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Algumas demarcações e interseções em morfologia

Maria do Céu Caetano


Abstract: In morphology, almost all reference literature has for some time covered the
demarcation between inflexion and derivation, between compounds and syntactic structures
and between compounding and derivation. Recognizing that, far from being exhausted, the
arguments on this issue must still be discussed, this short paper will focus on the last of the
topics pointed out. Thus, based on the criteria of distinction between compounding and
derivation adopted in traditional grammars and in the structuralist and generative models, we
will try to discuss to what extent the usually advanced differences are adequate to maintain
compounding and derivation at different levels (cf., for example, Anderson 1992), or whether,
as proposed by, among others, Booij (2010), the treatment of these processes can be carried
out in a unifying way, both regarding the analysis and the theoretical framework, under the
label 'construction'.

1. Introdução tos produtos gerados por estes dois proces-


sos de formação de novas palavras, dos
As demarcações em morfologia
mais utilizados em português. Exemplos
começaram praticamente desde que na
como, por exemplo, entreajudar e filmote-
época moderna o termo cunhado para
ca, ora são incluídos nos compostos, ora
designar a área surgiu no âmbito da
nos derivados por prefixação e sufixação.
linguística. A título de exemplo,
Isto mesmo pode ser observado ao consul-
Bloomfield (1993: 207) explica que
tarmos dois dos intrumentos de referência
"Under morphology of a language we
mais utilizados. Assim, podemos encontrar
understand structures which represent
na Gramática do Português Contemporâ-
obligatory forms within constituents. Per
neo (cf. referências bibliográficas), no ca-
definitionem these generated forms present
pítulo 6 (pp. 85-117) dedicado à "Deriva-
words, but never phrases. Subsequently we
ção e Composição", nos "Prefixos de Ori-
can say that morphology includes
gem Latina", os prefixos contra-, entre- e
structures and portions of words, while
super / sobre-, enquanto no dicionário
syntax is related to structures of phrases
Houaiss (cf. referências) esses mesmos
and sentences". Contudo, este tópico está
elementos têm entrada enquanto preposi-
longe de ficar encerrado e, entre outras, as
ções de origem latina.
tentativas de demarcação entre flexão e
derivação, entre derivação e composição e
entre compostos e construções sintáticas 2. A composição e a derivação em dife-
têm sido amplamente discutidas em
rentes modelos de análise morfológica
trabalhos mais recentes. Destas, interessa-
me tratar por agora a demarcação entre De modo necessariamente breve, procu-
derivação e composição. rarei dar conta do tratamento conferido à
composição e à derivação por parte de al-
Se é simples considerarmos que um com- guns morfólogos, os quais, nalguns casos,
posto típico se forma pela junção de dois apontam sobretudo as diferenças, enquanto
lexemas e que um derivado resulta da jun- noutros realçam as semelhanças entre am-
ção de um afixo a lexema, persistem, con- bos os processos.
tudo, algumas dúvidas relativamente a cer-
Num dos primeiros modelos a ser descri-

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tos, o Modelo Item-and-Arrangement (cf., em livreiro) e o tratamento dos compostos,
por exemplo, Hockett 1954), a diferença sobretudo os formados de V+N, como
entre composição e derivação reduz-se a abre-latas e guarda-jóias, em que a forma
uma das propriedade dos morfemas, mais do verbo ocorre junto de um nome que
especificamente, o facto de terem / não corresponde ao objeto direto do verbo de
terem autonomia. Neste modelo, os afixos base. É neste modelo que, desde a publica-
podem ser representados enquanto itens ção da monografia de Aronoff (1976), tem
lexicais, e subsequencialmente, são subca- trabalhado a maior parte dos especialistas
tegorizados como podendo apenas ocorrer em morfologia.
junto de uma base. É, portanto, um tipo de O Modelo da Morfologia Construcional
análise que descreve a composição e a de- (MC), tal como proposto por Booij (2010:
rivação como processos muito similiares 1) é uma teoria que consiste “at a better
(cf., entre outros, Bloomfield 1933 e, mais understanding of the relation between syn-
recentemente, Lieber 1980 e 1992).
tax, morphology, and the lexicon, and at
Na abordagem seguida no âmbito do Mo- providing a framework in which both the
delo Item-and-Process, os processos mor- differences and the commonalities of word
fológicos de composição e derivação são level constructs and phrase level constructs
considerados como tendo uma natureza can be accounted for.”
bastante diferente, enquanto a morfologia Assumindo a noção tradicional de 'cons-
flexional e a morfologia derivacional são trução' e definindo-a como "pairing of
tratadas de modo unificador. form and meaning" (cf. Booij 2010: 11), o
É um modelo em que a derivação consiste autor apresenta umas páginas adiante (cf.
num conjunto de operações sobre lexemas op. cit., p. 15) os seguintes tipos de 'cons-
que servem para dar origem a outros le- trução':
xemas. Cada uma destas operações é uma
Regra de Formação de Palavras, engloban-
do três aspetos: fonológico (adição de uma
sequência fonológica), semântico (a mu-
dança de significado) e sintático (a
(sub)categoria sintática do novo lexema).
A composição, por outro lado, é conside-
rada como resultante de um conjunto de
Regras de Estruturas de Palavras que fa-
zem parte da sintaxe e permitem combinar Como se pode observar, padrões derivaci-
itens lexicais para a formação de compos- onais e sub-padrões de composição são
tos (cf., por exemplo, Anderson 1992). “constructional idioms”, esquemas inter-
Nos estudos de Morfologia Generativa médios entre as palavras complexas no
existe uma forte relação entre a fomação de léxico e esquemas mais abstratos de for-
palavras e a formação de frases. De entre mação de palavras.
vários aspetos, confronte-se, por exemplo, Um dos aspetos mais frequentemente
a representação da estrutura interna das apontados a esta abordagem é que ela pode
palavras complexas, o conceito de ‘núcleo’ ser estendida à análise de combinações
(tal como os sintagmas, as palavras com- produtivas de várias palavras que funcio-
plexas têm um núcleo, situado à direita, o nam como uma unidade lexical, como ver-
qual é responsável pela especificação cate- bos de partículas e compostos em que
gorial, como –ção em fertilização e -eiro

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ocorrem mais de dois elementos (seme- uma diferença básica entre adicionar um
lhantes a frases). afixo e em subtraí-lo).
Para Booij (2010), a principal vantagem de
uma abordagem baseada na 'construção' é o 3. Prefixação ou Composição?
facto de ela não ser orientada para o input,
tal como acontece nas abordagens que se Tal como referido anteriormente, por ve-
baseiam em regras. O autor recorre a zes, o considerar-se que há uma coincidên-
exemplos grandemente utilizados em que cia formal entre grande parte dos prefixos e
supostamente se dá a afixação de -ista em as preposições (exemplos: contra / contra-,
pares como Marx – marxista e de -ismo em entre / entre-, sem /sem-, sobre /sobre-,
Marx – marxismo. Ao descrever as regras etc.), o que decorre da procedência etimo-
de -ismo e -ista, Aronoff (1976) já havia lógica comum, conduz a análises distintas:
referido que a relação entre estes pares é aquilo que para alguns é derivação prefi-
linguisticamente opaca, uma vez que de- xal, para outros, que concebem que não só
pende do conhecimento que se tem ou não as classes lexicais maiores podem servir de
de que Karl Marx gerou um movimento bases para novas palavras, esse processo
político, e que a única relação semântica consiste na formação de um composto no-
transparente que podemos estabelecer é minal, em que o primeiro elemento é uma
entre marxismo e marxista. Tinha igual- preposição.
mente ficado claro que as regras de afixa- A questão que se coloca é, pois, a seguinte:
ção esbarram por vezes em problemas difí- em formações como as indicadas abaixo
ceis de ultrapassar e uma das questões que (cf. I-IV), teremos de analisar todos os
ficou por explicar foi porque é que no par elementos da mesma forma, ou podemos
batista – batismo, bapt- não seja um ele- pressupor que há um continuum e uns po-
mento portador de significado e quer batis- dem ser considerados prefixos e outros
ta quer batismo tenham significado? (ainda) preposições?
Para Booij (2010), em casos como mar-
xismo e marxista, a solução passará, então, (I.) (II.) (III.)
por estabelecermos uma relação paradig- entrededo entreaparecer entreajuda
mática num esquema construcional em que
entremesa entreaberto entrebeijar-se
uma palavra em -ismo está paradigmatica-
entrepassar entre-hostil
mente relacionada com uma palavra em -
ista denotando 'pessoa'. A relação para- entremontano
digmática tem um estatuto um pouco pa-
recido com as regras, embora seja diferente (IV.) sobrecama, sobrealimentação,
porque na primeira a direção não é estipu- sobreárbitro, sobresselar
lada. Ou seja, as palavras em -ista não são
derivadas de palavras em -ismo, ou vice-
versa. Esta pode parecer uma conclusão De acordo com o seu valor originário loca-
bem-vinda, uma vez que há palavras em - tivo, em (I.), entre indica a 'posição inter-
ismo sem uma contrapartida em -ista (por média entre duas unidades', enquanto em
exemplo, alcoolismo) e palavras em -ista (II.) designa o 'grau intermédio de uma
sem contrapartes em -ismo (por exemplo, propriedade / ação' e em (III.) a 'relação
linguista), mas essa propriedade de não recíproca'.
direcionalidade também pode ser vista co- Nos exemplos de (IV.), sobre remete para
mo uma desvantagem (há, por exemplo, 'superioridade espacial', significado que é

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herdado da preposição latina (sobrecama); selecionados radicais neoclássicos, -ivoro
'superioridade avaliativa' (sobrealimentação); solda-se a radicais nominais do português,
'superioridade hierárquica' (sobreárbitro) e, em o que ajuda a reforçar a ideia de que será
sobresselar, para 'temporalidade' (posteriori- um morfema sufixal.
dade). De notar que nos nomes em que Esquematizando o trajeto de –ívoro, tería-
ocorre sobre a palavra complexa mantém o mos: Lexema → Radical → Afixo.
género da base. Assim, sobre funcionará,
aparentemente, como prefixo, pois o géne- Como havia afirmado em trabalho anterior
ro é determinado pelo elemento que está à (cf. Caetano 2021), de entre os elementos
direita. neoclássicos há os que já se comportam
como afixos (o que será o caso de -ívoro) e
os que se mantêm mais próximo de primei-
4. Sufixação ou composição? ro / segundo elementos de um composto
(como por exemplo bio), possuindo estes
À semelhança do ponto anterior, também
últimos um significado que se assemelha
temos algumas formações em que há jun-
mais ao de um lexema. Assim, -ívoro terá
ção de um elemento à direita que para al-
completado / estará em vias de completar
guns podem ser analisadas como produtos
um processo gradual, à semelhança do que
gerados por base e sufixo, enquanto outros
aconteceu muito mais remotamente com os
consideram que estamos em presença de
sufixos e os prefixos de que hoje dispomos
unidades formadas a partir da junção de
para formarmos novas palavras, como sa-
dois radicais, replicando-se o modelo gre-
biamente assinalou Ali (1964, p. 229), ao
co-latino de composição (cf., por exemplo,
considerar que, tal como aconteceu com os
herbívoro).
prefixos atuais do português, que se origi-
Para ilustrar este ponto, considerem-se os naram de preposições e de advérbios, i.e.,
exemplos abaixo em -ívoro: itens com autonomia, caso idêntico se ha-
via verificado antes com os sufixos, uma
(V.) vez que, de acordo com o autor, o sufixo
alfacívoro franguívoro "procede também de expressão que a prin-
arrozívoro frutívoro
cípio se usou como palavra independente".
bananívoro hamburguívoro
chocolatívoro lasanhívoro (Breves) Conclusões
energívoro pizzívoro Os exemplos analisados, sobretudo os de
(V.), em que parece ter havido a gramatica-
lização de –ívoro, obrigam-nos a repensar
O primeiro comentário a fazer é que se a composição e a derivação deverão ser
-ívoro, bem como outros elementos do entendidas enquanto processos morfológi-
mesmo tipo com origem grega ou latina, cos substancialmente diferentes.
desde há muito deixou de ocorrer como Assumindo a proposta de Booij (2010), o
lexema, tendo deixado de o ser bastante qual, como já referido, defende que a com-
antes de ter sido herdado pelo português e posição e a derivação não diferem na aces-
por outras línguas modernas. sibilidade das regras, os exemplos que
A segunda observação é que nos exemplos vimos anteriormente reforçam a ideia de
de (V.) -ívoro não se junta a nenhum radi- que os afixos são constituintes que fazem
cal neoclássico, pelo contrário, em todas parte da estrutura interna das palavras de-
estas novas formações, em vez de serem

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rivadas e que têm o mesmo estatuto dos Palavras e Gestos: A Arte da Linguagem,
constituintes dos compostos. vol. IV, pp. 165-174. Curitiba: Editora
Artemis.
A fronteira entre a composição e a deriva-
ção pode cruzar-se no curso da história de Cunha, C. & L. F. Lindley Cintra (1984)
uma língua, daí a importância de estudos Nova gramática do português contemporanêo.
sobre formação de palavras que conciliem Lisboa: João Sá da Costa.
as dimensões sincrónica e diacrónica, para Hockett, C. (1954) Two models of
que se possa avançar com mais segurança grammatical description. Word 10, pp.
em termos teóricos. Atualmente, as dife- 210-231.
rentes áreas nucleares da linguística têm o
seu campo específico bem delineado e os Lieber, R. (1980) On the organization of
seus princípios bem definidos, o que faz the Lexicon. Cambridge (Mass.): The MIT
com que algumas posições mais radicais Press.
deixem de fazer sentido, procurando-se Lieber, R. (1992) Deconstructing morphology:
antes estudar as zonas de interseção e mos- word formation in syntactic theory. Chicago:
trar que nos vários processos há confluên- University of Chicago Press.
cia e interação, debate para o qual a morfo-
logia tem dado um contributo muito impor- Villar, M. S. (coord.) (2011) Dicionário
tante. do Português Atual Houaiss. Lisboa: Cír-
culo de Leitores, 2 vols.

Referências
Ali, M. S. (1964) Gramática Histórica da
Língua Portuguesa. São Paulo: Edições
Melhoramentos, 3ª ed. (1ª ed. 1931).
Anderson, S. R. (1992) A-Morphous
Morphology. Cambridge: Cambridge
University Press.
Aronoff, M. (1976) Word Formation in
Generative Grammar. Cambridge (Mass.):
The MIT Press.
Bloomfield, L. (1933) Language. New
York: Holt, Rinehart & Winston.
Booij, G. (2005). Compounding and
Derivation. In Dressler, W., Kastovsky, D.,
Pfeiffer, O. & Rainer, F. (eds.) Selected
papers from the 11th Morphology meeting
(Vienna, 2004), pp. 109–132. Amsterdam:
John Benjamins.
Booij, G. (2010) Constructional
Morphology. Oxford: Oxford University
Press.
Caetano, M. C. (2021) Novas formações
com bio- e -ívoro em português. In Por

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