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Menos do que anterior à escrita, o gesto pode ser tomado como algo que a interpela,
que lhe é intrínseco. Podemos pensar com Barthes sobre esse encontro paradoxal de Cy
Twombly com a caligrafia – trata-se ou não dela? – quando a entendemos enquanto um
movimento que marca a palavra com o corpo; mas se este gesto tem como um fim a
legibilidade, seus trabalhos já incidem sobre ela a partir de uma ruptura. Fiquemos, portanto,
com essas contradições que, longe de nos deixar sem rumo, na verdade nos aproximam do
que se trata o fazer com a linguagem. Essa fronteira, esse campo turvo, talvez nos seja mais
interessante do que buscar discernimentos; a estranheza que o exercício com o ilegível pode
causar pode ser, ela mesma, um caminho. Em Note II (1967), o título já nos sugere alguma
proximidade com a escrita. Um caderno de notas pode ser associado comumente à uma
superfície sobre a qual signos podem se dispor com alguma finalidade. O que encontramos,
porém, não são elementos que poderiam ser tomados como condição de possibilidade de uma
escrita existir. Vemos traços que se arrastam ao longo do espaço, quase como letras cursivas,
mas seus riscos não se entregam às regras comuns do discurso; vê-se um convite a imergir no
que está fora dele, um lugar que não implica a perda de possibilidades de experimentar uma
leitura – ao contrário, nos lança à movimentações múltiplas.
Percorrer a obra de TW com os olhos e com os lábios é, pois, um
permanente negar aquilo que parece ser. É uma obra que não exige que se
contradiga as palavras da cultura (a espontaneidade do homem é sua
cultura), simplesmente que se as desloque, que se as destaque, que se lhes dê
outro enfoque, TW força, não a recusar, mas - o que é, talvez, mais
subversivo - a traspassar o estereótipo estético; enfim, obriga-nos a um
trabalho de linguagem (e não é exatamente esse trabalho – nosso trabalho –
que dá seu valor à uma obra?). (BARTHES, 1990, p. 143)
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REFERÊNCIA DA OBRA.
e pedaços de fita crepe na superfície do papel, formando, junto à caligrafia, uma escrita
marcada pelo corpo – talvez, anterior à tentativa de leitura das palavras, nos deparamos com a
presença declarada de uma ação: a mão que escorrega pelo espaço, que aumenta ou diminui
sua força sobre o papel, que escreve e rasura, apaga o que foi gravado. Uma escritura que se
dobra, se faz visível e, depois, invisível – entramos no tempo próprio de um processo. As
palavras parecem atravessar as manchas, e nesse atravessamento, se transformam. Talvez
destinar uma carta a alguém seja menos sobre remeter um significado do que entregar o ato
de um corpo. Em Cartas, os fragmentos se entrelaçam não pela preocupação da clareza de
um discurso, mas pelo gesto corporal que mobiliza outro em sua leitura. Destinar uma escrita
como um convite ao trabalho corporal de um destinatário – como diz Barthes, “o prazer do
texto é esse momento em que meu corpo vai seguir suas próprias idéias – pois meu corpo não
tem as mesmas idéias que eu” (BARTHES, 1973/1887, p. 26).
Figura 07. Cartas (série), Clarice Rosadas, 2016. Fonte: acervo da artista.
Ainda que seja possível certa visualização de frases, a fragmentação e a ilegibilidade
demarcam um território onde a linguagem não se estabiliza. A grafia, o corpo e o ilegível
formam um texto que desliza em si mesmo; um ato, como nos debruçamos em Barthes, Cy
Twombly, Duchamp e Rivera, que se conclui numa participação. Na escrita que surge como
um gesto pode residir, então, o endereçamento. Sobre esta última dimensão, porém, Clarice
Rosadas subverte a noção de que entre um remetente e um destinatário, ela permaneceria
como um discurso inalterado a ser recebido, lido, decifrado – diríamos, com a série, que ela
se entrega com a preservação do enigmático que a constitui. Receber uma carta pressupõe
uma experimentação da linguagem e do tempo, uma leitura que também é operação de
escrita. Sua temporalidade não se fixa num documento a ser entregue; ela se enreda em
fragmentos de memórias escritas, se atualiza no apagamento e invisibilidade das palavras, nas
sobreposições, nos pontos vazios em que a incomunicabilidade se abre para o tempo de outra
escrita.
Com Cartas, podemos lançar à concepção do trabalho analítico como um modo de
escritura a presença do endereçamento, dimensão que estabelece íntima relação com o
significante, isso que demarca um vazio, que desliza e pode produzir sentidos quando se
conecta em uma cadeia, “pois o significante é unidade por ser único, não sendo, por natureza,
senão símbolo de uma ausência” (LACAN, 1955/1998, p.25). Na série, como já falamos, os
embaralhos e composições que formam as palavras e as marcas podem nos levar a uma
escrita que não entrega um significado dado de antemão; mas justamente por ser entregue
preservando o que nela é vazio, se destina à possibilidade de sentidos serem produzidos.
Numa análise, algo se endereça e orbita um espaço de hiância – esse espaço onde os resíduos
da experiência, os fragmentos recordados encontram senão sua desestabilização. Aí, o que
chamamos de gesto analítico se esboça, o ato do analista questiona e não suspende o que da
fala se torna estranho e lacunar: fazer com o inconsciente é fazer borda no que insiste em
resistir à decifração. Sobre o trabalho do analisando, Freud dirá que ela se trata de “inferir o
esquecido a partir dos sinais por ele deixados, ou, mais corretamente, ele terá de construir o
esquecido” (FREUD, 1937/2017). O descentramento que se opera numa análise é o caminho
para que esses restos deslizem por um vazio, suscitando novas montagens e construções: o
gesto que faz surgir um sujeito é, também, aquele que produz uma ficção.