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Linguística Francesa 1 – Revisão de noções básicas de linguística

Bibliografia (disponível na secção de fotocópias do 2.º piso).


CHISS, Jean-Louis et alii (2001) – Introduction à la linguistique française, Paris: Hachette, vol. 1, pp. 21 -
58.
DORTIER, Jean-François (2001) – “Introduction – Questions sur le langage”, in Le Langage – Nature,
histoire et usage. Auxerre: Sciences Humaines Editions, pp. 1 – 13.

1. A Linguística, ciência da linguagem

 Como definir a linguística, ciência da linguagem, e o seu objeto?


 O que é a linguagem (humana)?
 O que é a língua (francesa)?
 Que metodologias empregamos para analisar a linguagem e as línguas?
 Que relações existem entre a linguística e as outras ciências?

Donde nos vêm os principais conceitos que hoje usamos? – Cours de Linguistique
Générale, Ferdinand de Saussure (1916†)

A linguagem verbal humana implica um sistema de comunicação que os outros


animais não possuem (os ruídos das outras espécies têm um único sentido e
transmitem-se geneticamente).
A linguagem é uma faculdade do ser humano, usada no seio de um grupo social, com a
função principal de comunicar e as (sub)funções de transmitir informação, exprimir
emoções, estabelecer contactos, construir pensamento abstrato. Também permite
jogo, transformação estética e explicação de si própria - R. Jakobson.

Deve ser
- estudada de um ponto de vista científico, isto é, descritivo (o que nem sempre
acontece em relação ao Francês, língua muito marcada pela norma, pela regra, pela
prescrição, pela noção de “le bon français”, “le français correct”): “la langue en elle-
même et par elle-même”;
- estudada dando prioridade ao oral sobre o escrito (aprende-se a falar antes de
aprender a ler, existem línguas que são apenas orais) – modernamente, reconhece-se
a diferença, mas a primazia não é necessariamente respeitada.

A ciência da linguagem – linguística


– faz parte da ciência dos signos no seio da vida social, a semiologia de Saussure (ou
semiótica, nos termos de Peirce);
- tem como objeto as línguas (naturais);
- tem como método global a análise de uma massa de dados (de cada língua), a partir
da qual deduz as leis de funcionamento (gerais da linguagem verbal, como, por
exemplo, o arbitrário, a dupla articulação e particulares para cada língua).

- O trabalho experimental das aulas 1 e 2 mostrou-nos como observar – descrever –


explicar um corpus de uma língua desconhecida utilizando
(i) os dados da própria língua,
(ii) as repetições / padrões de formas que nos dão
(iii) as regras,
(iv) os contributos dos informantes

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(v) e as manipulações experimentais.

- A observação científica de uma língua não deve partir de pressupostos, mas apenas
de princípios gerais, ditados pelo enquadramento teórico. Como sabem, esse
enquadramento tem origem no Cours de Linguistique Générale (F. Saussure, 1916†),
que estabeleceu uma série de conceitos fundamentais / fundadores da própria ciência
da linguagem.

2. Conceitos saussurianos
Como tratamos hoje os conceitos fundadores? O que é que ficou para a linguística
atual?

Sincronia / Diacronia
Saussure defendia a separação absoluta destas duas perspetivas (afastamento da
gramática comparatista, da perspetiva histórica que levou ao conceito de indo-europeu
e à metáfora das famílias de línguas, com consequências para a visão de evolução /
corrupção / morte / extinção – as línguas vistas como organismos vivos).

Contra-exemplos: negativa dupla (FRA) – intercompreensão na aprendizagem das


línguas românicas (por que motivo o FRA é tão difícil para falantes românicos / as
outras línguas são tão difíceis para falantes com FRA como L1?)

Alternativa: sincronia dinâmica – A. Martinet.


Na verdade, uma língua funciona como um organismo vivo em constante
transformação. Assim, a língua francesa evoluiu /muda todos os dias, de cada vez que
alguém a utiliza. Por essa razão, atualmente, preferimos considerar a língua no seu
momento presente, mas tendo em conta as pequenas mudanças que se detetam
facilmente.

Exemplo – a regra da negativa no francês escrito é a seguinte: o francês é língua de


negativa dupla; a regra da negativa no francês oral é a inversa: o francês é língua de
negativa simples.

Cf. Je ne suis pas allé(e) en France cet été (código escrito) versus J’suis pas allé€ en
France cet été (código falado).

Langue (língua) / Parole (fala)


Saussure defendia a separação e a primazia da langue enquanto expressão da
faculdade humana da linguagem.

Sistema
A língua, para Saussure, é o sistema coletivo, abstrato, acima das variações individuais,
idiossincráticas e concretas da parole / fala. Devem, por isso, ser claramente
separadas e considerar-se em linguística a primeira.

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Contra-exemplos: sociolinguística (as variações têm reflexos na língua, tanto diacrónica


como sincronicamente) – a evolução de uma língua dá-se pela fala / uso – as variações
individuais revelam estados emocionais (Psicolinguística), contextos enunciativos
(Análise do Discurso) e parâmetros culturais (Linguística Textual).

Na linguística atual, esta dualidade foi ultrapassada a favor de uma perspetiva


complementar, que tem em conta o sistema e os usos da língua. Ou seja, sem perder
de vista as diferenças entre o sistema e os seus usos, analisamos a língua tal qual se
fala, para depois percebermos as regras de uso do sistema.

Signo
Todas as línguas têm signos, isto é, unidades maiores ou menores, dotadas de
significados variados. A forma percetível do signo é a palavra. Contudo, a palavra é
uma forma escrita que esconde a verdadeira dimensão do signo.

O signo
 é arbitrário (= convencional, não motivado; cf. cheval / cavalo / horse / caballo
/ Pferd);
 é dotado de um valor identitário num sistema de oposições (cf. /p/ ~ /b/; blanc
~ noir; homme ~ femme; sur ~sous; pré ~post).
 estabelece relações no eixo sintagmático (com os outros signos de uma mesma
cadeia falada = relações in praesentia) e no eixo paradigmático (com os outros
signos que o poderiam substituir nesse ponto da cadeia).

Jean mange la pomme


Le garçon boit le lait
La fille monte les escaliers
Le chat chasse le rat

Sugestão de exercício: verifiquem quantas frases conseguem fazer, mudando os blocos


das 4 frases anteriores (1 de cada vez). O que podem concluir a partir daí?

 é dotado de forma e substância (significante + significado)


Cada língua estabelece uma rede de relações (o sistema, ver supra), a partir dos signos,
que têm uma parte material (= significante) e uma parte abstrata ( = significado) ; as
duas partes são inseparáveis.
O significante pode ser representado pela transcrição fonética. O significado indica-se
entre ‘ ‘
Portanto:

/ecɔlᵊ/ = significante ‘école’ = significado

3. Dupla articulação

Em suma, cada signo é um dos milhares de elementos linguísticos integrados num


sistema que obedece a um princípio universal de funcionamento, o princípio da dupla
articulação (A. Martinet, Eléments de Linguistique Générale, 1967).

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 Dupla articulação (um pequeno número de sons articula-se entre si para


formar um grande número de unidades significativas que, por sua vez, formam
todas as mensagens) – A. Martinet.

Cada língua possui unidades (= signos) que se articulam entre si de duas maneiras:
 unidades distintivas mínimas de 2.ª articulação (os fonemas, ou sons da língua),
en pequeno número (34 em francês)
 unidades significativas mínimas de 1.ª articulação (os morfemas, que
constituem a base de formação de palavras, constituídos por um ou mais
fonemas, muito mais numerosos)

Cada enunciado integra um conjunto de palavras que são, por sua vez, formadas com
morfemas. (cf. faire, défaire, refaire, affaire, s’affairer, affaires, faire le pitre).

Cada morfema é constituído por um ou mais fonemas (/fεR/)


As unidades distintivas ou fonemas combinam-se entre si de maneira a formar
unidades sifgnificativas que, por sua vez, se combinam entre si para formar palavras,
as quais, por sua vez, se combinam entre si para formar frases e, a partir daí,
enunciados dotados de sentidos muito diversos.
Em cada uma destas etapas, intervém um certo número de regras específicas para
cada língua (ordem, compatibilidade). De acordo com essas regras, apenas são
possíveis algumas combinações, que consideramos gramaticais ( = possíveis na língua
em questão):
cf. faire – refaire – défaire – affaire – affaires – s’affairer – faire le pitre
*1 raife – rerefai – faidere – fafaire – affairze – affairer se – pitre faire le

Estas regras seguem ainda um princípio de linearidade : a língua é um continuum que


se desenrola tanto na oral como na escrita. Consequentemente, os signos da
linguagem têm carácter discreto (= são unidades bem delimitadas / separadas / podem
distinguir-se umas das outras).

4. Objeto, domínios e ramificações da Linguística

O objeto da Linguística é a linguagem, vista sob o prisma de cada língua.


Uma língua é um sistema composto por vários subsistemas (Saussure), que obedece à
dupla articulação, mas que pode ser estudada de diferentes perspetivas, ou seja, em
diferentes domínios:

Domínios (tradicionais)
 Sons – fonemas (unidades mínimas distintivas, de 2.ª articulação, que se
opõem entre si por traços como vozeamento, ponto e modo de articulação –
Fonologia.
o Um fonema é um som com determinadas características articulatórias e
acústicas que, numa dada língua, se opõe a outros sons, que, por sua

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O sinal * antes de qualquer produção indica, em linguística, que essa produção é impossível na língua
em causa. Aqui, esta série não existe em francês. É, portanto, agramatical (ver infra).

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vez, possuem outras características; esta oposição é reconhecida por


todos os falantes, pois permite distinguir morfemas, ou até palavras
o ex: ami ~ acquis sali ~ salut mur ~ mer beau ~ peau
o em francês, os sons [m], [k], [i], [y], [ɛ], [b], [p] são fonemas, ou seja,
unidades mínimas distintivas
 Conjuntos de sons ou blocos significativos – morfemas (unidades mínimas
significativas, de 1.ª articulação, constituídas por fonemas); - Morfologia.
o Um morfema é um conjunto de fonemas dispostos numa determinada
ordem que, numa dada língua, entra na formação de palavras ou como
base ou como afixo, possuindo portanto um determinado valor ou
significado
o ex: auto – automobile, auto-sport, auto-suffisant, autochtone,
autonome, automatique
o ex: -er - marcher – aller – manger – arriver – compliquer – ravager –
venger
o em francês, auto e –er são morfemas, o primeiro lexical, o segundo
gramatical.
 Conjuntos de morfemas ou blocos sintagmáticos – sintagmas – que se
combinam entre si segundo regras (ordem, concordância, regência), para
formar frases – Sintaxe.
o Um sintagma é OU uma palavra de uma classe nuclear OU um grupo de
palavras que tem por núcleo uma palavra de classe nuclear (nome,
verbo, pex), que ocupa uma dada posição numa frase e que ou
desempenha uma função ao nível primário (sujeito, verbo) ou está
encaixado num outro grupo de palavras com uma dada função
(complemento)
o ex: os grupos de palavras entre [ ] são sintagmas (sujeito – predicado –
complemento do verbo): [Le petit lapin] + [a mangé] + [une carotte]]
 Conjuntos de traços que em conjunto constituem o sentido de uma palavra ou
expressão e lhe permitem referir determinados objetos do mundo real –
Semântica;
o Um sema é um traço mínimo de sentido que, em conjunto com outros,
forma o valor ou significado e uma palavra ou expressão, distinguindo-a
de outras
o ex: ‘humain’, ‘mâle’, ‘adulte’ são os traços de sentido do vocábulo
homme que indicam que se pode referir a uma classe de objetos do real
(todos os seres humanos do sexo masculino adultos) e opõem-se ao
conjunto ‘humain’, ‘femelle, ‘adulte’, que por sua vez lhe opõem
também o vocábulo femme.
 Utilização deste sistema de subsistemas (fonemas – morfemas – palavras –
sintagmas – frases – sentidos) em contextos reais, como forma de comunicar
mensagens, constituindo enunciados
o Os usos das formas que fazem parte do sistema da língua podem
conferir-lhes funções e sentidos muito variados, apenas interpretáveis
em contexto – Pragmática
o ex: T’as pas 1 euro? = J’ai besoin d’1 euro = J’ai pas la monnaie = Prête-
moi 1 euro = Une petite pièce pour un café, s’il vous plaît

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Estes subdomínios “tradicionais” encontram-se hierarquizados, desde a unidade mais


pequena (o fonema) à maior (o enunciado contextualizado) e constituem subsistemas
de um macro-sistema que é a própria língua (neste caso, o francês).

5. Método científico
Para descrever e explicar esse macrosistema, são aplicadas metodologias de análise
linguística, tal como em qualquer outra ciência:

- uso de fontes: informantes e corpora, ou frases forjadas


- manipulação de produtos (segmentos) por segmentação, comutação, deslocação
- avaliação dos resultados de acordo com juízos de gramaticalidade feitos pelos
falantes nativos
- dedução das regras básicas de funcionamento de uma dada língua.

Por exemplo, em francês,


- as consoantes, em geral, não se podem seguir na cadeia falada sem que haja
vogais entre elas
- não há correspondência exata entre grafema e fonema (o caso de –t de
chauffant, partit, bâtiment)
- existe flexão NOMINAL em GEN (mon / ma) e em NUM (mon, ma / mês), que se
reflete na CONCORDÂNCIA (ma soeur non mariée… perdue)
– existe flexão VERBAL (tendait / répandait / faisait / ouvrait)
– a ordem de constituintes de uma frase francesa de base é, prototipicamente,
SVO
– a maioria das palavras lexicais pode ter vários sentidos: petit chien (= un chien qui
est petit) – petite fille (une fille jusqu’à 10 ans) – petit-déjeuner (un repas spécifique,
non nécessairement petit; cf. un grand petit-déjeuner)– petite robe (= une jolie robe) –
petit frère (le frère cadet, un frère plus jeune) – petit prix (= pas cher) – petit esprit (=
esprit mesquin)
- o sentido de uma palavra varia conforme o seu uso: mon grand (= mon chéri).

6. Ramificações
Para além destes domínios, é possível considerar as ramificações que a linguagem,
enquanto atividade humana, sustenta com outras ciências sociais e humanas, o que
origina diferentes subespecialidades:

 Linguagem e sociedade – Dialetologia, Etnolinguística, História da Língua,


Sociolinguística.
 Linguagem e pensamento – Psicolinguística, Neurolinguística.
 Linguagem e contextos culturais – Análise do Discurso, Linguística Textual.
 Linguagem e outras áreas do saber – Didática das línguas, Tratamento
informático, Linguística Forense, Terapia da fala…

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