violência; é violência; faz mais do que representar os limites do conhecimento; limita o conhecimento. Seja a língua obscurecedora do Estado ou a linguagem falsa da mídia irracional; seja a orgulhosa, porém petrificada linguagem da academia, ou a linguagem da ciência conduzida por commodities; seja a linguagem maligna da lei-sem-ética, ou língua projetada para o estranhamento das minorias, escondendo sua pilhagem racista em sua face literária – ela deve ser rejeitada, alterada e exposta. É a língua que bebe sangue, abandona vulnerabilidades, enfia suas botas fascistas sob as crinolinas de respeitabilidade e patriotismo enquanto se move implacavelmente em direção ao final das contas e às mentes que já não dão mais conta. Linguagem sexista, linguagem racista, linguagem teísta – todas são típicas das linguagens policiais de domínio e não podem, não permitem novos conhecimentos ou encorajam a troca mútua de ideias (Toni Morrison).
Desde 2017, sou professor da Universidade Federal de Sergipe, locado
no Departamento de Psicologia, primeiro como substituto e depois como efetivo. Defendo uma universidade pública e aberta, de modo que as minhas aulas sempre tiveram presença de pessoas não matriculadas na disciplina, bem como de gente que nem da UFS era. Todos sempre tiveram direito à fala. A única proibição ética que imponho em sala de aula é em relação à manifestação de violência, opressão ou desrespeito. A partir de 2019, atendendo a um chamado ancestral enquanto homem negro numa sociedade estruturalmente racista como a brasileira, ocupando o lugar privilegiado de servidor público federal, decidi incluir nas minhas disciplinas um momento dedicado à questão racial, promovendo uma reflexão sobre os impactos do racismo na subjetividade das pessoas negras. Nas disciplinas obrigatórias e optativas, para o público interno e externo ao meu departamento, foram constantes os momentos de desconforto, esvaziamento, resistência e questionamento quando esse debate se apresentou. Muitas vezes, pensei em retirá-lo do conteúdo programático, mas fui encorajado a continuar, sobretudo pelos alunos negros que cada vez mais povoam a universidade, bem como entre os alunos brancos que se somam à luta contra o racismo. As coisas tomaram uma outra proporção no dia 12 de março de 2024, enquanto ministrava uma aula de introdução à psicologia social sobre o tema do racismo (tema clássico dessa disciplina, ao lado de preconceito, estereótipo e discriminação). Na ocasião, um grupo de sete alunas apresentava o livro “Tornar-se Negro”, da psiquiatra e psicanalista Neusa Santos Souza (1948-2008). Depois de cerca de 15 minutos, uma mulher, mãe e idosa entrou na sala de aula para auxiliar sua filha, Pessoa com Deficiência (PcD) e cadeirante, que é aluna matriculada da disciplina. Ela me perguntou se poderia ficar para acompanhar a aula e eu consenti. Pouco menos de cinco minutos depois, essa mulher interrompe uma mulher negra que estava apresentando o texto e diz que gostaria de falar o que pensa a respeito do tema. Ela iniciou a intervenção dizendo que não há raça pura no Brasil, de modo que não existem brancos em nosso país. Defendeu que esse debate não deveria ser feito, porque seríamos todos iguais. Disse que não existe racismo no Brasil e que o racismo é muitas vezes produzido pelo povo negro, de forma que o racismo começaria pelo próprio negro. Repetiu que não existiria raça pura no Brasil, e que inclusive a mãe dela era negra. Comentou também o caso de um homem negro que foi agredido, pois ele não teria apanhado porque era negro e sim porque era ousado, e, se ela pudesse, teria participado dessa agressão. Repetiu que não existiria nem negro nem branco no Brasil, que ela se considera negra, porque a avó é negra, e que por isso ela também não é racista. Durante esse discurso, alguns alunos já tinham se retirado da sala de aula, o que gerou mal-estar na mulher, ao perceber o descontentamento geral. Antes mesmo de que pudesse haver alguma conversa, ela se retirou da sala rapidamente ao terminar de falar. Poucos minutos depois, ela abriu a porta da sala, interrompendo a aula novamente, repetiu o que disse e pediu desculpas se por acaso tivesse sido mal interpretada. Disse que talvez não tivesse usado as palavras certas. Disse que aquela era a opinião dela e que aquilo que tinha dito permanecia. E que pedia que aquilo não atingisse a filha. Fechou a porta novamente sem ouvir ninguém. Diante de tal discurso, não consegui cumprir a minha promessa ética com os alunos de não tolerar opressões. Fiquei atônito e paralisado. Me limitei a fazer sinais para alguns alunos negros não se exaltarem, pois temi, enquanto professor, que as coisas saíssem mais ainda do controle e o descontentamento geral fosse direcionado agressivamente à mulher idosa e a sua filha, PcD. Após a segunda saída da mulher, houve uma explosão de emoções dentre a turma. Em especial, um aluno negro me relatou que já havia passado por situações assim em vários lugares, mas nunca imaginaria passar por isso na Universidade Pública. Disse que sentia raiva, que queria ter insultado a mulher. Acolhi a dor dele, articulei o ocorrido no interior dos textos que já tínhamos lido e no final da aula lhe dei um forte abraço. No mesmo dia, a mãe e a aluna entraram em contato comigo e com a turma. A mãe pediu desculpas, disse não ser racista. Falou estar preocupada com a filha dela, pois não deseja que a filha sofra. Assumiu ter usado palavras erradas, disse que, do fundo do coração, não é racista. Disse que é mãe, que errou e que não foi a intenção dela ser racista. Pediu por paz, por carinho. No entanto, muitos alunos ficaram magoados e ressentidos, buscando formas de reparar o que havia ocorrido, evitando o contato, real ou virtual, com a mãe e com a filha. De minha parte, as desculpas foram aceitas. Como disse Martin Luther King Jr., o perdão é um catalisador que cria a ambiência necessária para uma nova partida, para um recomeço. Não desejo mal a essa mulher idosa, que trava sua batalha todos os dias auxiliando a sua filha, uma Pessoa com Deficiência. Não cobro que essa filha se volte contra a mãe, contra a pessoa que cotidianamente está junto com ela e nunca a abandonou, contornando as inúmeras dificuldades de se viver numa sociedade capacitista como a nossa. Sou pai, tenho um filho pequeno e conheço esse amor. E, não por acaso, o nome dele é Martin. Como homem negro, não posso negar que me senti violentado, desrespeitado. Não posso deixar de dizer que nem mesmo o fato de eu ter um doutorado e de ser professor efetivo me protegeu de ter minha aula interrompida com tamanha demonstração de agressividade racial. Não posso deixar de lembrar da dor e do trauma causados nos alunos negros da turma, provocado por aquele discurso. Porém, como também ensinou Luther King Jr., precisamos desenvolver um método de resolução de conflitos que rejeite a vingança, a agressão e a retaliação. Perdoar não é esquecer e desculpar não é silenciar. Escrevi essa carta aberta com dois objetivos. Primeiro o de expor o ocorrido, para que se produza um mínimo de constrangimento em pessoas que tem o costume de reproduzir opressões no interior da universidade, causando dor e sofrimento. Espero que essas pessoas entendam que, a partir de algum momento, e não demorará muito, o silêncio já não será mais possível e o enfrentamento será inevitável, caso insistam em permanecerem na defesa da branquitude, agredindo e violentando pessoas negras. Segundo o de reparar o dano causado a mim e aos meus alunos negros, demarcando publicamente uma posição contrária ao ocorrido e me colocando em solidariedade com eles. Diferente da minha geração negra, que aprendeu que o racismo é parte do jogo, essa geração mais nova quer viver num mundo antirracista. Ela não tolera mais o racismo. E ela está certa. Como professor, aprendi com meus alunos e alunas que também não devo mais silenciar diante do racismo. Fraternalmente, Leomir Hilário.
Colonialidade e direitos humanos das mulheres: uma análise da Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW/ONU) no contexto brasileiro