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UNIVERSIDADE FEDERAL DE VIÇOSA

CENTRO DE CIÊNCIAS EXATAS


DEPARTAMENTO DE ARQUITETURA E URBANISMO

COCRIAÇÃO EM ARQUITETURA: UMA APROXIMAÇÃO ÀS METODOLOGIAS


INDICADAS POR GIANCARLO MAZZANTI PARA A REVISÃO DO ENSINO DE
PROJETO.

Bolsista: Vitória Maria Andrade Gonçalves


Orientador(a): Marilia Solfa

Relatório Final, referente ao período de SETEMBRO/2022 a AGOSTO/ 2023,


apresentado à Universidade Federal de Viçosa, como parte das exigências
do Edital PIBIC FAPEMIG 2022-2023.

VIÇOSA
MINAS GERAIS - BRASIL
OUTUBRO/2023
1

UNIVERSIDADE FEDERAL DE VIÇOSA


CENTRO DE CIÊNCIAS EXATAS
DEPARTAMENTO DE ARQUITETURA E URBANISMO

RESUMO

COCRIAÇÃO EM ARQUITETURA: UMA APROXIMAÇÃO ÀS METODOLOGIAS


INDICADAS POR GIANCARLO MAZZANTI PARA A REVISÃO DO ENSINO DE
PROJETO.

O escritório colombiano El Equipo Mazzanti enfatiza a importância da arquitetura responder às


necessidades locais e efêmeras e integrar-se ao contexto social e cultural em que se insere.
Além da prática arquitetônica, o escritório também desenvolve uma abordagem teórica e
metodológica que busca a participação das comunidades em algumas etapas de fundamentação
e desenvolvimento dos projetos. Nesse sentido, no livro "Jugando con Anomalías: ejercicios
lúdicos para la co-creación del espacio" (2017) Giancarlo Mazzanti propõe uma série de
exercícios e atividades destinados a estudantes de arquitetura, explorando uma abordagem
lúdica e participativa para a inserção da cocriação no âmbito do ensino de projeto. O autor
destaca três metodologias de pesquisa que podem auxiliar na compreensão e implementação da
cocriação: a etnografia, a grounded theory (teoria baseada em dados) e o design thinking (design
centrado no usuário). Nesse sentido, esta pesquisa buscou aproximar-se destas metodologias a
fim de compreender e analisar como estas podem ser adaptadas e incorporadas ao processo de
projeto arquitetônico, a fim de permitir a criação de espaços não autorais e que atendam melhor
às necessidades dos usuários. Buscou-se identificar em quais etapas do processo de projeto
essas metodologias poderiam ser aplicadas e quais vantagens resultariam dessa aplicação. Na
primeira parte da pesquisa, focada na fundamentação teórica, foram exploradas as referências
bibliográficas recomendadas por Giancarlo Mazzanti, abrangendo as três metodologias
mencionadas. Foram selecionados textos fundamentais escritos por Velasco e De Rada (1997),
que contribuíram para a compreensão da etnografia, Adele Clarke (2003), que aborda a
grounded theory, além de Tim Brown e Jocelyn Wyatt (2010), cujos trabalhos se voltam para o
design centrado no usuário. Na segunda parte da pesquisa foram confrontadas as ideias e
proposições presentes nas metodologias estudadas com as etapas clássicas do processo de
projeto em arquitetura, buscando entender como docentes das disciplinas de projeto (de cursos
de Arquitetura e Urbanismo) poderiam adotar novas estratégias para propor aos estudantes
exercícios mais abertos, contextualizados e participativos. Este confronto colocou em evidência
que tais metodologias têm o potencial de ajudar os estudantes a projetar espaços que não
apenas respondam a exigências físicas, mas também considerem os aspectos sociais e culturais
das comunidades em que se inserem, promovendo maior aproximação entre universidade e
sociedade, inclusão social e participação.

_____________________________ _____________________________
Marilia Solfa Vitória Maria Andrade Gonçalves
Orientadora Bolsista
2

SUMÁRIO

1. Introdução e problematização 3
2. Objetivos 4
3. Metodologia 4
4. Desenvolvimento e síntese da bibliografia fundamental 5
4.1 Apresentação das Metodologias de Pesquisa 7
4.1.1 Etnografia 7
4.1.2 Grounded Theory 10
4.1.3 Design Thinking 13
4.2 Associação entre as Metodologias de Pesquisa e o processo de ensino de
projeto nas faculdades de Arquitetura e Urbanismo 17
5. Conclusões 20
6. Referências bibliográficas 22
3

1. Introdução e problematização

O escritório de arquitetura colombiano El Equipo Mazzanti é uma referência


no cenário arquitetônico contemporâneo, conhecido por uma abordagem inovadora
e socialmente consciente na criação de espaços urbanos e arquitetura. Fundado
pelo arquiteto Giancarlo Mazzanti1, o escritório se destaca por sua forma de atuação
interdisciplinar e colaborativa, buscando uma compreensão profunda das
necessidades das comunidades para as quais projeta. O escritório acredita na
importância da arquitetura responder às necessidades locais e integrar-se ao
contexto social e cultural em que se insere. Para isso, incorpora ao seu processo de
criação estratégias do jogo lúdico com o objetivo de promover uma aproximação ao
usuário, inserindo-os no processo de projeto. Tais estratégias lúdicas são utilizadas
em diferentes etapas do processo de criação com o objetivo final de conceber
arquiteturas abertas de significado e forma.
Pautando-se na crença da arquitetura enquanto indutora de ações,
acontecimentos e novas relações das pessoas entre si e com o espaço, os projetos
do escritório refletem a arquitetura enquanto uma “obra aberta”, que pode
transformar e ser transformada a partir do contato com as pessoas. Assim, eles
buscam projetar espaços que possam ser adaptados e ressignificados ao longo do
tempo, permitindo que os usuários se apropriem dos ambientes e os modifiquem
conforme suas necessidades evoluem.
Para além dos projetos, o escritório também se volta à pesquisa acadêmica,
da qual teve origem, dentre outras publicações, o livro "Jugando con Anomalías:
ejercicios lúdicos para la co-creación del espacio" (2017). No livro, Giancarlo
Mazzanti e os demais autores propõem uma série de exercícios e atividades
destinados a estudantes de arquitetura, explorando uma abordagem lúdica e
participativa para a inserção da cocriação no âmbito do ensino de projeto.
A cocriação em arquitetura perpassa a ideia de um processo colaborativo no
qual arquitetos e demais partes envolvidas no projeto trabalham juntos na criação do
espaço. Assim, em “Jugando com Anomalias” (2017), o autor destaca três
metodologias de pesquisa que podem auxiliar na compreensão e implementação da

1
Giancarlo Mazzanti nasceu em Barranquilla, na Colômbia, e formou-se como arquiteto e urbanista
pela Universidade Javeriana de Bogotá em 1987. Realizou pós-graduação na Universidade de
Florença, Itália (1992), onde trabalhou com o arquiteto Cino Zucchi. Além disso, tem lecionado como
professor convidado em várias instituições como a Universidade de Los Andes e a Universidade
Javeriana, na Colômbia, e as Universidades de Harvard, Columbia e Princeton, nos Estados Unidos.
4

cocriação no projeto de espaços não autorais e que atendam melhor às


necessidades dos usuários. São elas: a etnografia, a grounded theory (teoria
baseada em dados) e o design thinking (design centrado no usuário). A partir disso,
Mazzanti tem buscado utilizar destas metodologias de pesquisa associadas à noção
de jogo lúdico para incorporá-las ao processo de projeto, bem como no ensino de
projeto, de forma que o estudo dessa abordagem pode contribuir com
conhecimentos acerca da concepção de projetos mais abertos e participativos.

2. Objetivos

Consideramos como principais objetivos dessa pesquisa:

● Aprofundar o conhecimento sobre a cocriação e o jogo lúdico em arquitetura,


conforme investigado e aplicado pelo escritório El Equipo Mazzanti;

● Investigar, compreender e mapear as metodologias de pesquisa indicadas


pelos autores do livro “Jugando com anomalías” como apropriadas para o
desenvolvimento da cocriação em arquitetura. São elas: a etnografia, a
grounded theory (teoria baseada em dados) e o design thinking (design
centrado no usuário). Levantar os principais estudos e autores associados a
essas metodologias para compreender a proposta geral e as especificidades
de cada uma.

● Aprofundar os conhecimentos a respeito do processo de (ensino de) projeto


de arquitetura;

● Compreender e analisar como as metodologias estudadas podem ser


adaptadas e incorporadas ao processo de (ensino de) projeto de arquitetura.

3. Metodologia

Na primeira parte da pesquisa, focada na fundamentação teórica, foram


exploradas as referências bibliográficas recomendadas no livro "Jugando con
Anomalías: ejercicios lúdicos para la co-creación del espacio" (2017), abrangendo as
três metodologias mencionadas: a etnografia, a grounded theory (teoria baseada em
dados) e o design thinking (design centrado no usuário). Foram selecionados textos
5

fundamentais escritos por Velasco e De Rada (1997), que contribuíram para a


compreensão da etnografia, Adele Clarke (2003), que aborda a grounded theory,
além de Tim Brown e Jocelyn Wyatt (2010), cujos trabalhos se voltam para o design
centrado no usuário. Ao aprofundarmos o conhecimento sobre essas metodologias
pudemos nos aproximar mais das ideias e estratégias empregadas por Mazzanti nos
exercícios projetuais de cocriação realizados com os estudantes de arquitetura.
Na segunda parte da pesquisa foram confrontadas as ideias e proposições
presentes nas metodologias estudadas com as etapas clássicas do processo de
projeto em arquitetura, buscando entender como docentes das disciplinas de projeto
(de cursos de Arquitetura e Urbanismo) poderiam adotar novas estratégias para
propor aos estudantes exercícios mais abertos, contextualizados e participativos.

4. Desenvolvimento e síntese da bibliografia fundamental

O livro "Jugando con anomalías" (2017) representa uma outra face de


atuação do escritório El Equipo Mazzanti, voltada à produção acadêmica e
divulgação das pesquisas e experimentações desenvolvidas por ele. Apresenta ao
leitor “um processo de exploração coletiva que busca gerar novas maneiras de
produzir espaços de forma colaborativa por meio de redes e experiências lúdicas.”2
(MAZZANTI, MEDELLÍN, 2017, p. 11). O livro descreve a experiência de um
Workshop de Arquitetura Avançada realizado em parceria com estudantes da
Universidade de Columbia (EUA), onde foram aplicados processos colaborativos de
leitura, apropriação e produção de espaço em Barranquilla, Colômbia. Assim, as
ideias de cocriação a partir do jogo lúdico difundidas pelo escritório e empregadas
em alguns de seus projetos foram exploradas na prática pelos estudantes.

O livro é organizado em cinco partes distintas para destacar e explorar a


experiência lúdica como uma oportunidade criativa e de diálogo entre os diferentes
atores envolvidos no processo de criação do espaço. A primeira parte apresenta
uma discussão conceitual e teórica como embasamento para os exercícios
realizados no workshop. A segunda parte introduz protocolos de jogo para uma
aproximação, leitura e compreensão do espaço a partir da criação de oportunidades

2
do original: “es parte de un proceso de exploración colectiva que busca generar nuevas formas de
producir espacios de manera colaborativa a través del establecimiento de redes y experiencias
lúdicas.”
6

de encontro e diálogos entre estudantes de arquitetura e usuários da cidade. As


partes três e quatro narram a perspectiva do encontro entre duas cidades, Nova York
e Barranquilla, através de exercícios lúdicos de leitura e interpretação de contextos
urbanos, culturais e sociais presentes nas duas cidades, seguido pela proposição de
uma proposta projetual , detalhando o processo desenvolvido. Por fim, a quinta parte
apresenta os resultados do workshop como um estudo de caso que explora e
propõe projetos arquitetônicos como oportunidades urbanas para a interseção entre
o design e os cidadãos. Assim, o livro constrói uma narrativa na qual apresenta os
conceitos e teorias que embasam a produção prática do escritório no que diz
respeito à cocriação, e como ela pode ser trabalhada nos ateliês de projeto.

Nesse contexto, a aplicação de metodologias de pesquisa como a Etnografia,


o Design Thinking e a Grounded Theory ao processo de projeto em arquitetura são
mencionados na obra como forma de enriquecer a abordagem tradicional do projeto.
Isso ocorre porque essas metodologias fornecem ferramentas e estratégias para
entender melhor as necessidades dos usuários, gerar ideias criativas e validar
conceitos por meio de testes e interações.

A partir de textos acadêmicos elaborados por diferentes autores e inseridos


no livro, as metodologias de pesquisa foram apresentadas como estratégias para
serem utilizadas no processo de projeto em arquitetura visando auxiliar na criação
de espaços inovadores e centrados no usuário e dialogando com o processo de
cocriação proposto por Mazzanti. Tomando como base o texto “Entre datos y teorías:
Reconceptualizando la Ciudad Latinoamericana desde el Terreno” de Sergio
Montero (2017) que está contido no livro de Mazzanti, foi possível compreender,
segundo as perspectivas dos autores, como metodologias de pesquisa da área da
antropologia e do design poderiam contribuir para o campo da arquitetura e do
planejamento urbano. E foi sobre este aspecto que esta pesquisa buscou se
aprofundar.

Montero fala sobre a importância da utilização de metodologias de


investigação que auxiliem, por exemplo, na interpretação dos dados coletados
durante a etapa de levantamento feito pelos estudantes de Arquitetura e Urbanismo
em seus projetos durante a graduação, quando vão a campo coletar informações
para os projetos que realizam. Segundo ele, tais metodologias de pesquisa
7

“enfatizam o papel interpretativo do investigador e sua capacidade de converter as


informações e dados recolhidos em campo em novos conceitos”3 (MAZZANTI,
MEDELLÍN, 2017, p. 142) e nisso consistiria o benefício em empregá-las na
Arquitetura e Urbanismo.

A partir dos textos fundamentais sugeridos por Montero para cada uma das
metodologias, nosso objetivo foi aprofundar nossa compreensão das metodologias
em questão examinando cuidadosamente suas características distintas e os
cenários em que são mais apropriadas, a fim de discernir como podem ser aplicadas
de maneira eficaz ao processo de projeto em arquitetura. Isso inclui identificar os
estágios ideais para a sua implementação, os objetivos que podem ser alcançados
por meio delas e os benefícios tangíveis que derivam da integração dessas
metodologias ao ciclo de projeto e de ensino de projeto visando contribuir para a
formação dos futuros arquitetos e urbanistas.

4.1 Apresentação das Metodologias de Pesquisa

4.1.1 Etnografia

Tomando como base o texto sugerido por Montero (2017) “El trabajo de
campo. La lógica de la investigación etnográfica: Un modelo de trabajo para
etnógrafos de escuela” de autoria de Velasco e De Rada (1997), a Etnografia pode
ser compreendida como uma metodologia de pesquisa qualitativa que se destaca
pelo foco na compreensão profunda das culturas e das práticas sociais através da
imersão participativa no contexto em estudo. Originada na antropologia mas também
amplamente utilizada em outras disciplinas, como sociologia, psicologia e educação,
ela requer que o pesquisador se envolva profundamente na vida dos sujeitos ou
grupos estudados. Isso envolve viver e trabalhar no campo por um período
significativo de tempo, permitindo que o pesquisador se torne um participante ativo
nas atividades cotidianas do grupo.

Assim, dentre os conceitos e recursos utilizados na Etnografia, tem-se a


observação participante e as entrevistas. A observação participante é uma técnica
central na etnografia, em que o pesquisador não apenas observa passivamente o
3
do original: “enfatizan el rol interpretativo del investigador y su capacidad de convertir las
observaciones y datos recogidos en campo en nuevos conceptos como la etnografía, la teoría
anclada y el pensamiento de diseño”
8

que acontece no campo, mas também participa das atividades, interage com as
pessoas e desenvolve relacionamentos com os membros da comunidade estudada.
A partir de sua vivência e do contato com a comunidade estudada ele, então,
interpreta. A observação participante na etnografia está relacionada à uma postura
etnográfica em que o investigador precisa se despir de todas suas preconcepções e
vivenciar a experiência em campo de forma direta, assim como as pessoas do grupo
estudado.

No caso da entrevista, ela surge como ferramenta base para a tentativa de


dar voz ao outro. Ao se despir de suas preconcepções e pré-julgamentos, o
investigador em campo observa e interpreta a realidade a partir da vivência no local,
mas isso ocorre naturalmente a partir de seus conhecimentos prévios. Nesse
aspecto, o predomínio é do seu próprio ponto de vista. A entrevista é a forma como
o pesquisador tenta captar o que as pessoas pensam e sentem a partir do olhar
delas sobre elas mesmas. Dessa forma, o fazer etnográfico envolve articular as duas
perspectivas distintas obtidas por meio das entrevistas e da observação participante:
o olhar do investigador e o olhar do outro.

Conforme colocado por Velasco e De Rada (1997), diversas técnicas e


instrumentos podem ser utilizados no processo de documentação e coleta de dados
em campo, como “censos, mapas, questionários, tabelas, listas, gráficos, desenhos,
fotografias, filmes, gravações sonoras, documentos', etc.”4 (p. 34). Essas são
ferramentas capazes de auxiliar na produção e documentação da informação que
está sendo obtida no trabalho de campo. A combinação dessas fontes de dados
ajuda a obter uma compreensão abrangente do contexto estudado.

Para Mattos (2011), o fazer etnográfico envolve uma tentativa de apreensão


do todo, mesmo que essa totalidade seja impossível de ser alcançada. Segundo a
autora, “ao estudarmos uma sociedade, tentamos estudar o todo desta sociedade”
(p. 55). Assim, ainda segundo Velasco e De Rada (1997), o fazer etnográfico
envolve quatro esferas que possibilitam a compreensão da totalidade: descrever,
traduzir, explicar e interpretar. Uma vez que a etnografia se concentra na
interpretação dos dados coletados, os pesquisadores buscam entender os padrões

4
do original: “censos, mapas, cuestionarios, tablas, listas, gráficos, dibujos, fotografías, filmes,
grabaciones sonoras, documentos, etc.”
9

culturais subjacentes, os significados compartilhados e as relações sociais do


contexto em estudo a partir desse próprio contexto. Para isso precisam estar
conscientes de suas próprias influências, preconceitos e perspectivas durante o
processo de pesquisa, visando minimizar o viés próprio e a aumentar a objetividade.

Diante das informações apreendidas sobre a etnografia, pôde-se perceber


que a produção e coleta de informações nesta metodologia se aproxima muito da
etapa de levantamento e diagnóstico que é parte fundamental do fazer arquitetônico
e urbanístico. No entanto, enquanto o levantamento arquitetônico muitas vezes se
limita às condições físicas do espaço, a etnografia abarca a investigação sobre
questões sociais e culturais de seus habitantes, contribuindo para uma leitura mais
holística do espaço.

Esta etapa de levantamento em arquitetura compreende a coleta e análise de


uma ampla gama de informações para garantir que o projeto atenda às
necessidades e expectativas do cliente5, visando criar uma base sólida para o
desenvolvimento do projeto arquitetônico final. O papel do arquiteto e urbanista é
justamente trabalhar em estreita colaboração com os clientes, seja em um
empreendimento público ou privado, para identificar as demandas quanto ao
ambiente construído e às expectativas sociais e culturais dos usuários do espaço, e
a partir delas oferecer respostas em linguagem arquitetônica, ou seja, conceber
projetos arquitetônicos e urbanísticos visando atender às questões identificadas na
pesquisa de campo. Conforme colocado por Alfonso Corona Martínez (2000),

“o projeto é a descrição de um objeto que não existe no começo do


processo. Esta descrição faz-se por aproximações sucessivas. As primeiras
descrições referem-se ao futuro comportamento do objeto no mundo, às
suas relações contextuais, às necessidades a serem satisfeitas” (p. 36).

Resumo:

● Como funciona: A etnografia é uma abordagem de pesquisa que envolve a


observação direta e a imersão em um ambiente específico para entender o
comportamento, a cultura e as interações dos usuários.

5
a cargo de explicação: as palavras “cliente” e “usuário” foram utilizadas como sinônimas neste
relatório, no entanto cabe destacar que muitas vezes, tanto em obras públicas quanto privadas, o
contratante do projeto não é aquele que irá utilizar efetivamente os espaços, ou seja, não é o
“usuário”.
10

● Aplicação em arquitetura: Arquitetos podem usar a etnografia para observar


e compreender o comportamento social e cultural de um grupo específico,
como as pessoas interagem entre si e com os espaços existentes, como
casas, escritórios, hospitais, etc. Isso ajuda a compreender as reais
necessidades dos usuários, influenciando o projeto de espaços que atendam
melhor às suas demandas.

4.1.2 Grounded Theory

Desenvolvida inicialmente por Barney G. Glaser e Anselm L. Strauss na


década de 1960, a metodologia de pesquisa Grounded Theory (Teoria
Fundamentada nos Dados) consiste, assim como a Etnografia, em uma abordagem
de pesquisa qualitativa que tem como objetivo compreender fenômenos sociais de
maneira aprofundada. Apesar disso, enquanto a Etnografia envolve o estudo
detalhado de grupos culturais específicos, por meio de uma imersão profunda no
campo de estudo, a Grounded Theory se concentra na construção de teorias a partir
de dados coletados.

Conforme colocado por Clarke em seu texto “Situational Analysis: Grounded


Theory Mapping After the Postmodern Turn” (2003) - recomendado por Montero
(2017) como texto base relacionado à metodologia Grounded Theory -, a “virada
pós-moderna” marcou a aceitação do “ruído”, assumindo todos os diferentes
contextos, sem negar suas partes que são “representação da complexidade, da
confusão e da densidade das situações reais e das diferenças na vida social”6 (p.
556). Isso porque a metodologia Grounded Theory foi desenvolvida em um cenário
no qual os paradigmas modernos, incluindo o funcionalismo, racionalidade e
generalidade, estavam sendo revistos justamente por não abarcar as complexidades
de cada contexto em função da busca pela universalidade. Nesse sentido, a
metodologia desenvolvida por Glaser e Strauss surgiu em um momento histórico
marcado pela busca de métodos de pesquisa mais qualitativos e interpretativos que
pudessem capturar a complexidade da vida em sociedade.

6
do original: “representations of the complexities, messiness, and denseness of actual situations and
differences in social life” (p. 556).
11

De acordo com Clarke (2003), a principal característica da Grounded Theory é


sua ênfase na construção da teoria diretamente a partir de dados levantados em
campo, em vez de aplicar teorias pré-existentes ou testar hipóteses. Isso significa
que a teoria é "fundamentada" nos dados observados e coletados durante a própria
pesquisa.

A metodologia tem início com a coleta de dados brutos, geralmente por meio
de entrevistas, observações ou análise de documentos. Ela tem como foco a
identificação de padrões e significados emergentes nos dados, o que é realizado por
meio da etapa fundamental de codificação. A codificação é o processo no qual a
informação é interpretada e categorizada, auxiliando na análise e compreensão do
objeto de estudo e auxiliando na criação de categorias conceituais que dão conta da
compreensão do fenômeno estudado. Durante todo o processo de pesquisa, os
pesquisadores continuam comparando novos dados com dados anteriores para
refinamento constante das categorias e conceitos.

Para além da codificação de dados, categorização e teorização, Clarke (2003)


apresenta, ainda, os Mapas Situacionais como ferramentas complementares à
Teoria Básica Fundamentada (Basic Grounded Theory). Segundo a autora, o
objetivo dos mapas é direcionar uma análise aprofundada do objeto de estudo,
buscando abordagens que estimulem o pensamento do investigador até que este
chegue em um estado de saturação quanto ao tema.

Imagem 01 - Exemplo de
Mapa situacional. Fonte:
CLARKE, Adele. (2003).
Situational Analysis:
Grounded Theory Mapping
After the Postmodern Turn.
12

Os Mapas Situacionais envolvem a listagem e criação de categorias de


caráter analítico levantando questões e considerações que “tanto ajudaram a
produzir o Mapa Situacional como foram elas próprias produzidas por ele.”7 (p. 569).
A construção do Mapa Situacional leva em consideração elementos humanos, como
indivíduos, grupos, organizações e instituições, e não humanos (espaços,
interações, elementos simbólicos/ discursivos) relacionados à situação analisada a
fim de encontrar os significados e conexões mais relevantes para a pesquisa que o
investigador conduzirá. Cada elemento do mapa deve ser analisado como parte de
um todo, mas buscando compreender como ele pode ser associado individualmente
a cada um dos demais elementos. Sobre isso, Clarke (2003) aponta que

“Os sentidos simbólicos e discursivos dos elementos nos mapas


situacionais podem ter um significado tremendo na análise. Mais uma vez, o
pesquisador precisa ter certeza de que eles estão presentes nos dados
coletados e no mapa situacional. Se eles se revelarem sem importância
particular, eles cairão em etapas posteriores do processo de pesquisa.” (p.
563)8

Nesses aspectos consiste o principal objetivo dos Mapas Situacionais e da


Grounded Theory em si que é a busca por novos conhecimentos e a criação de
categorias conceituais/teorias por meio de uma análise sistemática dos dados
coletados. Assim, no que diz respeito ao processo de projeto e ensino de
arquitetura, a Grounded Theory pode ser associada à produção de mapas e estudos
para captar quaisquer relações relevantes na vida social do grupo para o qual o
projeto será elaborado. A consequência disso para o produto arquitetônico ou
urbanístico final, pode ser, por exemplo, o de direcionar a ênfase conceitual que
determinado projeto irá seguir, ou tornar mais claro aspectos sociais, culturais ou
históricos que merecem especial atenção no processo de concepção. Para Clarke
(2003),

“as análises relacionais não são particularmente exóticas, mas fornecem


uma forma sistemática, coerente e potencialmente provocativa de entrar e
memorizar as complexidades de um projeto traçado em um mapa

7
do original: “These questions both helped to produce the map and were themselves produced by it”
(p. 569).
8
do original: “The symbolic and discursive meanings of elements in situational maps may be of
tremendous significance in the analysis. Again, the researcher needs to make sure they are present in
the data gathered and the situational map. If they turn out to be of no particular importance, they will
drop away in later stages of the research process.” (p. 563)
13

situacional. Os mapas relacionais podem assim ajudar o analista a decidir


quais histórias contar.” (p. 569)9

Deste modo, ela poderia ser empregada pelos professores de Arquitetura e


Urbanismo como uma forma de estimular nos estudantes um estudo analítico focado
não apenas nas necessidades dos clientes mas nas situações que estabelecem
diariamente entre si e com o lugar, considerando, conforme colocado pela Grounded
Theory, os elementos humanos e não-humanos.

Resumo:

● Como funciona: A Grounded Theory é uma metodologia de pesquisa que


visa desenvolver teorias e categorias conceituais a partir de dados coletados,
em vez de testar teorias preexistentes. Ela envolve uma análise aprofundada
dos dados para identificar padrões e tendências emergentes.

● Aplicação em arquitetura: Os arquitetos podem usar a Grounded Theory


para analisar os dados coletados durante a pesquisa de campo ou estudos de
caso. Isso pode ajudar a identificar tendências de uso, necessidades
específicas dos usuários e fatores que influenciam a eficácia dos espaços
arquitetônicos. O método de codificação dos dados levantados também pode
auxiliar na etapa de definição de conceitos que vão embasar o partido
arquitetônico, fazendo com que tais conceitos estejam profundamente
ancorados no contexto cultural e social no qual o projeto se insere.

4.1.3 Design Thinking

O Design Thinking, cuja tradução literal para o português é Pensamento do


Design, é uma abordagem de resolução de problemas que se concentra em
entender as necessidades dos usuários para gerar soluções mais criativas e
inovadoras. A origem do Design Thinking remonta às décadas de 1950 e 1960,
quando surgiu como estratégia para a resolução de problemas complexos e
aprimoramento do design de produtos. Mas foi na década de 1990 que a IDEO, uma

9
do original: “Relational analyses are not particularly exotic, but they provide systematic, coherent,
and potentially provocative way to enter and memo the complexities of a project laid out in a
situational map. Relational maps can thus help the analyst to decide which stories to tell.” (p. 569)
14

empresa de design e inovação fundada por David Kelley, Mike Nuttall e Bill
Moggridge desempenhou um papel fundamental na popularização do Design
Thinking, ao adotar e adaptar a abordagem de design centrado no ser humano,
promovendo a empatia com os usuários e a prototipagem rápida. Várias publicações
e eventos ajudaram a disseminar o conceito de Design Thinking, dentre eles os
trabalhos publicados por Tim Brown, CEO da IDEO, em função de sua experiência
na área da aplicação do design nos negócios e na sociedade. A bibliografia
recomendada por Montero (2017) para o estudo desta metodologia consiste
justamente em um dos textos de Brown, juntamente com a também CEO da IDEO,
Jocelyn Wyatt, intitulado “Design Thinking for Social Innovation” (2010).

A ideia de “design centrado no usuário” é um dos princípios fundamentais


desta metodologia, partindo da noção de que ao empregar um método de projeto no
qual o designer tem maior contato com o usuário, seria possível conceber “ideias
que tenham um resultado emocional ao invés do funcional” (BROWN, WYATT, 2010,
p. 23), envolvendo uma compreensão profunda das necessidades, desejos e
perspectivas dos clientes.

Assim como na etnografia e em outras pesquisas antropológicas, o Design


Thinking baseia-se na observação e em pesquisas de campo exploratórias sobre o
comportamento humano. Porém, conforme colocado por Brown e Wyatt (2017), “não
estamos tentando gerar um novo conhecimento, testar uma teoria ou validar uma
hipótese científica — esse é o trabalho de nossos colegas nas universidades e parte
indispensável do nosso cenário intelectual compartilhado. A missão do Design
Thinking é traduzir observações em insights, e estes em produtos e serviços para
melhorar a vida das pessoas” (p. 74). Diante disso, é possível perceber que o
Design Thinking e a Etnografia se aproximam no que diz respeito ao processo de
coleta de informações, mas se diferenciam no objetivo final. Ambas almejam trazer o
usuário para o centro do processo, buscando por insights e novos conhecimentos a
partir do contato com as pessoas. No entanto, enquanto a Etnografia tem um
caráter mais voltado à pesquisa e teorização, o Design Thinking, por sua própria
origem do design, volta-se à criação e resolução prática de problemas, seja para
desenvolver novos produtos e serviços ou promover experiências.
15

Segundo Brown e Wyatt, o Design Thinking surge da necessidade de


“estabelecer a correspondência entre as necessidades humanas com os recursos
técnicos disponíveis considerando as restrições práticas dos negócios” (2010, p. 23).
Isso destaca a essência do Design Thinking em criar soluções que sejam centradas
no ser humano mas direcionadas ao mundo empresarial, mantendo o foco no que é
tecnologicamente factível bem como nas restrições a que precisam se submeter
quando se trata de negócios. Para isso, conforme colocado pelos autores, os
“design thinkers” buscam o equilíbrio entre “praticabilidade (o que é funcionalmente
possível num futuro próximo); viabilidade (o que provavelmente se tornará parte de
um modelo de negócios sustentável); e desejabilidade (o que faz sentido para as
pessoas)” (BROWN, WYATT, 2010, p. 38).

A interdisciplinaridade é parte fundamental do Design Thinking por permitir


que as equipes possam explorar os problemas a partir de diferentes perspectivas e
combinar conhecimentos variados na busca por soluções inovadoras. Assim, tendo
como base a compreensão aprofundada no usuário, envolver profissionais de
diferentes disciplinas na coleta de informações permite uma compreensão mais
completa das necessidades e comportamentos dos clientes no cenário trabalhado.

O Design Thinking não é um processo linear, mas um ciclo interativo


composto por diferentes fases. Ele começa com a etapa de Empatia, na qual a
equipe busca obter uma compreensão completa dos problemas a serem resolvidos
por meio de pesquisas, entrevistas, observações e interações diretas com os
usuários. Em seguida, na fase de Definição, o problema é claramente articulado,
muitas vezes por meio de uma declaração de ponto de vista que concentra a equipe
em um desafio específico e centrado no usuário. A etapa de Ideação é realizada em
um ambiente de livre criatividade, onde a equipe gera uma ampla variedade de
ideias para resolver o problema. Técnicas como brainstorming, desenho e
prototipagem rápida são comuns. A ideia é criar um ambiente propício à geração de
soluções inovadoras. As ideias mais promissoras são então transformadas em
protótipos na fase de Prototipagem, que são representações tangíveis das soluções
propostas. Os protótipos são testados na etapa de Teste, onde os usuários fornecem
feedbacks, permitindo ajustes e refinamentos.
16

O uso da metodologia de Design Thinking no processo de projeto em


Arquitetura e Urbanismo pode oferecer diversas possibilidades de melhoria e
inovação. Por colocar uma forte ênfase na etapa de “empatia”, isso poderia ser
traduzido em pesquisas aprofundadas para entender como as pessoas vivem,
trabalham e interagem nos espaços urbanos e arquitetônicos. Assim, considerando,
por exemplo, as abordagens de projetos colaborativos, arquitetos e urbanistas
podem conduzir sessões de brainstorming e workshops para explorar uma variedade
de abordagens de design, encorajando a uma maior participação dos usuários
durante o processo de identificar demandas reais e, a partir disso, formular os
problemas e encorajar a busca por soluções inovadoras.

A metodologia também enfatiza a prototipagem, dialogando com a criação de


maquetes e protótipos em Arquitetura que permitem ao profissional testar
visualmente suas ideias projetuais, validando conceitos e recebendo feedback dos
futuros usuários.. No contexto da Arquitetura e Urbanismo, essa etapa de
prototipagem é essencial, pois permite uma representação tangível de como o
espaço se comportará na prática, configura-se como uma mediação para o diálogo e
as trocas com os futuros usuários, além de abrir espaço para que correções possam
ser feitas antes da construção de fato.

Nesse sentido, conforme apontado por Montero em seu texto no livro


Jugando con Anomalías (2017), a utilização do Design Thinking, assim como a
Etnografia e a Grounded Theory, auxiliam no objetivo de incorporar esses processos
à Arquitetura e Urbanismo.o autor visa “oferecer várias dicas metodológicas que nos
permitem ser inovadores e respeitar a dinâmica local para deixar que os dados
coletados em campo falem conosco e se reflitam nos relatórios e projetos finais que
geralmente são o produto desses exercícios de campo” (p. 151).

No que se refere à cocriação, a ideia de colocar o usuário no centro do


processo visa, por exemplo, a criação de espaços que não são apenas funcionais e
eficientes, mas também agradáveis e significativos para as pessoas, numa tentativa
de melhorar a qualidade de vida nas cidades e a satisfação dos usuários em
ambientes arquitetônicos, uma vez que as pessoas estão mais envolvidas no
processo de concepção dos projetos.

Resumo
17

● Características: O design thinking é uma abordagem interativa que coloca o


ser humano no centro do processo criativo. Envolve empatia, colaboração,
geração de ideias e prototipagem.

● Aplicação em arquitetura: Pode ser aplicado em diferentes fases do projeto,


inclusive nas fases de formulação do problema e de criação. Inicialmente, a
fase de "empatia" envolve compreender profundamente os usuários e seus
desafios. Posteriormente, as fases de "ideação" e "prototipagem" ajudam a
criar, gerar e testar propostas arquitetônicas.

4.2 Associação entre as Metodologias de Pesquisa e o processo de ensino


de projeto nas faculdades de Arquitetura e Urbanismo

A caracterização do ensino de Arquitetura e Urbanismo nas faculdades e


universidades pode variar de acordo com o país, a instituição de ensino e o
programa acadêmico específico. No entanto, de forma geral, o “fazer arquitetura” é
um ato que envolve o campo da construção civil, por lidar com o ambiente
construído, mas antes de tudo envolve a esfera social. Assim, disciplinas de teoria e
história se combinam às disciplinas de tecnologia e construção com o objetivo de
criar a base de conhecimento necessária ao arquiteto e urbanista para propor
modificações no espaço.

Nesse aspecto, as disciplinas de projeto são o local esperado para que os


conhecimentos práticos e teóricos obtidos nas demais matérias se fundam à
criatividade para dar origem a projetos arquitetônicos e urbanos. Conforme colocado
por Martinez (2000) “os projetos não são simples desenhos de arquitetura, mas são
simulações de situações de produção de projetos” (p. 55). Assim, as disciplinas de
projeto são, nas palavras do autor, o “tronco do currículo [...] arquitetos desenham
edifícios e o “atelier” é o local onde aprendem a desenhá-los: é a parcela mais
específica da formação” (p. 55).

Dentre os diversos desafios existentes no ensino de projeto, um dos quais


Martinez destaca é: “Como subdividir o aprendizado em níveis, graduar uma
complexidade crescente de problemas que se adapte ao número de projetos e anos
do curso, mantendo sempre o padrão de ‘simulação de um projeto real’?” (p. 56)
18

A complexidade de questões que naturalmente envolve lidar com o ambiente


construído, tanto em sua esfera material como imaterial, demanda tempo e estudo,
de forma que existem muitas limitações quanto a um maior aprofundamento das
disciplinas de projeto.

Como colocado por Martinez (2000) os projetos desenvolvidos pelos alunos


nos ateliês são apresentados aos professores orientadores

“como se o projeto fosse ser apresentado a um cliente. Na


realidade, o cliente é o orientador, porque o cliente habitante nunca aparece
e, se o fizesse, encontraria um objeto extremamente aperfeiçoado pelo
diálogo entre o orientador, que já sabe arquitetura, e o executor, que está
aprendendo. Talvez, no percurso, ambos tenham se esquecido do cliente,
mas já não importa, porque o cliente era imaginário e o tema um pretexto”
(p.56).

Esse trecho evidencia que existe uma lacuna no ensino e aprendizagem de


projeto nas disciplinas nos ateliers. Essa lacuna surge justamente quando se
considera o papel do cliente no processo de projeto, já que nas disciplinas esse
“cliente habitante”, como falado por Martinez, é apenas imaginário. Nos projetos
desenvolvidos pelos alunos nos ateliês, pode haver uma perda no que diz respeito à
consideração das dimensões pessoais dos futuros usuários em comparação com
projetos reais. Essa perda de conexão com o usuário real acontece em função da
ausência de um contexto concreto, uma vez que o trabalho com briefings fictícios
limita a capacidade do aluno de compreender desejos e restrições dos usuários
reais e do ambiente circundante.

Nesse sentido, o processo colaborativo de cocriação trabalhado por Mazzanti


consiste no processo de introduzir o cliente como parte fundamental da concepção
do projeto. Como foi possível compreender a partir das análises das metodologias
de pesquisa e da procura por formas de aplicá-las na Arquitetura e Urbanismo, todas
se voltam à noção de que a investigação minuciosa nos modos de vidas dos
usuários pode e deve ser considerado como aspecto fundamental para a geração de
projetos arquitetônicos e urbanísticos que não apenas respondam a demandas
físicas mas que sejam capazes de se conectar à vida das pessoas de uma forma
mais profunda.
19

Seja por meio da Etnografia, em que a observação-participante fomenta uma


compreensão mais aprofundada dos modos de vida das comunidades de estudo, ou
o Grounded Theory, que oferece estratégias de análise detalhada dos dados
coletados em campo, ou ainda o Design Thinking que busca trabalhar com empatia
e criatividade para gerar soluções inovadoras, todas as metodologias estudadas
podem auxiliar no processo de embasar a tomada de decisões no projeto de uma
forma (e aqui consiste o diferencial) a colocar o usuário no centro.

Na caracterização do ensino de projeto, Martinez (2000) aponta ainda que o


ensino e aprendizado “é feito a partir do produto completo - o projeto - e não a partir
de partes do mesmo". Tomando como exemplo a definição dos elementos
“não-humanos” colocados pela Grounded Theory, as interações sociais, elementos
simbólicos e conexões, muitas vezes perde espaço e relevância nos ateliês em
função da multiplicidade de temas e questões que envolvem o fazer arquitetônico e
urbanístico.

Muitas questões precisam ser repensadas na forma como as disciplinas de


projeto são ministradas, desde a duração e os cronogramas das disciplina até,
talvez, a forma como os projetos são avaliados, para abrir espaço à nova
complexidade que seria explorar profundamente o impacto que uma colaboração
realmente significativa com o usuário durante o processo de projeto teria para o
resultado final a ser elaborado.

Assim, se nas disciplinas de projeto nas faculdades de Arquitetura e


Urbanismo, é comum que o “cliente” seja esquecido, por se tratar de uma figura
“imaginária”, a ideia de tentar introduzir as metodologias de pesquisa abordadas por
este relatório no processo de projeto poderia servir exatamente para dar maior
destaque ao elemento primário e fundamental dos projetos: o usuário.

E, nesse âmbito, Giancarlo Mazzanti inova ao propor um exercício lúdico para


os estudantes de pós-graduação da Universidade de Columbia (EUA), em que os
estudantes não apenas desenvolveram projetos arquitetônicos e urbanísticos a
serem entregues ao fim da disciplina. Ao contrário, o processo de projeto teve início
com exercícios lúdicos desenvolvidos pelos próprios alunos com o objetivo de
promover uma aproximação entre eles e os habitantes da cidade. Cabe destacar,
ainda, que os projetos foram desenvolvidos em Barranquilla, Colômbia, ou seja, em
20

uma realidade e contexto diferente daquela dos estudantes, que estavam nos
Estados Unidos mas vinham de várias partes do mundo. Assim, utilizando como
“ponte” as estratégias lúdicas, eles foram direcionados de maneira a se aprofundar
em uma cultura diversa, com sua própria língua, costumes e tradições. E então, a
partir das informações coletadas, foi proposta a elaboração dos projetos
arquitetônicos. Esse exercício colocou em evidência, como seria possível
transformar o “cliente imaginário” em um “cliente real”, mesmo que os projetos não
fossem executados ou mesmo tivessem sido contratados. Isso porque os estudantes
foram induzidos a não apenas ter contato com aqueles que seriam os “clientes
imaginários”, mas de fato inseri-los no contexto real por meio dos exercícios lúdicos.
Deste modo, os usuários saíram do plano imaginário e ganharam forma real,
interagindo e dialogando com os estudantes.

5. Conclusões

Por meio desta pesquisa foi possível perceber que as metodologias


analisadas podem ser aplicadas em diferentes momentos do processo de projeto em
arquitetura para atingir diversos objetivos. A Etnografia ajuda a compreender o
contexto social e cultural no qual vivem os usuários, o Design Thinking fomenta a
criatividade e a empatia, enquanto a Grounded Theory proporciona uma base sólida
para a elaboração de conceitos e teorias que podem apoiar a tomada de decisões.
O benefício central de associá-las ao processo de projeto é a criação de espaços
arquitetônicos mais centrados no usuário, funcionais e eficazes, que atendem às
necessidades reais das pessoas que os utilizarão. Isso ocorre porque essas
abordagens fornecem ferramentas e métodos para entender melhor as
necessidades dos usuários, gerar ideias criativas e validar conceitos por meio de
testes e interações. Esta pesquisa colocou em evidência que tais metodologias têm
o potencial de ajudar os estudantes a projetar espaços que não apenas respondem
a exigências físicas, mas também considerem os aspectos sociais e culturais das
comunidades em que se inserem, promovendo maior aproximação entre
universidade e sociedade, inclusão social e participação.

O ensino de Arquitetura e Urbanismo em faculdades e universidades é um


processo complexo que visa formar profissionais capazes de transformar o ambiente
21

construído de maneira socialmente responsável. No entanto, as limitações e


desafios presentes no ensino de projeto dentro dessas disciplinas destacam a
lacuna significativa em relação à consideração do cliente real. A ausência de um
contato efetivo com os futuros usuários e suas necessidades reais é evidenciada
pela predominância do "cliente imaginário" nos ateliês, criando uma desconexão
entre o projeto e a vida das pessoas. A abordagem inovadora de Giancarlo
Mazzanti, que propõe o envolvimento ativo dos alunos com a comunidade local por
meio de exercícios lúdicos, destaca a importância de incorporar metodologias de
pesquisa que coloquem o usuário no centro do processo de design. Essa
abordagem permite uma compreensão mais profunda das necessidades, desejos e
restrições dos usuários reais, transcendendo as limitações dos briefings fictícios
comumente utilizados.

O método proposto por Mazzanti demonstra a possibilidade de transformar o


"cliente imaginário" em um "cliente real" ao inserir os estudantes em contextos
culturais diversos e reais, possibilitando um diálogo direto e uma interação mais
significativa com os potenciais usuários. A incorporação dessas estratégias no
ensino de Arquitetura e Urbanismo pode preencher a lacuna existente, permitindo
que os futuros arquitetos e urbanistas compreendam mais profundamente o contexto
social, cultural e as necessidades reais dos habitantes. Dessa forma, ao introduzir
metodologias de pesquisa que privilegiam a observação participante, a análise
detalhada de dados e a empatia no processo de projeto, as disciplinas de projeto
podem ser reformuladas, permitindo uma abordagem mais sensível e centrada no
usuário, transcendendo as fronteiras do "cliente imaginário" para abraçar a realidade
e promover uma arquitetura e urbanismo mais conectados e impactantes.
22

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