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Diogo Pinheiro
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Uma boa porta de entrada para cada um desses modelos é a Parte II do The Oxford Handbook of Construction
Grammar (HOFFMANN; TROUSDALE, 2013), além das referências lá citadas.
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Ver também Pinheiro (2015).
Princípio 1: É tudo léxico! (Ou: Construções de cima abaixo)
O insight fundamental da GC pode ser enunciado de maneira direta: o conhecimento
linguístico do falante toma a forma de um grande inventário de construções gramaticais. Esta
é uma ideia simples (e poderosa), mas compreendê-la requer, naturalmente, alguma definição
prévia do conceito de “construção gramatical”. Então, é por aí que vamos começar.
Na literatura construcionista, a definição mais usual é a seguinte: uma construção
gramatical é um pareamento convencional entre informações de forma e informações de
significado. Note que essa formulação evoca uma imagem segundo a qual uma construção é
uma entidade de duas faces, mais ou menos como uma moeda ou uma folha de papel. Pense,
por exemplo, na palavra “árvore”. Em uma de suas faces, encontramos informações formais –
neste caso, a sequência fonológica /aRvoɾI/. Na outra, encontramos informações semânticas –
neste caso, nosso conceito mental de árvore3. Essa descrição pode ser representada assim4:
FORMA: /aRvoɾI/
SIGNIFICADO: ÁRVORE
3
Caracterizar esse conceito com precisão é uma tarefa insana (o que torna o campo da semântica lexical tão
fascinante quanto complexo), razão pela qual não tentarei realizá-la aqui. Então, para fins de exposição, digamos
que nosso conceito mental de árvore corresponda à definição que pode ser encontrada no dicionário Michaelis
online (michaelis.uol.com.br): vegetal lenhoso, em geral de porte alto, que apresenta um caule principal ereto, ou
tronco, fixado no solo com raízes, e que se ramifica em galhos carregados de folhas que se constituem em copa.
Para simplificar, eu irei representar esse conceito da seguinte forma: ÁRVORE.
4
Tanto o exemplo “árvore” quanto as metáforas da moeda e da folha de papel são referência explícitas ao
pensamento saussuriano (e, em particular, ao Curso de Linguística Geral). O objetivo aqui é iluminar a semelhança
entre a noção de construção gramatical e o conceito saussuriano de signo linguístico.
Certamente, a resposta passa por considerar que palavras não são o único tipo de
construção gramatical: padrões linguísticos abstratos também devem ser tratados como tais.
Para entender esse ponto, observe os exemplos abaixo:
(1) Rearrumar
(2) Refazer
(3) Reorganizar
Um falante que ouça as palavras (1) a (3) provavelmente chegará à conclusão de que o
português conta com um esquema morfológico geral (algo como RE + BASE VERBAL)
5
A letras X é uma variável, usada aqui para indicar que diferentes (tipos de) sintagmas podem ocupar essa posição.
6
O português conta com outras construções gramaticais especializadas em funções semelhantes, como QUE X O
QUÊ. O leitor pode pensar por conta própria em outras construções funcionalmente relacionadas.
(8) Pedro beijará Maria.
(9) Marcos arrancou o adesivo.
(10) Você é brasileiro?
(11) A casa está arrumada?
(12) O João já chegou da rua?
Como nos exemplos anteriores, também em (7) a (9) conseguimos flagrar alguma
regularidade formal e semântica. Aqui, no entanto, a afinidade formal não implica coincidência
fonológica (nem mesmo parcial). Na verdade, trata-se de uma afinidade abstrata, baseada na
existência de um padrão sintático comum: o padrão SUJEITO VERBO OBJETO (ou SVO, para
simplificar). De maneira análoga, também a afinidade quanto ao significado é bastante abstrata:
embora as sentenças descrevam situações particulares bem diferentes, todas elas evocam uma
cena genérica na qual um agente atua diretamente sobre um paciente.
A situação é semelhante em (10) a (12) – com a diferença de que, neste caso, a afinidade
quanto à forma é prosódica (e não sintática) e a afinidade quanto ao significado é pragmática
(e não propriamente semântica). Especificamente, as três sentenças apresentam curva
entoacional ascendente (marcada na escrita pelo ponto de interrogação) e veiculam ato
ilocucionário de pergunta.
Como se vê, portanto, as construções gramaticais podem vir em diferentes sabores:
algumas apresentam, no polo da forma, informações fonológicas segmentais (caso de “árvore”,
RE + BASE VERBAL e QUE MANÉ X), ao passo que outras são inteiramente desprovidas desse tipo
de informação (caso de SVO e do padrão entoacional ascendente). Da mesma forma, algumas
construções exibem, no polo do significado, informações de natureza semântica (caso de
“árvore”, RE + BASE VERBAL, QUE MANÉ X e SVO), ao passo que outras apresentam especificações
pragmáticas (caso da entonação ascendente). Essa variedade pode ser vista no quadro abaixo:
TIPO DE CONSTRUÇÃO EXEMPLO
Palavra Árvore
Expressão fixa bom dia; cada macaco no seu galho
Esquema morfológico re + base verbal (ex: rearrumar, refazer)
Esquema sintático semipreenchido que mané X; que X o quê
(ex: que mané férias; que férias o quê)
Esquema sintático aberto SVO (ex: Réver cabeceou a bola)
Padrão entoacional Ascendente
Figura 2: continuum de construções gramaticais
Como você pode notar, o quadro acima está organizado segundo o critério do grau de
preenchimento fonológico (segmental) das construções: assim, palavras (como “árvore”) e
expressões fixas (como “bom dia”) são construções inteiramente preenchidas, ao passo que
esquemas argumentais (como SVO) e padrões entoacionais (como o padrão ascendente) são
construções inteiramente abertas (ou abstratas, ou ainda esquemáticas). No meio do caminho,
por fim, encontramos as construções parcialmente preenchidas, como esquemas morfológicos
(do tipo RE + BASE VERBAL) e padrões sintáticos semifixos (como QUE MANÉ X)7.
É importante deixar claro, no entanto, que essas diferenças importam pouco: sob uma
ótica construcionista, o mais relevante é o fato de que todos esses elementos são, em última
instância, pareamentos de forma e significado. Dito de outra maneira, palavras, expressões
cristalizadas, esquemas morfológicos, estruturas sintáticas e padrões entoacionais não são
entidades qualitativamente distintas: embora elas possam se distinguir quanto ao grau de
preenchimento fonológico (e, portanto, quanto ao que conta como forma em cada caso:
fonologia segmental, morfossintaxe ou prosódia), todas são, em última instância, unidades
simbólicas – isto é, construções gramaticais. Para sublinhar a similaridade profunda entre esses
diferentes tipos de construções, vamos representar todos eles em um mesmo formato:
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Esse quadro ilumina uma premissa teórica frequentemente associada à GC: a ideia de inseparabilidade entre
léxico e sintaxe. Com efeito, um item como “árvore” é tradicionalmente associado ao domínio do léxico, ao passo
que um padrão como SVO é normalmente vinculado ao domínio da sintaxe. Do ponto de vista da GC, porém, esses
dois tipos de elementos não são qualitativamente diferentes – uma sugestão que imediatamente borra as fronteiras
entre léxico e sintaxe.
O que as figuras acima sugerem é o seguinte: se definido de maneira suficientemente
ampla, o conceito de construção gramatical tem, de fato, potencial para descrever a totalidade
do conhecimento linguístico do falante. Afinal, ele é capaz de capturar tanto idiossincrasias
lexicais (como o fato, absolutamente peculiar, de que o conceito ÁRVORE é expresso por meio
da sequência formal /aRvoɾI/) quanto regularidades sintático-semânticas (como o fato de que
uma cena agentivo-transitiva é expressa por meio do padrão formal SVO) ou prosódico-
pragmáticas (como o fato de que um ato ilocucionário de pergunta é expresso por meio de uma
curva entoacional ascendente). E é aqui que reside, muito provavelmente, a diferença crucial
entre a abordagem construcionista e a concepção gerativista de conhecimento linguístico.
Explica-se. A tradição gerativa opera, desde os seus primeiros anos, com a noção de que
o conhecimento linguístico do falante é cindido em dois grandes componentes: léxico e
gramática. Nesse modelo, o componente lexical, formado por um conjunto de itens que devem
ser aprendidos e memorizados individualmente, é o domínio do conhecimento idiossincrático:
afinal, não há nenhuma generalização envolvida no fato de que o conceito ÁRVORE se expressa
como /aRvoɾI/. Por sua vez, o componente gramatical, formado por regras/derivações sintáticas
que devem ser aplicadas sobre itens lexicais, é o domínio das regularidades: é ali que são
expressas as generalizações gramaticais que o falante implicitamente domina (por exemplo, o
fato de que o determinante deve vir antes do nome).
Naturalmente, a GC também precisa dar conta desses dois tipos de conhecimento: o
específico/idiossincrático e o geral/regular (muito simplesmente porque qualquer falante
domina informações linguísticas de ambos os tipos). No entanto, ela não assume que, para fazer
isso, seja necessário postular dois tipos de objetos linguísticos: de um lado, itens primitivos; de
outro, operações derivacionais. Em vez disso, opta-se por representar tanto as idiossincrasias
quanto as generalizações em um formato único – uma unidade simbólica que associa
diretamente informações de forma (fonologia segmental, morfossintaxe, prosódia) a
informações de significado (semântica, pragmática).
No fim das contas, o resultado prático dessa opção é o fato de que a GC abre mão do
componente da gramática (entendida como um conjunto de operações recursivas) e preserva
apenas o componente do léxico. Dessa maneira, o conhecimento linguístico será concebido
como uma espécie de léxico ampliado e enriquecido, contendo milhares de unidades simbólicas
(isto é, construções gramaticais) de todos os tipos: de palavras a padrões entoacionais, passando
por esquemas morfológicos, estruturas sintáticas semipreenchidas e padrões sintáticos
inteiramente abertos. Para fazer referência a esse léxico enriquecido, normalmente se emprega
o termo constructicon – uma mescla vocabular bastante útil que resulta da fusão das palavras
inglesas “construction” (construção) e “lexicon” (léxico).
Neste ponto, já deve estar claro por que o título desta seção foi formulado assim: É tudo
léxico! (ou Construções de cima abaixo). A formulação “É tudo léxico” marca o fato de que a
GC é uma abordagem não-derivacional, na medida em que dispensa o componente das
derivações sintáticas. O slogan “Construções de cima abaixo”, tradução de Constructions all
the way down (GOLDBERG, 2006), captura o insight de que o conhecimento linguístico pode
ser inteiramente descrito de maneira uniforme (apenas por meio de construções gramaticais),
sem a necessidade de um design bipartido (itens mais derivações).
luz
negro dia
escuro noite
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Isso é necessário porque o significado de “pintar o sete” não é composicional. Voltarei a esse ponto na próxima
seção.
interconectadas, sob a forma de uma relação taxonômica em que a construção “pintar o sete”
(mais concreta) se apresenta como uma especificação de PINTAR + OBJETO (mais abstrata).
Gramática de Construções
9
A expressão “Unification Construction Grammar” aparece em Goldberg (2006) para fazer referência,
especificamente, ao modelo que veio a ser conhecido, posteriormente, como “Berkeley Construction Grammar”
(neste capítulo, traduzido como Gramática de Construções de Berkeley). Naquele momento, ainda não havia sido
desenvolvida a GC Baseada em Signos, resultante do casamento entre a GC de Berkeley e a HPSG.
marcante o contraste teórico-epistemológico entre eles e as versões formalistas da GC. Por tudo
isso, parece fazer muito sentido tratá-los como manifestações particulares de um quadro teórico
mais geral: a tal Gramática de Construções Baseada no Uso (de agora em diante, GCBU).
Mas, afinal, que princípios teóricos caracterizam a GCBU? O primeiro deles reflete o
legado da tradição funcionalista norte-americana: trata-se da premissa de que a experiência
linguística do falante – em uma palavra, o uso – afeta o conhecimento linguístico subjacente.
Em algum sentido trivial, isso tem que ser verdade: nem que seja (sob uma ótica chomskiana)
para permitir a marcação de parâmetros durante a aquisição, o input do ambiente precisa ter
algum papel na construção do conhecimento internalizado. A hipótese baseada no uso, contudo,
é bem mais radical. Para fins de clareza, vamos dividi-la em duas partes: (i) não existe nenhum
conteúdo sintático inato, de modo que a totalidade do conhecimento linguístico terá de ser
construída a partir do input, e (ii) a experiência com o input linguístico afeta continuamente o
conhecimento internalizado, moldando-o ao longo de toda a vida do falante.
A premissa de que o uso afeta o conhecimento subjacente produz uma consequência
teórica interessante: a de que a representação do conhecimento linguístico pode ser redundante.
Para entender esse ponto, vejamos os critérios estabelecidos por Goldberg (2006, p. 5) para
definir se um dado padrão linguístico se qualifica ou não como uma construção gramatical:
Qualquer padrão linguístico é reconhecido como uma construção desde que
algum aspecto da sua forma ou função não possa ser inteiramente previsto a
partir de suas partes componentes ou de outras construções já estabelecidas.
Adicionalmente, mesmo padrões inteiramente previsíveis podem ser
armazenados, desde que ocorram com frequência suficiente.
A melhor maneira de acompanhar esse raciocínio é aplicá-lo a exemplos concretos.
Vamos pensar, então, na sentença “O leão azul atacou um rato vermelho”. Certamente, você é
capaz de compreendê-la (e poderia também produzi-la, se a ocasião se apresentasse). Mas é
bastante improvável que essa exata sequência de palavras esteja armazenada na sua rede de
construções (mesmo porque esta deve ser a primeira vez que você se depara com ela). Sendo
assim, qual é o seu segredo para interpretá-la (ou produzi-la) adequadamente?
Simples: você recorre a diversas construções que estão armazenadas no seu
constructicon. Para o exemplo do leão, você vai precisar de pelo menos nove delas: o padrão
SVO, que especifica o tipo de cena descrito pela sentença; uma construção de modificação
adjetival (do tipo NOME + ADJETIVO), que lhe permitirá entender que “azul” e “vermelho”
descrevem atributos do leão e do rato, respectivamente; e cada uma das sete construções lexicais
presentes na sentença ( “o”, “leão”, etc., cada qual com um significado associado)10.
Até este ponto, nós estamos na primeira parte da citação acima, segundo a qual um
padrão deve ser reconhecido como construção independente sempre que não for possível
explicá-lo a partir de outras construções já previstas no constructicon (isto é, sempre que o
padrão tiver algo que lhe seja único, idiossincrático). Como o exemplo do leão pode ser
explicado a partir da combinação de outras construções (isto é, não há nada de idiossincrático
nele), não é necessário supor que ele esteja diretamente representado na rede de construções.
Mas aqui há uma pegadinha: o que aconteceria se essa mesma sentença se tornasse
frequente na sua vida (digamos, porque você ficou vidrado em um jogo de videogame com
animais coloridos)? Provavelmente, ela seria armazenada diretamente na sua memória. Ou seja:
como resultado da exposição frequente, uma dada sequência de palavras acaba por receber
representação independente. Com isso, ela se torna uma nova unidade simbólica no seu
constructicon – uma nova construção gramatical.
É precisamente dessa possibilidade que trata a segunda parte da citação acima. Como
nós já vimos, a sentença “O leão azul atacou um rato vermelho” é inteiramente previsível
(considerando-se as demais construções do constructicon). Ainda assim, à luz da GCBU, é
teoricamente possível que ela seja representada como uma construção à parte – bastando, para
isso, que seja experienciada com frequência suficiente11.
Talvez essa possibilidade soe bizarra quando se pensa em leões e ratos coloridos, mas o
fato é que algumas sentenças perfeitamente previsíveis podem ter frequência bastante alta – por
exemplo, “Vem aqui” e “Que que aconteceu?”. Sob uma ótica baseada no uso, é provável que
muitos falantes armazenem essas sequências como construções independentes, simplesmente
pelo fato de terem sido expostos a elas repetidamente (se você gosta de expressões que soam
muito científicas, pode chamar isso de efeito de frequência – ou “frequency effect”, em inglês).
Um outro exemplo pode tornar esse ponto mais claro12. À luz da GC, é razoável pensar
que o falante do PB conta como uma construção geral de modificação verbal – algo como
VERBO + MODIFICADOR. Mas a verdade é que existem vários subpadrões que se conformam a
esse esquema geral: por exemplo, VERBO + ADVÉRBIO (como em “falar claramente”), VERBO +
10
Esta é uma descrição absolutamente simplificada e informal, cujo objetivo é tão-somente (começar a) ilustrar a
noção de construção gramatical própria da GCBU. A situação real é certamente mais complexa.
11
Isso levanta um problema de pesquisa: o quão frequente deve ser uma sequência para que ela seja armazenada
como construção independente? Para uma discussão desse problema, ver Gurevich, Johnson e Goldberg (2010).
12
O exemplo que eu passo a apresentar é baseado na pesquisa de mestrado de Victor Virgínio (POSLING/UFRJ),
atualmente em andamento.
ADJETIVO ADVERBIAL (como em “falar claro”) e VERBO + SP (como em “falar com clareza”).
Nos moldes de uma rede construcional, esse conhecimento pode ser representado assim:
Fala sério
Figura 12: rede de construções de modificação verbal (versão 2)
Mas, como nós vimos, a GCBU reconhece – e mesmo valoriza – a possibilidade de
representação redundante do conhecimento gramatical. Isso significa que outras combinações
de verbo + adjetivo adverbial podem ser especificadas na rede de construções mesmo que não
sejam idiomáticas. Boas candidatas a isso são sequências como “pensar rápido” e “jogar fácil”:
13
Veja-se a esse respeito o que diz Chomsky (2004, p. 57) em avaliação da trajetória da linguística gerativa:
“Talvez seja um erro fundamental tentar tão intensamente eliminar as redundâncias ao desenvolver teorias
explicativas. [...] Até agora, parece-me que tem sido razoavelmente produtivo nós fingirmos que estamos fazendo
física de partículas elementares. No entanto, acho que temos que ter em mente que talvez nós estejamos
caminhando na direção errada, e que, cedo ou tarde, isso talvez apareça”.
“jogar fácil”). O mais interessante, porém, é que o falante não descarta o elemento mais
concreto uma vez que o padrão mais abstrato é construído. E, mais do que isso, é provável que,
durante boa parte da comunicação cotidiana, ele recorra aos níveis mais baixos da rede,
valendo-se dos esquemas mais abstratos apenas quando se trata de produzir ou compreender
enunciados inteiramente inéditos. É nesse sentido que, segundo Langacker (1991, p. 265), os
esquemas mais altos da rede construcional exibem mais uma “função organizacional” (eles
atribuem coerência à macrocategoria) do que uma “função computacional ativa”14.
A construção ascendente de uma rede construcional, no entanto, deixa evidente apenas
um tipo de relação entre construções: a relação vertical (ou taxonômica), que se estabelece entre
construções com níveis distintos de abstração (por exemplo, a Construções de Modificação
Verbal e a Construção de Adjetivo Adverbial). No entanto, há evidências experimentais de que
o falante também estabelece associações entre construções que se encontram em um mesmo
nível de abstração15. Isso, porém, não chega a ser uma surpresa. Afinal, no domínio das
palavras, é sabido que o falante associa itens semanticamente relacionados, mesmo que eles
não tenham semelhança formal (como “dia” e “noite”). Se é assim, não surpreende que o mesmo
aconteça com expressões fixas (como “pensar rápido” e “jogar fácil”) e mesmo padrões
abstratos (como a Construção de Advérbio Canônico e a Construção de Adjetivo Adverbial).
Em suma, a GCBU propõe que conhecimento linguístico pode ser descrito como uma
rede de unidades simbólicas inter-relacionadas, continuamente afetada pela experiência do
falante e construída graças a processos cognitivos gerais. Como consequência, o modelo admite
a representação redundantes de informações em diferentes níveis, o que evidencia seu
compromisso com a realidade psicológica (em detrimento da elegância descritiva).
Epílogo
A história da GC começou na década de 1980, motivada por uma reação ao tratamento
bipartido de conhecimento linguístico praticado pelos adeptos da linguística chomskiana (isto
é, sua cisão em itens e regras derivacionais). Ainda nesses primeiros anos, os desenvolvimentos
mais propriamente cognitivistas do modelo (liderados, sobretudo, por George Lakoff) já
enfatizavam a importância dos processos cognitivos gerais, como a metáfora e categorização
por protótipos, na organização do conhecimento linguístico. O resultado foi a emergência de
14
A ideia de que o conhecimento linguístico está repleto de idiossincrasias e regularidades parciais – incluindo
um vasto número de clichês lexicais – está na própria origem da GC. Essa perspectiva recoloca a repetição/imitação
em uma posição de destaque nos estudos linguísticos, anos depois de esses conceitos terem sido banidos como
hereges da teoria linguística em função da sua associação com o behaviorismo skinneriano.
15
Para algumas dessas evidências, ver Diessel (2015).
uma teoria não-derivacional – fundada no conceito de construção gramatical – que recusava a
separação teórica entre a cognição linguística e outras formas de cognição.
Um pouco antes disso, nos anos 1970, o Funcionalismo norte-americano também se
desenvolvia como uma forma de reação à gramática gerativa. Seu alvo, no entanto, era outro: a
separação estrita entre gramática e uso. Nesse momento, trabalhos de pesquisadores como Paul
Hopper e Talmy Givón demonstravam que a gramática deveria ser compreendida como o
resultado da convencionalização de padrões discursivos.
Hoje, a GCBU vem se firmando como o ponto de convergência entre essas duas
tradições: afinal, trata-se de um modelo não-derivacional em que o conhecimento linguístico –
entendido como rede de construções gramaticais – é continuamente afetado pelo uso e moldado
por processos cognitivos gerais. Por isso mesmo, trata-se um modelo gramatical perfeitamente
adaptado às necessidades da linguística funcional-cognitiva.
Referências
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OSTMAN, J-O.; FRIED, M. (Org.). Construction grammars: cognitive groundings and
theoretical extensions. Amsterdam / Philadelphia: John Benjamins, 2005.
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Handbook of Cognitive Linguistics. Berlin / New York: Mouton de Gruyter, 2015.
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LANGACKER, R. W. Concept, image and symbol. Berlin/New York: Mouton de Gruyter,
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