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3 Cy Twombly e Clarice Rosadas

Pensar a escrita a partir da ilegibilidade pode parecer, diante de seus usos


convencionais, um exercício que causa estranheza. Talvez, frente a ela, um primeiro
movimento seja a tentativa de visualizar palavras: afrouxar os olhos, buscar uma letra, uma
combinação de sílabas. Se isso falha, nos perguntaríamos o que fica. Sobre o texto, Barthes
(1973/1987) escreve: “o que eu aprecio, num relato, não é pois diretamente o seu conteúdo,
nem mesmo sua estrutura, mas antes as esfoladuras que imponho ao belo envoltório: corro,
salto, ergo a cabeça, torno a mergulhar (BARTHES, 1973/1987, p. 18). Esta pode ser uma
pista que leva a leitura ao corpo e o corpo à leitura, como algo que a aproxima ao gesto e ao
movimento em torno de uma escritura. Da leitura como um gesto, também acrescentaríamos
que a própria noção de escrita pode imergir nessa dimensão. Como quando alguém aprende a
escrever, traçar uma linha que forma a palavra pressupõe um gesto corporal, uma escrita que
declara o corpo.
Barthes (1990) se debruça, nessas linhas, sobre o trabalho do artista americano Cy
Twombly (1928-2011), cujos desenhos-escrituras (aqui, não nos ateremos às definições do
que vem a compor suas obras; o que nos interessa são as implicações que seus trabalhos
lançam sobre a escrita) se apresentam pela presença marcante de um grafismo que remete à
caligrafia. Frente à uma obra de Cy Twombly, no entanto, logo tropeçamos: na maioria das
vezes, não encontramos palavras; e quando encontramos, elas tampouco nos entregam
leituras confortáveis. Diríamos que seus trabalhos subvertem tanto a escrita utilitária, tomada
como campo conclusivo e interpretável, quanto nossas tentativas de entendimento do que
tratam suas telas.
A obra de TW-outros já o disseram - e escritura, tem uma certa relação com
a caligrafia. Não é, no entanto, uma relação de imitação. tampouco de
inspiração; uma tela de TW é apenas o que se poderia chamar o campo
alusivo da escritura (a alusão, figura de retórica, consiste em dizer uma coisa
com a intenção de fazer com que o receptor compreenda outra coisa). TW
faz referência à escritura [...], e, depois, passa a outra coisa, vai para outro
lugar. Para onde? Precisamente para longe da caligrafia, isto é, da escritura
formada, desenhada, apoiada, modelada, do que se chamava, no século
XVIII, mão de artista (la belle main).
TW diz à sua maneira que a essência da escritura não é nem uma forma nem
um uso, mas apenas um gesto, a gesto que a produz, deixando-a correr: um
rabisco, quase uma mancha, uma negligência. (BARTHES, 1990, p. 144)
Fig 06. Note II, Cy Twombly, 1967. Fonte: Art Basel

Menos do que anterior à escrita, o gesto pode ser tomado como algo que a interpela,
que lhe é intrínseco. Podemos pensar com Barthes sobre esse encontro paradoxal de Cy
Twombly com a caligrafia – trata-se ou não dela? – quando a entendemos enquanto um
movimento que marca a palavra com o corpo; mas se este gesto tem como um fim a
legibilidade, seus trabalhos já incidem sobre ela a partir de uma ruptura. Fiquemos, portanto,
com essas contradições que, longe de nos deixar sem rumo, na verdade nos aproximam do
que se trata o fazer com a linguagem. Essa fronteira, esse campo turvo, talvez nos seja mais
interessante do que buscar discernimentos; a estranheza que o exercício com o ilegível pode
causar pode ser, ela mesma, um caminho. Em Note II (1967), o título já nos sugere alguma
proximidade com a escrita. Um caderno de notas pode ser associado comumente à uma
superfície sobre a qual signos podem se dispor com alguma finalidade. O que encontramos,
porém, não são elementos que poderiam ser tomados como condição de possibilidade de uma
escrita existir. Vemos traços que se arrastam ao longo do espaço, quase como letras cursivas,
mas seus riscos não se entregam às regras comuns do discurso; vê-se um convite a imergir no
que está fora dele, um lugar que não implica a perda de possibilidades de experimentar uma
leitura – ao contrário, nos lança à movimentações múltiplas.
Percorrer a obra de TW com os olhos e com os lábios é, pois, um
permanente negar aquilo que parece ser. É uma obra que não exige que se
contradiga as palavras da cultura (a espontaneidade do homem é sua
cultura), simplesmente que se as desloque, que se as destaque, que se lhes dê
outro enfoque, TW força, não a recusar, mas - o que é, talvez, mais
subversivo - a traspassar o estereótipo estético; enfim, obriga-nos a um
trabalho de linguagem (e não é exatamente esse trabalho – nosso trabalho –
que dá seu valor à uma obra?). (BARTHES, 1990, p. 143)

Um trabalho de linguagem, como aponta Barthes, pode ser o percurso por um


caminho que parte de um não saber: a escrita e a sua experimentação como gestos que
anunciam impossibilidades. Podemos entender esse trabalho, então, como um fazer com isso
que é impossível. Ora, não se trataria disso, em algum lugar, a prática clínica? Rivera (2005),
num terreno de interlocuções entre a produção artística e psicanalítica no século XX,
aproxima a noção de ato criador de Marcel Duchamp – ato fundamentalmente descontínuo e
esburacado, marcado por uma brecha entre a intenção e a expressão do artista, tendo como
participante de sua execução o olhar do público que olha e se debruça sobre uma obra – da
concepção lacaniana da intervenção analítica enquanto um ato que, direcionado no domínio
do inconsciente, também é constituído por um hiato. Fala-se, nesse caminho, do ato enquanto
uma ação circunscrita por uma inabilidade e um fracasso que lhe é intrínseco; e dessa
dimensão que inscreve uma fresta, são abertas as possibilidades de um gesto ser produzido.
No trabalho da interpretação analítica, o ato se conclui não a partir da fala do analista, este
lhe escapa, mas pela participação do analisando: capaz de desestabilizar o sentido, o ato pode
transmutar-se em gesto, fazendo surgir um sujeito (RIVERA, 2005).
Operar com o inconsciente percorre algum lugar do discurso onde o fechamento de
sentidos é impossível; é pela palavra e pelo que está para além dela que se produzem efeitos
na clínica. A dialética entre a teoria e a prática psicanalítica, movimento que já abordamos
algumas vezes ao longo do trabalho, se situa justamente nos limites que o vazio da linguagem
insiste em testar, o que nos dá caminhos para pensar que onde o dispositivo falha é
justamente o espaço que se abre para que ele se refaça. O tropeço com o qual nos
encontramos nas escrituras de Cy Twombly nos deixa pistas sobre os tropeços também
inerentes ao trabalho analítico. Sobre seus grafismos que apresentam a essência de uma
escrita e, ao mesmo tempo, não se deixam limitar em códigos gráficos, Barthes (1990) supõe
que “da escritura, TW retém o gesto, não o produto” (BARTHES, 1990, p. 145) e partilha a
noção de que a essência de um objeto se refere ao que dele resta. Já nas reflexões tecidas
entre Duchamp e Lacan, Rivera (2005) escreve que “um gesto-sujeito se configura de forma
sempre singular, momentaneamente, para se estranhar, efêmero, e esboçar novas escritas”
(RIVERA, 2005, p. 70). Em diálogo, essas passagens nos aproximam do trabalho analítico
como um modo de escritura: não aquela que se finaliza em um aspecto decifrável, um
discurso que suporia uma técnica que liga diretamente a leitura à interpretação. Uma análise
se constitui sobretudo como um fazer com traços fragmentados, dispersos, resíduos que
pairam em lacunas que retiram o eu de um lugar centralizador e capaz de recuperar em
totalidade aquilo que não se sabia. O analista tampouco ocupa a função de síntese desses
vestígios que se presentificam na escuta. Diríamos que a análise é esse espaço que se admite
numa vertigem, que permite que algo se produza, se perca, se reescreva.
Partir da ilegibilidade nos lança à radicalidade do exercício criativo situado na
fronteira entre o que pode e não pode ser dito. A brecha entre a escrita e a leitura não é mais
linear, nem composta apenas pelo tempo que se leva para o entendimento em sua completude.
Esse espaço demarca sobretudo pontos de perda e invenção: só assim podemos pensar em
reescritas. A estranheza de pensar do ilegível pode aparecer, mais ainda, quando pensado
junto ao endereçamento: como dirigir uma mensagem a alguém pela presença de algo que
não se pode ler? A ilegibilidade pode nos retirar violentamente do lugar de mestres da escrita
e da leitura; talvez aí o estranho resida. Essa perda, no entanto, não implica na
impossibilidade de escrever.
Numa ressonância com o percurso que fizemos a partir do trabalho de Cy Twombly, a
série Cartas (2006)1, da artista Clarice Rosadas, parece imergir nas possibilidades implicadas
nessas rupturas, propondo uma zona em que o endereçamento não se opõe à
incomunicabilidade. Nesses trabalhos, fragmentos de escritas se dispõem ao longo do papel
de maneiras diversas, não se deixando domesticar pelas linhas retas e sequenciais que
comumente estruturam uma página de anotações; ao contrário, seguem um percurso próprio
no espaço. As palavras se inscrevem ora pela tinta, ora pelo grafite; por vezes se sobrepondo
e formando embaralhos de letras, tornando o que está escrito, em alguns momentos, numa
composição ilegível. Na série, camadas parecem se formar pela presença de manchas de tinta

1
REFERÊNCIA DA OBRA.
e pedaços de fita crepe na superfície do papel, formando, junto à caligrafia, uma escrita
marcada pelo corpo – talvez, anterior à tentativa de leitura das palavras, nos deparamos com a
presença declarada de uma ação: a mão que escorrega pelo espaço, que aumenta ou diminui
sua força sobre o papel, que escreve e rasura, apaga o que foi gravado. Uma escritura que se
dobra, se faz visível e, depois, invisível – entramos no tempo próprio de um processo. As
palavras parecem atravessar as manchas, e nesse atravessamento, se transformam. Talvez
destinar uma carta a alguém seja menos sobre remeter um significado do que entregar o ato
de um corpo. Em Cartas, os fragmentos se entrelaçam não pela preocupação da clareza de
um discurso, mas pelo gesto corporal que mobiliza outro em sua leitura. Destinar uma escrita
como um convite ao trabalho corporal de um destinatário – como diz Barthes, “o prazer do
texto é esse momento em que meu corpo vai seguir suas próprias idéias – pois meu corpo não
tem as mesmas idéias que eu” (BARTHES, 1973/1887, p. 26).

Figura 07. Cartas (série), Clarice Rosadas, 2016. Fonte: acervo da artista.
Ainda que seja possível certa visualização de frases, a fragmentação e a ilegibilidade
demarcam um território onde a linguagem não se estabiliza. A grafia, o corpo e o ilegível
formam um texto que desliza em si mesmo; um ato, como nos debruçamos em Barthes, Cy
Twombly, Duchamp e Rivera, que se conclui numa participação. Na escrita que surge como
um gesto pode residir, então, o endereçamento. Sobre esta última dimensão, porém, Clarice
Rosadas subverte a noção de que entre um remetente e um destinatário, ela permaneceria
como um discurso inalterado a ser recebido, lido, decifrado – diríamos, com a série, que ela
se entrega com a preservação do enigmático que a constitui. Receber uma carta pressupõe
uma experimentação da linguagem e do tempo, uma leitura que também é operação de
escrita. Sua temporalidade não se fixa num documento a ser entregue; ela se enreda em
fragmentos de memórias escritas, se atualiza no apagamento e invisibilidade das palavras, nas
sobreposições, nos pontos vazios em que a incomunicabilidade se abre para o tempo de outra
escrita.
Com Cartas, podemos lançar à concepção do trabalho analítico como um modo de
escritura a presença do endereçamento, dimensão que estabelece íntima relação com o
significante, isso que demarca um vazio, que desliza e pode produzir sentidos quando se
conecta em uma cadeia, “pois o significante é unidade por ser único, não sendo, por natureza,
senão símbolo de uma ausência” (LACAN, 1955/1998, p.25). Na série, como já falamos, os
embaralhos e composições que formam as palavras e as marcas podem nos levar a uma
escrita que não entrega um significado dado de antemão; mas justamente por ser entregue
preservando o que nela é vazio, se destina à possibilidade de sentidos serem produzidos.
Numa análise, algo se endereça e orbita um espaço de hiância – esse espaço onde os resíduos
da experiência, os fragmentos recordados encontram senão sua desestabilização. Aí, o que
chamamos de gesto analítico se esboça, o ato do analista questiona e não suspende o que da
fala se torna estranho e lacunar: fazer com o inconsciente é fazer borda no que insiste em
resistir à decifração. Sobre o trabalho do analisando, Freud dirá que ela se trata de “inferir o
esquecido a partir dos sinais por ele deixados, ou, mais corretamente, ele terá de construir o
esquecido” (FREUD, 1937/2017). O descentramento que se opera numa análise é o caminho
para que esses restos deslizem por um vazio, suscitando novas montagens e construções: o
gesto que faz surgir um sujeito é, também, aquele que produz uma ficção.

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