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MORFOSSINTAXE I

Nádia Castro
Noções básicas de
morfologia
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

„„ Apontar a estrutura interna das palavras através da análise morfológica.


„„ Refletir sobre as questões decorrentes dos processos de formação de
palavras e suas implicações para o ensino.
„„ Analisar as contribuições históricas para os estudos de morfologia.

Introdução
Neste capítulo, você vai estudar as noções básicas de morfologia. Este
campo de estudo da língua portuguesa objetiva analisar as estruturas
que compõem o funcionamento interno das palavras. Enquanto a sintaxe
investiga a relação entre as palavras dentro de uma oração, a morfologia
desvenda a estrutura, a formação e a classificação de palavras de uma
determinada língua.
Portanto, neste capítulo, você vai estudar a estrutura interna das
palavras por meio da análise morfológica, refletindo sobre as questões
decorrentes dos processos de formação de palavras e suas implicações
para o ensino e analisando as contribuições históricas para os estudos
de morfologia.

Estrutura interna das palavras


O léxico é definido, tradicionalmente, como o conjunto de palavras de certa
língua. Em sua abordagem clássica, o estudo do léxico tem por objetivo uma
ampliação dos conhecimentos das características e propriedades de cada
palavra. Isso no passado e no presente, uma vez que há mudança de acordo
2 Noções básicas de morfologia

com o espaço, o tempo e a história de constituição de uma língua, uma vez


que esta não é estática, ela se movimenta conforme as sociedades evoluem.
Pense, por exemplo, em palavras como: internet, imprimir, escanear, tuitar.
Há inserção delas no vocabulário de língua portuguesa — algumas ainda sem
registro formal, por enquanto — pelo senso comum.
Na tradição dos estudos gramaticais, a morfologia concentra-se em es-
tudos da flexão. Os diferentes processos de derivação e de mudança, bem
como de extensão de palavras, servem para funções predeterminadas, as
quais se traduzem em estruturas morfológicas lexicais. Lembre-se de que
a morfologia não existe por acaso, ela é historicamente a subdivisão mais
antiga da gramática, mas reconhecida como tal apenas na segunda metade
do século XIX. Os linguistas que iniciaram os estudos sobre morfologia
não se percebiam, até então, como morfologistas. Dessa forma, o léxico
representa um depósito de elementos de designação, pois fornece unidades
básicas para a construção de enunciados e também comporta os processos
de formação das palavras.
Aqui, o objetivo é fornecer para você, leitor, estudioso da língua, professor
de português, uma visão articulada dos principais processos de formação
de palavras. Você sabe por que esse conhecimento é relevante? Porque as
estruturas morfológicas constituem um instrumento fundamental tanto para
a aquisição como para a expansão do léxico individual e coletivo.
Agora, pense: de que forma o léxico se constitui na língua? Cada novo
conceito passa a ser registrado? Mas, assim, teríamos uma combinação
de sequências que não conseguiríamos realmente dar conta de guardar na
memória? Portanto, para máxima eficiência, a expansão do léxico acontece
através dos processos de formação de palavras. Ou seja, a partir de fórmulas
padronizadas de construção de novas palavras a partir do que já existe no
léxico.
Para Basílio (2006, p. 10), o léxico é “ecologicamente correto”, pois
tem um banco de dados em permanente extensão, mas utilizando material
já existente, assim, reduzindo a dependência de memória e garantindo a
comunicação automática. Por exemplo, em palavras como: computacional,
globalização, etc., percebe-se formas novas de palavras já existentes: o
verbo computar, por exemplo, já existia, e serviu de base para a formação
de computador; o sufixo –ção, também já existente, possibilita a constru-
ção da palavra computação, e assim por diante. Para compreender melhor,
observe a Figura 1.
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Morfologia

Estrutura, formação e
classificação das palavras

Sintaxe
Semântica
Relações formais
Sentido entre os elementos
das palavras que constituem
as sentenças

Figura 1. Abordagens da morfologia, da semântica e da sintaxe.


Fonte: Machado (2017).

Classes de palavras
As classes de palavras, ou categorias lexicais, envolvidas em processos de
formação de palavras são:

„„ Substantivo
„„ Adjetivo
„„ Artigo
„„ Pronome
„„ Numeral
„„ Verbo
„„ Advérbio
„„ Conjunção
„„ Preposição
4 Noções básicas de morfologia

A classe de palavras denominada substantivo é definida pela sua proprie-


dade morfológica de apresentar e determinar flexão de gênero e número; além
de sua propriedade semântica de designar seres ou entidades; e sua propriedade
sintática de ocupar o núcleo do sujeito e complementos.
A classe dos adjetivos é definida pela propriedade de caracterizar ou
qualificar os seres designados pelos substantivos e desta forma concordar em
gênero e número com eles. Já os verbos, são definidos como aquela classe
de palavras que representa ações e relações (eventos, estados, etc.) no tempo,
tendo como função a predicação e apresentando flexões de tempo e de modo.
Os advérbios representam a classe de palavras invariáveis com função de
modificar verbos, adjetivos e também outros advérbios e enunciados.
O artigo é conhecido como aquele que antecede o substantivo e funciona
como determinante ou indeterminante deste último. Os artigos podem ser
flexionados em número e gênero. A classe de palavras denominada pronome
contempla aquelas palavras que identificam o indivíduo no momento comu-
nicacional, ou seja, evidencia as pessoas do discurso.
Agora, o numeral é um conjunto representado por palavras com função
de quantificar numericamente ou indicar ordem de sequência para aquilo a
que faz referência na construção da comunicação. A conjunção, por sua vez,
liga elementos dentro da construção dos enunciados. Essa função também é a
das preposições, ou seja, para que se tenha clareza no discurso, uma palavra
deve estar ligada à outra.

Os processos de formação de palavras apresentam funções gramaticais e funções


semânticas; e os seus produtos, ou seja, as palavras formadas, apresentam propriedades
morfológicas, sintáticas e semânticas.

Para segmentar as variações das palavras, é possível dividi-las em variáveis


e invariáveis.
Noções básicas de morfologia 5

Variáveis

As palavras variáveis podem ser flexionadas em gênero e número (algumas,


inclusive, em grau). São elas:

„„ Adjetivo
„„ Artigo
„„ Pronome
„„ Substantivo
„„ Verbo

Invariáveis

Já as palavras consideradas como invariáveis são aquelas que não se modificam


em gênero ou número. Ou seja, independentemente da construção enunciada,
elas mantêm o mesmo formato. O contexto não interfere e, da mesma forma,
o arranjo textual não as modifica. São elas:

„„ Advérbio
„„ Conjunção
„„ Preposição

Observe um exemplo no quadro a seguir.

A colaboradora geóloga ficou muito revoltada

Artigo Substantivo Adjetivo Verbo Advérbio Adjetivo


feminino feminino feminino conjugado invariável feminino
singular singular singular no singular
feminino
singular

Neste exemplo, percebemos que todas as palavras que compõem o enun-


ciado concordam em gênero e número, ou seja, estão no feminino singular
de acordo com o núcleo do sujeito (colaboradora), com exceção apenas para o
advérbio de intensidade muito. Este, conforme visto anteriormente, é invariável.
Por fim, tenha em mente que o processo de formação de palavras pode
ocorrer por derivação sufixal ou prefixal; parassintética, conversiva, siglada,
grafêmica, silábica, fortuita, por composição e onomatopeia.
6 Noções básicas de morfologia

Formação de palavras e suas


implicações para o ensino
O conhecimento acerca dos processos de formação de palavras (que pode
ocorrer através da reflexão sobre o funcionamento da nossa língua portuguesa)
possibilita que os indivíduos percebam que a língua existe como meio de
comunicação entre homens; sendo que as significações linguísticas estão na
base dessa comunicação. Quanto mais se compreende o funcionamento da
língua como um sistema vivo e mutante, mais habilitados os sujeitos esta-
rão para compreender o contexto no qual estão inseridos e aumentam-se as
possibilidades de interpretação e amplia-se a noção do certo e do errado e
passamos então a perceber a língua como algo que demarca historicamente
um povo e um tempo. Diz-se com muita intensidade que vivemos na sociedade
da comunicação e da informação, na qual a palavra dita e, sobretudo, escrita
é utilizada com grande intensidade. As redes sociais modificaram as relações
dos indivíduos com o uso da palavra, o domínio dela, por conseguinte, é
possibilidade de ocupar diferentes espaços de forma adequada e fazendo uso
da riqueza que a língua oferece.
O processo de formação de palavras traz implicações para o ensino, uma
vez que é preciso constante atualização e contextualização para que não
se limite o espaço do aprendiz. Se você parar para pensar, podemos citar
inúmeras novas palavras na nossa língua: agito, xingo, desmate, carreata,
entre outras (ROCHA, 1998). A partir dessas novas criações podemos nos
perguntar: por que algumas causam estranheza e outras não? Por exemplo,
a palavra desmorrer, já que a forma desmerecer é aceita. Por que razão a
palavra atingimento não é considerada como uma palavra existente na língua,
mas possível de ser criada? Por que uma palavra proferida por uma figura
pública causa tanto comentário? Pense na palavra imexível e o que ela gerou
após ter sido pronunciada por um ministro do Estado. Por que no Rio Grande
do Sul temos como forma consagrada lavagem e em Santa Catarina lavação?
Estas e outras perguntas devem ser discutidas no âmbito da morfologia. No
decorrer do processo de ensino é necessário levantar alguns questionamentos
com os alunos:

„„ Qual o objetivo de formar novas palavras?


„„ De que maneira formamos novas palavras?
„„ Quando parece ser emergente apropriar-se de novas palavras ou de
palavras de outras línguas?
Noções básicas de morfologia 7

„„ Quais são as partes integrantes de uma palavra?


„„ A partir de que critério(s) podemos dizer que uma palavra existe em
uma língua?

Portanto, para os processos de ensino e aprendizagem, uma teoria mor-


fológica da língua objetiva definir como e quais novas palavras podem ser
formadas. Assim, um falante que escuta uma palavra, quer seja pela primeira
vez, tem capacidade de reconhecê-la como uma palavra de sua língua e assim
permite a intuição sobre a estruturação dela e de seus possíveis significados.
Dessa forma, uma teoria morfológica descreve esses fatos, sobretudo os me-
canismos formais que criam novas palavras e a análise de palavras que já
circulam nessa língua.
É imperativo que a língua precisa ser ensinada na escola. A gramática
normativa, então, traz as regras. Mas a norma não pode ser uniforme e rígida.
Ela precisa ser elástica e contingente, evidenciando a sua adaptação de acordo
com cada situação social específica em que está inserida. Pense: o professor
fala em casa da mesma e exata forma que fala em sala de aula ou em uma
conferência? Se a língua é variável no espaço e na hierarquia social, como
definir uma única representação como a correta? Reflita sobre essa questão.

Contribuições históricas para os


estudos de morfologia
Qualquer gramática de língua portuguesa que seja consultada dedica um
capítulo ao estudo da morfologia, isso quando consideramos as gramáticas
do tipo normativas. No contexto da linguística, ou seja, no que se refere ao
estudo científico do funcionamento da linguagem, a morfologia como campo
de estudo tem, historicamente, dias de valorização e de esquecimento. No
período da gramática estrutural, ela foi centro de atenção e, portanto, alcan-
çou um progresso. Já no período da linguística gerativo-transformacional, a
morfologia ficou esquecida se comparada à sintaxe e à fonologia. Observe o
que diz Bauer (1983 apud ROCHA, 1998, p. 7):

No momento, o estudo da formação de palavras está sujeito a alterações


frequentes. Não há um corpo de doutrina pacificamente aceito nesse campo,
de tal forma que os pesquisadores estão sendo obrigados a estabelecer a sua
própria teoria e procedimentos à medida que caminham.
8 Noções básicas de morfologia

Porém, com o percurso histórico das sociedades e um ensaio cada vez maior
de compreensão dos fenômenos que estão postos no mundo, este pensamento
tem dado lugar para estudos cada vez mais aprofundados sobre morfologia. No
âmbito da língua portuguesa, autores se consagram nesse campo e ampliam a
visibilidade e a importância do estudo da ciência das linguagens. Margarida
Basílio, por exemplo, tem uma relevante obra publicada no Brasil, com o título:
Estruturas Lexicais do Português: uma abordagem gerativa, evidenciando
assim o interesse crescente pela disciplina.
Quatro são as escolas que estudam e analisam o componente morfológico
da língua: o descritivismo, o historicismo, o estruturalismo e o gerativismo.
Para as gramáticas tradicionais, este tema é de menor relevância. No entanto,
no período de influência do estruturalismo houve um maior interesse, este
logo ultrapassado pela teoria gerativista (Quadro 1).

Quadro 1. Descrição do componente morfológico das línguas pelas quatro grandes escolas

Descritivismo Historicismo Estruturalismo Gerativismo

Relação entre Filologia Ferdinand Noam Chomsky


lógica e românica; Saussure —
linguagem filologia estruturalismo
germânica europeu

Regularidades vs. Língua: O arbitrário do Língua inerente


irregularidades português, signo: a língua à condição
francês, espanhol é um sistema humana
e italiano com de valores
suas origens no constituído por
latim vulgar diferenças puras

Fixar paradigmas Filologia: um Língua = sistema Capacidade


estudo histórico de valores criadora de um
ser pensante

Elemento e Estudos A oposição forma Instrumento para


paradigma linguísticos com as estruturas livre expressão
abordagem da língua do pensamento
diacrônica

Descrição Evolução na Leonard Linguagem


e fixação morfologia Bloomfield — não é mero
histórica estruturalismo instrumento de
norte-americano comunicação

(Continua)
Noções básicas de morfologia 9

(Continuação)

Quadro 1. Descrição do componente morfológico das línguas pelas quatro grandes escolas

Descritivismo Historicismo Estruturalismo Gerativismo

Aristóteles Privou o estudo Preocupação Estrutura


— partes do da língua em uso com a filosofia profunda e
discurso da linguagem superficial

Estoicos — casos Gramática Caráter prático Regras


nominais histórica ou e utilitarista — morfológicas que
comparativa: morfema operam dentro
preocupada com (= menor do componente
a evolução da unidade lexical
palavra como da palavra);
um todo uma visão
procedimental

No Brasil, em meados da década de 1960, até inícios da década de 1970,


identificam-se os estágios iniciais da consolidação desse campo, isso com a
obrigatoriedade do ensino da linguística nos cursos de Letras. Em sua segunda
fase, a disciplina passa a integrar com as demais um campo desenvolvido de
pesquisa na graduação e na pós-graduação no país. Trabalhos começam a
se destacar, entre eles os do estudioso Mattoso Câmara Júnior (1970, 1971).
É em meados da década de 1970 que a morfologia volta a ser legitimada
como objeto de estudo na Teoria Gerativa, destacando-se o nome de Noam
Chomsky (1970).
Neste período de consolidação não poderia ser diferente, como o estudo
das estruturas internas da palavra, a morfologia se confronta com dificuldades
de definição do seu objeto de estudo. Com o decorrer das pesquisas em torno
dessa temática melhores definições são estabelecidas. Passa-se a trabalhar
com regras de formação de palavras. A partir dessa interpretação, historica-
mente, consolida-se o foco na competência linguística. Ou seja, parte-se da
possibilidade de pensar não apenas nas formas existentes das formas lexicais,
mas potencializar o estudo da ciência linguística a partir da valorização da
potencialidade das línguas para a formação do novo, com o objetivo principal
de atender as necessidades comunicativas.
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Conheça melhor a morfologia histórica do português


fazendo a leitura do artigo disponível no link ou código
a seguir (FREITAS; AREÁN-GARCÍA, 2010).

https://goo.gl/UHtMjr

BASÍLIO, M. Formação e classe de palavras no português do Brasil. 2. ed. São Paulo: Contexto,
2006.
CHOMSKY, N. Remarks on nominalization. In: JACOBS, R. A.; ROSENBAUM, P. S. (Orgs.)
Readings in English transformational grammar. Waltham, Mass: Ginn & Co, 1970. c. 12,
p. 104-221.
CÂMARA JR., J. M. Estrutura da língua portuguesa. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1970.
CÂMARA JR., J. M. Problemas de linguística descritiva. 5. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1971.
MACHADO, L. B. Morfologia x sintaxe x semântica para nunca mais esquecer. 2017.
Disponível em: <https://luconcursos.blogspot.com/2017/04/morfologia-x-sintaxe-x-
semantica-para.html>. Acesso em: 21 dez. 2018.
ROCHA, L. C. A. Estruturas morfológicas do português. Belo Horizonte: UFMG, 1998.

Leituras recomendadas
CAMARA JR, J. M. Estrutura da língua portuguesa. 8. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1977.
CUNHA, C.; CINTRA, L. F. L. Nova gramática do português contemporâneo. 6. ed. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2013.
FREITAS, E. S. S.; AREÁN-GARCÍA, N. Morfologia histórica do português. Revista Philologus,
ano 16, n. 47, p. 109-118, 2010. Disponível em: <http://www.filologia.org.br/revista/47/07.
pdf>. Acesso em: 21 dez. 2018.
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