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LETA19 - MORFOLOGIA DA LÍNGUA

PORTUGUESA

TEXTO 02 - GONÇALVES, C.A. Morfologia. São Paulo: Parábola, 2019, p.


13-26.

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Recapitulando
☞ Morfologia é o estudo da estrutura interna das palavras. As palavras,
por sua vez, são constituídas por unidades menores com significado – os
morfemas – cuja organização entre si apresenta duas finalidades:

☛ alterar a forma de uma mesma palavra para adequá-la a


funções gramaticais específicas e
☛ formar novas palavras a partir de outras existentes.

☞ Por isso, interessa à morfologia estudar o que é PALAVRA.


☞ Para os falantes, de modo geral, a palavra é uma unidade linguística
(Gonçalves, 2019, p. 14-15):

☛ dotada de sentido(s);
☛ constituída por segmentos sonoros organizados numa determinada
ordem e emitidos sem interrupção;
☛ pertencente a uma (ou mais) categoria(s) sintática(s);
☛ formadora de enunciados;
☛ enunciável em isolamento, ou seja, produzida sozinha, como, por
exemplo, em resposta a perguntas.
☞ prato
s.m.|substantivo masculino
1 peça de louça, metal etc., ger. circular e côncava, em que se serve
comida
2 conteúdo de um prato (acp.1) (Derivação: por metonímia)
3 conjunto de ingredientes preparado de determinada maneira; iguaria
(Derivação: por extensão de sentido)
Ex.: pratos da cozinha japonesa
4 cada uma das preparações culinárias servidas numa refeição entre a
sopa e a sobremesa (Derivação: por extensão de sentido)
5 qualquer peça de máquina que lembre um prato
Ex.: os p. de uma balança
6 cada uma das duas peças circulares de metal, us. como instrumento de
percussão em orquestras, bandas e outros grupos musicais; címbalo
(Rubrica: música) HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro. Dicionário Houaiss Eletrônico da Língua
Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.

(a) Maria comprou pratos.


(b) O que Maria comprou? Pratos.
☞ “Percebe-se que palavra não é um termo unívoco; é polissêmico,
em decorrência de seu amplo uso, em diferentes contextos, o que
lhe confere contornos semânticos imprecisos. Normalmente, para
dar mais precisão à terminologia, em contextos científicos
costuma-se adotar e definir uma nomenclatura específica. Nesse
sentido, uma saída seria deixar o termo palavra servindo a seu uso
tradicional e partir para a adoção e definição de um termo mais
específico, que poderia ser vocábulo mórfico.” (Zanotto, 2013, p.
20-21)
Palavra e vocábulo
☞ “Na literatura linguística, os termos palavra e vocábulo são quase
sempre utilizados como sinônimos em referência a uma unidade que
transmite um significado elementar, como ‘a’, ‘samba’, ‘pé-de-moleque’,
‘que’ e ‘maria-vai-com-as-outras’” (Gonçalves, 2019, p. 17)
☞ No entanto, alguns autores distinguem esses dois itens, reservando o
termo “palavra” para os vocábulos que apresentam significado lexical:
☛ “Toda palavra é vocábulo, mas nem todo vocábulo é palavra”
(Monteiro, 2002, p. 12)
☞ O vocábulo, por sua vez, como um “instrumento gramatical”,
apresenta significado gramatical. Corresponde a artigos, preposições,
pronomes e conjunções. [Gonçalves, 2019, quadro p. 17]
6
Voltando à questão da palavra...
☞ chickenês e gothamcitiar podem ser consideradas palavras do
português?
Assista o vídeo a seguir.
Que significado você acha que elas têm?
Para uma palavra existir, é necessário que ela
esteja dicionarizada?
Léxico externo e léxico mental
☞ Léxico externo: conjunto de ☞ Léxico mental: “uma espécie de
palavras de uma língua, isto é, “o dicionário internalizado que contém
conjunto de palavras que pode ser uma enorme quantidade de palavras
verificado nos enunciados dessa que podemos produzir, ou pelo
língua ou representado nos menos entender quando as ouvimos.
dicionários” (BASILIO, 2004, p. 10) Mas também temos um conjunto de
regras de formação de palavras que
nos permite criar novas palavras e
compreender novas palavras quando
as encontramos.” (LIEBER, 2009, p. 5)
O léxico está constituído por palavras. Mas o que é
“palavra”?
☞ “Definir palavra […] não é tarefa trivial. Ainda que qualquer falante comum tenha um saber
intuitivo sobre o que é uma palavra, não é simples delimitar os critérios de que se utiliza para
defini-la” (Schwindt, 2014, p. 128).

tipo de palavra passatempo

fonológica 2 palavras por possuir 2 acentos

morfossintática 1 palavra por ser apenas 1 átomo sintático

por não possuir espaço entre as duas


gráfica 1 palavra
bases
12
Basílio (2004, p. 13-19 – “Dissecando a palavra”)

☞ Palavra gráfica: “sequência de caracteres que aparece entre espaços e/ou pontuação e que
corresponde a uma sequência de sons que formam uma palavra na língua” (João viajou ontem /
*Jõ vaju one).
☞ Palavra fonológica: dotada de um acento principal (isto é, de maior intensidade)
☞ Palavra morfológica ou estrutural: unidade linguística cujos elementos “apresentam ordem fixa
e são rigidamente ligados uns aos outros, não permitindo qualquer mudança de posição ou
interferência de outros elementos” (guarda-chuva/*guarda-muita-chuva, narração/*çãonarra) (p.
14).
☞ Palavra como unidade de significação: uma palavra, um significado. No entanto, são mais
comuns as palavras que têm mais de um significado, isto é, afetadas pela polissemia (letra = letra
de música; = caligrafia; = letra do alfabeto).
☞ Palavra lexicográfica: aquela que aparece listada no dicionário. Mas o que motiva os
lexicógrafos a registrarem determinadas palavras?

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☞ Palavra como forma livre mínima (Bloomfield, 1933): “aquela que pode por si só constituir um
enunciado, ao contrário da forma presa, ou afixo, que só pode ocorrer em conjunto com outra, da qual
depende” (p. 17)

☞ Palavra como uma unidade abstrata (o lexema): presente no léxico mental dos falantes, realiza-se sob
formas de palavra (PEGAR: pegou, pego, pegariam, pegará…).

☞ Palavra morfossintática: a descrição de uma das formas do lexema, tal como ocorre num enunciado
(João pegou o embrulho/Eu pego o embrulho/Eles pegariam o embrulho/João pegará o embrulho).
☞ “Na escrita, é relativamente fácil identificar uma palavra em
função de haver recursos gráficos [...]. Na fala, por outro lado, nem
sempre se distingue uma unidade vocabular de um grupo de
palavras, pois, foneticamente podem ser produzidos da mesma
maneira” (Gonçalves, 2019, p. 15)

cavá-lo cavalo amá-la a mala

cale-se cálice sem hora senhora

a gente agente deter gente detergente


de repente / derrepente
de menor / dimenor
em cima/ encima
com certeza / concerteza
por isso / porisso

A ausência de segmentação (dos itens em


vermelho) revela que os redatores se pautaram na
cadeia falada: dois vocábulos formais = um
vocábulo fonológico.
O vocábulo fonológico
☞ O vocábulo fonológico corresponde a uma sequência de sílabas pronunciadas sob um único acento:
uma sílaba tônica e eventuais postônicas e pretônicas.

☛ Tônica principal: 3 ☛ Segunda tônica (subtônica): 2


☛ Pretônica: 1
☛ Postônica: 0

MA TE MÁ TI CA

pretônica pretônica TÔNICA postônica postônica


inicial medial medial final

☞ Em “café com leite”, como fica a distribuição do grau de acento?


Os três tipos de formas linguísticas: formas livres, formas
presas e formas dependentes
☞ Formas livres vs. Formas presas (Bloomfield, 1933):
☛ Formas livres (free forms – vocábulos mórficos): são as autônomas, as
que sozinhas podem constituir frase, que podem, por exemplo,
funcionar sozinhas como resposta a uma pergunta; por outras palavras,
formam uma sequência que pode funcionar isoladamente, que possui
carga comunicativa suficiente.
O que você vai revender? Livros, roupas, charutos etc.
Ele é seu amigo? É, sim, não, talvez, depende, nunca, felizmente etc.
O que você está fazendo? Estudando, trabalhando, pesquisando etc.
☞ São formas livres: substantivos, adjetivos, verbos, alguns advérbios,
pronomes e numerais.
☛ Formas presas (bound forms – partes de vocábulos mórficos):
integram a palavra, só funcionam conectadas a outras formas, não
possuindo autonomia formal e fonológica. Na escrita aparecem
ligadas diretamente umas às outras. Correspondem a prefixos,
sufixos, desinências e radicais não autônomos.

-s, de casas
*As -s gostam de brincar.
-va, de cantava *Hoje estudarei na -teca.
-mos, de amamos
-a, de bonita
bibli- e -tec(a), de biblioteca
☞ Mattoso Câmara Jr. (1967) acrescentou as ‘formas dependentes’
entre os vocábulos mórficos, o que permitiu incluir artigos,
preposições, conjunções, pronomes átonos etc. As formas
dependentes funcionam ligadas às livres, geralmente em adjacência, e
não têm autonomia no discurso. Caracterizam-se pela possibilidade de
mobilidade e intercalação de outras formas.

Telefonou-me / me telefonou

a filha / a linda filha / a linda filha de Alice / a linda filha de minha


amiga Alice
Exemplo:
A filha de Alice dormiu.

Quantas formas livres, formas presas e formas dependentes?


3 formas livres: filha, Alice, dormiu
2 formas dependentes: A, de

☞ Formas livres e formas dependentes podem ser constituídas por


morfemas livres, presos e dependentes:
filha = filh-, -a
Alice = Alic-, -e
dormiu = dorm-, -i, -u
☞ A florista fechará os dois quiosques da praça.
quantas formas livres?

quantas formas dependentes?

☞ A Ana gosta de observar o mar.


quantas formas livres?

quantas formas dependentes?

☞ As crianças mudarão de escola no próximo ano.

quantas formas livres?

quantas formas dependentes?


O conceito de forma (livre, presa e dependente) não deve ser
confundido com o conceito de morfema.

☞ Formas livres, presas e ☞ Morfemas: definem-se no


dependentes: definem-se no nível da palavra, ou seja, da
nível da frase, isto é, do possibilidade de se dividirem ou
funcionamento das unidades não em unidades significativas
linguísticas no enunciado. menores.
Os meninos jogaram bola na chuva.
O-s
menin-o-s
jog-a-ra-m *O menin gost de bol
bol-a
n-a (= em + a)
chuv-a

☞ Morfemas livres, presos e dependentes:


☞ Formas livres e dependentes:
☛ livres: não há
☛ livres: meninos, jogaram, bola,
chuva ☛ presos: -s (de “os”, de “meninos”),
menin-, -o, jog-, -a, -ra, -m, n- (de
☛ dependentes: os, na
“na”), bol-, -a (de “bola” e “chuva”),
chuv-
☛ dependentes: o (de “os”), a (de
“na”)
☞ Atividade (adaptada de Rodrigues, 2012, p. 15):
Leia o seguinte texto: De todas as aves que observamos na albufeira, o abibe é a mais curiosa.

1 - Retire do texto exemplos que permitam ilustrar a diferença entre morfemas presos e morfemas dependentes.

2 - Em (1) incluiu as nos morfemas dependentes? Justifique.

3 - Retire do texto exemplos que ilustrem que um morfema não coincide obrigatoriamente com uma palavra.

4 - Proceda a alterações da forma abibe de forma a exemplificar o que é a flexão.

5 - Proceda a alterações da forma curiosa de forma a exemplificar o que é a derivação.

6 - Podemos dizer que tanto em (4) como em (5) se obtiveram lexemas? Justifique.

Glossário:
albufeira: lago artificial criado por barragem; represa
abibe: tipo de ave que ocorre na Europa e Ásia
De todas as aves que observamos na albufeira, o abibe é a mais curiosa.

Exemplos de morfemas presos: Exemplos de morfemas dependentes:

“As” é um morfema dependente? Justifique.

Exemplos de morfemas que não coincidem com uma palavra:

Exemplificação da flexão a partir de “abibe”:

Exemplificação da derivação a partir de “curiosa”:


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Conclusão (Gonçalves, 2019, p. 25-26)
☞ “[…] não há, ainda, designação técnica suficientemente precisa para
palavra, já que nem sempre é fácil delimitá-la”.
☞ “Em suma, ainda não foi possível estabelecer um conceito geral, válido
em todas as línguas, para definir palavra.”
☞ O autor assume “a ideia de palavra como unidade lexical, ou seja, uma
sequência fônica que se associa, de modo relativamente estável, a um
conjunto de:
(a) significados;
(b) propriedades sintáticas (função na frase);
(c) propriedades morfológicas (variações formais);
(d) determinações de uso (informações pragmáticas).”
☞ Referências:

BASÍLIO, M. Formação e classes de palavras no português do Brasil. São Paulo: Contexto, 2004.

GONÇALVES, C.A. Morfologia. São Paulo: Parábola, 2019, p. 13-26.

LIEBER, R. Introducing Morphology. Cambridge: Cambridge University Press, 2009.

MONTEIRO, J.L. Morfologia portuguesa. 4a. ed. rev. e ampl., Campinas: Pontes, 2002.

SCHWINDT, L.C. Morfologia. In: SCHWINDT, L.C. (org.). Manual de linguística: fonologia, morfologia e
sintaxe. Petrópolis: Vozes, 2014, o. 109-154.

ZANOTTO, N. Estruturas morfológicas do português. 6a. ed. rev. e ampl., Caxias do Sul: Ibral, 2013.

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