos preconceitos e da discriminação são
o léxico e a sintaxe, naquilo em que são afetados pelo discurso e são, por-
tanto, os lugares em que ele se realiza.
No que se refere aos outros espaços, o que eu gostaria de sublinhar
é a necessidade de explicitar o critério que justifica determinada tese e a
demanda que lhe seja correlata. Algumas generalizações não fortalecem as
posições, são frágeis. O caso do sufixo -ismo é um exemplo, entre outros. REVERSÃO DE
Para concluir, parafraseio Lévi-Strauss (1962:19).Onde ele diz léxico
pode-se dizer morfologia, acrescentando também léxico a sintaxe e dis- GÊNERO GRAMATICAL
curso: "Em todas as línguas, aliás, o discurso e a sintaxe [e o léxico] forne-
cem os recursos indispensáveis para suprir as lacunas de vocabulário [de NO PORTUGUÊS
morfologia]".
BRASILEIRO
HERONIDES MOURA
GUILHERME R. C. MADER

• ••
•••
36 Sírio Possen!i
gramatical refletem a segmentação entre os gêneros biológicos e a grama-
ticalização das marcações de gênero se inicia, habitualmente, com nomes
que denotam seres humanos - homem, mulher e pessoa, por exemplo (cf.
Aikhenvald, 2016: 76).
Estruturamos este capítulo da seguinte forma: na próxima seção,
• • • • • • ••• • • • • abordaremos a suposta "neutralidade" das formas masculinas não mar-
• • • • • • • •• • • • • cadas. Em seguida, apresentaremos as funções da reversão gramatical.
Depois, com base em exemplos extraídos do Twitter, identificaremos as
funções da reversão de gênero encontradas no português brasileiro colo-
quial. A conclusão principal do capítulo é que, assim como ocorre em
outras línguas, mantém-se no português uma as simetria na reversão de
gênero gramatical, inexistindo casos de conotação positiva associados à apli-
cação do gênero feminino a homens.

A NÃO NEUTRALIDADE DO GÊNERO MASCULINO

Antes de entrarmos mais diretamente na questão da reversão do


gênero gramatical, é importante discutirmos a questão da linguagem neu-
INTRODUÇÃO
tra, que, a propósito, dá o título a este livro. Assumimos que, se uma gra-
mática apresenta marcações de gênero gramatical, tais marcações servem
A REVERSÃO DE gênero gramatical é um fenômeno já estudado
línguas (Aikhenvald, 2006; Corbett, 1991; Pankhurst, 1992; Reynolds,
em muitas
para segmentar e ordenar
categorias, sendo a mais fundamental
os seres humanos de acordo com determinadas
delas a que separa homens e mulhe-
1997; Tobin, 2001; Yokoyama, 1999), mas ainda pouco analisado no portu-
res. Como consequência, não pode existir uma linguagem neutra do ponto
guês brasileiro (PB). Neste capítulo, identificaremos as diferentes formas e
funções assumidas pela reversão de gênero gramatical em PB. de vista do gênero gramatical, pois ele define, necessariamente, um recorte
das categorias biológicas percebidas no mundo.
A reversão de gênero gramatical acontece quando itens lexicais, pro-
Ainda que a relação entre gênero gramatical e seres inanimados pareça
nomes ou marcações de gênero gramatical têm a sua referência invertida.
Ela pode ocorrer em duas situações: arbitrária (por exemplo, o mesmo referente é denotado por um substantivo
feminino em português [a cama] e espanhol [Ia cama], mas por um substan-
(i) quando os itens lexicais, os pronomes e as marcações de gênero
tivo masculino em italiano [illetto] e francês [le lit]), há uma clara relação
usualmente utilizados para denotar homens são aplicados a
mulheres; entre gênero gramatical e gênero biológico quando se trata da referência a
seres humanos. A generalização que pode ser feita é que os sistemas grama-
(ii) ou quando os itens lexicais, os pronomes e as marcações de
ticais de gênero, quando presentes nas línguas, são semanticamente motiva-
gênero usualmente utilizados para denotar mulheres são aplica-
dos a homens. dos quando se trata da referência a pessoas. O gênero gramatical, além disso,
normalmente é consistente com o gênero biológico (Samuel et al., 2019).
Algo importante a ser lembrado aqui é que a relação entre gênero No entanto, tal valor semântico do gênero gramatical foi questionado
gramatical e gênero biológico não é imotivada. As diferenças de gênero no que toca às chamadas "formas masculinas não marcadas" ou formas

38
Heronides Moura e Guilherme R. C. Mâder Reversão de gênero gramatical no português brasileiro 39
de "masculino genérico" (Mâder, 2015). Em muitas línguas, como o russo No entanto, Jakobson (1984:141)reconhece que o gênero feminino pos-
(Jakobson, 1984; Yokoyama, 1999), o hebraico (Tobin, 2001) e o português sui uma conotação negativa na língua russa, pois "o gênero feminino não po-
(Camara Jr., 1972),o masculino é considerado a "forma não marcada" (do de designar uma pessoa do gênero masculino, a não ser em linguagem
ponto de vista gramatical), ao passo que o feminino é considerado a forma expressiva, especialmente pejorativa".
marcada. Trata-se de uma oposição estritamente gramatical (por exemplo, Tal conotação negativa, identificada também em Yokoyama (1999),
uma forma não marcada costuma ser morfologicamente mais simples) e só adquire sentido por oposição à conotação oposta do gênero masculino.
aparentemente neutra do ponto de vista do gênero biológico dos referen- Sendo assim, ainda que o gênero masculino se aplique tanto a homens
tes. As formas não marcadas (como, por exemplo, os alunos e os professo- quanto a mulheres, ele carrega o valor semântico e pragmático associado
res) aplicam-se, em princípio, tanto a homens quanto a mulheres, de modo aos homens. Se não fosse assim, não seria possível estabelecer uma distin-
que, em tese, desfaz-se aí a base biológica do sistema gramatical de gênero ção de conotação entre os dois gêneros. Se a oposição masculino x feminino
(Máder: Moura, 2015). fosse de fato neutralizada no gênero masculino não marcado, ele não teria
No entanto, a oposição entre formas não marcadas e formas marcadas a conotação atribuída às pessoas do sexo masculino.
serve também para indicar distinções e oposições relevantes de um ponto Portanto, no que se refere às pessoas, a natureza não marcada do
de vista semântico e pragmático. A suposta separação entre gênero grama- masculino não elimina a forte correlação observada entre gênero gramati-
tical e gênero semântico não resiste a uma análise mais detalhada do uso cal e gênero biológico. É difícil não fazer a associação do gênero masculino
do gênero gramatical em diferentes línguas. com traços da masculinidade, mesmo quando se usa o masculino genérico
Por exemplo, em hebraico, o gênero masculino, quando usado por (McConnell-Ginet, 1979:77).
mulheres com referência a si mesmas ou a outras mulheres, indica uma
situação mais formal e de menor intimidade. Em situações mais pessoais, FUNÇÕES DA REVERSÃO DE GÊNERO GRAMATICAL
as mulheres usam formas gramaticais femininas. Ou seja, o uso do gênero
masculino não é neutro, mas está associado a uma interpretação espe- A própria existência da reversão de gênero gramatical em línguas que
cífica da realidade social e biológica. Em hebraico, o gênero masculino é apresentam sistemas formais de gênero já é um indício de que esses siste-
associado a uma representação mais impessoal, menos íntima, tipica- mas não são neutros do ponto de vista semântico e pragmático. A reversão
mente ligada a contextos masculinos do espaço público (Sa'Ar,2007). Outro do gênero gramatical é sempre carregada de valores conotativos e contex-
exemplo da não neutralidade do gênero masculino: Yokoyama (1999:420) tuais, como veremos em mais detalhes nesta seção.
observa que, em russo, o uso de nomes de profissões de prestígio costumei- Se uma marca formal, como a de gênero, adquire um novo valor cono-
ramente ocorre na forma masculina, mesmo quando referidos a mulheres. tativo quando aplicada numa situação específica, isso acontece porque tal
Formas femininas em russo, como poétessa (poetisa), chirurginja (cirurgià), marca já possuía um valor conotativo intrínseco, alterado ou ampliado no
dekanéa (reitora), são depreciativas ou irônicas. novo contexto de uso. Assim, se uma forma masculina é aplicada a mulhe-
Jakobson (1984:142)argumentou que, na língua russa, o masculino é res, os valores conotativos originais associados à forma masculina são pro-
a forma não marcada: jetados e alterados no novo contexto. Não se pode conceber um novo valor
conotativo senão por contraste com o valor conotativo anterior.
Contrariamente ao gênero neutro, o masculino não assinala o caráter assexual
Na literatura sobre reversão de gênero gramatical, podem ser encon-
da entidade inanimada designada, nem carrega, em contradistinção ao feminino,
tradas diferentes funções associadas a esse uso linguístico (Aíkhen-
qualquer especificação do sexo; masculinos como vreé (médico) e tovarisc (cama-
vald, 2006; Corbett, 1991;Tobin, 2001). As funções visam criar determi-
rada) aplicam-se tanto a homens quanto a mulheres. nada representação social da pessoa designada pela alteração de gênero

41
40 Heronides Moura e Guilherme R. C. Miider Reversão de gênero gramatical no português brasileiro
gramatical, que pode ser tanto o próprio falante quanto seu interlocutor,
Quando se trata de pessoas, no entanto, o mais comum é a reversão
assim como um referente externo à interlocução.
de gênero gramatical do masculino para o feminino ter um efeito depre-
As funções da reversão de gênero podem ser resumidas em três:
ciativo (Tobin, 1991: 191).Por exemplo, em amárico, um homem pode insul-
(i) função depreciativa (tanto no caso de termos femininos aplica- tar um interlocutor ao se dirigir a ele usando uma forma feminina (Wolk,
dos a homens quanto no caso de termos masculinos aplicados 2009). Em amárico, portanto, o uso de formas femininas para a designa-
a mulheres);
ção de homens pode tanto cumprir a função depreciativa quanto a função
(ii) função aproximativa, visando criar camaradagem e intimidade aproximativa, a depender do contexto. De modo geral, no entanto, o uso de
entre os interlocutores (tanto no caso de termos femininos apli- termos femininos para homens tem valor depreciativo, como já foi obser-
cados a homens quanto no caso de termos masculinos aplicados vado em russo (Jakobson, 1984; Yokoyama, 1999), em hebraico (Tobin, 2001)
a mulheres);
e em japonês (Reynolds, 1997).
(iii) função apreciativa, visando realçar o status social da pessoa desig- Em japonês, inclusive, há um sistema bastante complexo de prono-
nada (só no caso de termos masculinos aplicados a mulheres). mes pessoais de P pessoa do singular (Lânsisalmi, 2001). Desses pronomes,
O primeiro ponto a se observar é que a reversão de gênero gramati- boku e ore são considerados pela tradição gramatical como exclusivos da
cal é as simétrica em termos de conotação. Valores conotativos positivos fala masculina, e atashi como exclusivo da fala feminina. No entanto, o uso
associados ao gênero masculino (como status) são transpostos às mulhe- de pronomes masculinos por mulheres e pronomes femininos por homens
res quando ocorre a reversão do gênero gramatical. No entanto, isso não é possível, ainda que acarrete conotações bastante diferentes em se tra-
se dá no uso de termos femininos aplicados a homens (Aikhenvald, 2006; tando de homens ou mulheres. O uso do pronome ore por meninas adoles-
Tobin, 2001; Yokoyama, 1999). Neste último caso, a função depreciativa é centes, embora seja considerado como um uso desviante da norma, não é
a mais comum, embora o uso de termos femininos aplicados a homens, visto de uma maneira necessariamente negativa. Esse uso é percebido por
para indicar afeto e proximidade, também seja encontrado em alguns pou- adolescentes no contexto escolar como próprio do grupo de meninas mais
cos idiomas, como em amárico, uma língua afro-asiática falada na Etió- "rebeldes", "bagunceiras". Já o uso do pronome "feminino" atashi por um
pia (Pankhurst, 1992; Wolk, 2009), e em baby talk ou "manhãs", nas língua menino é fortemente estigmatizado, ridicularizado ou classificado como
árabe e marati (Ferguson, 1964). "transexual/homossexual" (Miyazaki, 2004).
É curioso: a função aproximativa é pouco comum no caso de reversão É importante observar que a função da reversão gramatical de gênero
de gênero gramatical feminino aplicado a homens e bem mais corriqueira só pode ser definida de forma relacional, considerando-se o contexto de
no caso da referência a objetos inanimados (Aikhenvald, 2006: 45). Por uso específico e a conotação visada pela reversão. Por exemplo, o uso do
exemplo, em oramo, outra língua afro-asiática falada na Etiópia, a forma masculino por mulheres para interpelarem também mulheres pode ter
feminina é usada para indicar afeto por um objeto e a forma masculina, efeitos opostos, de aproximação ou afastamento das interlocutoras. E
para indicar desapreço (os exemplos são de Aikhenvald, 2006: 45): essa oposição de funções pode ocorrer numa mesma língua. Vejamos, por
1. waan-ti
exemplo, o caso do uso do masculino na língua hebraica, quando usado
tun jiidh-tuu por mulheres para se referirem a si mesmas e como forma de interpela-
coisa-FEM.SUJEITO.TÓPICO
esta úmid-a
"Esta coisinha fofa está úmida': ção a suas interlocutoras. Se a conotação desse uso é definida em relação
à camaradagem e à maior informalidade associadas ao mundo masculino,
2, waan-i
xun jiidh-aa por oposição a um maior formalismo e regramento rígido do mundo femi-
coisa-MASC,SUJEITO,TÓPICO
este úmid-o nino, então o uso da forma masculina por mulheres resulta na função
"Esta porcaria está úmida':
aproximativa. Nesse caso, em hebraico, as mulheres podem designar a si

42
Heronides Moura e Guilherme R. c. Mâder Reversão de gênero gramatical no português brasileiro 43
mesmas e a outras com formas masculinas, em sinal de afeto, intimidade Na seção seguinte, vamos examinar quais das funções de reversão
e solidariedade (Tobin, 2001: 85). Por outro lado, se a conotação é definida de gênero são encontradas no português brasileiro, especialmente no
em relação à impessoalidade e maior sobriedade do espaço público, no registro coloquial.
qual dominam os homens, por oposição ao espaço mais privado e íntimo
no qual dominam as mulheres, então o uso da forma masculina por mulhe-
REVERSÃO DE GÊNERO GRAMATICAL:
res não resulta em aproximação, mas em distanciamento. Tem-se, nesse
EXEMPLOS DO PORTUGUÊS BRASILEIRO
caso, uma função apreciativa, por meio da qual o interlocutor é interpelado
com respeito, mas com a devida distância. É o que pode ocorrer quando Nesta seção, vamos checar quais funções da reversão de gênero são

mulheres se dirigem a interlocutoras recorrendo a formas masculinas. encontradas no português brasileiro coloquial, com base em exemplos
extraídos, de forma manual, do Twitter. Retomemos aqui as funções iden-
Esse foi o caso de Anat, uma cabeleireira falante de hebraico, que
justificou o uso de formas masculinas ao se dirigir a suas clientes como tificadas na literatura:
(i) função depreciativa (tanto no caso de termos femininos aplica-
uma maneira de indicar que ela não queria parecer íntima demais (Sa'Ar,
dos a homens quanto no caso de termos masculinos aplicados a
2007: 418). Portanto, a reversão de gênero pode ser utilizada para funções
distintas e mesmo contraditórias, a depender do contexto. Como afirma mulheres);
(ii) função aproximativa, visando criar camaradagem e intimidade
Pankhurst (1992: 170), as reversões de gênero "distanciam e aproximam,
entre os interlocutores (tanto no caso de termos femininos apli-
engrandecem e rebaixam".
cados a homens quanto no caso de termos masculinos aplicados
Um caso bastante comum de reversão de gênero ocorre quando nomes
a mulheres);
masculinos passam eventualmente a ser utilizados com referente femi-
(iii) função apreciativa, visando realçar o status social da pessoa desig-
nino em função vocativa (McConnel-Ginet, 2006: 84). Há fortes indícios de
nada (só no caso de termos masculinos aplicados a mulheres).
que há maior probabilidade de pronomes e nomes masculinos (comuns e
próprios) passarem a ser utilizados com referente feminino, sem conota- Encontramos, no corpus, exemplos da função depreciativa (tanto no
ções negativas ou depreciativas, do que a situação inversa, isto é, nomes caso de termos femininos aplicados a homens quanto no caso de termos
femininos passarem a ser usados com referentes masculinos. Em inglês, masculinos aplicados a mulheres), da função aproximativa (somente no
muitos nomes próprios que, no início do século XX, eram nomes mascu- caso de termos masculinos aplicados a mulheres) e da função apreciativa
linos, como Beverly, Dana, Evelyn, Gail, Leslie, Meredith, Robin, Shirley, (mais uma vez, somente no caso de termos masculinos usados para mulhe-
passaram a ser dados também a crianças do sexo feminino. O contrário res). Mostraremos os exemplos na próxima seção.
não se observa. Além disso, uma vez que um nome originalmente mascu- A conclusão mais ampla que se pode tirar da análise dos dados é que
lino é dado a muitas meninas, ele deixa de ser um nome aceitável para um a reversão de gênero em PB é fortemente assimétrica, com as conotações
menino (Pinker, 2008: 318-319). positivas sempre associadas ao gênero masculino, seja na função aproxi-
A forte relação entre gênero gramatical masculino e status pode ser mativa, seja na função apreciativa. Traços positivos como camaradagem e
atestada, entre outros exemplos, em dacota, uma língua nativa dos Estados status são projetados sempre de homens para mulheres e nunca de maneira
Unidos, da família sioux. Nessa língua, o uso do gênero masculino indica inversa. Já os traços negativos podem circular nos dois sentidos: de homens
autoridade, e alguns homens não se referem a si mesmos com as formas do para mulheres e de mulheres para homens.
gênero masculino, indicando que não se consideram homens com status Para termos um parâmetro de identificação dos dados, considera-
suficiente (Aikhenvald, 2016: 146). mos haver reversão de gênero gramatical sempre que o gênero de um

44 45
Heronides Moura e Guilherme R. C. Miider Reversão de gênero gramatical no português brasileiro
substantivo ou adjetivo utilizado nos tweets não seja compatível com as 1. Cuidado com ela, é um esquerdista de carteirinha (8-03-2019),
formas de gênero apontadas nos verbetes do Dicionário Houaiss da língua 2, Ela é um esquerdista travestido? (16-09-2017),
portuguesa (Houaiss; Villar, 2001).
Passemos, agora, a exemplos de aplicação de formas gramaticais femi-
Por exemplo, de acordo com o Houaiss, troglodita é um substantivo ou
ninas a referentes masculinos, com função depreciativa:
adjetivo de dois gêneros: um troglodita, uma troglodita. Logo, o uso espe-
rado seria a forma um troglodita para se referir a um homem e uma tro- 1. Ele (Justin Bieber) é uma princesa que precisa de atenção (4-12-2013),
glodita, quando o referente fosse uma mulher. Se a forma um troglodita é 2, Nessa foto parece mt q alguém falou "mas cê ta braba?" pro Harry e ele

usada para denotar uma mulher, então consideramos haver reversão de olhou assim (16-03-2021),
3, Ainda acho que ele é uma tigresa escondida (9-03-2021),
gênero gramatical (é o que acontece no exemplo 3, na próxima seção).
4, Atrás do vídeo é um machão, mas cara cara é uma mocinha meiga!
Na transcrição dos exemplos, mantivemos a grafia original e informa- (14-05-2020).
mos a data de publicação do tweet.
Como se pode observar nesses exemplos, a reversão de gênero gra-
matical em PB abrange todas as possibilidades formais de marcação de
EXEMPLOS DA FUNÇÃO DEPRECIATIVA gênero. A reversão pode se aplicar a nomes de dois gêneros, como prota-
Vamos analisar, em primeiro lugar, os casos nos quais os referen- gonista e esquerdista, nos quais o gênero é marcado nos determinantes e
tes são mulheres. Encontramos várias ocorrências em que a concordân- não nos nomes. Assim, por exemplo, usa-se a forma um esquerdista para
cia masculina de gênero é mantida, mesmo quando o termo é aplicado a falar de uma mulher, quando a forma esperada seria uma esquerdista.
mulheres, com o claro efeito de ressaltar um traço percebido como nega- Uma segunda possibilidade formal da marcação de gênero explorada na
tivo. Esse caráter negativo já está presente quando o termo é utilizado para reversão é a oposição entre a forma masculina (analfabeto, por exemplo)
designar um homem e é projetado para a mulher da qual se fala ou à qual e a forma feminina (analfabeta). Assim, quando seria de se esperar analfa-
o falante se dirige. Citamos alguns dos exemplos encontrados no corpus beta para a designação de uma mulher, usa-se a forma analfabeto. Por fim,
(marcamos em negrito o termo que sofreu reversão de gênero gramatical, a reversão ocorre também na terceira forma de marcação de gênero dis-
para facilitar sua identificação): ponível em português, que se dá pela oposição entre duas palavras distin-
1, tas (como ator e atriz), ligadas entre si por um processo derivacional e não
Sim. A mulher é um troglodita que chama a outra de medíocre no ao
vivo por nada (16-02-2021), flexional. A reversão de gênero gramatical em PB tem por base uma ampla
2, Ela é um esquerdista maluca sim, mas não está totalmente errada gama de possibilidades formais.
(17-02-2020),
3, O pior é que ela é um baba ovo da Sara (12-08-2015),
4, Essa Dilma é um FDP né mano (18-06-2013), EXEMPLOS DA FUNÇÃO APROXIMATIVA
5, Meu pai cantando pra minha mãe - Ela é um puxa saco! (28-10-2012),
6, Ela é um analfabeto funcional e fala asneira o tempo todo (5-10-2016), Não encontramos exemplos de função aproximativa por meio do uso
7, Juliete é um ator na casa só a Juliete deixa irritado (23-03-2020), de termos femininos aplicados a homens no corpus que investigamos. Por
8, Ela (Marina Silva) é um medíocre de pessoa pública (18-09-2020), outro lado, é extremamente comum o uso de termos masculinos usados
9, Essa é um picareta de quinta categoria! (28-08-2020),
como vocativos referentes a mulheres, com a função de marcar proximi-
10, Essa aí é um pilantra, como já foi dito é uma vagabunda! (19-03-2021),
dade e camaradagem. No PB coloquial, há um grupo de palavras que, ori-
Quanto ao exemplo (4),provavelmente não se trata de erro de digitação ginalmente do gênero masculino, passaram a ser usadas como vocativos
(a suposta forma correta sendo uma esquerdista), pois encontramos vários referentes a mulheres. Entre essas palavras, temos mano, rapaz e véi (de
exemplos com a forma um esquerdista aplicada a mulheres, entre eles: veio, velho).

46 Heronides Moura e Guilherme R, C. Miider 47


Reversão de gênero gramatical no português brasileiro
2. O meu n mano, fiquei estressada já (em resposta a Aninha) (10-11-2019).
Processo similar aconteceu em muitas outras línguas (Tobin, 2001).
3. Na prova ne ana. mano relaxa a gente vai fazer junto e vamos nos dar
Um exemplo é a palavra dude, em inglês. Essa palavra não é mais um termo
bem (19-04-2021).
de tratamento confinado ao mundo masculino; hoje em dia, ela é frequen- Tas de férias há um ano, n reclame rapaz (resposta a Giovanna) (23-03-2021).
4.
temente utilizada para denotar mulheres. Outro exemplo em inglês é a Aninha rapaz, você que num vai #ele ta lhe #esperando (21-11-2011).
5.
palavra guy, especialmente no plural (you guys), utilizada para interpelar 6.
Rapaz. Incrível. As vezes acho q é brinks. vo ver tá falando SERISSIMO

os interlocutores, independentemente do gênero (Mcconnell-Ginet, 2006). (resposta a Adila) (23-03-2021).

Mano, rapaz e véi fizeram um percurso equivalente, saindo do mundo mas- 7. Ana véi kkk Q ÓDIO (15-04-2021).
É muito fofo né véi, tô apaixonada com o meu (em resposta a Micas, uma
culino e ampliando-se a todos os gêneros. 8.
menina) (17-04-2021).
Há duas propostas distintas para a etimologia do lexema mano em 9. Jenny, pensei q era só eu e a Brenda vei (15-04-2021).
português, que, embora indiquem percursos ligeiramente distintos, têm
origem na mesma raiz latina germanus. Na primeira, mano teria se origi- Um caso interessante a ser observado é o do substantivo boyzinha, pre-
nado de germanus, já com a acepção de "irmão", a partir da frase frater ger- sente em dialetos da região Nordeste (os exemplos encontrados no corpus
manus, "irmão verdadeiro" (Faria, 1956). Na segunda, a origem teria sido são de falantes daquela região). A palavra boy, que, em inglês, tem original-
a mesma, mas teria entrado no léxico do PB através do espanhol hermano mente o sentido de "menino", mas também recebeu uma extensão semân-
(Houaiss; Villar, 2001). Possivelmente o lexema mano, como gíria, ganhou tica, atestada desde o inglês médio, de "servo, plebeu, pivete" (Onions, 1966),
mais abrangência por influência do inglês brother (ou sua forma apocopada foi uma fonte bastante fértil de empréstimos linguísticos para outras lín-
bro), embora os termos de parentesco sejam uma fonte semântica comum guas _ por exemplo, em português: office-boy, playboy, go-go boy, caubói e
para designar relação de amizade e afinidade (Ballweg, 1969), o que pode simplesmente boy, que deu origem ao diminutivo boyzinho.
sugerir uma evolução independente do lexema mano como gíria em PB. Boyzinho, por sua vez, passou a ser usado, em sua forma flexionada
O lexema rapaz tem origem no latim rapãx, "aquele que pilha, que boyzinha, para designar meninas, especialmente em situações informais.
rouba, ladrão" (Faria, 1956). Embora haja lexemas derivados desse étimo Não se trata de reversão de gênero, mas de um caso no qual houve gramati-
em boa parte da área linguística românica, ainda com o significado origi- calização, no gênero feminino, de um termo inicialmente masculino. Cita-
nal da raiz latina, aparentemente apenas em línguas românicas da Penín- mos, abaixo, alguns exemplos com boyzinha:
sula Ibérica esse lexema também tem o significado de "garoto, menino". A galega mais boyzinha de pernambuco conhecida como dona mainha
1.
É possível que haja um caminho mais ou menos provável de evolução de tomou a primeira dose da vacina do corona (13-04-2021).
lexemas como rapãx para acepções depreciativas de indivíduos masculi- Aqui em pb (Paraíba) falam boyzinha e boyzinho acho pika (18-04-2021).
2.
nos jovens, e posteriormente acepções valorativamente neutras desses 3.
só me lembra uma cantada q escutei em um carnaval de Caicó (Rio
mesmos referentes. Grande do Norte): "ei de verde, de verde!" daí quando a boyzinha olhava

Em PB, as formas mano, rapaz e véi, quando usadas na reversão de pra o cara ele cantava (11-04-2021).

gênero, são marcadamente informais, identificando as interlocutoras


femininas como próximas e mesmo íntimas do(a) falante. Trata-se da pro-
EXEMPLOS DA FUNÇÃO APRECIATIVA
jeção, no mundo feminino, da informalidade e da camaradagem associadas
ao mundo masculino (Tobin, 2001). Vejamos, a seguir, exemplos encontra- Por fim, temos os exemplos da função apreciativa. O gênero gramati-
dos no corpus: cal masculino está associado, em muitas línguas e culturas, a prestígio e
status (Corbett, 1991;McConnell-Ginet, 2006; Aikhenvald, 2016).No portu-
1. Brenda, eu vou ter que quebrar o carro dele todo kkkkk 2 meses já
mano!!! Quero meu vestidoo (23-03-2021).
guês brasileiro, identifica-se essa mesma tendência: a função apreciativa

49
Reversão de gênero gramatical no português brasileiro
48 Heronides Moura e Guilherme R. C. Miider
pode ter função depreciativa ou apreciativa, a depender do contexto. O uso
só ocorre quando a reversão do gênero se dá com o uso do gênero mascu-
do feminino na referência ou interpelação a homens, todavia, apresenta ape-
lino para denotar mulheres, mas não com o uso do gênero feminino para
nas a função depreciativa, como é o caso no português brasileiro e em mui-
denotar homens. Citamos os exemplos abaixo, encontrados no corpus:
tas outras línguas nas quais se observa a reversão de gênero gramatical,
1. Mano como diabos falam que a Marina (Silva) é sonsa vei, só pq ela n
com raras exceções.
precisa ser extremista e lacradora pra falar? So pq ela é um DIPLOMA-
Isso condiz com outros fenômenos linguísticos em que é nítida a valo-
TA???? So pq ela faz politica sem treta? (30-08-2018).
2. Por trás da Paula ela é um leão e na frente um gatinho (4-03-2018).
ração do masculino em detrimento do feminino, como, por exemplo, nos
3. Canta o hino nacional igual a vanusa. Ela é fodão (20-10-2010) vários pares de palavras em suas formas masculina e feminina em que o
4. VEN-CE-DOR! VEN-CE-DOR! VOLTO A REPETIR: ELA É VENCEDOR!!! masculino tem um sentido positivo e sua contraparte feminina, um nega-
(20-02-2021) tivo. É o que vemos, por exemplo, nos substantivos que orbitam em torno
5. Resumindo, se vc é elegível ao Auxilio, vc tem CadUnico, sua mãe recebe
de um centro semântico bem definido e carregado de condenação moral,
bolsa família, ela é o chefe da unidade familiar, seu Auxilio vai sair no
o sentido de "prostituta": aventureiro/aventureira; pistoleiro/pistoleira;
bolsa família dela (16-04-2020).
6. A Viih Tube perdidíssima porque não sabe quem bajular pq ela é o líder touro/vaca; galo/galinha; homem da vida/mulher da vida. Nesses exemplos,
(2-04-2020). a forma masculina não está relacionada à atividade sexual, ao passo que a
7. @tua meninaa nossa joga muito ela é matador (25-02-2012). forma feminina serve de sinônimo à palavra "prostituta".
8. Ela é um craque no candy crus h (28-10-2018).
Pode-se, então, considerar essa assimetria no processo de reversão
9. Ela calou minha boca nmrl, ela (Anitta, a cantora) é um empresário fada
de gênero gramatical (principalmente o uso apreciativo do gênero mascu-
(22-12-2020).
lino na referência a mulheres) como uma faceta do sexismo linguístico, em
Nestes exemplos, propriedades (vencedor, matador, craque), profissões especial considerando que inexiste tal efeito apreciativo no uso do gênero
(diplomata, empresário) e papéis sociais (chefe de família, líder) fortemente feminino na referência a homens. Aí, mais uma vez, veem-se associadas ao
associados ao mundo masculino são projetados, ainda com as marcas do gênero masculino qualidades positivas e ao feminino, qualidades negati-
gênero gramatical masculino, para as mulheres que se deseja elogiar e vas, tanto no plano linguístico quanto de maneira mais geral nas represen-
valorizar. Por outro lado, não encontramos, nos exemplos, elogios a homens
tações culturais em nossa sociedade.
com a utilização das marcas do gênero feminino.

PALAVRAS FINAIS

Entre as línguas que distinguem o gênero masculino do feminino,


a reversão de gênero opera de maneiras particulares, embora se possam
estabelecer alguns princípios gerais. A reversão de gênero gramatical é um
recurso utilizado em línguas de famílias linguísticas diversas, mas cujos
efeitos são similares e facilmente identificáveis: avaliar positiva ou negati-
vamente o interlocutor ou o referente do discurso e construir, através do
discurso, uma relação mais próxima, solidária, ou mais distante, formal
entre os interlocutores.
Chama a atenção a reversão de gênero ser quase sempre um processo
assimétrico. O uso do masculino na referência ou interpelação a mulheres
51
Reversão de gênero gramatical no português brasileiro
50 Heronides Moura e Guilherme R. C. Mader
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-n ••
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» m-l
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m ;tJ_»
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CI O»cn
metalinguístico, "O r forte", "o s puxado", "o t chiado") e usam a língua
inconscientemente para produzir efeitos nos outros, seja de aproxima-
ção (todo mundo já teve um parente que viajou para outra região por uma
semana e voltou com um "sotaque fortíssimo"), seja de distanciamento (uso
para a discriminação e para o preconceito, como o caso da "peleumonia")",
• • • • •• • • • • • • • Esses fatos evidenciam que as pessoas têm uma consciência linguística
•• • • • • • • •• • • • ativada (talvez a mais conhecida seja a consciência fonológica, mas outros
tipos de consciência podem ser evocados, como a gramatical e a sociolin-
guística). Ter consciência não é o mesmo que ter conhecimento consciente
(o inglês tem duas palavras diferentes: consciousness, para ter consciência,
e awareness, para ter conhecimento consciente). Ter consciência significa
perceber que a língua é constituída por regras, mas não necessariamente
saber precisar ou explicitar quais são elas. A apreensão das regras se dá pela
observação dos fatos no contexto de uso da língua por meio das lentes sociais
que cada pessoa constituiu com base nas suas experiências.
Por muito tempo, a agenda dos estudos linguísticos teve como foco
a descrição das regras por especialistas (linguistas e gramátícos): mais
recentemente, tem ganhado espaço o estudo de como as pessoas leigas
R ECENTEMENTE, acaloradas sobre linguagem neutra de gênero
DISCUSSÕES

viraram trend topics nas redes sociais e mobilizaram a proposição de


manipulam essas regras, ou o que as pessoas (os não especialistas) pensam
sobre a língua, campo chamado de linguística popular (Niedzielski; Pres-
uma série de projetos de lei', Há várias formas de abordar essa questão, e
ton, 2010). E, ainda mais recentemente, tem havido uma linha de estudos
uma delas é a identificação das regras e a disputa pela dominância de gênero.
relacionada ao processamento da variação linguística, que considera efei-
Passamos por um período de menor estabilidade na língua, com a regra de
tos de atenção, saliência e frequência na produção e na percepção linguís-
uma hegemonia - o masculino supostamente neutro - sendo ameaçada
ticas (Freitag, 2018).
por outra regra, a da neutralização do gênero. Nesse conflito, o gênero femi-
nino é, mais uma vez, apagado e marginalizado. O fenômeno da "linguagem neutra de gênero" no português brasileiro
A variação é constitutiva das línguas. E as pessoas têm consciência tem sido objeto de análise de especialistas em diferentes abordagens lin-
dessa variação, em algum nível igualmente variável (influenciado pelas guísticas e circula em ambiente acadêmico. Mas são as explicações dos
experiências de contato linguístico e da instrução formal, por exemplo). não especialistas que têm ganhado a atenção do grande público, não só na
Essa consciência pode ser mais sistematizada (como aquela que encontra- mídia, mas nas discussões em redes sociais e na pauta legislativa. Essas
mos em instrumentos linguísticos como gramáticas ou em pesquisas pro- explicações assumem a força do prescritivismo, com a imposição de nor-
duzidas por linguistas) ou pode ser, aparentemente, assistemática, como mas arbitrárias à língua, sem lastro no uso, com efeito sobre o comporta-
os conhecimentos populares sobre a língua, manifestados sob diferentes mento linguístico das pessoas.
perspectivas, desde os comandos paragramaticais (na terminologia de -
Em 2016, um médico postou em uma rede social uma foto onde escreve em uma receita médica "Não
Bagno, 2015) até as piadas. As pessoas falam sobre língua (conhecimento 2

existe peleumonia nem raôxis", com a legenda: "Uma imagem vale por mil palavras". Reportagens expli-
cavam que antes dessa pastagem um paciente com pouca escolarização havia sido atendido pelo médico
I Veja os capítulos de Fábio Ramos Barbosa Filho e Mara Glozman, por exemplo. sem supostamente saber "como falar corretamente algumas palavras" (cf. Ana Elisa Ribeiro, https://bityli.
com/iDXex e Renata Victal, https://bityli.com/DkpjK, acesso: 14 jan. 2022).

54
Raquel Meister Ko. Freitag
Conflito de regras e dominância de gênero 55
Aqui vamos tomar o fenômeno numa abordagem linguística, com foco regras observando o mesmo fato. Uma maneira de desvelar as diferenças
não na descrição da regra (como as pessoas efetivamente usam "linguagem de regras é a observação pareada de fatos e regras subjacentes. Conside-
neutra" ou "gênero neutro"), mas em como as pessoas entendem essa regra. rem-se as seguintes frases:
Por mais que a tecnologia esteja avançada - ressonância magnética
(a) Sapatos e cinto preto,
para ler as ondas cerebrais e, assim, nossos pensamentos -, ela ainda não
(b) Sapatos e cinto pretos,
chegou ao ponto de permitir que a gramática (o conjunto de regras) que
temos seja decifrada. Nos valemos, ainda, de pistas indiretas, tais como a Qual frase corresponde a qual figura?
observação de um conjunto de fatos e a inferência de regras. É por esse

_E:_
mesmo procedimento que especialistas e não especialistas constituem
seu conhecimento sobre a língua. Porém, enquanto a manipulação dos ~~ ~~
especialistas produz conhecimento explícito sobre a língua, a de não espe-
cialistas produz conhecimento implícito. Por algum gatilho, esse conhe- E:_
cimento implícito é ativado e trazido ao nível da consciência. Falar dos Figura 1 Figura 2
gatilhos que ativariam o conhecimento sobre a "linguagem neutra" ou o
"gênero neutro" demandaria o retrospecto de toda uma trajetória de luta Enquanto a frase (a)pode corresponder tanto à figura 1quanto à figura
do movimento feminista (essa é a minha perspectiva, assim como outras 2, a frase (b) só corresponde à figura 1. Para a frase (b), o único arranjo
pessoas poderiam assumir outra perspectiva - e é justamente a diferença possível é [[Sapatos e cinto] pretos], pois [[Sapatos] e [cinto pretos]] não é
de perspectivas que leva às diferenças nas inferências de regras). atestado na língua (ou, em outras palavras, é uma construção agramatical).

4) ~
Já a forma de superfície da frase (a) permite inferir duas estrutu-
ras para o sintagma: [sapatos e [cinto preto]] ou [[sapatos e cinto] preto].
Cada uma das estruturas corresponde a uma regra, com valores sociais e
contextos de uso diferentes: em uma regra, a concordância de número é
redundante, sendo marcada em todos os elementos nominais do sintagma;
em outra, a concordância de número é dominante, sendo marcada no ele-
mento mais à esquerda do sintagma (embora o exemplo não seja o melhor
para elucidar a regra). Ambas as regras são atestadas por estudos sociolin-
guísticos, descrevendo perfis de pessoas que tendem a usar mais uma regra
do que outra, e também por abonações gramaticais, com juízos de valor e
apreciação sobre cada uma delas. Do ponto de vista sociolinguístico, nem
sempre a regra mais recorrente tem juízo de valor positivo. O valor de uma
regra resulta de uma associação entre os perfis das pessoas que a usam:
Fonte: https://bityli,com/GiFJX, acesso: 14 jan, 2022, regras mais bem avaliadas, com juízos de valor positivo, são associadas ao
perfil de pessoas com maior escolarização, acesso a bens de consumo e de
Independentemente de sermos uma tabula rasa ou de termos progra- cultura, constituindo o que se denomina "norma culta". Mesmo que esta-
mação genética, do ponto de vista da constituição da gramática da língua, tisticamente esse perfil de pessoas seja minoritário, a regra se torna hege-
observamos fatos e inferimos regras. E nem todos inferem as mesmas mônica, apoiada em instrumentos normativos (cf. Faraco, 2008).

56
Raquel Meister Ko, Freitag Conflito de regras e dominância de gênero 57
o acesso
a essa regra pode se dar por conhecimento implícito, a par- ao gênero das pessoas é ampliada, num processo de referência ao
tir de observação e inferência, ou por conhecimento explícito, por meio de coletivo, sem indicação específica ao gênero, configurando uma
correção (em termos de certo e errado, adequado e inadequado) ou mesmo situação de referência generalizada. Para referir esse conceito,
instrução formal (o sentido de plural é um conhecimento implícito, mas usarei o redundante "gênero genérico".
o conceito de plural, em oposição a singular, é, portanto, aprendido na Enquanto a variação na concordância de número sempre foi atestada,
escola, um conhecimento explícito). a concordância de gênero no português brasileiro sempre se apresen-
Quando não especialistas tomam contato com alguma mudança nas tou como uma regra categórica, com exceções em situações de con-
regras hegemônicas, seu conhecimento implícito dá base a suas explica- tato dialetal, como no português afro-brasileiro (Lucchesi, 2009).
ções, que mobilizam os mesmos fatos observados pelos especialistas em Diferentemente da concordância de número, existe militância
suas descrições. Foi o que aconteceu com a concordância de número no na concordância de gênero, como a do movimento feminista e do
português brasileiro no conhecido episódio, em 2012, do livro didático que movimento LGBTQI+.
Finalmente, enquanto na concordância de número o arranjo das
apresentava essa mesma discussão (uma das frases de exemplo é: "Os livro
regras ocorre no nível da fronteira dos constituintes, na concordân-
mais interessante estão emprestado"). A regra que era esperada para cons-
cia de gênero, na perspectiva da "linguagem neutra", temos a inser-
tar em um livro didático e que, de fato, constava em toda a lição era a regra
ção de novas formas no sistema para expressar o gênero genérico.
redundante; mas a discussão de um aspecto específico da regra dominante
e de seus efeitos de juízo de valor foi interpretada pelos não especialistas As descrições dos especialistas sobre a concordância de gênero em
como tentativa de imposição da regra alternativa. E a interpretação dos nossa língua dão conta de que o português é uma língua de gênero morfolo-
não especialistas foi: "Livro adotado pelo MECdefende falar errado'", gicamente marcado nos elementos nominais por meio de desinências (rnor-
Se na Copa do Mundo o Brasil tem 212milhões de técnicos de futebol, femas), sendo que o masculino é a forma não marcada. Por isso, ele pode
no episódio do livro didático não faltaram "especialistas" para apresen- codificar situações de gênero genérico. Por exemplo, gato é a forma mascu-
tarem sua apreciação da regra, tema que movimentou a mídia e as redes lina para o animal felino de sexo masculino; gata é a forma feminina para
sociais. O tempo passou, as duas regras continuam coexistindo, com os o animal felino de sexo feminino. Na frase "Gatos comprariam Whiskas",
mesmos juízos de valor associados. entendemos: gatos e gatas, se pudessem comprar uma ração, comprariam
O exemplo das regras para a concordância de número tem paralelo nas a da marca da propaganda. Se a frase fosse "Gatas comprariam Whiskas",
regras de concordância de gênero, no que se tem chamado de "linguagem neu- entenderíamos que a ração da propaganda seria específica para animais do
tra de gênero". A comparação entre os fenômenos precisa ser relativizada: sexo feminino. Isso ocorre porque a forma do masculino codifica situações
Não existe neutralidade de gênero quando em referência a pessoas. de gênero genérico. Descrições como essa abonam instrumentos norrnati-
As pessoas têm identidade, expressão e orientação quanto a seu vos e refletem, em sua maioria, o uso vernacular brasileiro.
gênero, seja em perspectiva binária ou não binária, e são categori- Primeiramente, é preciso esclarecer o que é marcar e o que é mar-
zadas por isso. Não existe neutralidade nesse processo: a partir do cação, termos recorrentes na descrição linguística, evocados neste e em
momento em que atribuímos nome a uma entidade e a inserimos outros textos que discutem a questão da concordância de gênero ("marca-
em determinada categoria, passamos a atribuir valores positivos dor" de gênero, gênero "marcado" e "não marcado" etc.).
ou negativos e a definir seu lugar em escalas hierárquicas (Mos- Marcação é um conceito advindo da corrente funcionalista da Escola
covici, 1988). No entanto, existem situações em que a referência de Praga e se traduz na oposição binária [+ / -]:um elemento do par é for-
malmente marcado e o outro não apresenta a marca formal. Na concordân-
3 Cf. https://bitylLcom/1JWYP, acesso: 14 jan. 2022. cia de número em português, o plural é marcado [+-s],enquanto o singular

59
58 Raquel Meister Ko. Freitag Conflito de regras e dominância de gênero
a inserção do postulado do morfema zero para gênero, como os clássicos
é não marcado [-s], como em gato/gatos. Assim, na descrição de fatos da lín-
exercícios de "passe para o feminino", ou "qual é o feminino de ?", presen-
gua em dada perspectiva linguística, num dado domínio funcional, como o
da concordância de gênero ou de número, um elemento é marcado e o outro, tes em livros didáticos.
Apesar da elegância descritiva do morfema zero, a concepção de
não marcado, o que se manifesta pela ausência vs. presença de marca. O
masculino como forma neutra (ou "não marcada") de gênero não é intui-
sistema binário de marcação tem uma finalidade: padronizar a descrição
tiva para as pessoas leigas (não linguistas), que identificam e aplicam um
linguística, possibilitando a comparação entre línguas. A aplicação do con-
padrão de gênero binário. Mas ela é conveniente porque alinhada à domi-
ceito de marcado e não marcado possibilita descrições linguísticas mais
nância masculina, perpetuada até hoje nas diferentes esferas sociais. Efei-
sintéticas (por ser binário), mas não necessariamente mais representativas
tos dessa dominância social, amparada pelo postulado do morfema zero,
da realidade linguística, nem mais corretas. É um recurso para conferir
neutralizam a atuação probabilística na observação de situações, ínferên-
abstração e elegância descritiva na configuração de padrões gramaticais.
Derivado da marcação é o conceito de morfema zero, aplicado ao cia de regra e generalização.
gênero masculino em português. Diz-se que o masculino é o gênero não
marcado e que -o é a vogal temática e a desinência de gênero masculino é o Addddd B99999
morfema zero (0), enquanto -a é uma desinência de gênero. Essa proposta
de análise foi apresentada por Camara Jr. (1970) para o português e é evo-
ddddd
todos
99999 todas
cada para justificar, em uma situação que requer uso de gênero genérico, a
utilização do masculino como a forma não marcada. Isso explica o uso do Cddddd D d9 9 9 9
masculino no exemplo da Whiskas.
O conceito de marcado e não marcado e a postulação de morfema 99999 99999 todos
zero, mesmo quando deslocados do contexto descritivo, são intuitivos para todos
um não especialista quando aplicados à concordância de número; afinal, a Não faz sentido que em uma sala cheia de mulheres, com apenas um
concordância de número no português opera em termos de singular e plu- homem, a forma de gênero genérico seja "todos". Com base na frequência,
ral, e o plural é realizado pelo acréscimo de uma desinência (gato vs. gatos). a regra intuitiva de dominância levaria à aplicação de gênero feminino; a
Mas assumir que o masculino em português é um morfema zero e não a prevalência do masculino é assegurada pela perpetuação da explicação do
terminação -o nos substantivos e adjetivos é, no mínimo, contra intuitivo rnorfema zero como forma não marcada, associada ao gênero genérico.
para quem não tem formação em teoria linguística. Evidências anedóticas No entanto, a explicação - no escopo de uma teoria para justificar
de aquisição mostram a capacidade da criança em inferir a regra de con- o fato de a gramática da língua assumir dada forma (o morfema zero, ou
cordância assumindo que -o seja a marca de flexão masculina e -a seja a a ausência de marca) como a forma de referência neutra de gênero - não
marca de flexão feminina e de generalizá-Ia, inclusive para contextos em corresponde aos anseios e demandas de todos os grupos sociais. É aqui que
que ela não se aplica (regularização de formas irregulares). Por exemplo: entram as explicações sociolinguísticas. Nossa fala não é só conteúdo lin-
(a) o menino vs. a menina
guístico, é também e ao mesmo tempo marca de expressão, de indexicali-
(b) o menino bonito vs. a menina bonita dade, remete a categorias. Quando falamos, imediatamente somos associa-
(c) o menino grando vs. a menina granda dos a um grupo, somos categorizados. Uma mulher se dirigir a "todos" em
urna sala em que predominam mulheres pode ser um recurso de elegância
Esse comportamento pareado de masculino e feminino é reforçado
estilística e economia descritiva, mas não é socialmente confortável, pelo
na escola, com exercícios de flexão de gênero para nomes biformes, sem

61
Conflito de regras e dominância de gênero
60 Raquel Meister Ko. Freitag
art. 70 e seus incisos XX e XXX; inciso 11,do § 1°, do inciso 11,do § 1°, do art 173 -,
menos para alguns grupos, por não refletir adequadamente a categoriza- bem como em normas internacionais ratificadas pelo Brasil e dá outras providências,
ção da realidade.
O movimento feminista, em suas diferentes ondas e intersecciona- O projeto determina em seu art. 6°: "O Estado adotará o emprego de
lidades, sempre buscou a igualdade na representação de gênero em dife- linguagem inclusiva do gênero feminino na redação de suas normas inter-
rentes esferas, incluindo a língua. Nesse sentido de igualdade, o repertório nas, de seus textos de comunicação interna e externa, bem como nos edi-
de referência de gênero incorpora a forma "todos e todas", que não é vista
tais de concursos públicos".
como redundante, mas como inclusiva, embora seja criticada por quem O projeto de lei foi apensado ao 4.857/2009 e, desde então, foi a plená-
assume a forma masculina como também a de gênero genérico, logo, auto- rio dezenove vezes, e a última deliberação legislativa é: "Matéria não apre-
maticamente inclusivo. Essa busca por igualdade linguística de gênero tem ciada por acordo dos Srs. Líderes". A proposição mais recente é o projeto
pautado a agenda legislativa há vinte anos. O projeto de lei 4.610/2001, de de lei 3.756/2015, da deputada federal Angela Albino (PCdoB),que dispõe
autoria da deputada federal Iara Bernardi (PT),que "dispõe sobre a lingua- sobre a utilização da linguagem inclusiva de gênero no âmbito da adminis-
gem inclusiva na legislação e documentos oficiais, estabelecendo a utiliza- tração pública federal, ainda tramitando nas comissões.
ção de vocábulos do gênero masculino apenas para referir-se ao homem; No entanto, há vitórias. Em 2005, a senadora Serys Slhessarenko (PT)
exigindo que toda referência à mulher deverá ser feita expressamente uti- apresentou ao Senado o projeto de lei 12/2005, que determina o emprego
lizando-se o gênero feminino", já passou por toda a tramitação, com subs- obrigatório da flexão de gênero para nomear a profissão ou o grau em
titutivo aprovado em 2006, e está pronto para entrar na pauta no plenário, diplomas. Por mais estranho que pareça, até então, os diplomas sempre
em regime de tramitação ordinária. foram emitidos no masculino, independentemente do gênero da pessoa. A
Basicamente, o que o projeto de Bernardi propõe é dar nova redação naturalização do masculino genérico é tão forte que eu tenho documentos
ao inciso IV do artigo 11da Lei Complementar 95/1998: pelos quais me foram conferidos os títulos de licenciado em Letras, mes-
tre e doutor em linguística. A concordância da profissão pode ocorrer com
Art. 11. As disposições normativas serão redigidas com clareza, precisão e ordem o antecedente "título", mas o predicativo também pode concordar com o
lógica, obedecendo, no que couber, aos preceitos da linguagem inclusiva, obser- gênero do referente, configurando um contexto de regra variável. A lei
vadas, para esse propósito, as seguintes normas: apenas delimita qual deve ser o escopo de compreensão da regra, dando
t.. visibilidade à expressão do gênero. Depois de ser aprovado no Senado, esse
IV - em obediência aos preceitos da linguagem inclusiva, nos casos em que o
projeto passou a vigorar como PL 6.383/2009, sancionado em 2012como lei
termo 'homem(ns)' estiver se referindo a pessoas de ambos os sexos, deverá ser 12.605pela presidenta Dilma Rousseff.
empregada a forma inclusiva 'homem(ns)' e mulher(es)',
Contudo, leis para mudar a língua pela igualdade são inócuas se não
houver espaço para a representatividade e o reconhecimento da diversi-
dade. No período de 2011a 2016, o Brasil foi governado por Dilma Rousseff,
Quase dez anos depois, o projeto de lei 6.653/2009, da deputada fede-
que escolheu flexionar o seu atributo, presidenta, ao amparo da lei".
ral Alice Portugal (PCdoB)
4 A lei 2.749, de 2 de abril de 1956, que dá norma ao gênero dos nomes designativos das funções públicas,
cria mecanismos para garantir a igualdade entre mulheres e homens, para coibir em seu art.Iv, determina: "Será invariàvelmente observada a seguinte norma no emprêgo oficial de nome
designativo de cargo público: '0 gênero gramatical dêsse nome, em seu natural acolhimento ao sexo do
práticas discriminatórias nas relações de trabalho urbano e rural, bem como no
funcionário a quem se refira, tem que obedecer aos tradicionais preceitos pertinentes ao assunto e consa-
âmbito dos entes de direito público externo, das empresas públicas, sociedades de grados na lexeologia do idioma. Devem portanto, acompanhá-Io neste particular, se forem genericamente
variáveis, assumindo, conforme o caso, eleição masculina ou feminina, quaisquer adjetivos ou expressões
economia mista e suas subsidiárias, amparando-se na Constituição da República
pronominais sintàticamente relacionadas com o dito nome".
Federativa do Brasil - de seu art. 1°; inciso I, do seu art. 5°; caput do seu
inciso 111,

63
Conflito de regras e dominância de gênero
62 Raquel Meister Ko, Freitag
Não se tratava de neologismo. A forma presidenta, assim como o em seu discurso de posse, disse: "Eu fui estudante e eu sou amante da
emprego do sufixo -enia para cargos femininos, é atestado por instrumen- língua portuguesa. Acho que o cargo é de presidente, não é não?", como
tos normativos (gramáticas, dicionários e Vocabulário Ortográfico da LÍn- reporta a matéria do G1de 10 de agosto de 20167• Subjacente à decisão de
gua Portuguesa), embora de uso pouco generalizado. O fato de ser pouco escolha da ministra está a concepção de que a escolha de uma forma lin-
generalizado é reflexo da baixa representatividade femininas. guística não torna as pessoas mais ou menos machistas. Já seus comporta-
A maior inserção de mulheres nas instâncias de poder mobiliza mentos e atitudes, sim.
mudanças, como a construção de banheiros femininos no plenário do A representatividade leva a pequenas mudanças, com pequenas con-
Senado Federal somente em 2016.E também a maior produtividade de sufi- quistas pela igualdade, enquanto a luta continua. O movimento pela igual-
xos flexionados no feminino. Por ser uma regra variável, escolher entre dade de gênero não é binário. O não conformismo com as definições de
presidente e presidenta reflete o modo como as pessoas inferem as regras gênero alinhadas a um padrão binário é o mote para as ondas de movimen-
a partir das experiências, construindo sua consciência linguística. Dilma tos não binário, do LGBTao LGTBQIA+.E esse não conformismo também
Rousseff sempre fez questão de se referir a si mesma como presidenta. Mas esbarra no domínio da representação linguística: qual é a forma de gênero
nem sempre sua escolha era respeitada. A reportagem do jornal O Globo gramatical para referir pessoas não binárias? As descrições linguísticas
de 12 de novembro de 2014, se inicia assim: ''Apresidente Dilma Rousseff até este momento não atestam a sistematicidade de pronomes neutros ou
e a xeika Moza bint Nasser'". Tanto presidente quanto xeique são abonados morfemas flexionais de gênero neutro do português; existem análises de
por instrumentos normativos, inclusive o VOLP.Mas a forma feminina, usos ainda assistemáticos, em que possibilidades são testadas; destas, -e
xeica, não o é, enquanto presidenta sim. Por que para Dilma Rousseff a (como em todes, gates) parece ser a forma que possibilita encaixamento no
regra aplicada foi a de nome de dois gêneros, com a marcação do gênero sistema (Máder: Severo, 2016; Schwindt, 2020).
no determinante, enquanto para Moza bint Nasser a regra aplicada foi a Essa forma tem sido usada para codificar duas regras: gênero neutro
de marcação binária (xeique-xeica)? As possíveis explicações extrapolam o e linguagem neutra de gênero, coisas completamente diferentes. Gênero
processarnento linguístico e apenas sinalizam a postura reativa de setores neutro é a inserção de uma segunda (ou terceira, se a tese do morfema zero
da sociedade que não aceitaram o fato de o país estar sob o governo de uma não é considerada) forma na língua, para se referir a pessoas não binárias.
mulher, o que culminou no golpe em 2016. Reitero: não existe neutralidade de gênero, e sim um gênero genérico.
A ascensão de mulheres às instâncias mais altas do poder não neces-
Regra 1: neutro inclusivo, com a inserção de um morfema de gênero neutro,
sariamente sinaliza mudanças de padrões na língua. A ministra Cármen
para se referir à figura, em português: todo (masculino), toda (femini-
Lúcia Antunes Rocha, primeira e única mulher a presidir o Supremo Tri- no), para pessoa binária, e tode (neutro), para pessoas não-binárias
bunal Federal, o quinto posto mais alto da República Federativa do Brasil, e agêneras.

5 A marcação de gênero também ocorre por processo de concordância, em nomes comuns de dois gê-
neros, como o estudante, a estudante. Existe um conjunto de nomes comuns de dois gêneros relativos a
profissões, cuja vogal ternática é -a, como em motorista, babá, dentista, frentista. Quando pensamos em
motorista, a associação é com o gênero masculino, enquanto quando pensamos em babá, a associação é
com o gênero feminino. Por que isso ocorre? Um estudo experimental no português brasileiro mostrou
que a frequência prototípica da profissão interfere na representação na gramática. A distinção da marca-
ção de gênero nesses nomes é resultado das experiências com estereótipos compartilhados: na falta de
Id' 9 C; O I
Regra 2: neutralização de gênero, ou um novo gênero genérico: a forma tode
informação gramatical de gênero, as pessoas constroem representações mentais a partir dos estereótipos se refere a pessoas binária, não binária e agênera.
de gênero, que sofrem efeitos da frequência e da saliência, parâmetros que também afetam a gramática
(Pinheiro; Freitag, 2019).
6 Cf. https://bityli.com/ticYu,acesso: 16jan. 2022. 7 Cf.https://bityli.com/akagm, acesso: 16jan. 2022.

64 Conflito de regras e dominância de gênero 65


Raquel Meister Ko. Freitag
Essa é a descrição das possibilidades de inferência das regras a par- Em uma prova, como resultado deste processo, coloquei 'alunxs' no cabeçalho, Na
tir da observação dos usos. Em processos de variação e mudança, há perío- hora da aplicação não teve resistência mas depois alguns estudantes riscaram o
dos de maior ou menor estabilidade no sistema da língua. Em períodos de termo e colocaram 'aluno', Foram poucos e isto é natural.
menor estabilidade, as regras ainda não são inferidas de maneira homogê-
nea pela comunidade. Os fatos reportados a seguir ilustram esse momento A situação reportada evidencia um conflito de norma: o professor
de menor estabilidade quanto à inferência da regra de gênero associada a -e. adotou um morfema para a neutralização do gênero (no caso, x, com o
Em reportagem de 12de novembro de 2020, o Yahoo Notícias apresenta o mesmo efeito que -e), e alguns alunos o alteraram para o morfema que faz
comunicado de uma escola particular do Rio de Janeiro (RJ) à comunidades: parte da sua representação da regra.
Há iniciativas que prescrevem essas regras, como o Manual para o
A neutralização de gênero gramatical consiste em um conjunto de operações uso da linguagem neutra em língua portuguesa (Almeida, 2020). O manual
linguísticas voltadas tanto ao enfrentamento do machismo e do sexismo no dis- apresenta as formas para uso de linguagem neutra de gênero: "Aplica-se
curso quanto à inclusão de pessoas não identificadas com o sistema binário a pessoas não binárias, bebês intersexo, ao nos referirmos a um grupo de
de gênero, Nesse sentido, acolhemos ativamente demandas legítimas da socie- pessoas com mais de um gênero ou quando não sabemos quais pronomes
dade, permitindo a docentes e estudantes que manifestem livremente sua iden- usar com determinada(s) pessoais)" (Almeida, 2020: 7). É enunciada aqui
tidade de gênero e contribuindo para uma representação mais digna e igualitária
uma terceira regra: a forma -e é, ao mesmo tempo, gênero e neutralização
dos diferentes gêneros, Assim, a substituição da expressão "queridos alunos"
de gênero. Essa mesma regra se encontra em outro manual, o Guia TODXS
NÓS de Linguagem inctuenxi", que se propõe refletir "sobre o uso de uma
por "querides alunes", por exemplo, passa a incluir múltiplas identidades sob
a marcação de gênero em "e", Alternativas como "queridos alunos e queridas
linguagem que promove equidade de gênero, respeita e inclui mulheres,
alunas", igualmente, mostram-se viáveis ao evitar a representação de todos os
pessoas negras, pessoas com deficiência e LGBTQIA+(Lésbicas, Gays, Bis-
gêneros pelo masculino,
sexuais, Transgênero, Queer, Intersexo, Assexuais e Aliades)", mas que, na
prática, promove a troca de uma forma por outra:
A análise do comunicado permite inferir que a regra aplicada pelo
Inclusão do gênero não binário na língua portuguesa - Hoje, no nosso idioma,
colégio é a de neutralização de gênero, com a substituição de uma forma
usamos o masculino quando falamos de forma generalista, A proposta é passar a
"queridos alunos", de gênero genérico, por outra, "querides alunes", sob o
usar [" ,] a letra E no lugar do O ou A,
argumento de que, com essa mudança, "passa a incluir múltiplas identi-
[",]
dades sob a marcação de gênero em 'e' ", o que, na prática, significa que
Quando se dirigir a um coletivo, diga "todes", Em vez de "amigos/amigas", diga
a mudança se dá apena na forma de expressão do gênero genérico. Em
"amigues" (HBO, 2020: 7)11,
seguida, sugere "queridos alunos e queridas alunas", com a mesma regra
de igualdade de gênero. O que é assumido como neutralização do gênero
Como em todo processo de gramatização, a prescrição de normas - no
gramatical é, na verdade, a oposição ao masculino como gênero genérico.
caso, uma gramática para o gênero neutro - pressupõe que o comportamento
Cinco anos antes (22/09/2015),o jornal O Globo noticiava: "Professores
linguístico (regra) de um grupo é assumido como o padrão a ser generalizado
do Pedro II adotam termo 'alunxs' para se referir a estudantes sem definir
gênero'". Na reportagem, um professor explicava:
10Cf.https://bityli.com/GRhzh, acesso: 16jan. 2022.
11 Embora afirme se embasar no "Guia de comunicação inclusiva" do Secretariado· Geral do Conselho
8 Cf. https://bityli.com/NZiCa, acesso: 16jan. 2022, da União Europeia, lançado em 2018, no documento original não se faz menção à mudança em termos
9 Cf. https.z/bityli.com/vükwy, acesso: 16 jan, 2022, prescritivos.

66 Raquel Meister Ko. Freitag Conflito de regras e dominância de gênero


67
para a comunidade. No entanto, ainda não há descrições linguísticas siste- neutralização do gênero. Na esfera federal, no início de 2021 havia seis
máticas para alimentar a prescrição desses usos. Estamos diante de um pres- projetos de lei com matéria relacionada aos usos de "linguagem neutra de
critivismo baseado nas intenções das pessoas que escreveram os manuais, e gênero". O projeto 5.198/2020, do deputado federal Junio Amaral (PSL)
não de um prescritivismo baseado em um padrão linguístico identificado em
uma comunidade de fala. Ou seja, trata-se de uma intervenção na língua, de veda expressamente a instituições de ensino e bancas examinadoras de seleções
cima para baixo, tão excludente quanto qualquer outro comando paragrama- e concursos públicos a utilização, em currículos escolares e editais, de novas for-
tical ou prescrição inspirada na "norma curta" (Faraco, 2008). mas de flexão de gênero e de número das palavras da língua portuguesa, em
Além do prescritivismo, a informação truncada pode gerar equívocos contrariedade às regras gramaticais consolidadas.
na interpretação de regras. Um exemplo é a reportagem do jornal OEstado
de S. Paulo, de 19 de junho de 2019, intitulada "Pronomes neutros ganham A proposição segue tramitação ordinária e está sujeita à apreciação
espaço nas ruas, redes sociais e até em empresas", cujo lide é "O uso prevê conclusiva pelas comissões. Apensados a esse projeto de lei, por serem
a substituição dos artigos 'a/ela/dela' ou 'o/ele/dele' por 'x/ile/dile'; desafio proposições semelhantes, estão os projetos 5.248/2020, do deputado
da linguagem neutra é superar a lógica do português?". Como o material federal Guilherme Derrite (PP), que "estabelece o direito dos estudantes
está restrito a assinantes, a leitura apenas do título da reportagem e do de todo o Brasil ao aprendizado da língua portuguesa de acordo com a
lide, acessível e compartilhável, sugere a inferência de uma quarta regra, norma culta e orientações legais de ensino, e dá outras providências";
ainda mais radical: só passará a existir o gênero neutro em português. E o projeto 5.385/2020, da deputada federal Caroline de Toni (PSL), que
encontramos evidências para dar suporte a essa inferência de regra. "estabelece medidas de proteção ao direito dos estudantes brasileiros ao
O jornal A Tribuna Online, de 3 de março de 2021,noticia que uma pro- aprendizado da língua portuguesa de acordo com a norma culta e orien-
fessora de um 6° ano de uma escola de Vitória (ES)enviou uma mensagem tações legais de ensino, na forma que menciona"; e o projeto 5.422/2020,
de boas-vindas aos estudantes ("bem-vindes!") na plataforma de ensino vir- do deputado federal Julio Cesar Ribeiro (Republicanos), que "altera a Lei
tual, o que, segundo o jornal, causou indignação em alguns pais", Segundo nO9.394, de 20 de dezembro de 1996, para proibir a utilização de gênero
o jornal, "a prática é incentivada pelo movimento LGBTQI+como forma de
neutro na língua portuguesa".
respeitar as pessoas que não se identificam como homem e nem mulher".
Ainda tratando da mesma matéria, estavam aguardando despacho
Nesse período de menor estabilidade do sistema, de início, a forma
do presidente da Câmara dos Deputados o projeto de lei 173/202, do pre-
-e emerge para atender a demandas identitárias de pessoas não binárias
sidente da Câmara dos Deputados, que "altera os arts. 26, 32 e 35-A da lei
e agêneras para autorreferência. Mas há pessoas que defendem e prescre-
9.394 de 20 de dezembro de 1996, que institui as Diretrizes e Bases da Edu-
vem o uso da forma para se referir a todo mundo, como uma estratégia de
cação Nacional", e o PL 211/2021,da deputada federal Chris Tonietto (PSL),
neutralização de toda referência ao gênero. Assim como se deve desconfiar
que "estabelece medidas protetivas à língua portuguesa, idioma oficial da
de quem diz que as feministas queimam sutiãs (elas nunca os queimaram),
República Federativa do Brasil e patrimônio cultural brasileiro".
é preciso desconfiar de quem atribui a um movimento - que a cada dia
Aalteração proposta pelo projeto 173/202veda "oensino do gênero neutro
incorpora mais uma letra a sua sigla para contemplar toda a diversidade
bem como seu uso nas correspondências e documentos oficiais das escolas".
- a intenção de apagar o gênero, a neutralização do gênero.
O art. 2° do PL 211/2021determina o seguinte:
No entanto, é por conta da falta de entendimento da regra decor-
rente dessa menor estabilidade do sistema que pipocam leis contra a
Fica expressamente proibido o uso, o ensino, o fomento e qualquer forma de uti-

12 Cf. https://bityli.com/gAwWD, acesso: 16 jan. 2022. lização da denominada "linguagem neutra" e similares na grade curricular, em
13 Cf. https://bityli.com/KKuiP, acesso: 16 jan. 2022. materiais didáticos de instituições de educação infantil, ensino fundamental e

68
Raquel Meister Ko. Freitag Conflito de regras e dominância de gênero 69
"Que amigos você vai convidar para a sua festa de aniversário?", pergunta uma
superior e de cursos livres e assemelhados, públicos ou privados, bem como em
avó argentina a seu neto, algumas semanas antes de o menino completar 9 anos.
editais de concursos públicos e em outros documentos oficiais, garantindo-se o
Ele enumera sete garotos, e a avó, estranhando, lhe pergunta se nenhuma menina
aprendizado dos estudantes e o acesso de usuários de serviços públicos à norma
seria incluída. "Sim. Claro. É que você disse amigos, e não 'amigues"', responde o
culta estabelecida pelo Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP) e
neto. Esta cena real se repete com frequência cada vez maior entre a classe média
da gramática elaborada com base no Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa
progressista de Buenos Aires e outras cidades argentinas, enquanto os setores
de 1990, em vigor no Brasil desde o ano de 2009.
mais conservadores rechaçam abertamente mudanças linguísticas desse tipo,

o que motiva uma reação tão forte, vedando o uso e o proibindo


Do mesmo modo que meu pai" e Miriam Coldenberg" se incomodam
expressamente, a ponto de mobilizar nada menos do que seis projetos de
com o uso de a gente pelos jornalistas da GloboNews (e eu não), muitos dos
lei sobre a mesma matéria é a ameaça da substituição de uma hegemonia
meus orientandos e orientandas se sentem incluídos por todes (e eu não).
por outra. Não se trata de linguagem inclusiva, como nos projetos de lei
Defendo o direito de ter direito a escolher pronomes e flexâo de meu
pela igualdade de gênero das décadas anteriores, mas de barrar a neutra li-
gênero, não a neutralidade, apagando meu gênero. Eu lutei muito para ter
zação do gênero pela substituição de uma forma (o morfema zero, mascu-
meuA no meu diploma e não me sinto incluída numa pretensa neutralidade.
lino genérico, hegemônico e dominante) por outra, a forma incipiente no
Mas eu não faço a língua, sou apenas mais uma pessoa na comunidade.
sistema da língua para referir pessoas não binárias, como a forma gené-
rica, candidata a hegemônica e dominante. É a troca de uma regra de uma
hegemonia (o masculino supostamente neutro) por outra, o neutro agê-
nero, ou a neutralização do gênero.

o d
Se todes é a forma para quem não quer ser identificado pelo gênero, ela
é também uma forma de igualdade. Mas neutralizar o gênero para quem
quer se identificar por seu gênero, trocando todos por todes, é trocar uma
hegemonia por outra. E nessa história, as mulheres acabam mais uma vez
marginalizadas e excluídas. Assim como não é consenso entre as vertentes
do movimento LGBTQI+que todes deve neutralizar gênero, não é consenso
entre as vertentes do movimento feminista que a neutralização por todes
seja representativa da identidade de gênero feminina.
A inferência da regra também sofre viés geracional. Na comunidade
de língua espanhola, onde a emergência do -e neutro também é identifi-
cada, uma professora argentina, em reportagem do El Pais, relata: "Eu não
uso, mas aceito que meus alunos e alunas usem. Muitos usam o -e quando
falam, principalmente entre eles, mas não tanto quando escrevem". Mais
à frente, a reportagem ilustra uma situação de conflito geracional na infe- 14 Cf. https://bityli.com/rcxsL. acesso: 16 jan. 2022.
Cf. https://bityli.com/MpfHu. acesso: 16 jan. 2022.
rência da regra de gênero: 15

I,
Conflito de regras e dominância de gênero
71
70 <RaquelMeister Ko. Freitag

III1111111
• • • • • • ••• • • ••
•• •• • • •• • • •••

A MORFOlOGIA
DE GÊNERO NEUTRO
E A MUDANÇA ACIMA
DO NíVEL DE CONSCIÊNCIA
SILVIA CAVALCANTE

• •• •
• • ••
(todas); ao passo que em (2), "todes" é uma forma inclusiva que remete a
indivíduos que se identificam como masculinos, femininos ou neutros.
Tentativas anteriores de marcar a neutralidade foram feitas, mas se mos-
traram pouco produtivas, seja por motivos de estrutura silábica do português,
seja por motivos de não serem lidas por processadores de texto (usados por
pessoas com alguma deficiência visual), como o uso de "@" ou de "x" no lugar
• • •• • • • • • • •• • do afixo de gênero (ouda vogal temática), como nos exemplos a seguir:
• • •• • • • • •• • ••
(3) Car@s alun@s
(4) Carxs alunxs.

São diversas as questões levantadas sobre o uso do gênero neutro


em português: podemos discutir a categoria gênero como uma categoria
semântica ou morfossemântica, ou gênero como uma propriedade morfo-
lógica das línguas naturais e como ela se manifesta; discutir as relações
de poder envolvidas na linguagem; falar sobre como uma mudança acima
do nível de consciência! entra na língua e quais os limites dessa mudança;
falar sobre questões que envolvam preconceito linguístico e social no uso
da linguagem de gênero neutro e sobre as questões identitárias envolvidas.
Cabe elencar algumas referências de pesquisadores brasileiros que
INTRODUÇÃO têm se debruçado sobre o assunto, sob perspectivas que não serão abor-
a linguagem de gênero neutro no português brasileiro tem dadas aqui: para os trabalhos sobre a questão identitária relacionada às
O DEBATE SOBRE

ganhado terreno em diferentes frentes, não só entre os indivíduos que novas formas de gênero neutro, vale conhecer os trabalhos de Rodrigo
Borba (Borba; Ostermann, 2008; Borba, 2015; 2019, entre outros). Além
advogam a favor do seu uso, mas também entre os linguistas, que procu-
ram explicações para o fenômeno, e entre os prescritivistas, temerosos de disso, Carvalho; Farias; Brito (2020) e Carvalho (2021) apresentam uma
que a inovação deturpe a língua portuguesa. A linguagem neutra, ou lin- discussão instigante sobre o gênero como uma classe.
guagem inclusiva de gênero, ou o uso do gênero neutro, caracteriza-se pela Neste capítulo, trato especificamente da questão morfológica do afixo
presença de morfologia de gênero e e/ou pronomes e determinantes neu- de gênero neutro, com uma análise fundamentada na proposta de Camara
tros em palavras com traço semântico [s-humano],em que a oposição mas- Jr.; também falo um pouco sobre a questão do sistema de pronomes neutros
culino x feminino não é suficiente para dar conta da identidade de gênero. e da percepção da mudança acima do nível da consciência com uma breve
Assim, usa-se o gênero neutro com o intuito ou de marcar indivíduos que análise de dados retirados de posts de internet. O texto está organizado
não se identificam com masculino ou feminino, os não binários, ou para da seguinte forma: na primeira seção, apresento brevemente o sistema de
neutralizar os indivíduos: gênero neutro no português brasileiro e em algumas línguas, como o inglês
e o alemão, baseando-me, principalmente, em alguns manuais de linguagem
(1) Bom dia a todos, todas e todes.
(2) Bom dia a todes.
neutra; na segunda, apresento uma breve revisão da proposta de Camara

Comparando os exemplos (1)e (2),vemos que a forma "todes", em (1) I Mudança acima do nível da consciência se caracteriza quando um grupo de falantes tem consciência do

é usada para marcar neutro em oposição a masculino (todos) e feminino fenômeno linguístico em questão.

A morfOlogia de gênero neutro e a mudança acima do nível de consciência


75
74 Silvia Cavalcante
subjugando a descrição das diversas línguas, O controle colonial sobre o pensar
Jr. (1970,2004) para gênero em português e apresento uma proposta para o
gramatical é o que n?s faz acreditar, por exemplo, que a distribuição das catego-
gênero neutro no português brasileiro com base em Camara Jr. Finalmente,
rias nominais, como gênero, obedece a uma tradição sexuada binária, Posso ousar
na terceira seção, discuto a questão da mudança acima do nível da consciên-
afirmar, portanto, que o binarismo e, sobretudo, o patriarcado definiram sobrema-
cia com uma análise de dados de variação em pastagens numa página de um
neira os valores categoriais atribuídos a gênero,
grupo de alunos e professores da Faculdade de Letras da UFRJ.

Para Carvalho (2021), considerar o masculino o gênero neutro nas


A LINGUAGEM DE GÊNERO NEUTRO: O QUE DIZEM OS MANUAIS línguas ocidentais relaciona-se à maneira como se enxerga o mundo. É a
A linguagem de gênero neutro caracteriza-se pelo uso de morfemas, pressão do patriarcado que definiu a maneira como se enxerga o gênero
de pronomes e de determinantes para designar pessoas que não se iden- na linguística. De certo modo, ainda segundo Carvalho (2021),a arbitrarie-
tificam com a divisão masculino/feminino. Nas palavras de Payno (2021): dade do gênero pode ser questionada.
O sistema de gênero neutro se aplica somente a palavras (ou formas
As também chamadas linguagens não binárias ou neolinguagens são formas basea- pronominais) que tenham como referência seres com traço [+humano].
das em modificações na flexão de gênero de algumas palavras na tentativa de conferir Almeida (2020: 7) explicita isso numa observação: "Alinguagem neutra não
à língua uma manifestação mais inclusiva, representando mulheres, homens e pes- se aplica a animais ou objetos". Os manuais de linguagem neutra (Cassiano,
soas que não se identificam dentro desse espectro binário e cisnormativo de gênero, 2019,Almeida, 2020) sugerem explicitamente que ela seja usada para mar-
car neutralidade, ou quando não se sabe o gênero da pessoa, ou como uma
A alteração consciente na morfologia de gênero e no paradigma prono- forma inclusiva de se referir às pessoas.
minal é motivada por questões identitárias: por uma manifestação que inclua No português brasileiro, as tentativas de codificação de uma linguagem
não só homens e mulheres, mas também pessoas não binárias. A discussão neutra passam pela reformulação do sistema pronominal, do sistema de arti-
se assenta no questionamento do gênero masculino considerado como o gené- gos (determinantes) e do sistema das categorias nominais (nomes e adjetivos),
rico: "Anoção de masculino genérico, presente em línguas latinas como por- com a entrada de um afixo de gênero neutro. Para o sistema pronominal e de
tuguês, espanhol, italiano e francês, é o que nos faz recorrer à concordância artigos, há quatro sistemas: elu, ile, ilu e eL Podemos ver no quadro a seguir os
gramatical no masculino para expressarmos algo que se refere a um grupo de sistemas pronominais exemplificados, com base em Almeida (2020):
pessoas cujo sexo se desconhece ou a um grupo formado por homens e mulhe- f/u comeu uma pizza.
res", explica Vivian Cintra. Foi o questionamento dessa característica grama- Sistema e/u: O gato é delu.
Aque/u a/une está eiresede.
tical que deu força às manifestações por uma linguagem inclusiva em países
como os EUA,a Inglaterra e a França, sobretudo na década de 1970,com o for- /le comeu uma pizza,
Sistema i/e: O gato é di/e,
talecimento dos movimentos feministas (Payno, 2021).
Aqui/e a/une está etresede.
Esse questionamento é importante, na medida em que o masculino é
/lu comeu uma pizza,
considerado genérico por causa de uma visão eurocêntrica da língua, des-
Sistema i/u: O gato é dilu.
considerando línguas que marcam o neutro de outra forma. Nas palavras Aqui/u a/une está etresede.
de Carvalho (2021:253): E! comeu uma pizza:
Sistema e/: O gato é deI.
Essa segregação epistêmica é o que nos impede de repensar a categoria li- Aque/ a/une está etresede.

dade nas línguas, Sua estrutura baseada em um "ser" ocidental, indo-europeu, e Quadro 1: Exemplificação dos sistemas pronominais neutros no PB
(quadro elaborado a partir de Almeida, 2020)
mais especificamente greco-Iatino, não é questionada em toda a sua existência,

A morfologia de gênero neutro e a mudança acima do nível de consciência


77
76 Silvia Cavalcante
Segundo Almeida (2020:15),para os artigos, há duas opções: ê(s) ou le(s):
neutro em duas línguas que têm sistema de marcação de gênero bem dife-
(5) Ê alune é interessade / Le alune é interessade. rentes do português: o alemão e o inglês.
O alemão marca gênero no artigo: há o masculino (der), o feminino
Para os pronomes complemento, há uma opção: o clítico acusativo "e"
e suas variantes morfofonológicas (le, ne) (cf Almeida, 2020: 15): (die) e o neutro (das). O gênero das palavras é determinado ou por critérios
semânticos ou morfológicos (terminação da palavra). Assim, palavras que
(6) Carlos e viu no cinema.
remetem a seres do sexo masculino são masculinas (der Mann - o homem);
(7) As crianças vão vê-Ie amanhã.
e palavras que remetem a seres femininos são, via de regra, femininas (die
(8) Chamaram-ne de princesa.
Erau - a mulher). O gênero também é determinado pela terminação da
Para a marcação de gênero neutro em substantivos e adjetivos (por palavra, por exemplo, palavras terminadas em -chen ou -lain são neutras
concordância), surge o afixo -e, e suas variações fonológicas. Assim, ao (das Méidchen - a moça, das Frôulein - a senhorita).
lado de filho e filha, surge filhe; ao lado de cansado, cansada, surge can- Essas regras, entretanto, nem sempre funcionam; isto é, nem sempre
sade. A regra fica um pouco mais complexa, por assim dizer, para tratar é possível aplicar o critério semântico ou o morfológico. Assim, o sol em
de palavras que terminam com travamento nasal ou com consoantes. alemão é die Sonnen (feminino), a lua é masculino (der Mond). Muitas pala-
Palavras terminadas com travamento nasal, como irmão/irmã, ganham vras são neutras, como O carro (das Auto), a bicicleta (das Fahrrad), o barco
a forma neutra irmanets); chorão, chorona, chorone. Palavras terminadas (das Booti, mas o trem (der Zug) e o ônibus (der Bus) são masculinas. Então,
com -r, como professor/professora ganham a forma neutra professore. Mas às vezes não tem como prever: "Meios de transporte são neutros", porque
o plural é professories, para diferenciar do plural já existente, professo- nem todos são. E as palavras com traço semântico [+humanol? O homem
res. Palavras terminadas com -e, como português/camponês, ganham a (der Mann), a mulher (die Frau), o rapaz (der Junge), mas a moça (das Méid-
forma neutra portuguesu; camponês, camponesu. Por fim, palavras termi- chen) e a criança (das Kind) são neutras. Então nem quando há certa corres-
nadas em vogal, que não -e, ganham o afixo -e: nu/nue; europeu/europeie. pondência "ser do sexo feminino" o artigo é feminino.
E palavras terminadas em -e, como presidente, ganham a terminação -ie: A pressão por uma linguagem menos sexista também tem contri-
presidente/presidentie; chefe/chefie. buído para algumas soluções em alemão. Nesta língua, não faz muito
Ao lado das formas de masculino e feminino, é possível usar a forma sentido falar em linguagem neutra ou gênero neutro, porque ela distin-
do neutro: gue palavras neutras. A terminologia mais adequada é falar em lingua-
gem apropriada ao gênero (geschlechtergerechte Sprache). Aí a questão
(9). Maria esteve aqui semana passada. Ela está preocupada com a situação
fica um pouco complicada porque o gênero em alemão é presente em
• dela diante da crise econômica.
todo o sistema nominal e pronominal. Então, vou dar uma ideia rápida
(10) João esteve aqui semana passada. Ele está preocupado com a situação
dele diante da crise econômica. de como a coisa funciona: há, pelo menos, três alternativas para marcar
(11) Ana esteve aqui semana passada. Elu estava preocupade com a situação a linguagem inclusiva de gênero. Uma solução é o Binnen-l, que é a acres-
delu diante da crise econômica. centar um "I" maiúsculo na grafia da palavra para indicar pessoas mas-
culinas e femininas: Lehrerln para professor e professora, por exemplo;
Os manuais visam cobrir a maior gama de possibilidades, tendo em
uma segunda solução é acrescentar um asterisco "*,, ou um espaço "_" na
vista que, em português, o gênero é marcado não só nas categorias pro-
palavra para indicar neutralidade: mein_e beste'r Freund:in (meu melhor
nominais, mas também nos determinantes e nas categorias nominais,
amigo), e esse espaço é pronunciado como uma oclusiva glotal. A terceira
diferentemente do inglês, por exemplo, em que o gênero só é marcado nos
alternativa é acrescentar um "x" pronunciado como [íks] para marcar o
pronomes. Passemos para a caracterização de alguns sistemas de gênero
gênero neutro: meinx bestx Freundx (neutro) em oposição a mein bester

78
Silvia Cavalcante
A morfologia de gênero neutro e a mudança acima do nível de consciência 79
Freund (masculino) e a meine beste Freundin (feminino) para "meu melhor (17) When I tell John a joke, he laughs.
amigo/minha melhor amiga". Quando eu conto uma piada pro João, ele ri.

Ao contrário do que encontramos em alemão e em português, em (18) When I tell Mary a joke, she laughs.
inglês, o gênero não é marcado no artigo: the car (o carro), the ball (a bola), Quando eu conto uma piada pra Maria, ela ri.

the girl (a menina), the boy (o menino), independentemente de se a pala- (19) When I tell someone a joke, he laughs.
vra tem um traço [+ humano] ou não. Ou seja, há, em inglês, apenas um Quando eu conto uma piada pra alguém, elu ri.

único gênero para determinantes, substantivos e adjetivos. Para resolver (20) When I greet John, I hug him.
a questão da linguagem neutra, só há necessidade de marcação nos pro- Quando eu cumprimento João, eu o abraço.
nomes. O que parece ser relativamente simples, entretanto, apresenta-se
(21) When I greet Mary, I hug her.
como uma gama de possibilidades e propostas. Há diversos usos de prono- Quando eu cumprimento Maria, eu a abraço.
mes para marcar neutralidade na língua, como, por exemplo, o uso alter-
(22) When I greet someone, I hug em.
nado de he/she (pronomes de 3a pessoa do singular) e o uso de they (pro- Quando eu cumprimento alguém, eu e abraço.
nome de 3a pessoa plural) com referência à 3a pessoa do singular - they
(23) When John doesn't get a haircut, his hair grows long.
singular e todo o paradigma pronominal (nominativo, acusativo, posses-
Quando João não corta o cabelo, o cabelo dele cresce muito.
sivo, reflexivo), como podemos ver pelos exemplos a seguir extraídos de
https://bitylLcom/NINkx: (24) When Mary doesn't get a haircut, her hair grows long.
Quando Maria não corta o cabelo, o cabelo dela cresce muito.
(12) When I tell someone a joke they laugh.
(25) When someone doesn't get a haircut, es hair grows long.
Quando eu conto uma piada para alguém ele/ele ri.
Quando alguém não corta o cabelo, o cabelo delu cresce muito.
(13) When I greet a friend I hug them.
Quando eu cumprimento um amigo eu abraço ele/ele.
Essa tendência de intervenção consciente na língua para marcar
neutralidade de gênero aparece em diversas línguas, além do português,
(14) When someone does not get a haircut, their hair grows long.
do alemão e do inglês. Há inclusive uma página (https://bitylLcom/rRkLC)
Quando alguém não corta o cabelo, seu cabelo fica comprido.
Nonbinary Wiki, dedicada especialmente a identidades de gênero não biná-
(15) If I need a phone, my friend lets me borrow theirs.
rio. E lá se encontram artigos e descrições sobre neutralidade de gênero
Se eu precisar de um telefone, meu amigo me empresta o seu.
(gender inclusive language) em diversas línguas.
(16) Each child feeds themself. ar: each child feeds theirself. ar: each child As propostas de sistematização da linguagem inclusiva no PB, entre-
feeds theirselves. ar: each child feeds themselves. tanto, incluem formas que esbarram na própria característica fonológica
Cada criança alimenta a si mesma.
da sílaba em português. Por exemplo, propor formas de neutro como pro-
O uso do they singular é considerado a forma padrão de uso da lingua- fessorie ou presidentie cai na questão de que ditongos em sílabas finais são
gem neutra. Ele tem sido atestado na literatura desde a Idade Média, na obra monotongados, como lembra Schwindt (2020: 6) para as palavras como
de Chaucer, de Shakespeare ou de Jane Austen (https://bitylLcom/rcHkj). cárie ou barbárie:
Além do they singular, há diferentes sistemas pronominais (considera-
dos como não padrão) com proposta de inserção de pronomes para mar- A sugestão de adoção da sequência final ries ao nome visa a distingui-Ia do plural

car neutralidade. Ao lado das formas he e she, temos e, para os pronomes do masculino, professores. Meu entendimento é de que esta regra é pouco natural,

sujeito; ao lado de him, her temos em para objeto; e ao lado dos possessivos nos termos aqui definidos, no sistema do P8. a fato é que, apesar de o portu-
his e her temos es: guês contar com um conjunto restrito de vocábulos, todos femininos, terminados

80 Silvia Cavalcante A morfologia de gênero neutro e a mudança acima do nfvel de consciência 81


na sequência rie átona - a saber, cárie, série, barbárie, intempérie, superfície -, linguístico e parece natural". Não vou comentar as diversas propostas de
está sujeito nesses casos a um processo de redução ou monotongação, sistemas pronominais; para saber mais sobre isso, cf. Schwindt (2020).
extensivo ao plural, resultando em formas como cérh], sérh], barbár[I], intem- Há uma discussão na literatura sobre o que seja gênero: uma marca-
pérh], superfíc[I]. Uma possível motivação para essa redução pode ser a evita- ção morfológica derivacional (Gonçalves, 2011), uma marcação morfológica
ção ao hiato, [ri.e], ou, no caso de reparado o hiato por ditongação, a evitação a flexional (Camara Jr, 1970, 2004) ou até mesmo uma categoria (Carvalho,
sequências de segmentos homorgânicos [rjr], Não há evidência para se supor 2021). Isso acontece porque o gênero está relacionado a características
que tal redução isentaria formas inovadoras com semelhante estrutura fonológica. semânticas denotadas pelos nomes e pronomes. Por exemplo, segundo
Isso ocorrendo, o plural do masculino e o plural do aventado neutro se torna- Carvalho (2021: 259), a discussão sobre a arbitrariedade do gênero nas
riam idênticos, professor[I]s. Alguém poderia, todavia, contraditar afirmando que a palavras (a cadeira - feminino, o banco - masculino) pode não ser ponto
homofonia é um fenômeno comum na superfície fonética das línguas, incluindo o pacífico na literatura:
português. A pergunta, porém, seria por que uma língua introduziria uma oposição
de caráter consciente num sistema para que ela fosse desfeita por restrições de (...) em um número considerável de línguas que apresentam alguma marcação clas-

caráter inconsciente ativas no mesmo sistema [negrito acrescido]. sificada como gênero, mesmo os nomes apresentam uma subjetivação nessa clas-
sificação. A associação de marcas de virilidade e feminilidade a referentes fálicos

Os manuais não levam em consideração as regras ativas do sistema, ou delicados, respectivamente, na descrição de algumas línguas bantas não parece
mas sim regras com base na escrita: cria-se uma regra que funciona arbitrário, se levamos em conta que a maior parte das descrições das línguas afri-
somente para a escrita - mas a escrita é uma codificação da língua, não canas feitas no século XIX ocorreu pela pena de religiosos europeus (Errington,
é a língua. Além disso, os manuais apresentam, em determinados momen- 2001). O mesmo aconteceu com os povos sul-americanos (Severo, 2016).
tos, um tom prescritivista.
É importante destacar aqui: as interferências na língua são tentativas Associadas à morfologia estão questões relacionadas ao universo biosso-
de criar formas novas de neutralidade - ou linguagem inclusiva, ou gênero cial, de identidade. Para Carvalho (2021),o binarismo parece inadequado para
neutro - e encontram espaço em diversas línguas, não só no PB. Além a representação do gênero e ele associa essa binariedade à tradição ocidental:
disso, trata-se de uma mudança acima do nível da consciência. Talvez, por
isso, e também pela necessidade de se criar manuais, percebemos um tom A tradição ocidental nos convenceu de que o gênero designa as distinções sexuais,
prescritivista ou soluções pouco naturais e produtivas. Na próxima seção, biologizantes dos indivíduos. Esse determinismo há tempos foi questionado, prin-
apresentarei uma explicação baseada na proposta de Camara Jr. (1970) para cipalmente nas ciências humanas. Gonçalves e Oliveira (2019: 4) defendem que a
o morfema -e de neutro no PB advogando seu caráter relativamente natural, representação de gênero deve levar em consideração os contornos em que a rea-
apesar de ser oriundo de uma interferência consciente na língua. lidade é apresentada aos indivíduos, "dos exemplos que tiveram da cultura domi-
nante, de como são vistos e reconhecidos". Scott (1995: 72), por exemplo, assume
gênero como "a organização social da diferença entre os sexos. A referência à
SOBRE A MORFOLOGIA DE GÊNERO NEUTRO NO PB:
gramática é ao mesmo tempo explícita e plena de possibilidades não examinadas".
REVISITANDO CAMARA JR.
Essa construção escapa ao binarismo cimentado nas categorias gramaticais mile-
Nesta seção, vou partir da análise de Camara Jr. (1970 e 2004) sobre nares (Carvalho, 2021: 260).
gênero para tentar explicar a marcação de gênero neutro nos nomes no PB.
Mesmo sendo uma intervenção consciente na língua, a proposta de -e como 2 A proposta aqui delineada se baseia na proposta informalmente apresentada em Cavalcante (2020):
morfema de gênero neutro parece estar de acordo com as regras do sistema https://bityli.com/kLLSN, acesso: 17jan. 2022.

A morfologia de gênero neutro e a mudança acima do nível de consciência 83


82 Silvia Cavalcante
É certo que a representação de gênero deve levar em conta "os contor- linguística: a questão de associar o masculino com o neutro vai além de
nos em que a realidade é apresentada aos indivíduos", mas isso não signi- questões linguísticas, passa por questões identitárias (veja o capítulo
fica necessariamente que o surgimento de categorias binárias de gênero "Reversão de gênero gramatical no português brasileiro", neste volume). O
decorra automaticamente da tradição ocidental- "o binarismo cimentado sistema binário masculino x feminino dá conta de parte de indivíduos. E os
nas categorias gramaticais milenares". Há línguas, como o alemão, que indivíduos que não se identificam nem com o masculino nem com o femi-
marcam palavras referentes a seres femininos como neutro: das Madchen nino? Para incluir todos os indivíduos - por isso linguagem inclusiva de
(a moça). Há uma certa arbitrariedade na marcação de gênero em alemão, gênero, e não de gênero neutro - vamos usar o masculino?
e, talvez, também em português. A questão posta é tema de debate pela sobreposição de gênero grama-
Baseando-se em Corbett (1991),Schwindt (2020: 8) aponta a codifi- tical x gênero semântico: associamos masculino a seres do sexo masculino
cação de gênero como não baseada exclusivamente na correspondência e feminino a seres do sexo feminino. E essa associação aparece nas des-
semântica com o sexo biológico: crições gramaticais tradicionais que propõem várias categorias de gênero
baseadas em critérios semânticos: substantivos biformes, epicenos, sobre-
Nos sistemas que concebem essa categoria, é frequente se identificar alguma comuns e comuns de dois gêneros. Segundo Cunha e Cintra (1985),os subs-
correspondência semântica com sexo biológico, como é o caso das línguas indo- tantivos biformes podem ser de dois tipos: com o mesmo radical, muda
-europeias, ainda que este não seja um fato universal. Traços como [±animado), somente a desinência de gênero, tipo aluno x aluna, ou aqueles que apre-
[±racional], [±humano], [±forte], entre outros, podem também embasar sistemas sentam as duas formas (masculino e feminino) oriundas de radicais dife-
de gênero. E mesmo os sistemas baseados em sexo podem se diferenciar impor- rentes: homem x mulher, bode x cabra. Os substantivos epicenos designam
tantemente quanto ao número de categorias adotadas e suas combinações com animais, e uma mesma forma pode ser usada para seres do sexo mascu-
outros traços semânticos e propriedades formais. lino ou do feminino: a águia, a mosca, o besouro, o polvo. Já os substantivos
sobrecomuns são aqueles que possuem somente uma forma e designam
Nem sempre o sistema de gênero é associado ao sexo biológico. Em pessoas do sexo masculino ou feminino: o cônjuge, a testemunha. Final-
português, segundo Schwindt (2020: 10), a atribuição de gênero relacio- mente, os substantivos comuns de dois gêneros são aqueles que apresen-
nada ao traço [esexuado] se aplica a um subconjunto restrito de palavras: tam uma só forma para os dois gêneros - a diferenciação nesses casos fica
somente 5,6%dos nomes dicionarizados estão sujeitos a variação de gênero a cargo do artigo: o agente x a agente; o suicida x a suicida; ojovem x a jovem.
masculino/feminino, e a maioria dessas palavras é masculina. Apesar de Podemos levantar vários motivos para esse tipo de classificação de
haver um equilíbrio entre palavras femininas e masculinas, nesse sub- gênero: há mistura de critério morfológico com semântico nas subcate-
grupo, predominam palavras masculinas. Ainda segundo Schwindt (2020: gorias de gênero; para os substantivos biformes, se considera tanto um
10), "considerando-se a saliência sociocognitiva desse grupo, podemos processo flexional (aluno x aluna) quanto uma associação semântica nada
supor que se localize aí a principal razão para a impressão de maior con- relacionada com processo morfológico (homem x mulher). Na diferenciação
tingente de nomes masculinos na língua". entre epicenos e sobrecomuns, a diferença é apenas semântica (e não mor-
Esse levantamento quantitativo pode confirmar a ideia de que as fológíca), e o traço semântico é [ehumano]: epicenos são palavras que desig-
formas masculinas são usadas como "neutro": quando há um conjunto de nam animais e sobrecomuns designam pessoas, mas morfologicamente se
pessoas, falamos "bom dia a todos", o que inclui homens e mulheres, mas comportam da mesma maneira, isto é, só têm uma forma para designar
a forma do feminino é marcada. "Bom dia a todas" indica a presença exclu- seres de sexos diferentes.
siva de mulheres. Então, o masculino seria a forma "neutra" para desig- Essa indistinção provém da confusão entre gênero gramatical e gênero
nar as pessoas em geral, mas isso gera um problema que não é de natureza no mundo biossocial: há uma associação morfológica a características

84 Silvia Cavalcante A morfologia de gênero neutro e a mudança acima do nível de consciência 85


semânticas que remetem a seres sexuados (sejam eles com traço -humano Desse modo, a especificação de gênero nas palavras é arbitrária e
ou -humano). Mattoso Camara, de certo modo, resolve esse quebra-cabeça variável nas línguas, e não necessariamente relacionada ao significado da
quando desvincula gênero gramatical da associação de sexo ao significado palavra no mundo biossocial, ou seja, não está associada a uma ideia de
da palavra. Ele fala em uma diferença entre analogia formal e analogia sexo para os seres sexuados.
conceptual, para desvincular a noção de sexo à marcação de gênero. Temos um problema, porém, se quisermos usar a proposta de Camara
Para Camara Jr. (1970,2004), em português, o gênero nos substantivos Jr. para explicar o fenômeno do gênero neutro no PB. A motivação para a
é intrínseco, marcado pelo artigo definido o/a. No caso dos adjetivos, eles criação de um morfema -e de gênero neutro vem justamente do mundo
se flexionam em gênero de acordo com o substantivo que modificam. Há biossocial, é justamente uma motivação conceitual: marcar pessoas não
palavras exclusivas do masculino (o carro, o homem); há palavras somente binárias, ou marcar neutralidade de gênero. Entre os 5,6%de substantivos
no feminino (a casa, a mulher), e há palavras que podem variar entre mas- variáveis em gênero (masculino e feminino), alguns devem ser marcados
culino e feminino (o barco/a barca, o menino/a menina). O gênero é um mor- com -e para designar gênero neutro ou uma linguagem inclusiva.
fema estritamente gramatical, desvinculado da noção conceitual de sexo. Como ficaria, então, a análise gramatical? Em português, temos mor-
Assim, para Camara Jr., dizer que mulher é o feminino de homem é um erro femas específicos para marcar o feminino, em oposição ao masculino no
do ponto de vista da formação do feminino em português, pois se trata de mundo biossocial, mas o não binário não tem uma marcação gramatical
uma heteronímia de raízes e vai além: "Tais diferenciações lexicais, deter- específica, por isso surge a necessidade de marcar gramaticalmente uma
minadas pela distinção dos sexos como princípio semântico, têm impor- oposição conceitual. A palavra oposição é usada aqui propositadamente.
tância na descrição linguística, mas não para o estudo do gênero como fle- A necessidade de oposição aos gêneros masculino e feminino como iden-
xão gramatical" (Camara Jr., 2004: 149). tidade de gênero passa para a língua: a desinência -e e os pronomes neu-
Por ser uma operação flexional, o gênero é uma classificação morfoló- tros se opõem ao masculino e ao feminino não só como identidade, mas
gica imperativa - todos os substantivos são marcados com gênero intrin- também gramaticalmente. Então, para substantivos (e aí os adjetivos por
secamente -, e essa marcação aparece no artigo. Além disso, o feminino é concordância) que tenham o traço [+humano] surge a oposição masculino/
considerado um processo de particularização do significado não limitado feminino/neutro: aluno/aluna/alune; professor/professora/professore; can-
à especificação de fêmea: o barco/a barca; o cigarro/a cigarra; o jarro/a sado/cansada/cansade; nu/nua/nue.
jarra. Essa visão é crucial para distinguir gênero morfológico de uma ideia Mas essa análise pode funcionar num sistema pensado justamente a
de sexo dos seres vivos (tanto animais quanto pessoas) confundida nas partir da separação entre o gênero gramatical e o gênero conceitual? Pro-
análises tradicionais. vavelmente sim. Pode funcionar porque a motivação, por mais que seja
Camara Jr. distingue vogal temática da flexão de gênero com base no externa ao sistema gramatical, entra no sistema gramatical como uma
princípio estruturalista que diz que na língua "tudo é oposição". O mascu- subespecificação de gênero: se para Camara Jr. o feminino é uma particula-
lino é marcado com O morfema zero em oposição ao -a do feminino. Então rização de significado não necessariamente relacionada ao sexo dos seres,
palavras terminadas em -o (a tribo) não são necessariamente masculinas, o neutro pode também ser uma particularização de significado justamente
assim como palavras terminadas em -a não são necessariamente femini- para marcar nem o masculino nem o feminino. Pode parecer estranho,
nas (o enigma). E há palavras terminadas em -e que podem ser masculinas para alguns analistas, que a língua tenha um morfema específico para mar-
ou femininas (a ponte, o dente). Nesses casos, a vogal final é a vogal temá- car nem o masculino, nem o feminino e que não seja o neutro. Na verdade,
tica, e não O morfema de gênero. Então, como "tudo é oposição", o morfema essa oposição, ou seja, a particularização de significado, surge para mar-
de feminino só vai aparecer em oposição ao zero, quando assim ocorrer: o car o não binário. Então, para as palavras com referente [+humano], tería-
menino/a menina; o gato/a gata; o barco/a barca. mos ainda um sistema [ebínário] de gênero subdividido: gênero -binário x

86 Silvia Cavalcante A morfologia de gênero neutro e a mudança acima do nível de consciência 87


gênero -binário. No grupo do [+binário], teríamos a oposição [masculino] são pronunciadas com som de "i", Experimente evitar esse costume nas palavras
x [feminino] e no do [-btnárlo], o neutro, sendo todos marcados morfologi- de gênero neutro, Em algumas dessas palavras, a' pronúncia se tornará menos
camente com 0/-a/-e (professor, aluno/professora, aluna/professare, alune). desconfortável e mais fácil, se você pronunciar a última sílaba com o som

Além disso, essa subespecificação pode explicar a variação no uso: há de "ê", ao invés de "i", O som ficará mais encaixado, fechado e neutro, Tornará sua

quem se apresente com: "Bom dia a todos, a todas e a todes" e "Bom dia a adaptação melhor e diminuirá seu estranhamento,

todes". O uso de todes na primeira saudação diferencia pessoas não biná-


rias das demais pessoas; o segundo uso abrange todas as pessoas, sem dis- Esse tipo de regra claramente foi escrito por alguém que desconhece
tinção. Dentro dos grupos que usam essas formas, vemos um uso variável, o sistema das vogais átonas finais, que sempre se reduz a vogais altas; isso
justamente o ponto da próxima seção. vai afetar não só as vogais temáticas (pente, cabelo, camisa), como as vogais
que designam gênero (menina, menine). Além disso, desconhece que a lín-
gua escrita é um código, não a língua, e confunde sistema com "sotaques
SOBRE A MUDANÇA ACIMA DO NíVEL DA CONSCIÊNCIA
regionais". Esses manuais podem ser criticados e deslegitimados, talvez
E A QUESTÃO IDENTITÁRIA
por terem forte influência da gramática tradicional. Ao linguista, entre-
Esta seção está dividida em duas partes: primeiramente, veremos a ques- tanto, cabe analisar a língua tal como ela se apresenta; e não segundo as
tão da mudança acima do nível da consciência e, em seguida, uma pequena regras dos manuais.
análise de dados de uma amostra advinda do comportamento da comunidade A implementação e o espraiamento da mudança linguística está rela-
de alunos e professores da Faculdade de Letras da UFRJ numa rede social. cionada a diversos fatores, principalmente àqueles ligados à aceitação das
A pauta do gênero neutro é importante não só para os estudos de novas formas na comunidade de fala. Consideremos que a forma -e para
identidade, mas também para os estudos morfológicos e de mudança lin- designar gênero neutro seja uma forma inovadora, ainda restrita a um
guística. É um comportamento linguístico que tem sido questionado tanto grupo social, nomeadamente a comunidade LGBTQIA+. Para essa mudança
por indivíduos conservadores guardiões da gramática quanto por linguis- se espraiar e se implementar em diversos grupos sociais, temos de conside-
tas não conservadores devido à maneira como o fenômeno entrou na lin- rar os fatores relacionados ao que Labov (1990) chama de mudança acima
guagem. Os linguistas menos conservadores se incomodam com o fato de do nível da consciência social (from above) e mudanças abaixo da cons-
estar havendo uma intervenção não natural, artificial na linguagem, o que ciência social (from below): geralmente as mudanças com origem na classe
poderia resultar em processos pouco produtivos. dominante sofrem menos preconceito social e são menos estigmatizadas
Com relação a determinadas regras artificiais ao sistema linguístico, do que as mudanças oriundas do vernáculo. O problema do gênero neutro
como já apontado por Schwindt (2020), isso de fato pode acontecer, como está menos relacionado à origem - provavelmente falantes conscientes da
é o caso da forma "professoreis", homófona à forma "professores", mas não sua posição social e da linguagem e que têm consciência de que a lingua-
há problema algum nisso. Há sincretismo de formas em português, como gem é espaço de poder - do que ao modo como esse grupo é tido na socie-
"moramos", que pode ser tanto uma forma de presente quanto de pretérito dade. O Brasil é um país altamente homofóbico e machista; é o país que
perfeito. Além disso, como os manuais foram feitos intuitivamente, algu- mais mata pessoas transexuais e homossexuais no mundo (Bortoni, 2018).
mas regras de pronúncia confundem grafia com estrutura silábica. Veja- Talvez por essa natureza, a linguagem de gênero neutra ainda seja estig-
mos o que diz Cassiano (2019) sobre a pronúncia do -e final de palavra: matizada na sociedade como um todo; ainda não temos manuais corpora-
tivos como em alemão ou inglês em sites de empresas. Recentemente, uma
Dica: A maioria das palavras de gênero neutro terminam com a letra "e", Nota-se escola da cidade do Rio de Janeiro sofreu sanções e ameaças de parlamen-
que em alguns sotaques regionais, as sílabas das palavras que terminam em "e" tares conservadores por ter utilizado a linguagem neutra na escrita de um

88 Silvia Cavalcante A morfOlogia de gênero neutro e a mudança acima do nível de consciência 89


estamos conseguindo pagar passagem para os faci/itadores e para os
comunicado interno. A pressão foi tamanha que a escola desistiu de usar
intérpretes. [ ...] Obrigada!
a linguagem inclusiva por medida de segurança (https://bitylLcom/uFzot).
(37) A/unos, a/unas e a/unes da Faculdade de Letras da UFRJ, A UFRJ sus-
Do ponto de vista linguístico, entretanto, o uso do morfema -e para pendeu por 15 dias as aulas por conta do COVID-19, o novo Corona Ví-
marcar gênero inclusivo não apresenta problemas. Podemos ver, inclusive rus. [ ...] A Direção Adjunta de Ensino de Graduação espera que todos,
em alguns usos em grupos em redes sociais, que o uso está sujeito à varia- todas e todes fiquem bem [ ... ]
ção inerente à língua. Vejamos alguns exemplos retirados do grupo de alu- (38) * Bom dia, estudantes de Letras [ ... ] a diretora [ ... ] autorizou a liberação

nos e professores da Faculdade de Letras da UFRJ disponível na rede social. dos alunos que queiram comparecer aos atos em defesa ao Museu [ ... ]
não podemos, enquanto alunos, professores, servidores e pesquisadores,
(26) Atenção a/unes inscritos na disciplina Poesia Africana em LP 2020.1. nos calar diante de tamanha perda para a história da UFRJ, de todo o
(27) Prezades a/unes que se inscreveram comigo em Fundamentos da Neu- Brasil e da América Latina. Todes es a/unes que comparecerem aos atos
rolinguística [ ... ] Quem souber de alguém que está inscrito comigo, peço não ganharão falta e as provas e atividades avaliativas serão suspensas.
que marquem a quem possa interessar! [ ... ] convida todes aqueles que quiserem construir essa luta [ ...]
(28) Querides a/unes de Poesia Africana [... ] Aque/es que não entregaram a (39) No entanto, 3 a/unes não tem o e-mail @Ietras, são eles.
resenha (e, portanto, estão sem uma nota) deverão escolher dois poe-
mas [ ... ] Queria muito assisti-/os [ ...] Abraços em todes! P.S.: Por favor, Observamos nesses exemplos uma variação no uso do gênero neutro,
marquem e avisem os colegas. variando com o masculino num mesmo aviso: alunes x alunos (29),(36),(37).
(29) QueridES a/unES, [ ... ] Este questionário destina-se aos a/unos que pre- Há variação da concordância entre o substantivo e o adjetivo que o acompa-
cisam fazer Filosofia da Educação (Núcleo Comum, Bacharelado ou Li-
nha em quase todos os exemplos, inclusive sem marcar o artigo no neutro.
cenciatura) e aos a/unos de Licenciaturas que precisam cursar as demais
Vemos também variação na marcação de gênero neutro somente no subs-
disciplinas da Educação.
(30) Procuro a/unes de licenciatura para dar aula no Pré-vestibular favelado tantivo, mas não no pronome que faz referência: (28),(35),(40). Há também
Uni Favela de Língua Portuguesa [ ... ] Aos interessados, é só comentar. uso das três formas alunos, alunas e alunes e todos, todas e todes para dife-
(31) Atenção, a/unes de Sintaxe do Português [ ... ] E venham animades, que renciar o masculino, o feminino e o neutro, como no exemplo (38), dife-
eu tê danada!!! rentemente do uso da maioria dos exemplos que usa o neutro como forma
(32) Uma amiga está produzindo um doc para a HBO, e está em busca de
inclusiva. Por fim, gostaria de destacar o exemplo (33)em que há o apareci-
alunes da UFRJ, a/unes que sofram algum tipo de discriminação e te-
nham disposição de dar seu depoimento a respeito. [ ... ] Os interessados
mento do artigo neutro e há concordância entre os pronomes e os adjetivos.
por favor me chamem por inbox que a gente conversa melhor, ok? Esses exemplos, mesmo que em quantidade bem reduzida, nos mos-
(33) Querides a/unes, [ ... ] É com enorme prazer que convidamos todes es in- tram que, em alguns grupos restritos, as formas de gênero neutro apre-
teressades a participarem como monitores do evento. sentam relativa produtividade e estão sujeitas à variação como qualquer
(34) Boa noite a todes! Aos a/unes de LitEsp III [ ...] me procurem.
forma na língua. É interessante notar que, mesmo sendo um fenômeno no
(10) Vimos que alguns monitores estão tentando entrar em contato com os
a/unes inscritos nas disciplinas do PLE e queremos ajudar na divulgação,
nível da consciência, ainda apresenta variação.
então se você é monitore e deseja divulgar seu contato [ ]
(35) Esta mensagem se destina aos a/unos inscritos na turma [ ] de Narrati-
va Portuguesa [ ... ]. Pessoal, adicionei todes es a/unes na turma do Class-
CONSIDERAÇÕES FINAIS
room de Narrativa Portuguesa. Apenas es a/unes [ ... ] Eu não consegui Temos neste capítulo uma análise do fenômeno do gênero neutro no
localizar porque não possuem o e-mail [ ... ]
PB,levando em consideração três pontos principais: o funcionamento dos
(36) [PRECISAMOS COM URGÊNCIA DE INTÉRPRETE VOLUNTÁRIX DE LI-
sistemas de gênero neutro no PB e em outras línguas, uma análise mor-
BRAS] Nós, a/unes e ex-a/unes da graduação e da pós em Psicologia
[ ... ] Nós somos todos voluntários, mas com a colaboração dos a/unos fológica do gênero neutro nos nomes baseada na proposta de Camara Jr.

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90 Silvia Cavalcante A morfologia de gênero neutro e a mudança acima do nível de consciência
(1970)e o comportamento da nova forma em alguns exemplos de textos pela questão social envolvida: trata-se de uma forma que dá visibilidade a
retirados da internet. minorias socialmente estigmatizadas. Do ponto de vista gramatical, entre-
Diferentemente de outras línguas, o debate no Brasil está apenas , tanto, espero ter deixado claro que a forma -e, pelo menos, não apresenta
começando. Entretanto, há diversos manuais e "minicompêndios gra- problemas que infrinjam regras do sistema do português.
maticais" que têm sido propostos e seguidos. Chamo de minicompêndios Esse um assunto ainda importante a se debater, não só do ponto de
gramaticais aqueles cujo tom é bem parecido com o das gramáticas tra- vista linguístico, mas também do ponto de vista social, tendo em vista
dicionais prescritivistas: "A regra gramatical que impunha que palavras questões de representatividade e de poder que envolvem o uso de um fenô-
que terminem com a letra 'u' sejam oxítonas deixa de existir. Assim como meno variável socialmente motivado. Língua é identidade, e se um grupo de
outras regras oficiais irão naturalmente ser alteradas para se adaptarem". indivíduos motivado por razões sociais marca linguisticamente sua iden-
E confundem a estrutura da sílaba com regras gramaticais impostas. Algu- tidade, essa marcação é tão válida quanto quaisquer outras manifestações
mas dessas regras me lembraram da famosa "é ilícito iniciar frase com de identidade linguística, como, por exemplo, o pajubá, que tem origem em
pronome oblíquo átono" encontrada na Gramática normativa do português, algumas palavras de línguas africanas e é usado por determinados grupos
de Rocha Lima. Há, portanto, uma mistura de proposta de uma nova forma de religiões afrodescendentes como umbanda e candomblé e também pela
de inclusão com prescrição e crítica a formas naturais da língua. comunidade LGBTQIA+.
Além disso, a variante de gênero neutro ainda é estigmatizada por Esses dialetos identitários são igualmente válidos como quaisquer
se tratar de uma variante pertencente a grupos minoritários. E sabemos outros definidos regionalmente (como o dialeto caipira, de Amadeu Ama-
como isso acontece no Brasil, quando grupos minoritários tentam ganhar ral), diastraticamente (como a linguagem dos jovens urbanos das comuni-
visibilidade linguística. Na nossa história recente, quando quis ser cha- dades) ou sociologicamente (como a linguagem neutra).
mada de presidenta, a presidenta Dilma Roussefffoi questionada e desauto- Reconhecer o uso da linguagem neutra como um dialeto válido é reco-
rizada. Ao consultar o dicionário Aurélio, vemos que a palavra presidenta se nhecer a identidade dos indivíduos que se reconhecem como não binários.
refere a "mulher que preside", "mulher que é chefe de um Estado", "mulher
que dirige os trabalhos de uma entidade deliberativa", "diretora de maior
responsabilidade na gestão de uma organização". Seu uso é atestado desde
pelo menos 1889.
Apesar da existência do "argumento de autoridade" legitimando a
forma, choveram exemplos de análises baseadas na "língua padrão" sobre
o pretenso erro de utilizá-Ia, tendo em vista sua origem no particípio pre-
sente latino. Estranhamente, antes de o Brasil ter uma mulher como chefe
de Estado, encontramos na mídia abonação da palavra presidenta para se
referir a uma chefe de Estado em reportagem, como podemos ver no trecho
a seguir:
(40) "A presidenta da Irlanda, Mary McAleese, veio ao Brasil na semana pas-
sada para estreitar negócios entre os dois países" (Folha de SPaulo,
29/03/2004),

Não se pode prever se as formas de marcação de gênero neutro se tor-


narão padrão, "autorizadas" por uma elite intelectual ou social, justamente

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92 Silvia Cavalcante A morfologia de gênero neutro e a mudança acima do nível de consciência
• • • • • •• • • • • • •
• • • • • • •• • •• • •

FEMINISMO,
MíDIAS DIGITAIS E
~ LINGUAGEM INCLUSIVA
ANNA CHRISTINA BENTES
RAFAELY CAROLINA DA CRUZ
CAROLINA JANSEN GANDARA MENDES

• •• • •
• • ••
ao mesmo tempo, de identificação ou de solidariedade com pessoas do
grupo LGBTQIA+2.
Segundo Blommaert (2005), o conceito de ordem de indicialidade pos-
tulado por Silverstein (2003) refere-se ao fato de que os sentidos e os valo-
res sociais indiciados pela conexão entre signos linguísticos (ou mesmo
• • • • • • • •• • •• • determinadas ações pela linguagem) e traços culturais e sociais de deter-
•• • • •• • • • • • • • minados grupos sociais não são aleatórios, mas organizados em termos de
um regime simbólico que os vincula fortemente. Blommaert adiciona outro
aspecto a esse conceito: a ideia de que as diversas ordens de indicialidade
emergem no interior de complexos discursivos estratificados, onde há um
ranqueamento ou hierarquia para essas ordens. Para ele, as indicialidades
são organizadas em "regimes" que evocam questões de pertencimento e
controle e permitem julgamentos, inclusão e exclusão, sanção positiva ou
negativa, e assim por diante.
Em relação ao exemplo acima, estamos 'de acordo com Eckert (2000),
para quem certos contextos discursivos são altamente propícios à emer-
gência da estilização de certos traços linguísticos. A substituição dos mor-
femas -ol-a pelo morfema -e no ato de agradecimento é um exemplo dessa
INTRODUÇÃOl manifestação estilizante, que insere esse ato em um regime simbólico de

"o BRIGADE." ASSIMrespondeu em uma mensagem de WhatsApp um


cabelereiro a sua cliente depois que ela fez o pagamento do serviço
visibilidade (Borba; Medeiros, 2021) e de inclusão das pessoas LGBTQIA+
no momento da interação.
Neste capítulo, observamos, em primeiro lugar, a maneira como deter-
por ele prestado. O que a substituição no vocábulo "obrigado" do morfema minados atores sociais - a saber, um site e páginas de Facebook que se
-o pelo morfema -e, nesse contexto interacional, indicia? A nosso ver, ela declaram feministas - fazem uso da marcação de gênero em textos divul-
indicia o que Blommaert (2005: 73) postula ser um tipo de mobilidade: gados em seus espaços. Os recursos linguísticos mobilizados para o exer-
"Uma mobilidade através de espaços plenos de códigos, costumes, regras, cício da chamada "linguagem neutra" fazem parte do esforço mais amplo
expectativas e assim por diante. A mobilidade é um itinerário através de construção e de uso do que se tem entendido por "linguagem inclusiva".
de espaços normativos e esses espaços são sempre espaços de alguém". Em função disso, e considerando as afirmações de Blommaert (2005), pos-
Nesse sentido, ao substituir um dos morfemas que marca binariamente tulamos que a diversidade de marcação de gênero emergente nos textos se
(obrigada/obrigado) o gênero de quem performatiza um agradecimento, dá não de maneira aleatória, mas de maneira razoavelmente ordenada e
esse profissional movimenta sentidos e valores sociais e reconstitui discursivamente qualificada.
uma ordem de indicialidade (Silverstein, 1998, 2003; Blommaert, 2005), Nossa observação de um conjunto de 149 textos publicados durante os
na qual os sentidos e valores sociais e culturais do grupo ao qual per- anos de 2019 e 2021 em diferentes sites e páginas autointitulados feministas
tence são exibidos: valores sociais não heteronormativos, não binários e,
2 Asiglapodeserdescritadaseguinteforma:lésbicas,gays,bissexuais,
travestís/transexuais/transgêne-
intergênero/intersexo,
ros, queer, agêneros/assexuados e mais.Arespeitodasidentidadessociaiscons-
I Agradecemosaleituraatenciosae generosadeLuizCarlosSchwindt.
Todasaspossíveis
inadequações
e
truidasemtornodasigla,verBortoletto(2019), VertambémSimõese Fachini(2009), quediscutemtodae
inconsistências
permanecem sendodenossainteiraresponsabilidade.
qualquersexualidade
ouidentidadedegêneroquecompõema comunidade LGBTQIA+.

96 Anna Christina Bentes, Rafaely Carolina da Cruz e Carolina Jansen Gandara Mendes
Feminismo, mídias digitais e linguagem inclusiva 97
possibilitou a proposição de uma tipologia para essa marcação a partir de que prestam atenção); portanto, ele depende da valorização social e, talvez,
uma discussão sobre os critérios já estabelecidos por Schwindt (2020) e da estética; e interage com representações ideologizadas" (Irvine, 2001: 21,
por Borba e Medeiros (2021). tradução nossa). Ela também leva em conta as postulações de Bourdieu
As análises aqui desenvolvidas sobre as ocorrências irá considerar (1985:204), para quem "a busca por distinção - que pode se expressar na
a articulação entre as noções de estilo (Irvine, 2001; Eckert, 2000, 2001; forma de falar ou na recusa de desvios - produz separações que preten-
Coupland, 2001, 2007), de mobilidade (Blommaert, 2005) e de ordem de dem ser percebidas ou, mais precisamente, conhecidas e reconhecidas,
indicialidade (Silverstein, 1998, 2003; Hanks, 2001; Blommaert, 2005), de como diferenças legítimas".
forma a tentar compreender melhor a diversidade de usos de marcação de Levando em conta essa articulação teórica, tentaremos analisar o
gênero nos textos escritos observados. que estamos denominando como "movimentações estilísticas" nos textos do
A diversidade emergente dos textos aqui selecionados resulta de um site e das páginas de Facebook feministas selecionados sob o aspecto da
conjunto de ações de natureza metalinguística que mostram tanto modos marcação de gênero. Essas movimentações incidem especialmente sobre
de apropriação da variação na marcação de gênero quanto escolhas estra- expressões referenciais que categorizam grupos sociais específicos, sobre
tégicas por parte das produtoras dos textos selecionados. A diversidade adjetivos e modos de interpelação do interlocutor em textos escritos. Além
observada parece ser indício de elaboração de um estilo social, assim deno- disso, essas movimentações estilizantes emergem de forma mais recor-
minado por possivelmente estabelecer uma distinção entre aqueles que o rente em certas porções textuais e parecem indiciar o tipo de ação dis-
performam e os que não o fazem. cursiva pressuposta nos gêneros textuais" nos quais ocorrem as diferentes
Para Coupland (2001, 2007), por exemplo, o estilo envolve artesania, formas de marcação de gênero. Por fim, as movimentações estilizantes
elaboração contínua; o estilo vive em uma relação dia lógica com o contexto revelam a emergência de sentidos sociais específicos construídos em fun-
social, compreendido, em termos sociolinguísticos, como um fenômeno ção das relações sociais estabelecidas nos e pelos textos publicados.
socialmente estruturado ao qual os atores sociais encontram-se submeti-
dos, mas também como um fenômeno vivenciado por esses mesmos atores
o GÊNERO NO PORTUGUÊS BRASILEIRO
durante sua produção discursiva. Em outras palavras, o estilo não pres-
E A QUESTÃO DA LINGUAGEM INCLUSIVA
cinde do contexto social que, por sua vez, se apresenta como um a priori
e, ao mesmo tempo, como uma construção produzida pelas falas, pelas Os estudos acerca do gênero gramatical nas línguas não são recentes
interações, pelos textos/discursos. Sendo assim, essa abordagem constru- (Camara Jr., 1975;Lyons, 1979;Corbett, 1991;Michard, 2002; Figueira, 2001,
cionista do estilo pressupõe o alcance, por parte das manifestações lin- 2005; Cruz, 2018) e têm problematizado o conflito entre gênero natural e
guísticas estilizantes, sempre segundo Coupland (2007: 19),de "complexos gramatical quando aspectos semânticos são considerados. Embora esse
territórios de sentidos culturais, pessoais, históricos e sequenciais". Em debate seja antigo, sabemos que, no contexto do português brasileiro, a
outras palavras, a relação que se estabelece entre um traço ou um recurso atribuição de gênero é permeada por critérios semânticos. Talvez essa seja
linguístico e um contexto social depende do tipo de interação social esta- uma das razões, entre muitas outras, pelas quais a discussão a respeito do
belecida entre os atores, não sendo um mero atributo de cada falante/pro- uso de uma linguagem inclusiva, possibilitando que os diferentes grupos
dutor de texto ou de um grupo social. sociais generificados se vejam representados por meio da mobilização de
Outro aspecto importante dos processos de estilização de natureza
sociolinguística diz respeito ao que afirma Irvine (2001),para quem "estilo 3 "Os gêneros textuais são os textos que encontramos em nossa vida diária e que apresentam padrões
saciocomunicativos característicos definidos por composições funcionais, objetivos enunciativos e estilos
diz respeito principalmente à distinção; embora possa caracterizar um Concretamente realizados na integração de forças históricas, sociais, institucionais e técnicas" (Marcus-
indivíduo, ele o faz apenas dentro de uma estrutura social (de testemunhas chi, 2008: 155).

98 Anna Christina Bentes, Rafaely Carolina da Cruz e Carolina Jansen Gandara Mendes Feminismo, mídias digitais e linguagem inclusiva 99
recursos linguísticos específicos, tenha se tornado tão central para certas Recentemente, o deputado estadual Tenente Nascimento, do PSL-SP,elabo-
comunidades e grupos sociais no Brasil. rou o projeto de lei nO10/2021, cuja sustentação revela-se discriminatória
No cenário nacional, a lei 2.749/1956, que na época já tecia posições daqueles que são representados pela linguagem inclusiva, além de violar
favoráveis à igualdade de gênero ao instruir usos relacionados ao gênero documentos internacionais dos direitos humanos (Bentes; Lima, 2021:10).O
dos nomes designativos das funções públicas, foi substituída pela lei projeto, que se apresenta apenas em duas páginas, "proíbe o uso de novas for-
306/2005, que avança na agenda e fundamenta a relevância jurídica da mas de flexão de gênero e de número das palavras da língua portuguesa em
questão, considerando os princípios constitucionais brasileiros e os de contrariedade às regras gramaticais consolidadas no país" (SãoPaulo, 2021).
movimentos sociais internacionais voltados à defesa dos direitos humanos O suposto demasiado apreço pela "linguagem culta da língua portu-
e das mulheres. guesa" pouco se sustenta em termos técnicos, mas revela uma tentativa de
Na justificativa da lei 306/2005, a diversidade linguística é um fenô- exclusão e estigmatização de cidadãos brasileiros, já que, segundo o projeto,
meno intrínseco aos movimentos sociais, cujas identidades, muitas vezes,
encontram-se ancoradas em marcadores linguísticos que funcionam como verifica-se que a pretensão de uma linguagem não binária é, em verdade, retrato de
forma de resistência e luta. Assim, certas variações linguísticas passam uma posição sociopolítica, que, nem de longe, representa uma demanda social, mas
a ser adotadas por grupos sociais, organizações da sociedade civil (osc)e de minúsculos grupos militantes, que têm por objetivo avançar suas agendas ideoló-
movimentos políticos, de maneira a reivindicar um tratamento não dis- gicas, utilizando a comunidade escolar como massa de manobra (São Paulo, 2021: 2).
criminatório das mulheres e de categorias de gênero não binárias (Bentes;
Lima, 2021: 6). É nesse contexto que essa linguagem passa a ser denomi-
A perspectiva do projeto vai de encontro ao que se compreende, no
nada "inclusiva" e a ocupar um lugar central em diversos instrumentos
campo dos estudos sobre a linguagem, como língua, fenômeno complexo
jurídicos, manuais de boas práticas e guias de comunicação de organiza-
que está longe de poder ser submetido a tamanho cerceamento. No que diz
ções públicas e privadas, tanto no Brasil quanto no exterior, inclusive em
respeito à perspectiva de língua aqui adotada, retomamos a de Marcuschi
órgãos internacionais, como a Organização das Nações Unidas",
(2008),que a compreende como sendo um
No caso do português brasileiro, o uso das formas @ e -x, variantes
linguísticas de marcação de neutralidade de gênero presentes em gêneros
(...) sistema de práticas cognitivas abertas, flexíveis, criativas e indeterminadas
informais escritos, ou o uso de -e, "morfema alternativo de neutro em subs-
quanto à informação ou estrutura. De outro ponto de vista, pode-se dizer que a
tantivos e adjetivos que se referem a seres sexuados" (Schwindt, 2020: 19),
língua é um sistema de práticas sociais e históricas sensíveis à realidade sobre a
podem ser considerados importantes recursos no combate a preconceitos
qual atua, sendo-lhe parcialmente prévio e parcialmente dependente desse con-
linguísticos e à discriminação social.
texto em que se situa. Em suma, a língua é um sistema de práticas com o qual
Essa legitimação da linguagem inclusiva vem acompanhada, porém,
os falantes/ouvintes (escritores/leitores) agem e expressam suas intenções com
de inúmeras tentativas de controlar e proibir os seus usos pelos cidadãos.
ações adequadas aos objetivos em cada circunstância, mas não construindo tudo

4 A título de ilustração, diante da massiva quantidade de documentos com orientações para a adoção da
como se fosse uma pressão externa pura e simples (Marcuschi, 2008: 61).
linguagem inclusiva, destacamos o Manual de comunicação SECOM - Linguagem inclusiva - 2020, disponí-
vel em: https://bityILcom/ezOYv; o Manual para o uso não sexista da linguagem: o que bem se diz bem se enten-
de, do Governo do Estado do Rio Grande do Sul- Secretaria de Políticas para as Mulheres - 2014, dispo- Ao longo da última década, linguistas brasileiros passaram a incor-
nível em: https://bityli.com/OGUGv; o Guia de linguagem inclusiva - Todes nós, 2020 - de um dos maiores porar em suas agendas científicas as análises sobre os usos da linguagem
canais de TV paga do mundo, a HBO, disponível em https://bityILcom/GRhzh; o guia Linguagem neutra no
Parlamento Europeu, 2018, disponível em: https://bityILcom/MgmjP e o guia United Nations Gender Inclusive inclusiva. Muitos outros autores (Caldas-Coulthard, 2007; Barba; Medei-
Language, disponível em: https://bityILcom/auLOE. Decreto n0476/21 (enquadrado na Lei de Identidade de ros; Lopes, 2018; Mâder: Severo, 2019;Pessotto dos Santos, 2019,para citar
Gênero), publicado no Boletim oficial da Argentina, que reconhece outras categorias de gênero fora do sis-
tema binário homem/mulher. Disponível em: https://bityli.com/WOOqT_ Acesso em: 24 mar. 2022. alguns) também vêm contribuindo para a literatura da área a partir de

101
100 Anna Christina Sentes, Rafaely Carolina da Cruz e Carolina Jansen Gandara Mendes Feminismo, mídias digitais e linguagem inclusiva
análises comparativas das marcações de gênero entre línguas, com des- Nota-se, portanto, que "a variabilidade de formas está e estará sub-
taque para o frequente apontamento da defasagem de pesquisa sobre o metida ao uso corrente, dado que a variação linguística é constituída pelas
gênero gramatical no português brasileiro; análises sobre a viabilidade da relações sociais e reflete as dinâmicas dessas relações" (Bentes; Lima, 2021:
adoção de certas flexões na perspectiva do sistema linguístico; reflexões 7). Além disso, como já mencionamos, os diferentes usos da marcação de
sobre concepções e discursos a respeito de língua e gênero; ou análises gênero podem indiciar sentidos e valores sociais que dão conta de inserir
sobre os usos, contextos, movimentos e atores sociais. os interactantes em complexos discursivos estratificados, que promovem
Segundo Schwindt (2020: 1),no português brasileiro, há quatro tipos julgamentos, pertencimentos e outro tipos de ações pela linguagem.
de empregos mais recorrentes, sendo eles: Na próxima seção, faremos a contextualização do corpus - textos
escritos em sites e páginas de Facebook que se intitulam feministas. Mesmo
o uso de feminino marcado no caso de substantivos comuns de dois gêneros que nossas análises se desenvolvam a partir desse contexto específico, acre-
(ex.: a presidenta); o emprego de formas femininas e masculinas, sobretudo em ditamos que nossas reflexões podem contribuir para a construção de um
vocativos, em vez do uso genérico do masculino (ex.: alunas e alunos); inclusão de panorama das condições do uso da linguagem inclusiva por atores sociais
novas marcas no final de nomes e adjetivos, como x e @ (ex.: amigx, amig@), ou a que se engajam, de alguma forma, nas lutas sociais nas quais estão envolvi-
ampliação da função de marcas já existentes, como -e (ex.: amigue); alteração na dos os diversos movimentos feministas, queer e transgêneros e que, muitas
base de pronomes e artigos (ex. ile, le). vezes, mantêm entre si importantes laços de solidariedade.

Barba e Medeiros (2021) destacam diferentes estratégias de uso de CONTEXTUALlZANDO O CORPUS E APRESENTANDO
recursos linguísticos ou semióticos quando se tenta evitar o sexismo na ALGUNS RESULTADOS
linguagem. As estratégias propostas por Barba e Medeiros são de natureza
pragmático-discursiva. São elas: A produção textual (oral ou escrita) se apresenta como processual,
(i) a visibilização, ao utilizar formas coordenadas, como em "alunas estratégica e largamente reflexiva (Bentes; Rezende, 2008, 2014, 2017).Em
função dessas características, buscamos justamente levantar, em publica-
e alunos";
(ii) a neutralização, ao recorrer a hiperônimos como "as pessoas" ou
ções de sites e páginas de Facebook ligadas aos movimentos feministas, os
diferentes modos pelos quais a marcação de gênero passa a constituir uma
"os indivíduos";
(iii) a ruptura, ao utilizar o feminino genérico, como em "bom dia a importante movimentação estilística.
Quando pensamos que estamos lidando com textos produzidos no inte-
todas", mesmo que o grupo seja majoritariamente masculino.
rior do campo feminista, fica ainda mais interessante observar não apenas a
A proposta de Schwindt (2020) busca levantar as possibilidades de diversidade de modos de mobilização de traços da chamada linguagem inclu-
emprego de formas linguísticas ou de natureza semiótica para produzir siva,mas também quais ações de natureza pragmático-discursiva estão sendo
uma maior diversidade na marcação de gênero. Já a proposta de Barba performadas por atores sociais que, de alguma forma, já estão inseridos em
e Medeiros (2021)concentra-se nos tipos e ação de natureza pragmático- movimentos e lutas de enfrentamento de desigualdades, opressões e violên-
-discursiva (visiblização, neutralização e ruptura) envolvidas nos usos das cias sofridas pelas mulheres. Para melhor caracterizar o conjunto de sites e
diferentes formas. Essas ações podem ser vistas como modos de estilizar a páginas de Facebook observados, assumimos aqui que as publicações partici-
linguagem de forma a indiciar certos sentidos" sociais. pam do que Alvarez (2014:18-19)denomina "campo discursivo de ação":

5 Para Eckert (2000: 43, tradução nossa), os sentidos sociais não constituem um conjunto estático de asso- Os campos discursivos de ação são muito mais do que meros aglomerados de
ciações entre variáveis linguísticas internas e variáveis sociais externas. Eles são continuamente criados por
meio da junção de engajamento linguístico e social dos falantes enquanto navegam pela vida social. organizações voltadas para determinada problemática; eles abarcam uma vasta

103
102 Anna Christina Bentes. Rafaely Carolina da Cruz e Carolina Jansen Gandara Mendes Feminismo, mídias digitais e linguagem inclusiva
gama de atoras/es individuais e coletivos e de lugares sociais, culturais e políticos. textos publicados em um site e em sete páginas de Facebook que, como
Os setores mais política e culturalmente visíveis desses campos, e os pontos nodais dissemos, se intitulam feministas. A observação desse conjunto de atores
que os articulam, variam ao longo do tempo. Em diferentes momentos, distintas/os sociais foi feita considerando os anos 2019e 2021.Entre os 149textos publi-
atoras/es ou vertentes ganham maior ou menor visibilidade política e cultural, e cados no site e nas páginas, houve a emergência de uma diversidade de
maior ou menor acesso ao microfone público e aos recursos materiais e culturais, marcação de gênero como exercício de linguagem inclusiva em 16textos.
às vezes conseguindo se estabelecer como hegemônicos. E em contextos histó- O quadro 1 apresenta uma breve descrição do perfil dos sites e pági-
ricos distintos, diversos atores, como por exemplo, setores da Igreja, as ONGS, ou nas em que foram publicados os textos observados. Essa descrição resu-
até espaços dentro do próprio Estado, podem servir como nós articuladores des- mida baseia-se na autodescrição de cada site e de cada página. Nesse
ses campos. (...) Esses campos também se articulam discursivamente através de quadro também consta o número de textos encontrados com esse tipo de
linguagens, sentidos, visões de mundo pelo menos parcialmente compartilhadas, marcação de gênero.
mesmo que quase sempre disputadas, por uma espécie de gramática política que
Descrição Textos Textos com
vincula as atrizes/atores que com eles se identificam. Nesse sentido, os campos observados marcação
feministas se constroem por meio de um emaranhado de interlocuções; suas redes de gênero
inclusiva
não são meras condutoras de processos culturais, são "culturalmente constituí-
das por interações comunicativas" (Mische, 2003). Eles conformam "comunidades Site Projeto fundado em 2010,que busca congregar, 6 3
catalisar e fomentar ações educativas,culturais,
discursivas envolvidas na enunciação de novos códigos culturais [e políticos] que
artísticas;de produção de conhecimento e
disputam as representações dominantes" (Taylor; Whittier, 1995: 181). compartilhamento de saberes acadêmicos,
populares e ancestrais,numa perspectiva
contracultural feminista, antirracista e anticapitalista.
Observar as movimentações da marcação de gênero no interior do
PgF 1 Associação de amparo à mulher,fundada há mais 8
campo feminista é um modo de compreender como acontecem as dis- de 40 anos.
putas sobre as representações das lutas por reconhecimento no interior
PgF 2 Coletivo fundado em 1986,que atua nas lutas 9 2
desse campo, ou seja, é um modo de compreender como a manipulação dos contra o racismo, o sexismo, a LGBTfobia e outras
recursos linguísticos disponíveis indicia o funcionamento de contextos formas de opressão.
específicos e vice-versa. Nesse sentido, nossas análises vão ao encontro de PgF 3 Coletivo popular de percussão fundado em 2010, 40 3
uma preocupação histórica das feministas: como a reflexão sobre as práti- formado por mulheres.

cas linguístico-discursivas pode trazer mais compreensão sobre a necessi- PgF 4 I Coletivo de mulheres feministas e femininas, 26
fundado em 2010,que busca fortalecer a
dade das lutas contra as desigualdades, as opressões e as violências contra
autonomia das mulheres.
as mulheres e contra os diversos grupos da comunidade LGBTQIA+.
PgF 5 Coletivofeministainterseccional,fundadoem 2015,que 31 2
O corpus que constituímos resulta de um recorte do corpus do atual buscalutarcontraasformasde opressão.
projeto" de pesquisa de Bentes (2020). Tendo observado mais de cinquenta 2
PgF 6 Coletivo fundado em 2015,que busca debater sobre
sites, blogs e páginas de Facebook, consideraremos aqui um conjunto de feminismo e melhorar a condição s.s;cialda mul~
PgF 7 Coletivo fundado em 2015a partir da necessidade 17 2
6 No projeto de pesquisa "Categorização social, tópico discursivo e intertextualidade em um mapa bra- de mulheres cis e trans de uma universidade
sileiro de coletivo de mulheres (MAMU)", o objetivo é analisar como as categorizações sociais, a ativação/
pública se organizarem.
I manutenção de determinados tópicos discursivos e o estabelecimento de determinadas relações inter-
II textuais auxiliam na estruturação de um Mapa de Coletivos de Mulheres, MAMU, atualmente desativado, 149 16
II11 mas que tinha como principal objetivo contribuir para a organização das mulheres brasileiras na luta por
seus direitos (Processo BP/CNPq - 310456/2019-3)_ Quadro 1: Perfil de sites e páginas analisadas.
'I
104 Anna Christina Bentes, Rafaely Carolina da Cruz e Carolina Jansen Gandara Mendes Feminismo, mídias digitais e linguagem inclusiva 105
III1
Encontramos quatro tipos de marcação de gênero com preocupação
inclusiva, sumarizados no quadro 2. desse tipo de forma alternativa em função do fato de não poderem ser pro-

--
cessadas por um leitor automático, o que excluiria os deficientes visuais.
Ações metalinguísticas
Descrição Discutindo de forma bastante breve a proposta de Borba e Medeiros
Exemplos
(2021),as ações - de coordenação, de substituição e de especificação -
Uso de formas nominais
Coordenação de formas de
com marcação encontradás em nosso corpus parecem indiciar uma preocupação com a
marcação de gênero Tipo 1 amigos(as);
coordenada de gênero amigas(os) visibilidade das identidades sociais tanto das produtoras dos textos quanto da
masculino e feminino
audiência pressuposta pelos textos, como tentaremos mostrar a seguir.
Uso de formas nominais Por outro lado, apenas as ações de substituição parecem indiciar uma
Coordenação de formas de com marcação todas, todos e
marcação de gênero
coordenada de gênero
efetiva manipulação de recursos linguísticos na direção de uma ruptura
todes;
incluindo -e com a menos polêmica marcação de gênero: aquela em que formas coor-
Substituição das formas denadas ocorrem como exercício de linguagem inclusiva. Em outras pala-
binárias de marcação de Tipo 3 Uso de formas nominais bem vindes;
gênero marcadas por -e vras, essa ruptura relaciona-se com processos reflexivos' mais profundos
todes negres;
em relação ao conhecimento metalinguístico dos atores sociais.
Especificação de gênero
Uso de formas nominais Sendo assim, nosso quadro não estabelece uma correlação direta
da instância de produção Tipo 4 pesquisadoras;
com marcação exclusiva
do texto companheiras; entre determinados modos de marcação de gênero como linguagem
de gênero feminino
inclusiva em formas nominais e determinadas ações, porque todas essas
Quadro 2: Tipos de marcação de gênero como linguagem inclusiva,
formas estariam indiciando uma preocupação com a visibilidade da
diversidade de identidades sociais das produtoras e de suas audiências.
o quadro2 revela algumas diferenças na marcação de gênero como
Apenas um emprego - o de substituição dos morfemas -o/-a pelo mor-
linguagem inclusiva nos textos observados em relação às possibilidades
fema -e em formas nominais - indiciaria um comportamento de ruptura
elencadas por Schwindt (2020).Em primeiro lugar, nos dezesseis textos em
em relação ao conhecimento metalinguístico mais consolidado sobre as
que houve o emprego de marcações de gênero como exercício de linguagem
inclusiva não ocorreram formas de marcação de gênero, incluindo-se aqui o conhecimento sobre
aquelas que dão mais visibilidade (uso de formas nominais com marcação
(a) o uso de feminino marcado no caso de substantivos comuns de coordenada de gênero) e aquelas que não dão visibilidade (uso de formas
dois gêneros (ex. a presidenta); nominais apenas com marcação de gênero masculino) à diversidade de
(b) a inclusão de novas marcas no final de nomes e adjetivos, como x relações de gênero.
e @ (ex. amigx, amig@); No quadro 3, apresentamos exemplos dos tipos de marcação de
(c) a alteração na base de pronomes e artigos (ex. ile, le). gênero, número de ocorrências e sua relação com o gênero textual e com a
audiência pressuposta.
Por outro lado, ocorreram usos coordenados de formas masculinas e
femininas e dessas formas com o emprego do morfema -e e também o uso 7 Não é objetivo deste texto tratar dessa questão na profundidade que ela merece. Apenas indicaremos
exclusivo de formas nominais com marcação de gênero feminino. Esse uso nossos marcos teóricos principais a partir da discussão empreendida por Morato e Bentes (2017: 15): "Para
Adarns (2006), a reflexividade origina-se de uma diversidade de mudanças sociais, entre elas, a expansão
exclusivo de formas nominais no feminino não funciona' como nos exemplos de estruturas e tecnologias de comunicação, nossa exposição aos outros e a relativização de nossas práti-
fornecidos por Schwindt (2020),em que o feminino exclusivo é empregado cas socioculturais mais estabilizadas. Para autores clássicos como Giddens (1992) e Beck (1992), a reflexi-
vidade é um requisito necessário à estruturação de identidades e subjetividades sociais. Para Bourdieu e
como neutro. Em relação às novas marcações no final de nomes e adjetivos, Wacquant (1992), a reflexividade faz parte do hábito, sendo um constituinte fundamental, necessariamen-
sua não aparição em nossos dados parece reforçar a atitude de abandono te requerido para a participação em determinados campos, como o científico e o acadêmico. Ainda para
estes últimos autores, a reflexividade se mostraria mais fortemente em tempos de crise."

106
Anna Christina Sentes, Rafaely Carolina da Cruz e Carolina Jansen Gandara Mendes
Feminismo, mídias digitais e linguagem inclusiva 107
"Salve, gente querida!
Sitel Gênero Tipo de Audiência Está chegando o nosso curso
página textual marcação Excerto
pressuposta on line!
de gênero
( .. ,) Seguidores
"Assim, apresentamos E se você é negro(a), de da página
os principais resultados baixa renda, temos bolsas das ativistas
Divulgação de Tipo 1 disponíveis, Fale com a
desse estudo, realizado PgF3 feministas
curso online gente!
em 2020, na forma de culturais de
Estamos animadas para ouvir, Campinas (SP)
pesquisa de opinião pública
recontar e cantar histórias
(Resolução 510/2016), com junto com vocês!
Público que
estudantes, trabalhadores Bora bendizer esses tempos!
acompanha
Divulgação de e trabalhadoras (,,,) (",)" I
Site Tipo 1 as ativistas
pesquisa Com esta cartilha,
feministas de "Convidamos todas, todos e
• Seguidores
pretendemos contribuir
Brasília (DF) todes a assistir ao curta- da página
para a desnaturalização da das ativistas
Convite para -metragem "Virou o Jogo: A
violência e a construção de História de Pintadas" de 2012, feministas
assistir filme
um ambiente universitário dirigido por Marcelo Villanova universitárias de
sem opressões para todas e está disponível no YouTube," Piracicaba (SP)
todos, Por uma universidade
"Que alegria ter você em Novos
c~ espaço da liberdade!"
nosso espaço, sejam bem- seguidores
"Salve, salve, queridos e Seguidores Saudação de -vindes!" da página de
queridas! da página boas-vindas feministas
Divulgação Infelizmente, este ano não dispostos a newas
de campanha teremos carnaval. Não ajudar as causas "Com racismo não haverá Seguidores que
PgF3 Tipo 1 Cartaz
solidária podemos, não devemos ir das ativistas democracia acompanham
convocando
contra a fome para as ruas! (",)" feministas Tipo 3 Viva a memória de todes a página das
para um
culturais de negres que lutaram durante feministas
março de
Campinas (SP) a ditadura militar no Brasil", negras
lutas
"Caras amigas e caros Público que "Nesse dia, abrimos as portas
amigos, colaborou na de nossa casa espiritual para
Agradecemos pela campanha receber as sementes de luz, Seguidores
Prestação de paz e amor que nos mantém
PgF6 Tipo 1 participação na campanha das ativistas da página
contas conectados com a criação e
( .. ,)" feministas de das ativistas
Votos de Boa renovação que dão passagem
PgF3 Tipo 3 feministas
Mogi Guaçu e Páscoa à vida, culturais de
Mogi Mirim (SP) Abençoada Páscoa a todes! Campinas (SP)
"É fundamental que Estejam protegidos, seguindo
os protocolos de segurança
profissionais engajadas/os
Seguidores que contra a covio-ta"
com o cuidado da saúde e
acompanham
pessoas interessadas nesse "Se você não participou dos Ativistas
Divulgação do as ativistas
PgF6 Tipo 1 assunto aprendam como outros encontros, não tem feministas
webinário feministas de Convite para
acessar, utilizar e propagar problema, Pode se inscrever interseccionais
Mogi Guaçu e encontro de e participar a partir de agora!
estes direitos como forma de de Guarapuava
Mogi Mirim (SP) leitura Ah, tbm não é preciso ter lido
defendê-Ios e promovê-Ios (PR)
a obra, vamos ler juntes!"
em seus contextos locais,"

109
Feminismo, mídias digitais e linguagem inclusiva
108 Anna Christina Bentes, Rafaely Carolina da Cruz e Carolina Jansen Gandara Mendes
I r. "As práticas de cuidado
e autocuidado têm sido
A primeira prosa é na
próxima terça, fica ligada

[J
formas de conhecermos Público que que em breve divulgaremos
Site Divulgação de í I Ti o 4 Imelhor a nós mesmas, a
nossas companheiras e a
acompanha
as ativistas
o tema e a convidada!
Estamos animadas com
,,",Ih, diversidade de vivências e feministas de esse novo projeto de
saberes que carregamos para Brasília (DF) comunicação popular
que possamos desenhar e pelas redes!"

r-
pe~caminhos juntas,"
-
"Mais uma etapa se iniciando
- "Como enfrentar?
para a Via Mulher, vamos - Vamos passar por isso
I Público que

P F4
g
Divulgação de
projeto
I Ti o 4
p
estar juntas com o fundos
ELAS executando o projeto:
ELA Decide ações de
acompanha
o grupo de
juntas! Precisamos mais do
que nunca estarmos unidas
e conectadas umas com as
feministas da
formação e informação em outras, Vamos manter em
Bahia (BA)
saúde sexual e reprodutiva na nossa rotina de quarentena
1...-__ •...• I Cidade de Salvador," contatos por redes sociais

í
e ou por telefone, Vale
"Somos um coletivo de
Público que lembrar sempre: mulheres
mulheres entre 18 e 45 anos,
busca conhecer em situação de violência

IL
Trans, eis, hétero, lésbicas
Texto de o coletivo de precisam de apoio e
e bissexuais, Brancas e

I
do ool,ti,o
negras, trabalhadoras,
universitárias, Estamos
unidas contra as opressões
feministas
interseccionais
de Guarapuava
acolhimento e não de
julgamentos! (",)"
[No mesmo post em que Seguidores que
(PR) estava o texto acima, foi acompanham a
sofridas por mulheres (",):'
------ --
Ir "O Sarau - PgF1 Comunicado
Tipo 4 anexada uma imagem página da OSC
do (",) tá vindo aí, Tipo 1 contendo um texto de amparo à
pessoal!!! E nada mais justo informativo sobre o decreto mulher de São
que ele ocorra no mês da municipal a respeito das Sebastião (SP)
Seguidores
r mulher! Assim podemos,
da página restrições sanitárias e mais
além de expor nossa luta,
detalhes a respeito do
P F7
g I Convite para
um sarau ,
Ti o 4
p I celebrar o ser feminino
rodeadas por muita arte:
das ativistas
feministas
universitárias de
funcionamento da ong no
período de distanciamento
fotografia, artesanato, teatro,
Piracicaba (SP) social. Ao fim do comunicado

~JI
dança, poesia, desenhos,

~==:;I:
aparece a seguinte
pinturas ou colaqens., tá
valendo de tudo!" mensagem)
"Cuidem-se, adotem
"Nessas prosas rápidas, as medidas de higiene
I
convidaremos pesquisadoras recomendadas e evitem
feministas para conversar aglomerações, Vamos ser
sobre seus trabalhos, cuidadosas/os, solidárias/
Público que
Com uma comunicação
Site Convite para
uma prosa
I
Ti o 4
p
I descomplicada, a gente
quer contribuir com a
acompanha
as ativistas
os e responsáveis, Tudo
ficará bem:'
feministas de
visibilização da produção de
Brasília (DF) Quadro 3: Exemplificação dos tipos de marcação de gênero como linguagem inclusiva,
conhecimentos das mulheres
dentro da academia e a partir
dos coletivos e movimentos Vejamos agora uma última sumarização gráfica do comportamento
r.......-..II:...---.....IL feministas e de mulheres,
da marcação de gênero nos textos selecionados.

110 Anna Christina Sentes, Rafaely Carolina da Cruz e Carolina Jansen Gandara Mendes Feminismo, mídias digitais e linguagem inclusiva 111
Estabelecemos um tipo 2 para a mesma ação de coordenação. Entre-
20
15 tanto, se a marcação de tipo 1 pode ser considerada binária, a coordena-
15

n
8 ção de tipo 2, em que três formas de marcação de gênero ("todas, todos
10
5
O n 1
ro
Tipo I Tipo 2 Tipo 4 Tipo 3
n
4 e todes") aparecem uma ao lado da outra, contempla uma alternativa de
linguagem inclusiva que abrange outras comunidades. No entanto, essa
coordenação de três formas, que acontece na estruturação de um convite,
Coordenação: -a; -o; -e Especificação: -a; Substituição -e feito por um coletivo de ativistas feministas universitárias a uma audiên-
Gráfico 1: Número de ocorrências dos tipos de ação nos textos selecionados.
cia mais ampla, para assistir a um curta-metragem, é o único exemplo no
conjunto dos dados investigados.
Os usos de diversas formas de marcação de gênero podem ser conce- A ação de coordenação de expressões referenciais ou de morfemas é
bidos como movimentações estilísticas em função do fato de eles se cons- o segundo tipo de ação mais usado nos textos na busca de uma linguagem
tituírem como ações simbólicas de natureza estratégica. Além disso, as inclusiva. A ação textual predominante no interior dos textos nos quais
movimentações estilísticas apresentam uma natureza multidimensional, esse tipo de marcação acontece é a divulgação/apresentação de eventos. Há
como pretendemos mostrar na próxima seção. também um convite e uma prestação de contas. De todo modo, são gêneros
textuais em que o apelo direto ao interlocutor é uma característica impor-
tante. Nesse sentido, a marcação coordenada de gênero também pode
AS MARCAÇÕES DE GÊNERO EM TEXTOS PRODUZIDOS POR
ser mobilizada em função da necessidade de sucesso das ações textuais
ATIVISTAS FEMINISTAS COMO MOVIMENTAÇÕES ESTILíSTICAS
e discursivas empreendidas pelos diferentes coletivos feministas: ter um
Nesta seção, vamos contextualizar os resultados apresentados e pro- público amplo para sua sessão de cinema, ter uma ampla audiência para
duzir breves análises em torno da articulação teórica, anteriormente men- seus eventos. A marcação coordenada, que exibe a consideração da diver-
cionada, entre as noções de estilo, mobilidade e ordem de indicialidade sidade de gênero, é pressuposta e necessária nessas produções textuais.
para a melhor compreensão da diversidade de usos de marcação de gênero A ação de especificação por meio do uso exclusivo do gênero feminino
nos textos escritos observados. (o tipo 4) é o tipo de ação mais usado nos textos, incidindo sobre expressões
Estabelecemos o tipo 1 para a marcação de gênero por coordenação de referenciais como "brancas e negras, trabalhadoras, universitárias", "nos-
morfemas ou de expressões referenciais inteiras, uma flexionada no mas- sas companheiras" e sobre qualificadores como "rodeadas", "animadas",
culino e outra no feminino, colocados lado a lado, como em "caras amigas e "juntas", "unidas", "ligadas" etc. Classificamos essa ação como de especi-
caros amigos", "queridos e queridas", "trabalhadores e trabalhadoras", "todos ficação porque ela indicia com precisão o pertencimento de quem produz
e todas", no caso de expressões referenciais, ou ainda, como em "profissionais o texto a determinado grupo social: mulheres dos coletivos feministas.
engajados/as", "negro(a)"de baixa renda", no caso de morfemas.
Nesse sentido, o tipo 4 não funcionaria como neutro, mas como uma espe-
O uso do tipo 1,que pode ser considerado um uso binário, parece refle-
cificação do gênero da instância da produção, no caso, apenas mulheres.
tir uma compreensão historicamente construída sobre o que seja o exercí-
Cada coletivo, no entanto, busca trazer determinadas audiências para
cio de uma linguagem inclusiva: a luta pelo não apagamento das mulheres
participar de suas atividades: mulheres em situação de vulnerabilidade
na e pela linguagem como parte importante da luta por sua liberação polí-
que precisam acessar a organização durante a pandemia, mulheres inte-
tica, econômica e social",
ressadas em participar de eventos sociais e culturais, tais como saraus,
prosas, encontros de leitura, projetos sociais, mulheres que gostariam de
8 A respeito de uma revisão bibliográfica sobre as relações entre gênero e linguagem a partir de uma
perspectiva linguístico-discursiva e feminista, ver Pinto e Badan (2012). ler cartilhas sobre temas específicos. Esse chamamento à participação é

112 Anna Christina Bentes. Rafaely Carolina da Cruz e Carolina Jansen Gandara Mendes Feminismo, mídias digitais e linguagem inclusiva 113
feito por meio do uso de enunciados em que o sentido mais amplo cons- Retomando a questão das ordens de indicialidade, as três ações - de
truído é o de que as produtoras do texto vão agir ou estar "juntas" com coordenação, de substituição de formas e de especificação do gênero da
suas interlocutoras.
instância de produção - revelam, em função dos contextos discursivos em
Ainda em relação à emergência do tipo 4, há um texto de apresentação
que ocorrem, um controle estratégico do exercício da linguagem inclusiva.
do coletivo, no qual as ativistas se apresentam na P pessoa do plural, autoca-
Sendo assim, recursos para o exercício de uma linguagem inclusiva, que
tegorizando-se, de forma geral, como "mulheres", o que resulta no uso exclu-
toma forma por meio de ações metalinguísticas incidentes sobre deter-
sivo da marcação de gênero no feminino nas outras autocategorizações que
minadas formas nominais (expressões referenciais e/ou qualificadores),
ocorrem na continuidade do texto: "Somos um coletivo de mulheres entre 18
emergem em certos contextos discursivos, mais especialmente no interior
e 45 anos. Trans, eis, hétero, lésbicas e bissexuais. Brancas e negras, traba-
de gêneros textuais que se caracterizam por produzir uma interpelação
lhadoras, universitárias. Estamos unidas contra as opressões sofridas por
direta com seus possíveis interlocutores.
mulheres (...)". É importante perceber neste trecho a explicitação de uma
Além disso, as ações acima referidas inserem os textos, suas produ-
identidade caracterizada pelo uso da autocategorização genérica "mulher",
toras e seus leitores em um regime simbólico de inclusão e de pertenci-
de forma a abarcar todas a diversidade nela incluída, contemplando os
mento: se as ações de coordenação e de especificação parecem produzir
recortes interseccionais entre classe, raça, gênero e status social.
A ação de substituição dos morfemas de gênero -ol-a pelo morfema -e
a visibilidade das mulheres, especialmente daquelas que se dedicam ao
ativismo feminista e também daquelas que compartilham os valores do
figura como o terceiro recurso mais utilizado nos textos produzidos pelas
ativistas feministas. O tipo 3 constitui a ação de substituição que incide autocuidado, da necessidade de acolhimento e proteção de mulheres em
sobre expressões referenciais, como em "todes", "todes negres" e sobre situação de vulnerabilidade, de uma educação socialmente referenciada,
qualificadores como "juntes" e "bem-vindes", Segundo Schwindt (2020), o da empatia para com aqueles que sofreram e ainda sofrem preconceitos
uso do -e não constitui uma perda, mas possibilita a ampliação da função raciais, entre outros, a ação de substituição possibilita a ampliação da visi-
de marcas já existentes. bilidade de grupos socialmente minoritários, como as mulheres e a comuni-
Nesse caso, há a predominância do mesmo tipo de contexto discursivo: dade LGBTQIA+, sendo que esta última também compartilha os valores
gêneros textuais como convites, votos, boas-vindas, cartaz. No entanto, há sociais acima elencados.
apenas um texto diferente dessa caracterização: aquele em que se faz uma As análises dos dados nos colocam frente à questão do que eles indi-
homenagem a pessoas negras que lutaram contra a ditadura. Os contextos ciam. Os diversos sentidos e valores sociais indiciados pelos tipos de ação
discursivos nos quais a ação de substituição ocorre são parecidos com aque- metalinguística envolvidos na marcação de gênero não são atributos de
les em que as outras ações (de coordenação de formas nominais com mar- cada falante/produtor de texto ou gênero textual, mas "navegam", se movi-
cação de gêneros e de especificação de identificação) se dão: são gêneros mentam entre os espaços normativos assumidos por determinado grupo
textuais que interpelam o interlocutor a participar de algo ou que se diri- social. No caso do corpus construído para esta discussão, os diversos cole-
gem diretamente a ele. tivos feministas, ao deixarem emergir em seus textos essa movimentação
Os gêneros textuais que possibilitam a emergência desses usos carac- em relação à marcação de gênero, abrem espaço não só para a compreen-
terizam-se, como dissemos, por fazer chamamentos diretos aos leitores, são dos contextos de ativismo a partir dos quais elaboram seus projetos
tais como divulgações de eventos variados, convites, comunicados, car- de dizer, mas também constroem outros contextos, no interior dos quais
tazes etc., constituindo-se assim contextos discursivos propícios, como a visibilidade e a inclusão das minorias sociais são valores fundamentais.
afirma Eckert (2000), para a emergência desse tipo de marcação. Também O exercício da linguagem inclusiva é uma demanda social importante
é importante observar que essa diversidade de marcação de gênero ocorre em função da luta histórica das mulheres e da comunidade LGBTQIA+ con-
em textos curtos e no início ou final deles. tra a opressão e a desigualdade social, por reconhecimento e por direitos

114 Anna Christina Sentes, Rafaely Carolina da Cruz e Carolina Jansen Gandara Mendes
Feminismo, mídias digitais e linguagem inclusiva 115
sociais. No entanto, nos textos dos coletivos feministas, essa demanda é Essas ações concomitantes revelam justamente uma movimentação
atendida de maneira bastante estratégica. A ocorrência maior da diversi- estilística na busca do exercício da linguagem inclusiva, com uma tendên-
dade na marcação de gênero se dá quando os coletivos feministas produ- cia a reforçar tanto a interlocução com o público feminino como também
zem gêneros textuais (convites, divulgação de eventos e projetos, comuni- com um público mais amplo. Afinal, as diferentes ações e estratégias não
cados, cartazes etc.) em que a interlocutora é diretamente interpelada. são excludentes. Seus usos concomitantes mostram que as produtoras
Nesse sentido, consideramos essa movimentação como de natureza dos textos "navegam" pelos espaços normativos, alcançando, como afirma
estilística, porque ela não é apenas estratégica, mas também multidimen- Coupland (2007), "complexos territórios" de sentidos culturais e sociais.
sional, dado que os condicionamentos para que os diferentes tipos sejam
mobilizados são de várias ordens:
PALAVRAS FINAIS
(a) condicionamento /inguístico-discursivo: variação no uso de morfemas de
gênero incidindo sobre determinadas formas nominais, especialmente Neste capítulo, mostramos como ativistas feministas fazem uso da
aquelas que categorizam grupos sociais específicos (trabalhadores, tra- marcação de gênero em textos postados em sites e páginas do Facebook. A
balhadoras; mulheres brancas; mulheres negras; mulheres eis; mulheres partir dos levantamentos feitos com base no corpus construído, foi possí-
hétero; mulheres trans; mulheres lésbicas; negres; profissionais);
vel propor três grandes tipos de ações metalinguísticas que revelam o que
(b) condicionamento textua/-discursivo: consideração (i) do tipo de relação
que se quer estabelecer entre a instância da produção e os interlocuto-
chamamos de "movimentação estilística" nos textos divulgados pelos cole-
res do site e das páginas, no caso relações de proximidade e inclusão; tivos. Essas ações propõem o exercício da linguagem inclusiva de maneira
(ii) dos gêneros textuais nos quais essa marcação aparece; e (iii) da por- estratégica, construindo sentidos, valores e contextos sociais cultivados
ção textual em que as ocorrências emergem - início ou final dos textos; pelos diferentes coletivos. O exercício dessa linguagem inclusiva abarca o
(c) condicionamento contextua/: necessidade de elaboração de contextos uso da chamada linguagem neutra, mais especialmente por meio da ação
em que valores sociais importantes são indieiados pelos textos.
de substituição dos morfemas -o e -a pelo morfema -e.
Nestes textos curtos, é possível observar também o uso de hiperôni- A movimentação estilística que observamos em relação à marcação
mos, como no excerto abaixo: de gênero é multidimensionalmente condicionada e parece indiciar de
Excerto 1 maneira bastante geral uma preocupação com a visibilidade das identi-
dades sociais tanto das produtoras dos textos, como da audiência pressu-
/lÊ fundamental que profissionais engajadas/os com o cuidado da saúde e pes-
soas interessadas nesse assunto, aprendam como acessar,utilizar e propagar estes posta pelos textos. Os gêneros textuais (ou, no caso da oralidade, as ações
direitos como forma de defendê-Ios e promovê-Ios em seus contextos locais." pela linguagem, tais como agradecer ou saudar, por exemplo) parecem
desempenhar um papel importante, como postula Penelope Eckert, como
De acordo com Borba e Medeiros (2021),o uso de hiperônimos cons- Contextos discursivos propícios à emergência dessas manifestações estilís-
titui uma estratégia de neutralização. No caso do excerto 1, o uso da ticas ou estilizantes.
expressão referencial genérica "pessoas" ocorre logo após a coordenação Um agenda interessante de trabalho sobre as relações entre lin-
de morfemas sobre o qualificador da expressão referencial "profissionais guagem inclusiva e linguagem neutra é a possibilidade de investigar
engajadas/os", ou seja, o uso de uma estratégia de neutralização é prece- como o conjunto dos movimentos contrários e favoráveis à linguagem
dido por uma ação de coordenação de termos e formas. Também chama inclusiva ou neutra exemplificam o caráter reflexivo dessas práticas de
a atenção nesse excerto o fato de, na marcação coordenada de morfemas, linguagem. Nesse caso, os diferentes modos de categorizar implicariam
emergir primeiro o gênero feminino. Mas há outros exemplos no nossO o reconhecimento de pautas políticas e de representação dos respecti-
corpus dessa coocorrência de ações, como podemos observar no quadro 3. vos sujeitos políticos.

116 Anna Christina Bentes, Rafaely Carolina da Cruz e Carolina Jansen Gandara Mendes Feminismo, mídias digitais e linguagem inclusiva 117
Talvez por isso movimentos sociais progressistas incorporem e refor-
cem as ações produzidas e aceitas por seus interlocutores. Os tipos de 1 a
4 das marcações de gênero organizados no quadro 2 indiciam modos de
categorizar os sujeitos no mundo. Nesse sentido, a linguagem inclusiva,
especialmente na sua diversidade de marcação de gênero gramatical, pode
contribuir para termos perspectivas que nos auxiliem no árduo percurso •• • • •••• • • • • •
da conquista e da manutenção de direitos e amparos político-sociais de • • •• • • • • • •• • •
grupos estruturalmente oprimidos.
Voltando ao início: agradecer por meio da expressão "obrigade" ou
ainda categorizar homens e mulheres eis e heterosexuais negros e negras
e também a comunidade LGBTQIA+por meio da expressão "todes negres",
por exemplo, tal como parece indiciar o cartaz - que compõe o nosso eor-
pus - pelo tipo de imagem que exibe, é de fato, um modo de estabelecer
uma distinção entre grupos que aceitam e performatizam a linguagem
inclusiva e os que não aceitam e combatem o uso dessa linguagem.
A aceitação e a performatização da linguagem inclusiva, que abarca QUEM É ÊLA?
os recursos linguísticos da linguagem neutra, têm impactos sociais pro-
A INVENÇÃO DE UM
fundos, a começar pelo reconhecimento da existência e dos direitos de
minorias sociais. O amplo espectro de ativistas englobado pelo rótulo PRONOME NÃO BINÁRIO
"feministas" ao longo deste texto tem trilhado esse caminho também pelo
DANNIEL CARVALHO
uso estratégico da marcação de gênero, ou seja, estilizando a linguagem
em contextos variados, mas funcionalmente parecidos, dirigindo-se ao
outro de maneira solidária e respeitosa, projetando uma identidade tam-
bém solidária e respeitosa. Fiquemos, por fim, com um último exemplo de
autocategorização de fora de nosso eorpus: "binare", identificação escrita
em um perfil de Instagram, o que nos permite continuar a defender que
especialmente as categorizações (auto e hétero) são o loeus privilegiado da
artesania estilística no que se refere à marcação de gênero.

•••
•• •
118 Anna Christina Bentes, Rafaely Carolina da Cruz e Carolina Jansen Gandara Mendes
formação acadêmica - construída sobre os alicerces da sociolinguística
variacionista e da gramática gerativa - e discutir pronomes, o que venho
fazendo, pelo menos, desde 2001, ano em que ingressei na pesquisa em lin-
guística. No entanto, depois de considerar o esquema do que escreveria,
resolvi tomar outro caminho, que fosse mais crítico, cuír-" e representa-
• •• • • • • •• • • • • tivo do que se configura uma democratização linguística do pensar gênero,
• • •• • • • • • • • • • o que não me impossibilitou de manter, no decorrer do debate, alguma
descrição linguística, fundamento dos estudos de variação linguística e
da gramática. Não adoto um rótulo de filiação teórica ou metodológica ao
estudo apresentado aqui, apenas considero-o um estudo crítico. Julguei
importante mencionar a decisão tomada, não para justificar a excentrici-
dade do texto, mas para registrar de onde falo, de onde vem o meu olhar
sobre o tema. É um registro em primeira pessoa, feito a partir de minha
observação do caleidoscópio sociocultural e linguístico que reflete minha
formação como indivíduo e sujeito acadêmico e social e, ao mesmo tempo,
minha origem cultural nordestina e cuir. Não condiciono, contudo, a dis-
cussão do presente texto a uma linguística cuir enquanto lugar fixo de
observação e crítica linguística, mas percebo-o em nuança no que Heiko
Não faz muito tempo, a terra tinha dois bilhões de habitantes, isto é,
quinhentos milhões de homens e um bilhão e quinhentos milhões de Motschenbacher (2021)chama de variação "clinal" dos estudos cuir.
indígenas. Os primeiros dispunham do Verbo, os outros pediam-no Tendo feito a localização do trabalho, passo a seu desenvolvimento.
emprestado. Entre aquêles e êstes, régulos vendidos, feudatários e uma falsa
burguesia pré-fabricada serviam de intermediários. Às colônias a verdade: A epígrafe que abre o presente capítulo é também o trecho de aber-
se mostrava nua; as "metrópoles" queriam-na vestida; era preciso que o tura do prefácio que o filósofo francês Jean-Paul Sartre escreveu para o
indígena as amasse. Como às mães, por assim dizer. A elite européia tentou
engendrar um indigenato de elite; selecionava adolescentes, gravava-Ihes na
livro Os condenados da terra, de Frantz Fanon, psiquiatra e filósofo marti-
testa, com ferro em brasa, os princípios da cultura ocidental, metia-Ihes nicano conhecido por sua crítica ao colonialismo em sua obra, a qual pode
na bôca mordaças sonoras, expressões bombásticas e pastosas que
ser lida, por exemplo, nas entrelinhas de Pedagogia do oprimido (Freire,
grudavam nos dentes; depois de breve estada na metrópole, recambiava-os,
adulterados. Essas contrafações vivas não tinham mais nada a dizer a
seus irmãos; faziam eco; de Paris, de Londres, de Amsterdã lançávamos
2 Adoto a grafia não anglófona da expressão queer em minha discussão.
palavras: "Partenon! Fraternidade!", e, num ponto qualquer da África, da
3 Entendo cuir a partir do que propõe Guacira Lopes Louro (2001: 546): "[Cuir] pode ser traduzido por
Ásia, lábios se abriam: ". tenon! nidade!" (Sartre, 1968 [1961]: 3-4). estranho, talvez ridículo, excêntrico, raro, extraordinário. Mas a expressão também se constitui na forma
pejorativa com que são designados homens e mulheres homossexuais. Um insulto que tem, para usar o
argumento de Judith Butler, a força de uma invocação sempre repetida, um insulto que ecoa e reitera
APRESENTAÇÃOl os gritos de muitos grupos homófobos, ao longo do tempo, e que, por isso, adquire força, conferindo um
lugar discriminado e abjeto àqueles a quem é dirigido. Este termo, com toda a sua carga de estranheza e
de deboche, é assumido por uma vertente dos movimentos homossexuais precisamente para caracterizar
Ao receber o convite para colaborar com este livro, pensei em escre- SUaperspectiva de oposição e de contestação. Para esse grupo, [cuir] significa colocar-se contra a normali-
ver um texto estruturado a partir da experiência gramaticalista de minha zação - venha ela de onde vier. Seu alvo mais imediato de oposição é, certamente, a heteronormatividade
compulsória da sociedade; mas não escapariam de sua crítica a normalização e a estabilidade propostas
Pela política de identidade do movimento homossexual dominante. [Cuir] representa claramente a dife-
I Agradeço a Fernanda de Oliveira Cerqueira pela leitura do texto e pelos comentários que colaboraram rença que não quer ser assimilada ou tolerada e, portanto, sua forma de ação é muito mais transgressiva
para a versão aqui apresentada. Todos os erros remanescentes são de minha inteira responsabilidade. e Perturbadora".

120 Danniel CarvalhO 121


distinção das formas humanas na terra, percepção altamente marcada por
1987 [1970]), por ter sido uma das inspirações de Paulo Freire na escrita
uma cultura falocêntrica, dominante até os dias de hoje. Contudo, vozes
de sua mais conhecida obra (cf. Gordon, 2008). Sartre ilustra, com sua
antes inaudíveis pelo soar de pigarros masculinos a qualquer tentativa
característica inclemência narrativa, a divisão global da conhecida Era do
de removê-Ia de seu lugar de poder ou, pelo menos, compartilhá-Ia com
Ouro da expansão colonial do século XVI, em que o mundo era dividido em
os demais corpos existentes, passam a ser ouvidas, mas ainda reguladas
homens e todo o resto, que incluía negros, indígenas e mulheres, como bem
pelas normas de gênero ancestrais.
aponta Ramón Grosfoguel (2012).
No presente texto, discuto a possibilidade de não marcação de gênero
Enquanto os homens "dispunham do Verbo", os demais apenas tinham
na referenciação dos diferentes corpos. Parto de uma analogia cara à teo-
autorização de usá-lo, repeti-lo, sem consciência de seu ato. Essa metáfora ria e à descrição linguísticas para a formulação da hipótese de trabalho,
sartriana serve-me na construção do presente texto como mote para a dis- a saber: valores de gênero atribuídos aos pronomes pessoais podem ser
cussão da tese de que as estruturas linguísticas são enviesadas pelo mas- entendidos como logofóricos, pois são uma atribuição reportada, consis-
culino em detrimento do não masculino que, no caso da cultura ocidental, tindo, portanto, em um instrumento representacional (Sells, 1987; Ameka,
é reduzido ao feminino. Trata-se, portanto, do que Jacques Derrida (1975) 2017). Enxergo, assim, correspondência entre a marcação de gênero e a
define como falogocentrismo, isto é, a tradição constituinte de um sistema noção de logoforicidade estabelecida nos estudos gramaticais, capturada
significativo ao redor de gênero (Shaktini, 1985), mais especificamente ao da ideia de discurso indireto ou reportado, ou, ainda, nas palavras de Jakob-
redor da marca de masculinidade (Lívia, 2001). son (1971:130), uma "fala dentro da fala, uma mensagem dentro da mensa-
Essa mesma cultura ocidental, entretanto, tem visto nos últimos anos gem'". Assim como no discurso indireto, o gênero, como categoria grama-
uma variedade de formas de identidade socioculturais, entre elas as de tical, é um elemento representado na língua a partir do ponto de vista de
gênero. Essa multiplicidade pode ser entendida como uma pulverização uma comunidade linguística, sendo assim um traço reportado, que depen-
da dicotomia de gênero em que a rigidez dessa dicotomia é revista. Essa derá do conhecimento de seu mundo.
multiplicidade de corpos, entretanto, não impulsionou na mesma inten- Ao tempo que não possui uma funcionalidade gramatical definida,
sidade e frequência as adaptações linguísticas que reclama. O fenômeno como número e pessoas (o gênero é tradicionalmente definido como um
mais marcante da inaptidão linguística ocidental diante da diversidade de instrumento engatilhador de concordância (ver Corbett, 1991; Aikhenvald,
corpos é a manifestação linguística das diferentes identidades de gênero. 2016), esse traço gramatical parece refletir estritamente a percepção de
Em outras palavras, línguas que manifestam o gênero biossocial grama- mundo de seus falantes. A distribuição dos valores feminino, masculino e
ticalmente não garantem as diversas possibilidades de identificação de comum/neutro são estabelecidos a partir do ponto de vista da tradição oci-
gênero. A tradição linguística distribui as línguas entre as que dispõem de dental, refletida na estrutura de sua gramática e mantida como instru-
distinção na representação de gênero enquanto categoria de classificação mento didático até os dias atuais. Essa tradição condicionou a existência
nominal e aquelas que não possuem esse instrumento. Ou seja, as línguas dessa categoria/traço como universal linguistico".
domundo são divididas tipologicamente entre línguas que têm gênero lin-
4 Todas as traduções são de minha responsabilidade, salvo quando apresentados já traduzidos nas refe-
guístico (identificado através dos valores feminino e masculino, e sua ausên-
rências bibliográficas.
cia classificada como neutro) e línguas que não têm gênero linguístico. 5 O próprio argumento da representação extralinguística de número e pessoa como categorias gramati-
cais sine qua non e "natural" é questionada em Carvalho (2021). Carvalho et ai. (2020) discutem uma possí-
Segundo Carvalho (2021), em estudo recente acerca da disciplinariza- vel função semântica de gênero gramatical como suplementar ao de número, funcionando como elemento
ção das categorias gramaticais, o gênero como expressão binária de clas- de perspectivização. Não desenvolverei aqui os argumentos apresentados nesses trabalhos e manterei,
Para os fins da presente discussão, a imprescindibilidade desses traços na gramática das línguas.
sificação tornou-se o único instrumento na análise linguística para clas- 6 Considerarei a hipótese da universalidade de gênero como uma forma de taxonomia na qual os nomes
sificar o que a visão de mundo ocidental definiu como marcas de gênero. de uma língua são distribuídos em classes. Para uma discussão sobre gênero e classe, ver Aikhenvald e
Mihas (2019) e Carvalho (2020).
Essa decisão taxonômica refletiu por algum tempo o que se entendia por

Quem é êla? 123


122 Danniel CarvalhO
A representação linguística vem sendo discutida desde tempos ime- arbitrariedade de suas funções neutralizadoras em certas sociedades oci-
moriais pela dicotomia arbitrariedade vs. motivação simbólica. É Saussure dentais. Para tanto, apresento alguns exemplos de distribuição de gênero
(2012 [1916]),entretanto, quem confere caráter teórico à questão da opa- nas línguas do mundo e como isso é feito a partir de apenas dois valores, o
cidade (arbitrariedade) ou da transparência (motivação) dos objetos lin- feminino e o masculino, e abordo a tentativa de algumas línguas introduzi-
guísticos. Essa arbitrariedade, pelo menos aparentemente, não se aplica, rem formas não binárias nesses sistemas. A partir disso, apresento algu-
em termos de referência, a categorias como número e pessoa, mas parece mas tentativas de introdução de um pronome não binário com o intuito
estar sempre associada quando se trata de gênero. de despolarizar os valores de gênero em algumas línguas e por que uma
O gênero enquanto categoria pode não ter realidade materiaF, como tentativa no Brasil não foi incorporada ao vernáculo. Finalizo o texto com
nos nomes cujos referentes são entes inanimados, ou pode ter realidade algumas reflexões sobre a adoção de uma justiça de gênero nas línguas em
material relativa, como nos animados, em especial os humanos", Relativa, detrimento de uma sua neutralização.
como toda representação (Bhabha, 1995), a realidade de gênero depende
dos olhos que a veem, e a arbitrariedade dessa visão apresenta um movi- "NO NEED FOR ANXIETY OR PRONOUN ENVY"l1
mento bastante enviesado por uma tradição falocêntrica. Esse falocen-
trismo epistêmico pode ser percebido em diversas estratégias de repre- Qualquer que seja o ponto de que se parta para entender uma lín-
sentação referencial de gênero; entre elas as pronominais. Uma vez que gua, sua constituição reflete a relação de poder da sociedade que a utiliza.
as estratégias de representação de gênero nos sistemas pronominais das Essa afirmação pode soar categórica, mas não é falaciosa. Parta-se de um
línguas são dominadas pela polarização dos tradicionais valores binários viés discursivo ou do que constitui sua estrutura, o entendimento do que
de gênero, passa a existir em algumas sociedades do mundo um movi- estabelece uma língua é reflexo de quem determina o que faz ou não parte
mento na tentativa desfazer a dicotomia de gênero na representação dos dela. Desde a recuperação dos primeiros textos sobre as discussões ini-
diferentes corpos: a busca por pronomes desgenerificados. Não utilizarei ciais acerca do que constitui uma língua, encontramos referência a essas
aqui a denominação "pronome neutro" por acreditar que ela mantém o relações de poder. Por exemplo, o gramático latino Marco Terêncio Varrão
entendimento de uma polarização de gênero, pois a ideia de um gênero (116a.C.-27a.C.) utiliza quatro critérios determinantes para a estruturação
neutro alude à coisificação do não pertencimento a gênero algum. No da língua: a natureza da entidade linguística (natura), seus usos e tradição
entanto, o expediente de um pronome não binário, entendido como ins- (usus/consuetudo), sua organização estrutural (ratio) e a autoridade ances-
trumento na "neutralização" de uma língua generificada", traz à tona seu tral grega na atribuição dos valores linguísticos (auctoritas). Esta última,
movimento falocêntrico'". segundo Varrão (1990), possibilitaria a dispensa dos demais critérios na
No intuito de debater o condicionamento das normas sociais para atribuição de valores como os de gênero. Assim, os valores feminino e mas-
a adoção/implementação de um pronome não binário, discuto breve- culino no latim e no grego são autorizados devido a sua relação direta com
mente o papel social da marcação linguística de gênero, em especial a a morfologia dos corpos dos seres vivos (pelos menos do que se conhecia
sobre isso à época).
7 Faço aqui uma provocação ao usar a expressão realidade material platônica para resgatar suas "ímper A tradição da autoridade gramatical greco-latina perpetuou-se no
feições", como apontado pelos idealistas, cujo pensamento é recobrado posteriormente por racionalistas
mundo ocidental, servindo de parâmetro para a descrição e análise das
e neoidealistas (como Descartes e Hegel, respectivamente), que influenciaram parte do pensamento lín-
guístico dominante do século XX. línguas no decorrer da história. Sua referência ao padrão linguístico
8 A noção de animacidade da ideia eclesiástica de corpo e alma (anima do latim),
9 Generificação é a atribuição ou designação de um valor de gênero a algo ou alguém; o processo social
11 Passagem da matéria do jornal Harvard Crimson, de 26 de novembro de 1971, p. 17,cujo excerto é trans-
pelo qual se dá o encaixamento de corpos aos valores binários feminino/masculino.
!O A expressão neutering, por exemplo, cuja origem é o termo latino neuter, significa "castração", entendi' crito por Livia (2001: 3): "There is [...] no need for anxiety ar pronoun envy" (Não há necessidade de ansie-
da como remoção dos órgãos reprodutivos em animais. dade ou inveja pronominal).

125
124 Danniel carvalhO Quem é êla?
indo-europeu norteou toda a discussão sobre linguagem desde então. E é gerada pela imposição das categorias ocidentais de gênero na língua iorubá
no século XIXque ela ganha força científica com o surgimento da hipótese (maior grupo étnico-linguístico da África Ocidental). Segundo Oyéwúmi, a
tli

darwiniana e o fortalecimento da tese de uma língua primordial (protolin- distinção entre masculino e feminino nas relações sociais iorubás é resul-
gua), o que confluiu nos modelos de análise linguística que conhecemos tado da colonização cultural, uma vez que sua estrutura social é historica-
hoje. A tradição ocidental nos estudos da linguagem baseia-se fundamen- mente fundamentada na senioridade (hierarquia etária) e não se fazia, até
talmente no corpo gramatical proposto nas Categorias de Aristóteles, em a colonização europeia, distinções de gênero como as traduções "mulher"
que se definem as possíveis predicações sobre o "ser", aquele cujas carac- e "homem" para obinrin e okimrin, respectivamente, ou ainda "esposa" e
terísticas compõem as categorias gramaticais (Carvalho, 2021). Entre as "marido" para aya e 9k9 deixam observar (Oyéwumi, 1997: 32). Sobre as
predicações mais persistentes na descrição das línguas indo-europeias, relações matrimoniais, Oyéwúmi aponta:
IA está a consistente marcação de gênero gramatical, sempre relacionada a
critérios de origem sexuada. [t]odos os membros do idí/é (linhagem) como um grupo foram chamados de omo-
O título desta seção foi retirado das páginas do livro Pronoun Envy: -ilé e classificados por ordem de nascimento, As anaíêrneas" casadas constituíam

Literary Uses of Linguistic Gender, de Anna Livia, publicado em 2001, no qual um grupo denominado aya i/é e eram classificadas por ordem de casamento, Indi-

a autora reflete sobre o uso genérico do masculino em línguas como o inglês vidualmente, Qmó,-ilé ocupou a posição de QkQ em relação ao aya que se apro-

e o francês. A "inveja do pronome" apontada no texto de Livia faz menção xima, Como observei anteriormente, a tradução de aya como 'esposa' e de QkQ

à reação do departamento de Linguística da Universidade de Harvard, nos como 'marido' impõe construções de gênero e sexuais que não fazem parte da

Estados Unidos, encabeçado por Calvert Watkins, renomado linguista esta- concepção iorubá e, portanto, distorcem esses papéis (Oyéwurní, 1997: 44),

dunidense cujo foco de pesquisa eram os aspectos morfossintáticos das


línguas indo-europeias, em 1971,diante dos protestos das estudantes da Ainda segundo Oyéwúmi (1997), a lógica ocidental identifica pela
referida instituição acerca do uso generalizado do pronome he (ele) para visão, como sentido privilegiado, os papéis sociais de certos corpos. Daí
referir-se ao deus cristão. O argumento de Watkins e colegas em sua res- surgiria um "raciocínio corporal" na percepção de sociedade como corpo
posta (que dá título a esta seção) se baseia na tese estruturalista de que, nas social e político: "[...] todos os conceitos trazem consigo suas próprias baga-
línguas indo-europeias, a forma masculina é a não marcada na dicotomia gens culturais e filosóficas, muitas das quais se tornam distorções alheias
masculino/feminino (Camara Jr., 1971).Segundo Livia, essa "inveja" moti- quando aplicadas a culturas diferentes das quais derivam" (Oyéwumi,
vou, nas décadas seguintes, os estudos feministas, que "tornam as questões 1997:x-xi).Para a autora,
linguísticas centrais aos textos [feministas] - experimentando novas for-
mas, rejuvenescendo formas antiquadas e pouco usadas, ou simplesmente [m]ulheres, primitivos, judeus, africanos, os pobres e todos aqueles que se quali-
ficaram para o rótulo de "diferentes" em várias épocas históricas foram conside-
eliminando o gênero linguístico para referentes animados" (Livia, 2001: 3).
rados como encarnados, dominados, portanto, pelo instinto e pelo afeto, estando
O argumento de Watkins ilustra bem como o pensamento linguístico con-
a razão além deles, Eles são o Outro, e o Outro é um corpo (Oyéwumí 1997: 3),
tinuou seguindo a auctoritas na formulação de hipóteses sobre a estrutura-
ção da língua, uma auctoritas sempre masculina e europeia.
Uma forte evidência da auctoritas ocidental na generificação das lín- Oyéwumí lembra que, além do critério dicotômico ausência/presença,
guas colonizadas é apresentada pela socióloga e feminista nigeriana oye- Outras formas de classificação dos corpos são caras à tradição ocidental: a
rónké Oyéwúmí, em sua tese de doutorado transformada em livro sob o
12 Oyewumíutiliza a expressão anafemale e anamale para indicar corpos anatomicamente compreendidos
título The Invention of Women: Making an African Sense of Western Gender ~elosocidentais como mulheres e homens, respectivamente. Nascimento (2019)propõe a expressão ana-
Discourses, publicado em 1997,no qual descreve a virada epistemológica emea e anamacho como tradução.

126 Danniel carvalhO Quem é êla? 127


obsessão com o pênis, o tamanho do cérebro, o formato do crânio, a cor (2017:43), "[o]s discursos universalistas têm em comum a produção de
da pele. A possibilidade de intersecção" ou ausência desses critérios causa um outro pelo esvaziamento das singularidades". Assim, uma linguagem
estranhamento no pensar ocidental, tornando-se tabu. O híbrido como não binária é aquela cujos referentes humanos são desvinculados de seus
possibilidade é descartado". papéis sociais de gênero.
A força epistêmica da herança indo-europeia cria um empuxo entre Muitos críticos, boa parte deles formada por leigos, mas com linguis-
os limites da língua e O tecido social quando questionamos o potencial tas em seu meio, entendem a língua como uma entidade completamente
referencial das formas de gênero diante da diversidade de corpos existen- independente de qualquer movimento social. A introdução de estratégias
tes na história, com especial atenção para a contemporaneidade. não binárias de referencialidade, para tais críticos, gera um deslustre no
Curiosamente, esse debate sobre a generificação linguística é polê- sistema linguístico, ou ainda, uma artificialidade, uma "arbitrariedade"
mico, mas envolve um número reduzido de vocábulos nas línguas, consti- em seu funcionamento. Curiosamente, muitas línguas não indo-europeias
tuindo proporcionalmente um pequeno número de itens lexicais que pos- possuem marcas não binárias de referencialidade. O guajiro é um bom
suem alguma manifestação de gênero em sua estrutura: os nomes de seres exemplo. Essa língua aruaque colombiana não apresenta marcação de
animados variáveis quanto ao gênero gramatical, em uma língua como gênero predeterminada em seus nomes:
o português, correspondem a cerca de 5,6% das entradas dicionarizadas
(Schwindt, 2020), enquanto a maioria esmagadora dos itens lexicais nes- Nomes que se referem a entidades sexuadas, por exemplo, referem-se ao espé-
sas línguas correspondem a seres inanimados, tendo, portanto, seu gênero cime genericamente; se o falante deseja focar no caráter feminino ou masculino

atribuído de forma arbitrária. do ser humano ou animal a que o termo se refere, ele pode recorrer a certos
Por sua vez, a discussão acerca de uma linguagem neutra vem sufixos determinantes (masculino singular/feminino singular/plural) ou escolher
ganhando espaço nas mais diversas mídias. Uma rápida busca no Google as formas concordantes de gênero apresentadas por outras classes relaciona-
com essa palavra-chave permite-nos verificar quão diversos são os pon- das ao referido nominal. Uma vez que o gênero não marcado é funcionalmente
tos de vista sobre o tema. Umas das premissas da chamada linguagem feminino, ele é o usado por padrão em objetos, mas também em pessoas e
"neutra" é a não binariedade em relação à referência na comunicação. animais quando seu sexo não é conhecido ou não quer ser especificado (Regú-
Isso significa, em outras palavras, que as línguas que possuem alguma naga, 2011: 187).
manifestação de gênero em sua estrutura, seja lexical, fonológica, mor-
fológica ou sintática, devem passar a perceber corpos que não se iden- A língua guajira nos mostra que a neutralização referencial é, em
tificam com as formas tradicionais de distinção sexual - o feminino e algumas línguas, o padrão, sendo a distribuição em valores de gênero uma
o masculino. Uma neutralidade da linguagem recorre a um expediente estratégia de especificação do objeto. Isso nos faz refletir sobre o real papel
universalista, pois o que não é feminino nem masculino deve se encai- da marcação de gênero nas línguas.
xar em uma rasura única de gênero. Como nos lembra Berenice Bento Portanto, a marcação morfológica não binária tem relação com a
referência aos seres humanos, não aos demais seres animados e muito
13 Segundo Wendy Single-Rushton e Elin Lindstrôrn (2013: 130-131), a interseccionalidade é "um conceito menos aos inanimados. Sendo assim, umas das mais eficazes estraté-
teórico vagamente especificado - um termo guarda-chuva - que reúne um conjunto de ideias sobre a
complexa multidimensionalidade e estratificação social e as consequências de sua especificação incorre- gias de pulverização de gênero em uma língua seria aquela voltada para
ta". Para um debate mais aprofundado sobre o tema, ver Crenshaw (1989), Collins (1990), Dorlin (2008), a representação pronominal pessoal, e não para as demais expressões
Bilge (2009), Akotirene (2019).
14 A escolha do termo híbrido para integrar esse debate foi feita devido à sua etimologia (do grego hybris), nominais, uma vez que a primeira exige uma identidade referencial de
que remete a ultraje, que desafia a Providência (Huxley, 1970). Tomo emprestado o termo como manifesta' interpretação, enquanto as últimas são consideradas expressões referen-
cão tanto da ideia de hibridismo cultural (Bahbha, 1994) quanto da própria ideia do hibridismo corpóreo,
cuja representação pode ser identificada em alguns corpos transgêneros, como os das travestis. ciais per se (Chomsky, 1981).

128 Danniel CarvalhO Quem é êla? 129


GÊNERO GRAMATICAL NOS PRONOMES: elementos pronominais parece ser um fenômeno de referenciação nas lín-
DA TRADiÇÃO À DESCONSTRUÇÃO guas do mundo.
O inglês, o português e o russo são exemplos de línguas dotadas de
Em seu artigo sobre a distribuição dos valores de gênero gramati-
estratégias linguísticas para a representação de referentes animados
cal nas línguas do mundo no Warld Atlas af Language Structures Online
sexuados, tanto lexicalmente, quanto em seus sistemas pronominais pes-
(WALS),Anna Siewierska (2013)aponta todas as línguas do mundo como
soais, ilustrados no quadro abaixo, que apresentam os pronomes pessoais
virtualmente possuidoras de pronomes pessoais morfofonologicamente
nominativos nessas línguas:
independentes (o que os diferencia de clíticos e afixos) e aponta que a
marcação de gênero é mais comum na 3a pessoa do que na P e na 2a, como Inglês Português Russo
ilustrado no quadro 1. ja
eu

Pessoas Número de línguas you tu/você ty

18 e 2a 2'5 singular she ela oná

3a 104 he ele on

18,28 e 3a 18 it onó

Total 124 we nós/a gente my


-
Quadro 1: Distinção de gênero nos pronomes pessoais.
you vocês vy
Fonte: elaborado pelo autor a partir de Siewierska (2013). plural
elas
they oní
Das 378 línguas apontadas no estudo de Siewierska, apenas 124 (apro- eles
ximadamente 1/3 delas) apresentam algum tipo de distinção de gênero em
Quadro 2: Pronomes pessoais em inglês, português e russo.
seus pronomes pessoais, sempre se assumindo os valores feminino e mascu- Fonte: elaborado pelo autor.
lino como valores categóricos na distribuição de gênero de entes animados.
Na distribuição de gênero nos inanimados, a autora indica a possibilidade O quadro 2 mostra uma semelhança na distribuição morfofonológica
de agregação desses referentes à classe dos nomes masculinos (como no das pessoas, números e gêneros entre as línguas. No entanto, enquanto
aramaico), à dos nomes femininos (como em warekena, língua aruaque do o inglês e o russo apresentam um pronome neutro no singular, it na pri-
noroeste amazônico), ou, ainda, distribuídos de acordo com o que a autora meira e onó respectivamente, o português não apresenta uma estratégia
chama de "de forma arbitrária ou de acordo com algum princípio baseado neutra para marcar seres inanimados ou não humanos, lançando mão dos
semanticamente" (como em garifuna, língua aruaque do norte da América pronomes com marcação de gênero feminino (ela) e masculino (ele)16.Por
Central). Das 124línguas que distinguem gênero, somente 20 delas (16%apro- outro lado, o português distingue o gênero em suas formas do plural da 3a
ximadamente) apresentam a possibilidade de marcação de gênero na Ia e/ou
2a pessoa. Essa informação nos mostra que a indicação de gênero nos 16 Em trabalhos recentes, Gabriel Othero e colegas têm argumentado em favor de uma aproximação da
retomada anafórica de 3a pessoa não realizada foneticamente à leitura neutra de gênero. Assim, na reto-
mada anafórica pronominal de 3a pessoa do singular, o português brasileiro leva em consideração efeitos
15 Apenas o irqw e o burunge, ambos línguas cuchíticas faladas no nordeste africano (Tanzânia), são de concordância de gênero. Nesse sentido, o PB lança mão do pronome ele para retomar antecedentes
mencionados no trabalho de Siewierska (2013). Outras línguas, no entanto, apresentam distribuição das Com gênero semântico\biológico masculino; ela para antecedentes femininos e 0 para a retomada anafó-
marcas de gênero na 1" e na 2" pessoa, como o paez, língua colombiana (ver Jung, 2008), e o mwaghavul, rica de referentes de gênero semântico neutro (inanimados ou palavras como "cônjuge", "testemunha" ou
língua chádica nigeriana. Esta última, curiosamente, apresenta apenas a forma masculina para a Ia pes- "vitima", por exemplo). Para uma discussão mais aprofundada, ver Othero et a/. (2016), Othero e Spinelli
soa (Blench, 2010). (2017,2019), Othero e Goldnadel (2020).

130 Oanniel CarvalhO Quem é êla? 131


pessoa (elas/eles), enquanto o inglês e o russo apresentam uma única forma Em Hong Kong, outra forma pronominal não binária emerge entre
sem referência a gênero, they e oni, respectivamente. falantes não binários ou cuir, 12 (qú), utilizada na fala coloquial e em
Alternativamente, algumas línguas não apresentam distinção de alguns contextos escritos informais (envio de mensagens instantâneas e
gênero em seus sistemas pronominais. É o caso da língua basca, que não em tabloides, por exemplo).
faz distinção gramatical entre as pessoas pronominais. O gênero nessa A criação de um pronome não binário foi politizada, em algumas lín-
língua aparece apenas na morfologia verbal em tratamento familiar. No guas, seja ao passar a possuir um valor político, seja passando a ter valor
exemplo (1), os morfemas -k e -n aparecem na construção verbal represen- na norma (linguística e social). No sueco, o pronome de 3a pessoa neutro
tando leitura masculina e feminina, respectivamente, cujo referente é a para gênero (hen) foi introduzido oficialmente na língua, suplementar-
2a pessoa: mente ao paradigma pessoal existente, que inclui hon (ela) e han (ele), já
(1 ) a, gu hiri laguntzera etorriko gatzaizkik
sendo encontrado na mídia e na literatura (Séden et al., 2015). A menção ao
1 pl 2 sg-D ajudar vrr-rrr 1pl-COPULA-pl-2(masc)17 pronome hen remete a textos da década de 1960 na mídia sueca, segundo
"Nós viremos para ajudar você (rnasc.)" Séden et alo (2015), mas sua implementação só passou a ser realidade a par-
tir da década de 2010. Hen apareceu pela primeira vez na mídia impressa
b. gu hiri laguntzera etorriko gatzaizkin
1 pl 2 sg-D ajudar vir-irr 1pl-COPULA-pl-2(fem) em 2012, no livro infantil Kivi och Monsterhund ("Kivi e o cachorro mons-
"Nós viremos para ajudar você (fem)" tro"), de Jesper Lundqvist. Em julho de 2014, foi anunciado que hen seria
(adaptado de LAKA, 1996: 96) incluído na edição de 2015 do Svenska Akademiens Ordlista ("Glossário da
Academia Sueca" - SAOL),que constitui a norma (não oficial) da língua
O mandarim é outra língua sem morfologia de gênero. Seu sistema sueca (Benaissa, 2014). Semelhantemente, o pronome they (eles/elas, com
pronominal, à primeira vista, tampouco apresenta distinção de gênero. leitura pluralia tantum) no inglês e hán (ele/ela) no finlandês são utilizados
Entretanto, no manda rim contemporâneo, o pronome de 3a pessoa como formas pronominais de gênero neutro. Segundo Dennis Baron (1986),
ífu ([tã]), cujo radical A. significa "humano", teve historicamente uma o they singular como forma neutra de gênero pode ser encontrado já no
leitura inclusiva, não generificada, que passou a ter uma tendência a século XVIII,mas seu uso como neutralizador de uma língua sexista ainda
ser acionado como leitura masculina (ver Lai, 2020). Com a abertura oci- se limita a determinados grupos sociais.
dental do século XX, o manda rim incorporou um pronome com leitura No Brasil, houve um movimento, ainda que tímido e restrito a deter-
específica para o feminino, o frfu, e o neutro, '8, todos tendo a mesma minados círculos, de criação de um pronome "neutro". Carvalho e Silva
pronúncia [tã]. O Nonbinary ioiki, página unki dedicada às identidades de (2019) apontam a existência de uma forma pronominal criada a partir
gênero", afirma que os pronomes de 3a pessoa em mandarim são inclusi- da fusão fonética dos pronomes de 3a pessoa masculino (ele - [ueli]) e
vos, pois, apesar de contemporaneamente apresentarem três formas grá- feminino (ela - rUEla]):o êla (Uela])19.Segundo os autores, "[êjla é usado
ficas distintas para a representação de gênero, sua pronúncia é a mesma, majoritariamente para se referir a indivíduos transgêneros femininos e é
não havendo distinção na prática. No entanto, sua grafia ainda gera dis- utilizado na maioria das vezes por indivíduos masculinos cisgêneros hete-
cussões sobre a generificação do pronome. Mais recentemente, os usos rossexuais" (Carvalho; Silva, 2019: 1080). Seu uso é restrito à linguagem
populares do mandarim empregam uma novidade na tentativa de desge- COloqUiale seu registro pode ser verificado em algumas mídias sociais.
nerificação pronominal: o uso de TA.
;-----------------
Chamo a atenção para o uso do circunflexo como marcação gráfica com o intuito de "fechar" a vogal,
17 1 = 1" pessoa; 2 = 2" pessoa; D = determinante; irr = irrealis; pl = plural; sg = singular; mas c = masculino; e não para marcar a sílaba tônica, para, assim, evidenciar uma diferença entre êla e ela. Essa observação
fem = feminino. vale menção especialmente pelo fenômeno do neopronome (forma pronominal criada para representar
18 Disponível em: https://nonbinary,wiki/wiki/Main_Page. Acesso: 26 mar. 2022. seres não binários) ser encontrado predominantemente em registro escrito em português brasileiro. .

132 Danniel carvalhO ]33


As figuras 1-3trazem algumas ilustrações dos usos de êla encontradas em
algumas redes sociais, os quais estão destacados.

que tem nessa cidade? [editar]


Tem gente que "fica mordida" pelo simples fato de te olhar
1. O demar e seus cnups-cnups que fazem a alegria de nerds que saem da aula morrendo de vo isso seria inveja? Pessoa que "fica mordida" com suas saias e
2. Internet (só foram colocar intemet depois que foram ameaçados de um ato terrorista do Bin la vestidos será que seria preconceito? Existe aquele que olha
teu batom e se espanta bem fácil queria usar e não tem
3. Manga
coragem será? Eu acho totalmente o contrário. Quanto te
4. 15 favelas, entre elas, 16 são mortalmentes perigosas olho sinto orgurhopelo que é autentlddade ser1aIsso?
5. Um prefeito fdp corrupto que é eleito toda santa eleição Quando olho tuas salas e vestidos penso ·~a· pode porque
um corpo vai ser sempre um corpo desde que a pessoa se
6. Enchentes a cada 2 horas
sinta bem ela pode usar o que quiser vc não acha? E
7. Um dube fodido Quando olho para cor do teu batom digo que boca do
8. Eu caralho mas a de Qualquer pessoa ftearia bonita com aquela
9. Um trenzinho fudidaço e infantil construido em épocas desconhecidas ( acredita-se que seja ( cor se a mesma quisesse assumir tua coragem .•.Enfim vejo
~algo úniCOque vc que critica em algum momento quIs
10.5 kg de merda de cavalo a cada centímetro quadrado
ser porqu@é foda pra terminar esse mero diálogo
11. Casas Bahia (apesar de estar em Ubá, uma cidade mineira) quero explicar meu term@Srsrs é algo Inexpllcável que
12. Trocentos grupos terroristas só quem @ntende .•. lInlker meu amor mInha "Bicha
Preta" te amo. 9 @linikeroflCial #el@\iniker
13. Mulher fácil (Se for rico pra caralho)
t#bichapreta #boanoite #instagram#bichapreta l#instagram
14. Galinhas (em todos os sentidos) tIboanoite llínike@ele
15. Velha chata pedindo 1 real (experimente pedir 1 real pra ela e estará de frente a uma mente C(
Figura 2: Êla em depoimento do site Thepictaram sobre a cantora l.iniker".
16. Rio Ubá vala fétida que corta a cidade. Fonte: https:llwww.instagram.com/p/BDhSvhAg2Y-l?utm_source=ig-web_copy_link

17. Rua São José, símbolo do comércio decadente da cidade.


o que é um homem lésbica?
18. Praça São Januário, onde as moças batem ponto a espera de quem queira liberar uns trocadO
ti 2 seguindo ~ 16 respostas
~
19. Praça Guido, palco de uma saudável disputa entre os comerciantes do entomo para ver quem ClassifICação v
Respostas
Ali temos vários "comerciantes" muito "bem vestidos" e com "boa pinta" para receber você con
Melhor resposta: até hoje só vi 1 caso assim!
20. O Grande Hotel, também conhecido como Grande Bosta.
era um rapaz de 23 anos que fez a cirurgia de troca de sexo! e@lalêla' gosta e sempre gostou de
21. Aymorés, dube com nome de índio e frequentado por índios. mulheres! mas~lalêla' quer ser outra mulher para estar com outra mulher! entendeu??

22. O clube Tabajara que, em linguagem tupi, significa "os senhores da aldeia" . Antro dos remane
~Ialêla' quer ser lésbica(o)

23. Forrõ do Gazolão -casa de shOws renomada responsável pelo renascimento da vida noturna u
PS: é necessário criação de um novo pronome pessoal para o sexo Indefinido!
24. A Santinha - local de trabalho das mulheres filés, jacas, melandas e abóboras ...
Figura 3: Êla em um fórum do site Yahoo Respostas.
25. Tieta, ou o que restou do carnaval ubaense. Fonte: https:llbr.answers.yahoo.com/question/index?qid=20120304103452AABuxPB

26. Beira Rio - ponto onde se encontram as mulheres bananas (em Ubá, ÊLA é muito cObiÇa~
------------------
20 Liniker se identifica como não binária. Por sua referência aparecer geralmente no feminino, manterei
Figura 1: Êla no site Desciclopédia, sobre a cidade de Ubá.
Fonte: http://desciclopedia.org/wiki/ Ub%C3%A 1 eSSamarcação aqui.

135
134 Danniel carvalhO
Os exemplos acima, extraídos de mídias digitais utilizadas por diferen- 4. Sobre um homem supostamente cis hom,2ssexual muito afeminado
tes gerações de usuários, apontam a utilização da forma pronominal sem-
5. Com pessoas íntimas para me referir a alguém não binário
pre com uma conotação híbrida de gênero. Na canção Bate cabelc", de 2012,
o cantor baiano Márcio Victor, da banda de pagode Psirico, faz menção ao
pronome em um trecho do refrão ["Ele,êla/Ele, êla (eu estou em dúvidal)"].
-- - ----
6. Para se referir a bicha efeminada e travestis

7. Quando "não sabia" o gênero da pessoa


-
Curiosamente, a canção tem início com a narração rimada da dançarina 8. Para me referir a um homem cis gay
Léo Kret, como uma introdução da letra, que trata de um movimento feito
-- - -
9. Para me referir a homens gays.
com a cabeça, iniciada pelo movimento artístico das drag queens e comu-
10. A uma pessoa transgênero.
mente executado por pessoas da comunidade LGBTQIA+em festas e casas . -
Quadro 3: Situações em que os informantes utilizaram o pronome êla.
noturnas, o bate-cabelo. O início da letra da canção apresenta uma lista de Fonte: Elaborado pelo autor.
mulheres transgêneras de diferentes localidades do Brasil ("Em Salvador
tem Leocret/E no Rio tem Juliet /Em Manaus tem a Fofete/Em São Paulo a Das dez respostas dadas, a maioria (sete respostas) menciona ter
Paulete"), e segue, informando: "Atéas mulheres tão fazendo o movimento". associado o referente ou a pessoas (mulheres) transgêneras ou a homens
Em minha busca pela letra de Bate cabelo, não encontrei nenhuma transcri- efeminados. Isso mostra que há uma tendência à marcação do referente do
ção com a acentuação gráfica que distingue a forma êla dos outros pronomes pronome êla a sujeitos mais feminizados". Assim, tanto a normatividade
generificados (oacento circunflexo no e), cuja ocorrência pode ser percebida quanto o passado linguístico ampliam ainda mais a nossa compreensão
claramente ao ouvir a música. Como se pode observar, em todos os exem- da sexualidade refletida na língua como contextual, cultural e historica-
plos encontrados, a menção ao pronome êla não busca neutralizar a leitura mente moldada e variável (Baker, 2013;Motschenbacher, 2021).
de gênero de seu referente, mas, ao contrário, implica uma leitura mais mar-
cada do que os demais pronomes generificados em português.
JUSTiÇA LlNGuíSTICA DE GÊNERO E
Carvalho e Silva (2019)apresentam também o resultado de uma con- AS DIMENSÕES DA PRONOMINALlZAÇÃO NÃO BINÁRIA
sulta com 50 usuários do Facebook através da ferramenta online Google
Forms, a fim de desenhar o perfil dos possíveis referentes do pronome êla. É possível identificar na discussão e nos dados aqui apresentados pelo
Repetimos a consulta, respondida por 77 usuários. Uma das perguntas do menos três estratégias na referenciação dos chamados "pronomes neutros"
formulário era: "Em caso de resposta positiva à pergunta anterior ['Você ou pronomes não binários. A primeira engloba línguas como o chinês, em
já usou o pronome êla?'], em que contexto você usou o pronome e para que elementos pronominais existentes foram linguisticamente manipula-
se referir a quem?". Obtivemos dez respostas por extenso, integralmente dos, redefinindo seus significados sociais. Taiwan é um exemplo extremo
da estratégia de criação de políticas linguísticas de implementação de uma
transcritas a seguir:
linguagem não sexista ao recomendar oficialmente a utilização de elemen-
1. Eu confesso que ainda estou aprendendo a usar esses pronomes. Quero chamar tos pronominais de referência feminina ou neutra. Em 2004, o governo de
as pessoas como elas desejarem mas existe um vicio de linguagem e na hora já Taiwan sancionou a Lei de Educação de Equidade de Gênero, que incentiva
falei errado.
os alunos a não discriminarem outros estudantes com base em seu gênero
2. para me referir a uma pessoa que era do oficialmente do sexo masculino, mas (Sinacore et aI., 2019).Para tanto, o currículo das escolas taiwanesas reco-
factualmente é não representa esse sexo.
menda o radical feminino mandarim para pronomes de 3a pessoa ~, em
3. Em conversa com meu grupo de amigos para pessoa transexual feminina
Vezdo radical masculino ffu.
21 Disponível em https://www.kboing.com.br/psirico/bate-cabelo/. 22 Sobre a categoria social feminização, ver Yannoulas (2011).

137
136 Danniel carvalhO Quem é êla?
A segunda tendência é a incorporação popular de elementos pro-
o êla do português brasileiro é outro exemplo dessa terceira estra-
nominais já existentes na língua, como o inglês they em referência sin- tégia, mas sem o respaldo institucional, necessário para sua implemen-
gular. Essa estratégia é mais branda, mas aparentemente mais efetiva, tação. Para além da inexistência desse suporte político, nos deparamos
pois parece regida pelo vernáculo. Isso pode explicar sua longevidade. com o já mencionado falogocentrismo como "coluna dorsal das normas de
No entanto, outras línguas, na tentativa de adotar tal estratégia, estabe- gênero" (Bento, 2017: 60). Isso justifica a marginalização de sua referencia-
leceram não apenas uma dessexualização pronominal, mas mesmo uma lidade a uma leitura de matiz feminilizante, historicamente apagada nas
desumanização e/ou uma infantilização. É o que Natalia Knoblock (2021) sociedades ocidentais. A tendência brasileira de os usos de um pronome
identifica em alguns usos do ucraniano, como no discurso político, que uti- não binário serem associados à marcação de corpos lidos como feminis
lizam a estratégia pronominal BOHO (pronome de 3a = pessoa neutro) para ou transgêneros, especificamente gays efeminados, travestis e mulheres
reclamar uma infra-humanização (nas palavras da autora) ou mesmo des- transgêneras, ilustra contundentemente esse cenário.
personificação (Teixeira, 2014) do outro: BOHO pode ser usado para denotar As estratégias identificadas não devem ser as únicas disponíveis para
uma criança. Esse expediente de infantilização como infra-humanização é um tratamento justo de gênero nas línguas, mas apareceram em nossa pes-
recorrente no pensamento ocidental como herança de uma percepção do quisa e fomentam o debate aqui proposto. Outras pesquisas, no entanto,
infantil como não humano (ver Gonzales, 1983; Lyotard, 1997, 1998; Kohan, mostram a introdução de novas formas de referenciação pronominal não
2010). Nas palavras de Walter Ornar Kohan, "[cjom efeito, a infância não é binária (ou não generificada) usadas, por exemplo, por falantes do inglês
apenas ausência de palavra, mas a palavra que não pode ser dita, um resto
londrino, como man (Cheshire, 2013), ou yo, em uma variedade da língua
de palavra indizível que habita toda palavra dita" (Kohan, 2010: 127)23.
inglesa falada na cidade estadunidense de Baltimore (Stotko: Troyer, 2007).
Já a terceira tendência é utilizada por línguas como o sueco e o finlan-
Curiosamente, mas não coincidentemente, todas essas estratégias foram
dês, que criaram um elemento pronominal específico para a referência não
registradas em comunidades jovens, o que pode indicar, segundo Penelope
binária. Essa estratégia é mais radical e menos funcional que as demais, pois
Eckert (1988, 1989), uma orientação de implementação nessas línguas.
requer a regulamentação de um novo item funcional inexistente na língua.
A adoção de estratégias justas para gênero deve visar reduzir os este-
Essa estratégia diligencia uma intervenção política mais marcante e
uma conscientização popular de sua implementação. Em inglês, há a ten- reótipos e a discriminação. O caso do português brasileiro ilustra como a
tativa de implementar sistemas pronominais não binários, resumidos no integração de pesquisas sobre a estrutura da língua, as políticas de lingua-
quadro 4. Entretanto, a utilização dessas formas é, pelo menos, mais res- gem e o estilo linguístico pode contribuir para uma justiça linguística de
trita que o uso do they singular. gênero, fomentando a redução da estereotipificação linguística, geradora
de discriminação.
Nominativo Acusativo Oblíquo Possessivo Reflexivo
zie zim zir zis zieself
sie sie hir hirs hirself
ey em eir eirs eirself
ve ver vis vers verself
tey ter tem ters terself
e em eir eirs emself
Quadro 4: Formas pronominais de 3" pessoa não binárias distribuídas
por suas funções sintáticas, propostas para o inglês.
Fonte: https://uwm.edu/Igbtrc/support/gender-pronouns/

23 Não à toa o uso do diminutivo, da diminuição do referente, é um recorrente instrumento linguístico de dois
extremos afetivos: o xíngamento e a expressão de afeto. Em ambos, há uma conotação ao infantil do diminutivo.

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138 Danniel carvalhO
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história, "dominar 'racionalmente' o corpo do pensamento, com a ajuda de
uma língua ideal todo-poderosa" (Gadet;Pêcheux, 1981:45, tradução minha).
No entanto, os diferentes embates em torno das línguas são sempre
singulares e devem ser compreendidos nos arranjos históricos dos quais
emergem, em suas condições de produção específicas. No Brasil, a questão
• •• •• • • • • • • • • da "língua nacional", por exemplo, é decisiva desde pelo menos os anos 1800,
• •• • • • •• •• • • • quando emerge no imaginário político brasileiro o projeto nacional, ou seja,
todo aquele conjunto de símbolos que produz coesão e dá uma identidade
(supostamente) unívoca aos brasileiros. Mas mesmo a "língua nacional", cate-
goria hoje tão familiar, não deixa de nos apresentar questões. Dizer "língua
nacional" no século XIX, quando o que estava em jogo era a independência
perante Portugal e o projeto romântico de criação de uma nação distinta da
antiga metrópole, não evoca a mesma gama de sentidos de "língua nacional"
no contexto da proibição de falares estrangeiros na Era Vargas, na primeira
metade do século XX.Trata-se, formalmente, da mesma expressão: "Língua
nacional". No entanto, esses dois cenários evocam efeitos de sentido' muito
distintos porque o que está em jogo é justamente o fato de se tratar de senti-
dos distintos de nação e, consequentemente, de outros sentidos para Iinqua',
Eis que o povo é um e todos têm uma só língua,
Gênesis 11:6
Visivelmente, as línguas sempre entretêm alguma relação com os
[] não mais o choque de dois mundos, separados pela
espaços políticos, com os territórios e com a vida material das diferentes
barreira das línguas, mas um confronto estratégico sociedades históricas. Os debates sobre a proibição de outras línguas no
em um só mundo, no terreno de uma só língua, Brasil atravessam mais de três séculos - do Marquês de Pombal a Getúlio
tendencialmente Una e Indivisível, como a República,
Michel Pêcheux Vargas (cf. Campos, 2006) -, passando pela discussão legislativa em torno
do nome da língua oficial do Brasil nas décadas de 1930 e 19404, até o mais
recente debate acerca dos estrangeirismos em 1999 (cf. Possenti, 2004). A
INTRODUÇÃO

os EMBATES em torno das línguas são tão antigos quanto as próprias lín-
guas. O tema da língua universal, perfeita, capaz de produzir a comu-
nhão e o entendimento pleno entre os falantes, de representar, sem falhas,
2 Falar em efeito de sentido e não em sentido significa assumir que uma palavra não tem um sentido que lhe
seja próprio. Os efeitos de sentido sempre dependem de condições de produção específicas. Tomemos o
exemplo da palavra "liberdade". Se ela é dita no Brasil do século XIX, seus efeitos de sentido estão neces-
sariamente afetados pelo arranjo histórico específico que associa essa palavra a outras (como "alforria"
ou "insurreição"). Mas dizer algo como: "Exigimos liberdade de expressão" hoje, em 2021, instaura outra
o pensamento parece marcar, desde os primórdios da história ocidental, trama de relações. Ainda que esse enunciado possa remeter aos sentidos anteriormente evocados, ele
um efeito estruturante da nossa condição de sujeitos de linguagem', Afeta- também permite um novo feixe de relações ("censura" e "comunismo", por exemplo, no caso do discurso
Conservador; e "ditadura" e "autoritarismo", por exemplo, no caso dos discursos progressistas). Ou seja,
dos por um desejo de unidade e identidade, de um retorno ao tempo mítico só há sentido quando há condições históricas para que certos efeitos se produzam. Para nós, portanto, o
em que "toda a terra tinha uma só língua e servia-se das mesmas palavras", sentido não é uma condição imanente atrelada à palavra. Ele é um efeito contingente (porque pode sempre
Ser outro), mas não aleatório (porque não pode ser qualquer um). Para mais detalhes a respeito dessa dis-
como sugere o texto bíblico, tentamos, de diversas formas ao longo da ;ussão, ver Pêcheux (2009).
A respeito dessa discussão, ver a excelente tese de Payer (1999).
I Ver a esse respeito Eco (2018). • Dias (1996) investiga de maneira pormenorizada a questão da denominação da língua nacional nas déca-
das de 30 e 40 do século XX. Trata-se de um estudo vigoroso que merece destaque.

142
Fábio Ramos Barbosa Filho
PrOjetosde lei contrários à "linguagem neutra" no Brasil 143
história é testemunha de verdadeiras batalhas não apenas em torno da é sempre política, ou seja, mantém um conjunto de relações de força que
língua, mas pela língua. E é justamente nessa série de gestos políticos que definem nossa relação com os objetos que nos circundam. A segunda frente
este capítulo procura se inserir, tomando como ponto de partida um acon- diz respeito à emergência, nos projetos de lei, de uma política de língua. Tra-
tecimento recente: o debate legislativo, que começa a ganhar corpo no ano ta-se, portanto, de um debate que poderia ser incluído no escopo das cha-
de 2020, a respeito da "linguagem neutra" no Brasil. madas políticas linguísticas, definidas por Louis-Jean Calvet como a "deter-
Não objetivo aqui dar um veredicto ou "opinar" sobre os projetos de minação das grandes decisões referentes às relações entre as línguas e as
lei ou sobre a própria linguagem neutra. Portanto, não falarei do problema sociedades" (Calvet, 2007: 11).Opto, no entanto, por outro caminho. Tratar
da adequação ou inadequação da inclusão do gênero neutro no português as políticas linguísticas enquanto políticas de língua dá "à língua um sentido
brasileiro. Neste texto eu gostaria apenas de desconfiar. Desconfiar de político necessário. Ou seja, não há possibilidade de se ter língua que não
que, talvez, o debate legislativo em torno da linguagem neutra não seja esteja já afetada desde sempre pelo político" (Orlandi, 2007: 8).
um debate linguístico (se por linguístico podemos também entender gra-
matical). Trata-se, sem dúvida, de um debate semântico, ligado tanto aos
LíNGUA E POLíTICA
sentidos de objetos como 'linguagem' e 'língua', quanto aos de 'neutro', 'neu-
tra', 'aluno', 'aluna', 'estudante', 'nós', 'eles', 'ideologia', 'gênero', 'nação', entre Uma língua não é um "código" ou "instrumento" cuja função é "comu-
outros. É muito difícil, tomando como material de análise os projetos de lei nicar". Para não entrar em debates linguísticos infrutíferos, direi apenas
sob análise, situar o debate sobre a linguagem neutra em torno de questões que uma língua, além de ser uma estrutura formal dotada de autonomia
estritamente gramaticais, ainda que argumentos gramaticais sejam neles relativa, é condição do dizível. Só se diz, portanto, numa língua. Mas uma
frequentemente reivindicados, conforme veremos. língua é também o lugar onde se produz O falante como um efeito dessa
Um dos trabalhos do analista de discurso é suspender tudo aquilo que estrutura inscrita na trama das relações históricas.
parece fazer sentido demais. Tudo o que é óbvio, transparente e evidente Assim, uma língua nacional, para voltarmos àquele objeto de tantas
nos interessa porque para nós é exatamente nesses lugares que funcionam disputas, não é apenas a língua que uma população utiliza para "se comu-
os mecanismos ideológicos. A ideologia não está naquilo que se esconde, nicar". Ela é um objeto histórico que produz laço social e está intimamente
mas naquilo que está saturado, em tudo aquilo (em) que somos capazes de incorporada ao conjunto de mitos que sustentam um discurso sobre essa
(nos) reconhecer sem grandes interrogações'. Leio os projetos de lei, por- mesma nação, sobre seu povo, sobre seu passado, presente e futuro. É nes-
tanto, como um espaço de interrogações. Ao invés de supor como "dados" sas condições que se torna possível dizer - conforme veremos nos proje-
ou "informações" as asserções ali presentes, desconfio dos sentidos ou da tos de lei - que não basta proteger a língua, mas uma língua, porque ela
"mensagem" que eles parecem conter. "reflete" a memória de uma nação ou de certo imaginário nacional. A lín-
As tensões em torno da linguagem neutra parecem orbitar em duas gua é, ao mesmo tempo, o lugar onde os embates se dão (os sujeitos não
frentes: a primeira diz respeito à construção de um saber metalinquistico". travam disputas políticas e ideológicas "na linguagem", mas nas línguas
isto é, de um saber concernente à relação dos falantes de determinada lín- historicamente existentes), o objeto e a causa desses embates.
gua com essa língua. Na medida em que os falantes não são simplesmente
organismos dotados de uma capacidade biopsicossocial de falar, mas sujei-
FALARES PROIBIDOS
tos afetados por um conjunto de determinações históricas, essa relação
Assumo, a título de hipótese, o fato de que há uma memória consti-
5 Essa concepção de ideologia está intimamente amparada nas formulações teóricas de Louis AlthuS- tutiva, uma espécie de discurso fundador" das políticas de língua no Brasil
ser. Para esse filósofo, a ideologia não é nem um instrumento de mistificação nem uma falsa consciên-
cia, mas uma estrutura de efeitos de reconhecimento que age nos sujeitos "por um processo que lhes ;----------------
escapa" (Althusser, 2015, p. 193). .Deacordo com Orlandi, um discurso fundador "cria uma nova tradição, ele ressignifica o que veio antes
6 Auroux (2009). e Institui aí uma memória outra" (Orlandi, 2003: 13).

144 Fábio Ramos Barbosa FilhO PrOjetosde lei contrários à "linguagem neutra" no Brasil 145
situada justamente na interdição de certos falares e, consequentemente, No Diretório, a língua não é significada simplesmente como um "meio de
de certos falantes. Isolo, como demonstração disso, dois acontecimen- expressão" ou "instrumento de comunicação". Ela adquire um valor civili-
tos fundamentais na história linguística do Brasil: o Diretório dos Índios zatório, compondo o conjunto dos meios "que os podiam civilizar". Mas não
("Directorio, que se deve observar nas povoaçoens dos inâios do Pará, e Mara- apenas. A língua geral não é "diabólica" apenas por implicações espirituais,
nhaõ em quanto Sua Magestade naõ mandar o contrario"), no século XVlII8 e mas porque intervém como um obstáculo à unidade.
as políticas de língua do Estado Novo, entre 1937e 1945. Um dos objetivos do Diretoria era claramente a assimilação dos povos
O texto do Diretoria diz que destituir um povo de sua língua é "um dos originários à então rudimentar estrutura social que anunciava um projeto
meios mais eficazes para desterrar dos Povos rústicos a barbaridade dos seus unívoco de Brasil. Isso poderia produzir, com o tempo, uma completa indis-
antigos costumes". Desde o texto do Diretôrio, está estabelecida uma relação tinção entre índios e homens. O acesso à categoria homem dependia, por-
tênue entre língua e costumes. Indo mais longe, considera-se a língua por- tanto, de uma conversão ao idioma da Coroa. Isso implicava tanto a assimi-
tuguesa como uma condição necessária à civilização dos "Povos rústicos". lação da língua quanto a enfática necessidade de casamentos inter-raciais,
Indo mais longe ainda, o Diretoria parece dizer que talvez esses povos sejam para que a homogeneidade fosse total e não houvesse, senão, homens. À
rústicos justamente por serem falantes dessas línguas rudimentares que unidade da língua nacional corresponde um imaginário de unidade nacio-
devem, então, ser substituídas por outra, capaz de dotá-los de civilidade. nal, sempre ameaçado de divisão por quem quer que seja.
No entanto, os jesuítas agiram contrariamente, adotando a língua
geral como forma de contato", O Marquês de Pombal qualifica a língua OBSERVAÇÕES A RESPEITO DOS PROJETO DE LEI
geral como "invenção verdadeiramente abominável, e diabólica, para que
privados os Índios de todos aqueles meios, que os podiam civilizar, permane- Noimenso universo do que podemos amplamente chamar de "estudos
linguísticos", há uma grande diversidade de conceitos de "linguagem". Se
cessem na rústica, e bárbara sujeição, em que até agora se conservavam". E
prossegue, afirmando: concebemos, por exemplo, a linguagem como a capacidade inata que todo
falante de uma língua possui de produzir frases gramaticalmente acei-
táveis, seria bem estranho falar em "linguagem neutra", já que a lingua-
Para desterrar esse perniciosíssimo abuso, será um dos principais cuidados dos
gem é uma espécie de imposição biológica, orgânica, que constitui todo e
Diretores, estabelecer nas suas respectivas Povoações o uso da Língua Portu-
qualquer indivíduo. Inviabiliza-se, assim, o adjetivo "neutra" ao lado dessa
guesa, não consentindo por modo algum, que os Meninos, e as Meninas, que
palavra. Não é, então, desse sentido de "linguagem" que se trata quando
pertencerem às Escolas, e todos aqueles índios, que forem capazes de instrução
se reivindica uma reflexão em torno da "linguagem neutra". Nesses casos,
nesta matéria, usem da língua própria das suas Nações, ou da chamada geral;
"linguagem" é quase sempre sinônimo de "língua", "meio de expressão",
mas unicamente da Portuguesa, na forma, que Sua Majestade tem recomendado
"idioma" ou "norma culta". Ou seja, há diversos sentidos de "linguagem"
em repetidas ordens, que até agora se não observaram com total ruína Espiritual,
nosprojetos de lei, e esses sentidos parecem marcar tanto os "compromis-
e Temporal do Estado,
sos ideológicos" dos discursos ali sustentados, quanto a disputa em torno
da "linguagem neutra" por aqueles que a reivindicam.
Aparentemente a unidade da nação sempre esteve associada à uni, Uma das primeiras coisas que me chamam a atenção nos projetos de
dade daquilo que as diferentes práticas políticas de Estado chamam de leiem destaque é certo efeito de homogeneidade em torno da expressão "lin-
"língua", intervindo como parte constitutiva do imaginário nacional. guagem neutra", isto é, um efeito que ignora o fato de que essa expressão
articula duas palavras distintas. Uma das coisas que me interessa neste
Para uma abordagem histórica abrangente a respeito do Diretório, ver Coelho (2005), O texto do Diret~:
8
breve capítulo é, então, desfazer esse efeito, interrogando as duas palavras
rio está disponível na Biblioteca Digital do Senado Federal: https://bityILcom/Xumya, acesso: 20 jan. 202
9 Sobre a língua geral, ver Mariani (2004), qUecompõem essa expressão: "linguagem" e "neutra".

Pr'
146 Fábio Ramos Barbosa FilhO O)etos de lei contrários à "linguagem neutra" no Brasil 147
Para este capítulo, tomei como ponto de partida seis projetos de lei: Me deterei, em um primeiro momento, nas formas de denominação
1. Projeto de lei n° 5248/2020, .proposto pelo deputado federal Guilherme
da própria linguagem neutra nos projetos de lei sob análise. Vejamos:
Derrite (PP-SP);
2. Projeto de lei n° 5198/2020, proposto pelo deputado federal Junio Amaral 1. Projeto de lei no 5.248/2020 (Pl1): "linguagem neutra"; "dialeto não binário";
(PSL-MG); "qualquer outra [linguagem] que descaracterize o uso da norma culta"; "[. ,,] viola-
3. Projeto de lei n° 721/2020, proposto pelo deputado estadual Altair Mo-
ção do direito do estudante"; "neolinguagem que pretende modificar a utilização
raes (REPUBLlCANOS-SP);
das vogais temáticas, ou, mais especificamente, implementar a chamada 'lingua-
4. Projeto de lei n° 211/2021, proposto pela deputada federal Chris Tonietto
(PSL-RJ); gem neutra": "[. -l modelo [que] não possui qualquer apoio científico, carecendo
5. Projeto de lei n° 1/2021, proposto pela vereadora Jéssica\ Ramos Moreno de fundamento linguístico, o que o coloca fora do sistema gramatical"; "linguagem
(PP-Londrina); não binária"; "posição sociopolítica, que, nem de longe, representa uma demanda
6. Projeto de lei n° 54/2021, proposto pelo vereador Nikolas Ferreira (PRTB- social, mas de minúsculos grupos militantes, que tem por objetivo avançar suas
-Belo Horizonte);
agendas ideológicas, utilizando a comunidade escolar como massa de manobra";
o primeiro ponto a se observar é que todos os projetos foram propos- "expressão de pensamento"; "modismo ideológico".
tos por parlamentares vinculados a partidos reconhecidamente conserva- 2. Projeto de lei no 5.19812020 (PL2): "[".] novas formas de flexão de gênero
dores. No entanto, não podemos tomar esse fato por si só. Régine Robin já e de número das palavras da língua portuguesa"; "[".] linguagem que, corrom-
nos alertava desde 1973que há um risco imenso na compreensão dos fun- pendo as regras gramaticais, pretendam se referir a gênero neutro, inexistente na
cionamentos lexicais como indicadores de um comportamento político. língua portuguesa"; "[".] uma visão linguística que reconheceria no português um
Essa atitude aponta para um ingênuo isomorfismo entre léxico e ideologia. terceiro gênero, o neutro, ao lado dos gêneros masculino e feminino"; "casuística
Nessa perspectiva, se um texto contém a palavra x, logo é vinculado a deter- inovação"; "[".] visão distorcida da realidade".
minada posição ideológica, ou seja, o vocabulário de um texto seria "uma 3. Projeto de lei no 721/2020 (PL3): ''[".] novas formas de flexão de gênero e de
espécie de etiqueta fixada sobre cada grupo político, na qual se desdobraria número das palavras da língua portuguesa"; "ações inconstitucionais"; "linguagem
uma visão do mundo coerente, uma linguagem específica" (Robin, 1977:44). neutra"; "Tentativas de imposição"; "Português ensinado errado"; "Tentativa calcu-
Sustento aqui outro ponto de vista, baseado em (Pêcheux, 2009: 146-147): lada de inserir a ideologia de gênero nas escolas",
4. Projeto de lei no 211/2021 (PL4): "Linguagem neutra"; "Subproduto intelec-
o sentido de uma palavra, de uma expressão, de uma proposição etc., não existe tual"; "aplicação prática temerária da dita 'teoria de gênero' no âmbito da comu-
em si mesmo (isto é, em sua relação transparente com a literalidade do signifi- nicação humana"; Linguagem "incompatível com a índole do nosso idioma"; "uma
cante), mas ao contrário, é determinado pelas posições ideológicas que estão em equivocada concepção puramente instrumental da linguagem e [que] ameaça
jogo no processo sócio-histórico no qual as palavras, expressões e proposições gravemente a eficácia da própria língua portuguesa como veículo para a forma-
são produzidas, isto é, reproduzidas. Poderíamos resumir essa tese dizendo: as ção intelectual e aquisição da cultura"; "engenharia comporta mental"; "influências
palavras, expressões, proposições etc. mudam de sentido segundo as posições sus- ideológicas"; "terceiro gênero"; "linguagem ilegítima"; Linguagem "inexistente";
tentadas por aqueles que as empregam. "idioma ilegítimo a fim de atender a fins puramente ideológicos".
5. Projeto de lei no 1/2021 (PL5): "[.,,] novas formas de flexão de gênero e de
Isso quer dizer que não importa dizer quais palavras ou expressões número das palavras da língua portuguesa"; "ações inconstitucionais"; "linguagem
ocorrem em um texto, mas como elas estão funcionando na trama textual. neutra"; "Tentativas de imposição"; "Português ensinado errado"; "Tentativa calcu-
É nessa direção que podemos ter em um texto a ocorrência da mesma lada de inserir a ideologia de gênero nas escolas";
palavra diversas vezes, e ainda assim termos diferentes efeitos de sentido. 6. Projeto de lei no 5412021 (PL6): "linguagem neutra"; "conteúdos adversos
Repetição formal não implica repetição de sentido. aos estudantes"; "medida que atente ao direito do cidadão [belo-horizontino],

PrO'
148 Fábio Ramos Barbosa FilhO Jetosde lei contrários à "linguagem neutra" no Brasil 149
sobretudo, dos estudantes, em obter uma educação que o qualifique para os engajam na arena ideológica, sustentando, às vezes pela ausência, valo-
desafios profissionais"; Prejudica o "desenvolvimento social da população brasi-
res e critérios quase nunca linguísticos. Invariavelmente os argumentos
leira, como um todo"; "Linguagem completamente errônea e descabida para a linguísticos são subterfúgios para que discutir coisas como a "nação" e a
formação do aluno"; Linguagem que "atende a uma pauta ideológica específica "ideologia de gênero". Esse paradoxo parece sustentar o debate contra a lin-
que tenta segregar ainda mais as pessoas"; Linguagem que "em absolutamente guagem neutra. Ao mesmo tempo em que se quer negar a ideologia, como
nada contribui para o desenvolvimento estudantil do aluno".
se ela fosse um atributo exclusivo do adversário ("eles"), é preciso negar
qualquer caráter ideológico dos PL, recorrendo a um debate exclusiva-
Há nesses projetos uma dupla tensão em torno do verbo "proteger", mente gramatical, jurídico e pedagógico.
sempre articulado a um nós ("protetor") distinto de um eles. Nessa tensão , Para "acusar" o debate de "ideológico", os opositores da linguagem
ora protege-se a língua, ora protege-se o indivíduo (quase sempre denomi- neutra (e aqui eu enfatizo o PLl) recorrem quase sempre à linguística.
nado, nos projetos de lei, de "estudante"). No PLl, defende-se sobretudo o De acordo com o PLl, o resultado da linguagem neutra será "uma comu-
estudante e não tanto a língua como o objeto de "proteção" ou "preserva- nhão de jovens programados para escrever em dissonância com a norma
ção". O PL4 toma como objeto de proteção e valorização a própria língua culta". Aqui a distinção é entre a linguagem neutra e a "norma culta", e o
portuguesa em sua "integridade". Ou seja, proibir a linguagem neutra entra que parece estar em jogo é a questão gramatical. É muito comum, aliás,
no cômputo tanto da proteção quanto da valorização da língua. Ainda que tanto "norma culta" quanto "ortografia" figurem nos projetos como
assim, quase não há nada de debate linguístico. O PL5 busca "salvaguardar metonímia de "língua portuguesa". Há uma espécie de generalização que
[...] a integridade do idioma pátrio e assegurar a digna transmissão do legado toma alterações pontuais na ortografia como gestos que desembocam em
cultural da língua portuguesa às gerações subsequentes" (PL5).Já no PL6, a uma "neolinguagem que pretende modificar a utilização das vogais temá-
premissa é a da utilidade: a linguagem neutra não é útil porque é um empe- ticas" (PLl). No entanto, no mesmo projeto, a linguagem neutra é definida
cilho aos "desafios profissionais" dos alunos (oque já nos remete a uma rela- como "posição sociopolítica, que, nem de longe, representa uma demanda
ção entre a linguagem neutra, os projetos de lei e os sentidos de escoloi". social, mas de minúsculos grupos militantes, que tem por objetivo avançar
Protege-se, portanto, não apenas a língua, que é significada nos pro- suas agendas ideológicas, utilizando a comunidade escolar como massa de
jetos como "linguagem culta da língua portuguesa", "norma culta" (PLl); manobra" e como "modismo ideológico".
"regras gramaticais consolidadas", "língua de uma nação", "o liame comuni- Mas ele é ideológico "do lado de lá", ou seja, do lado dos que defendem
cacional mais elementar de um povo" e "um dos bens mais preciosos da nossa a linguagem neutra (e que, por inversão, atacam a "língua portuguesa" ou
nação" (PL2),mas algo, como o "direito dos estudantes" (PLl) e os "valores a "norma culta" que, portanto, não são ideológicas). É interessante pen-
tradicionais" (PL5)e alguém, "os infantes" (PL4),"os estudantes" (PL6).Além sar nos sentidos da palavra ideologia no PLl e, de modo geral, nos proje-
disso, protege-se de alguém, deles, "os defensores da ideologia de gênero" tos como um todo. Quando se diz "posição sociopolitica, que, nem de longe,
(PL5)ou "quem se regozija na anarquia selvagem do 'tudo vale'" (PL2). representa uma demanda social, mas de minúsculos grupos militantes, que
Ora, nesses projetos, "defender a língua" é defender tanto a "norma tem por objetivo avançar suas agendas ideológicas, utilizando a comuni-
culta" quanto coisas que a ultrapassam, como os "valores tradicionais". É dade escolar como massa de manobra" ou "modismo ideológico", ideológico
nesse largo campo de críticas que a linguagem neutra adquire um caráter comparece como adjetivo, qualificando as "agendas" e o "modismo". É jus-
ideológico, caráter que os projetos tentarão denunciar mediante argumen- tamente nessa relação que começam a comparecer no PLl - mas isso é
tos linguísticos. No entanto - e paradoxalmente - os projetos de lei se regUlar em todos os projetos aqui analisados - uma insistente tensão
entre um nós (agenciado pelas posições sustentadas nas propostas legis-
10 Ver a esse respeito o capítulo 9 deste livro. lativas)e um eles.

150 Fábio Ramos Barbosa FilhO 'Pr'


Ojetosde lei contrários à "linguagem neutra" no Brasil 151
Vejamos o que diz, por exemplo, o PL4: 'tudo vale'" (PL3); "Influências ideológicas"; "as ditas 'minorias'" (PL4); "os
defensores da ideologia de gênero" (PL5). No PL6, o eles pode ser obtido
Ora, imaginemos se restasse a cargo de toda e qualquer entidade decidir sobre as
por paráfrase como aqueles que sustentam uma "pauta ideológica especí-
regras ortográficas. Em pouquíssimo tempo estaria instaurado o caos ortográfico!
fica que tenta segregar ainda mais as pessoas". Esse efeito de inversão é
Mas não é só: e a confusão que se criaria no que diz respeito aos infantes em fase
interessante porque nos permite obter, por paráfrase, uma estrutura do
de alfabetização? A situação piora quando se passa a falar de uma linguagem tipo "se eles defendem y, nós defendemos x".
ilegítima, porque inexistente, na qual busca-se substituir a vogal que designa os
O PL5 retoma em diversos momentos o PL2. Mas ele inova na denomi-
gêneros masculino e feminino por meros 'x' ou 'e', podendo variar para outras nação da "linguagem neutra":
atrocidades análogas (PL4).
A denominada 'linguagem neutra', além de ser um português ensinado errado,
suprime as diferenças entre homens e mulheres, impõe uma assepsia de gênero
Contra as "atrocidades", a premissa de todos os projetos é que a lin-
que destrói o princípio de separação entre meninos e meninas. Impõe o caos e a
guagem atual não segrega, o que já nos coloca uma questão importante em
confusão sexual, sobretudo na cabeça de crianças (PL5).
torno dos sentidos de linguagem. Os projetos não dizem que linguagens ou
línguas não segregam. O que eles nos dizem (sem dizer) é que há sim lingua-
gens capazes de segregar (sendo a linguagem neutra uma delas, na medida O PL5 também tensiona os sentidos de "neutro". Neutro não diz respeito
em que produz, de acordo com o PL4, uma polarização político-ideológica). apenas à presença de uma vogal temática específica, mas à não marcação
No entanto, a língua portuguesa não é uma dessas linguagens. Todos os pro- de gênero. Nas posições pró e contra a linguagem neutra, a questão do "neu-
jetos - mas sobretudo o PL3 - sustentam, por exemplo, que "não há qual- tro" parece apontar para caminhos distintos: de um lado, parece significar a
quer machismo na nossa língua portuguesa" e que, portanto, o "acréscimo de tentativa de neutralização de qualquer elemento gramatical de gênero (mas-
um terceiro gênero" não seria necessário, o que nos permite uma pergunta: culino/feminino), ou seja, uma tentativa de des-marcar tanto a suposta neu-
não seria necessário para quem? Aqui retorna a tensão nós/eles. tralidade do gênero masculino quanto a binariedade feminino/masculino.
Ao longo dos projetos, o nós se define como aqueles que valorizam a Digo des-marcar e não desmarcar porque aparentemente não se trata sim-
"língua portuguesa" e protegem o "direito dos estudantes" (PLl); o "conjunto plesmente de "apagar", "retirar" um elemento gramatical (seja ele um artigo,
do todo nacional" (PL2); aqueles que são "inclusivos" (PL3); aqueles que defen- um pronome ou uma desinência), mas de marcar de outro modo. Essa é, ou
dem a "integridade do idioma pátria" (PL4). Ora, se invertermos essas for- parece ser, a posição majoritária de quem defende a adoção da "linguagem
mulações por paráfrase, será possível admitir que há, possivelmente, um neutra", para quem a "linguagem" não é "neutra", mas enviesada, na medida
eles que, diferentemente, "não valoriza a língua portuguesa", "não defende em que exprime uma posição ideológica que é a do masculino como "neutro".
o direito dos estudantes", mas que também "não constitui ou não faz parte Por outro lado, há aqueles que significam "neutro" de outro ponto de vista.
do todo nacional", e assim por diante. Nos PL5 e PL6, obtemos por pará- Os que criticam a "linguagem neutra" partem, curiosamente, de um debate
frase um nós que defende "a língua portuguesa" e "os valores tradicionais" gramatical, quase sempre ligado à afirmação de que no português brasileiro
(PL5) e "os estudantes" e "o direito dos estudantes" (PL6). Já o eles é definido não há gênero neutro, mas apenas masculino e feminino e que o coletivo não
como "[...] os defensores dessa ideia"; "Aqueles que a [língua] pretendem marcado sempre ocorre no masculino. Dizem, além disso, que não há corre-
utilizar para militância ideológica e exaltação de agenda política, modi- lação, nas línguas, entre "sexo" e "gênero gramatical". No entanto, os oposito-
ficando a realidade para moldá-Ia a seus propósitos escusos"; "[...] minúS- res da "linguagem neutra" não sustentam um debate propriamente linguís-
culos grupos militantes, que tem por objetivo avançar suas agendas ideo- tico. Ao mesmo tempo em que afirmam não haver correlação entre "sexo" e
lógicas, utilizando a comunidade escolar como massa de manobra" (PLl); "gênero gramatical", afirmam que a "linguagem neutra" seria, no campo da
"[...] tentativas isoladas" (PL2); "quem se regozija na anarquia selvagem do língua, a porta de entrada para a "ideologia de gênero".

Pro'
152 Fábio Ramos Barbosa FilhO Jetosde lei contrários à "linguagem neutra" no Brasil 153
Quase sempre esse argumento é uma desculpa para falar de qual- "inclusão de pessoas que não se identificam com nenhum dos dois gêneros
quer coisa, menos de questões gramaticais: a degenerescência dos valores ou, no caso do plural, para se referir a ambos de modo neutro". Ambos os
morais, dos bons costumes, a erosão da boa e velha tradição e outras pos- segmentos são, portanto, significados como "visão distorcida da realidade".
turas ligadas à agenda conservadora. Para os propositores desses projetos, Há um enunciado fundamental que sustenta todos os projetos de lei
a "linguagem" já é neutra, mas os partidários da "ideologia de gênero" que- como uma espécie de pressuposto: o gênero neutro não existe na língua
rem substituir essa neutralidade intrínseca, seja pela "ideologia de gênero", portuguesa. É interessante que, ao mesmo tempo, esse enunciado sustenta
seja por uma "linguagem errônea". No entanto, o PL5 afirma: "Terminar outro: o gênero neutro não deve existir (normativo) e pressupõe um ter-
uma palavra com 'e' não faz com que ela seja 'neutra'''. E continua: "Verifi- ceiro: o gênero neutro existe na língua portuguesa, é o que eles dizem. Ou
ca-se, então, que é uma tentativa de inserir a ideologia de gênero nas esco- seja, o projeto, a todo momento, reivindica a tensão entre o "nós" detentor
las". Há um salto da "análise gramatical" ao "verifica-se". Talvez seja mais de um saber sobre a língua portuguesa (e seu guardião) e um "eles", igno-
importante pensar no que não se discute no PL5, que é justamente tudo rante e corruptor das regras gramaticais (mas também morais). O PL2
o que intervém como pré-construido, O PL5 se coloca como uma medida prossegue, afirmando: "A ocorrência de gêneros neutros em outras lín-
contra a "ideologia de gênero". guas, como na alemã - descendente direta do latim (! l), sequer segue essa
Já no PL2 há uma tensão entre "gênero das palavras" e gênero das lógica",visto que "não há um gênero neutro".
"pessoas que não se identificam com nenhum dos dois gêneros". Essa tensão Ou seja, se há apenas dois gêneros, precisamos apenas de dois gêneros
parece organizar o projeto de lei entre uma interdição de uma modificação gramaticais. No entanto, o que eles dizem é que a relação de gênero não
de regras ortográficas (como, por exemplo, substituição de sêde por sede, expressa o gênero das pessoas. Tanto que há uma ênfase nessa caracterís-
vôo por voo, que não suscitam debates acalorados na comunidade legisla- tica quando eles declaram: "AONUprevê, catalogados, mais de 20 gêneros,
tiva e nem no seio dos partidos conservadores) e novas formas de flexão de o que ocasionaria uma profunda confusão na língua caso se tenda a todos
gênero. Há, portanto, certas mudanças capazes de "romper o liame comuni- eles" (PL2).Aqui o argumento gramatical é imperativo. Se ao mesmo tempo
cacional" (PL2).Outras, não. se diz que há uma demanda por reconhecimento que vê na "linguagem neu-
tra" um espaço de identificações ("todes" ou "todxs" em vez de "todos" ou
Este projeto de lei é apresentado em resposta a tentativas isoladas de impor ao con- "todas", por exemplo), ao mesmo tempo, o PL2 funda uma interpretação
junto do todo nacional uma visão linguística que reconheceria no português um ter- curiosa, como se a adoção de e ou x no lugar das desinências de gênero
ceiro gênero, o neutro, ao lado dos gêneros masculino e feminino, A justificativa seria objetivasse "destruir a língua" quando o que parece estar em jogo é a ado-
a inclusão de pessoas que não se identificam com nenhum dos dois gêneros ou, no ção de mais uma forma e não o apagamento de outras. O que (ou quem) se
caso do plural, para se referir a ambos de modo neutro, Essa é uma visão distorcida perde deixando a linguagem neutra avançar?
da realidade e que, no fundo, tem como objetivo principal provocar caos amplo e
generalizado nos conceitos linguísticos para que, em se destruindo a língua, se des-
CONCLUSÃO
trua a memória e a capacidade crítica das pessoas, O rompimento de conceitos e
sentidos só interessa a quem se regozija na anarquia selvagem do 'tudo vale' (PL2), A unidade da nação sempre esteve associada à unidade da língua: um
só povo, uma só nação, uma só língua. A ideia de uma língua "tendencial-
Textualmente, o pronome demonstrativo "essa" (em negrito no excerto Inente Una e Indivisível, como a República" (Pêcheux, 1990: 11)sustenta
acima) é capaz de retomar tanto "tentativas isoladas de impor ao conjunto não apenas o discurso do Brasil como país monolíngue", mas também
do todo nacional uma visão linguística que reconheceria no português um
;;---------
terceiro gênero, o neutro, ao lado dos gêneros masculino e feminino" quanto A respeito da ilusão do monolinguismo, ver Müller de Oliveira (2010).

Pr·
154 Fábio Ramos Barbosa FilhO Ojetos de lei contrários à "linguagem neutra" no Brasil 155
um discurso que dissimula diferenças em nome de um imaginário nacio- pauta intimamente ligada ao avanço da agenda conservadora. Ao mesmo
nal ideal fundado em uma visão de unidade que transforma diferenças tempo, do outro lado, o favorável à "linguagem neutra", nota-se um pro-
em desigualdades. Estaríamos diante de uma diferença qualitativamente fundo empenho em levar a sério o fato de que isso que se chama de "língua"
marcada como uma falta que deve ser restituída, ainda que compulsoria- ou "linguagem" pode cobrir uma gama de sentidos muito ampla. Precisa-
mente. Nesse imaginário, o outro não é apenas o diferente, mas o inimigo. mos escutar todas as tensões em andamento para não simplificarmos um
Ora, é justamente em torno dessa conjuntura que se estruturam muitas cenário extremamente complexo.
das premissas dos projetos de lei aqui discutidos. Ainda que de modo sutil , No entanto, há outro preconceito ou pelo menos uma posição relativa-
há uma espécie de "filosofia espontânea" das relações sociais orientando o mente hostil à "linguagem neutra". Embora seja crítico a ela, o argumento
debate "linguístico". Toda a discussão sobre gênero gramatical ancora-se não é o da "destruição dos valores", mas o de sua inutilidade. Para essas
em debates sobre os pilares da nação, que desemboca na manutenção de pessoas, a "linguagem neutra" é uma espécie de panaceia, uma pirotecnia
um imaginário de sexualidade baseado, evidentemente, na "normalidade" que em nada resolve os impasses reais da luta política. Essa crítica é muito
das relações heteronormativas. parecida com a existente desde a década de 1990: a do "politicamente
A "filosofia espontânea" da língua presente nesses projetos é a mesma correto". Em ambos os casos, seja na "linguagem neutra", seja no "politi-
dos românticos: a língua seria uma espécie de "expressão" da nação. Qual- camente correto", a questão posta é: mudar um nome muda alguma coisa
quer alteração na língua ameaçaria a unidade e o núcleo integrador dessa na prática das relações sociais? Ou seria preciso mudar as relações sociais
nacionalidade que, no romantismo e no Brasil contemporâneo, parecem para que os nomes pudessem significar de outra maneira?
exercer um papel dominante. A "confusão" entre "língua", "linguagem", Há um ponto de convergência entre a radicalização da extrema direita
"norma culta" não é, de fato, calculada, deliberada. Ela funciona no ima- no Brasil, que não tem espaço apenas nas redes sociais, mas ampla repre-
ginário político, sobretudo no discurso conservador, como um lugar para sentação oficial no legislativo, executivo e judiciário. Há um avanço disso
onde converge a própria interdição do outro: eles. que eu gostaria de chamar de "fascismo linguístico", que nada mais é do
O preconceito em relação à "linguagem neutra" vem de um enten- que o desdobramento do fascismo. Há uma paranoia estruturada em torno
I -

dimento da "linguagem" como expressão de um conjunto de valores que do nós e eles, efeito decisivo de nossa conjuntura, que lê qualquer gesto de
acaba por costurar a própria ideia de "nação". Valores que os partidários da reivindicação do reconhecimento à diferença como uma tentativa de des-
"linguagem neutra" querem, supostamente, destruir. Cria-se, a partir daí, truição do nós. Curiosamente, mas nem tanto, quem sofre efetivamente a
uma estrutura binária muito comum no discurso político contemporâneo, violência são sempre eles.
o nós e o eles. Nós, os verdadeiros brasileiros, lutamos pela língua correta, Correndo o risco de ser categórico, direi que esses projetos de lei e
"normal", enquanto eles querem destruir a nossa língua para destruir os os vindouros não estão efetivamente preocupados com a "língua". Assim
nossos "valores", fragmentando nossa nação. Tudo se passa como se os comonão estavam preocupados com a língua o Marquês de Pombal quando
valores fossem intrínsecos, despidos de qualquer historicidade. Parece decretou o Diretório dos Índios, proibindo o uso de línguas indígenas no Bra-
também que a "nação" é um bloco homogêneo, ameaçado de fragmentação sil;ou Getúlio Vargas, quando proibiu que estrangeiros falassem e ensinas-
por eles. Bom, a gente sabe muito bem de onde vem toda essa interpretação sem suas línguas maternas. Embora esses gestos políticos incidam sobre a
do mundo: do fascismo e seus desdobramentos. O preconceito em relação à língua, não se trata de um debate linguístico. Trata-se, faço questão de rea-
linguagem neutra, sobretudo em sua forma legislativa, advém de um certo firmar, de uma disputa político-ideológica que desemboca em uma política
"fascismo linguístico" que marca a ideologia conservadora brasileira. de língua. A luta não é pela preservação da língua, mas pela preservação
Não é coincidência que todos os projetos de lei contrários à "lingua- do que se supõe perder caso se incorporem à língua outras formas de fle-
gem neutra" no Brasil tenham sido propostos em 2020. Trata-se de uma leãode gênero. É justamente nessa tensão que os projetos sustentam uma

156 Fábio Ramos Barbosa FilhO PrOjetosde lei contrários à "linguagem neutra" no Brasil 157
posição de porta-vozes do "povo", que é ao mesmo tempo e paradoxalmente como terreno em que é possível lutar pela manutenção ou transformação de
o "conjunto do todo nacional" e aqueles que compartilham "valores, iden- relações sociais. Trata-se de uma questão semântica, logo, política.
tidade e história comum". Ou seja, trata-se de um conjunto de deterrning, Logo no início do texto, eu disse que não opinaria. No entanto, me é for-
ções políticas tentando intervir na língua pelo reconhecimento de que ela çoso dizer: sou solidário aos diferentes movimentos, grupos e pessoas que
não é um "meio de expressão", mas uma estrutura decisiva na construção reivindicam a linguagem neutra como espaço de luta contra opressões sis-
de subjetividades, de efeitos de pertencimento e de produção de laço social. temáticas. Ao mesmo tempo, não estou de acordo com a afirmação de que
Assim, nos projetos de lei, a "defesa da norma culta" não é significada como há "línguas preconceituosas" (sustentada tanto nos projetos quanto em posi-
um fim, mas como um meio de impedimento da propagação da "ideologia ções antagônicas). As línguas não são preconceituosas, os discursos, sim. É pos-
de gênero". Em outras palavras, nesses projetos, a língua ganha um valor sível ser preconceituoso em línguas que não marcam gênero, por exemplo".
mediador. Língua e discurso são, portanto, coisas distintas, mas necessaria-
O argumento que toma a linguagem neutra como empecilho à forma- mente imbricadas, porque todo discurso é produzido numa língua. É pre-
ção dos estudantes, por exemplo, é sintomático de que o debate tangencia ciso enfatizar:
a língua para atingir com força os sentidos de escola e educação. Trata-se
de uma tomada de posição utilitarista, que compreende o espaço escolar o sistema da língua é, de fato, o mesmo para o materialista e para o idealista,

como espaço de silenciamento das contradições em nome da decantação de para o revolucionário e para o reacionário, para aquele que dispõe de um conhe-

qualquer polêmica que "atrapalhe" a "transmissão de conteúdos". cimento dado e para aquele que não dispõe desse conhecimento. Entretanto, não

Sustento aqui uma posição radicalmente oposta. Toda pauta que se pode concluir, a partir disso, que esses diversos personagens tenham o mesmo

mobiliza tensões sociais deve ser objeto do debate escolar (da educação discurso: a língua se apresenta, assim, como a base comum de processos discur-
básica ao ensino superior). A escola não deve ser um espaço de síntese e sivos diferenciados (Pêcheux, 2009: 81).

consenso, mas de exasperação das contradições. Há duas formas de pen-


sar essa relação: há uma necessária discussão linguística, que envolve uma É preciso reforçar o alerta de Michel Pêcheux e Françoise Gadet: há
espécie de genealogia do conceito de gênero na história da gramática. Pode língua e há unquas". Há língua porque é preciso admitir que as línguas são
parecer chato, eu sei, mas nos permite uma incursão nas relações entre sistemas formais relativamente autônomos, dotados de leis internas (fono-
língua, gramática, saber metalinguístico e relações sociais. Outro cami- lógicas, morfológicas e sintáticas) eé
nho possível (que eu mesmo venho tentando trilhar) seria escutar o que as
diferentes posições estão dizendo a respeito da "linguagem neutra". Tenho sobre a base dessas leis internas que se desenvolvem os processos discursivos, e
tentado trabalhar os sentidos de "linguagem" nos projetos de lei contrá- não enquanto expressão de um puro pensamento, de uma pura atividade cognitiva

rios à "linguagem neutra" no Brasil, e os caminhos que esse estudo abre etc., que utilizaria "acidentalmente" os sistemas linguísticos (Pêcheux, 2009: 82).

são instigantes por permitirem, sobretudo, uma espécie de radiografia do


discurso conservador no Brasil. Por isso a língua não é o "veículo" que "contém" uma "mensagem", mas
Mas há, paradoxalmente, pontos de convergência. Embora as posições a base material de um processo sócio-histórico que é o discurso: ela impõe
pró e contra a linguagem neutra sejam antagônicas, ligadas a agendas políti- SUa materialidade (suas leis internas) aos processos de produção do sentido".
co-ideológicas totalmente distintas, ambas parecem apontar para um lugar
semelhante: tanto para os opositores quanto para os partidários da "lingua-
--------
: Ver a esse respeito Everett (2012), especialmente o capítulo 8.
11Pêcheux; Gadet (1981)
gem neutra", o debate linguístico (ou gramatical) intervém como pressu- n Antoine Culioli é enfático em um ponto central ao dizer: "Eu não conheço textos que sejam escritos
posto de um debate sobre lugares de subjetivação que reivindicam a língua Uma linguagem, na linguagem. Conheço textos escritos em francês, em japonês etc," (Culioli, 2016: 297).

158 Fábio Ramos Barbosa FilhO Ijetos de lei contrários à "linguagem neutra" no Brasil 159
Ao mesmo tempo, há línguas. Línguas que podemos nomear, vincu-
lar a identidades e sentimentos de pertença, chamar de "nossas" e dizer,
inclusive, que são "maternas" ou "oficiais". Também nesse sentido pode-
mos falar em "língua portuguesa" ou "língua francesa", objetos distintos ,
singulares e que, no entanto, dividem o mesmo significante: língua. Con-
tudo, essas línguas só podem funcionar quando mobilizadas por sujeitos
• • • • • • • •• • • • •
(ou falantes) que sempre falam sob condições históricas determinadas. As
línguas, postas a funcionar, estão sempre-já implicadas nos processos de
• •• • • • • • •••• •
produção do discurso. É por isso que as línguas não são apenas sistemas
formais: elas funcionam em condições históricas e isso faz com que não
possam ser encerradas numa perspectiva puramente lógica.
As "contradições ideológicas que se desenvolvem através da unidade
da língua" (Pêcheux, 2009: 83) dão conta do estranho fato de que o tão
sonhado entendimento mútuo entre os sujeitos é um problema sem solu-
ção. Não basta falar a mesma língua para nos entendermos e, feliz ou infe-
lizmente, retornar ao tempo mítico em que toda a terra tinha uma só língua CONTRIBUiÇÕES
não é condição de entendimento algum. Falamos a mesma língua, mas ao
falar já estamos no campo do discurso. PARA INTERVIR
Justamente por isso, insisto na necessidade de um debate que leve essa
questão para um lado menos linguístico (no sentido de "gramatical") e mais NA ESFERA PÚBLICA
discursivo, porque esse é um debate semântico. E sabemos que a semântica
é justamente o ponto em que a língua se choca com a ideologia e com a his-
PROJETO DE LEI SOBRE
tória. As relações de força em uma formação social sempre se dão na língua LINGUAGEM INCLUSIVA DE GÊNERO
e é nesse sentido que os conflitos sociais são sempre conflitos semânticos.
Há, sem dúvida, um "problema de gênero" nas línguas naturais e isso MARA GLOZMAN
deve ser objeto de reflexão da linguística, por ser um debate que nos retira
de um lugar estritamente formal e nos leva a pensar em funcionamentos
que roçam a dinâmica das relações sociais. Toda reivindicação em torno
da "linguagem neutra" parece ir dar na possibilidade de inscrever no corpo
da língua a afirmação de uma existência inviabilizada por diversos dispo-
sitivos sociais. Há muito pouco de "linguística" nesse debate, mas há muito
de "linguístico". Não se trata de um debate gramatical, mas de um debate
político-ideológico que toma a língua (e as línguas) como espaço de luta.

É justamente porque o discurso é produzido nessa base material que são as línguas naturais - capazes de
construções do tipo "O homem viu a mulher de binóculos" (em que há uma tensão em torno de quem, aft:
nal, estava usando os binóculos) e "Os sindicatos que defendem os trabalhadores devem ser respeitados
ou "O homem que é racional é livre" (em que há uma tensão entre uma interpretação explicativa e outra •••
restritiva). É nessa base equívoca, ambígua e muito pouco exata que o discurso é produzido. •••
160 Fábio Ramos Barbosa FilhO
Artigo C Objeto: A presente Lei tem por objeto garantir o exercício do direito
à liberdade de expressão na utilização da pluralidade de usos linguísticos que
abarca a linguagem inclusiva de gênero, em todos os âmbitos em que as pessoas
desenvolvem sua vida social. Em especial, garantir a utilização de um conjunto
de variantes linguísticas não binárias que, referindo-se a uma ou mais pessoas

• •• • • • • • •• • • • humanas, são distintas das formas masculinas e/ou femininas.


• • • ••• • • •• • • •
Conjuntamente, fomos responsáveis pela elaboração da fundamenta-
ção que acompanha o projeto, organizada em três seções:
(i) posições de organismos internacionais e legislação nacional em matéria
de gêneros e diversidade sexual;
(i i) posições de instituições de educação superior e outros organismos na-
cionais em torno da linguagem inclusiva de gênero;
(iii) razões sustentadas nos estudos linguísticos.

A fundamentação está pensada não só como suporte argumentativo


para o projeto de lei, mas também como material de formação cidadã. Por
esse motivo, para orientar sua leitura com sentido formativo, seu texto
o PROJETO: DADOS E OBJETO completo incorpora, junto com os dados e as explicações desenvolvidas em
cada seção, referências e remissões a documentação e publicações perti-

E STE CAPÍTULOse propõe expor os objetivos, parte do processo de traba-


lho e segmentos do texto do projeto de lei recentemente apresentado
nentes para cada item citado.
Este capítulo está focado na terceira seção da fundamentação e pro-
à Câmara de Deputados da Nação Argentina, Ejercicic del derecho a la uii- cura dividir uma reflexão sobre os critérios, as condições e o trabalho ana-
lizacum deZ Zenguaje inclusivo de género, apresentado com o resumo "Uti- lítico que orientaram as decisões relativas às contribuições dos estudos
lización dellenguaje inclusivo de género en todos los ámbitos en que Ias linguísticos na delimitação e na sustentação do projeto. O presente texto
personas desarrollan su vida social" (Expediente 3426-D-2021;12/08/2021). tem duas partes. A primeira consiste em um percurso que explicita a pers-
Trata-se de um projeto em colaboração entre a deputada nacional pectiva e as interrogações sobre a problemática e as questões envolvidas
Mónica Macha - atual presidenta da Comissão de Mulheres e Diversidade no objeto do projeto; a segunda traz uma seleção, adaptada e traduzida ao
da Câmara de Deputados - e sua equipe parlamentar e uma comissão de português brasileiro, do texto da fundamentação.
assessoria técnica, formada por Guadalupe Maradei (professora e pesqui-
sadora da Universidade de Buenos Aires, especialista em teoria e crítica
literária em perspectiva de gênero), SaSa Testa (mestra em estudos e polí- PROBLEMÁTICAS E QUESTÕES
ticas de gênero, bolsista CLACSOpelo Diploma Superior em Formação Polí-
O breve percurso que leva a apresentar aqui o texto da fundamenta-
tica, doutorandx em Ciências Sociais e ativista trans não binárie) e a autora
ção começa por duas observações sobre denominações e enunciados de
deste capítulo. Como assessorxs, participamos da formulação do objeto do
circulação internacional.
projeto de lei, especialmente no que se refere à escolha da designação lin-
A primeira observação diz respeito aos sintagmas que nomeiam ou
guagem inclusiva de gênero e à formulação de sua definição:
delimitam o conjunto de fenômenos em questão: linguagem inclusiva,

162 Mara Glozrnan


COntribuições para intervir na esfera pública 163
linguagem não sexista, linguagem neutra, linguagem não binária, gender- a problemática fosse uma e só uma, evidente, como se viesse sempre-já-
-neutral language, qender-fair language, écriture inclusive, entre outros. -definida: todo mundo já sabe, porque é algo óbvio, qual é "o problema" a
Não se trata apenas de nomeações diferenciadas, mas também de proble- resolver. Assim, o problema vem já-colocado, além das condições sociais e
máticas e questões que afetam e dão conta de posicionamentos às vezes tramas políticas e discursivas da sociedade específica para a qual estamos
em aliança, às vezes em conflito. Leituras como as de Blas Radi e Mariana pensando a intervenção.
Spada (2020), que demarcam a distinção teórica e política entre lingua- Ora, o interesse em desmontar essa evidência não é (só) analítico: é
gem não sexista e linguagem inclusiva, demonstram a complexidade das relevante porque tem uma incidência concreta na hora de formular mate-
relações entre tais expressões e a existência de tensões em torno da rela- riais de formação e instrumentos como resoluções, documentos institu-
ção sexo-gênero. Elas ainda expõem o funcionamento equívoco da evi- cionais e projetos de lei, que precisam de uma leitura situada. Quando se
dência de equivalência semântica e trabalham no incômodo que o efeito quer fazer uma intervenção significativa na esfera pública, ancorada nas

I' I 1I
de homogeneização produz. A problematização da denominação resiste à
homogeneização e é abordada de maneira persistente a partir de diversos
raízes e nas tramas históricas e culturais da sociedade cuja transformação
se procura, a problemática em questão não pode ser simplesmente trans-
pontos de vista (Scotto, 2021),porém a elaboração de materiais pensados ladada entre países e sociedades diferentes, até desiguais. Na verdade, não
para um público geral e a produção de instrumentos legislativos precisam estamos diante de uma mesma problemática. Nas situações que articulam
trabalhar com formas de expressão que consigam interpelar um conjunto linguagem e perspectiva de gêneros, há sem dúvida, entre países, aspectos
diverso da população e dos setores envolvidos. No projeto de lei, o sintagma em comum (movimentos, organizações, leituras, posições), mas há tam-
nominal linguagem inclusiva de gênero dá conta não de um posicionamento bém elementos que exibem traços singulares vinculados às especificida-
teórico (epistêmico ou analítico), mas da necessidade de incorporar uma des das sociedades nas quais se procura intervir. Isso abre uma questão a
nomeação cujo reconhecimento seja, na atualidade, de maior alcance, em considerar: a necessidade de distinguir entre, por um lado, um internacio-
nível nacional e também nos documentos dos organismos internacionais nalismo produto de uma escuta polifônica, de alianças e frentes comuns,
que participam do marco legal da proposta. e, por outro, reprodução global, ou seja, tratar a questão da linguagem em
A segunda observação diz respeito àquilo que poderíamos chamar de matéria de gêneros como se fosse o mesmo na França ou na Argélia; em
efeito de mesmidade: a tendência a uma circulação dos "mesmos" enun- NovaYork ou no Altiplano boliviano; em Buenos Aires ou Pernambuco.
ciados entre línguas e em materiais (re)elaborados em condições hete- Linguagem inclusiva não nomeia o mesmo objeto ou problema. Suas
rogêneas. Um exemplo claro disso é o enunciado 10 que no se nombra no condições são afetadas pela relação das populações com as línguas, a
existe / o que não se nomeia não existe / ce qui n'est pas nommé n'existe linguagem, a oralidade, a escrita, pelos saberes metalinguísticos, pelas
pas. Trata-se de uma frase que aparece em um conjunto de materiais, dimensões próprias dos sistemas e variedades em jogo, por conflitos socio-
guias e manuais elaborados, pelo menos, durante a última década em luga- linguísticos e, num sentido mais amplo, pelos mecanismos de formação dos
res tão sociolinguisticamente diversos quanto México, Rio Grande do Sul, Estados, que incluem processos muito diversos de colonização. E as tramas
Martinica, Peru, Argentina, entre outros (Glozman, 2021).Esse enunciado dessas histórias importam precisamente porque não cessam: o presente
e suas variantes trabalham a partir de uma concepção de linguagem que nunca é alheio aos processos de sentido que carrega - o acontecimento é
opera como evidência e apela a um já-dito: a relação (transparente) entre sempre, escreve Michel Pêcheux (1990),um encontro entre uma atualidade
linguagem e poder e, portanto, entre linguagem e resistência (linguagem e Umamemória. Também é preciso considerar a conjuntura política espe-
como expressão da realidade, linguagem como ferramenta, linguagem cífica: as relações de força, o lugar ocupado pelos movimentos e organiza-
como performatividade). O que me interessa assinalar aqui é a força com Çõesde gêneros e sexualidades nos diversos estágios políticos e culturais.
a qual a reiteração do enunciado produz o efeito de mesmidade, como se Essese outros fatores fazem com que não seja, simplesmente e de antemão,

164 Mara GIOzman COntribUições para intervir na esfera pública 165


uma mesma problemática aqui e lá. Uma boa caracterização analítica da Jurídica em setembro de 2020 e citada como fundamento em projetos que
problemática e de cada situação, incluído um olhar para o presente e os procuram proibir a linguagem não binária) produz em contrapartida um
processos históricos, permite fundar de maneira mais adequada a tomada conjunto reticular - onde reverberam as discussões do século XIX(Alfón,
de decisões para a formulação de política pública e para uma práxis polí- 2013)- de intervenções orientadas a deslegitimar o papel, a autoridade e
tica situada. Diante do efeito de universalismo e para evitar replicar, sob a voz da Academia para a elaboração de políticas linguísticas nacionais,
a forma da evidência, ideias e definições provenientes de outras latitudes , ou para expor os interesses que representa, contrários à transformação
torna-se relevante ler as situações e caracterizar os nossos presentes no social. O resultado da reemergência insistente da forma polêmica é para-
que têm de camadas temporais, vaivéns e tensões sociais e raciais. doxal: no presente ela reforça, como efeito indesejado, a autoridade acadê-
Voltando à situação argentina, é preciso ter em conta, entre outras mica, o papel da corporação cuja autoria e voz se quer destituir. Levar em
dimensões e de maneira sintética, três questões históricas que - segundo conta essa questão é importante para pensar a partir de onde fundamentar
nosso olhar - incidem na problemática atual. Em primeiro lugar, o fato de um projeto que procura garantir na Argentina o exercício do direito ao uso
que a língua espanhola na América surgiu de um processo violento de con- da linguagem inclusiva de gênero.
quista e colonização cujos ecos ressoam nas relações sociais e nos imaginá- Em segundo lugar, o fato de termos internalizada e naturalizada
rios sobre as línguas, que fazem parte de discursos racializados (Modesto, uma forte matriz normativa para pensar aspectos da língua e da lingua-
2021).A Argentina é um país plurilíngue e linguisticamente desigual. Com gem. Isso faz parte de nossa formação cidadã e de nossa escolarização, de
efeito, a questão da linguagem inclusiva tende a colocar o espanhol como nossa exposição à mídia e de nossa passagem por diferentes instituições e
única referência no debate. Essa tendência tem várias consequências que âmbitos de socialização. Trata-se, sem dúvida, de um traço comum a socie-
precisariam ser revisitadas em outro escrito. Uma delas aponta para a dades diversas, mas que adquire um funcionamento específico na Argen-
questão da soberania: cada vez que a Real Academia Espanhola - insti- tina. Para compreender parte dos argumentos e ideais contra o uso da
tuição espanhola com fins prescritivos - se pronuncia, há repercussões linguagem inclusiva na Argentina atual, é importante ter em conta a aná-
na Argentina. Não há dúvida de que as discussões sobre a soberania em lise dos processos de subjetivação e individuação em matéria de saberes
matéria idiomática que atravessaram a história argentina desde a década sobre a língua: o papel diretor e fundamental que o discurso moral sobre
de 1830 continuam tendo vigência: no debate sobre a linguagem com pers- "o idioma" cumpriu na formação das classes médias argentinas desde as
pectiva de gênero na Argentina retorna a problematização do papel das décadas de 1930/1940. O fenômeno pode ser pensado como a construção de
academias (da Real Academia Espanhola e de outras instituições, como a uma "moralidade do idioma", não exclusiva da Argentina, mas que teve na
Academia Argentina de Letras ou a Academia Argentina de Educação), da Argentina um papel primordial nos imaginários da classe média urbana.
possibilidade da práxis política e da soberania política nacional para inter- Considerar essa questão a partir do ponto de vista dos processos de for-
vir em questões linguísticas. mação permite formular hipóteses sobre a percepção desse setor da popu-
Essas questões não constituem elementos de outros tempos: mesmo lação que sente a linguagem inclusiva como "deformação" de normas que
que não sejam mostradas como temas sobre os quais se fala, reaparecem representam traços de demarcação social. Torna-se relevante, então, ten-
nos pressupostos, no esquema polêmico e nos critérios que sustentam as tar desmontar o olhar normativo e moral sobre a variação linguística.
vozes legitimadas para e pela opinião pública. A ubiquidade das alusões O terceiro ponto está vinculado a tensões e contradições históricas e
à Real Academia Espanhola no espectro federal da mídia, dos organis- atuais em torno do papel do Estado. Nos últimos anos, com efeito, houve
mos educacionais e de todo outro tipo de instâncias (um exemplo é a nota algumas intervenções nas quais ecoaram formulações da década de 1950,
"Constitución, idioma nacional y lenguaje inclusivo según criterios de Ia quando o Plano de Governo para o período 1953-1958(que ficou inacabado
Real Academia Espafíola", publicada pelo Sistema Argentino de Informação Porcausa do golpe de Estado de 1955)incorporou o objetivo de "configuração

166 Mara Glozrnan COntribUições para intervir na esfera pública 167


/

nacional da língua" (Glozman, 2015).A ideia de que a língua é autônoma e contra a Real Academia Espanhola, isto é, não abrir um debate nem com
não pode ser transformada por movimentos políticos ou sociais tem retor- nem contra as academias. Por outro, fazer uma intervenção capaz de des-
nado na situação argentina atual em certos argumentos - enunciados, por locar o papel que a moralidade teve e tem, de maneira profundamente
exemplo, por críticos e críticas literárias, como a intervenção de Beatriz arraigada e naturalizada, na hora de falar sobre a língua e a linguagem.
Sarlo (Sarlo: Kalinowski, 2018)- de um jeito muito próximo a como seto- Finalmente, pensar diferentemente o papel do Estado em matéria de lin-
res intelectuais antiperonistas argumentaram no Parlamento argentino guagem: não como Estado interventor ou regulador, mas como garantia de
contra o objetivo linguístico do Segundo Plan Quinquenal (1952).A discus- direitos adquiridos.
são atual sobre a linguagem inclusiva na Argentina também envolve ques- Os estudos linguísticos vêm, nessa direção, fazer um corte ali onde,
tões que atravessam e dividem o terreno político mais geral: peronismos e a favor ou contra a linguagem inclusiva, reproduzem-se as instituições
antiperonismos, posições sobre o papel do Estado em matéria linguística e prescritivas e os discursos metalinguísticos de base moral. A linguística
cultural, intervencionismo e liberalismo cultural-"antiestatismo"-, com pode, assim, realizar uma incisão nesse presente atravessado, querendo
a memória que esse feixe traz e sua incidência no presente. É preciso levar ou sem querer, por discursos prescritivos, normatizantes e moralizantes.
em conta essa terceira questão e como operam no presente antagonismos Nomomento de pensar um projeto de lei, a decisão foi garantir o exercício
políticos que, com ancoragem em outras temporalidades, têm plena vigên- do direito a utilizar qualquer uma das variantes de linguagem inclusiva de
cia na atualidade. Olhar isso com atenção permite pensar uma fundamen- gênero, abarcando toda forma não binária existente e que venha a surgir,
tação do projeto de lei que - formulado no seio da equipe da deputada para poder introduzir um desvio (um clinâmen) na matriz normativa. A
Mónica Macha, cujo partido faz parte da Frente atualmente no governo - decisão para a fundamentação foi, então, não fomentar novas moralidades,
tente ultrapassar as divisões já estabelecidas para procurar um consenso mas procurar outras matrizes de sentido, em particular uma das matrizes
de base transversal e reunir vontades heterogêneas, como tem acontecido mais fortes e perduráveis que o país tem: a tradição de direitos sociais e
com outros projetos recentes atinentes a questões de identidade de gênero sua política de direitos humanos, que foi e continua sendo uma chave na
e diversidades sexuais que conseguiram virar lei nacional. conformação de uma trama comum para sustentar a democracia. Nesse
Cada uma dessas questões leva a compreender segmentos argumen- quadro geral, destacam-se os antecedentes legislativos especificamente
tais e ideias sobre as quais se erige uma parte não menor da rejeição da orientados a ampliar direitos em matéria de igualdade de gêneros e sexua-
linguagem inclusiva, que não é necessariamente equivalente à rejeição das lidades. É nessa articulação que foram convocados os estudos linguísticos
políticas de gênero em geral, porque atinge sensibilidades específicas liga- nas suas diferentes vertentes.
das à linguagem e à própria língua. A análise da situação - considerando
os efeitos de memória na atualidade - é determinante para uma funda-
mentação que possa cumprir os objetivos enunciados na primeira parte
o TEXTO DA FUNDAMENTAÇÃO

deste capítulo: não só dar sustento técnico ao projeto de lei, como tornar-
Objeto e natureza das razões
-se material de formação cidadã e instrumento linguístico de circulação
ampla e aberta. A persuasão é, nessa tarefa, um componente fundamental. O presente projeto tem como objeto garantir o direito de todas as pes-
Sobre a base proposta e com vistas a tal horizonte, o movimento argu- soas humanas e jurídicas ao uso da pluralidade de variantes de linguagem
mentativo voltou-se para uma mudança de posição a respeito das formas inclusiva de gênero como parte do direito à liberdade de expressão, em
discursivas com as quais tendem a ser debatidas as questões linguísticas plena vigência no sistema democrático argentino.
nacionais (Glozman, 2014) em três dimensões. Por um lado, desassociar Abarca tanto as expressões linguísticas que - referindo-se a pessoas
o problema da soberania linguística das tradicionais discussões com e humanas - duplicam formas flexivas ou lexicais em masculino e feminino

168 Mara Glozl11an COntribuições para intervir na esfera pública


169
a mesma lei menciona, no seu artigo 12°, como "tratamento digno". Isso
como as variantes que adotam formas nominais não binárias (desinências
indica que as formas de designar e as expressões que se referem às pes-
diferentes do masculino e feminino em nomes, adjetivos e pronomes). O pro-
soas também precisam ser contempladas pelo alcance da lei 26.743: quem
jeto de lei, nesse sentido, se afasta de toda posição prescritiva, assim como
se identifica como pessoa não binária tem direito a um tratamento com
de qualquer ideia de obrigatoriedade no uso de uma ou outra forma linguís-
formas não binárias; como contrapartida, as instituições têm o dever de
tica; seu fim limita-se a garantir o exercício do direito à livre opção. [...]
respeitar tal direito.
O espírito da presente fundamentação é demostrar, em primeiro
Em 2015, foi sancionada a lei 27.234, "Educar em igualdade: prevenção
lugar, que existe um marco legal assentado e um contundente conjunto
e erradicação da violência de gênero". Em 2018, a lei 27.499: "Lei Micaela",
de antecedentes que promovem e/ou garantem o direito ao uso de todas
de "capacitação obrigatória em gênero para todas as pessoas que integram
as variantes da linguagem inclusiva de gênero. Trata-se, nesse sentido, de OS três poderes do Estado". Em 2019, graças ao decreto 7/2019, que modi-
uma temática que tem sido incorporada - de maneira crescente desde, ficou a lei de Ministérios, foi criado o Ministério das Mulheres, Gêneros
ao menos, a década de 1980 - como elemento dos delineamentos desen- e Diversidade da Nação Argentina. Em 2020, o Poder Executivo Nacional
volvidos em matéria de igualdade de gêneros e direitos humanos por um sancionou o decreto 721/2020, que instituiu a cota de trabalho no setor
leque de organismos internacionais do mais alto nível, assim como por público nacional para as pessoas travestis e trans. Em 2021, foi promulgada
organismos nacionais. Em segundo lugar, mostra-se que, desde um ponto a lei 27.610 de acesso à interrupção voluntária da gestação (IVE, pelas suas
de vista sustentado em aproximações da linguística - disciplina dedicada siglas em espanhol), que incorpora na sua redação recomendações vincula-
à descrição e explicação de fenômenos relativos à língua, à linguagem, aos das ao uso de linguagem inclusiva para que a lei tenha alcance não só sobre
textos e ao discurso - não há razão que possa justificar uma posição pres- mulheres, mas para todas as pessoas com capacidade de gestar. Também
critiva, restritiva ou proibitiva a respeito de alguma das formas linguísti- em 2021 obteve-se a aprovação da lei 27.636, "Diana Sacayan-Lohana Ber-
cas em questão. [...] kins", de "promoção ao trabalho para pessoas travestis, transexuais e
transgênero". Finalmente, na direção do presente projeto de lei, o Poder
Organismos interacionais e legislação nacional Executivo Nacional publicou o decreto presidencial n° 476/21, que autoriza
a incluir a opção X no passaporte e no documento nacional de identidade
[...] No âmbito nacional, existe uma série de leis que coloca a Argen- (DNI) para as pessoas que não se identifiquem como homens nem como
tina na vanguarda regional e mundial em matéria de ampliação de direitos mulheres. A Argentina se tornou, desse modo, o primeiro país da região
para os coletivos de mulheres, LGBTIQ+ e pessoas não bináries. Em 2006, a autorizar a emissão oficial de documentos de identidade e passaportes
foi sancionada a lei 26.150, que instituiu o Programa Nacional de Educa-
para pessoas não binárias.
ção Sexual Integral (ESI), cujas diretrizes curriculares foram aprovadas
em 2008. Em 2009, foi sancionada a lei 26.485, de proteção integral para
Resoluções e guias institucionais
prevenir e erradicar a violência contra as mulheres nos âmbitos em que
desenvolvem suas relações interpessoais. Em 2010, depois de um intensa Na Argentina, desde 2017, tem ganhado impulso um processo aberto
debate que envolveu todas as pessoas, coletivos e instituições da sociedade e crescente de elaboração de resoluções e outros tipos de documentos que
civil, sancionou-se a lei 26.618 de matrimônio igualitário. Em 2012, foi san- garantem o uso das diversas variantes de linguagem inclusiva de gênero em
Um amplo conjunto de instituições universitárias e organismos estatais.
cionada a lei 26.743 de identidade de gênero das pessoas, cujo texto legal
No marco das instituições de educação superior, universidades, facul-
contém especificações sobre os modos de denominação; o inciso (c) do
dades, professorados e também em institutos de formação docente, a lin-
artigo r institui: "Toda pessoa tem o direito a ser tratada de acordo com
guagem inclusiva e/ou não sexista tem sido respaldada, em alguns casos,
sua identidade de gênero". Com efeito, esse direito inscreve-se naquilo que

171
COntribUições para intervir na esfera pública
170 Mara Glozman
para as comunicações institucionais e, na grande maioria, para a produção
quais se forma, formula e circula, e seus processos históricos de constitui-
de teses, provas, exames e diferentes tipos de textos orais e escritos que
ção, entre outras questões. São múltiplos não só os níveis e objetos de aná-
são produzidos e circulam nessas esferas educativas. [...] Entre os orga-
lise que a linguística estuda, mas também as perspectivas epistemológicas
nismos estatais, a ANSES (Administração Nacional da Seguridade Social)
e os enfoques metodológicos. Em muitos casos, trata-se de aproximações,
publicou a resolução 418/2020, com data 24 de novembro de 2020, na qual
contrapostas ou complementares, que compreendem a linguagem de modo
não só aprova o uso de linguagem inclusiva de gênero, mas a define como
diferente (por exemplo, como objeto cultural a ser analisado nos termos
"aquela que evita o viés para um sexo ou gênero em particular e que nem
das ciências sociais ou humanidades, ou como faculdade inata que precisa
oculte, nem subordine, nem hierarquize, nem exclua nenhum dos gêne-
ser estudada com métodos das ciências naturais) ou desenvolvem métodos
ros e seja responsável ao considerar, respeitar e fazer visível a todas as com um quadro epistemológico diverso (métodos experimentais, métodos
pessoas, reconhecendo a diversidade sexual e de gêneros". Por sua vez, o hipotético-dedutivos, entre outros).
Banco Central da República Argentina tem reconhecido como válido o uso Ora, além dessas ou de outras diferenças - que se mostram relevan-
de linguagem inclusiva de gênero nas suas comunicações.
tes na hora de levar a cabo pesquisas e descrições -, em nenhum caso a
A produção de resoluções em torno dessa temática constitui um aproximação científica, qualquer que seja sua perspectiva ou nível de aná-
aspecto de um processo maior. Nessa mesma direção, vale destacar a exis- lise, pode adotar um ponto de vista prescritivo, restritivo ou proibitivo no
tência de um conjunto significativo de guias e materiais metalinguísticos que diz respeito ao uso de formas linguísticas. A distinção entre posição
- ou seja, textos que, nesses casos com fins formativos, refletem sobre prescritiva e posição científica é a base comum de todas as aproximações
aspectos vinculados à linguagem - cuja elaboração e publicação está desenvolvidas no campo dos estudos linguísticos e constitui um funda-
orientada a clarificar aspectos das condições de uso das variantes da lin- mento no qual a própria linguística se sustenta como disciplina de pes-
guagem inclusiva de gênero. [...]
quisa e produção de conhecimento. Em suma, para a ciência linguística, os
usos linguísticos são objeto de descrição, análise e explicação; não existem
Razões sustentadas nos estudos linguísticos em si, a partir de um olhar científico, formas melhores ou piores, usos lin-
guísticos que mereçam potencialmente uma sanção. Todas as formas lin-
De um ponto de vista estritamente científico, em primeiro lugar, não
guísticas existentes e as estruturas suscetíveis de serem produzidas numa
haveria motivos para prescrever o uso de determinadas formas linguístí-
língua são igualmente válidas quando vistas a partir de uma perspectiva
cas ou outras. A formulação de prescrições, proibições ou restrições para
estritamente epistêmica. Por conseguinte, quando o fundamento é dessa
a utilização de certas formas ou outras é própria de outro tipo de posição,
natureza, as mudanças e as substituições e a emergência de novas formas
mas alheia à tarefa epistêmica da linguística. A linguística _ como disci-
não podem ser consideradas de um ponto de vista moral ou prescritivo.
plina centrada no estudo e pesquisa das diversas dimensões que envolvem
Assim sendo, as ideias que aludem a uma suposta "deformação da língua"
a linguagem - dedica-se a descrever e, de acordo com o enfoque adotado,
são alheias a qualquer base científica.
explicar diferentes tipos de fenômenos: as estruturas das línguas (os aspec-
Em segundo lugar, as variações nos usos linguísticos e a coexistência
tos comuns a diversas línguas ou a gramática de uma língua particular), os
de formas diferentes são parte dos funcionamentos habituais em qualquer
usos linguísticos e as relações entre as línguas e as variedades linguísticas,
Sociedade. Em toda sociedade, há uma pluralidade de variantes linguísti-
as questões de aquisição de linguagem, as dimensões das políticas da lin-
cas em circulação tanto nas situações de bilinguismo ou plurilinguismo
guagem e das políticas de línguas, a análise das relações entre as línguas e
- com distintos graus e modalidades de relações entre línguas - como
as sociedades, a análise e caracterização de traços e funcionamentos dos
no que toca às variantes na mesma língua ou variedade linguística. A
textos, o estudo do discurso considerando diversas esferas de práticas naS
hornogeneidade linguística constitui uma postulação teórica - em certos

172
Mara Glozrnan
COntribUições para intervir na esfera pública 173
enfoques - que possibilita a análise dos fenômenos em estudo, mas em consenso no atinente a sua avaliação de uso. Também os modos de percep-
nenhum caso implica uma posição normativa ou corretiva. As línguas, no ção sobre as formas linguísticas e os sentidos a elas atribuídos geralmente
seu funcionamento social, nos seus usos e modos de circulação, nunca são variam com o passar do tempo, por transformações relativas à trama social
homogêneas, variam de acordo com diferentes tipos de fatores. E não só e cultural de cada época. Isso implica que uma mesma forma linguística
mudam diacronicamente - com o passar do tempo. Também se observa pode ser percebida segundo valores sociais e culturais diferentes em dis-
variação desde um ponto de vista sincrônico - em um momento temporal tintos contextos históricos. Um exemplo claro é o caso do "voseo" (uso do
determinado - de acordo com, por exemplo, variáveis etárias, geográficas, pronome pessoal de 2a pessoa do plural como 2a pessoa do singular, "vos",
culturais, entre outras (disso ocupa-se, precisamente, a sociolinguística, você), cuja valoração tem passado da proscrição no sistema escolar e de sua
com seus diferentes enfoques). A pluralidade de usos da linguagem inclu- avaliação negativa na literatura a uma quase total aceitação (López García,
siva de gênero - que abarca formas linguísticas que evitam a distinção de 2015).As avaliações também não são homogêneas e respondem a condições
gênero gramatical, formas lexicais ou flexivas em masculino ou feminino, complexas que envolvem aspectos do presente e questões históricas, lega-
e formas nominais não binárias - está em circulação em âmbitos variados dos, tensões sociais e raciais, heranças plurilíngues (familiares e sociais),
da vida social, não só em redes sociais, mídia e meios de comunicação e na fatores dependentes do contexto e processos de larga duração.
interação cotidiana, mas também em esferas do desenvolvimento cientí-
I
Por último, do ponto de vista de uma política da linguagem solidária
fico e tecnológico, em âmbitos da produção cultural (nacional e internacio- com um sistema democrático, plural e inclusivo, a experiência que surge
nal), em âmbitos educativos de distintos níveis, especialmente na aplicação da interlocução (por exemplo, a discriminação vista desde o olhar de quem
da ESI (Educação Sexual Integral) nas escolas (Sardi; Tosi, 2021),na produ- a sofre ou o uso de formas não binárias vinculadas à identidade de gênero)
ção literária e teórica (entre outros, Flores 2019; Bidegain, 2019; Acevedo, precisa ser levada em conta como dimensão do valor social e cultural da
2019; García, 2021),nas pautas de estilo para a edição de livros e revistas, linguagem, porque tem a ver com a percepção de quem fala, com seus
em materiais vinculados a políticas de saúde, em políticas editoriais e dis- direitos, com sua inclusão enquanto sujeito de cidadania. Nesse sentido, a
cursivas levadas a cabo no âmbito do governo do Estado argentino, entre circulação social das variadas e diversas formas linguísticas coexistentes
outros âmbitos e esferas de práticas. De uma perspectiva bakhtiniana, contribui não só para a promoção da pluralidade e da liberdade de expres-
compreende-se que a diversidade de estilos e formas da expressão verbal são como valores gerais, nesse caso para a utilização das formas linguísti-
- oral e escrita - está associada à elaboração e à circulação de gêneros cas que cada sujeito considere apropriadas, mas também para garantir o
discursivos (tipos de enunciados), cujos traços variam segundo as esferas exercício de um conjunto de direitos que já tem sido instituído.
heterogêneas da vida social. Variação e pluralidade são, por conseguinte,
características constitutivas da comunicação social, em toda sociedade.
Isso diz respeito também a todas as formas da linguagem inclusiva de
gênero atualmente em uso.
Em terceiro lugar, as formas linguísticas adquirem, no seu funciona-
mento como elementos de discurso, certos sentidos em virtude do valor
social ou cultural que carregam no contexto em que surgem, em que se
produzem e pelo qual circulam. Certamente, isso pode - e geralmente é o
caso - gerar polêmicas e debates (cf. entre outros, Arnoux, 2008; Gonzaléz,
2008; Glozman; Lauria, 2012)dado que - assim como em outros assuntoS
estruturados por relações sociais - nem todas as formas linguísticas têm

174 Mara Glozrnan COntribuições para intervir na esfera pública 175


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Trabalhos a respeito das estratégias de construção de uma lingua-
gem neutra e dos movimentos sociais que as acompanham têm sido desen-
volvidos no Brasil. Os ensaios teóricos de Schwindt (2020) e Pinheiro e
pinheiro (2021),publicados como resultado do simpósio "Língua, gramá-
tica, gênero e inclusão", realizado pela Associação Brasileira de Linguís-
• • • • • • • • •• • • • tica (Abralin), ilustram o interesse atual da linguística brasileira em com-
• • • • • • •• • •• • • preender e descrever a linguagem neutra em português. Schwindt (2020)
discute a marcação de gênero em português a partir dos limites do sis-
tema linguístico, contemplando tanto formas inclusivas que reforçam a
binariedade de gênero (uso de feminino marcado em substantivos comuns
de dois gêneros - a presidenta; emprego de formas femininas e mascu-
linas em lugar do uso genérico do masculino - alunas e alunos), quanto
propostas de realização de gênero neutro (inclusão de novas marcas em
nomes e adjetivos - amigx, amig@ - ou a ampliação da função de marcas
já existentes - amigue; alteração na base de pronomes e artigos- ile, le).
Pinheiro e Pinheiro (2021),por seu turno, abordam as possibilidades de
neutralização de gênero em português a partir de questões estruturais
e sociais, equacionando as demandas sociais face às restrições linguísti-
INTRODUÇÃO
casoTanto Schwindt (2020) quanto Pinheiro e Pinheiro (2021) encerram

A DISCUSSÃO a linguagem neutra no português brasileiro tem ganhado


SOBRE

cada vez mais espaço, de modo que diferentes propostas de marcação


seus ensaios teóricos com afirmações sobre os papéis da linguística. Os
autores destacam que os linguistas buscam compreender e descrever os
de gênero neutro aparecem, com certa frequência, tanto na escrita quanto fenômenos da linguagem com olhar especializado e informado, e não nor-
na fala. Há, no mínimo, duas demandas sociais que motivam a busca por matizar usos ou prescrever condutas verbais.
uma linguagem neutra inclusiva: Considerando a importância social das estratégias de marcação de
(i) o fato de que vocábulos no masculino são utilizados para desig- gênero neutro, e também suas restrições e limitações no que diz respeito
nar um grupo de pessoas que inclui tanto homens quanto mulhe- ao sistema linguístico, este capítulo se desenvolve a partir de uma ques-
res (como o uso de "todos" para fazer referência a um grupo de tão que envolve não o papel dos linguistas, mas o papel dos professores de
homens e de mulheres);
língua portuguesa, qual seja: qual é o lugar da linguagem neutra no ensino
(ii) o fato de que pessoas de gêneros não binários podem não se sen-
de língua portuguesa na escola? Ou ainda: quais são os compromissos dos
tir representadas pelas formas linguísticas no masculino ou no
feminino. professores de língua portuguesa, profissionais responsáveis pelo ensino
da linguagem na formação básica dos cidadãos, no que diz respeito à abor-
Para resolver esses problemas, há diferentes estratégias que despon- dagem da linguagem neutra?
tam como possibilidades de não marcação de gênero, tais como: o uso de A questão é polêmica, envolve uma série de embates que desvelam
-@ (como em "tod@s"); o uso de -x (como em "todxs"); o uso de -e (como em
Posicionamentos em defesa e em recusa do respeito à diversidade. Mais do
"todes"). Dessas possibilidades, somente a última, o uso de -e, se constitui
qUelinguístico, o debate acerca do lugar da linguagem neutra no ambiente
com uma forma que pode ser realizada foneticamente.
escolar é ideológico e engloba necessariamente as concepções sobre o que

178
Samuel Gomes de Oliveira A IingU .,
agem neutra e o ensino de Ilngua portuguesa na escola 179
se deve ensinar na escola e sobre o que se faz nas aulas de língua portu- esferas sociais, reivindicações sobre sua representação na linguagem tam-
guesa. Considerando tais aspectos, o presente capítulo se organiza em três bém se tornam mais frequentes.
seções. A primeira seção é destinada a uma compreensão global da lin- O Manual para o uso não sexista da linguagem, publicado em 2014
guagem neutra como demanda social que busca dar visibilidade e incluir, pela Secretaria de políticas para as Mulheres do Governo do Estado do Rio
por meio da língua, diferentes performances de gênero; a segunda discute Grande de do Sul, é um exemplo de política linguística em favor de uma
o ensino de língua portuguesa na escola, seus objetivos e demandas; e a sociedade inclusiva e de maior visibilidade das mulheres. Esse manual
terceira, finalmente, propõe reflexões a respeito do lugar que a linguagem apresenta diversas recomendações, entre as quais o uso de genéricos e de
neutra pode ocupar nas aulas de língua portuguesa. palavras sem a marca de um gênero específico: assim, uma construção
como "Aqueles que saibam assinar que o façam no final da aula" é apre-
sentada como "não recomendada"; como alternativa, para evitar o uso de
A LINGUAGEM NEUTRA E AS PERFORMANCES DE GÊNERO "aqueles",recomenda-se o uso de "quem": "Quem souber assinar que o faça
Linguagem neutra é uma das possíveis denominações para o resultado no final da aula". Seguindo a mesma lógica, o documento apresenta uma
das estratégias de subverter a marcação binária de gênero em prol de uma série de proposições que, fazendo uso dos recursos da língua, substitui
não especificação de gênero. A busca por uma linguagem neutra, no que se construções que expressam um gênero por versões que não fazem referên-
refere ao gênero, é uma resposta a dois problemas identificados por gru- cia a gênero algum.
pos sociais a respeito de sua não representação na linguagem. Um desses O outro problema que motiva a construção de uma linguagem neutra
problemas diz respeito ao uso do masculino em caráter genérico, no por- diz respeito não somente à representatividade das mulheres, mas também
tuguês brasileiro, para designar um grupo de pessoas, independentemente à de outros gêneros, para além daqueles definidos em uma lógica biná-
do gênero ao qual as pessoas designadas pertençam: "Os alunos" se refere a ria: os gêneros não binários. A lista de gêneros não binários é grande e,
um grupo de alunos e de alunas, portanto. Reconhecendo a oposição entre tendo em vista a própria lógica de sua construção (oposta à binariedade de
-a e -o entre substantivos e adjetivos que fazem referência a seres humanos gênero),é uma lista aberta, múltipla, em construção. Pessoas não binárias
e sua atribuição, respectivamente, a mulheres e homens, causa incômodo são aquelas que não se entendem nem como homem, nem como mulher:
o fato de que basta um homem estar participando de um grupo de pessoas seus gêneros não se limitam à lógica dominante marcada pela binariedade.
para que o grupo todo seja referido no masculino. Tal generalização pelo Essas expressões de gênero têm base na noção de performatividade de
masculino instancia um apagamento da presença feminina nos diferentes gênero, defendida por Butler (2017)no célebre livro de 1990, Problemas de
espaços, podendo configurar um ato reconhecido como violência simbó- gênero:feminismo e subversão da identidade. Para a autora, o gênero é per-
lica (Bourdieu, 2012). formativo; não é algo que se "é",mas algo que se "faz" por meio de perfor-
Em uma sociedade marcada pela lógica da dominação masculina, ins- mances sociais. Nessa perspectiva, o gênero é um efeito (e não uma causa)
crita nos nossos esquemas de percepção e de ação, a reprodução social de de discursos, práticas e instituições.
estruturas de dominação abre espaço para a violência simbólica (Bourdieu, Judith Butler é uma das filósofas pós-estruturalistas que aborda a cha-
2012).Essa violência é exercida através de um ato de conhecimento e reco- mada teoria queer. Fazendo uma revisão dessa teoria, Salih (2015)aponta
nhecimento prático que ocorre abaixo do nível da consciência e da von- quea teoria queer surgiu de uma aliança das teorias feministas, pós-estru-
tade, e a perpetuação ou transformação da relação de dominação depende turalistas e psicanalíticas que se debruçavam sobre a categoria de sujeito.
da perpetuação ou transformação das estruturas que as originam. Dessa O termo queer, apropriado de um insulto utilizado primeiramente para
forma, acompanhando os movimentos de transformação das estruturas ofender homossexuais afeminados, passou a ser utilizado para denomi-
de dominação, em busca de maior representação feminina em diferentes nar uma teoria que, de acordo com Salih (2015),não está preocupada com

Aling uagem neutra e o ensino de língua portuguesa na escola


181
180 Samuel Gomes de Oliveira
definição, fixidez ou estabilidade, mas, por outro lado, é transitiva, múlti- nem em outra nomenclatura. O desafio da lógica binária das construções
pla e avessa à assimilação: de gênero avança, então, para o desafio da lógica binária para gênero que
constitui a língua portuguesa.
Enquanto os estudos de gênero, os estudos gays e lésbicos e a teoria fern], É nesse contexto que a proposta de utilizar marcas como o -@ (como
nista podem ter tomado a existência de "o sujeito" (isto é, o sujeito gay, o sujeito em "alun@s"), o -x (como em "alunxs") ou o -e (como em "alunes") se cons-
lésbico, a "fêmea", o sujeito "feminino") como um pressuposto, a teoria queer trói. Entre essas possibilidades de construção de uma linguagem neutra, o
empreende uma investigação e uma desconstrução dessas categorias, afirmando emprego de -e se diferencia das demais por ser o único que pode ser fone-
a indeterminação e a instabilidade de todas as identidades sexuadas e "generifi- ticamente realizado, podendo servir tanto à escrita quanto à fala, sendo
cadas" (Salih, 2015: 20), geralmente pronunciado como [I]. A esse respeito, Schwindt (2020) explica
que parte do entendimento de que -e possa ser utilizado como marca de
Para a teoria queer, portanto, as categorias de gênero não são fixas neutro diz respeito ao comportamento dos nomes sexuados, em que há
1,1
ou estáveis, muito menos essencialmente determinadas por qualquer atri- certo equilíbrio entre os nomes em -e para o masculino e para o feminino,
buto biológico. A categorização binária em masculino e feminino é, para com alguma predominância para o masculino: 57,6%dos nomes sexuados
Butler (2017),resultado da tentativa de uniformização que toma a heteros- terminados em -e são masculinos. O autor também aponta dificuldades
sexualidade como norma e que suprime qualquer construção que não se da implementação da linguagem neutra, valendo-se de exemplos como:
conforme à lógica binária. Há, na atualidade, diversas construções e per- Meus(?) dois(?) amigues mais próximes, Vini e Léo, chegaram. Preciso dar
formances não binárias para gênero, desde aquelas que se definem sim- atenção a eles(?). Onde insere as interrogações, Schwindt (2020) destaca
plesmente como não binárias, até aquelas que constroem novas definições casos de difícil adaptação para um sistema marcado pelo neutro, aten-
para si, tais como gênero fluido, agênero, demigênero, entre outras. tando para os artigos, para os pronomes e para a retomada pronominal,
Nessa perspectiva, não é possível determinar o gênero de alguém a o que, ainda de acordo com o autor, revela que o gênero é um mecanismo
partir de suas características físicas ou de sua vestimenta. No que diz res- gramatical, mais do que uma informação lexical, de que o sistema se vale
peito à linguagem, isso impacta diferentes aspectos, como, por exemplo, o por razões de economia.
uso de pronomes. Por esse motivo, tem se tornado cada vez mais frequente Da necessidade de postular pronomes neutros, surgem propostas
a prática de tornar públicos os pronomes pelos quais cada pessoa se sente como o Manifesto Ile para uma comunicação radicalmente inclusiva, com
representada, de modo a informar a maneira de tratamento escolhida para a proposição dos pronomes iie e dile, criados por Pri Bertucci e Andrea
si. Em diferentes perfis em redes sociais, menções aos pronomes podem Zanella, que se constituem como alternativas neutras para ele, ela, dele e
ser encontradas. O Instagram chegou a lançar uma atualização, já disponí- dela. O Sistema Ile é composto de diversas formas neutras, tais como nile,
vel em alguns países, que designa um campo especial para que cada usuá- aquile, minhe, tue, entre outros. Trata-se de uma proposta que tem o intuito
rio preencha, em seu perfil, os pronomes de tratamento com que gostaria de dar conta de todas as manifestações linguísticas no masculino ou no
de ser identificado. feminino que fariam referência a pessoas.
Para quem é não binário, as construções linguísticas que buscam a Para Schwindt (2020), o Sistema Ile requer uma aprendizagem for-
inclusão pela via do uso combinado de formas no feminino e no masculino mal em alguma medida. Sua realização é menos natural, menos intuitiva
(tais como utilizar "todos e todas", "alunos e alunas", no lugar do mascu- e, atualmente, menos socialmente difundida do que o uso de -e em nomes
lino genérico) não são suficientes para garantir sua representação, É pre- sexuados. Nesse sentido, se utilizar a marca -e em nomes sexuados não é
ciso, então, encontrar formas que não façam referência direta a homens ou Suficiente para uma linguagem efetivamente neutra, é preciso que outros
mulheres, uma vez que quem é não binário não se encaixa nem em urna, elementos da língua sofram modificações na direção da neutralidade. Tal

182 Samuel Gomes de Oliveira A linguagem neutra e o ensino de língua portuguesa na escola 183
aspecto complexifica a formulação de uma linguagem neutra e suscita o
Tal perspectiva de linguagem, compreendida como uma prática social
estabelecimento de uma questão: é papel do professor de língua portu-
guesa ensinar a linguagem neutra na escola? contextualizada, serve de guia para uma concepção de ensino de língua
materna que não se detém na simples decodificação de partes de um enun-
ciado ou na memorização de nomenclaturas que classificam elementos
APONTAMENTOS SOBRE O ENSINO DE LíNGUA PORTUGUESA linguísticos. Conforme os PCNs, "interagir pela linguagem significa reali-
NA ESCOLA
zar uma atividade discursiva: dizer alguma coisa a alguém, de uma deter-
minada forma, num determinado contexto histórico e em determinadas
Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) (Brasil, 1998) estabele_
circunstâncias de interlocução" (Brasil, 1998: 20-21).Portanto, o ensino de
cem diretrizes para a educação básica e, também, para o ensino de língua
língua portuguesa deve considerar todos os aspectos da interação pela lin-
portuguesa. O documento destaca a importância de desenvolver, na eScola
, guagem: quem diz/escreve, o que é dito/escrito, para quem é dito/escrito,
1 a compreensão da cidadania como participação social e política, bem Como
de que forma é dito/escrito, em que contexto histórico é dito/escrito, em que
III de promover espaços para que os estudantes se posicionem de maneira
circunstâncias de interlocução é dito/escrito.
responsável e construtiva diante dos problemas sociais, questionando a
Para Rojo e Cordeiro (2004), os PCNs fazem um apelo ao gênero do
realidade, formulando problemas e buscando solucioná-los através do pen-
discurso como objeto de ensino da língua portuguesa, entendendo o texto,
samento lógico, da criatividade, da capacidade de análise crítica, da sele-
oral e escrito, como a materialização de um gênero do discurso, isto é,
ção de procedimentos e da verificação de sua adequação. Diante desses
como uma unidade de trabalho. De acordo com as autoras, referenciais
objetivos globais, o estudo da linguagem tem em vista a compreensão ativa
como os PCNs estabeleceram novidades importantes, principalmente no
e a interlocução efetiva, e as situações didáticas têm por objetivo levar os
que diz respeito ao ensino de linguagem e de gêneros orais e à valoriza-
estudantes a pensarem sobre a linguagem para compreendê-Ia e utilizá-Ia
ção dos contextos de uso e de circulação. Em relação à definição de gênero
de maneira adequada às situações e aos propósitos definidos.
do discurso, interessa a sistematização de Schneuwly (1994),que recupera
Os PCNs estabelecem um projeto educativo comprometido com a
Bakhtin (1953/1979)e resume sua posição conceituando gêneros do dis-
democratização social e cultural, de modo que a aula de língua portuguesa
curso como tipos relativamente estáveis de enunciados, elaborados pelas
garanta o acesso dos estudantes a saberes linguísticos necessários para
esferas de troca social, caracterizados por três elementos - conteúdo
o exercício da cidadania e para a plena participação social. Entendendo a
temático, estilo e construção composicional-, de forma que a escolha de
importância da publicação dos PCNs como um marco orientador no ensino
cada gênero do discurso se determina pela esfera, pelas necessidades da
de língua portuguesa, recupero o conceito de linguagem publicado no
temática, pelo conjunto dos participantes e pela vontade enunciativa ou
documento, na medida em que esse entendimento baliza o trabalho desen-
intenção do locutor.
volvido no ensino de língua materna na escola. Nos PCNs, entende-se Iin-
guagemcomo Da concepção de ensino de língua portuguesa como centrado nos
gêneros do discurso e nos textos, surgem propostas de ensino e aprendiza-
gem que tanto discutem conceitos-chave para o ensino de língua materna
ação interindividual orientada por uma finalidade específica, um processo de inter-
quanto apresentam exemplos de práticas de sala de aula que levam tais
locução que se realiza nas práticas sociais existentes nos diferentes grupoS de
noções em consideração. É o caso da publicação de Simões et ai. (2012),
uma sociedade, nos distintos momentos de sua história, Os homens e as mulhe-
que propõe: a aula de português deve ter como objeto de ensino o traba-
res interagem pela linguagem tanto numa conversa informal, entre amigos, ou na
lho sobre a linguagem, de forma que a aprendizagem se defina como novas
redação de uma carta pessoal, quanto na produção de uma crônica, uma novela,
formas de participação no mundo social, possibilitadas tanto a partir da
um poema, um relatório profissional (Brasil, 1998: 20),
experiência com novas práticas de letramento quanto a partir de novas
184
Samuel Gomes de Oliveira
A linguagem neutra e o ensino de língua portuguesa na escola' 185
compreensões das práticas de letramento já conquistadas. Para as autoras, textual e análise linguística em unidades didáticas coesas. A investigação
a língua em uso, isto é, o texto, deve ser o centro do trabalho realizado na e a integração entre raciocínio indutivo e dedutivo são habilidades privile-
sala de aula de língua portuguesa e literatura (saberes que, para as autoras , giadas em um ensino que realize práticas de reflexão linguística, ao passo
andam juntos: aprender e ensinar uma significa aprender e ensinar outra , que um ensino mecânico da gramática privilegia a memorização, a classi-
e vice-versa). Simões et al. (2012)propõem que a escolarização deve se cons- ficação e, se tanto, o raciocínio dedutivo.
tituir como oportunidade para aprender a Em suma, na perspectiva que considera a centralidade do texto, os
conteúdos gramaticais não são estudados de modo exaustivo: eles são ensi-
- Ler textos de gêneros variados, de modo a reagir diante deles e, com atitude nados conforme sua relevância para os usos da língua considerados, de
crítica, apropriar-se desses textos para participar na vida social e nela intervir, modo funcional e não exaustivo, havendo previsão de retomada e aprofun-
- Produzir textos de modo seguro e autoral, não apenas em situações cotidianas damento em outros momentos, sem um compromisso de ansiná-los em sua
II da esfera privada, mas também em esferas públicas de atuação social, totalidade e em uma ordem linear fixa.
I I - Construir um repertório de conhecimentos sobre língua e literatura que possi- Há, também, outro aspecto importante que, para Filipouski, Mar-
bilite reinterpretar os modos como o cotidiano se organiza e os modos como a chi e Simões (2009), distingue o ensino mecânico da gramática do ensino
história, as relações de poder e a busca por discursos próprios se entrecruzam baseado na prática de reflexão linguística: enquanto o ensino mecânico
constantemente em nossos usos da língua (Simões et ai" 2012: 46), estuda apenas a norma-padrão, a prática de reflexão linguística estuda a
norma-padrão como uma das variedades da língua, isto é, estuda também
Essas três demandas do ensino de língua materna priorizam a ação do outras variedades do português, suas funções e seus sentidos sociais.
sujeito no mundo. Nessa perspectiva, a leitura e a produção de diferentes No presente capítulo, faço esses apontamentos sobre o ensino de lín-
gêneros se realizam com o intuito de agir na sociedade, e a construção de gua portuguesa na escola, contextualizando-os nos objetivos primordiais
repertórios de conhecimentos se dá em função de reinterpretar o mundo da educação básica, porque considero esse entendimento basilar para
e as relações de poder para a construção de discursos próprios. A refle- que possamos pensar a respeito da linguagem neutra na aula de língua
xão sobre quaisquer aspectos linguísticos não deve se estabelecer no vazio: portuguesa. Os aspectos aqui mencionados são necessários para que se
pelo contrário, deve estar a serviço do gênero do discurso estudado, tendo possa compreender meu ponto de partida para tentar responder à per-
em vista as práticas sociais de leitura e de produção que dele decorrem. gunta que norteia este texto: qual é, afinal, o lugar da linguagem neutra
Noque diz respeito às práticas de reflexão linguística, convém retomar no ensino de português?
Filipouski, Marchi e Simões (2009) que, inspiradas em Mendonça (2006),
constroem um quadro comparativo que distingue tais práticas do ensino
A LINGUAGEM NEUTRA NA AULA DE LíNGUA PORTUGUESA
mecânico da gramática. Para as autoras, enquanto um ensino mecânico
da gramática concebe a língua como código fechado e invariável - com Com a difusão de diferentes propostas de realização de uma lingua-
foco na definição de categorias e funções, seguida de exemplificação -, gem neutra, a questão tem ganhado destaque nas diferentes mídias e,
a prática de reflexão linguística entende a língua como sistema estrutu- Comoresultado, surgem diversas manifestações acerca do que é o por-
rado, mas dinâmico, como conjunto de recursos para a interação historica- tuguês "correto", do que se ensina e do que deve ser ensinado na escola.
mente situada entre os falantes, com foco nos fatos da língua e na reflexão Pinheiro e Pinheiro (2021)exemplificam um tensionamento que decorre
sobre suas regularidades. Além disso, diferentemente do ensino mecânico do uso da linguagem neutra ao mencionarem uma proposta de docentes
da gramática, as práticas de reflexão linguística favorecem a integraçãO, doColégioPedro 11, escola pública federal localizada no Rio de Janeiro, que
não a fragmentação de saberes, vinculando práticas de leitura, produção utilizaram a forma neutra "alunx" em uma prova e em um comunicado que

186 Samuel Gomes de Oliveira 187


A linguagem neutra e o ensino de língua portuguesa na escola
circulou na instituição. Como resultado, a escola teria recebido críticas
brasileira: a Base Nacional Comum Curricular (BNCC).A BNCCestabelece, já
nas redes sociais por ter, com a prática, "violado" o português.
em sua abertura, dez competências gerais da educação básica:
Este é só um exemplo, tornado notícia, do que surge em diferentes
pastagens nas redes sociais a respeito do tema, que por vezes instaura 1. Valorizar e utilizar os conhecimentos historicamente construídos sobre o mundo
debates acalorados. Estamos, sem dúvida, diante de um cenário de dis-
físico, social, cultural e digital para entender e explicar a realidade, continuar
puta e de negociação. Para os estudiosos da linguagem, não deve causar
aprendendo e colaborar para a construção de uma sociedade justa, democrática
espanto que os usos linguísticos provoquem reações como essas, ou que o
e inclusiva,
uso da linguagem implique negociação de sentidos. A esse respeito, Bou-.
2, Exercitar a curiosidade intelectual e recorrer à abordagem própria das ciências,
dieu (2008 [1982])afirma que há um mercado linguístico onde os discursos
incluindo a investigação, a reflexão, a análise crítica, a imaginação e a criativi-
alcançam valor e sentido, ou seja, onde à troca linguística se estabelece
, dade, para investigar causas, elaborar e testar hipóteses, formular e resolver pro-
como uma troca econômica, em uma relação de força simbólica entre um
blemas e criar soluções (inclusive tecnológicas) com base nos conhecimentos
produtor e um consumidor. O autor defende que os discursos são também
das diferentes áreas,
signos de riqueza, avaliados e apreciados, e signos de autoridade, aceitos e
3, Valorizar e fruir as diversas manifestações artísticas e culturais, das locais às mun-
obedecidos. Assim, quando alguém, por exemplo, faz uma afirmação sobre
diais, e também participar de práticas diversificadas da produção artístico-cultural.
o que é "violar" o português, essa pessoa está tensionando uma relação
4, Utilizar diferentes linguagens - verbal (oral ou visual-motora, como Libras, e
de forças no mercado linguístico, buscando marcar-se como detentora de
escrita), corporal, visual, sonora e digital -, bem como conhecimentos das lin-
capitallinguístico e dotada de uma competência legítima para determinar
guagens artística, matemática e científica, para se expressar e partilhar informa-
o que se pode e o que não se pode fazer com a língua.
ções, experiências, ideias e sentimentos em diferentes contextos e produzir sen-
As negociações por lucro simbólico que constituem o mercado Iinguís-
tidos que levem ao entendimento mútuo,
tico têm tudo a ver com a variação linguística. A variação, por seu turno,
5, Compreender, utilizar e criar tecnologias digitais de informação e comunica-
pode ser entendida como uma prática social de importante papel na cons-
ção de forma crítica, significativa, reflexiva e ética nas diversas práticas sociais
trução de identidades e estilos (Eckert, 2012),de modo que o que está em
(incluindo as escolares) para se comunicar, acessar e disseminar informações,
jogo nas avaliações feitas sobre a linguagem neutra não é mera reação às
produzir conhecimentos, resolver problemas e exercer protagonismo e autoria na
formas linguísticas especificamente, mas às identidades e aos estilos cons-
vida pessoal e coletiva,
truídos com o uso dessas formas. Quem usa a linguagem neutra está não
6, Valorizar a diversidade de saberes e vivências culturais e apropriar-se de conhe-
só procurando alternativas de inclusão, mas também construindo para si
cimentos e experiências que lhe possibilitem entender as relações próprias do
um estilo vinculado aos valores associados à inclusão, à preocupação com
mundo do trabalho e fazer escolhas alinhadas ao exercício da cidadania e ao seu
a representatividade das mulheres e de pessoas de gêneros não binários.
projeto de vida, com liberdade, autonomia, consciência crítica e responsabilidade,
Dessa forma, é a tudo isso que alguém reage quando tece comentários
7, Argumentar com base em fatos, dados e informações confiáveis, para formular,
sobre o uso das formas da linguagem que busca não marcar gênero.
negociar e defender ideias, pontos de vista e decisões comuns que respeitem
E o que a escola tem a ver com isso? Tudo.
e promovam os direitos humanos, a consciência socioambiental e o consumo
A linguagem neutra como um todo - sua realização linguística, sua
responsável em âmbito local, regional e global, com posicionamento ético em
função social- deve estar no espaço escolar, afinal, esse espaço busca for-
relação ao cuidado de si mesmo, dos outros e do planeta,
mar cidadãos críticos capazes de participarem politicamente da sociedade.
8, Conhecer-se, apreciar-se e cuidar de sua saúde física e emocional, compreen-
A afirmação de que a linguagem neutra deve ter lugar na escola se justifica,
dendo-se na diversidade humana e reconhecendo suas emoções e as dos
inclusive, no documento oficial atualmente em vigor que rege a educaçãO
outros, com autocrítica e capacidade para lidar com elas,

188
Samuel Gomes de Oliveira
A linguagem neutra e o ensino de língua portuguesa na escola 189
9, Exercitar a empatia, o diálogo, a resolução de conflitos e a cooperação, fazendo-se (iii) o trabalho com a linguagem neutra pode se configurar como
respeitar e promovendo o respeito ao outro e aos direitos humanos, com acolhi_ uma boa prática de reflexão linguística.
mento e valorização da diversidade de indivíduos e de grupos sociais, seus saberes,
identidades, culturas e potencialidades, sem preconceitos de qualquer natureza, Explico, a seguir, cada uma dessas três motivações.
10, Agir pessoal e coletivamente com autonomia, responsabilidade, flexibilidade, A motivação (i) diz respeito ao fato de que a linguagem neutra se esta-
resiliência e determinação, tomando decisões com base em princípios éticos, belece, atualmente, como um debate sobre a sociedade. É por esse debate
democráticos, inclusivos, sustentáveis e solidários (Brasil, 2018: 9-10), ser relevante, envolver a representação da diversidade e mobilizar posí-
cionamento crítico que podemos afirmar que, a um só tempo, essa pro-
A discussão acerca da linguagem neutra possibilita o trabalho Com blemática possibilita, em alguma medida, o desenvolvimento das dez com-
todas as competências gerais da educação básica elencadas na BNCC,na petências gerais da educação básica elencadas pela BNCC. Falar sobre a
medida em que tal debate tem a ver com uma construção de uma socie- linguagem neutra nunca pode significar falar sobre língua isoladamente:
dade justa, democrática e inclusiva (competência 1);exercita a curiosidade pelo contrário, qualquer proposta de sala de aula que promova o debate
intelectual, apresenta problemas e instiga a formulação de soluções (com- sobre a questão necessita que as motivações para as tentativas de realiza-
petência 2);está presente em diversas manifestações artísticas e culturais ção da linguagem neutra sejam explicitadas. Em primeiro lugar, portanto,
(competência 3); requer o uso de diferentes linguagens e conhecimentos é preciso tratar das estruturas de dominação masculina presentes em
para produzir sentidos que levem ao entendimento mútuo (competência nossa sociedade, das construções de gênero (binárias e não binárias), do
4); demanda o uso de tecnologias de informação para acessar informações, conceito de representatividade e sua importância social. Assim sendo, o
produzir conhecimentos e resolver problemas (competência 5); relacio- debate sobre a linguagem neutra não deve se limitar à sala de aula de lín-
na-se com a valorização da diversidade de saberes e vivências (competên- gua portuguesa, mas pode se constituir como parte de um projeto inter-
cia 6); destaca a necessidade de argumentação para negociar e defender disciplinar integrador, uma vez que mobiliza conhecimentos de diferentes
ideias, com posicionamento ético em relação a si e ao outro (competência componentes curriculares, como história, sociologia, filosofia, biologia,
7); requer a compreensão de si na diversidade humana (competência 8); geografia, entre outros.
promove o exercício da empatia, do diálogo, da resolução de conflitos e da O espaço que a linguagem neutra deve ter na escola tem a ver com seu
cooperação, com acolhimento e valorização da diversidade (competência espaço na sociedade: trata-se de uma questão-problema, para a qual apre-
9); estimula a tomada de ações com responsabilidade, de maneira ética,
sentam-se diferentes soluções, nenhuma das quais adotada por completo.
democrática, inclusiva e solidária (competência 10).
Deum lado, há a demanda de inclusão pela linguagem; de outro, há as res-
Em suma, se a educação tem o intuito de tornar os estudantes capazes
trições linguísticas que dificultam a implementação da linguagem neutra.
de agir no mundo e reagir criticamente a ele, é evidente que as propostas a
O que fazer? Em relação ao trabalho na escola, direcionar essa per-
respeito da linguagem neutra, que se configuram como uma questão-pro-
gunta (Oque fazer?) aos estudantes e fornecer subsídios para que eles dela
blema atual, precisam estar presentes nas aulas de língua portuguesa.
se apropriem, formulem outros problemas decorrentes desse e busquem,
Com o intuito de produzir alguma sistematização a esse respeito, cito
de maneira autônoma, posicionar-se por meio de argumentação consis-
três motivos que, no meu entender, justificam a importância do debate
sobre a linguagem neutra na escola: tente, sempre tendo em vista que, qualquer que seja sua posição, ela deve
Considerar o respeito à diversidade como princípio básico. Não cabe ao
(i) a linguagem neutra é um tema socialmente relevante; professor apresentar uma proposta de linguagem neutra como norma.
(ii) a linguagem neutra possibilita a compreensão de que a língua é Pelo contrário, é preciso propor o debate. No que diz respeito ao trabalho
revestida de poder simbólico; em língua portuguesa, há diferentes gêneros do discurso, orais e escritos,

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Samuel Gomes de Oliveira A linguagem neutra e o ensino de língua portuguesa na escola 191
a serviço de uma reflexão importante como essa. É o caso, por exemplo, demanda sensibilização para as questões e posicionamento crítico dos estu-
dos debates orais e dos artigos de opinião, gêneros que podem ser desen- dantes. Há ainda a motivação (iii), que diz respeito à oportunidade de refle-
volvidos tendo a linguagem neutra como eixo temático. xão linguística que o trabalho com a linguagem neutra pode proporcionar
Além de um debate sobre a sociedade, o trabalho com a linguagem neu- em sala de aula. Afinal, compreender as propostas de estratégias para uma
tra em sala de aula possibilita um debate sobre a língua, aspecto situado linguagem neutra faz surgir a necessidade de refletir sobre os mecanismos
no cerne da motivação (ii). Nessa motivação, reside um ganho importante: de expressão de gênero do sistema linguístico do português brasileiro.
refletir sobre a complexa relação entre língua e sociedade. A ideia de que A reflexão linguística deve estar contextualizada, a serviço do estudo
a linguagem é mais do que uma ferramenta de comunicação, embora bem dos diferentes gêneros do discurso. No caso das propostas de linguagem
difundida entre os linguistas, não é necessariamente disseminada nas neutra, tanto compreender os manifestos escritos como buscar argumentos
diferentes esferas sociais. O embate a respeito da linguagem neutra é um para a defesa de um ponto de vista em debates orais ou em artigos de opinião
excelente exemplo do fato de que a linguagem não só reflete a sociedade, requer uma compreensão mais aprofundada das estratégias de neutraliza-
como também (releria o mundo social. Escrever ou falar "todes" no lugar ção de gênero pela linguagem, o que, por sua vez, demanda um estudo mais
de "todos" é mais do que a: troca de um elemento linguístico na ortogra- detalhado da língua portuguesa. Portanto, é necessário apresentar diferen-
fia e na realização fonética de uma palavra; é uma manifestação social em tes propostas aos estudantes para que eles, a partir delas, estudem a língua
busca de inclusão e afirmação de existência. Se a reivindicação existe, é portuguesa, os espaços de mudança e as restrições do sistema, o que pode
porque há singularidades que se sentem silenciadas pelo uso do mascu- ser benéfico para o desenvolvimento de habilidades linguísticas.
lino genérico e que, compreendendo o poder simbólico da língua sobre o Entender o que são artigos, substantivos, adjetivos e pronomes, por
mundo social, querem renegociar sentidos. Afinal, quem se entende não exemplo, é essencial para entender as propostas de linguagem neutra. Esse
binário desafia a binariedade em diversas esferas, desde suas construções é, em verdade, um exemplo de desenvolvimento de aprendizagens em que a
corporais até o uso da língua. reflexão linguística se constitui como aspecto primordial. Assim, o estudo
Abordar a linguagem neutra é, inicialmente, abordar a variação desses elementos pode ter, como questão-problema, a construção de uma
linguística, uma vez que as formas linguísticas com e sem marcação de linguagem neutra ou inclusiva. Um exemplo desafiador para a linguagem
gênero estão em competição. A respeito do trabalho com variação lin- neutra, como o apresentado por Schwindt (2020) - Meus(?) dois(?) amigues
guística em sala de aula, Faraco e Zilles (2015)defendem uma pedagogia mais próximes, Vini e Léo, chegaram. Preciso dar atenção a eles(?). -, pode
da variação linguística, uma prática que reflita sobre as questões acerca ser apresentado como mote para o estudo de classes de palavras e do fun-
da variação linguística. A escola deve garantir a "construção de toda uma cionamento da concordância no português brasileiro. Conhecendo bem o
cultura escolar aberta à crítica da discriminação pela língua e preparada comportamento do sistema, os estudantes podem não só apreciar critica-
para combatê-Ia, o que pressupõe uma adequada compreensão da hete- mente, de forma autônoma, as diferentes propostas de linguagem neutra,
rogeneidade linguística do país, sua história social e suas características como formular novas alternativas para sua realização. A escola, afinal, não
atuais" (Faraco: Zilles, 2015:9). No que tange à linguagem neutra, é preciso é um mundo à parte que reproduz a realidade. É a própria realidade. Da
tanto compreender as diferentes realizações linguísticas quanto a origem sala de aula, portanto, podem surgir novas estratégias em favor de uma
da discriminação pela língua promovida por aqueles que consideram tais linguagem neutra e inclusiva.
formas como uma "violação" do português, com o intuito de combater tal Destaco que as motivações (i), (ii) e (iii), aqui divididas para fins de
discriminação, em prol do respeito linguístico. sistematização, na verdade andam juntas: um trabalho com a linguagem
Até aqui, com as motivações (i) e (ii), tenho abordado os debates (sobre neutra em sala de aula deve envolver tanto um debate sobre a sociedade
a sociedade; sobre a língua) que devem ter lugar no ambiente escolar, o que quanto um debate sobre a língua, que, por sua vez, deve se apoiar em uma

192 Samuel Gomes de Oliveira A linguagem neutra e o ensino de língua portuguesa na escola
193
seguem surgindo, mas de discutir a questão, considerando tanto aspectos
prática de reflexão linguística. Também considero importante apontar que
sociais quanto aspectos linguísticos. É hora de abordar o movimento em
não tenho a pretensão de, nesta reflexão, abordar a totalidade da questão. favor da linguagem neutra, suas motivações e suas implicações, para que
Deve haver ainda outras motivações para o trabalho com a linguagem neu- os alunos possam estudar e propor maneiras de demonstrar, através do
tra que não foram aqui desenvolvidas.
uso da linguagem, seu respeito à diversidade.
Quando afirmo a relevância de trabalhar com a linguagem neutra em Quando estamos diante de um problema social e linguístico, podemos
sala de aula, enfatizo a importância de considerar toda a problemática ,
apresentá-Io enquanto tal aos estudantes: se algumas propostas de lin-
uma vez que a escola acompanha a evolução da língua e os movimentos guagem neutra são de difícil aplicação prática, o que fazer para garantir
sociais. Este talvez não seja o momento de instaurar e prescrever uma
a representatividade de mulheres e de pessoas de gêneros não binários na
norma linguística, até porque esse não é o objetivo do ensino de língua na
linguagem? Não há qualquer problema em apresentar o assunto como uma
escola, mas, antes, de refletir sobre o fenômeno da linguagem neutra, com
questão aberta. Mesmo que a problemática não se resolva em sala aula, o
base na construção de uma cultura de respeito à singularidade. Explicar próprio movimento de abordá-Ia propicia uma reflexão linguística contex-
o funcionamento das propostas de linguagem neutra é uma boa forma de
tualizada e a serviço de uma discussão socialmente pertinente.
refletir sobre a língua, sua evolução, seu caráter social e também sobre as Na atual conjuntura, a tarefa do professor de língua portuguesa é, ao
restrições do sistema linguístico.
invés de tomar partido sobre uma ou outra proposta de linguagem neu-
Por vezes, confunde-se o papel do professor como o daquele que
tra, explicar, com olhar de pesquisador, os usos linguísticos e os impactos
impõe um modo de falar e de escrever, quando esse não é, ou ao menos não sociais de cada um deles, adotando uma postura inclusiva e respeitosa que
deve ser, seu papel. É de uma concepção equivocada de língua e de ensino
deve ser soberana no espaço escolar. A aula de língua portuguesa não pode
de língua que decorrem discursos preocupados com a "violação" do por-
deixar de acompanhar a evolução da língua e as lutas sociais travadas no
tuguês, que desconsideram seu caráter social e variável. A função do pro-
terreno linguístico.
fessor de língua portuguesa deve ser possibilitar escolhas informadas e o
trânsito por diferentes práticas sociais por meio da linguagem. Trabalhar
com a linguagem neutra em sala de aula deve ter o intuito de fazer com
que os estudantes compreendam o que circunda a questão e o impacto de
usar e de não usar qualquer uma das formas, para que possam, então, agir
criticamente sobre o mundo, constituindo-se como cidadãos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A reflexão desenvolvida neste capítulo tem o intuito de discutir o


lugar da linguagem neutra nas aulas de língua portuguesa. A questão deve
ser estudada na escola, principalmente por se constituir como um debate
socialmente relevante, por instaurar uma importante discussão sobre a
relação entre língua e sociedade e por possibilitar uma aprofundada e con-
textualizada prática de reflexão linguística.
Não se trata de eleger uma única proposta e ensiná-Ia aos estudantes,
uma vez que diferentes possibilidades de realização da linguagem neutra
195
A linguagem neutra e o ensino de língua portuguesa na escola
194 Samuel Gomes de Oliveira
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206 Linguagem "neutra" - Língua e gênero em debate


207
Referências
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N ••
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•• • • • • • ••••• • • • • • •• •• • •• • •

AS AUTORAS
Fábio Ramos Barbosa Filho é professor da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, atuando no Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas e no Programa de Pós-
E OS AUTORES
-Graduação em Letras, Coordena o Projeto de Pesquisa "Discurso, arquivo, memória:
sentidos da presença africana no Rio Grande do Sul", É psicanalista em formação pelo
CEPdePA - Centro de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre,

Gabriel de Ávila Othero é professor do Instituto de Letras da Universidade Federal do


Rio Grande do Sul, nos níveis de graduação e Pós-Graduação, Sua área de atuação é
gramática do português, com ênfase em sintaxe,

• ••
•••
210 Linguagem "neutra" - Língua e gênero em debate
Mara Glozman é pesquisadora do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y
Técnicas (Argentina), com sede no Instituto de Linguística da Universidade de Buenos
Aires, onde também é professora na graduação em Letras. Suas linhas de pesquisa são
teoria materialista do discurso, metodologia da pesquisa de arquivo, história das ideias
e políticas sobre a língua(gem), debates sobre a língua(gem) e movimentos políticos na
Argentina (século XIX/peronismo/feminismo).

• • • • • • • • ••• • •
• • • • • • •• • • • •• Rafaely Carolina da Cruz é doutoranda pelo Programa de Pós Graduação em Lin-
guística da Universidade Estadual de Campinas. Tem interesse em pesquisas na área
de Linguística Textual e práticas linguísticas que envolvem a relação entre cognição,
linguagem e interação.

Raquel Meister Ko. Freitag é professora do Departamento de Letras Vernáculas, do


Programa de Pós-Graduação em Letras e do Programa de Pós-Graduação em Psi-
cologia da Universidade Federal de Sergipe. Estuda o processamento da variação lin-
guística, observando pistas de atenção, reparos e emoções na fala e nos falantes. É
pesquisadora CNPq.

Samuel Gomes de Oliveira é doutorando em Letras - Estudos da Linguagem pela


Universidade Federal do Rio Grande do Sul e professor de Língua Portuguesa da Pre-
feitura Municipal de Canoas (RS). Suas principais áreas de interesse e atuação são:
Sociolinguística Variacionista; Fonologia; Ensino de Língua Portuguesa; Variação Lin-
Anna Christina Bentes é professora do Departamento de Linguística da Universidade guística e Ensino.
Estadual de Campinas e pesquisadora CNPq. Seu Grupo de Pesquisa no CNPq intitu-
Ia-se "Linguagem como prática social: analisando a produção, a recepção e a avaliação Silvia Cavalcante é professora da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio
de Janeiro. Seu interesse de pesquisa são os estudos de sintaxe diacrônica, com ênfase
de interações, gêneros do discurso e estilos linguísticos". Atua nas áreas de Sociolin-
guística, Linguística do Texto e do Discurso e Linguística Aplicada. numa abordagem formal para os estudos da mudança, principalmente na detecção de
gramáticas em competição na mudança linguística.
Carolina Jansen Gandara Mendes é graduanda em Letras na Unicamp. Atualmente,
Sírio Possenti é professor Titular no Departamento de Linguística da Universidade Es-
é bolsista CAPES no programa da Residência Pedagógica e bolsista PAPI/Unicamp na
Cátedra Sérgio Vieira de Mel/o. tadual de Campinas. Atua em diversas áreas da Linguística, com ênfase em Teoria e
Análise Linguística, principalmente na subárea da Análise do Discurso, em especial nos
Danniel Carvalho é professor de Linguística na Universidade Federal da Bahia. Tra- campos do humor e da mídia. É pesquisador PQ-CNPq.
balha com morfossintaxe das línguas naturais, gênero e língua, linguística lavanda e
linguística colonial, estrutura interna de pronomes em português, traços phi e seu papel
na morfossintaxe das línguas e identidades de gênero em comunidades LGBTQIA+. E
pesquisador CNPq.

Guilherme Mãder é doutorando em Linguística pela Universidade Federal de Santa


Catarina. Estuda a expressão linguística, sobretudo gramatical, das relações de gênero
na sociedade.

Heronides Moura é professor titular da Universidade Federal de Santa Catarina. Pes-


quisador CNPq. Desenvolve pesquisas nas áreas de linguística cognitiva, gramática das
construções e metáfora.

212
Linguagem "neutra" - Língua e gênero em debate As Autoras e os Autores 213
,rtuguês ou brasileiro? Um convite à pesquisa, 54. Introdução à teoria enunciativa de Benveniste,
[arCOSBagno Valdir do Nascimento Flores
··rguagem & comunicação social, 55. Linguistica aplicada na modernidade recente,
oel Luiz Gonçalves Corrêa Luiz Paulo da Moita Lopes [org.]
,r uma linguística crítica, Kanavillil Rajagopalan 56. Gramáticas contemporâneas do português, Maria Helena de
rucação em língua materna: a sociolinguística na sala de Moura Neves & Vânia Cristina Casseb-Galvão
'a Stella Maris Bortoni-Ricardo 57. Letramentos sociais, na etnogrofia e na educação,

/ 'ist;ma, mudança e linguagem, Dante Lucchesi


'Oportuguês são dois", Rosa Virgínia Mattos e Silva
Brian V. Street
58. A ordem das palavras no português, Erotilde Goreti Pezatti
1 aios para uma sócio-história do português brasileiro,
sa Virginia Mattos e Silva
59. Frases sem texto, Dominique Maingueneau
60. Espanhol e português brasileiro,
"Jlinguísticaquenosfazfa/~7Gr, . Adrián Pablo Fanjul & Neide Maia González [orgs.]
[{aI1avillil RaJagopalan & Fabio Lopes da Silva [orgs.] 61. Sujeitos em ambientes virtuais, Maria Cecilia Mollica,
J)osigno ao discurso, Inês Lacerda Araújo Cynthia Patusco & Hadinei Ribeiro Batista [orgs.]
'Ensaiosdejilosojia da linguistica, José Borges Neto 62. Volosinov e ajilosojia da linguagem, Patrick Sériot
Nós cheguemu na escola, e agora?, Stella Maris Bortoni-Ricardo 63. A história das línguas, Tore Janson
J)oa-selindosjilhotes de poodle, Maria Marta Pereira Scherre 64. Discurso e análise do discurso, Dominique Maingueneau
A geopolítica do inglês, Yves Lacoste [org.] 65. Sobre afala dialogal, Lev Jakubinskij
Gêneros, José Luiz Meurer, Adair Bonini & 66. Retórica da ação letrada, Charles Bazerman
Désirée Motta-Roth [orgs.] 67. Teoria da ação letrada, Charles Bazerman
O tempo nos verbos do português, M' Luiza M. S. Corôa 68. Unidade e variação na língua portuguesa, André C. Valente
Considerações sobre afala e a escrita, Darcilia Simões 69. Linguistica funcional, Maria Angélica Furtado da Cunha,
Princípios de linguistica descritiva, Mário A. Perini Mariangela R. de Oliveira & Mário Eduardo Martelotta [orgs.]
Fundamentos empincos para uma teoria da mudança 70. O texto e sells conceitos, Ronaldo de Oliveira Batista [org.]
linguística, U. Weinreich, W. Labov & M. l. Herzog 71. Gramáticas brasileiras, Carlos Alberto Faraco &
'.por uma linguistica aplicada indisciplinar, Francisco Eduardo Vieira [orgs.]
Luiz Paulo da Moita Lopes 72. Saussure, o texto e o discurso, Mareio Alexandre Cruz,
'.Origens do português brasileiro, Anthony Julius Naro & Carlos Piovezani & Pierre- Yves Testenoire [orgs.]
Maria Marta Pereira Scherre 73. O efeito Saussure, Carlos Alberto Faraco [org.]
;J. Introdução à gramaticalização, Sebastião Carlos Leite 74. Dinâmicas funcionais da mudança linguística, Marcos Bagno,
Gonçalves, M' Célia Lima-Hernandes & Vânia Cristina Vânia Casseb-Galvão & Tânia F. Rezende [orgs.]
Casseb-Galvão [orgs.] 75. Gêneros no contexto brasileiro, Benedito Gomes Bezerra
a
22. acento em português, Gabriel Antunes de Araújo [org.] 76. A pessoa no discurso, Adrián Pablo Fanjul
'Zl. Sociolinguística quantitativa, Gregory R. Guy & 77. O todo da língua, Vânia Casseb-Galvão & Maria Helena de
, Ana Maria Stahl Zilles Moura Neves [orgs.]
24. Metáfora, Tony Berber Sardinha 78. Saussure e Benveniste no Brasil, Valdir do Nascimento Flores
25. Norma culta brasileira, Carlos Alberto Faraco 79. Mikhail Bakhtin. Alastair Renfrew
26. Padrõessociolinguísticos, William Labov 80. A gramática tradicional- História crítica,
'li.Gênesedos discursos, Dominique Maingueneau Francisco Eduardo Víeira
28. Cenasda enunciação, Dominique Maingueneau 81. Filologia, história e língua - Olhares sobre o português
29. Estudos de gramática descritiva, Mário A. Perini medieval, Leonardo Lennertz Marcotulio; Célia Regina
30. Caminhosda linguística histórica, Rosa Virgínia Manos e Silva dos Santos Lopes; Mário Jorge da Motta Bastos &
31. Limites do discurso, Sírio Possenti Thiago Laurentino de Oliveira
32. Questõespara analistas do discurso, Sírio Possenti 82. Qual política linguística? Desajios glotopolíticos
33. Linguagem & diálogo, Carlos Alberto Faraco contemporâneos, Xoán Carlos Lagares
34.NomenclaturaGramatical Brasileira, Claudio Cezar Henriques 83. Análise de discurso crítica - para linguistas e não linguistas,
35.Língua na midia, Sírio Possenti José Ribamar Lopes Batista Jr.; Denise Tamaê Borges Sato &
36.Malcomportadas línguas, Sírio Possenti Iran Ferreira de Meio [orgs.]
37. Linguagem. Gênero. Sexual idade, Ana Cristina Ostermann & 84. A linguistica, o texto e o ensino da língua,
Beatriz Fontana [orgs.] José Carlos Azeredo
38.Em busca de Ferdinand de Saussure Michel Arrivé 85. Língua portuguesa - Tradições e modernidade,
39.A noção de "fórmula" em análise d; discurso, Tania Maria N. de L. Camara; Denise S. Santos;
Alice Krieg-Planque Flávio de A. Barbosa & Alexandre do A. Ribeiro [orgs.]
~. Geolinguística, Suzana Alice Marcelino Cardoso 86. Objeto Língua - Inéditos e revisitados, Marcos Bagno
1. Doze conceitos em análise do discurso, 87. NURC - 50 anos, Miguel Oliveira Jr. [org.]
Dominique Maingueneau 88. O dialeto caipira, Arnadeu Amara I
:~. ~ discurso pornográjico, Dominique Maingueneau 89. Variações sobre o ethos, Dominique Maingueneau
44' alando ao pé da letra, Roxane Rojo 90. O sujeito gramatical no português brasileiro - expressão,
45: ~ova pragmática, Kanavillil Rajagopalan . . concordância, ergatividade e afetamento, Vânia Cristina
46 G~khtmdesmascarado, Jean-Paul Bronckart & Cristian Bota Casseb-Galvão; Gian Luigi De Rosa; Kleber Aparecido Silva
47 Li: ner?textual, agência e tecnologia, Carolyn R. Miller & Lennie Aryete Pereira Bertoque [org.] .
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48. A z An~onlO Marcuschi Carlos Alberto Faraco, Marcos Bagno e Francisco E. Vieira [org.]
49 O gramallca passada a limpo, Maria Helena de Moura Neves 92. O português daqui, dali e de lá - por uma língua que nos una, .
, MSUjeItoem peças de teatro (/833-/992), Denise Salim dos Santos & Flávio de Aguiar Barbosa [org.]
50 R ana Eugênia Lammoglia Duarte [org.] 93. Constelação de gêneros - a construção de um conceito, Júlio
5\' Dor;ugUêSno século XXI, Luiz Paulo da Moita Lopes [org.] Araújo
. R~btngllíslicaformal à linguistica social, 94. Discurso e (pós)verdade, Luzmara Curcino, Vanice
52, &t erto Gomes Camacho Sargentini & Carlos Piovezani [org.].
53, Gêudos do discurso, Luciano Amaral Oliveira [org.] 95. Linguagem "neutra": língua e gênero em debate, Fábio
& ~ro - história, teoria, pesquisa, ensino, Anis B. Bawarshi Ramos B. Filho & Gabriel de Á vila Othero [org.].
ary Jo Reiff
;j() terninist a e as marcas
movrrnonto
na linguagem Silvia Ca-
fr.rnininas,
vulcante apresenta propostas para o
sistema de gênero neutro em dife-
rontos línguas e explica a mudança
morfológica aplicada a substantivos,
adjetivos e pronomes em português.
Anna Christina Bentes, Rafaely Caro-
lina da Cruz e Carolina Jansen Ganda-
ra Mendes abordam a diversidade de
maneiras de marcar o gênero neutro
ou inclusivo e estabelecem distinções
entre quem emprega a linguagem in-
clusiva (e como a emprega) e quem
não a utiliza. Danniel Carvalho apre-
senta um estudo relacionando a for-
rnacào de pronomes à identidade de
gênero em comunidades LGBTQIA+.

OS seis primeiros capítulos apresen-


tam, descrevem e problematizam o
fenômeno da linguagem "neutra" sob
diferentes ângulos. Os últimos três
capítulos deixam nosso "cercadinho"
intelectual e acadêmico e discutem
como as estratégias de linguagem
inclusiva têm sido abordadas e deba-
tidas em ambientes externos à acade-
mia: nas câmaras legislativas e na sala
de aula.

Fábio Ramos Barbosa Filho discute


seis projetos legislativos que tentam
proibir ou coibir o uso de estratégias
de linguagem "neutra". Mara Glozman
discute um projeto de lei sobre a uti-
lizaçâo de linguagem inclusiva apre-
sentado à Camara de Deputados ar-
gentina. É um texto essencial para
Esta obra foi composta em Abril Titling 10,5/15
e impressa em papel Lux Cream 60g
compreender o fenômeno no Brasil,
para a Parábola Editorial em maio de 2022. por mais paradoxal que isso possa pa-
Impressão e acabamento:
recer. Samuel Gomes de Oliveira avalia
Gráfica Paym as possibilidades de aplicaçâo das re-
gras de neutralizaçâo de gênero no en-
sino de língua portuguesa na escola.
Este Iivro é uma resposta de parte da co-
munidade linguística a algumas perguntas que
têm circulado nos últimos anos:
o que é o gênero "neutro"?
O que é linguagem "neutra"?
É o mesmo que linguagem inclusiva?

Precisamos disso?
Quem se beneficia de toda essa discussão?
Trata-se de corrupção da língua? De inovação?
Como abordar esse fenômeno em sala de aula?
O que ele tem a ver com o movimento feminista?
E com a sociedade em que vivemos?
O que diz a legislação sobre a linguagem inclusiva?
É preciso legislar sobre a língua?

Uso querid@s, queridXs ou querides? Tem alguma


diferença?
E se eu não quiser usar nenhuma dessas formas?
O que é o "masculino não marcado"? É masculino e
é não marcado?
O que é um pronome não binário?

Essas perguntas circulam pelos meios de comuni-


cação, redações de jorna I,corredores u n iversitá rios,
salas de aula e andam até na pauta de políticos e
de todos os espectros ideológicos - interessados
em respeitar ou atacar a linguagem "neutra" ou
inclusiva, a depender de seu posicionamento po-
Iítico-ideológ ico.

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9 788579 342547 L:J

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