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LETA19 - MORFOLOGIA DA LÍNGUA

PORTUGUESA

TEXTO 01 - PETTER, Margarida. Morfologia. In: FIORIN, J.L. (org.).


Introdução à lingüística II: princípios de análise. São Paulo: Contexto,
2003, p. 59-79.
Primeiras noções de morfologia
☞ Morfologia, palavra constituída pelos elementos de origem grega
morphé ‘forma’ e logos ‘estudo, tratado’.

☞ O termo é atribuído ao poeta, novelista, dramaturgo e filósofo Johann


Wolfgang von Goethe (1744-1832), que o utilizou no domínio da biologia
(‘estudo da forma e estrutura dos organismos’) em finais do século XVIII.

☞ Atribui-se o seu uso no âmbito linguístico, no século XIX, ao linguista


alemão Auguste Schleicher (1821-1868).

☞ Nessa perspectiva, a morfologia é geralmente definida como o estudo


da estrutura interna das palavras.
☞ No século XIX, a morfologia desempenhou um importante papel na reconstrução do
Proto-Indo-Europeu. Buscou-se evidenciar o parentesco entre o sânscrito, o grego, o latim, o persa e
as línguas germânicas com base nas desinências (terminações) das palavras nessas línguas.

☛ Franz Bopp - Sobre o sistema de conjugação da língua sânscrita, em confronto com o das
línguas grega, latina, persa e germânica (1816).
☛ Alinhamento com a teoria darwinista da evolução (a primeira edição de A Origem das Espécies
é de 1859): a língua como um organismo vivo, sujeita às leis da evolução.

☞ Além do estudo comparativo das línguas, houve a preocupação de se elaborar uma classificação
tipológica com base nas semelhanças morfológicas entre elas (Schlegel, Schleicher, Humboldt).
☛ Línguas isolantes
☛ Línguas aglutinantes
☛ Línguas flexionais
☛ Línguas polissintéticas

☞ No século XX, com o estruturalismo, a morfologia também desempenhou um importante papel,


mas na perspectiva sincrônica. O interesse era identificar e classificar os morfemas – unidades mínimas
significativas – de cada língua falada no mundo.
Tipologia morfológica das línguas
● Línguas isolantes: todas as palavras são raízes, isto é, não podem ser divididas
em unidades menores. Ex.: o chinês.
Tā bă shū măi le
T ele marcador de objeto livro comprar-aspecto
‘Ele comprou o livro’
● Línguas aglutinantes: em geral, as raízes estão sujeitas à afixação, mas a
relação entre forma e significado é de um-para-um. Ex.: o turco.
EL = mão ELIM = minha mão ELLER = mãos ELLERIM = minhas mãos ELLERIMDE =
em minhas mãos
● Línguas flexivas (ou sintéticas/fusionais): as palavras são constituídas de vários
morfemas e nem sempre a relação entre forma e significado é de um-para-um.
Ex.: o latim.
mensæ (-æ = nominativo e plural) / mesas (sujeito)
● Línguas polissintéticas (ou incorporantes): uma sentença inteira pode ser
expressa em uma palavra. Ex.: línguas esquimós.
ILLUMINIIPPUQ = Ele está em sua (própria) casa.
ILLU = casa / MI = dele / NIIP = estar-em / PUQ = 3a pes. sing. (indicativo)
Tipologia morfológica das línguas
● Línguas templáticas (ou infixantes): a maior parte da flexão está relacionada
com o processo de infixação (inserção de segmentos vocálicos descontínuos
no interior da raiz)

ktb ‘escrever’ (raiz)


kitab ‘livro’
katab ‘escreveu’
katib ‘escritor’
☞ O estruturalismo introduziu a morfologia como uma subárea da linguística. Nessa
perspectiva, a morfologia tem como objetivo descrever os morfemas e como eles se
combinam na formação de palavras (os “arranjos”).

des-, em desfazer, introduz a mesma modificação observada em desarrumar, desligar,


desconectar etc. (a ideia de reversibilidade).

☞ A morfologia também pode ser entendida como um domínio mental da linguagem,


responsável por organizar e estruturar a constituição interna das palavras.

arrumar ➝ desarrumar fazer ➝ desfazer des- + verbos = ideia de reversibilidade

espirrar ➝ *desespirrar morrer ➝ *desmorrer restrição: as bases


ações/estados irreversíveis
expressam

passeata ➝ carreata, motociata, barqueata, tanqueata/tanqueciata etc. base + -(ci)ata


☞ De uma forma geral, podemos dizer que a morfologia estuda:

☛ A constituição interna das palavras, ou seja, sua estruturação em morfemas, cuja


combinação serve para:
(a) mudar a forma da mesma palavra: gat-o /gat-o-s; am-a-va /am-a-va-m
(b) construir palavras: bel-ez-a /goiab-ad-a
☛ Os princípios que regem a combinação desses morfemas: lind-a-mente
(*lindomente), cuid-a-dor (*bonitodor), nasc-i-ment-o (*mentonasci); cronômetros
(*cronosmetro/*cronosmetros)
☞ A morfologia estuda a estrutura interna das palavras. Mas o que é
palavra? Vários autores concordam que o falante comum tem um
conhecimento intuitivo sobre o que é palavra. A sua delimitação, no
entanto, pelo menos do ponto de vista linguístico, é uma questão
complexa.
☞ O texto de Petter (2010) inicia justamente enfatizando o termo “palavra”:

☛ para bom entendedor meia palavra basta, pedir a palavra, empenhar a


palavra, cortar a palavra, em quatro palavras, palavra de honra, santas
palavras, última palavra…

☛ Diz a autora (p. 58) que “[s]e para o leigo parece evidente reconhecer
palavras, para o lingüista não é tão simples caracterizar a entidade que
representa, aproximadamente, a primeira articulação da linguagem, aquela
que se manifesta por meio de unidades significativas”.

☞ Para refletir sobre a “palavra”, vamos, inicialmente, considerar a seguinte


questão:

cão e gato são a mesma palavra ou são palavras diferentes?


☞ Por que sua resposta é “é óbvio que são palavras
diferentes”?
☞ Essa obviedade inclui a observação de:

(a) diferenças na forma: como soa uma palavra quando


é falada: /gatƱ/ gato – /kãwN/ cão
(b) diferenças no significado: não é possível utilizar
“cão” e “gato” de modo intercambiável para
significar a mesma coisa.

☞ No entanto, “cão” e “gato” são tipos de animais de


estimação, estando essas palavras, portanto, de alguma
forma relacionadas.
☞ Considerem agora a seguinte questão:

gato e ágata são a mesma palavra ou são palavras


diferentes?

☞ As duas palavras compartilham alguns elementos da


forma, a sequência /gat/, mas será que “ágata” tem a
ver com o significado de “gato”?
ágata ‘variedade de calcedônia’,

do lat. achātēs, der. do gr. achátēs

☞ É preciso ter sempre em mente que a sequência


sonora tem de estar associada a um significado.

reler x remar

indigno x indiano
☞ Portanto, quando buscamos ver se dois itens são a
mesma palavra, precisamos considerar a forma
fonológica e o significado.

☞ Considere, agora, a seguinte questão:

gato e gatil são a mesma palavra ou

são palavras diferentes?

☞ Nesse caso, a conexão entre as duas palavras é mais


próxima do que na comparação feita anteriormente.
☞ As palavras gato e gatil são semelhantes não apenas
em termos da sua forma (a parte /gat/), mas também em
termos de significado, uma vez que dizem respeito a
‘felino doméstico’.

☞ No entanto, isso é suficiente para dizer que gato e


gatil são instâncias de uma mesma palavra?
☞ Além de apresentarem uma certa forma fonológica e
um significado, as palavras também pertencem a
categorias lexicais (classes gramaticais).

☞ Substantivos, adjetivos e verbos (e advérbios em


-mente) são considerados CLASSES ABERTAS, pois
novas palavras adicionadas à língua usualmente
pertencem a essas categorias. As CLASSES FECHADAS,
por outro lado, raramente adquirem novos membros:
pronomes, artigos, preposições e conjunções.
☞ Observem que “gato” e “gatil” pertencem à mesma
classe gramatical, a de substantivo. O significado de
“gatil”, no entanto, está baseado no significado de
“gato”: ‘lugar onde se criam, hospedam ou
comercializam gatos’.

☞ Foi adicionado ao radical gat- o afixo derivacional -il,


responsável por formar nomes de lugar (canil, potril,
cabril).

☞ Esse processo de criar palavras a partir de outras é


chamado de DERIVAÇÃO.
☞ Agora, uma última questão para vocês considerarem:

gato e gatos são a mesma palavra ou são palavras diferentes?

☞ Em termos da forma fonológica, observa-se que tanto em gatil


quanto em gatos há a adição de segmentos ao radical.

☞ No que diz respeito ao significado, gato e gatos aparentemente


se referem ao mesmo tipo de coisa, sendo a diferença
estabelecida entre uma (singular) e mais de uma (plural) coisa.

☞ Observa-se, ainda, que gato e gatos pertencem a mesma


categoria lexical, a de substantivo.
☞ Nesse caso, a resposta para a questão colocada não
parece tão óbvia, não é mesmo?

☞ Gatos representa uma forma gramatical diferente de


gato e é utilizada quando queremos ou necessitamos
falar de mais de um membro da classe “gato”.

Maria tem um gato.

Maria tem dois gatos.

☞ A criação de diferentes formas gramaticais das


palavras é chamada de FLEXÃO.
☞ A partir dessa breve exercício sobre a “palavra”, chegamos, portanto, a dois
processos morfológicos:

☛ Flexão: produz formas de uma mesma palavra ⟶ Morfologia Flexional

☛ Derivação: produz novos lexemas ⟶ Morfologia Derivacional ou Lexical


Quadro 1 – Características da flexão e da derivação

PROCESSOS FLEXIONAIS PROCESSOS DERIVACIONAIS

são requeridos pela sintaxe da não são requeridos pela sintaxe da


sentença (obrigatórios) sentença (opcionais)

mas: -mente, em portu- produtivos (alta aplicabilidade) irregulares ou pouco sistemáticos


guês, e -ly, em inglês

a semântica não é totalmente


apresentam estabilidade semântica
previsível

não criam novos lexemas, pois não


criam novos lexemas, pois alteram a
alteram a semântica lexical da
semântica da palavra
palavra

não alteram a categoria gramatical podem alterar a categoria


da palavra gramatical da palavra
Critério “obrigatoriedade/não obrigatoriedade”

☞ Antigamente nós dançávamos no velhíssimo clube de nossa cidadezinha.

☛ O advérbio e o sujeito impõem o uso das marcas morfológicas -va e -mos


☛ O substantivo “cidade” impõe o uso da marca -a no pronome possessivo “nossa”

Critério “aplicabilidade”

☞ imeiava, tuitava, instagramava etc.

☛ Todo verbo, mesmo aqueles recentes na língua, apresentam a informação de pretérito


imperfeito do indicativo, não havendo, portanto, restrições à sua aplicabilidade: o -va vai ser
adicionado a todas as formas verbais em português.

☞ Medonho, tristonho, risonho, enfadonho… mas não *alegronho, *choronho… / desfazer,


descasar, desmontar… mas não *destossir, *desespirrar, *desnascer… / matador, comprador… mas
não *roubador (ladrão), *dirigidor (motorista), *ensinador (professor); hospital → hospitalizar / clínica
→ *clinicizar (mas clinicar) [existência de lacunas]
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Critério “estabilidade semântica”

☞ -va: pretérito imperfeito do indicativo (“processo inconcluso, ou imperfeito,


realizado num tempo anterior ao presente” (Mattoso Câmara Jr., 1970, p. 90))
☞ -mos: primeira pessoa do plural (“nós”)
☞ descasar, desligar, desfazer… vs. desobedecer, desagradar, desconfiar… (valor
reversativo vs. valor negativo) [semântica não totalmente previsível]

Critério “alteração da classe da palavra”

☞ livro - livros (subst.-subst.), cantar - cantávamos (verbo-verbo)


☞ jogar - jogador (verbo-subst.), nacional - nacionalizar (adjetivo-verbo), mas
contente - descontente (adjetivo-adjetivo), livro - livraria (subst.-subst.)

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Diferentes modos de abordar a morfologia:

☞ Perspectiva estruturalista: o morfema é a unidade de análise linguística.


A preocupação central é a identificação e a classificação dos morfemas nas variadas
línguas do mundo.
☞ Perspectiva gerativista: a palavra é a unidade de análise linguística.
A preocupação central é descrever a competência lexical de um falante, ou seja, a sua
capacidade de identificar a estrutura interna das palavras e de formar palavras em sua
língua.
Fonte: Schwindt (2014, p. 111-112)

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