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CARTA ABERTA

Escrita por Leomir Hilário (DPS-UFS)


São Cristóvão, 25 de março de 2024

A linguagem opressiva faz mais do que representar


violência; é violência; faz mais do que representar os
limites do conhecimento; limita o conhecimento. Seja a
língua obscurecedora do Estado ou a linguagem falsa
da mídia irracional; seja a orgulhosa, porém
petrificada linguagem da academia, ou a linguagem da
ciência conduzida por commodities; seja a linguagem
maligna da lei-sem-ética, ou língua projetada para o
estranhamento das minorias, escondendo sua pilhagem
racista em sua face literária – ela deve ser rejeitada,
alterada e exposta. É a língua que bebe sangue,
abandona vulnerabilidades, enfia suas botas fascistas
sob as crinolinas de respeitabilidade e patriotismo
enquanto se move implacavelmente em direção ao final
das contas e às mentes que já não dão mais conta.
Linguagem sexista, linguagem racista, linguagem teísta
– todas são típicas das linguagens policiais de domínio
e não podem, não permitem novos conhecimentos ou
encorajam a troca mútua de ideias (Toni Morrison).

Desde 2017, sou professor da Universidade Federal de Sergipe, locado


no Departamento de Psicologia, primeiro como substituto e depois como
efetivo. Defendo uma universidade pública e aberta, de modo que as minhas
aulas sempre tiveram presença de pessoas não matriculadas na disciplina,
bem como de gente que nem da UFS era. Todos sempre tiveram direito à
fala. A única proibição ética que imponho em sala de aula é em relação à
manifestação de violência, opressão ou desrespeito.
A partir de 2019, atendendo a um chamado ancestral enquanto homem
negro numa sociedade estruturalmente racista como a brasileira, ocupando o
lugar privilegiado de servidor público federal, decidi incluir nas minhas
disciplinas um momento dedicado à questão racial, promovendo uma
reflexão sobre os impactos do racismo na subjetividade das pessoas negras.
Nas disciplinas obrigatórias e optativas, para o público interno e externo ao
meu departamento, foram constantes os momentos de desconforto,
esvaziamento, resistência e questionamento quando esse debate se
apresentou. Muitas vezes, pensei em retirá-lo do conteúdo programático,
mas fui encorajado a continuar, sobretudo pelos alunos negros que cada vez
mais povoam a universidade, bem como entre os alunos brancos que se
somam à luta contra o racismo.
As coisas tomaram uma outra proporção no dia 12 de março de 2024,
enquanto ministrava uma aula de introdução à psicologia social sobre o tema
do racismo (tema clássico dessa disciplina, ao lado de preconceito,
estereótipo e discriminação). Na ocasião, um grupo de sete alunas
apresentava o livro “Tornar-se Negro”, da psiquiatra e psicanalista Neusa
Santos Souza (1948-2008). Depois de cerca de 15 minutos, uma mulher, mãe
e idosa entrou na sala de aula para auxiliar sua filha, Pessoa com Deficiência
(PcD) e cadeirante, que é aluna matriculada da disciplina. Ela me perguntou
se poderia ficar para acompanhar a aula e eu consenti.
Pouco menos de cinco minutos depois, essa mulher interrompe uma
mulher negra que estava apresentando o texto e diz que gostaria de falar o
que pensa a respeito do tema. Ela iniciou a intervenção dizendo que não há
raça pura no Brasil, de modo que não existem brancos em nosso país.
Defendeu que esse debate não deveria ser feito, porque seríamos todos
iguais. Disse que não existe racismo no Brasil e que o racismo é muitas vezes
produzido pelo povo negro, de forma que o racismo começaria pelo próprio
negro. Repetiu que não existiria raça pura no Brasil, e que inclusive a mãe
dela era negra. Comentou também o caso de um homem negro que foi
agredido, pois ele não teria apanhado porque era negro e sim porque era
ousado, e, se ela pudesse, teria participado dessa agressão. Repetiu que não
existiria nem negro nem branco no Brasil, que ela se considera negra, porque
a avó é negra, e que por isso ela também não é racista. Durante esse discurso,
alguns alunos já tinham se retirado da sala de aula, o que gerou mal-estar na
mulher, ao perceber o descontentamento geral. Antes mesmo de que pudesse
haver alguma conversa, ela se retirou da sala rapidamente ao terminar de
falar. Poucos minutos depois, ela abriu a porta da sala, interrompendo a aula
novamente, repetiu o que disse e pediu desculpas se por acaso tivesse sido
mal interpretada. Disse que talvez não tivesse usado as palavras certas. Disse
que aquela era a opinião dela e que aquilo que tinha dito permanecia. E que
pedia que aquilo não atingisse a filha. Fechou a porta novamente sem ouvir
ninguém.
Diante de tal discurso, não consegui cumprir a minha promessa ética
com os alunos de não tolerar opressões. Fiquei atônito e paralisado. Me
limitei a fazer sinais para alguns alunos negros não se exaltarem, pois temi,
enquanto professor, que as coisas saíssem mais ainda do controle e o
descontentamento geral fosse direcionado agressivamente à mulher idosa e
a sua filha, PcD. Após a segunda saída da mulher, houve uma explosão de
emoções dentre a turma. Em especial, um aluno negro me relatou que já
havia passado por situações assim em vários lugares, mas nunca imaginaria
passar por isso na Universidade Pública. Disse que sentia raiva, que queria
ter insultado a mulher. Acolhi a dor dele, articulei o ocorrido no interior dos
textos que já tínhamos lido e no final da aula lhe dei um forte abraço.
No mesmo dia, a mãe e a aluna entraram em contato comigo e com a
turma. A mãe pediu desculpas, disse não ser racista. Falou estar preocupada
com a filha dela, pois não deseja que a filha sofra. Assumiu ter usado
palavras erradas, disse que, do fundo do coração, não é racista. Disse que é
mãe, que errou e que não foi a intenção dela ser racista. Pediu por paz, por
carinho. No entanto, muitos alunos ficaram magoados e ressentidos,
buscando formas de reparar o que havia ocorrido, evitando o contato, real ou
virtual, com a mãe e com a filha.
De minha parte, as desculpas foram aceitas. Como disse Martin Luther
King Jr., o perdão é um catalisador que cria a ambiência necessária para uma
nova partida, para um recomeço. Não desejo mal a essa mulher idosa, que
trava sua batalha todos os dias auxiliando a sua filha, uma Pessoa com
Deficiência. Não cobro que essa filha se volte contra a mãe, contra a pessoa
que cotidianamente está junto com ela e nunca a abandonou, contornando as
inúmeras dificuldades de se viver numa sociedade capacitista como a nossa.
Sou pai, tenho um filho pequeno e conheço esse amor. E, não por acaso, o
nome dele é Martin.
Como homem negro, não posso negar que me senti violentado,
desrespeitado. Não posso deixar de dizer que nem mesmo o fato de eu ter
um doutorado e de ser professor efetivo me protegeu de ter minha aula
interrompida com tamanha demonstração de agressividade racial. Não posso
deixar de lembrar da dor e do trauma causados nos alunos negros da turma,
provocado por aquele discurso. Porém, como também ensinou Luther King
Jr., precisamos desenvolver um método de resolução de conflitos que rejeite
a vingança, a agressão e a retaliação.
Perdoar não é esquecer e desculpar não é silenciar. Escrevi essa carta
aberta com dois objetivos. Primeiro o de expor o ocorrido, para que se
produza um mínimo de constrangimento em pessoas que tem o costume de
reproduzir opressões no interior da universidade, causando dor e sofrimento.
Espero que essas pessoas entendam que, a partir de algum momento, e não
demorará muito, o silêncio já não será mais possível e o enfrentamento será
inevitável, caso insistam em permanecerem na defesa da branquitude,
agredindo e violentando pessoas negras. Segundo o de reparar o dano
causado a mim e aos meus alunos negros, demarcando publicamente uma
posição contrária ao ocorrido e me colocando em solidariedade com eles.
Diferente da minha geração negra, que aprendeu que o racismo é parte do
jogo, essa geração mais nova quer viver num mundo antirracista. Ela não
tolera mais o racismo. E ela está certa. Como professor, aprendi com meus
alunos e alunas que também não devo mais silenciar diante do racismo.
Fraternalmente,
Leomir Hilário.

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