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ANTONIO DA SILVA FERREIRA

TEMAS SALESIANOS 3
DOM BOSCO E A POLÍTICA

TEMAS SALESIANOS 3
DOM BOSCO E A POLÍTICA
1. Enrique Dal Covolo. A Venerável Margarida Occhiena, mãe de Dom Bosco
2. Antonio da Silva Ferreira. Os irmãos de Dom Bosco. A Marquesa Barolo e Sumário
Dom Bosco. O marketing de Dom Bosco
3. Antonio da Silva Ferreira. Dom Bosco e a política

Introdução ...................................................................................... 7

O que entendemos por política ...................................................... 8


A solidariedade .......................................................................... 10

Capítulo I
Situação da Itália no tempo de Dom Bosco ............................ 11

Uma região geográfica sem unidade política ......................... ...11


O processo de unificação da Itália ............................................ 13
A questão romana ...................................................................... 15

Capítulo II
Dom Bosco e as autoridades ..................................................... 17

O período de Chieri ................................................................... 17


Os inícios em Turim .................................................................. 20
Consolidação da obra de Dom Bosco em Valdocco ................. 30
Mediador entre Cavour e o cardeal Antonelli ........................... 33
As perquirições ......................................................................... 33

Capítulo III
Presença de Dom Bosco na política eclesiástica italiana ...... 38

Direitos Reservados à A nomeação dos Bispos ............................................................ 38


EDB-Editora Dom Bosco
SHCS CR Quadra 506 Dom Bosco entra em cena ........................................................ 39
Bloco B, sala 65 A missão Vegezzi ...................................................................... 41
70350-525-Brasília-DF A retomada das negociações ..................................................... 41
www.edbbrasil.org.br

5
Dom Bosco, um convidado do Governo italiano ......................43
Em Roma ................................................................................... 44 Introdução
A política do Pai Nosso .............................................................45
A nomeação ou transferência dos Bispos ..................................46
Cai o governo Ricásoli ...............................................................47
O centenário de S. Pedro .......................................................... 48
Atuação na questão romana .......................................................50
A sentinela de Israel permaneça em seu lugar ..........................50
As temporalidades ..................................................................... 51
A mediação de Dom Bosco ...................................................... 52
Dom Bosco vai a Roma ............................................................ 53
Retomam-se as tratativas .......................................................... 55
De novo em Roma .................................................................... 56 EM JANEIRO DE 1867, Dom Bosco estava conversando
com o Papa Pio IX sobre a delicada questão da nomeação de Bispos
Capítulo IV para a Itália. Eram mais de cem dioceses sem Bispo. As tratativas
Aspectos políticos na fundação entre o Governo italiano e a Santa Sé não andavam adiante. Na
da Sociedade de São Francisco de Sales ............................... 59 audiência com o Papa, este perguntou a Dom Bosco com qual
política ele sairia daquela situação de impasse. “A minha política,
Os direitos civis ......................................................................... 59 respondeu o Santo, é a de Vossa Santidade. É a política do Pai
A terminologia laica .................................................................. 61 nosso”. O que importava era o bem das pessoas, o Reino de Deus. E
O sistema de propriedade .......................................................... 62 apresentava ao Santo Padre um caminho bem simples para resolver
O encontro com os Ministros no colégio de Lanzo .................. 63 gradualmente as diversas questões. Mas que se começasse logo com
a nomeação de um certo número de Bispos, aceitos por ambos os
Capítulo V lados. Foi o que se fez.
Dom Bosco e o Papa ................................................................ 65 A expressão "a nossa política é a do Pai nosso", foi retirada
de seu contexto e passou a ser utilizada como indicação da posição
Na morte de Pio IX .................................................................... 65 política assumida pela Congregação salesiana.1
Na preparação do conclave ....................................................... 66 Neste estudo, queremos apresentar uma visão do contexto
político em que se encontrava a Itália naquele tempo, e do como
Capítulo VI Dom Bosco se inseriu nesse contexto. Em outras palavras, é uma
O que Dom Bosco deixou de falar sobre a política .............. 69 tentativa de se conhecer a ação política do Fundador dos salesianos,
nos diversos aspectos da vida eclesial e civil de seu tempo.
A cruzada mundial em favor da juventude ............................... 74
A Generala ................................................................................. 74
Acumulação do capital ..............................................................75
¹ Veja a respeito deste assunto o artigo Una eccezione alla regala e la política dei
Conclusão ................................................................................. 78 salesiani, em BS 6 (1882) 5, pp. 82-84.

5
O que entendemos por política Descobrir e ajudar a descobrir a dignidade inviolável de
cada pessoa humana constitui uma tarefa essencial, diria mesmo, em
Com João Paulo II, podemos dizer que a política é a "múltipla certo sentido, a tarefa central e unificadora da ação política de todo o
e variada ação econômica, social, legislativa, administrativa e cultural, cidadão. Ela tende a descobrir o homem ao homem, a esclarecê-lo
destinada a promover orgânica e institucionalmente o bem comum" acerca do sentido de sua existência, a dar-lhe consciência da verdade
(CFL 42).2 total acerca dele e do seu destino.
Com Luiz de Oliveira, podemos dizer que atualmente os A política, como vimos, é uma atividade ordenada com um
estudiosos usam o termo política em dois sentidos, em vista dos dois determinado objetivo: o bem-estar comum de todos os cidadãos.
polos em torno dos quais se concentra a preocupação da vida civil: Mas tem como energia motora, o uso ou a busca do uso do poder de
 o polo dos valores e dos fins, que definem o "bem estar governo, com o fim de organizar a sociedade global. Visa fazer
comum", dentro de uma visão global da sociedade civil; convergir os vários setores e as diversas energias para o
 o polo dos meios, dos métodos e das prioridades que devem ordenamento do todo, e guiar e orientar concretamente os
guiar a eficácia dos que detêm alguma parcela de "poder", comportamentos da convivência civil. Neste segundo sentido nem
para obter, na vida prática, uma adequada convivência social. todos são talhados para "fazer política". Tal atividade requer dotes e
Em linguagem paralela, poderíamos chamar de política o competências não comuns.
exercício da cidadania. "Uma política em favor da pessoa e da sociedade tem o seu
De fato, é principalmente na cidade, — em grego polis, — que critério de base na busca do bem comum, como bem de todos os
se organiza a convivência social humana. Ali se desenvolve a cultura, homens e do homem todo, bem oferecido e garantido para ser livre e
se programa o trabalho, se promovem as multíplices atividades, se responsavelmente aceito pelas pessoas tanto individualmente como
verificam as lutas sociais, e se amadurece, em definitivo, a história de em grupo”.3 O homem, — e não o mercado, — é o primeiro
um povo. Ser "cidadão" comporta interessar-se e participar da caminho que quem governa deve percorrer no desempenho da sua
dinâmica de tal convivência e dedicar-se com vários empenhos e missão: ele é o caminho primeiro e fundamental. Tudo o mais deve
serviços à sua reta organização e ao seu justo funcionamento. Neste orientar-se a seu bem. Todavia, levar em conta esse tudo o mais, é
nível, certamente todos têm uma responsabilidade política. necessário para se realizar essa tarefa primordial. Não se deve
colocar o carro diante dos bois. Mas inverter as prioridades, já no
pensamento de Dom Bosco, era abrir a estrada para a violência e
tantos outros males que afligem a nossa sociedade.

3
João Paulo II, Christifideles laici, 42 .
2
João Paulo II, Christifideles laici, 42.

9
A solidariedade

Estilo e meio de realizar uma política que tenha em vista o Capítulo I


verdadeiro progresso humano é a solidariedade. Esta "não é um
sentimento de vaga compaixão ou de enternecimento superficial Situação da Itália no tempo
pelos males sofridos por tantas pessoas, próximas ou distantes. Pelo
contrário, é a determinação firme e perseverante de se empenhar de Dom Bosco
pelo bem comum, ou seja, pelo bem de todos e de cada um, porque
todos nós somos verdadeiramente responsáveis por todos".4
"Ela pede a participação ativa e responsável de todos na vida
política, desde os cidadãos individualmente aos vários grupos,
sindicatos e partidos. Todos e cada um somos ao mesmo tempo
destinatários e protagonistas da política".5

Uma região geográfica sem unidade política

Itália era o nome de uma região banhada pelo Mar


Mediterrâneo. Não tinha uma unidade política, nem era um país
como é hoje. Vários Estados nela coexistiam mais ou menos
pacificamente. Após o Congresso de Viena, a Áustria tinha ficado
com a Lombardia e o Vêneto e o resto da região ficara dividida em
diversos Estados, entre os quais os Estados Pontifícios, governados
pelo Papa.6
À medida que os italianos foram tomando consciência de
sua situação, surgiu um movimento que tendia a fazer da Itália um
único país. Começa então o período chamado de Ressurgimento: a
Ressurreição da Itália como nação unificada. Dois obstáculos
principais se opunham a esse ideal: no plano temporal, o domínio
efetivo da Áustria não só no Lombardo-Vêneto, mas também sobre
outras cortes italianas. No plano espiritual, o Papa não renunciaria
6
Já nos tempos de Gregório Magno, quando a capital do Império se encontrava em
Constantinopla e Roma estava em decadência, o Papa tivera que assumir várias
funções de Governo na região, para socorrer às necessidades da população. O
domínio papal sobre o Lácio se consolidou, mais tarde, com o advento de Pepino o
Breve, rei dos Francos e de seu filho Carlos Magno. Inclusive este foi coroado
4
João Paulo II, Sollicitudo Rei Socialis, 38. imperador pelo Papa. Do Lácio, o domínio territorial do Papa foi se estendendo pela
5
João Paulo II, Christifideles laici,, 42. Itália Central, até atingir as margens do Mar Adriático, do outro lado da península.
Daí foi se expandindo para o norte, incluindo Bolonha e toda a Emília-Romanha.

10 11
a seus Estados, que cortavam a península pelo meio.
Diversas foram as propostas para o futuro Estado italiano.
José Mazzini propunha uma República. Sua proposta foi
apoiada pelas sociedades secretas, mas rejeitada pela sociedade da
época.
Os neoguelfos7 propunham uma confederação, sob a
presidência do Papa. Durante a primeira guerra da independência, o
Papa, para evitar um cisma na Áustria, retirou suas tropas que
estavam combatendo os austríacos ao lado dos outros italianos. Com
isso caiu a proposta de uma confederação italiana.
Restou a proposta de unificar toda a Itália, com a supressão
também dos Estados Pontifícios.

O processo de unificação da Itália

Em 1848, Carlos Alberto, rei do Piemonte, declarou guerra à


Áustria. Foi apoiado pelos Estados italianos em geral, que
mandaram tropas para ajudá-lo. Mas as tropas austríacas levaram a
melhor e Carlos Alberto teve que renunciar ao trono e retirar-se para
Portugal.
Com o advento de Camilo Benso de Cavour ao Governo, o
projeto de unir a Itália debaixo da coroa do Piemonte, retomou
fôlego. Cavour começou por entrar na guerra da Crimeia, apoiando
França e Inglaterra contra a Rússia. Com isso, pôde levantar a voz
em favor da unidade italiana, perante as grandes potências.

Estados da Itália no tempo de Dom Bosco:


 Reino da Sardenha: Sardenha, Ligúria, Piemonte, Vale da Aosta, Nice
(hoje com a França), Saboia (hoje com a França);
 Reino Lombardo — Vêneto (naquele tempo com a Áustria);
 Ducado de Parma;
 Ducado de Módena;
 Grão-Ducado da Toscana;
 Estados Pontifícios; 7
Na Idade Média, quando das lutas entre o Império e o Papado, chamavam-se
 Reino de Nápoles ou das Duas Sicílias. Guelfos os que apoiavam o Pontífice, e Guibelinos os que apoiavam o imperador.

12 13
Em 1859 teve início a segunda guerra de independência. tropas de Roma. Os italianos então puderam tomar a cidade, o que
Desta vez o Piemonte contava com o apoio da França. A guerra foi feito sem resistência. O Papa deixou o Palácio do Quirinal e
terminou com um acordo entre Áustria e França. Aquela cedia a considerou-se prisioneiro no Vaticano.
Lombardia aos franceses, que passaram essa região ao Piemonte, em
troca de Nice e da Saboia. A questão romana
Os ducados de Módena e Parma, o Grão-Ducado de
Toscana e a região da Emília-Romanha (que pertencia aos Estados Como consequência, surgiu a questão romana, que se
Pontifícios) votaram, em plebiscito, a união ao Piemonte, para prolongaria até 1929. O Papa não reconhecia o domínio da Itália
constituir o Reino da Itália. Uma expedição, chefiada por José sobre os antigos Estados Pontifícios. O Governo italiano, além de
Garibaldi, invadiu a Sicília. Os gato-pardos 8 da ilha aderiram a considerar legítimo o processo de unificação da pátria, não
Garibaldi e foi possível passar para o continente. Finalmente, renunciava aos privilégios que a coroa piemontesa, — agora coroa
também Nápoles caiu. italiana, — tinha no campo eclesiástico e os estendia a todo o
A este ponto, temendo que Garibaldi proclamasse a território italiano.
República no sul da Itália, o exército piemontês invadiu os Estados Os católicos italianos ficaram divididos em dois grupos. Os
Pontifícios e chegou a Nápoles. Garibaldi, embora a contragosto, intransigentes se opunham ao reconhecimento do poder da Itália
submeteu-se ao Rei. Surgiu, no entanto, no Sul da Itália, um sobre os Estados Pontifícios e à consequente política que o Governo
movimento de guerrilha, que os meios oficiais apelidaram de mantinha. Os conciliadores, considerando a unificação italiana como
banditismo, e que por mais de cinco anos empenhou setenta e cinco um fato consumado, trabalhavam para que se chegasse a uma
mil homens do exército italiano para poder consolidar o poder da conciliação na questão romana, e finalmente a paz religiosa reinasse
coroa do Piemonte no Napolitano. no país.
Faltavam apenas Roma e o Vêneto, para completar a O Governo italiano considerava o problema apenas como
unificação do país. A França mantinha tropas em Roma, desde 1849. uma questão interna à Itália. Procurou definir a posição do Papa com
O Vêneto continuava com a Áustria. a Lei das garantias. Ficava assegurado ao Pontífice o pleno
Em 1866, a Itália aliou-se com a Prússia contra a Áustria. exercício de sua autoridade sobre a Igreja católica e dava-se a ele
Para os italianos, foi uma campanha desastrosa. Mas seus aliados uma pensão, para sua manutenção no Vaticano. O Papa considerava
venceram os austríacos sem dificuldade, e a Itália pôde entrar de o problema como uma questão que interessava também à
posse do Vêneto. comunidade internacional e que tinha que ser negociada. Não
A ascensão da Prússia, como grande potência, teve como reconheceu a Lei das garantias e renunciou à pensão.
consequência a guerra com a França em 1870. Paris retirou suas Com o advento de Leão XIII ao sólio pontifício, houve um
momento de esperança, que logo se dissipou. A questão romana
8
Assim foram chamados os políticos que tinham como lema: "mudar o mais
possível, para que nada se mude". Para eles, era melhor depender de Turim, que
estava tão longe, do que de Nápoles, que não estava tão longe assim.

14 15
só será resolvida em 1929, com o Tratado de Latrão e a Concordata
entre a Santa Sé e o Governo da Itália. A religião católica Capítulo II
continuava a ser a religião oficial da Itália. O Papa passava a
governar apenas o Estado Vaticano, um país independente e que era
Dom Bosco e as autoridades
reconhecido também pela comunidade internacional.

UMA DAS FORMAS DE ABORDAR a ação política de Dom


Bosco, é ver qual foi o seu relacionamento com as autoridades, no
decurso de sua vida. “Com as autoridades públicas e com as
"pessoas do século" Dom Bosco era exemplar em colocar em prática
quanto inculcava aos seus, tendo consciência de que sua obra de
assistência e de educação — de inspiração religiosa — se impunha
também pela visibilidade filantrópica e social”. 9

O período de Chieri 10

Estudante no colégio

Aos dezesseis anos, João Bosco chega a Chieri, para estudar


no colégio daquela cidade. A primeira pessoa que ficou conhecendo

9
Pietro BRAIDO, Don Bosco prete dei giovani nel secolo delle libertà. Roma, LAS
2003, I, p. 432.
10
Servimo-nos da obra de SÃO JOÃO BOSCO, Memórias do Oratório de São
Francisco de Sales 1815-1855. Tradução de Fausto Santacatarina. S. Paulo, Editora
Salesiana [2005], 3ª edição, revista e ampliada, aos cuidados de Antônio da Silva
Ferreira. Citaremos sempre como MO.

16 17
no âmbito da escola, foi o padre Valimberti, professor da 5ª série de regulamentos escolares.16
latinidade.11 Ele o recebeu com muito carinho. Deu-lhe oportunos Digno também de ser citado o episódio em que João Bosco,
conselhos para manter-se longe dos perigos e o convidava para ajudar- esperto em prestidigitação, é denunciado ao delegado das escolas, o
lhe a missa. Levou-o ele próprio ao prefeito das escolas12 e o cônego Máximo Búrzio, como culpado de ter parte com o demônio. 17
apresentou aos demais professores. O jovem, com tranquilidade, aproveitou-se de que o porta moedas e o
O relacionamento de João Bosco com os professores e as relógio do cônego tivessem sido esquecidos sobre algum móvel para
autoridades escolares foi bom. Todos entenderam qual o problema de fazê-los "desaparecer". Ao conhecer o truque, o padre deu-lhe um
um jovem com semelhante atraso escolar. O esforço e a capacidade do pequeno presente e concluiu: "Vai dizer a todos os teus amigos que a
aluno permitiram que, seguindo sempre as concessões contidas no ignorância é a mestra da admiração".
Regulamento para as escolas, passasse, em um ano, da sexta para a
quinta, desta para a quarta e finalmente para a terceira série. 13 No seminário
As MO nos falam também da visita do Magistrado da
Reforma,14 o advogado professor padre José Gazzani. Foi muito João Bosco queria muito bem aos seus superiores, que foram
bondoso para com João Bosco, que manteve sempre estreito e sempre muito bons para com ele. Mas o coração do moço não estava
amigável relacionamento com ele.15 Talvez esse relacionamento satisfeito. Era costume visitar o reitor e os demais superiores à
amigável com as autoridades, que o conheciam pessoalmente, é que chegada das férias e quando se partia para elas. Ninguém ia falar com
tenha permitido a João Bosco uma série de atividades — como a eles, a não ser quando chamado para receber alguma reprimenda.
Sociedade da Alegria —, que propriamente não se enquadravam nos Entrara no seminário com bolsa de estudo parcial, obtida junto
do Arcebispo de Turim pelo P. José Cafasso. Em cada um dos seis
anos que passou no seminário, recebeu sempre o prêmio de 60 francos,
11
Quanto à numeração das classes, cumpre notar que então se fazia em ordem
decrescente: 6ª, 5ª, 4ª etc, isto é, o que hoje chamamos 4ª, 5ª, 6ª séries etc.
12
“Ao prefeito dos estudos será confiada à observância da boa ordem nas escolas, e na
Congregação, e o exato cumprimento de quanto é prescrito tanto aos professores, e
mestres, quanto aos estudantes todos da cidade de sua residência, e também aos
reitores dos pensionatos, ou internatos que alguém fosse autorizado a manter na
mesma” (Regulamento para as escolas, título terceiro, capítulo terceiro, parágrafo 1°, 16
“Fica rigorosamente proibido aos estudantes a natação, o ingresso nos teatros, nos
artigo 102). jogos de truco, o usar máscaras ou ir a bailes mediante convite, qualquer jogo nas
13
“As promoções da classe inferior para a superior não poderão ordinariamente ter ruas, bares e cafés e outros lugares públicos, almoçar, comer ou beber nos hotéis, ou
lugar se não no fim do ano escolar, ou na primeira metade de novembro para as classes restaurantes, parar ou fazer rodinha, ou ficar conversando nos cafés, e recitar em
inferiores à terceira; se acontecer algum caso extraordinário, espere-se a decisão do teatros domésticos sem a licença do Prefeito dos estudos” (Regulamento para as
Magistrado [da Reforma], ou da Comissão encarregada dos estudos [...]” escolas, título terceiro, capítulo primeiro, parágrafo 2°, artigo 42).
(Regulamento para as escolas, título quarto, capítulo terceiro, parágrafo IV, artigo Sociedade da Alegria: “O nome vinha a calhar, porque cada sócio tinha a obrigação
191). estrita de arranjar livros e provocar assuntos e brinquedos que pudessem contribuir
14
Magistrado da Reforma: corpo de oficiais públicos, encarregados de superintender para estarmos alegres. Tudo o que pudesse ocasionar tristeza, especialmente as coisas
aos estudos (rei litterariae moderatores); era o que hoje poderíamos chamar de contrárias às leis do Senhor, estava proibido” (MO, p. 56).
Conselho Superior da Instrução. 17
Cf MO, pp. 72-75.
15
Cf MO, p. 60.

18 19
por bom comportamento e pelo proveito nos estudos. No segundo Ordenado sacerdote, Dom Bosco seguira a orientação do P.
ano de teologia, foi nomeado sacristão, o que lhe trouxe outros 60 Cafasso e fora estudar moral no colégio eclesiástico. Também aí
francos. O restante da pensão era providenciado pelo P.Cafasso.18 entrou em contato com Bispos, Prelados e pessoas de posição na
No final de 3° ano de teologia, apresentou-se sociedade.
espontaneamente ao Arcebispo, Dom Luís Fransoni, a fim de A prática pastoral começou pelas prisões. Mas logo viu que
solicitar autorização para fazer o 4° ano em curso de verão e assim era necessário fazer algo para que os jovens não fossem para aquele
passar logo para o quinto ano e último no ano seguinte. Aduzia sua lugar de pena. “Quem sabe, dizia de mim para mim, se tivessem lá
avançada idade de 24 anos completos. O Arcebispo recebeu-o com fora um amigo que tomasse conta deles, os assistisse e instruísse na
muita bondade e examinou qual era o resultado dos estudos nos anos religião nos dias festivos, quem sabe não se poderiam manter
anteriores. Concedeu-lhe o que pedia, com a condição de que afastados da ruína ou pelo menos não diminuiria o número dos que
prestasse exames de todos os tratados correspondentes ao ano que retornam ao cárcere?”.20
desejava ganhar. Ao mesmo tempo, nos passeios que sempre davam os alunos
Ao deixar o seminário, Dom Bosco levava uma boa do colégio eclesiástico, ele tinha ocasião de ver tantos jovens
recordação daquela instituição. Os superiores o amavam e lhe abandonados a si mesmos, que passavam o tempo expostos ao vício
tinham dado contínuos sinais de benevolência. Estava muito e à corrupção, ou então que, aos domingos, gastavam nas tavernas os
afeiçoado aos companheiros. Chega a afirmar: “Pode-se dizer que eu poucos soldos que tinham ganhado durante a semana.
vivia para eles, e eles viviam para mim”.19 Com o conselho e as a luzes do P. Cafasso, pôs-se a estudar
uma maneira de ir em socorro desses jovens. Preparado esse plano,
Os inícios em Turim decidiu apresentar-se ao Arcebispo e obter a aprovação dele, para
conhecer melhor a vontade de Deus e para prevenir-se contra
Com as autoridades eclesiásticas dificuldades que poderiam aparecer mais tarde, como de fato
apareceram. 21 O Arcebispo, tendo ouvido o jovem sacerdote, deu-
Dom Bosco tinha necessidade de colocar-se em relação com lhe sem mais a sua aprovação e a bênção pastoral. Desde aquele
os Prelados da Igreja, com as pessoas mais nobres e religiosas da momento vai surgir uma grande familiaridade entre o Arcebispo e
cidade e do Reino, pertencentes ao clero secular, às Ordens Dom Bosco. Este o consultava sempre, na medida em que ia
religiosas, à Magistratura e até ao Conselho do Soberano. desenvolvendo seus projetos.
Frequentando o palácio episcopal, não raramente se
encontrava com os Bispos que vinham se entender com o
Metropolita e também com os Prelados de outras Províncias
eclesiásticas do Reino, os quais com frequência vinham a Turim,
para tratar de negócios com a corte.

20
MO, p. 121.
21
18
Cf . MO, pp. 93, 106. Giovanni Battista LEMOYNE, Eugenio CERIA, Angelo AMADEI, Memorie
19
MO, p. 111. Biografiche di Don Giovanni Bosco, 2, p. 69-70. Citaremos sempre como MB.

20 21
Dom Bosco deu início ao oratório. Nos três anos em que ele Com os párocos
permaneceu no colégio eclesiástico, antes como aluno e no último ano
como repetidor da aula de moral, também o oratório ali permaneceu. Entrementes, começaram a surgir queixas de que o oratório
afastava os meninos das paróquias e que assim os párocos não
Em Valdocco teriam podido conhecer aqueles "dos quais deveriam prestar contas
no tribunal de Deus". Reuniram-se, pois, e enviaram dois deles para
Mas chegou a hora de deixar o colégio. P. Cafasso, através do pedir a Dom Bosco que mandasse os meninos às suas paróquias e
Teólogo João Borel, o endereçou para trabalhar no Refúgio, 22 que deixasse de reuni-los fora delas.
dependia da Marquesa Júlia Colbert, viúva do marquês Falletti de Dom Bosco começou por mostrar que seus jovens eram em
Barolo. sua grande maioria provenientes de localidades fora de Turim.
O Oratório passou a funcionar provisoriamente no Refúgio. O Vinham atraídos pela possibilidade de emprego na construção civil,
próprio Arcebispo concedeu a faculdade de que se pudesse cantar pois naquele momento a cidade passava por um momento de grande
missa, fazer tríduos, novenas, exercícios espirituais, administrar a expansão. Depois, propôs aos párocos que cada paróquia tivesse
Confirmação, a Santa comunhão e também poder cumprir o preceito também um lugar adequado onde reunir e entreter os rapazes em
pascal, — que diversamente se deveria cumprir na própria paróquia, agradável passatempo, junto com a catequese.
— a todos o que frequentassem a instituição. “Os párocos de Turim, reunidos em suas habituais
O Oratório passaria por várias peripécias até chegar à sede conferências, trataram da conveniência dos Oratórios. Pesados os
definitiva da Casa Pinardi, em Valdocco: Refúgio, Cemitério de S. prós e os contras, ante a impossibilidade de cada pároco montar um
Pedro in vinculis, Moinhos da Cidade, Casa Moretta, Prado Filippi.23 oratório em sua respectiva paróquia, encorajaram o padre Bosco a
continuar, enquanto não se tomar decisão contrária”.24

Visita do Arcebispo ao Oratório

Para a festa de S. Luís, em 1846, o Arcebispo foi


administrar a Crisma aos jovens do oratório. Na frente da pequena
capela de Casa Pinardi preparou-se uma espécie de dossel, sob o
22
Refúgio (hoje Instituto Barolo) é um grande colégio para meninas pobres "a quem a qual o Arcebispo foi recebido. Dom Bosco leu algumas palavras de
sedução induziu ao erro e as quais, arrependidas, procuram a paz de um retiro.
Primeira condição para serem aceitas é que estejam arrependidas e entrem
ocasião e alguns jovens representaram uma breve comédia intitulada
espontaneamente no colégio" ("L´Armonia" 4 [1851] 41, 4 de abril, p. 163, coluna 1). “Um cabo de Napoleão”. Agradou muito ao Arcebispo.
O nome é tirado da padroeira, Nossa Senhora, Refúgio dos Pecadores.
23
Em MO, pp. 135-164, o leitor poderá ter notícias particularizadas dessas etapas
percorridas pelo Oratório. 24
MO, p. 149.

22 23
Depois o prelado celebrou a Missa e deu a comunhão a mais de 300
meninos. Em seguida administrou a Crisma. para abrir o novo oratório em Valdocco. Desta vez, não há a
assinatura do Teólogo Borel na carta. O marquês falou com o
Supervisionando a Escola de Método Arcebispo e com o Conde José Provana de Collegno (que era porta-
voz do Rei) e respondeu convocando Dom Bosco para uma
O relacionamento de Dom Bosco com D. Fransoni foi audiência no dia 30 do mês.
sempre muito bom. O Arcebispo o recebia bem em palácio e às Deste encontro temos apenas o relato de Dom Bosco. Da
vezes dava ouvido às sugestões que o bom padre lhe apresentava. parte de Cavour, temos o rascunho da resposta que se deu a Dom
Quanto Ferrante Aporti veio a Turim, para dar aulas de Bosco: “Tendo eu falado com S. Exª o senhor arcebispo e com o
método, o Arcebispo encarregou Dom Bosco de assistir-lhe as aulas conde Collegno que nenhuma dúvida pode existir sobre a vantagem
e mantê-lo informado acerca dos conteúdos do curso e de quanto de um catecismo — e que receberei de boa vontade o senhor
mais interessasse. Dom Bosco matriculou-se e por um certo tempo sacerdote Bosco Segunda feira, 30, no escritório, às 2 da tarde. Dia
assistiu às aulas. Depois de algumas semanas, apresentou um 28 de março. M. Benso de Cavour”. Não está nos limites deste
relatório ao Arcebispo. Este o ouviu com atenção e depois lhe disse trabalho o tratar da divergência existente entre as duas fontes.
que não fosse mais às aulas. E Dom Bosco interrompeu seu curso. Aqui nos cabe somente constatar que a imagem que as MO
transmitem de Cavour corresponde nas suas grandes linhas com a de
Com o Vigário da cidade outras fontes históricas: a pertinácia com que procurava atingir seus
objetivos e os métodos de que às vezes se servia lhe valeram os
Enquanto o oratório estava perambulando de cá para lá, juízos mais duros dos liberais de seu tempo.
sempre o relacionamento com as autoridades foi mediado pelo Dom Bosco vê Cavour como um firme adversário do
Teólogo Borel, embora Dom Bosco assinasse também a maioria das oratório. Isso porque deu crédito a um diz que diz que Dom Bosco
petições. podia a qualquer momento desencadear uma revolução com seus
Tratando-se agora de uma sede definitiva, era necessária a rapazes, que lhe obedeciam fielmente às ordens. 26
autorização do Vigário da Cidade, para sua abertura e Ambos veem o problema do jovem pobre e abandonado
funcionamento. debaixo de óticas opostas. Para Cavour, são canalhas, que só causam
A 13 de março de 1846, Dom Bosco escreveu ao Marquês aborrecimento às autoridades. São vagabundos, com os quais pouco
Miguel Benso de Cavour, Vigário da cidade, 25 uma carta expondo a há que fazer.
situação do oratório. Explicava a natureza e finalidade da obra, dizia
que dispunha de um lugar onde recolher os jovens e pedia licença
26
MO, pp. 152-155.

25
O vigário da cidade e de polícia era um magistrado nomeado pelo Rei entre os
decuriões da administração municipal de Turim. Seus poderes, judiciais,
administrativos e de polícia era superiores aos puramente municipais, pois também
tinha poderes conferidos pelo Estado. Quanto às competências de polícia, competia-
lhe “promover a observância da ordem no tocante à religião, à abundância e o
discreto preço dos víveres, à tranquilidade e à segurança pública”.

24 25
Para Dom Bosco são pobres filhos do povo. São sim
abandonados, mas libertados dos perigos, encaminhados a algum pago o estipêndio de 600 francos.
ofício, deixam de ser candidatos à cadeia, para se tornarem honestos Dom Bosco introduziu nos horários das meninas os cantos
cidadãos. sagrados, o canto gregoriano, a música, a aritmética e também o
A questão foi remetida ao arbítrio do Arcebispo. sistema métrico. A Marquesa estava contente e achava que o
Cavour reuniu então o Tribunal de Contas, formado por uma trabalho com os meninos era uma ótima obra a que se dedicava Dom
seleção de conselheiros, em cujas mãos se concentrava todo o poder Bosco. Mas na cidade começaram os comentários: muitos "meninos"
civil. Ele, em pessoa, presidia à reunião, que se realizou no palácio de Dom Bosco tinham bigode e barba, e as meninas da Barolo eram
episcopal. Quando a decisão do tribunal se endereçava para proibir o o que eram... Não faltou alguma situação constrangedora.
funcionamento do oratório, levantou-se o Conde José Provana de Aconselhada pelo provincial dos Padres da Missão, esta passou a
Collegno. Transmitiu aos magistrados a vontade do Rei: “É minha considerar que havia perigo no reunirem-se os jovens nas portas de
intenção que essas reuniões dominicais sejam promovidas e seus institutos dada a natureza das pessoas que aí se encontravam. 28
protegidas; se há perigo de desordens, procure-se a maneira de as Propôs então um dilema: ou deixar a obra dos meninos, ou a obra do
prevenir e impedir”. 27 Refúgio.
O capelão procurou um caminho do meio. Deixaria a obra
O Marquês de Cavour chamou Dom Bosco e lhe comunicou do Refúgio, mas a Marquesa incluiria o oratório entre as obras por
que mandaria vigiar a ele e às suas reuniões. A menor coisa que ela beneficiadas, mantendo Dom Bosco na folha de pagamento da
acontecesse e que o pudesse comprometer, implicaria na expulsão sua instituição. A Barolo recusou a proposta.
dos moleques e o sacerdote seria chamado a prestar contas do Dom Bosco, então, entre deixar o emprego e deixar os seus
ocorrido. Nos seis meses que ainda viveu, mandou todos os domingos jovens, opta por viver pobremente, mas continuar a cuidado dos
alguns guardas municipais passar o dia inteiro no oratório, vigiando jovens. Deus providenciaria!
sobretudo o que se dizia ou se fazia na igreja e fora dela.
Nova opção pelos jovens
A opção de Dom Bosco pelos pobres
Quando devia deixar o Refúgio, Dom Bosco foi acometido
Como vimos, saindo do colégio eclesiástico, Dom Bosco por uma inflamação pulmonar muito violenta. Recebeu o viático e os
passou a trabalhar, junto com o Teólogo Borel, na obra da Marquesa santos óleos. Diz ele: “Parece-me que naquele momento estava
Barolo. Para aceitar o encargo de capelão, colocara como condição preparado para morrer. Sentia abandonar meus meninos, mas es-
que lhe fosse permitido receber os jovens no novo local. Foi-lhe

28
Carta Barolo-Borel de 18 de maio de 1846, em ASC A 141240 FDB 541 B 5 -
27
MO, p. 179. 541 B 8).

26 27
tava contente por terminar meus dias após haver dado forma estável
ao Oratório.” 29 te de 19 de março de 1848, os israelitas súditos do reino passavam a
Mas os jovens não aceitaram que Dom Bosco morresse. gozar de todos os direitos civis e da faculdade de conseguir os graus
Espontaneamente rezaram, jejuaram, ouviram missas, fizeram acadêmicos. Não mais eram obrigados a residir no gueto.
comunhões. Continuamente alguém esteve rezando e suplicando Multiplicaram-se as reuniões nas ruas e praças da cidade.
diante do altar da Consolata. Foram feitas inúmeras promessas, se a Como o Arcebispo e boa parte do clero seguiam uma linha de
graça fosse alcançada. E Dom Bosco sarou. Os jovens tinham-lhe intransigência, atacavam-se os jesuítas e o clero em geral. Dom
restituído a vida. Daí por diante, ela pertencia a eles. Qualquer Bosco foi objeto de vários atentados contra sua vida. As autoridades
momento de sua existência seria gasto inteiramente pelo bem da pouco intervinham para impor a ordem. 30 No campo da imprensa,
juventude. folhetos e jornais difundiam as novas ideias. Era impossível impedir
O Santo foi restabelecer-se na casa do irmão José, nos que os oratórios ficassem longe do que acontecia.
Becchi. Ao voltar trazia consigo sua mãe, Margarida Occhiena, a qual Dom Bosco teve então a ideia de publicar um jornal
tinha optado, também ela, pelos jovens e por uma vida pobre. religioso-político, intitulado "L'Amico della gioventù", de tendência
moderada. 31 Seu objetivo era chegar até a juventude e combater a
A crise de 1848 — Dom Bosco jornalista mistura de religião e política que faziam quer os anticlericais, quer
os católicos intransigentes. Foi lançado em janeiro de 1849. Poucos
No final da década de 1840, em toda a Europa se manifestou eram os assinantes. 32 Recorreu-se então ao sistema de ações. Cinco
uma crise política criada pela difusão e aceitação das ideias liberais. leigos e 19 eclesiásticos compraram ações do jornal. Não era
O Piemonte não foi uma exceção. possível sobreviver. Em maio de 1849 o jornal encerrava suas
Em 1848, Carlos Alberto concedia o Estatuto, que passava a atividades e os acionistas passaram para o "Istruttore del Popolo", de
ser a Constituição do Reino da Sardenha. A religião católica um grupo ligado ao P. João Cocchi. 33
continuava a ser a única religião do Estado. Os demais cultos eram A experiência valeu. Dom Bosco percebeu que, se queria
tolerados de acordo com a lei. Todos os súditos do reino, qualquer fazer algum bem à juventude, devia se abster de tomar partido por
que fosse seu título ou grau, eram iguais perante a lei. Todos esta ou aquela corrente. Assim definiu o rumo de sua ação política:
passavam a gozar igualmente dos direitos civis e políticos e podiam "Fazer o pouco de bem que puder aos meninos abandonados, em-
ser admitidos aos cargos públicos e militares, salvas as exceções
determinadas pelas leis.
30
Os protestantes, embora fossem poucos, lançaram-se sem Em carta existente no arquivo da Consolata, P. Cafasso fazia ver a Dom Bosco
que a atitude das autoridades podia sim ser atribuída às ideias liberais herdadas da
mais numa intensa campanha para fazer prosélitos. Pela real paten- Revolução Francesa, mas não era uma atitude deliberadamente anticatólica.
31
Cf. Pietro STELLA, Don Bosco nella storia economica e sociale (1815-1870).
Roma, LAS [1980], pp. 340-347.
32
A relação encontrada no Arquivo traz apenas 137 assinantes.
29 33
MO, p. 188. Este jornal acrescentou a seu título: "L'amico della gioventù”.

28 29
pregando todas as minhas forças a fim de que se tornem bons cristãos
em face da religião, honestos cidadãos na sociedade civil”. 34 Ao Quando, porém, Dom Bosco enviou-lhe o projeto de
marquês Roberto Taparelli d´Azeglio confirmava sua opção dizendo: constituições da Sociedade Salesiana, o Arcebispo não quis agir
“Convide-me para qualquer coisa em que o padre possa exercer a pessoalmente, mas mandou o pedido à Cúria de Turim, para que
caridade, e me verá pronto a sacrificar vida e haveres; quero, porém, desse parecer sobre o assunto.
manter-me agora e sempre à margem da política”. 35
Veremos adiante que, se ele conseguiu manter-se longe da Desenvolvimento do Oratório de S. Francisco de Sales
política de partidos, terá parte importante na política eclesiástica do
Reino de Itália. Na sede de Valdocco, Dom Bosco expandiu a obra com a
construção da Igreja de S. Francisco de Sales e com a construção de
Consolidação da obra de Dom Bosco em Valdocco um braço de edifício onde colocou seus jovens e mais tarde as
primeiras oficinas.
Dom Bosco, Diretor-Geral dos três oratórios de Turim Entrementes, fora de casa, Dom Bosco continuava com seu
trabalho de atendimento dos encarcerados e dos jovens do
Quando o Arcebispo foi exilado em Lião, o cônego Anfossi correcional da Generala. Foi até um dos sócios fundadores da
assegura como coisa certa que Dom Bosco foi visitá-lo. 36 Não deixou Associação de Proteção dos Egressos dessa instituição.
de proteger e favorecer o oratório em todos os modos. Em 31 de Em casa o número de alunos crescia rapidamente. 51 em
março de 1852, resolveu em favor de Dom Bosco a crise que existira 1853, 135 em 1856, 570 em 1862, 804 em 1868. Grande era o
na obra dos oratórios. Nomeou oficialmente Dom Bosco como número de jovens enviados pelos Ministérios e pela Prefeitura de
Diretor Espiritual do Oratório de S. Francisco de Sales e submeteu a Turim. 39 Diz Bracco: “Entre Dom Bosco e os administradores
ele também os oratórios de S. Luiz Gonzaga (Porta Nuova) e do Anjo públicos havia ocasião de estabelecer relações por duas grandes
da Guarda (Vachiglia). 37 Do exílio, recomendou a Dom Bosco que categorias de motivos que essencialmente se relacionam com a
providenciasse à continuidade de sua obra, caso viesse a faltar. 38 solução dos problemas derivados da aplicação da legislação vigente
e aos pedidos de intervenção. Naturalmente o sentido da direção

39
Algum documento existente, nos diz que, às vezes, os jovens enviados pelas
autoridades causavam sérios problemas à disciplina da casa. Vejam-se alguns
trechos da carta de Dom Bosco ao Pretor de Borgo Dora, de 18 de abril de 1865:
34 “Além disso, para frear certos jovens em sua maior parte enviados pela autoridade
MO, p. 215. governativa, facultou-se usar todos aqueles meios que se foram julgados oportunos
35
MO, p. 216. e nos casos extremos de chamar o braço da segurança pública [a polícia] como se
36
Cf. MB, II, p. 110 fez muitas vezes [...] No entanto os companheiros do jovem continuavam o
37
Cf. GIOVANNI BOSCO, Epistolario, Introduzione, testi critici e note a cura di escândalo dado e foi preciso expulsar alguns do estabelecimento, outros com pena
Francesco Motto, Roma, LAS 1991, p. 152, nota 7. entregá-los às autoridades da segurança pública que os levaram para a prisão”
38
Não tendo a família de Dom Fransoni permitido a consulta de seu arquivo pessoal, (GIOVANNI BOSCO, Epistolario, Introduzione, testi critici e note a cura di
não foi possível conhecer as cartas que Dom Bosco lhe escreveu nesse tempo. Francesco Motto, Roma, LAS 1991, Il, p.121) .

30 31
do relacionamento não era único; antes, parece que o volume dos Mediador entre Cavour e o cardeal Antonelli
pedidos de intervenção era mais relevante da parte das instituições
para com Dom Bosco e não vice-versa. Esta primeira constatação é Quando Dom Bosco foi a Roma pela primeira vez, em 1858,
importante para compreender o sentido de algumas atitudes recebeu uma carta de Camilo Benso de Cavour. A diocese de Turim
fundamentais, não negativas, que unem na maneira de se comportar estava sem bispo há muitos anos; Dom Fransoni continuava no
hipotéticos amigos e inimigos ideológicos”. 40 exílio e não renunciava ao cargo. Impunha-se encontrar uma solução
para o problema. Cavour propunha como saída, que a S. Sé
Visita de Urbano Rattazzi nomeasse para Turim um coadjutor com direito à sucessão. Em
compensação, que fizesse cardeal a Dom Fransoni, reconhecendo-
Em 1854, o Ministro Urbano Rattazzi foi visitá-lo. Nesse lhe assim publicamente os méritos. Dom Bosco tratou do assunto
momento, era Ministro de Graça e Justiça e estava estudando a com o Cardeal Antonelli, Secretário de Estado. Voltando a Turim,
Reforma do Código Penal no referente a menores. 41 Supõe-se que a falou com Cavour e com o Núncio Apostólico, Abade Caetano
visita tinha especificamente o objetivo de ouvir Dom Bosco sobre o Tortone. Mas a questão infelizmente não encontrou uma solução que
assunto, pois este era considerado em Turim como um especialista satisfizesse a todas as partes e as tratativas terminaram em nada. 43
nos problemas da juventude. 42
As perquirições

40
Situação tensa na política italiana
G. BRACCO, Don Bosco e le istituzioni, em Torino e Don Bosco, I, p. 122).
41
Entre as muitas diferenças que se encontram entre o Código Penal de 1839 e o de
1859, interessam aquelas que se referem aos jovens menores de vinte e um anos. Os A segunda guerra de independência gerara uma tensão muito
dois códigos estão de acordo que o menor de catorze anos, quando agiu sem grande na situação política italiana. A cessão de Nice e da Saboia à
discernimento, não estará sujeito a pena. Porém, caso se trate de crimes ou de delitos, França suscitara os protestos de Garibaldi e da oposição da esquerda.
os Magistrados ou Tribunais mandarão que o imputado seja entregue à família, a qual Pio IX tinha publicado um Breve, excomungando os "invasores e
se obriga a educá-lo bem e a vigiar sob a sua conduta. Mas, no resto, existe uma
grande diferença entre os dois códigos. O de 1859, que é assinado por Rattazzí, prevê usurpadores" de uma parte dos Estados Pontifícios. A visita do Rei
para todos os jovens com problemas sociais que não sejam entregues à família, mas à aos novos territórios tinha dado lugar a não poucos contrastes com
custódia, que era uma casa de instrução e de indústria, ou então a internação num as autoridades eclesiásticas, que se recusaram a comparecer às
estabelecimento público de trabalho, se o imputado é menor de catorze anos. Se manifestações públicas oficiais.
realmente se desejasse a reeducação dos jovens, custódia e ergástulo não podiam
diferenciar-se somente pelo nome. Colocavam-se, então, sérios problemas de ordem
pedagógica no preparar o regulamento da custódia, de que fala o código de 1859. Por
quanto parece, o atropelar-se dos acontecimentos políticos tirou a Rattazzi a
oportunidade de levar adiante a tarefa de dar aos jovens com problemas sociais um
tratamento mais adequado à condição deles.
42
Cf. G. BOSCO, Conversazione con Urbano Rattazzi (1854), a cura di Antônio da 43
Veja sobre o assunto, Francesco MOTTO, Don Bosco mediatore tra Cavour ed
Silva Ferreira, em Pietro BRAIDO, Don Bosco educatore scritti e testimonianze.
Antonelli nel 1858, em RSS 8 (1986) pp. 3-20 .
Roma, LAS [1992], 2ª ed., pp. 65-8l.

32 33
O Ministério do Interior tinha enviado aos intendentes- distribuídos. Os jornais deram notícia da festa.45
gerais uma circular estabelecendo que a Festa do Estatuto fosse Em fevereiro de 1859, advertia o Papa que alguns mal
realizada na Igreja paroquial ou ao menos em algum oratório, de intencionados queriam ter seu centro de atividades em Civitavecchia,
acordo com o clero. Caso o clero não concordasse, que fosse Ancona e Roma. O escopo seria o de promover ideias
denunciado de acordo com o novo Código Penal. Vários Bispos e revolucionárias para poder colocá-las em prática em fins do mês de
sacerdotes que não aceitaram solenizar a festa do Estatuto foram março. Não pudera saber o nome de tais pessoas, pois as cartas
processados e condenados. Também, nos territórios dos antigos estavam simplesmente firmadas com F.Δ∵.
Estados Pontifícios, foram presos vários padres por ter cumprido Em 13 de abril de 1860, pela mala diplomática da
disposições da Santa Sé sem que estas tivessem a aprovação do Nunciatura, enviara nova carta ao Papa, avisando que o projeto dos
governo real. adversários não era só de anexar a Emília-Romagna, mas sim todo o
Estado Pontifício.46
Em Turim
Um sonho
Também em Turim, houve perquirições e prisões de
eclesiásticos fiéis ao Pontífice. Dom Bosco não foi uma exceção. Uma noite daquelas Dom Bosco sonhou que um bando de
Estava em boas relações com o Arcebispo no exílio. Quando o moleques tinha entrado em seu quarto. Apoderaram-se da pessoa de
Arcebispo de Pisa foi aprisionado e conduzido a Turim, na casa dos Dom Bosco, que sofreu uma revista geral. Buscaram entre os papéis,
Lazaristas, Dom Bosco teve um encontro com ele que durou umas em todas as caixas e armários, verificaram cada folha escrita que
duas horas. E que dizer de suas boas relações com Pio IX? Nos anos encontraram. Naquele momento, um deles, com aspecto benévolo
de 1848-1849, não quisera participar das manifestações em praça disse ao Santo: "Por que não afastou o tal e tal escrito? Ficaria
pública, nem mesmo daquelas que exaltavam a Pio IX. Na época o contente se encontrassem aquelas cartas do Arcebispo, que poderiam
Papa tentava modernizar os Estados Pontifícios e por isso era causar mal ao senhor e a ele? E aquelas cartas de Roma, que quase
exaltado pelos liberais. Dom Bosco recomendava a seus alunos que esquecidas, foram colocadas aqui (e indicava os lugares) e aquelas
não gritassem, "Viva Pio IX", mas sim "Viva o Papa". 44 Quando o outras lá? Se o senhor as tivesse tirado, livrar-se-ia de todo
Papa teve que fugir de Roma e foi estabelecer-se em Gaeta, os aborrecimento?” 47
jovens do Oratório fizeram uma coleta e enviaram uma pequena
soma de dinheiro para ajudar nas despesas do Pontífice. O Papa
respondera enviando 60 dúzias de terços que foram solenemente
45
F. MO pp. 210-211.
46
Cf. GIOVANNI BOSCO, Epistolario, Introduzione, testi critici e note a cura di
Francesco Motto, Roma, LAS 1991, I, pp. 368, 401.
47
MB 6, p. 546 .

44
Cf. MB, 3, p. 241.

34 35
Dom Bosco considerou aquele como um sonho
premonitório. Servindo-se de alguns jovens de plena confiança, A perquirição aconteceu como Dom Bosco tinha sonhado.
transportou para outros lugares tudo o que pudesse dar o mínimo Único documento que poderia ser comprometedor foi uma carta em
pretexto para falar de relações políticas ou de alusões ao que estava latim de Pio XI a Dom Bosco. Levaram uma cópia dela que, além do
sucedendo. Parte dos escritos foi queimada. Parte foi entregue a texto latino, trazia também a tradução em italiano.
pessoas de Turim, com as quais estivessem seguros. Parte foi Outras perquirições foram feitas. Tudo foi revistado na casa,
escondida debaixo de uma trave da igreja de S. Francisco de Sales. os jovens foram interrogados, até ex-alunos foram chamados a
depor. Nada se conseguiu apurar que incriminasse Dom Bosco e os
A polícia em casa seus.
Dom Bosco não deixou de protestar contra o que tinha
O jornal "Gazzetta del Popolo" publicou uma denúncia acontecido. Primeiro por carta 49 e posteriormente numa audiência
contra Dom Bosco. Em sua casa deveria haver documentos com o Ministro do Interior, Luís Carlos Farini, durante a qual entrou
comprometedores. E pedia que se fizesse uma busca como se deve e Camilo Cavour, que também participou da conversa. Urbano
se achariam esses documentos. Para o jornal, o Oratório era o centro Rattazzi, que naquele tempo não fazia parte do governo, ofereceu-se
da reação clerical. Diante da repercussão do artigo, o Ministro Farini para fazer um protesto no Parlamento. Mas Dom Bosco preferiu que
autorizou a perquirição. Três dias depois de ter tido o sonho, estava as coisas ficassem por ali.
Dom Bosco atendendo a uma pessoa que acompanhava um menino
pobre e trazia uma recomendação do Ministério do Interior, quando
se apresentaram a ele três senhores, bem vestidos, os quais vinham
para uma perquirição. Eram um Delegado e dois Fiscais. Alguns
guardas os acompanhavam. Como não traziam o mandato judicial,
foram obrigados a esperar até que o documento chegasse.48

48
Sobre este episódio há um trabalho muito bom de Pietro BRAIDO e Francesco
MOTTO: Don Bosco tra storia e leggenda nella memoria su "Le Perquisizioni",
Testo critico e introduzione. No trabalho há várias críticas ao texto de Dom Bosco,
muitas pertinentes, outras não. A maneira com que tratam este fato da ausência de
mandato judicial e o comportamento da polícia, nos faz supor que, graças a Deus,
os autores tenham pouca experiência de vida neste campo. Para nós, que vivemos os
49
anos do regime militar aqui no Brasil, só nos resta repetir: Brasil, nunca mais! Cf. Carta Bosco-Farini de 12.06.1860 em GIOVANNI BOSCO, Epistolario,
Introduzione, testi critici e note a cura di Francesco Motto, Roma, LAS 1991, I,
p.407.

36 37
situação religiosa estava bem presente ao Governo italiano. Em
Capítulo III 1861, tentou inutilmente que os Bispos que tinham residência no
reino tornassem às suas sedes.
Presença de Dom Bosco na Em 1864, França e Itália fizeram um acordo, pelo qual
aquela passava a esta a obrigação de zelar pela integridade do que
política eclesiástica italiana restava dos Estados Pontifícios. Tal acordo impediu qualquer
tentativa de negociação sobre questões tipicamente religiosas, para
as quais Pio IX convidara o Rei Victor Emanuel a abrir tratativas.
Pouco depois o Papa publicava a Encíclica Quanta cura que trazia
como apêndice o Sillabus dos erros dos tempos.
Paradoxalmente, tal fato deu a Pio IX a possibilidade de
externar seu afeto pela Itália e seu extremado senso de caridade, sem
correr o risco de que um eventual gesto de pacificação fosse
interpretado como uma adaptação da Igreja às concepções liberais.
Não faltaram, porém, na cúria romana intransigentes e
ultramontanos que sublinhassem as implicações políticas e as
VAMOS TENTAR APRESENTAR algumas ações de Dom Bosco consequências de um ato de acomodação.
para resolver situações criadas pelo conflito entre a Igreja e a Itália.
Começamos pela permanência do Papa em Roma. Dom Bosco entra em cena

A nomeação dos Bispos Não sabemos precisamente como Dom Bosco veio a tomar
parte nas tratativas para solucionar a questão dos Bispos. Era uma
Constituído o Estado italiano, Cavour desejava que se mediação difícil e que podia falhar a qualquer momento. O Governo
realizasse seu programa de “uma Igreja livre num Estado livre”. Não italiano era parlamentar. Qualquer descuido podia suscitar oposições
foi o que aconteceu. Cavour veio a falecer prematuramente. Com no Parlamento e fazer cair o governo. Em Roma, as famílias que
seus sucessores, crescia a tensão entre Turim e Roma por motivo tinham se refugiado lá quando da ocupação de parte dos Estados
dos territórios ainda restantes dos Estados Pontifícios, aos quais o Pontifícios e do Reino de Nápoles eram contrárias a qualquer acordo
Papa não queria renunciar. Em 4 de abril de 1865, o jornal "Unità com o governo de Turim. E tinham vários parentes na Cúria romana.
Cattolica" publicava a seguinte estatística sobre a Igreja na Itália: Inclusive, — falava-se, — havia quem, de Roma, financiasse a
Bispos processados e reconhecidos inocentes: 13; Bispos levados guerrilha no sul da Itália.
para Turim, entre os quais os de Pisa e Fermo: 5; Bispos mortos
pelas contrariedades que tinham passado: 16, mais um Vigário-
Geral; Bispos no exílio, entre os quais os de Nápoles e Benevento:
43; Bispos eleitos, mas que não podiam tomar posse de suas sedes:
16. 108 eram as sedes vacantes. A anormalidade e a gravidade da

38 39
Nas suas memórias do mês de fevereiro de 1865, D. A missão Vegezzi
Lemoyne anotou que desde algum tempo havia uma troca de
correspondência entre Dom Bosco e o Papa Pio IX. Dom Emiliano Enviou-se a Roma Francisco Saverio Vegezzi. Ele foi a
Manacorda, Bispo de Fossano, foi o fiel intermediário entre eles. 50 Roma em abril e em junho daquele ano. Enquanto ele tratava, Dom
Tais cartas, porém, não foram achadas. Bosco e os seus rezavam pelo feliz êxito da missão. 52 Mas várias
O certo é que Dom Bosco podia aproximar-se dos vários causas influíam para que não se chegasse a esse êxito: abandonou-se
Ministros sem chamar a atenção. Por diversas vezes fora aos o critério de não entrar em questões de estrita política; a corte
Ministérios para solicitar ajuda para seus meninos. Outras vezes para pontifícia mostrou-se intransigente a respeito de algumas propostas;
tratar de casos recomendados pelo Ministério. Começou, pois, a o governo tornou rígida sua posição jurisdicionalista, exigindo o
sondar discretamente quais eram as disposições do Governo para juramento dos Bispos e o exequatur real para os documentos
tratar com Roma sobre a nomeação dos Bispos. pontifícios, a iniciativa diplomática estrangeira, especialmente
Dia 17 de março de 1865, foi ele chamado pelo Ministro austríaca; o clamor da imprensa e as manifestações públicas
João Lanza para conversarem. Não há documentos sobre essa e contrárias ao acordo. Poucas semanas depois, a missão Vegezzi
posteriores conversas. Sabemos, porém, que durante as tratativas que terminava substancialmente com um êxito infeliz. No Conselho de
foram levadas adiante, ele adotara a linha de tratar exclusivamente Ministros prevaleceu a tendência a não tratar com Roma. Única
de assuntos religiosos, deixando de lado qualquer assunto político e concessão a de os bispos ausentes voltassem às suas sedes,
que julgava coisa de arquivo a exigência do juramento que os Bispos satisfazendo as condições que o Papa aceitasse.
deveriam prestar de fidelidade ao Rei. Para ele, a liberdade da Igreja
não afetava a segurança do Estado. Temia, porém, como aconteceu, A retomada das negociações
que no Conselho dos Ministros viesse a prevalecer a linha que queria
continuar com o juridicionalismo que era tradicional no governo Seguiu-se um período conturbado. A Itália entrou em guerra
piemontês. 51 contra a Áustria, ao lado da Prússia. Terminada a guerra e feita a
anexação do Vêneto, foram extintas as ordens religiosas que ainda
existiam. A antiga “caixa eclesiástica” foi substituída por um “fundo
50
para o culto”, gerido por leigos. Era Primeiro Ministro Bettino
MB 8, pp. 63-64.
Em suas cartas, Dom Manacorda repete continuamente a Dom Bosco que está à sua
Ricásoli, que tomou algumas medidas para diminuir a tensão, que
disposição, sobretudo para introduzir em seu nome súplicas e pedidos aos com isso se acirrara entre Estado e Igreja.
dicastérios da Cúria romana e para recolher fundos e subscrições da eventual loteria
em favor da Igreja de Maria Auxiliadora.
O Miguel Rua, quando depôs no processo apostólico para a canonização de Dom
Bosco, diz que muitas informações sobre as mediações de Dom Bosco naqueles
anos, as recebeu diretamente de Dom Manacorda.
51
Cf. carta Lanza-Vigliani em DE VECCHI DI VAL CISMON, Le carte di
52
Giovanni Lanza, Torino, Stab. Tip. di Migliettaa-Milano e C 1936, vol. 3, pp. 285- Cf. carta Bosco-Pio IX de 30 de abril de 1865, em GIOVANNI BOSCO,
286, citada por Francesco MOITO, L´azione mediatrice di Don Bosco nella Epistolario, Introduzione, testi critici e note a cura di Francesco Motto, Roma, LAS
questione delle sedi vescovili vacanti in Italia dal 1858 alla morte di Pio IX(1878), [1996], 2, p. 129
em Pietro BRAIDO [ed.], Don Bosco nella Chiesa a servizio dell´umanità Studi e
testimonianze, pp. 272-273.

40 41
Dom Bosco estava a par de quanto se tratava, tanto que
escreveu à Condessa Jerônima Uguccioni, de Florença, que dentro Dom Bosco aceitou cooperar com o bom êxito da Missão
de dois meses lhe daria uma bela notícia.53 E de fato, dois meses Tonello, da maneira que uma pessoa privada podia fazê-lo:
depois, pôde escrever ao cavalheiro Tomás Uguccioni Gherardi: escrevendo ou falando a personagens eminentes com os quais
“Pensava de poder participar ao senhor duas coisas, dois meses após estivesse em boas relações. Exigiu, porém, que se tratasse somente
ter escrito a carta à senhora sua esposa: a conclusão da paz, a volta da nomeação dos Bispos e não do redimensionamento das dioceses.
dos Bispos e sacerdotes que estavam afastados de suas residências. E partiu para Roma.
Imaginava que estas duas coisas lhe teriam causado um verdadeiro
prazer. É verdade que estas coisas ainda não se realizaram Dom Bosco, um convidado do Governo italiano
totalmente, mas creio que são iminentes”.54
Em 3 de outubro de 1866, assinava-se o tratado de paz entre O primeiro ponto a esclarecer, é que Dom Bosco age para o
a Itália e a Áustria. Dias 22 de outubro e 5 de novembro, as bem da Igreja, mas não em nome da Igreja. Ele, ao menos no início,
circulares do Ministro permitiam o retorno a suas casas de quanto é um convidado do Estado italiano, que vai colaborar nas tratativas
tinham sido afastados por razões políticas, e portanto também dos com a Santa Sé. Como é que o escolheram? Desde os anos de 1848-
Bispos e sacerdotes. 49, como vimos, Dom Bosco se abstivera de polêmicas na
Dia 1º de dezembro, prévia manifestação de disponibilidade controversa situação política italiana. Como católico, não optou nem
para tratar da parte da Santa Sé, o Governo italiano enviou a Roma o pelos integristas nem pelos conciliadores. Realizada a união do país,
professor Michelangelo Tonello e o advogado Francisco Calegaris. considerou esta como um fato consumado e procurou uma maneira
No mesmo dia, Dom Bosco partia para Florença, — que se tinha de viver na prática a nova situação, de forma a não prejudicar o
tornado capital da Itália. Tinha um denso programa de visitas a atendimento dos meninos pobres e abandonados.55 Em todo o tempo
fazer. Entre elas uma audiência com o Ministro Ricásoli. e por toda a parte, porém, deixou claro aos olhos de todos que era
padre, católico de convicções firmes, fiel ao Papa, homem que vivia
para a Igreja e para o advento do Reino de Deus. Era simples na
aparência, mas seguro, sincero. Respeitou sempre as autoridades.
53
Cf. carta Bosco - Condessa Uguccioni 20.07.1866, em GIOVANNI BOSCO, Soubera conquistar a confiança, para não dizer a
Epistolario, Introduzione, testi critici e note a cura di Francesco Motto, Roma, LAS
[1996], 2, p. 275. Em 5 de julho, Ricásoli tinha escrito a Carlos Boncompagni di
benevolência, não só de muitas personalidades católicas, mas
Mombello: “Quanto a Roma, creio que devemos agir como se não existisse. O também de pessoas não favoráveis ao clero. Sua incansável ativi-
Governo tem uma obra indireta e benéfica à qual deve dar início; e é o plácido
retorno de tantos bispos às suas dioceses e de tantos párocos às suas paróquias, nisto
estou trabalhando nestes dias” (B. RICASOLI, Lettere e documenti del barone
Ricasoli, aos cuidados de A GOTTI e M. TABARINI. Florença 1895,3, p. 163). 55
54 Após a invasão dos Estados Pontifícios por parte das tropas italianas, vários
Carta Bosco - cavalheiro Uguccioni 28.09.1866, em GIOVANNI BOSCO,
parlamentares e funcionários públicos deixaram seus cargos, em sinal de protesto.
Epistolario, Introduzione, testi critici e note a cura di Francesco Motto, Roma, LAS
Aos que consultaram Dom Bosco, este aconselhou a continuar onde estavam, para
[1996], 2, p. 299.
não abrir espaço aos inimigos da Igreja, que os haveriam de substituir em caso de
demissão do cargo.

42 43
dade junto das massas juvenis e populares e em favor delas, unida à do e o enviado do Governo italiano ficaram de acordo sobre todos os
atitude de quem crê na própria missão, tinham-lhe conseguido vencer pontos, menos um: os Bispos deveriam apresentar a bula papal de
resistência, superar trincheiras, conquistar à sua causa políticos de nomeação às autoridades italianas para poderem receber as
vários matizes. Era leal súdito da casa Saboia, de quem conservou vantagens temporais do cargo? Isso vai motivar, mais tarde, uma
um alto conceito.56 Tinha um alto sentido do bem da sociedade: em nova mediação de Dom Bosco.
toda calamidade sempre ofereceu sua ajuda para acolher as vítimas, Depois de uma longa discussão, chegou-se a uma fórmula
que muitas vezes lhe eram enviadas por aquelas mesmas autoridades com que seriam redigidas as bulas, e a Cúria romana se empenhou a
que o faziam objeto de vexames, por considerá-lo um dos chefes do não usar senão essa forma. O cardeal assumiu o empenho de
partido conservador. 57 apresentar, no dia 15, os módulos das futuras bulas.

Em Roma A política do Pai Nosso

A ação de Dom Bosco em Roma foi secreta, mas não menos Nos dias seguintes, Dom Bosco teve novo encontro com os
eficaz. As tratativas foram conduzidas conservando um absoluto dois chefes de delegação. Foi também recebido em audiência pelo
Silêncio e mantendo o segredo sobre quanto se propunha. Tonello Papa. Uma das propostas defendidas por Roma era de distinguir as
conhecia Dom Bosco desde os tempos do primeiro oratório. No províncias do Piemonte, Lombardia e Vêneto (estas duas tinham
entanto ele e Dom Bosco fizeram de tudo para esconder seus sido conquistadas à Áustria) daquelas pertencentes aos diversos
contatos pessoais. 58 Estados governados pelos príncipes italianos (conquistados pelo
Chegando a Roma, Dom Bosco encontrou-se imediatamente Piemonte) e aos Estados Pontifícios. Aceitar tal proposta seria
com Tonello, que tinha sido avisado por um telegrama de Ricásoli. O demonstrar a não legitimidade do Reino da Itália. Tal proposta
colóquio com o cardeal Antonelli teve lugar dia 9 de janeiro de 1867. impossibilitava um acordo.
Não temos relação do que foi tratado em ambos os encontros.
Sabemos apenas que no dia seguinte, o cardeal secretário de Esta-
O Papa perguntou a Dom Bosco com que política sairia daquela
situação de impasse. "A minha política, respondeu o santo, é a de
Vossa Santidade. É a política do Pai nosso. No Pai nosso pedimos a
56
Até o plebiscito que aboliu a monarquia na Itália, os salesianos conservarão cada dia que venha sobre a terra o reino do Pai celeste, isto é, que
sempre essa atitude de respeito e adesão à casa real. Quando a família real foi para o se estenda sempre mais, que se faça sempre mais sentido, mais vivo,
exílio no Estoril (Portugal), costumava frequentar sempre a igreja e o colégio dos
filhos de Dom Bosco. sempre mais poderoso e glorioso. Adveniat regnum tuum! é o que
57
A esta altura é bom lembrar o sonho de Dom Bosco sobre as duas colunas (MB 7, mais importa" .
pp. 169-173).
58
Chegaram ao ponto de nem mesmo se saudarem, encontrando-se pela cidade ou
nas escadarias vaticanas. A presença de Dom Bosco em Roma, para a imprensa, se
caracterizava pela sua popularidade como "taumaturgo" e "santo".

44 45
E insistiu em que se antepusesse a toda consideração o bem
das dioceses e que se estudasse o modo de poder assegurá-lo.59 Em Entretanto, tendo havido indiscrição sobre o papel decisivo de
lugar de se amarrar com considerações ligadas à política, o Governo Dom Bosco na nomeação e transferência de Bispos, chegavam a ele
italiano propusesse as pessoas que lhe seriam convenientes para as muitas cartas do Piemonte, propondo a escolha deste ou daquele
várias sedes episcopais. O mesmo fizesse o Papa. Começassem por Arcebispo ou Bispo. O mesmo Tonello, vendo o ardor com que o Santo
nomear aqueles que constassem das duas listas. E no princípio se se empenhava, chegou a pensar que este tinha ido a Roma de propósito
nomeassem poucos Bispos, destinando-os para aquelas sedes a que o para eleger Bispos para o Piemonte.
cardeal Antonelli não fizesse dificuldades. Recomendava, porém, O cardeal Antonelli foi preparando listas de Bispos e
que não se comprometesse o êxito das negociações com fugas de enviando-as a Tonello que as encaminhava aos Ministros para que se
notícias. manifestassem sobre os nomes escolhidos. Ante a atitude do cardeal,
Pio IX assentiu ao pensamento de Dom Bosco e lhe deu que excluía quantos se tinham distinguido por algum motivo político
plenos poderes para tratar do assunto com Tonello e com o cardeal. ou doutrinal, Tonello chegou a escrever a Ricásoli: "Eu não deixei de
Este, embora com dificuldade, consentiu em aceitar o princípio fazer notar ao cardeal que com tal sistema de eleição não se podia
religioso de Dom Bosco, em lugar de critérios ligados à política. chegar a outro resultado que colocar em cena todas as mediocridades
com prejuízo ainda maior para a Igreja, do que para o Governo [...]”. 61
A nomeação ou transferência dos Bispos
Cai o governo Ricásoli
Demorou mais do que o previsto. Em algumas dioceses, a
mudança de titular pôde efetuar-se em poucos dias. Mas houve As tratativas não foram interrompidas nem mesmo com o
vários casos difíceis. Dom Bosco trabalhou para procurar remover conflito que surgiu entre o Estado e a Igreja por causa de um projeto
desconfianças recíprocas, afastar suspeitas, reduzir as consequências apresentado na Câmara dos Deputados sobre a liquidação dos bens
de erros políticos precedentes ou de atos de descortesia eclesiásticos e do voto de desconfiança contra o governo, que foi
concomitantes às tratativas. Sobre todo o seu trabalho pairava o véu aprovado em 17 de fevereiro. Foi preciso convocar novas eleições. A
do silêncio e do segredo, mas são concordes os testemunhos do P. abstenção dos católicos levou a uma vitória da esquerda e a um
Francesia, seu secretário, e do mesmo Tonello. Entre os candidatos declínio do partido moderado. Mas tudo isso não impediu que se
ao episcopado, apoiados por D. Bosco, estava o cônego Gastaldi.60 nomeassem alguns Bispos.
Voltando a Turim, Dom Bosco continuou a interessar-se pela
nomeação de Bispos. Os dotes que tinham os candidatos por ele
59 61
MB 8, pp. 593-594. Arquivo Secreto do Ministério do Exterior ASMAE, b. 20, despacho de 4 de março
60
Cf. carta Francesia-Durando 04.02.1867, em MB 8, p. 642 . de 1867.

46 47
propostos eram: piedade, doutrina, prudência, zelo, fidelidade à
Santa Sé, perspectiva de aceitação por parte das autoridades civis. A obra foi elogiada por "La Civiltà Cattolica". Porém os
Em 24 de março, Ricásoli escrevia a Tonello que insinuasse Padres Jesuítas fizeram observar ao autor que algumas afirmações do
à Santa Sé que apressasse as tratativas e que desse a entender ao livro pareciam inexatas. Entre elas o período que diz: “[...] é bom
Santo Padre que era necessário manter o espírito de conciliação.62 avisar aqui os católicos e os protestantes que é de fé que S. Pedro foi
Dia 10 de abril tomava posse o novo gabinete, tendo como Primeiro constituído Chefe da Igreja por Jesus Cristo, etc., mas que S. Pedro
Ministro Urbano Rattazzi. Tonello voltou a Florença. O clima de tenha ou não ido a Roma etc. Não é questão que diga respeito à fé,
parcial entendimento entre Santa Sé e Governo desapareceu. mas simplesmente histórica” 65
Adotou-se uma política eclesiástica mais dura. A Câmara dos Não faltou quem denunciasse à Sagrada Congregação do
Deputados se opôs não só a quanto feito por Ricásoli, mas à mesma Índice a falta de ortodoxia do fascículo das "Leituras Católicas".
política, — pregada por Cavour, — de “uma Igreja livre num Estado Nada melhor para desacreditar alguém, que estava tratando de
livre”, que o inspirara. negócios com a Santa Sé em nome do Governo italiano, do que uma
condenação daquela Sacra Condenação. E foi o que se tentou.
O centenário de S. Pedro 63 Os consultores da Sagrada Congregação concluíram que o
fascículo se devia proibir, até que fosse corrigido. Mas a
Dom Bosco não deixou de pagar o preço de sua intervenção Congregação cardinalícia, reunindo-se no dia 9 de abril de 1867,
nas negociações sobre os Bispos. O fascículo das "Leituras mitigou a decisão. Pediu somente que, na segunda edição do texto, se
Católicas" para o bimestre janeiro-fevereiro de 1967 tinha como colocasse um prefácio no qual se indicaria a retratação de tudo o que
título: O Centenário de S. Pedro Apóstolo com a vida do mesmo tinha sido considerado digno de censura por parte da Sagrada
Príncipe dos Apóstolos e um tríduo em preparação à festa dos Congregação. 66
Santos Apóstolos Pedro e Paulo, pelo Sacerdote João Bosco. 64 Dom O juízo da Sagrada Congregação só foi comunicado a Dom
Bosco levou ao Papa um exemplar com magnífica encadernação em Bosco dia 9 de maio, pelo vigário capitular de Turim. Dom Bosco
branco. Levou também cópias bem encadernadas para alguns Bispos sofreu muito com aquilo. Desde Roma o P. José Oreglia S. J.
e Monsenhores. consolava Dom Bosco. Dizia que Pio IX julgava que não havia razão
para condenar o fascículo. Que desejava, porém, receber quanto antes
uma segunda edição corrigida do mesmo. E contava o P. Oreglia que,
a quem lhe relatava o fato, o Papa falara com afeto e bondade sobre
62
ASMAE, b. 20, despacho de 24 de março de 1867. Dom Bosco.
63
Servimo-nos do trabalho de Francesco MOTTO, "Il centenario di S. Pietro"
denunciato alla S. Congregazione dell´Indice. La memoria difensiva di don Bosco,
em RSS 28 (1996) pp. 55-99. 65
64 Somente durante o Pontificado de Pio XII os arqueólogos encontraram vestígios
Excluídas as páginas da introdução e as orações do tríduo final, era uma segunda
que indicavam com certeza a presença de S.Pedro em Roma.
edição de uma vida de S. Pedro, publicada nas mesmas "Leituras Católicas", com 66
As observações eram de três tipos diversos: 1. No fascículo misturavam-se fatos
aprovação eclesiástica, dez anos antes.
indiscutíveis, apoiados na autoridade mesma da Sagrada Escritura, com fatos tirados
de tradições incertas e até de documentos apócrifos, como se todos tivessem o
mesmo valor. 2. Imprecisões relativas à história evangélica e doutrinas teológicas. 3.
A Sagrada Congregação rejeitava a afirmação de que o fato de S.Pedro ter estado ou
não em Roma, nada tivesse que ver com pontos da religião católica (o primado do
Pontífice Romano).

48 49
Dom Bosco, com a ajuda de D. Lourenço Gastaldi, preparou um Vários prelados o aconselhavam a isso. Fora da Itália, o Presidente da
esclarecimento, acompanhado de uma carta endereçada a D. Frei Ângelo França oferecia gentilmente ao Papa hospitalidade no castelo de Pau,
Vicente Módena O. P., Secretário da Sagrada Congregação do Índice. O próximo à fronteira francesa. Os católicos de vários países da Europa,
documento foi enviado ao P. Oreglia, em Roma, o qual o apresentou em reunidos em Genebra, acharam boa a solução e enviaram a Roma D.
momento oportuno. Nem bem terminara essa questão, quando surgiu uma Gaspar Mermillod, bispo daquela cidade, para que apresentasse ao
nova denúncia, desta vez relativa ao opúsculo sobre a Vida de S. José, Papa aquela proposta.68
publicado nas "Leituras Católicas" de março de 1867. Mas desta vez a O Papa, no entanto, tinha feito consultar Dom Bosco e
Sagrada Congregação arquivou o caso, sem nem mesmo examiná-lo. esperava dele uma resposta. O Santo, depois de ter rezado muito,
mandou por um intermediário fiel esta mensagem: «A sentinela de
Atuação na questão romana Israel, o Anjo de Israel permaneça em seu lugar e fique de guarda à
rocha de Deus e à arca santa». 69 O Papa ficou em Roma.
Em 1870 as tropas italianas tomavam Roma. Nasceu daí a
Questão Romana, entre a Santa Sé e o Governo italiano. Quando, anos As temporalidades
depois a Questão foi resolvida com o Pacto de Latrão, Pio XI declarou ter
colhido dos mesmos lábios de Dom Bosco o quanto tal questão ocupava Em 1871, a Lei das Garantias, da qual se falou no início deste
um lugar privilegiado em seus pensamentos e nos afetos de seu coração. trabalho, eliminou muitos procedimentos ligados ao jurisdicionalismo
Desejava que ela se resolvesse de tal modo que antes de qualquer coisa se dos séculos anteriores. Ficaram, porém, a necessidade do régio placet
assegurasse a honra de Deus, a honra da Igreja, o bem das almas.67 e do exequatur. O exequatur para os atos da Santa Sé que
implicassem na destinação dos bens eclesiásticos. Entre eles a
A sentinela de Israel permaneça em seu lugar concessão aos novos Bispos das rendas episcopais. O régio placet
para análogas provisões episcopais, como a nomeação dos párocos e a
Ao ser tomada Roma, o Papa deixou o Palácio do Governo, no Quirinal, e concessão a estes das rendas paroquiais. Para as autoridades
refugiou-se no Vaticano. Debaixo da primeira impressão dos vaticanas, não escapou o fato de que aceitar essas exigências era
acontecimentos, surgiu a dúvida se não era melhor que ele deixasse reconhecer sem mais o Reino da Itália e renunciar aos direitos sobre
Roma, como tinha feito em 1848, e procurasse refúgio num lugar mais os Estados Pontifícios.
seguro.

68
Cf. "La Civiltà Cattolica" 50 (1902) VII, pp. 286-289.
69
MB 9, p. 923.

67
Cf. "L´Osservatore Romano", 20-21 de março de 1929, citado por MB 10, p. 69.

50 51
Instaurou-se assim uma "quebra de braços" entre a Santa Sé Lanza respondeu tranquilizando-o e afirmando que eram
e o Governo italiano. A Secretaria de Estado convidou os Bispos a dificuldades passageiras. Em 3 de março, o Conselho dos Ministros
não pedir nem direta, nem indiretamente o exequatur, mas tomou novas resoluções: não se exigia mais nem um pedido formal
simplesmente tomar posse das dioceses e exercer algum ato de de exequatur por parte dos Bispos, nem a apresentação do original
jurisdição. O Ministério de Graça e Justiça passou a exigir dos da bula de nomeação. Na prática, porém, a situação não mudou. Dom
Bispos a apresentação das bulas de investidura, para obter o Bosco, tendo consciência de que não tinha nenhum convite oficial
exequatur do Rei. para tratar do assunto, como "amigo" dirigiu vários apelos ao
O Papa foi em auxílio de vários Bispos, em dificuldades Ministro, que não lhe deu resposta. Comunicou, então, ao Santo
financeiras, quer com somas retiradas do Dinheiro de S. Pedro,70 Padre o infeliz êxito de seu trabalho. Mas a Santa Sé já tinha
quer com dispensa das despesas com bulas e certificados. O Governo rompido com qualquer negociação. E o Papa nomeou novos Bispos,
italiano propôs várias maneiras de contornar o problema, mas sem comunicar nada ao Governo italiano.
nenhuma delas foi aceita pela corte pontifícia.
Dom Bosco vai a Roma
A mediação de Dom Bosco
Em fevereiro de 1873, Dom Bosco partiu para Roma. Entre
Dom Bosco, nesse ínterim, estava doente e lutava entre a as coisas que tencionava fazer, estava o trabalho para reaproximar a
vida e a morte, recolhido na casa salesiana de Varazze. Em todas as política dos dois lados do Rio Tibre. Não era uma empresa fácil. Mas
partes da Itália, centenas e centenas de pessoas, compreendidos tinha que superar toda tergiversação de uma política de examinar
Bispos, Cardeais e o mesmo Papa, pediam a Deus a sua cura.71 Em caso por caso e reconstruir um clima de confiança recíproca nos
fevereiro de 1872, apenas Dom Bosco melhorou e esteve em vértices. Isso alargaria as margens de manobra e superaria a situação
condições de escrever, a Santa Sé quis saber o que ele tratara em de impasse em que a questão do exequatur tinha entrado. Sua missão
encontros que tinha tido com Presidente do Conselho e o Ministro enfrentava a oposição de muitos personagens do Vaticano, que
do Interior em junho e setembro de 1871.72 Dom Bosco escreveu esperavam sempre que o Estado italiano não conseguisse subsistir.
diretamente ao Ministro Lanza, desejando saber quais as razões da Foi recebido pelo cardeal Antonelli e depois por Pio IX. Teve que
maneira de comportar-se do Governo e sublinhando a progressiva afrontar com eles as espinhosas questões das negociações diretas ou
diminuição do apoio popular à política eclesiástica do momento. indiretas entre Estado e Igreja. Foi-lhe confiado o encargo de,

70
Era o fruto das coletas que, em todo o mundo católico, se faziam para
manutenção do Pontífice.
71
Sobre esta doença de Dom Bosco, ver MB 10, capítulo terceiro.
72
O Governo tinha respeitado a liberdade do Papa no nomear os Bispos. Como
vimos anteriormente, à página 21, faltava um entendimento quanto ao exequatur.

52 53
— sem que aparecesse o nome da Santa Sé, — explorar eventuais Em 5 de junho de 1873, caía o Ministério Lanza e subia o
caminhos de acomodação. Poucos dias depois, foi recebido pelo Ministério Marcos Minghetti.
Ministro Lanza. Na reunião estavam presentes também o Ministro da
Guerra, o Ministro de Graça, Justiça e Culto e os respectivos Retomam-se as tratativas
secretários. Não sabemos como foi a reunião, mas certamente trataram
do problema das temporalidades. Dom Bosco sucessivamente foi Não passou uma semana, através do Prefeito de Turim, o
recebido pelo Secretário de Estado do Vaticano e novamente, por Ministro perguntou a Dom Bosco se a Santa Sé confirmava sua
várias vezes, pelo Ministro Lanza. disponibilidade em relação ao modus vivendi em que
A certo momento, foi possível apresentar ao Vaticano quatro precedentemente houvera acordo com Lanza. Dom Bosco respondeu
novas maneiras propostas pelo Governo para resolver a questão. Além que era de opinião que a Santa Sé não tivesse mudado de parecer. E,
disso, o Ministro garantia que não seriam suprimidas as Casa Gerais embora não tivesse nenhum mandato particular, reconfirmava sua
das Ordens e Congregações religiosas existentes em Roma. Das disposição para continuar a mediação anteriormente desenvolvida:
maneiras apresentadas, a Secretaria de Estado manifestou-se disposta a “Se bem eu seja totalmente estranho à política, todavia nunca me
aceitar uma forma que, modificada por Dom Bosco, dizia: “O Capítulo, recusei a tomar parte naquelas coisas que, de qualquer modo, podem
a Cúria ou outra autoridade competente enviem declaração ao ser vantajosas para meu País”. 73 E à carta pessoal juntava o texto do
procurador do Rei ou à autoridade governamental, que no Consistório 2° modus vivendi aprovado pelo Conselho de Estado e aquele
realizado dia... o sacerdote... foi preconizado Bispo de... e foi expedida semelhante, com a formulação do Conselho dos Ministros.
a Bula com as fórmulas de uso, ou simplesmente, a costumeira Bula”. Além disso, através do abade Tortone, núncio apostólico,
Após um último encontro com Lanza e outro com o cardeal enviou uma carta ao Cardeal Antonelli. Nela perguntava se havia
Antonelli, parecia que finalmente se tinha achado uma saída para a algum outro intermediário entre a Santa Sé e o Governo e se devia
situação. E Dom Bosco voltou para Turim. prosseguir, ou então deixar cair, os contatos político-diplomáticos,
Em maio, tudo piorou. Manifestações de rua chamavam Lanza com as bases estabelecidas no passado.74
de "Padre Lanza" e pediam a demissão do Ministério. Gritava-se O cardeal respondeu que não tinha dificuldade em continuar
“morte aos Jesuítas” e “morte aos Padres”. No Parlamento uma nova as tratativas, mas delimitava o campo estabelecendo uma nova
lei suprimia as Ordens e Congregações religiosas ainda existentes. fórmula para o acordo: “Pedindo-se ao Senhor Secretário da Sagrada
Porém aos Superiores Maiores e aos Procuradores-gerais residentes em Congregação Consistorial que se deseja conhecer a época, os nomes
Roma, com exceção dos Jesuítas, foi permitido continuar a residir onde
se encontravam.
73
Carta Bosco-Minghetti, 14.07.1873, em GIOVANNI BOSCO, Epistolario,
lntroduzione, testi critici e note a cura di Francesco Motto, Roma, LAS [2003], 3,
p.128.
74
Cf. carta Bosco-Antonelli, 03.08. 1873 em GIOVANNI BOSCO, Epistolario,
Introduzione, testi critici e note a cura di Francesco Motto, Roma, LAS [2003], 3, p.
137 .

54 55
dos Bispos e as Dioceses que lhes foram confiadas nos vários Consistórios, não As divergências entre as duas partes eram por demais sutis, as
encontrará dificuldade de responder indicando os nomes, tempo e Diocese a que queixas demasiado profundas para que se pudesse negociar por carta.
cada Bispo foi destinado, e declarando que a cada um foram expedidas as Era necessário quebrar a espiral de recíproca obstinação que fazia
Bulas”.75 encalhar qualquer tentativa de acordo. E para isso, nada melhor do
Dom Bosco logo compreendeu que o cardeal trocava as cartas que que se sentar à mesa com o cardeal Antonelli e com o chanceler-mor
estavam sobre a mesa e perguntou se não era o caso de usar o modo sobre o qual Vigliani. A tarefa seria facilitada se pudesse conversar com os
já havia acordo, evitando novas discussões; ou, então, se devia seguir a fórmula Ministros durante o período de recessão do Parlamento.
recebida por carta. O cardeal exigiu que se seguisse estritamente as instruções Não perdeu tempo. Em menos de 24 horas depois de sua
recebidas na carta de 6 de agosto. chegada a Roma, já se tinha encontrado com o cardeal Berardi, com
Dom Bosco, enquanto esperava que Minghetti lhe respondesse a uma o cardeal Antonelli e com o Ministro Vigliani. E nos dias seguintes
carta, entrou em contato direto com o chanceler-mor Vigliani, o qual abriu um foi um contínuo ir e vir, do Vaticano aos Ministérios, dos Ministérios
novo caminho: a bula fosse exposta em lugar visível na sacristia da catedral, ao Vaticano, encontrando-se com os Ministros, com o cardeal
como se fazia com as pastorais. Um leigo, por exemplo, o Prefeito da cidade ou Antonelli, com o mesmo Papa. Procurou aproximar as partes,
um público tabelião, comunicaria ao Ministério a sua existência. Sem mais seria removendo a tendência a criar alarmes em ambos os lados,
concedido o exequatur. acostumados com os jogos da política e susceptíveis a mais não
poder.
De novo em Roma Dom Bosco chegou a preparar uma fórmula intermediária
entre as posições opostas. Mas com Vigliani tratou também, com
O Santo comunicou à Secretaria de Estado essa proposta. O cardeal relativo êxito, de outros assuntos, como o reconhecimento civil da
Antonelli não a aceitou. Insistiu nos limites postos em carta anterior, mas deixou nomeação dos párocos, a composição das questões entre párocos e
Dom Bosco livre de tratar. Bispos que tivessem implicações civis, a salvaguarda da
Este partiu para Roma, em dezembro, e aí ficaria por três meses. Tinha expropriação de casas religiosas.
compreendido que lhe restava apenas uma carta naquele jogo: não enfrentar de A imprensa não deixou de tomar conhecimento desse vai e
cara, mas “trabalhar pelos flancos”, pessoalmente, aquele arquipélago tão variado, vem de Dom Bosco. O Arcebispo Gastaldi, de Turim, tinha insistido
com contornos indefinidos e incertos que eram a diplomacia vaticana e a estrutura em obter as temporalidades, sem seguir o esquema proposto por
compósita do Governo da Itália. Dom Bosco. Escreveu a alguma pessoas e o assunto tornou-se
público, suscitando uma campanha de imprensa. Começou com a
"Gazzetta di Torino”, à qual logo se uniram vários jornais. Também
os adversários de Dom Bosco no Vaticano, em "La voce della
75
Carta Antonelli-Bosco 06.08.1873, em ASC 126.2.Antonelli; FDB 1442 A 2 e 1442 A 3. verità", passaram a atacar os "conciliadores", sem citar, porém,
explicitamente Dom Bosco.

56 57
Cada correspondente de Roma se sentiu autorizado a dar a própria versão dos
fatos. De acordo com a própria cor política, agredia-se uma das partes e Capítulo IV
justificava-se a outra das partes em causa.
Não faltou uma certa pressão por parte da Prússia — onde Bismarck Aspectos políticos
estava em luta com os Bispos na sua kulturkampf —, para que o Governo
italiano cessasse as negociações com a Santa Sé. Na metade de abril, Dom na fundação da Sociedade
Bosco voltava a Turim, aparentemente sem ter conseguido nada nos três
meses de negociações. Expôs ao Arcebispo quanto tinha acontecido. O de São Francisco de Sales
Arcebispo finalmente entrou no caminho recomendado por Dom Bosco e
lhe foram concedidas as temporalidades.
Ao saber disso, muitos Bispos pediram à Santa Sé instruções sobre o
como se comportar na questão. Saiu a respeito uma circular, não datada, na
qual praticamente se acolhia a solução de Vigliani: tolerava-se que os Bispos
expusessem na sacristia a Bula ao clero e ao povo. Sem nenhuma
interferência do clero, dela se tirasse cópia e se enviasse às autoridades civis.
E dava-se um modelo particular para uso dos Bispos, no requerer o
exequatur.
O Governo enrijeceu sua posição e criou certa dificuldade, no
conceder o exequatur. Vários Bispos, então, recorreram, com êxito, à Os direitos civis
mediação de Dom Bosco que colocou novamente em campo a simpatia de
que gozava junto dos políticos do Reino e obteve quanto se pedia. Em 1855, a lei de 29 de maio decretava a supressão de todas
as corporações religiosas, com exceção das Irmãs da Caridade, das
de S. José e das comunidades que tivessem como escopo a educação
e a instrução, a pregação ou a assistência aos enfermos.
Em 1857, Dom Bosco conversava com o Ministro Urbano
Rattazzi. Este, uma vez encaminhado o discurso para a continuidade
que deveria ter a Obra dos Oratórios, mesmo após a morte de Dom
Bosco, o aconselhou a fundar uma sociedade para tal fim. Diante do
Governo não seria mais que uma associação de livres cidadãos, os
quais se unem e vivem juntos para o escopo de uma obra de
beneficência.
Para Dom Bosco, tal conselho foi o início de uma série de
reflexões e de consultas a várias pessoas que o levaram a uma
conclusão: transformar os Salesianos em congregação religiosa. Mas
eles conservariam os direitos civis, cumpririam as leis do Estado,
não se apresentariam com bens de mão morta e pagariam os
impostos e as taxas, como era seu dever.

58 59
Redigiu então um primeiro projeto de Constituições. Ao Papa, referiu Na aprovação final do texto, porém, recebeu como
que se desejava um corpo moral cujos membros estariam ligados por exigência: “Suprimam-se as repetidas menções dos direitos civis dos
promessa ou, se o desejassem, por votos privados. Pio IX reconheceu a Leigos e da submissão às leis civis”.
necessidade e oportunidade do projeto de Dom Bosco. E apresenta as bases
para essa Sociedade. Era necessário que houvesse votos simples, mas A terminologia laica
reconhecidos como tais pela Igreja. Sem eles não haveria uma ligação
oportuna entre superiores e inferiores. As regras fossem brandas e de fácil Ainda com o objetivo de não se fazer notar em meio à
observância. sociedade, a terminologia dos cargos salesianos assumiu uma forma
Na maneira de se vestir e nas práticas de piedade, não se fizessem mais conforme a mentalidade do século. Em lugar de Superior-
notar em meio à sociedade. Que se estudasse o modo pelo qual cada membro Geral, usou-se a forma Reitor-Mor, em lugar de Provincial, Inspetor,
fosse, diante da Igreja, um religioso e, na sociedade civil, um livre cidadão. em lugar de Superior local, Diretor.
Talvez fosse melhor chamar à instituição de Sociedade e não de Congregação, A propósito, dizem as MB: “o Capítulo [CG-l] descartou
porque passaria menos observada. nome de Província e especialmente o título de Provincial, porque
No redigir as constituições, Dom Bosco procurou transformar em não mais oportunos para os nossos dias. Diante do mundo teriam
realidade essas recomendações de Ratazzi e de Pio IX. Em 1863, feito aparecer a Congregação como se fosse uma Ordem monástica.
apresentando as constituições ao Vigário Capitular de Turim para obter uma Isso a tornaria antipática, tamanha era a aversão que os inimigos da
recomendação que seria apresentada em Roma, declara: "Meu escopo é Igreja tinham inoculado nos ânimos, mesmo honestos, contra as
estabelecer uma Sociedade que enquanto em face das autoridades do Governo velhas e venerandas instituições religiosas”. E depois de citar o
conserva todos os direitos civis em seus indivíduos, em face à Igreja constitua exemplo de Santo Inácio de Loiola, prossegue: "Pareceu, portanto
um verdadeiro corpo moral ,ou seja, uma sociedade religiosa".76 ótimo conselho que também nós deixássemos de lado certas
No texto enviado a Roma em 1873, dizia “Cada um ao entrar na exterioridades acidentais, aptas a suscitar os nervos dos
Sociedade não perderá os direitos civis, mesmo após feitos os votos... Mas contemporâneos e a nos tornarmos malquistos pela gente à qual
enquanto estiver na Sociedade não pode administrar suas faculdades, senão na queremos fazer o bem”. 78
razão e na medida em que o Reitor-Mor indicar no Senhor”. 77 Com isso dava
base legal para a subsistência da mesma Sociedade, pois seus membros,
enquanto livres cidadãos, tinham o direito de associar-se para fins
78
filantrópicos. MB 13, p. 280.

76
Carta Bosco-Vigário-Geral [24.03.63], em GIOVANNI BOSCO, Epistolario, Introduzione,
testi critici e note a cura di Francesco Motto, Roma, LAS [1991], 1, p.562.
77
SÃO JOÃO BOSCO, Costituzioni della Società di S. Francesco di Sales [1858] - 1875 Testi
critici a cura di Francesco Motto SDB. Roma, LAS [1982], p. 83, texto Ns IV, 2.

60 61
O sistema de propriedade Tal situação foi de grande utilidade, por exemplo, em 1869, quando
no Tribunal de Turim transitou um processo destinado a fechar a
Era um tempo em que as congregações religiosas não eram bem Sociedade Salesiana, apenas aprovada pela Santa Sé. Tendo
vistas e em que vários governos, inclusive o do Piemonte, suprimiram verificado que ela não possuía bens materiais, o Tribunal deu
congregações e ordens religiosas e confiscaram seus bens. A tendência do sentença de que não cabia a ação de extinção da Sociedade, pois não
governo piemontês era cada vez mais de considerar como bens do Estado, os havia o que fechar, mas apenas uma livre associação de cidadãos.79
bens das entidades morais de pública beneficência. Pelo que Dom Bosco
nunca aceitou de transformar o Oratório e outras suas obras em ente moral. O encontro com os Ministros no colégio de Lanzo
Além disso, na prática do voto de pobreza, a Santa Sé estava
aceitando uma importante modificação no tocante à propriedade dos bens. Em 1876, havia a inauguração da ferrovia Turim-Lanzo. A
Antes, ao entrar numa ordem ou congregação religiosa, a pessoa renunciava esquerda parlamentar tinha apenas chegado ao poder. Eram homens
aos bens materiais que possuía ou podia vir a possuir. Em vez de ser um entusiastas pela causa do progresso e da liberdade. Também eram
membro ativo da comunidade econômica, ao abandonar o mundo tornava-se manifestamente anticlericais. Pensou-se em aproveitar a ocasião para
mão morta, isto é, afastava-se também definitivamente das atividades de uma demonstração política. Foram, pois, convidados vários
natureza econômica. Daí a expressão bens de mão morta para as propriedades Ministros para aquela inauguração e preparou-se uma grandiosa
das ordens e congregações religiosas. manifestação em Turim.
No século XIX, Antônio Rosmini tinha conseguido uma importante Nos últimos dias, os Prefeitos de Turim e de Lanzo foram ao
modificação nessa praxe eclesiástica. Os membros do Instituto da Caridade colégio pedir ao Diretor que pusesse à disposição os amplos pórticos
não renunciavam à propriedade dos bens que possuíam antes de entrar na do edifício para a recepção das autoridades. P. Lemoyne escreveu a
vida religiosa, ou que pudessem obtê-los, por exemplo, em caso de herança. Dom Bosco, que lhe deu carta branca para agir. E quis também ele
Deviam, porém, confiar a alguém a administração dos sobre ditos bens, estar presente. As MB nos descrevem os acontecimentos com muitas
afastando-se assim dos negócios temporais para dedicar-se apenas ao cuidado particularidades. 80 Ao nosso tema interessa apenas fazer notar que
dos bens espirituais. agradou muito aos Ministros a forma com que foram acolhidos. O
Dom Bosco adotou a forma do voto de pobreza semelhante à colégio apresentava-se finalmente decorado. A banda tocava
conseguida por Rosmini. Em consequência disso, durante a vida de Dom números escolhidos. Houve números de canto e demonstração de
Bosco, a Sociedade de S. Francisco de Sales não possuía bens materiais. ginástica.
Diante do Estado, todos os imóveis e outros bens pertenciam à pessoa física
de Dom Bosco ou de outros salesianos.
79
Cf. MB 9, 656-663..
80
Cf. MB 12, pp. 417-430.

62 63
Depois, os Ministros, com Dom Bosco, ficaram num ângulo do
jardim, de onde se gozava a visão de um esplêndido panorama e começaram a Capítulo V
conversar. O assunto caiu sobre as atividades de mediação de Dom Bosco
entre a Itália e a Santa Sé. Dom Bosco reafirmou, com palavras muito simples, Dom Bosco e o Papa
sua fidelidade ao Papa. Perguntado sobre sua atitude quanto às coisas
modernas, respondeu: “Eu obedeço às autoridades constituídas”.
Ao senador Ricotti que lhe fazia a objeção de que formava muitos
padres e professores, respondeu também com simplicidade que muito maior
era o número de seus ex-alunos que ingressavam no funcionalismo do Estado,
na milícia, nas diversas profissões. E depois, o que havia de mal que um QUANDO DOM BOSCO estava para morrer, foi visitá-lo o cardeal
padre, que estimava o próprio estado sacerdotal, procurasse formar outros Alimonda, Arcebispo de Turim. Estava presente também Dom
sacerdotes? Quanto aos professores, o "culpado" era o mesmo senador que Cagliero. A um determinado ponto da conversa, Dom Bosco disse ao
apoiava a lei sobre os títulos exigidos para o ensino. Tendo vários colégios cardeal: “Tempos difíceis, Eminência! Passei por tempos difíceis...
para prover, era natural que formasse tantos professores. Gloriava-se de se Disse aqui a D. Cagliero que o diga ao Santo Padre que os
esforçar por cumprir uma lei do Estado italiano. Salesianos existem para a defesa da autoridade do Papa, onde quer
A simplicidade com que falava, o carinho que demonstrou em relação que trabalhem, onde quer que se encontrem. Recorde-se de dizê-lo
ao Ministro Zanardelli, que não estava passando bem, foram tais que o ao Santo Padre, Eminência!”.81 A esta altura do nosso trabalho, só
Ministro Nicotera colheu uma flor no jardim e colocou-a na lapela, como sinal recordaremos duas passagens da vida de Dom Bosco, que mais
— como disseram os jornalistas — de afeto e estima por Dom Bosco. Algum interessam à política.
jornal intransigente, não deixou de criticar o fato de Dom Bosco ter-se
prestado para a acolhida dos Ministros. Justificando sua maneira de proceder Na morte de Pio IX
no acolher os Ministros anticlericais, Dom Bosco recordava o Evangelho:
“Dai a César o que é de César”. Não haviam feito mais que obsequiar a Sempre fora grande a amizade de Dom Bosco com Pio IX. O
autoridade constituída. recíproco respeito de um pelo outro levara o Papa a favorecer por
todos os meios possíveis o Fundador dos Salesianos. Este por sua
vez, não deixou escapar ocasião para servir à Igreja com todos os
meios que lhe foram possíveis.

81
MB 18, p. 491.

64 65
Em dezembro de 1877, Dom Bosco foi a Roma. Solicitou audiência a intervir no processo da sucessão pontifícia. O Governo estava
com o Papa, mas esta não lhe foi concedida. Em 24 de janeiro de 1878 ainda incerto sobre o que fazer. Queria que oficiais civis interviessem para
não tinha conseguido ver o Papa. Sabia, porém, que o Papa sofria porque tinha vigiar o andamento das reuniões. Mas não faltaram órgãos da
conhecimento que Dom Bosco estava em Roma e não vinha vê-lo. Dissera o imprensa que mostrassem a grande conveniência que o Conclave se
Papa: “Sei que Dom Bosco se encontra em Roma e não vem nem mesmo me reunisse em Roma e com toda a liberdade.
ver; e eu tenho coisas importantes para lhe dizer. Eu não tratei assim a Dom No entanto, a Áustria oferecia Viena como possível sede do
Bosco. Ó, eu o tratei bem melhor!”. Inutilmente Dom Bosco insistiu com o Conclave e garantia a mais absoluta liberdade aos cardeais. Os
Mestre de Câmara para conseguir a audiência. Falou então com o cardeal jornais da época noticiavam que a Rainha Vitória tinha enviado um
Oreglia. Este, tendo descoberto que estavam fazendo intriga entre o Papa e navio inglês, que estava ao largo de Civitavecchia e onde os
Dom Bosco, fez conhecer ao Papa a verdade e chamou a atenção a quem de cardeais, com a máxima liberdade poderiam eleger o Sucessor de
direito, mas foi tudo inútil. 82 E Dom Bosco não reviu mais em vida o angélico Pedro, sob a alta proteção de Sua Majestade britânica.
Pastor. Os cardeais presentes na Cúria, num primeiro momento,
votaram a favor de que tudo se realizasse fora de Roma. Mas no dia
Na preparação do conclave seguinte, trinta e dois votaram a favor de Roma. O cardeal
Camerlengo, card. Joaquim Pecci, num primeiro momento optou por
Com a morte de Pio IX, colocou-se a questão de onde realizar o Malta, mas também ele concluiu que era melhor Roma.
conclave para a eleição do sucessor. A Lei italiana das Garantias dizia: Nesse momento, chamaram Dom Bosco, para que sondasse
“Durante a vacância da Sede Pontifícia nenhuma autoridade judiciária ou quais as reais disposições do Governo italiano sobre o assunto.
política poderá por qualquer causa colocar impedimento ou limitação à Apresentou-se ao Ministro de Graça, Justiça e Culto o qual virou a
liberdade pessoal dos cardeais. O Governo providencia para que as reuniões cara para ele e o tratou com ironia. Dom Bosco, com dignidade e
do Conclave e nos Concílio ecumênicos, não sejam perturbadas por alguma calma, pediu-lhe que pelo menos respeitasse quem o havia enviado e
violência externa”. retirou-se. Foi então procurar o Ministro do interior, Francisco
Em várias cidades da Itália, havia manifestações clamorosas onde se Crispi, que num primeiro momento não lhe deu muita atenção. Dom
gritava: “Abaixo as Garantias!”. De cá e de lá se incitava o Governo italiano Bosco então lhe mostrou a importância do momento para a posição
da Itália no mundo. Tratava-se de um acontecimento que interessava
toda a comunidade internacional.83 Crispi mudou de atitude.

83
Da Alemanha, Bismarck não deixou de enviar uma enérgica nota ao governo
italiano, na qual expunha como era premente ao Governo alemão que do Conclave
82 saísse um Papa cuja legitimidade fosse incontestada.(Cf. "La Civiltà Cattolica", 34
MB 13, pp. 463-500. Segundo dizem algumas fontes orais, temia-se que Dom Bosco
(1903) vol, IX, caderno 1264, p. 392)
recomendasse ao Papa que, em ponto de morte, renunciasse aos Estados Pontifícios pondo
assim fim à Questão Romana.

66 67
Refletiu seriamente sobre o que Dom Bosco falara e concluiu: “Assegure de
minha parte aos cardeais, que o Governo respeitará e fará respeitar o Conclave Capítulo VI
e que a ordem pública não será minimamente perturbada”.
Dom Bosco e o Ministro então passaram a ter uma conversa informal O que Dom Bosco deixou
e amigável, na qual lembraram os velhos tempos em que o Ministro era
exilado político em Turim e recebera de Dom Bosco não apenas conforto de falar sobre a política
espiritual, mas também auxílios materiais para a sobrevivência dele e de sua
mulher. Trataram também da educação dos jovens em dificuldade. Dom
Bosco prometeu-lhe enviar um pró-memória sobre a reorganização das
instituições para menores infratores.
Voltando ao Vaticano, Dom Bosco referiu a resposta de Crispi, que
foi julgada satisfatória. O conclave realizou-se com plena liberdade e com DOM BOSCO, UMA VEZ RELATADO o resultado de sua missão,
tranquilidade. O cardeal Joaquim Pecci foi eleito Papa Leão XIII, como Dom envia dias depois o prometido memorial ao Ministro. Uma das
Bosco lhe predissera. coisas que ressalta da leitura desse documento é o alcance político
do sistema educativo de Dom Bosco.84 Diz Dom Bosco:
“Dois são os sistemas usados na educação moral e cívica da
juventude: Repressivo e preventivo. Um e outros são aplicáveis no
seio da sociedade civil e nas casas de educação. Faremos um breve
aceno ao sistema preventivo que deve ser usado no seio da sociedade
civil; depois como se possa aplicar com sucesso nas prisões, nos
colégios, nos internatos e nos mesmos educandários.
O sistema repressivo consiste em fazer conhecer as leis e a
pena que elas estabelecem; depois a autoridade deve velar para
conhecer e punir os culpados. Este é o sistema usado nos quartéis e
em geral com os adultos. Mas os jovens, faltando-lhes a instrução, a
reflexão, excitados pelos companheiros ou pela irreflexão, deixam-
se com frequência arrastar-se à desordem pelo único motivo de
estarem abandonados.

84
Estudos posteriores nos farão notar o caráter libertador que se encontra nos
projetos educativos baseados em Dom Bosco.

68 69
Enquanto as leis velam sobre os culpados, deve-se certamente usar de deixando livre a aceitação ou não dos alunos, a internação constaria
grande solicitude para diminuir-lhes o número”. dos certificados da autoridade civil; ou das ocorrências policiais
Dom Bosco no texto falará apenas do sistema repressivo. A nossa daquelas delegacias, que muito frequentemente encontram jovens
sociedade tem claramente um aspecto repressivo. Para Dom Bosco, isso não que se acham mesmo nessa condição. Uma diária ou um módico
ajuda na solução do problema da juventude em perigo.85 subsídio mensal seria concedido àqueles que fossem internados.87
Porém, sua opção por não se meter em política impede que ele fale do Uma questão de que Dom Bosco tratou, mas sem tirar as
sistema preventivo aplicado à sociedade e desenvolva a Utopia que está consequências políticas de sua posição foi a acumulação de capital.
implícita em seu sistema educativo, ou seja, a de uma sociedade não Na segunda metade do século XIX, sentiam-se cada vez
repressiva.86 Não consegue, porém, de todo fugir ao tema político. Não mais as consequências perversas da acumulação de capital, gerada
discute o tema da caridade legal, mas é de opinião que o Governo não deveria pelo “capitalismo selvagem”. A questão foi abordada sob diversos
intervir diretamente na reeducação dos jovens com problemas. Deveria, sim, pontos de vista. Também Dom Bosco dela se ocupou, mas dentro da
ajudar, mas deixar livre a colaboração da iniciativa privada. A ele competiria visão da época, que insistia na obrigação da esmola. Esmola por ele
também tomar a iniciativa oferecendo locais, edificações, mobília, entendida não como aquele donativo que faz o pobre se acomodar
instrumental necessário para aprendizagem das artes e dos ofícios. Embora em sua posição, mas como investimento na promoção social do
pobre.

85
A Revista "Santa Cruz" III (1902-1903) p. 164 apresenta o estudo estatístico feito pelo doutor
italiano César Lombroso sobre a criminalidade na Bélgica, Itália, França e Estados Unidos. Tal 87
"O Governo sem assumir uma administração miúda, sem tocar o princípio da
estudo chega à conclusão que o sistema repressivo pouco consegue fazer para diminuir a caridade legal pode cooperar das seguintes maneiras:
criminalidade juvenil. Os institutos organizados por Dom Bosco, diz ele, “são verdadeiramente 1° Oferecer jardins para os entretenimentos festivos; ajudar a fornecer as escolas e
um esforço colossal e genialmente organizado para a prevenção dos delitos. Na Itália não há os jardins da mobília necessária...
outros!”. 2° Providenciar locais para internatos, fornecer a eles o instrumental necessário para
86
Um tanto dessa utopia nos é apresentada no estudo de Pedro BRAIDO, O projeto as artes e os ofícios a que seriam direcionados os meninos a serem internados.
operacional de Dom Bosco e a utopia da sociedade cristã. S. Paulo, Editora Salesiana Dom 3° O Governo deixaria livre a aceitação dos alunos, mas daria uma diária ou então
Bosco 1984. Após 1968, começou na Itália uma tentativa de uma sociedade participativa. um subsídio mensal para aqueles que, encontrando-se nas condições descritas
Colaboravam na empresa comunistas e católicos. Como disse alguém que lá viveu naqueles acima, fossem internados. Isso se faria constar ou dos certificados da autoridade
tempos: “A Itália era um país gostoso para se viver”. A experiência não foi adiante por causa do civil; ou das ocorrências policiais daquelas delegacias, que muito frequentemente
crime organizado e principalmente do terrorismo. Mas também as opções dos governos nem encontram jovens que se acham mesmo nessa condição.
sempre ajudam. Em Belo Horizonte, os salesianos convidaram uma juíza, muito empenhada na 4° Esse subsídio diário seria limitado a um terço de quanto custaria a um jovem nos
causa dos menores, para fazer uma conferência aos meninos da Casa de Passagem. A reformatórios do Estado. Tomando por base o cárcere correcional da Generala de
magistrada acedeu ao convite e fez uma palestra que agradou aos jovens, que inclusive abriram Turim, e reduzindo a despesa total para cada indivíduo se pode calcular em 30
o debate com ela. A um certo ponto disse um dos jovens: “Doutora, porque o governo, em lugar centésimos por dia.
de investir tanto em polícia, não investe mais em educação e saúde. Veja o meu caso: se fico Deste modo o Governo ajudaria, mas deixaria livre a colaboração da iniciativa
doente e vou para o SUS, eles me marcarão uma consulta para daqui a seis meses. Se, ao invés, privada dos cidadãos” (SÃO JOÃO BOSCO, Pró-memória ao Ministro Crispi, em
tenho dinheiro no bolso, vou a um médico particular e sou atendido na hora. A senhora acha Pietro BRAIDO [ed.] Il sistema preventivo applicato tra i giovani pericolanti
que eu vou deixar o tráfico para entrar na fila do SUS?” (1878), em Pietro BRAIDO [ed.], Don Bosco Educatore scritti e testimonianze.
Roma, LAS [1992], 2ª ed. p. 304.

70 71
"Deus fez o rico para que se salve com a caridade e a esmola”.88 as partidas, as companhias, eis o abismo de teus bens".
"Vivi entre os pobres e também tive que frequentar os ricos Alguém dirá: — os meus bens não os desperdiço, cuido
[...] em geral vi que se faz pouca esmola, e que muitos senhores deles, aumento-os cada ano, compro casas, vinhas, e daí por diante.
usam pouco das suas riquezas para o bem. Ninguém pode imaginar Também a estes o Senhor dirá: “Acumulastes estes bens! Fizeste-os
como serão apuradas as contas que o Senhor pedirá de quanto deu a crescer! Sim, é verdade, mas no entanto os pobres sofriam fome,
eles, para que se empenhem em benefício dos pobres". "Duas milhares de meninos abandonados cresciam na ignorância religiosa e
categorias de ricos não têm para ele escusa e por isso os tem em sua no mau costume, e no entanto as almas remidas pelo meu Sangue
mira, os verdadeiramente bons que sem motivos razoáveis ficam caíam no inferno. Tivestes mais a peito o vosso dinheiro que não a
com seu dinheiro ocioso no cofre, e os não tão bons que, embora minha glória, mais caras as vossas bolsas que não as almas de vossos
façam a caridade, desperdiçam de boa vontade seus bens em luxo e irmãos. Agora com vossos prazeres, com vossos tesouros, com
prazeres".89 vossas riquezas ide para a perdição, pecunia tua sit tecum in
"No entanto eu vejo que quem se perde em cálculos para si, perditionem".91
encontra sempre onde gastar em proveito próprio e nada lhe resta de Por vários anos, ele insistia em que se escrevesse um livro
supérfluo para bem dos outros. Quanto mais se é rico, mais se sobre o emprego que os ricos devem fazer do dinheiro. Sobre este
acredita ser necessário gastar para manter o próprio status, no argumento, como vimos, era muito severo. Mas aos mesmos
presente e no futuro, sempre há o que fazer, ora cá ora lá. Mas todas salesianos sua linguagem parecia muito ousada e poderia parecer
essas necessidades são pretextos que nascem de um coração apegado que entrasse em polêmica com opiniões mais benignas dos teólogos
às riquezas".90 sobre a maneira de entender o supérfluo. Aliás, já tinha havido
Numa conferência sobre o trabalho dos missionários contestação a um artigo publicado no BS sobre tal assunto. A
salesianos, fez uma digressão e falou "de tantos cidadãos que nadam posição assumida pelo periódico salesiano tinha sido tachada de
em delícias sem pensar em dar uma esmola para cooperar para a "comunista". 92
salvação eterna de seus irmãos. A tais cristãos, disse, se poderiam Dom Bosco, diante da resistência de seus filhos, cessou de
dirigir as palavras que São Pedro em outra ocasião pronunciou insistir sobre a necessidade dessa publicação. Mas chegou a sonhar
contra Simão Mago: pecunia tua tecum sit in perditione, que o teu que Nossa Senhora o repreendia pelo silêncio em matéria de
dinheiro vá contigo à perdição. Tais cristãos devem refletir que Deus obrigação da esmola."
um dia pedirá contas dos bens que lhes concedeu. Ele dirá a cada
rico: 'Eu te tinha dado bens para que dispusesses de uma parte deles
para minha glória e vantagem de teu próximo; ao invés, tu, o que
fizeste? O luxo, as diversões, as viagens de prazer, as guloseimas,
91
MB XV, 168.
92
MB XV 527.
93
XVIII, 361.
88
MB XV, 168.
89
MB XV, 527, 528.
90
MB XII, 246.

72 73
A cruzada mundial em favor da juventude tinha a obrigação de receber um egresso, de colocá-lo num serviço
com um bom patrão, de vigiar sobre sua conduta e de socorrê-lo nas
Dom Bosco é um apóstolo apaixonado pela educação dos necessidades.
jovens. Foi mestre no impor à opinião pública o problema dos Dom Bosco aceitou ser patrono de vários desses jovens, mas
jovens, especialmente dos pobres e abandonados. Convenceu-se, nos a experiência provou que quase sempre a corrupção era tão profunda
últimos anos de sua vida, que seu ideal era demasiado vasto para que os tornava incorrigíveis.
restringir-se somente à Família Salesiana. A tarefa de educar a Quando a Generala passou a depender de diretores leigos,
juventude não buscava apenas atingir pequenos grupos da elite. Seus aos poucos aconteceu como na nossa FEBEM. Chegou-se até ao
sonhos se estendiam a toda a "galáxia" juvenil, a multidão, a todos os extremo de abrir fogo contra os jovens rebelados, na tentativa de
jovens. acalmá-los. O Prefeito da Província de Turim pediu então a Dom
Requeria-se, pois, uma mobilização geral das forças Bosco que aceitasse a direção do estabelecimento. Dom Bosco
disponíveis. Antes de tudo as da Igreja, do Papa ao último fiel. Mas respondeu que da sua parte não havia dificuldades, mas que
também eram convidados todos os de boa vontade, homens e certamente o Ministério não aceitaria a proposta. O Prefeito
mulheres, crentes ou não crentes, que se preocupavam com o escreveu imediatamente ao Ministério. A resposta trazia grandes
presente da geração que cresce e do futuro dela e da sociedade. 94 elogios de Dom Bosco e autorizava começar as tratativas. Dom
Bosco colocou como condições: plena independência na educação
A Generala religiosa; autonomia na direção; o Governo pagasse oitenta cêntimos
por dia por cada jovem lá internado; fossem excluídos os guardas
Antes de terminar, cabe aqui uma palavra sobre a Generala. carcerários, no máximo se conservasse um piquete de soldados na
No intuito de separar os jovens do convívio com os prisioneiros porta.
adultos, em 1845 o Governo piemontês abriu uma casa correcional O Prefeito aceitou todas as condições de Dom Bosco. Mas o
que dependia do Ministério do Interior. Ministro acabou respondendo que não concordava com a formação
No início, a direção foi confiada à Sociedade de S. Pedro in religiosa dada por Dom Bosco. E assim prosaicamente se concluiu a
vínculis, fundada em Marselha no ano de 1839 pelo cônego Fissiaux. nobre iniciativa.
Enquanto esteve sob os cuidados desses religiosos e a religião era
cultivada, a disciplina ficou mais fácil. Pouco a pouco os jovens se Acumulação do capital
regeneravam da vida pregressa. Dom Bosco ia com frequência
pregar e atender confissões. A Dom Bosco fazia falta um instrumento mais aperfeiçoado
Foi também um dos sócios fundadores da Real Sociedade de análise da sociedade e do sistema econômico em vigor. No
para o patrocínio dos jovens egressos da Casa de educação entanto, dotado de fina intuição, não lhe podiam escapar os efeitos
correcional. Segundo os Estatutos aprovados pelo Rei, cada sócio negativos que tal sistema produzia.

94
Cf. Pietro BRAIDO, Don Bosco prete dei giovani nel secolo delle libertà. Roma,
LAS 2003, II, pp. 672-674, 675.

74 75
Assim ele se aproxima muito das ideias de Rousseau, ao
dizer que os jovens no fundo são bons, mas é a sociedade que os E depois o que acontecerá? Num dia, talvez não longínquo,
perverte. Também no plano da economia, não lhe escapavam os se realizarão aqui os ais pronunciados por Jesus Cristo e pelo
efeitos perversos do sistema liberal-capitalista em vigor. Condenava, apóstolo S.Tiago contra os ricos sem coração. Ai de vós os ricos. E
pois, a acumulação de capital e a desigualdade social que daí nascia. agora vós, os ricos, chorai e gemei, por causa das desgraças que
Como solução, porém, ficava sempre longe da política e propunha a estão para cair sobre vós (Tiago 5, 1)”. 97
esmola. Damos alguns trechos significativos:
“Eu digo que quem não dá o supérfluo rouba a Nosso Senhor e, com
S. Paulo, não possuirá o Reino de Deus”. 95
“Hoje se lamentam fortes roubos, incêndios, assaltos e coisa pior.
Estes são males, são desordens dolorosas; mas digamo-lo também
causadores de boa parte destes males são os que, podendo, não dão
esmolas. Aquele homem abastado, aquele rico poderia largar um
96
pouco mais a mão para com os Institutos de caridade. Poderia fazer A bem da verdade, e sem querer justificar políticas que cometem o grave erro de
colocar neles, a seu cargo, aqueles rapazinhos que estão quase penalizar constantemente a população carente, convém recordar aqui os resultados
da pesquisa feita por Geraldo Caliman na mesma cidade de Belo Horizonte: “Nossa
abandonados. Tiraria tantos indivíduos do perigo de tornarem-se pesquisa demonstrou que algumas variáveis estruturais (por exemplo: a
ladrões e malfeitores. Aqueles senhores, aquelas senhoras, aqueles desestruturação social, a pobreza) não mostram uma correlação direta com o desvio.
donos de terra poderiam dar esmola e tirar muitas pessoas da má Como explicação do desvio aparecem as variáveis relacionais dentro da família
vida.96 No entanto seriam mais estimados pelos pobres. Seriam (conflituosidade familiar), do trabalho (inserção), dentro da sociedade (indiferença
social) e do tempo livre (procura de evasão). Por outro lado, para os jovens
também mais respeitados em sua roça, em seus negócios, em suas pesquisados o desvio não se interessou pelos riscos de ordem estrutural, e sim pelos
posses; e assim não teríamos que deplorar tantos crimes. de ordem cultural e relacional. Se a origem do desvio não é de ordem estrutural,
Ao invés, com a avareza, com o interesse, com a sovinice, então deve evidenciar-se o nível cultural. O sentir-se bem não depende somente de
com a dureza de coração, deixam desfalecer tantas famílias na mais causas estruturais, isto é, da disponibilidade de recursos materiais, mas sobretudo
profunda miséria. Colocam-nas assim como que na necessidade de das relacionais, representada pela comunicação entre pais e filhos, entre irmãos,
entre colegas, com os professores, mas também entre o sujeito e o sistema social, na
prover pela força o que lhes vem negado por caridade. Ao mesmo articulação com algumas agências, como a escola, o trabalho, a política etc. A
tempo eles se tornam malvistos e odiados, e num tumulto serão os pobreza incide sobre os problemas familiares [...] no sentido de que os catalisa.
primeiros a pagar. Mesmo que fosse possível eliminar a catalisação através de subsídios econômicos,
ficariam as estruturas já catalisadas” (Geraldo Caliman, Desafios Riscos Desvios,
tradução de Arthur Daniel Roscoe. Brasília, Editora Universa [1998], p. 234).
97
Conferência aos Cooperadores salesianos de Casale Monferrato, EM BS 5 (1881)
95
12, p. 6.
Conferência aos Cooperadores salesianos de Lucca, em BS 6 (1882) 5, pp. 81-82. Veja o sonho do cavalo vermelho, A revolução que avança sobre a Europa (MB 7,
pp. 227-229) e o outro sobre o acúmulo de riquezas por parte de alguns (MB 18, p.
361).

76 77
6. Ainda seria necessário um estudo sobre "Dom Bosco e a
imprensa", aplicando depois as conclusões à mídia atual.
Conclusão

PODEMOS TIRAR ALGUMAS CONCLUSÕES sobre o comportamento de


Dom Bosco em relação à política.
1. Após a experiência inicial de 1849, ele chegou à conclusão de que, em
vista de sua missão, não deveria tomar partido por nenhuma das
correntes em luta na vida política do país.
2. Não esteve ausente, porém, da política italiana da época. Deu-se bem
com as autoridades, qualquer que fosse a orientação delas. Nunca se
recusou a fazer o que lhe era possível para o bem da Igreja e da Pátria.
3. Com a "política do Pai nosso", conseguiu fazer caminhar tratativas
muito espinhosas entre a Santa Sé e o Governo italiano, especialmente
98
na questão da nomeação dos Bispos e na concessão das Veja-se, por exemplo, como D. Luís Lasagna, em 1894, adaptou ao sistema
temporalidades. educativo de Dom Bosco a ação diplomática ante o Governo do Paraguai. O êxito
de sua missão foi completo [Mons Luigi LASAGNA, Epistolário. Introduzione e
4. Deu à sua congregação um talhe "laico", que a tornou simpática note critiche a cura di Antonio da Silva Ferreira. Roma, LAS [1999], 3°, pp. 10-11;
mesmo a quem se opunha à Igreja e à religião. 135-161; 189-197; Antonio da Silva FERREIRA, Cronistoria o Diario di
5. Seria desejável que novos estudos fizessem o que Dom Bosco não fez Monsignor Luigi Lasagna 3-1893 -11-1895, 2° caderno, em RSS 6(1987) 10, pp.
no memorial a Crispi: aprofundar a visão política derivada de seu 121-123; 141-143 .
pensamento educativo. 98

78 79

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