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AULAS ESPECIAIS
PORTUGUÊS
AS OBRAS DA UNICAMP

O BEM-AMADO
BIOGRAFIA Firmando contrato de exclusividade com Procópio
Ferreira, Dias Gomes escreveu, em 1943, as obras Zeca
Diabo, Um pobre gênio, Eu acuso o céu e Doutor
ninguém. O tema central desta última era o preconceito
racial sofrido por um médico afrodescendente, porém,
Procópio Ferreira alterou certas características do
protagonista, tornando-o branco e filho de uma lavadeira,
o que gerou protesto de Dias Gomes e o rompimento
com o ator e diretor.
Convidado pelo dramaturgo Oduvaldo Vianna (pai),
Dias Gomes passou a trabalhar em São Paulo, na Rádio
Jovem Pan (na época Rádio Panamericana). Vianna foi
transferido para as Emissoras Associadas e Dias Gomes
o seguiu na nova jornada, mas foi demitido por Assis
(Dias Gomes no Roda viva,
programa de entrevistas exibido pela TV Cultura. Chateaubriand após ter feito uma sátira política da
Disponível em: Conferência Interamericana de Manutenção da Paz, a
<http://www.rodaviva.fapesp.br/fotos/405_materia.jpg qual representava, na prática, um mecanismo ianque de
Acesso em: 18 set. 2017.) controle político dos países da América.
Nessa ocasião, o dramaturgo conheceu Janete
Alfredo de Freitas Dias Gomes nasceu em Salvador, Emmer (conhecida como Janete Clair), locutora de rádio,
Bahia, em 19 de outubro de 1922. Em 1937, aos 15 anos, apresentadora e radioatriz, com quem se casou em 13 de
escreveu sua primeira peça, intitulada A comédia dos março de 1950, mudando-se o casal, algum tempo
moralistas, pela qual foi premiado, em primeiro lugar, no depois, para o Rio de Janeiro. Em 1953, Dias Gomes
concurso promovido pelo Serviço Nacional de Teatro e viajou com uma delegação de escritores à União
pela União Nacional dos Estudantes, em 1939. Em 1943, Soviética, o que resultou na sua demissão da Rádio
iniciou o curso de Direito na Faculdade do Estado do Rio Clube, onde estava trabalhando, e na inclusão de seu
de Janeiro. nome em uma “lista negra” de comunistas.
Dias Gomes escrevia compulsivamente e, certa vez, A publicação de O pagador de promessas, em 1959,
o autor Jaime Costa pediu-lhe que redigisse uma réplica rendeu a Dias Gomes o Prêmio Nacional de Teatro e o
da peça Deus lhe pague, de Joracy Camargo. O resultado projetou definitivamente na dramaturgia brasileira,
de tal encomenda foi a peça Pé de cabra, mas Jaime principalmente após o texto ter sido adaptado para o
Costa desistiu dela por achá-la subversiva e acreditar que cinema: o drama de Anselmo Duarte foi premiado com a
o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) não Palma de Ouro no Festival de Cannes, em 1962.
autorizaria sua encenação. Como o trabalho teatral era considerado subversivo,
Procópio Ferreira recebeu de Dias Gomes o texto Dias Gomes teve sua peça O berço do herói proibida na
Amanhã será outro dia, que recusou, mas acabou ence- estreia e, em 1969, excluído dos palcos, foi convidado
nando Pé de cabra. O ator excursionaria pelo país inteiro por José Bonifácio Sobrinho para trabalhar como
com a peça, que foi aplaudida de pé pelos espectadores, novelista. Embora houvesse se desligado totalmente do
mesmo tendo dez páginas censuradas pelo DIP. Partido Comunista na década de 1970, por se achar um

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péssimo ativista político, ainda sofria a perseguição da Prefeitura, baseada no slogan: VOTE NUM HOMEM
Censura, e cenas de suas novelas eram cortadas SÉRIO E GANHE SEU CEMITÉRIO.
frequentemente, quando não era totalmente proibido o Empossado no cargo, Odorico dá início à
trabalho por ele escrito, caso da novela Roque santeiro, desapropriação do circo, privando o povo de diversão, e
escrita em 1975 e liberada apenas dez anos depois. desvia verba municipal destinada a serviços essenciais,
No total, Dias Gomes foi indiciado em cinco como abastecimento de água, para cumprir sua promessa
Inquéritos Policiais Militares, o que resultou no de campanha: construir o cemitério. Depara-se, porém,
impedimento pela Censura de ser encenada sua dra- com um obstáculo inusitado: as mortes em Sucupira
maturgia em palcos brasileiros. Em 1991, o dramaturgo deixam de ocorrer, o que acarreta a impossibilidade de se
ocupou a cadeira n.° 21 na Academia Brasileira de Letras inaugurar o cemitério, uma vez que o Prefeito garantiu
e, em 1999, morreu vítima de um acidente envolvendo o que isso só ocorreria quando houvesse um defunto para
táxi em que estava e um ônibus na Avenida 9 de Julho, ser enterrado.
em São Paulo. Alvo da oposição e do jornalista Neco Pedreira, o
qual, em seu jornal A trombeta, frequentemente publi-
O BEM-AMADO – ENREDO cava artigos que visavam à desmoralização do Prefeito,
Odorico determina-se a inaugurar o cemitério e se vale
O bem-amado é uma peça de teatro que pode ser de artimanhas inescrupulosas para realizar seu intento,
classificada como uma comédia política ou, ainda, uma buscando um cadáver a qualquer custo. Sua primeira
tragicomédia de caráter farsesco, na qual as personagens tentativa foi trazer para a cidade um primo de suas
representam tipos regionais do Nordeste brasileiro, como correligionárias – as irmãs Dorotéa, Dulcinéa e Judicéa
os coronéis, as beatas, as solteironas, os políticos, os (Juju) Cajazeira, apaixonadas por Odorico – que estava à
jornalistas, os padres, os delegados, os funcionários beira da morte. No entanto, o ar, a água, o clima da região
públicos, os pescadores e os donos de vendas. e o amor de Juju recuperaram a saúde de Ernesto.
Dias Gomes escreveu Odorico, o bem-amado ou Odorico, buscando outra saída para seu problema,
Os mistérios do amor e da morte em 1962, e a primeira traz a Sucupira o cangaceiro Zeca Diabo, a fim de que ele
versão da peça foi publicada no número especial de Natal matasse o jornalista de A Trombeta, o que eliminaria dois
da revista Cláudia, em 1963. Apenas em 1975 surgiu a problemas de sua administração: imprensa de oposição e
versão definitiva da obra, publicada em livro com o título a falta de um morto para inaugurar o cemitério. Mas Zeca
O bem-amado, farsa sociopolítico-patológica em 9 Diabo, apesar de ter sido nomeado delegado da cidade
quadros. por Odorico, alia-se a Neco Pedreira.
A ideia de escrever a peça surgiu quando Nestor de O Prefeito arma, então, outra estratégia: induz
Holanda contou a Dias Gomes que o cantor Jorge Dirceu Borboleta a matar a esposa, fazendo-o acreditar
Goulart ficou sabendo da existência, no Espírito Santo, no romance adulterino dela com Neco e estimulando-o a
de um prefeito que se elegera prometendo construir um lavar a honra com sangue, indução que leva o
cemitério, mas, durante um ano, não conseguiu colecionador de borboletas a cometer o crime que
inaugurá-lo, pois ninguém morria no lugar, o que resul- desgraçaria a sua vida e a de Dulcinéa.
tou na acusação, pela oposição, de que o prefeito seria O plano sórdido de Odorico, que, na verdade, era o
perdulário, responsável por obras inúteis à população. real amante de Dulcinéa, disfarça-se em apoio caridoso a
Nestor de Holanda escreveu uma crônica sobre o fato, Dirceu Borboleta, quando o único beneficiário da
publicada no Diário carioca, e Dias Gomes transformou situação seria o próprio Prefeito. Dirceu dá vários tiros
o texto em uma comédia política intitulada, inicialmente, na esposa, foge para a Prefeitura e acaba se escondendo
O bem-amado ou Os mistérios do amor e da morte. na igreja, mas é delatado pelo Prefeito e preso pelo
No enredo, Odorico Paraguaçu, um coronel de delegado Zeca Diabo.
Sucupira (localidade fictícia do litoral baiano), quando A trama de Odorico não lhe rende, no entanto, o
ainda era vereador da cidade, surge em meio aos resultado por ele esperado: o Coronel Hilário Cajazeira,
populares para acompanhar o enterro de um pescador e tio de Dulcinéa, informa que ela deverá ser enterrada no
aproveita-se da ocasião para começar sua campanha à mausoléu da família em Jaguatirica, conforme pedido de

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seu finado pai. Odorico desespera-se e acaba sendo que seu comportamento político nada tem de sagrado.
descoberto como o articulador do crime cometido por Os neologismos criados pelo prefeito sucupirense
Dirceu. Ao ser revelada toda a armação do Prefeito, ele obedecem a processos envolvendo a substantivação de
perde a confiança da população, sendo destroçada a sua advérbios, como em “entretantos” e “finalmentes”, e a
habilidade de persuadir, de usar a palavra para convencer adjetivação de substantivos, como em “jenipapista”.
frente à capacidade do discurso jornalístico de Neco Algumas variedades vocabulares que merecem
Pedreira, que desmascara Odorico Paraguaçu. destaque na obra O bem-amado: “jenipapação”, “enco-
Como uma última cartada para inaugurar o cemi- mendação”, “safadagem”, “borboletando”, “defuntar”,
tério, Odorico planeja algo que impactasse a população “patifento”, “desmiolamento”, “caluniamento”, “paca-
emocionalmente e revertesse sua desmoralização, tice”, “namorismo”, “calunismo”, “sem-vergonhista”,
simulando uma luta em seu gabinete. Pede ajuda a Zeca “gazetista”, “agonizantista”, “imprensa marronzista”,
Diabo, mas o cangaceiro, até então aliado de Odorico, “agoramente”, “finalmentes”, “prafrentemente”,
irrita-se com a traição do Prefeito ao ter feito Dulcinéa, “não obstantemente”, “despenitentes”, “de repente-
“moça donzela”, um instrumento de suas trapaças e, mente”, “deverasmente”, “patrasmente” e “deceptude”.
convicto de que traidores deveriam morrer, põe fim à Em O bem-amado há também o uso de frases
vida de Odorico. inusitadas por parte de Odorico Paraguaçu, as quais são
O Prefeito esperto e repleto de malícia não contava responsáveis, em boa medida, pelo humor da peça:
com essa artimanha do destino: “o feitiço virou-se contra
o feiticeiro”, e ele próprio torna-se o primeiro defunto do Vim de branco para ser mais claro.
cemitério de Sucupira.
Em política, dona Dorotéa, os finalmentes justificam
os não obstantes.
O BEM-AMADO – O “ODORIQUÊS”
Tanto a imprensa sadia quanto a doentia serão
informadas com antecedência.
Dias Gomes transformou Odorico Paraguaçu num
símbolo do político brasileiro corrupto, oportunista, Seu Vigário, vamos botar de lado os considerandos e
malandro, de discursividade empolada, porém vazia, partir pros finalmentes.
repleta de neologismos, os quais, para a personagem,
valiam como representatividade de seu suposto alto nível Isso é uma gazeta que se lava e enxágua no
intelectual, por meio do qual fortalecia seu carisma e calunismo.
liderança frente à população de Sucupira.
Transgredindo o processo de formação de palavras Meus concidadãos! Este momento há de ficar para
característico da língua portuguesa, Odorico emprega sempre gravado nos anais e menstruais da História de
termos fortes para dar a si próprio ares de divindade, Sucupira!
como a palavra “sagração”, fortemente irônica, uma vez

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Exercícios
Texto para as questões de 1 a 3. b) Há uma gradação de ideias na sequência “a confir-
mação, a ratificação, a autenticação e ...a sagração”;
SEGUNDO QUADRO c) O termo “sagração” reveste o Prefeito com uma
conotação místico-religiosa;
Uma sala da Prefeitura. O ambiente é modesto. d) Visando impressionar a plateia, o discurso de
Durante a mutação, ouve-se um dobrado e vivas a Odorico contém uma grande quantidade de
Odorico, “viva o Prefeito” etc. Estão em cena Dorotéa, neologismos, representados, sobretudo, por adjuntos
Juju, Dirceu, Dulcinéa, Vigário e Odorico. Este último, à adverbiais de modo;
janela, discursa. e) O grande respaldo popular do agora prefeito
Odorico – Povo sucupirano! Agoramente já Odorico provém de sua variada e consistente
investido no cargo de Prefeito, aqui estou para receber a plataforma política.
confirmação, a ratificação, a autenticação e por que não
dizer a sagração do povo que me elegeu. 2. No seu discurso de posse, Odorico reitera sua
Aplausos vêm de fora. credibilidade junto ao povo? Explique.
Odorico – Eu prometi que o meu primeiro ato como
Prefeito seria ordenar a construção do cemitério. 3. Que elementos do trecho em análise de O bem-
Aplausos, aos quais se incorporam as personagens amado servem para comprovar a consolidação da
em cena. performance de político profissional de Odorico?
Odorico – (Continuando o discurso:) Botando de
lado os entretantos e partindo pros finalmente, é uma 4. (UFPE) – Sobre o teatro brasileiro contemporâneo,
alegria poder anunciar que prafrentemente vocês já examinemos três autores, em relação a algumas de suas
poderão morrer descansados, tranquilos e descons- obras e características.
trangidos, na certeza de que vão ser sepultados aqui a) João Cabral de Melo Neto tem como obra mais
mesmo, nesta terra morna e cheirosa de Sucupira. E conhecida o Auto de Natal Morte e Vida Severina,
quem votou em mim, basta dizer isso ao padre na hora narrando a trajetória de um sertanejo que abandona
da extrema-unção, que tem enterro e cova de graça, o agreste, rumo ao litoral. Ele encontra, nesta
conforme o prometido. migração, somente morte.
Aplausos. Vivas. Foguetes. A banda volta a tocar. b) O auto de João Cabral, cujo título denuncia a
Odorico acena para o povo sorridente, depois deixa a influência do teatro medieval, foi levado à cena com
janela e é imediatamente cercado pelos presentes, que o música de Chico Buarque. Está dividido em duas
cumprimentam. partes: a viagem para o litoral e a chegada ao Recife,
Dorotéa – Parabéns. Foi ótimo o seu discurso. onde o protagonista, Severino, encontra o mestre
Juju – Disse o que precisava dizer. carpina José.
Odorico – Obrigado, obrigado. c) João Cabral também escreveu Auto do Frade, uma
Dirceu – De um homem assim é que a gente precisa; peça sobre Frei Caneca, considerado herói de
vai direto à questão. revoluções libertárias.
(Dias Gomes. O bem-amado. 12. ed. d) Ariano Suassuna foi buscar nas fontes populares o
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2014, pp. 29-30.) motivo de sua dramaturgia. A sua peça mais famosa
é também um auto, Auto da Compadecida, que tem
1. (ESPM) – Só não se pode afirmar sobre o a dimensão de uma farsa, apresenta personagens
fragmento acima o seguinte: burlescos e ambiente circense.
a) Ao se fazer intérprete da vontade popular na e) Dias Gomes, autor de O pagador de promessas, O
primeira fala, Odorico utiliza um recurso comum bem-amado e O santo inquérito, utiliza em suas obras
nos discursos de políticos demagogos quando um tom dramático e nacionalista; não concede espaço
tomam posse; a tipos caricaturais nem a temas de denúncia social.
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GABARITO
PORTUGUÊS
AS OBRAS DA UNICAMP

O BEM-AMADO
1) A plataforma política de Odorico, alicerçada na
construção de um cemitério, não pode ser
considerada variada e consistente.
Resposta: E

2) Com “a confirmação, a ratificação, a autentica-


ção e por que não dizer a sagração do povo”, que
o elegeu, Odorico consegue projetar novamente
seu perfil de político decidido, reforçando sua
promessa de construir um cemitério em Sucu-
pira. Ao fazê-lo, o Prefeito recebe apoio dos seus
correligionários, das irmãs Cajazeiras e de
Dirceu Borboleta.

3) Os comentários de Juju (“Disse o que precisava


dizer”) e de Dirceu Borboleta (“De um homem
assim é que a gente precisa; vai direto à questão”)
evidenciam a magistral encenação do Prefeito,
que, ardilosamente, diz à população de Sucupira
exatamente o que ela desejava ouvir.

4) São verdadeiras as quatro primeiras afirmações.


O item e é falso, pois a obra de Dias Gomes apre-
senta forte crítica social, além de serem comuns,
nela, tipos populares caricaturizados.

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