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Casa Incinerada

A casa que tia Otília me deixara de herança não era mais que um amontoado de

antiguidades e bugigangas, tudo muito compatível com seu gosto um tanto quanto

carnavalesco para ornamentos. Minha família havia decidido que o melhor seria vender

o imóvel e destinar parte do dinheiro para quitar dívidas bancárias e o que restasse para

custear o casamento de Laura, a caçula.

Laura era a preferida. Para ela nada nunca faltou. Papai e mamãe sempre foram

suas muletas e trampolins. A sorte pula os primogênitos, acredito. Ninguém nunca

achou que depois de mim, mamãe pudesse gerar filhos bonitos, mas até isso Laura

burlou. E agora o seu casamento... E com “minha herança”.

Tia Otília era perversa. Malvada por gosto. Após uma suspeita de que sua morte

fora devido a um envenenamento, exumaram seu corpo para perícia, mas nada puderam

comprovar a não ser o espantoso fato de que até mesmo os vermes se recusavam a

decompô-lo alegando que a maldade havia amargado a carne.

Nunca recusei o oficio que desde cedo me fora imposto, o de acompanhante de

titia. Era uma mulher idosa e sozinha. Nunca constituiu família. E empurraram-me para

ela. Recordo-me das vezes em que testemunhei o exercício de sua maldade: O tribunal

inquisitório. Capturava insetos pelo quintal e condenava-os a morte. Quando não

desmembrava as criaturinhas, lançava-as em fogo ardente. Tudo sob o pretexto de que

eram culpadas por invadir sua propriedade e espalhar a pestilência. Meu silêncio diante

de toda aquela crueldade não era uma manifestação de cumplicidade, mas de medo. Eu

era jovem demais... Em contrapartida titia dizia: Menina tonta, essa tua nulidade ainda

irá te desgraçar!
É verdade que não sei o que fazer com a casa. Não casarei, não tenho dívidas e o

que ganho dá para viver sem sobressaltos. Contudo, ainda que soubesse o que fazer em

que mudaria? Jamais me permitiriam o comando daquilo que de fato era meu.

Ainda hoje ouço o gargalhar de titia... Essa tua nulidade ainda irá te desgraçar!

Mesmo muito enfeitada e lustrosa, por dentro, a estrutura da casa de titia era

semelhante à de um cupinzeiro, com túneis que se emendavam e se sobrepunham uns

aos outros, corredores que se entrecortavam formado encruzilhadas e passagens secretas

que sabe lá Deus onde resultavam... E titia, a rainha... A rainha cupim! O quarto – a

câmara real – era amplo, com quatro janelas em cada extremidade, mas nenhum pouco

arejado, pois nunca eram abertas. Titia tinha verdadeiro pavor de abrir portas e janelas,

dizia que era um convite aos insetos. Mas, mesmo diante de tamanha hermeticidade, era

impossível proteger a casa da invasão das formigas e, por essas, ela acumulava

gigantesco rancor.

Em tenra idade, descobri que era capaz de me comunicar por telepatia com os

animais, uma habilidade que minha família julgou como mau agouro. Crença essa que

era confirmada a cada consulta médica a que me submetiam: Precisam ser fortes, pois

esta menina ainda lhes trará muito desgosto!

Titia nunca soube de minha habilidade. Papai e mamãe acharam que era sensato

não mantê-la informada desta pequena vergonha familiar. Como não bastasse ser feia,

agora fala com bicho. Não temiam o mal que titia poderia me fazer, como um dedo

amputado; ou uma pele esfolada... Temiam o escândalo.

Não pude ter cachorros e nem gatos por proibição médica. Diziam que a

proximidade com bichos desenvolveria ainda mais o meu problema, mas nunca falaram

nada a respeito de insetos. Todos sempre julgam os pequenos invertebrados como


criaturas anencéfalas, mas tudo o que sei sobre companheirismo, aprendi com Elias,

meu louva-deus de estimação e, foi dele que partiu a sugestão que, por esses dias, tem

me tomado o tento...

Queime a casa.

Confesso que a ideia muito me agradou. Sempre senti uma estranha excitação

ante o lamber das chamas. É um espetáculo efêmero, mas memorável.

Mas... E os planos da minha família? O casamento de Laura... Eu não poderia...

Ou poderia?!

Elias era a única criaturinha que consegui salvar da crueldade de titia. Desde

então se tornou um amigo fiel. A ausência de uma de suas patinhas era um recordo

doloroso do tribunal inquisitório e, talvez, por isso não devesse escutá-lo; estava

influenciado pelo ódio que guardava.

Menina tonta...! Minha herança... Queime a casa! Menina tonta...! Minha

herança... Queime a casa! Menina tonta...! Minha herança... Queime a casa! Menina

tonta...! Minha herança... Porra!

À puta que pariu! Que vendam as cinzas...!

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