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O Banquete Dos Trans - Alexandre Stevens
O Banquete Dos Trans - Alexandre Stevens
Alexandre Stevens
A escolha do sexo sempre foi uma escolha forçada, onde a biologia determinava
o destino, com exceções, certamente, nas formas de ambiguidades que a natureza
poderia ocasionalmente revelar. Uma escolha então deveria ser feita, e frequentemente
se impunha, sempre binariamente, menino ou menina, o que a cirurgia confirmaria. O
mal-estar residual quanto à identificação do sujeito ao seu sexo anatômico fazia
sintoma, isto é, fazia signo do que não vai bem no real.
Hoje é a natureza binária da escolha sexual que está posta em questão. A escolha
não se limita mais a homem ou mulher. Há também o neutro, o fora do sexo, todas as
variantes da ambiguidade. “Nós entramos na época do gênero fluido”[1], como disse
François Ansermet. Além disso, a intervenção cirúrgica é apenas um dos termos da
escolha. Às vezes basta a mudança do nome, ou da aparência, para que o sujeito assuma
sua identidade. O gênero é decidido pelo sujeito a partir dos laços com o outro da
cultura. Um adolescente respondeu assim a uma pergunta feita na escola:
-O que é o gênero?
Pode ser divertido evocar aqui o mito que Aristófanes traz no Banquete, uma vez
que há uma ambiguidade de gênero no início de uma das esferas totais, que ele qualifica
de andrógina. Mas os três tipos de esferas que ele propõe a nossa imaginação, uma vez
dividida em duas, explicam as diferentes escolhas de objeto pela atração à parte que
desde então lhes falta, mas não diz definitivamente nada da identidade sexuada.
Laure, que se chamava Hubert até os 6 anos, tinha começado a seu maquiar para
ficar “bonita” desde a idade de 3 anos. Ela tem um corpo de menino, mas a imagem que
ela apresenta com suas roupas e o nome que escolheu para si mesma a faz uma menina.
É preciso acrescentar que não é uma simples identificação com a qual o sujeito joga. É
uma identificação fixa. Há uma certeza em sua posição subjetiva como menina. Por
outro lado, ela se sente agredida por aqueles que recusam utilizar seu nome feminino. O
olhar a persegue a ponto de suas bonecas lhe parecerem vivas e de ser preciso virá-las
para que Laure não fique sob o olhar delas. Não há dúvidas de que ela interpreta.
Acrescentemos que a inconsistência do pai é explícita. De toda forma, sua identificação
feminina não pode ser simplesmente tomada como um processo de feminização que
recai sobre o sujeito e o incomoda, como no caso de Schreber. Aqui “ele” busca
ativamente ser “ela”.
Além disso, ela tem um segredo. Ela está enamorada de Marc. Como entender
essa escolha de objeto? É bastante singular. Marc é outro garoto do grupo de trans do
hospital. Ele tem um corpo de menina e se chamava Cécile.
Marc tem quatro anos a mais que Laure. Desde os 3 anos ele apresenta sinais de
seu desejo de ser um menino. Ele não queria se vestir como menina, era incapaz de se
olhar no espelho, por medo de ver seu sexo de menina e cortava os cabelos. Ele também
arrancou os cabelos de suas bonecas. A mãe constata uma “expressão de felicidade” no
rosto da criança quando ela aceita essa transformação da imagem da filha em menino. O
pai retira de um sonho a “certeza de que seu filho é um menino”. Mudam então o nome
e Marc obtém um novo documento de identidade com seu nome masculino. Ele entra na
puberdade e diante de sua angústia de ver os seios crescerem, é feito um congelamento
da puberdade. Há ainda nesse caso um contexto de certeza. Há pelo menos uma certeza
que possui todas as características do fenômeno psicótico do pai. Mas a escolha do
gênero que Marc faz não é inteiramente redutível a essa certeza. A angústia de que seu
corpo de menina apareça por trás de suas roupas é mais determinante em sua escolha.
É uma clínica muito singular que encontramos nesses casos. Nenhum dos dois se
encontram operados nesse momento, nem estão em curso de tratamento orgânico para
mudar o sexo anatômico, mas cada um mudou de nome e de estilo de se vestir. Cécile,
12 anos, se torna então Marc e se enamora de Hubert (8 anos, que se tornou Laure)
reciprocamente. Eles se conheceram no hospital. Para Laure, esse amor secreto é uma
solução estabilizante. Até então, os outros lhe pareciam sempre muito intrusivos. Suas
colegas tinham, segundo ela, inveja dela. Aqui ela tem um companheiro com um corpo
de menina e o amor substitui a inveja. É uma escolha de objeto sintomática
estabilizante.
Foi Laure quem começou a escrever cartas de amor para Marc. E este as guardou
“como um tesouro”. Elas são um agalma para ele. Encontramos também, nas suas
trocas, a significação do amor, como Lacan nos indica na substituição metafórica do
amante pelo amado [4]. O amor é recíproco.
Mas podemos ainda nos perguntar qual é o objeto enigmático do desejo que cada
um dos dois encontra no outro. Lacan aproxima o objeto parcial buscado dos agalmata,
como os chama Platão, que Alcebíades vê em Sócrates. Não poderíamos considerar para
Marc e Laure que cada um ama seu corpo no corpo do outro? No Seminário O
Sinthome, Lacan diz que “o parlêtre ama seu corpo, porque crê que o tem” e acrescenta
que “a adoração é a única relação que o falasser tem com o seu corpo”[5]. A adoração,
que quer dizer “dedicar um culto”, é do amor; mais precisamente, é isso que chamamos
“amor próprio”, quando se trata do amor de seu próprio corpo, do amor do corpo
próprio”[6].
Jaques-Alain Miller especifica essa relação com o corpo: “Lacan isola como
primária a relação corporal, a relação do falasser com seu corpo próprio, com o
imaginário que está implicado e a distingue da relação com o corpo outro, onde há o
pensamento, há o sentido e há a referência sexual” [7]. Mas no caso de Laure e Marc, a
relação primária com o corpo é problemática. Quando Lacan diz “ele crê que o tem”,
implica que isso, portanto, não é certo. E parece que nenhum dos dois crê realmente que
o tem, pelo menos em sua parte sexuada. Portanto, é pelo outro corpo que eles
encontram o seu, não pelo pensamento, mas pela imagem. É lá que está a agalma do seu
desejo. E esse amor é de alguma maneira um amor próprio no outro, que é o mesmo,
invertido.
Isso os aproxima por um aspecto da solução de Joyce, tal como a formula Miller:
“Há a relação corporal joyceana [...] que é imediatamente distinta, uma vez que o que
está no centro [...] não é a adoração do corpo, [...] mas o que subsiste em vez disso, é a
ideia de si como corpo. E me parece necessário opor a adoração do corpo próprio e a
“egoização” do corpo próprio [...]. A primeira relação de adoração continua sendo uma
relação de ter, enquanto a outra é uma relação de ser” [8]. Não é mais ter um corpo, mas
ser.
Sim, dentro dessas variações do gênero, nós podemos situar a cada vez um modo
singular de identificação sexuada, mesmo que seja fora do sexo. Por outro lado, o objeto
desejado não está necessariamente fixado por essa posição. Podemos notar, entretanto,
em certo número de situações, que é a constituição de um corpo próprio ou de um
substituto do corpo que faz o agalma desejado.
Notas:
[1] Ansermet F., «Choisir son sexe, le paradoxe du parlêtre », intervenção no congresso
da AMP no Rio em 2016, publicada em inglês no The Lacanian Review, nº 2, 2016, p.
83-87.
[2] Cf. Stevens A., « Genre d’apprentissage : l’apprentissage du genre », postado em 3
de novembro 2017 no blog da 48ª Jornadas da ECF, « apprendre, désir ou dressage ».
[3] Esses casos podem ser objeto de um publicação mais detalhada por Andrea
Cucagna. Estou examinando aqui apenas uma situação particular e muito parcialmente,
alterando os nomes.
[6] Cf. Stevens A., « Se faire un corps », Après l’enfance, paris, navarin, 2017.
[8] Ibid
[9] O New York Times publicou um artigo sobre isso em 5 de janeiro de 2017